Cristina BrancoTony BellottoJorge Silva Melo - Fonoteca ...

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Cristina Branco Tony Bellotto Jorge Silva Melo Entrevista exclusiva na estreia do filme Dream of Life

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Cristina Branco Tony Bellotto Jorge Silva Melo

Entrevista exclusiva na estreia do fi lme Dream of Life

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2 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

SumárioPatti Smith 04Entrevista com uma artista completa

Watchmen 12Os comics voltam a ensombrar o cinema

Tony Bellotto 18Conversa com o líder da banda rock brasileira “Titãs”, de quem acaba de sair o segundo livro da trilogia do detective Bellini

Daniel Galera 20A infância e o bairro onde o escritor brasileiro cresceu em Porto Alegre inspiraram o seu romance, “Mãos de Cavalo”

Jorge Silva Melo 22Atira-se a um carrossel frenético, “Esta Noite Improvisa-se”, de Pirandello

“Arquivo Universal” 26A fotografi a ao serviço de sistemas ideológicos numa exposição no Museu Berardo

Director José Manuel FernandesEditores Vasco Câmara, Joana Gorjão Henriques (adjunta)Conselho editorial Isabel Coutinho, Inês Nadais, Óscar Faria, Cristina Fernandes, Vítor Belanciano Design Mark Porter, Simon Esterson, Kuchar SwaraDirectora de arte Sónia MatosDesigners Ana Carvalho,Carla Noronha, Jorge Guimarães, Mariana SoaresE-mail: [email protected]

Ficha Técnica

comitiva liderada pelo presidente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, Sid Ganis, que chegou a Teerão na sexta-feira. O encontro foi feito a convite da Khane Cinema (Casa do Cinema) e tinha como objectivos realizar um conjunto de seminários e workshops com realizadores e argumentistas iranianos, promover o contacto entre as duas culturas e dar a oportunidade a Hollywood de conhecer o cinema iraniano. Alguns dos realizadores locais mais corajosos entregaram envelopes com DVDs dos seus filmes a elementos da comitiva, com esperanças que consigam chegar a Hollywood, descreve o “New York Times”. “Apenas um filme iraniano foi nomeado para os prémios da academia nos últimos 30 anos, e nós queremos mudar isso”, disse ao jornal Mohammad Mehdi Asgarpour, director do Hhane Cinema.A actriz Annette Bening acrescentou ainda que esperava que a comitiva fosse um catalisador para as relações entre os dois países, diz a AFP. Farhad Tohidi, argumentista, frequentou um dos eventos e acha que a presença da

feitas a Washington por Ahmadinejad há algumas semanas.Shamghadri enumera alguns dos filmes que ofenderam as sensibilidades iranianas. “Rapto em Teerão”, de Brian Gilbert, 1991, que conta a fuga da protagonista e da filha do Irão e retrata o país como uma “prisão patriarcal e opressiva”, e “300”, de Zack Snyder, 2007, que conta a história da batalha de Termópilas entre gregos e persas, últimos descritos como um exército “bárbaro”, são “dois exemplos de completas mentiras”, disse Shamghadri. Outro filme que não está na lista, mas tem causado polémica é “O Wrestler” de Darren Aronofsky. O protagonista, Randy ‘The Ram’ Robinson, enfrenta um adversário chamado “o Ayatollah”, que se veste usando as cores da bandeira do Irão, e Randy chega a partir nos joelhos um poste onde está colocada a bandeira do país.O comunicado surge como resposta à visita de uma

academia “vai alterar o ambiente por aqui”. Também está orgulhoso por descobrir a importância que o cinema iraniano começa a ter no mundo, acrescenta o jornal.Os filmes ocidentais foram proibidos no Irão após a revolução de 1979, mas durante os anos 90 as cópias piratas e os canais de TV estrangeiros, através de televisão por satélite, tornaram-se comuns para os iranianos, mesmo sendo ilegais. Como resposta à pirataria, o governo tem permitido a tradução de alguns filmes ocidentais, censurando algumas cenas, para serem vendidos e transmitidos na televisão estatal.Apesar da posição oficial, a realidade é que o governo iraniano permitiu a visita da comitiva e a interacção entre as duas indústrias cinematográficas ao emitir os vistos necessários à entrada no país, os mesmos vistos que negou, no mês passado, a uma equipa de badmínton feminino convidada para participar num torneio, lembra o jornal nova-iorquino.

“Os representantes do cinema iraniano só vão ter direito a encontros oficiais com os realizadores de Hollywood, se [Hollywood] pedir desculpas aos iranianos pelos insultos e acusações feitos nos últimos 30 anos.” Esta foi a declaração de Javad Shamghadri, conselheiro artístico do Presidente iraniano Ahmadinejad, num comunicado oficial, segundo o “Guardian”.“O povo iraniano e a nossa revolução foram repetidamente e injustamente atacados por Hollywood. Começaremos a acreditar na política de Obama quando virmos mudanças em Hollywood, e se Hollywood quer corrigir o seu comportamento para com o povo iraniano e a cultura islâmica vai ter de pedir desculpas oficialmente”, continuou Javad, revelando exigências semelhantes

Hollywood tem de pedir desculpas ofi ciais a Teerão

“300” foi um dos fi lmes que ofendeu as sensibilidades iranianas: aqui os persas são descritos como um exército “bárbaro”

Annette Bening, à esquerda, e Alfre Woodard , à direita, com a actriz iraniana Fatemeh Motamed-Aria antes de um workshop no Museu do Cinema de Teerão, no domingo

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Tim Burton adora os Cure e adorava uma colaboraçãoTudo começou com um discurso elogioso em cerimónia de entrega de prémios musicais, tudo poderá resultar numa colaboração. Resumidamente, Tim Burton considera os Cure uma das suas grandes referências e trabalhar com a banda de Robert Smith, seja de que forma for, seria para ele um orgulho imenso.Soubemo-lo dia 25 de Fevereiro, na gala do “New Musical Express”, realizada na Brixton Academy, em Londres, onde os Cure foram uns dos grandes homenageados da noite. Receberam o correspondente a um prémio carreira que, fiel ao espírito excessivo do semanário musical britânico, foi ali baptizado como “Godlike Genius Award” (algo como “prémio génio divino”). Para o entregar a um humilde e agradecido Robert Smith, a organização escolheu Tim Burton, alguém que quase diríamos corresponder, cinematograficamente, às fantasias pintadas a negro da música dos Cure. O realizador de “Batman” ou “Sweeney Todd” subiu a palco e contou como, durante os anos em que foi desenhador para a Disney, “amarrado a uma secretária” e infelicíssimo, tinha a banda de “Friday I’m in love” como companhia constante, como uma das suas únicas fontes de alegria: “salvaram-me”, agradeceu.Depois da cerimónia, em declarações à BBC 6, o realizador confessou o quanto lhe agradaria uma colaboração de qualquer tipo com os seus heróis musicais: “Nunca fiz nada com eles, mas a sua música foi sempre uma inspiração, de uma maneira ou de outra, para tudo o que fiz.”Tim Burton trabalha neste momento numa adaptação de

“Alice No País das Maravilhas”, de Lewis Carrol, cuja estreia em sala está prevista para 2010 (do elenco fazem parte os habituais Johnny Depp e Helena Bonham Cárter, fazem parte Christopher Lee, Anne Hathaway e, no papel de Alice, a australiana Mia Wasikowska).Talvez depois de terminado aquele projecto Burton e os Cure unam esforços num trabalho conjunto. Já imaginamos títulos possíveis: “Boy’s don’t cry in the chocolate factory”, “Lullaby for a corpse bride”, “Sweeny Todd killing an arab”. Todo um mundo de possibilidades (negro, como convém).

Blur também tocam em Glastonbury e haverá canções novas para ouvir

Já se sabia do regresso e já sabia que não era um regresso qualquer. Os Blur, banda charneira da década de 1990, inspirados e digníssimos representantes de uma geração de cronistas pop britânicos que recua até aos seminais Kinks, anunciaram no final de 2008 que andavam em ensaios e que os ensaios resultariam em concertos.Já seria interessante o suficiente se isso implicasse apenas os três que gravaram “Think Tank”, o último álbum da banda, editado em 2003, ou seja, Damon Albarn, Alex James e Dave Rowntree. Sabendo que a reunião é total, que o guitarrista Graham Coxon se reconciliou com os antigos comparsas e que também ele anda a ensaiar para os concertos no Verão, tudo isto ganha foros de acontecimento.Coisa em grande: depois das actuações marcadas para Manchester, a 26 de Junho, para Hyde Park, a 2 e 3 do mês seguinte, e, ainda em Julho, para o escocês T

In The Park e o irlandês Oxegen, foi agora anunciado que partilharão com Bruce Springsteen o lugar de maior destaque no cartaz de Glastonbury, o mais emblemático festival britânico, cuja edição de 2009 decorre entre 24 e 28 de Julho.A primeira aparição pública dos Blur decorreu no passado dia 25 de Fevereiro, quando Damon Albarn e Graham Coxon interpretaram “This Is A Low”, uma das canções de “Parklife”, nos NME Awards, os prémios do semanário musical britânico “New Musical Express”. Foi a primeira colaboração entre os dois em uma década e o momento ganhou forma de viagem no tempo cuidadosamente encenada - nessa mesma cerimónia, os Oasis foram os grandes vencedores da noite, mas as suas vitórias em diversas categorias foram assobiadas pelo público, o que inevitavelmente trouxe à memória a rivalidade entre as duas bandas, tão empolada na década de 1990.No final da actuação, Albarn e Coxon revelaram ao “NME” estar a seguir um regime de ensaios bastante “relaxado”: “Estamos a ensaiar uma vez por semana e a apreciá-lo - tocando todas as canções de todos os álbuns.” O duo adiantou ainda que os concertos não se limitarão a passar em revista o catálogo da banda, sendo quase certa a apresentação de novas canções: “Tudo anda à volta da quantidade de ideias que temos, mas isso, de qualquer modo, era o que significavam os Blur”, declarou Coxon.

Arte (e mercado) no deserto

Já se sabe: com o mercado tradicional em falência, todos os olhos são postos nas alternativas presentes e

futuras oferecidas por países supostamente imunes à crise, ou, no mínimo, menos susceptíveis de se desmoronarem perante ela. Por exemplo, o Dubai. No segundo maior dos Emirados Árabes Unidos, hoje visto por muitas fortunas internacionais como uma espécie de parque de diversões para adultos no meio do deserto, há uma feira de arte - a Art Dubai - que vai na sua terceira edição e, a menos de 25 quilómetros de distância, mas já no emirado ao lado, o Emirado de Sharjah, uma bienal - a Bienal de Sharjah, sob o alto-patrocínio do xeque Mohammed Al Qasimi, vai na nona edição. Este ano, e pela primeira vez, as datas das duas coincidem, aumentando expectativas, com a Art Dubai a decorrer de 18 a 21 de Março e a Bienal de Sharjah de 19 de Março a 16 de Maio. E Portugal não fica de fora. A Galeria Filomena Soares estará no “stand” 30B na Art Dubai com obras de 12 dos 24 artistas que representa. Artistas como a iraniana Shirin Neshat e a australiana

Tracey Moffatt, lado a lado com

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portugueses: Helena Almeida, João Penalva, José Pedro Croft e Vasco Araújo. Isabel Carlos, que em breve assumirá a direcção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, está por detrás de uma das maiores exposições de Sharjah - a mostra “Provisions For The Future”, que a comissária dedica a artistas a trabalhar temas como a imigração, a viagem, a fuga e o exílio, mas também noções de memória, história e narrativa. Através de Isabel Carlos, surgem na bienal, entre 50 artistas internacionais, nomes de três artistas portugueses ou ligados a Portugal: Ana Vidigal e Yonamine Miguel, por um lado (nomeações directas), e Fernando José Pereira, por outro (este como parte de um programa-concurso através do qual se escolheram entre 50 por cento dos nomes participantes e que teve 450 candidaturas internacionais). Na nota de intenções para a mostra Isabel Carlos cita o neologismo encontrado pelo psicólogo e antropólogo Oliver James que define “affluenza” - uma sobreposição entre os termos “affluence” (riqueza) e “influenza” (o vírus da gripe) - para definir uma sociedade de Capitalismo Egoísta, em que as pessoas já não se definem pelo “ser” mas sim por um “ter”. Sharjah, diz Isabel Carlos, “visa propor uma pausa para reflexão”. Isto enquanto ali ao lado, no

Dubai, as ilhas artificiais com hotéis e residências de luxo em forma de palmeira continuam a

proliferar.

Os Blur partilharão com Bruce Springsteen o lugar de maior

destaque no cartaz de Glastonbury, o mais emblemático festival britânico

TIm Burton entregou o prémio de “carreira” da “New Musical Express” a Robert Smith: o realizador confessou que a música da banda era fonte de alegria quando era desenhador da Disney

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Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009JUSTIN STEPHENS/CORBIS OUTLINE

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6 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

retrato difuso da alemã Waltraud Meier, a sua cantora de ópera prefe-rida, que fotografou em Munique nos bastidores de “Tristão e Isolda”. Patti sempre gostou de ópera, mas era uma fã dos românticos italianos. Até que, um dia, a amiga Susan Sontag lhe disse para esquecer Puccini e experimentar Wagner. “Esquecer Puccini! Só porque tinha êxitos? E o que é que fazíamos com Smokey Robinson?”, brinca Patti. “Mas é verdade que acabei por gostar muito de Wagner.”

A serenidade de Patti impõe uma atmosfera acolhedora. Nada nela é ensaiado e há nisso uma espécie de nobreza (sim, mas como explicar isso aos amigos que querem saber “como foi?”). “Em mais do que um sentido, Patti Smith é a visionária do rock’n’roll definitiva, não só pelo que fez, mas também por causa do que não fez”, escreveu Jefferson Hack na revista “Another Magazine”, e é bem visto.

A conversa começou pelo último concerto que ela deu em Lisboa, por-que a data estava a pedi-las - falámos com ela a 28 de Outubro de 2008, pre-cisamente um ano depois.Parece ter sido um momento especial: houve um clique imediato entre si e o público, como dois amantes que se reencontram ao fim de muitos anos. Uma reverência mútua. Lembra-se disso?Claro. Era a segunda vez que estava em Lisboa - antes, só tinha feito um recital de poesia acústico [em 2001, no Pavi-lhão Carlos Lopes]. Todas as vezes que tínhamos tentado ir, tive de cancelar ou aconteceu alguma coisa. E eu estava determinada a ir por várias razões. Antes de mais, queria ver o país, tirar fotografias, absorver a atmosfera. Sem-pre tive um fascínio por Portugal. Tenho um projecto secreto, que é um livro de viagens imaginadas, que come-cei nos anos 80, quando fiquei em casa, com duas crianças para criar e poucos recursos. Fiz um livro sobre um via-jante que viaja mentalmente, e o último capítulo chamava-se “Lisbon Antigua”. Li tudo sobre Lisboa e a minha vontade de ver a cidade e de fazer parte dela era tão forte que talvez tenha transfe-rido isso para as pessoas. Não sei o que se passou mas senti-me imediatamente bem-vinda, não só no concerto mas na própria cidade. Lenny Kaye e eu andá-mos pelas ruas à noite. Subimos até S. Jorge... é a igreja de S. Jorge, não é?Castelo de S. Jorge.Isso. Fomos até lá. Fiquei extasiada com a árvore que está lá. Não sei se

notou [levanta-se e afasta-se]. Volto já. Uma das últimas imagens do meu livro foi tirada lá. [Regressa, trazendo o catálogo da exposição da Fondation Cartier na mão]. É uma árvore na praça do Castelo de S. Jorge, não sei se diz aí na legenda [do livro].Sim: “Árvore em forma de Y, Castelo de S. Jorge” [em francês no livro].Vi-a e foi a minha última fotografia. Eu estava a ser muito cautelosa em rela-ção ao que seria a minha última foto-grafia. E foi essa.No concerto em Lisboa, contou que o seu marido, Fred “Sonic” Smith, costumava dizer: “Tricia, acho que és meia portuguesa!”[risos] Sim. Ele dizia que um dia eu ia acordar e começar a falar como um pescador português, porque tinha tantos livros sobre Portugal - a nossa biblioteca era um pouco antiga, com álbuns de fotografia de Portugal dos anos 30, com imensos pescadores. Claro que, como muita gente, ado-rava Pessoa. Tom Verlaine e eu cos-tumávamos ler Pessoa o tempo todo, quando éramos novos. Pode ter sido o Tom que me deu a conhecer Pessoa - estávamos sempre a falar de livros bizarros. Portanto, não acabou “Lisbon Antigua”?Ainda não. É um projecto a que irei voltar em 2010.Ele já existia quando esteve em Lisboa em 2001.Comecei a escrevê-lo mas, entretanto, o meu marido adoeceu. Quando ele morreu, a minha vida mudou e grande parte do trabalho que me ocupava antes disso continua à espera de ser retomado porque acabei por seguir outro caminho. Mas essa é a minha terceira prioridade. A primeira é ter-minar o livro que tenho em curso sobre Robert Mapplethorpe. E depois tenho de gravar um novo álbum. A seguir, vou voltar ao meu projecto das viagens imaginadas. E tentar terminar “Lisbon Antigua”.De onde vem o seu fascínio por Portugal?Tem a ver com uma peça musical que o meu pai estava sempre a ouvir quando eu era nova, chamada “Lisbon Antigua”. É um instrumental. [canta] La-da-da-da... Decidi chamar “Lisbon Antigua” ao último capítulo do livro em memória do meu pai. Portugal é um país romântico, mesmo que sai-bamos pouco sobre o país. O vinho do Porto é uma espécie de bebida mís-tica. É a minha única indulgência, por-

que praticamente não bebo álcool. Mas tenho umas quantas garrafas de Porto muito, muito velho.

Nasci no final dos anos 40, por isso os álbuns ilustrados que me vieram parar às mãos tinham sido publicados nos anos 20 e 30. Eles continham ima-gens de sítios antes das guerras. Eu via fotografias de sítios com camponeses tradicionais e pescadores, era roman-ticamente atraída para lugares através de imagens do passado. E, claro, tam-bém há a música, o fado [Patti pro-nuncia “fei-dô”], que também me atraiu quando era nova. Em termos de canto, o fado parece vir de um lugar genuíno e inspirado. Não foi o Lorca que escreveu uma coisa sobre fado? Se calhar, estou errada. Uma das coisas mais marcantes em “Dream of Life” é o facto de parecer tantas coisas diferentes ao longo do documentário - uma pioneira do Oeste, uma índia, uma mulher, um homem, nova e velha. Há aquele verso maravilhoso do Walt Whitman: “I am huge, I contain multitudes.” Tem a sensação de ter tido várias existências?Bem, todos temos várias existências. É como disse. Isso descreve o filme na perfeição, mas também me descreve a mim - eu sou todas essas coisas. Às vezes ainda me sinto como quando tinha 10 anos e levava o meu cão a passear, ou comandava as minhas irmãs numa batalha imaginária, mas por vezes também sinto o peso dos anos. Ou então estou a tocar guitarra eléctrica e a sentir a reverberação e sinto-me como se tivesse 23. Nunca me passaria pela cabeça tentar repro-duzir aquilo que fui num momento. Não posso dizer: “Vou parecer e agir como se tivesse 23.” Mas, por vezes, ao fazer determinadas coisas, ainda consigo saborear certas sensações ou atingir uma certa energia porque isso existe dentro de mim. Julgo que todos temos essa possibilidade, mesmo que nem todos queiramos fazer uso dela. Enquanto artista e mãe, é providencial poder aceder aos meus diferentes perí-odos. Quando falo com a minha filha, às vezes estou prestes a dizer qualquer coisa e penso em mim quando tinha a idade dela, e consigo ver a coisa do outro lado.

Ela é mais esperta do que eu era com a idade dela, portanto propicia isso. E às vezes torna-se bastante óbvio que devo fazer uso dessa faculdade. Enquanto artista, devemos ser capazes de comunicar com pessoas de todas

“O vinho do Porto é a minha única indulgência, porque não bebo álcool. Mas tenho umas quantas garrafas de Porto muito velho. Nasci no final dos anos 40, por isso os álbuns ilustrados que me vieram parar às mãos tinham sido publicados nos anos 20 e 30. Continham imagens de sítios antes das guerras. Eu via fotografias de sítioscom camponeses tradicionais e pescadores, era romanticamente atraída para lugares através de imagens do passado. E, claro, também há a música, o fado [Patti pronuncia “fei-dô”], que também me atraiu quando era nova”

Patti e o marido, Fred “Sonic” Smith, que lhe dizia que um dia ela ir acordar e começar a falar como um pescador português, porque tinha tantos livros sobre Portugal

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Nunca estudei música. Sou auto d

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as gerações e de todo o tipo. Se esti-ver a dar um concerto, seja para mil ou para 10 mil pessoas, vão lá estar pessoas de idades diferentes, com dife-rentes Q.I., orientações, vivências, expectativas, e temos de encontrar alguma coisa em nós que possa comu-nicar com essas pessoas. Temos de descobrir o nosso estado mais genuíno e dar-lhes isso. E ao descobrir isso des-cobre-se que... contemos multidões, ou múltiplos...

Não há nada no filme que tenha sido forçado. Não fizemos nada para pare-cer mais isto ou para mostrar um aspecto em particular. Eu estava a pin-tar e o Steven [Sebring, realizador] veio visitar-me. Saímos e fomos ver o meu pai e a minha mãe. A única coisa que estabelecemos foi excluir deter-minadas coisas. A Jesse [filha de Patti] aceitou aparecer no filme quando fosse mais crescida, porque quis dei-xar de ser filmada aos oito anos. Esti-vemos a pensar no que fazer, como é que ela poderia reaparecer agora, e lembrámo-nos: “Vamos dar uma volta.” Ela gosta de Central Park e do John Lennon, por isso fomos ao par-que, e visitámos Strawberry Fields. Em meados da década de 90, quando emergiu da sua longa retirada da música para criar uma família, os tempos tinham mudado. Até que ponto sentiu que as coisas eram diferentes do que tinham sido nos anos 70?Eram diferentes de tantas maneiras. Primeiro que tudo, eu era diferente.Foi duro?Foi duro porque tinha acabado de per-der o meu marido e irmão e tinha dois filhos para criar, e tinha de mudar de casa, ganhar a vida, ao mesmo tempo que estava a lidar com o luto. A única coisa que sabia fazer para ganhar a vida era actuar. Podia escrever poesia, mas isso não me ia ajudar a ganhar dinheiro para criar os meus filhos.Portanto, a música não foi uma forma de se religar com o mundo depois da perda?Não. Era um emprego. Mas não era uma coisa cínica. Fred e eu tínhamos começado a preparar um novo álbum quando ele ficou doente. Não o chegá-mos a fazer porque ele morreu. Mas alguma da música ficou, por isso decidi avançar e fazer um disco em sua memória. Foi o meu primeiro pensa-mento: acabar o nosso trabalho. Isso foi “Gone Again” [1996]. Por outro lado, precisava de dinheiro para vir para Nova Iorque com os meus filhos. Podia ganhar alguma coisa com um

álbum, nada de extraordinário, apenas o suficiente para começar. Mas não fazia ideia do que iria fazer a seguir. O Bob Dylan pediu-me para ir com ele em digressão. Acho que o Allen Gins-berg lhe deve ter dito alguma coisa, para me ajudar. O meu marido e eu adorávamos Bob Dylan, [a digressão] era na costa Leste, portanto era perto, podia levar os meus filhos.

Foi assim que comecei a restabelecer a ligação com as pessoas. Tive umas conversas simpáticas com o Bob Dylan sobre isso. Ele sentia que eu devia vol-tar a actuar. E o Allen Ginsberg tam-bém. Tinha estas duas pessoas que admirava imenso e de quem gostava a aconselharem-me a fazê-lo. E a forma como as pessoas me receberam, apesar de só estar fazer a primeira parte dos concertos do Bob, foi tão calorosa e ajudou a restaurar a minha confiança, que tinha ficado debilitada - pelas cir-cunstâncias da vida.

O Bob pediu-nos para ir com ele à Austrália, em digressão, e subitamente eu estava de novo a trabalhar. Mas só nos períodos escolares do Jack e da Jesse. No Verão e na época de Natal eu não viajava, só ia em digressão quando estavam na escola. Foi bom porque consegui ganhar dinheiro suficiente para ficar em casa a maior parte do tempo, e depois, quando a Jesse tivesse idade para isso, poderia levá-la comigo. A estrada não é um lugar recomendá-vel para crianças, mas o nosso estilo de vida é bastante compatível. Não havia nada que a pudesse assustar, somos boas pessoas...

O meu regresso não foi triunfal

Há um momento, em “Dream of Life”, que é um retrato da artista enquanto fã: Patti Smith imita Bob Dylan em “Don’t Look Back”, o documentário de D.A. Pennebaker sobre a digressão inglesa de Dylan em 1965. Patti dirige-se a Steven Sebring, que está fora de campo, a fi lmá-la: “Viste ‘Don’t Look Back’? Steven! Nunca viste ‘Don’t Look Back’?! Uma vez passei imenso tempo só a tentar aprender a acenar a um táxi da mesma maneira que Bob Dylan o fazia.” O gesto em causa é um braço insolentemente esticado, mão caída, com a palma paralela ao corpo.

Ao telefone a partir de Nova Iorque, Sebring, realizador de “Dream of Life”, ri-se porque ainda não viu “Don’t Look Back”, apesar de se sentir honrado por ter lido uma crítica ao seu fi lme que dizia que este é o “Don’t Look Back” de Patti Smith. “Há dois anos, ela [Patti Smith] deu-me a caixa com o documentário. Um dia destes hei-de sentar-me a vê-lo.”

É a prova de que Sebring não podia ser mais indiferente à tradição e desta vez ainda bem. “Dream if Life” tem sido descrito como um documentário sobre Patti Smith simplesmente porque não é uma fi cção.

Talvez ajude dizer o que “Dream of Life não é: uma colagem de imagens de arquivo e entrevistas laudatórias, ou o “rewind” do velho artista sobre o auge da sua carreira ou os excessos de juventude. É um retrato impressionista de Patti Smith na intimidade: Patti com os pais (entretanto falecidos), Patti mostrando-nos objectos pessoais cheios de signifi cado, como se fossem coisas que salvou do fogo (o vestidinho de quando era criança, a urna onde guarda as cinzas do amigo Robert Mapplethorpe, a T-shirt

encardida de

quando o fi lho era pequeno), Patti em sítios onde poderíamos sentir-nos intrusos (no silêncio da casa de Detroit, para onde se retirou nos anos 80 para criar uma família, até o marido morrer).

Sebring, 42 anos, fotógrafo “free lance” (de estrelas de Hollywood e de moda), fi lmou Patti Smith durante 11 heróicos anos. E o mais surpreendente é que mal sabia quem ela era. A “Spin” mandou-o fotografar Patti em 1995 para a revista e Sebring diz que houve uma empatia imediata: “Nem sequer a fotografei, a não ser no fi nal do dia; ela teve de me lembrar que eu devia tirar fotografi as”. Meses mais tarde, foi assistir ao primeiro concerto de Patti em 16 anos, em Nova Iorque. Quando viu a ferocidade dela em palco não conseguiu ligar isso com

a mulher doce, viúva e mãe de duas

crianças, que tinha conhecido antes. “Às vezes, ela parece-me um pequeno camaleão”, resume Sebring.

Fluxo contínuoÉ verdade e, no entanto, não daríamos pelo longo arco temporal do fi lme se não víssemos os fi lhos de Patti crescer durante o processo: passado e presente não existem (tal como não existem no discurso de Patti), fazem parte do mesmo fl uxo contínuo.

Sebring diz que fi lmou durante 11 anos porque foi ele que fi nanciou o fi lme, pelo que o projecto esteve sempre dependente das suas circunstâncias económicas. “Além disso, a Patti é uma pessoa muito reservada. Às vezes tenho de lembrar as pessoas de que vê-la no quarto a mostrar pequenas coisas dela implica tempo. Não podemos entrar em casa de alguém e começar a fi lmar. Com alguém como ela, não funciona dessa maneira.”

Na verdade, “Dream of Life” parece mais o anti-”Don’t Look Back”, o documentário que seguia o escapista Dylan para todo o lado mas sobre o qual se pode dizer, como David Letterman disse a Joaquin Phoenix no seu “talk-show”: “É uma pena que não tenha estado aqui.” “Dream of Life” é o contrário: é o mais próximo que podemos estar de Patti Smith.

Sebring e Smith prolongaram a experiência com um livro que contém transcrições do que Patti diz no fi lme, mas é sobretudo um “scrapbook”, um álbum ilustrado. E montaram uma instalação (“Objects of Life”) com os objectos pessoais de Patti que surgem no fi lme para ser mostrada em galerias e museus.

Perguntamos a Sebring como é, agora, a sua vida sem fi lmar Patti Smith, e a resposta é:

“Como assim? O que é que a faz pensar que parei?”.

K.G.

Steven Sebring: “Às vezes, ela parece-me um pequeno camaleão”

Como um fotógrafo de moda e de celebridades fi lmou Patti Smith durante 11 anos. O mais surpreendente é que mal sabia quem ela era.

“Às vezes tenho de lembrar as pessoas de que vê-la no quarto a mostrar pequenas coisas dela implica tempo. Não podemos entrar em casa de alguém e começar a filmar. Com alguém como ela, não funciona dessa maneira”

Sebring e Patti

“Sou apenas alguém que desabrochou tarde, que não nasceu com talentos excepcionais. Mas sempre tive uma imaginação forte, imensa energia, vontade

o didacta em tudo

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nem rejubilante. Nem sequer teria regressado se não tivesse tido uma perda tão grande. Preferia nunca ter voltado e que o meu marido ainda esti-vesse vivo. Mas isso foi o que a vida me trouxe, perda, por isso preveni toda a gente à minha volta: isto não é um motivo de celebração, não se trata de voltar a reunir a banda, não estou a recomeçar o Patti Smith Group, não estou a retomar a partir do ponto em que tinha ficado. Estou a reaprender, a reconstruir. Foi o que fiz.Mas não esteve só a cuidar da sua família nesses anos em que se afastou da música. Também esteve a criar, a escrever, não?A escrever, principalmente. Fred e eu escrevemos imensas canções em con-junto. Tocávamos juntos. E havia outras coisas que nos ocupavam. Estu-dei arte, literatura japonesa, até pro-curei saber mais sobre desporto por-que o meu marido adorava desporto. Aprendi tudo sobre golfe, o Sevi Bal-lesteros, o Tom Watson... Tive de seguir o British Open. Tinha de me manter a par dos interesses dele. Por isso tentei aprender mais sobre aquilo que lhe interessava - sobre aviação, sobre o mar. Adoro estudar, posso ser muito feliz só a estudar. Quando deixei de actuar durante 16 anos, não me pus a lamentar o facto de não dar con-certos. Sentia saudades dos meus ami-gos e companheiros de banda, mas tinha imenso tempo para ler e estudar. Para mim a coisa mais excitante é tra-balhar, e descobrir lugares onde nunca estive. Trabalhar e viajar. Não sou uma pessoa que necessite de adulação, de banhos de multidão. Gosto das expe-riências que a música proporciona porque canalizamos diferentes ener-gias, elevamos a noite, mas o que me faz correr é o trabalho. Somos uma banda à moda antiga: improvisamos, cometemos erros, deixamo-nos levar pelo público, tentamos fazer o que as pessoas querem, ou o que julgamos que elas precisam. Cada noite é uma coisa nova, não somos uma máquina. Não estou a criticar a máquina, que às vezes pode ser fantástica - vemos ban-das que têm tudo, luzes e vídeos, e efeitos sonoros... é como o teatro, e é empolgante. Mas não é isso que faze-mos. Exigimos bastante das pessoas porque a noite depende realmente de todos nós. E isso é o que nos torna mais imperfeitos, mas também mais especiais.É sempre surpreendente a modéstia que demonstra em relação aos seus

conhecimentos e talentos musicais. Ainda recentemente, num questionário do “New York Times”, dizia que é uma amadora musical.E sou. Nunca estudei música. Não sei ler pautas, só consigo tocar uns seis acordes na guitarra, sou autodidacta em tudo. Cheguei a ouvir gravações de concertos em que cantei a noite inteira fora de tom e fiquei tão pertur-bada que queria desistir... Mas depois disseram-me que, como não treinei a voz, canto aquilo que oiço. Portanto, se o que estou a ouvir estiver meio tom abaixo, eu canto meio tom abaixo. Acho que a minha forma de cantar melhorou com os anos. O meu marido teve bastante a ver com isso, ensinou-me diferentes respirações. Com a idade a minha voz também ficou mais grave, estou certa de que se nota que já passei por algumas coisas na vida. Não fumo. Isso é importante para uma cantora. Tenho 61 anos, mas já ouvi pessoas nos seus quarentas cuja voz estava mais quebrada do que a minha por causa do excesso de álcool ou de cigarros ou drogas.A menos que se chame Tom Waits.Bem, ele sempre soou como um tipo mais velho.Portanto, não pensa em si como música?Não. Nesta altura do campeonato, posso dizer que aprendi imenso sobre canto. Diria que sou uma “performer”, acho que tenho forte presença em palco. E consigo improvisar e comu-

nicar com os músicos. Mas comunico por ouvido. Se alguém me dissesse “podes fazer isto em dó sustenido?”, eu não saberia do que estavam a falar.Dá sempre a ideia de que a música foi uma coisa que lhe aconteceu por acaso, um acidente.E foi. Foi uma coisa orgânica. O meu objectivo era tornar a leitura de poesia mais interessante. A única coisa que estava a tentar fazer no início era ele-var o nível da “performance” de poe-sia, tornar a noite mais interessante. Foi uma coisa gradual: comecei por introduzir som, pedindo ao Lenny Kaye que reproduzisse uma colisão automóvel no final de um poema com o “feedback” de uma guitarra eléc-trica. Depois tive vontade de cantar alguns poemas. A seguir, decidi fazer algumas canções pelo meio, para intro-duzir uma pausa, porque às vezes estar a ouvir uma pessoa pode ser maçador. Depois comecei a improvisar com uns quantos acordes. E eu improvisava poesia e essas improvisações deram origem a “Horses” e a “Land of a Thou-sand Dances”. As aventuras de Johnny [personagem de “Horses”] começa-ram no início de 1973, era apenas um poema longo que às tantas eu fundi com a canção “Land of a Thousand Dances”. Porque Johnny tem a sensa-ção de que está rodeado de cavalos e um dia pensei: “Uau, podíamos juntar isso com o ‘Land of a Thousand Dan-ces’ do Chris Kenner: ‘Horses, horses, do you know how to poney...” Pergun-

tei ao Lenny: “Consegues fazer isso?”, e ele disse que sim.

Eu não era música, portanto não sabia quão fácil seria, em três acordes, passar para “Land of a Thousand Dan-ces”. Ou passar do poema “Oath”, que começava com “Jesus died for somebody’s sins but not mine”, a “Gloria”. Essa frase vinha de um poema que eu escrevera em 1970 e que me fartei de dizer ao ponto de perder o interesse por ele. Até intro-duzir-lhe algum ritmo e fazer outra coisa com ele. A repetição aborrece-me. Nem sequer é aborrecer, não sou pessoa de me aborrecer, mas fico inquieta com a repetição. As coisas simplesmente evoluíram, numa altura em que provavelmente tinha de haver uma evolução. É surpreendente como se tem mantido intacta, fiel à sua visão pessoal. Há uma linha directa entre o seu trabalho e a sua “persona” iniciais e o que está a fazer agora.Essa é uma ideia simpática. Em parte, a explicação é simples. Não tenho vícios. Não tive de me debater com dro-gas, álcool... Não filtrei o que sou atra-vés de uma substância. Em alguns aspectos, não sou assim tão diferente de quando tinha 11 anos. Excepto nas coisas óbvias: sou mãe, tenho 61 anos, espero ser mais atenciosa para com os outros, isto é, menos fechada no meu mundo, menos absorvida comigo mesma. Ainda tenho projectos que comecei aos 20 anos, quando eles esta-vam para além da minha capacidade ou compreensão. Isso é outra coisa: quando era nova, não era prolífica nem talentosa. Bob Dylan, por exemplo, era muito talentoso e prolífico quando era novo, tal como Arthur Rimbaud. Mui-tos artistas atingem o seu auge cedo graças ao seu dom, ao seu talento.

Eu, por outro lado, sou muito deter-minada. Não digo isto para ser modesta, sou apenas alguém que desa-brochou tarde, que não nasceu com talentos excepcionais. Mas sempre tive uma imaginação forte, imensa energia, vontade e visão. Foi preciso muito, muito tempo para conseguir realizar algumas das coisas que sonhei ou pro-jectei. Ainda estou a trabalhar nelas. E isso põe-me em contacto com o que eu era na juventude.

A única coisa para a qual não preci-sava de preparação era actuar em público. Sou uma “performer” natu-ral. Quando era nova, pensei em apro-veitar esse dom para ser professora. Ensinar não seria um problema, pen-

“Não sou uma pessoa que necessite de adulação, de banhos de multidão. Gosto das experiências que a música proporciona porque canalizamos diferentes energias, elevamos a noite, mas o que me faz correr é o trabalho”

Um dos heróis mais

duradouros de Patti:

Rimbaud

Uma das prioridades de Patti: terminar um livro sobre o fotógrafo Robert Mapple-thorpe

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sava - bastava ir para a frente das pes-soas e falar de coisas que eu sabia e que elas tinham de aprender. Houve quem tentasse talhar-me para ser actriz, mas sou demasiado indiscipli-nada para isso. Até que, como lia poe-sia e lhe juntava música, e como tinha uma postura agressiva no mundo do rock’n’ roll, acabei a fazer discos e a dar concertos. Mas nunca esteve no topo da minha lista de prioridades. Foi só: “Oh, faço isto, não é difícil.” Se alguém me ligasse agora e dissesse “Pode vir até Madison Square Garden fazer um discurso?”, eu respondia “Oh, ok”, apanhava o metro, ia lá dar um discurso e vinha-me embora. Não ficaria intimidada nem sentiria medo, e podia fazê-lo num instante. Mas um poema pode levar-me três anos. Sente por vezes que tem sido mal interpretada por ser o que é? Não é que me sinta mal interpretada. Mas as pessoas têm uma perspectiva estreita. Se alguém pensa, basica-mente, que eu sou a madrinha do punk, isso é simpático, não me importo. Mas também escrevo, faço fotografia, desenho, procuro ser boa cidadã, sou mãe... Portanto, se alguém me vê de uma só maneira, como a pes-soa que escreveu “Horses”, isso é tudo o que vão ter. Não é tanto ser mal inter-pretada, é mais sentir que não sou inteiramente examinada. Olhe para o William Blake: se apenas lesse os poe-mas de Blake, teria uma boa experiên-cia, mas perderia os seus desenhos, o seu activismo, a sua voz, as suas visões, a sua filosofia. Gostaria que as pessoas tivessem mais conhecimento daquilo que faço. Às vezes activistas radicais, ou o movimento feminista, sentem que eu não me empenhei activamente nas suas causas. Mas não gosto de movimentos. São muito importantes porque promovem mudança, mas um movimento para mim é como um psi-quiatra: são melhores quando já não são precisos. Nunca me interessou ser meramente uma artista feminina, uma vocalista feminista, um estandarte do movimento das mulheres. Tudo isso está muito bem, mas o que sempre quis ser foi artista, ponto. E um estan-darte da condição humana. Algumas pessoas chegam a perguntar-me: “Não quer o melhor para a sua filha?” E eu digo: “Sim, e também quero o melhor para o meu filho.” Tenho um filho e uma filha. Por que direitos devo lutar? Direitos humanos. Ao bater-me pelos direitos humanos, estou a defendê-los a ambos.

É por isso que quando as pessoas

nos querem catalogar... Tenho elemen-tos de uma “punk rocker” porque isso faz parte de mim, mas já não estamos no CBGB’s em 1974. Não posso satis-fazer a ideia dessas pessoas do que deve ser uma “punk rocker”. Isso cabe às novas gerações. As novas gerações hão-de redefinir o que é o punk rock. Todas essas coisas que faz - a música, a pintura, a escrita, a fotografia - servem objectivos diferentes?Faz tudo parte do mesmo universo. É um chamamento, é uma coisa que tenho de fazer. Estou condenada a criar, condenada a escrever um poema, condenada a tirar uma fotografia. Não há nenhum objectivo nisso. Quer dizer, não sei qual é o objectivo da arte. Ela tem uma certa finalidade, mas para o artista é processo, é como respirar. Respirar tem um objectivo? Sim, é o que nos mantém vivos. É a mesma razão por que a Madre Teresa foi para a Índia cuidar dos desafortunados e dos moribundos. Estou certa de que, às vezes, quando estava cansada ou as coisas eram avassaladoras, ou quando simplesmente teria preferido rezar e unir-se a Jesus, ela pode ter pensado: “Não estou a fazer o que tinha pensado que ia fazer.” Mas ela tinha de o fazer. Era o seu chamamento.Por que é que deixou alguém que mal a conhecia, e que não tinha qualquer experiência prévia em cinema, filmar um documentário sobre si? Por ele não ter ideias pré-concebidas?Conheci o Steven [Sebring] logo depois de o meu irmão morrer, e ele tinha as virtudes de um bom irmão. Gentil, res-peitoso, carinhoso para com os meus filhos, nenhuma tensão sexual, nenhuma presunção, nenhum sinal de querer forçar as coisas, era um puro. Ele não sabia nada sobre mim, gostava de Slayer e bandas do género. Apenas sabia que tinha de ser sensível por causa da minha vida e dos meus filhos. Esteve na minha casa, e foi discreto, fez o seu trabalho. Pouco depois, tive de dar o meu primeiro concerto em Nova Iorque, no Irving Plaza, já não actuava há 16 anos ou parecido, e estava nervosa. Ele apareceu e quando me viu actuar não conseguiu relacionar isso com a pessoa que tinha conhecido antes. Porque eu estava a falar com ele e às tantas disse: “Agora tenho de ir trabalhar.” E ia para o palco, fazia o meu concerto, e voltava. Isso fascinou-o porque ele tinha imaginado que os músicos rock se vestiam, tornavam-se outra pessoa antes de entrar em palco.

Mas ele também viu o meu outro lado, mais agressivo. E ouviu-me cantar pela primeira vez. Acho que isso o fascinou. Quando me perguntou se me podia filmar, a minha reacção normal deveria ser “não”. Mas ele disse-me que, se eu não quisesse que se fizesse nada com o filme, ele limitar-se-ia a dar-mo. Não o usaria. Disse-me: “Pelo menos, terá filmes caseiros dos seus filhos e outras coisas.” E eu disse: “Está bem.” Ele andava com uma câmara de 16mm bastante pesada, mas não tinha equipa nem luzes. Já fiz sessões de fotografia em que eles têm 20 pessoas: o serviço de “catering”, isto e aquilo, os assisten-tes... Ele não tinha nada. De vez em quando tinha um amigo a ajudá-lo ou a mulher a fazer o som, ou um amigo meu a fazer o som, era uma pequena operação. Era como ter o nosso irmão connosco. E se eu não estivesse para aí virada, bastava dizer: “Hoje não quero ser filmada.” Ou se os miúdos dissessem “não me filmes”, ele dizia “oh, desculpa”, não tentava filmá-los à má fila. Confiei nele e ele mereceu essa confiança.Em 1993, escreveu na revista “Details”: “Já não preciso de anjos - eles foram todos interiorizados.” É quase uma premonição de como lidou depois com a perda.Acho que o que queria dizer era que me sinto mais confiante, sei quem sou. Mas ainda gosto de ter heróis. Tive uma fase Bulgakov recentemente: li todos os seus livros, fui a Moscovo, visitei o seu túmulo. Li “Margarida e o Mestre”, a sua obra-prima, umas quatro vezes. Era só Bulgakov, o tempo todo. Gosto de me sentir inspi-rada por outros, normalmente isso desencadeia outras coisas.E tem noção de que inspira outras pessoas?Levou-me muito tempo a aceitar isso de forma graciosa, porque eu ficava embaraçada ou então não acreditava. Mas agora, quando as pessoas dizem isso, digo só “óptimo”. Porque sei como é. E se fiz alguma coisa que as faça sentir só metade do que o trabalho de outras pessoas me faz sentir, é fan-tástico, é por isso que trabalhamos. Se alguém retirar de “Horses” qualquer coisa como o que eu retirei de “Uma Temporada no Inferno” ou “A Child’s Garden of Verses” [de Stevenson] ou “Mulherzinhas”, óptimo.

Leia a versão integral na entrevista em www.ipsilon.pt

Ver crítica de filmes págs. 35 e segs.

Portugal para Patti é

também Fernando

Pessoa. Foi Tom Verlaine que lhe deu a

conhecer- “estávamos

sempre a falar de livros

bizarros”

u condenada a criar

12 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

120 milhões de dólares, mais de 200 cenários, efeitos CGI, recursos slow/stop-motion, heróis mascarados e mitologia. “Watchmen - Os Guardiões” é isto, condensado em 2h41m, mas almeja ser muito mais. Baseado numa obra seminal dos “comics” emancipa-dos sob a capa lustrosa de novela grá-fica, “Watchmen”-livro nasceu num ano em que tudo mudaria no reino da BD “made in America”. Em 1986, a ironia, o questionamento e a subver-são das convenções do super-hero-ísmo arrastava consigo uma carga de transcendência: os heróis queriam-se com fissuras morais e rodeados de referentes filosóficos.

Os leitores eram convidados, muitas vezes à (força) bruta, a mergulhar em mais do que nas dicotomias bem/mal, herói/vilão. A psicologia, a ontologia e a “realpolitik” imiscuíram-se nas pos-sibilidades do género, indo para além das máscaras, questionando-as, con-frontando a noção (neo-conservadora) de impor, à margem da lei, a ordem na cidade. Quem melhor para o fazer do que vigilantes, mascarados até, não necessariamente super-heróis, que envelhecem, que cometem actos impensáveis, sem moral?

Em “Watchmen” (livro e filme) há uma irmandade de heróis travestidos que funcionam como perfis psicológi-cos-tipo. São analogias dos cromos dos “comics”, mas constantemente ques-tionadas. Como o Comediante, “o herói da América, mas também o segredinho sujo da América”, como diz o seu intérprete no filme, Jeffrey Dean Morgan. É uma imagem distor-cida dos arquétipos da BD, que consu-mimos sem a alegria de quem vê o Super-Homem voar.

Gajos lixadosTudo se passa em torno de uma

segunda geração de “caped crusa-ders” e numa realidade alternativa. Estamos em 1985, Richard Nixon é Presidente pelo quinto mandato con-secutivo e o relógio do “doomsday” aquece inexoravelmente a Guerra Fria. Times Square ainda é pútrida, as Torres Gémeas ainda lá estão mas o holocausto nuclear parece inevitável com governos irredutíveis a gerir a crise com políticas do medo.

Neste cenário, os heróis “respon-dem à questão: ‘E se houvesse vigi-lantes?’; ‘Quem são estes tipos que põem as máscaras?’ E descobrimos que não vivem na casa das tias e que não bebem copinhos de leite. São gajos lixados e retorcidos para além do normal”, comenta Jeffrey Dean Morgan, que esteve em Londres com o elenco do filme de Zack Snyder a dar entrevistas à imprensa.

“Watchmen” integra o filão encon-trado há 30 anos em Hollywood e justificado pelo “box-office”: “Watch-men” é o 83º filme, desde 1978, que nasce de uma adaptação de BD. Desse filão, cerca de 50 títulos são filmes

de super-heróis, respectivas sequelas ou semelhantes. E desses, cerca de 30 foram feitos nos últimos dez anos por Hollywood. O mais rentável de sempre é “O Cavaleiro das Trevas”, com o mítico milhar de milhões de dólares de receitas de bilheteira. Zack e Debbie Snyder, realizador e produ-tor, respectivamente, não se esque-cem do que Christopher Nolan des-bravou. “O Cavaleiro das Trevas”, com o seu sucesso e temática obs-cura, deu boleia a “Watchmen”. Sny-der acha que os “man movies” (“Superman”, “X-men”, “Spider-man”) deram ao espectadores os códigos básicos do super-género, para que possam identificar o que “O Cavaleiro” tinha de diferente e per-ceber a ironia de “Watchmen”.

“Os públicos abriram-se muito nos últimos anos”, acrescenta Patrick Wil-son (“Pecados Íntimos”), que no filme interpreta Nite Owl II. “As sensi-bilidades das pessoas estão a mudar, por causa de ‘O Cavaleiro das Trevas’ ou ‘Homem de Ferro’”.

A transcendência do nichoÉ que algo aconteceu. A cultura da BD, que era um nicho no final do século XX, transcendeu-se. “Watch-men” começou como uma edição limitada de doze livros da DC Comics, depois compilada na novela gráfica homónima. No mesmo ano, em 1986, a DC lançava “The Dark Knight Returns” de Frank Miller e pouco depois viria “Killing Joke”, novamente de Alan Moore, ambos versando sobre Batman e Joker, ambos mais filosófi-cos do que Capitão América, Super-Homem, Homem-Aranha. Todos tinham uma coisa em comum: “a noção progressista de que seria fan-tástico se as pessoas se envolvessem com ‘comics’ que as tornassem mais adultas, mais crescidas, mostrando o tipo de temas com que eram capazes de lidar”, disse Moore há dias, em entrevista à “Wired”, sem mencionar

uma única vez o filme de Snyder. (Moore está divorciado de

Hollywood, acha o cinema um meio “demasiado imersivo” e está furioso

O bom, o mau

É uma imagem distorcida dos arquétipos da BD, que consumimos sem a alegria de quem vê o Super-Homem voar

Rorschach não distingue cinzentos na moral, só preto e branco

Nite Owl II, o impotente bem intencionado

“Watchmen”, versão cinematográfi ca da novela gráfi ca de Alan Moore e Dave Gibbons, e projecto a 20 anos, é a confi r mação do momento de transcendência do género no cinema. J

Dr. Manhattan, um super-homem distante da sua humanidade

Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009 • 13

com o mercantilismo que leva à transformação de um livro num filme. O seu nome não aparece no genérico do filme, mas Dave Gibbons desenhou as últi-mas cenas, alteradas em relação ao livro, e fez os cartazes).

Quando chegou à DC Comics, Moore pensava que estava a escrever para adolescentes. Mas, “o público médio dos ‘comics’ hoje, e isto passa-se desde os anos 1980, está prova-velmente nos 30 e muitos e vai até aos 50 anos e pouco”. Não é uma brincadeira de crianças, tal como “Watchmen - Os Guardiões” não é um filme de crianças. (Está classificado para maiores de 17 anos nos EUA, para maiores de 18 no Reino Unido e para maiores de 16 em Portugal).

“Watchmen” entrou na lista da “Time” dos cem melhores romances do século XX, facto sempre invocado para validar a transcendência do género no meio literário, dando-lhe crédito (intelectual?) adulto. “Com o advento de livros como ‘Watchmen’, penso que estas pessoas [os leitores adultos] foram ‘autorizadas’ pelo termo novela gráfica”, que soa a algo muito mais “sofisticado”, deslinda Alan Moore.

Um segundo momento da trans-cendência do género chega quando o cinema se apropria dele e o torna acontecimento de fácil absorção pela cultura pop. Agora, no cinema “esta-mos no mesmo lugar em que os ‘comics’ estavam quando a novela gráfica [“Watchmen”] saiu”, nota Debbie Snyder. Este outro cinema de BD, que foi buscar os autores de culto e de títulos menos massificados, com as suas coreografias e violência ritu-alizadas à la Quentin Tarantino, e com temáticas arriscadas ou cenas explícitas, está num percurso para-

lelo ao da comédia americana dos últimos anos, especialmente a que tem a marca de Judd Apa-

tow (“Superbad”, Virgem aos 40 Anos”). Leia-se: ir mais longe, à esca-tologia e ao politicamente incorrecto, à brutalidade e à insanidade do que o cinema “mainstream” e mesmo do que algum cinema “indie” vão.

O fi lme impossível“Watchmen” glorifica as convenções do género - elas estão lá, mesmo que seja para jogar com elas. O próprio acto de vestir um fato, que “às vezes [nos faz sentir] incrivelmente pode-rosos e fortes”, como descreve Patrick Wilson, convida ao meta-olhar. Os “Watchmen” pensam no significado da sua máscara e por isso Wilson sem-pre olhou para ela “através dos olhos do Dan [Dreiberg, o alter-ego do herói Nite Owl]”. Vemos os heróis envelhe-cer, sabemos das suas fraquezas, sabemos que o super-homem ameri-cano, Dr. Manhattan (o único com verdadeiros super-poderes), está cada vez mais longe do seu lado humano. Por tudo isso, este guião foi mais apelativo para os actores.

Pensemos em Jackie Earl Haley, nomeado para o Óscar pelo seu pedó-filo acossado em “Pecados Íntimos”, e que confessa que o seu Rorschach, o mascarado que narra o filme, “é a personagem mais inquietante” que interpretou. Billy Crudup (Dr. Manhat-tan): este tipo de filmes “normalmente não subvertem as minhas expectativas, não são muito interessantes para mim. As personagens não estão delineadas de forma elaborada e a viagem psico-lógica não é grande coisa”. Mas com “Watchmen”, “passada uma página e meia, soube que estava a fazer uma coisa completamente diferente”.

Os temas de “Watchmen” vão da

futilidade do heroísmo à corrupção dos heróis face ao males do mundo que não dominam. Esta novela gráfica significou o “coming of age” de toda uma geração, com fãs famosos como Kevin Smith (“Clerks”) ou Damon Lin-delof (um dos co-criadores de “Perdi-dos”, que diz que os “flashbacks” da sua série vêm da leitura adolescente de “Watchmen”) e milhares de “fan-boys” de dedo rápido no gatilho - e que serão os primeiros a coroar ou a condenar, na Internet, a versão de Zack Snyder sobre uma dos mais espe-radas adaptações de sempre.

Durante anos, esta foi uma obra tida como impossível de filmar. Terry Gilliam achou isso mesmo nos 80s, Darren Aronofsky trocou-o por outro filme, Paul Greengrass queria actua-lizá-lo para os tempos Bush da guerra ao terrorismo e Joel Silver queria Arnold Schwarzenegger como Dr. Manhattan. Depois houve o conflito legal que opôs a Warner e a Para-mount em 2008.

Mas a dificuldade era sobretudo a sua amplitude. “O livro é uma história de 60 horas, e o nível de complexidade e sofisticação, nesta forma aparente-mente pagã, é o mais interessante nele. O que é que se retira disso? Como é que se destila isso? Como é que se transforma um romance num poema?”, pergunta Billy Crudup. Matt Selman, argumentista de “Os Simp-sons” e reverente fã de “Watchmen”, já viu o filme e devolve a pergunta: “Já houve alguma adaptação de um ‘comic’ (ou de um livro-livro) tão pró-xima do seu material base?”

Ao menos no caso de “Watchmen”, uma coisa parece certa: não há espaço nem vontade para outro cliché do género, a sequela.

Ver crítica de filmes págs. 35 e segs.

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u e o fi lãoo amaldiçoado durante mais de a. Joana Amaral Cardoso

The Comedian é um Mr. América mercenário

Silk Spectre II, empurrada pela mãe para o heroísmo

14 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

Depois do dilúvio, trabalhar para a

Foi assolada por dúvidas e esteve quase a deixar a música para se dedicar a ser mãe. Mas cinco anos depois do seu último disco

de originais, Cristina Branco regressa com “Kronos”. Agora o que lhe interessa é trabalhar para a canção. João Bonifácio

canção

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Cristina Branco está sentada num dos sofás da mezzanine da entrada do Hotel Lisboa e tem a criança nos bra-ços. Entenda-se: “criança” não fun-ciona aqui como metáfora do seu novo disco, “Kronos”, o primeiro desde a sua obra-maior, “Ulisses”, de 2005, é mesmo a sua filha Margarida. Desde então não houve originais: ela homenageou Amália e Zeca Afonso e pôs nas lojas dois discos ao vivo (“Live”, 2006 e “Abril”, 2007). Para a maior parte das pessoas, estes anos sem disco de originais foram sinal de interregno. Para ela não.

“Vocês chamam a isto paragem, mas eu não parei. Entretanto fiz mais dois discos. Tive foi de parar de fazer disco de originais, sim: o Custódio saiu e não fazia sentido fazer originais sem maturar definitivamente no que queria fazer.”

Custódio é Custódio Castelo, o gui-tarrista que compôs e arranjou os temas dos seus discos anteriores. Ele estava com ela desde o início, quando Cristina era uma desconhecida e

começou a ter sucesso na Holanda. Era igualmente o companheiro da senhora Branco e pai do primeiro filho da cantora, que tem agora cinco anos. Margarida, a criança, tem dois meses e porta-se lindamente nos bra-ços da mãe, silenciosa e sem birras. A presença dela faz com que a con-versa evolua para registos mais ínti-mos e a mãe dê por si a contar as nuances da separação (amorosa e profissional) de Castelo e as dúvidas que a assolaram no fim da relação.

A dada altura, Cristina chegará mesmo a confessar: “Cheguei a pen-sar em desistir. Em dedicar-me a ser mãe.”

Depois reage às suas próprias con-fissões com humor, dizendo: “Isto parece conversa da Crónica Femi-nina.”

Parece, mas não, não é conversa da Crónica Feminina e “Kronos” não foi esquecido. É, de certa forma, o disco do vai-ou-racha, mas também o disco que confirma que isto, isto de cantar, é o que ela gosta e quer fazer.

“Kronos” é, talvez, o disco mais heterogéneo que Cristina alguma vez. A razão para a heterogeneidade é simples: desta feita as canções têm os mais variados compositores, que vão de Sérgio Godinho a Rui Veloso, passando pelos manos Janita Salomé e Vitorino, por Amélia Muge e José Mário Branco, entre outros. Ela tinha receio de não conseguir encontrar um som comum às canções, ou de destruir o som que havia construído com Castelo e, de facto, é difícil fugir às marcas autorais destes composi-tores.

Mas o som foi encontrado no encontro caloroso entre piano, gui-tarra portuguesa e voz. E “Kronos”, contra as piores previsões, encontra uma cantora (chamem-lhe fadista ou não, pouco importa) no melhor da sua voz.

Descobrir Amália tardeSempre ocupada a embalar a filha, Cristina Branco encara de frente a pergunta que lhe fizemos: “Houve

algum momento neste período em que pensasse que não sabia o que fazer a seguir?”. Ela é de uma hones-tidade a toda a prova. “Houve, houve mesmo. Porque eu vivo neste amor-ódio com o que faço. Pensei: ‘É desta, gosto muito disto, mas vou é ser mãe.’ Não foi por medo, foi porque me desencantei.”

Ela faz uma paragem no discurso para depois regressar à ideia e expli-car melhor: “Como o que faço era uma coisa tão dependente daquela sonoridade que tinha criado com o Custódio, pensei ficar por ali.” Depois coloca os acontecimentos em termos muito simples: “Houve um luto, um luto que durou à volta de um ano. Tive a grande felicidade de ter músi-cos fantásticos que atravessaram o deserto comigo.”

Durante cinco anos, Cristina, que até então editara discos de originais a um ritmo impressionante, não pôs a voz em nenhuma canção nova. Entregou-se a duas aventuras inespe-radas nela, a de cantar Amália e a de

recriar Zeca Afonso com um combo composto por músicos de jazz.

Ouvi-la a cantar Amália foi estra-nho, porque ela era talvez a única nova fadista cuja voz em nada devia à diva, a única a quem nunca tínha-mos ouvido um arroubo Amaliano. “A Amália só entrou na minha vida aos 18 anos, e a paixão só surgiu aos 20, com um disco que o meu avô me ofereceu, o ‘Rara e Inédita’. Foi aí que percebi que ela era mais que uma cantora de fado, ou do fado tal como eu o conhecia, sempre pesado e trá-gico. Nesse disco ela cantava alguns standards em inglês e castelhano”, conta, antes de confessar: “Acho que tê-la descoberto tão tarde jogou a meu favor.”

Isto quer dizer apenas que tê-la conhecido fez com que Cristina man-tivesse a sua personalidade: “ Apai-xonei-me por ela, mas nunca me senti tentada a imitá-la.” Cristina especifica depois o grau da paixão: “Apaixonei-me pela forma como ela canta, não pela voz sublime. Há vozes minúscu-

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Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009 • 15

ORQUESTRA NACIONAL DO PORTOTakuo Yuasa direcção musical Liza Ferschtman violino

Bedrich Smetana Abertura de A Noiva VendidaP.I. Tchaikovski Concerto para violino e orquestraBohuslav Martinu Sinfonia nº 4

SEX 20 MAR21:00 SALA SUGGIA

MECENAS DA CASA DA MÚSICAAPOIO INSTITUCIONALMECENAS ORQUESTRA NACIONAL DO PORTO

Num apelativo programa dominado pelos checos Smetana e Martinu, a ONP acompanha Liza Ferschtman no seu regresso à Casa da Música. Em 2009 celebra-se o cinquentenário da morte de Martinu, um dos mais importantes nomes da cultura checa do século XX, cuja 4ª Sinfonia é uma obra de rara luminosidade.

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220Concerto Tchaikovski

Palestra pré-concerto por Fátima Pombo CYBERMUSICA 20:15

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A grande cumplicidade artística entre os membros do Opus Ensemble e os seus eclécticos programas fazem deste singular quarteto uma das formações mais originais e importantes da música em Portugal. Na sua estreia na Casa da Música, percorrem um vasto repertório desde o Barroco à actualidade.

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las espantosas, como a da Billie Holi-day. Há muita vida por trás dessas cantoras. A vida faz muito pelo can-tar. Eu acredito muito nisto.”

Cantar Amália e Zeca “não foi um teste” às capacidades vocais de Cris-tina, foi “um compasso de espera”, até que chegasse “Kronos”. Porque até pouco antes dessas aventuras ainda não sabia se continuava ou não a cantar. Porque a última memória de fazer discos e digressões de origi-nais não era a mais agradável.

“Eu e o Custódio ainda fizemos a digressão do ‘Ulisses’ divorciados”, recorda. “Foi muito difícil. Foi horrí-vel. O nosso diálogo em cima do palco até então era intimista e a aura que-brou-se. E isso sentiu-se. Nós senti-mos, o público sentiu. Foi difícil para os músicos, também.”

Cristina assinala que até hoje nunca falou sobre isto porque “há um momento em que estamos a maturar nas coisas e nessa altura é melhor não falar”. E este foi o momento mais difí-cil da sua vida. “De repente achei que não estava a dar o que tinha de dar ao meu filho. E toda a relação pessoal com o Custódio estava encriptada pelo lado musical. A nossa vida íntima, as nossas conversas, eram sobre música, o palco. Quando esse encantamento desapareceu, o resto desmoronou-se.”

É aqui que Cristina põe um limite, dizendo que a conversa já está a pare-cer a Crónica Feminina. As recorda-ções, que ainda parecem sofridas, acabam: era tempo de falar de “Kro-nos”. Com a pequena Margarida em embalos. “O meu trabalho é o de per-ceber o que quero fazer e com quem. E depois perceber como vou inter-pretar, como é que canto nesta can-ção.”

O “com quem” pode significar duas coisas: por um lado, os músicos, por outro, os compositores. Os músicos e produtor (Ricardo Dias) que acom-panham Cristina já vêm de trás, dos tempos em que Custódio era o seu compositor. Eles são, não se cansa de repetir, o seu apoio fundamental - e por variadíssimas vezes ela elogia o trabalho de Dias. Mas neste caso, o “com quem” refere-se aos composi-tores: ela quis fazer um disco cujo conceito unificador fosse o tempo e atribuir a composição a uma série de autores que aprecia. A ideia de usar “o tempo” como conceito surgiu na sequência da turbulência pessoal e musical. “Fascina-me a ideia de tempo: como é que o vestimos, como é que ele nos assenta?”

Entre o fado e outra coisa Foi isso que pediu especificamente aos compositores: um fado sobre o

tempo. “Alguns ligaram-me a dizer ‘Não é um fado, porque não é isso que eu vejo na tua música.’ Isso fez-me sorrir, porque percebi que estou mesmo entre uma coisa e outra, entre o fado e outra coisa qualquer. E é isso que eu gosto de fazer: gosto de trazer os autores para o meu universo. Sou permeável.” Diz isto e depois ri-se.

A parte mais difícil da tarefa foi contactar os compositores, por uma simples razão: ela é tímida. Sabe que já tem estatuto que lhe permita tele-fonar-lhes a dizer “quero isto”, mas mesmo assim tem dificuldade em pôr-se em bicos de pés quando os contacta.

“Tenho dez discos na rua, as pes-soas já me podem conhecer e ajuizar o que faço. Mas mesmo assim quando lhes telefono, a primeira coisa que digo é: ‘Olá, o meu nome é Cristina Branco, não sei se sabe quem eu sou.’ Dez anos depois de começar já faz sentido que aborde estes composito-res pessoalmente, até porque sempre sonhei que escrevessem para mim, mas antes não sentia que tivesse corpo para dar às balas. Ter a ousadia de pedir a alguém que fizesse uma canção para mim, demorei algum tempo até atingir isso.”

A lista de gente que acompanha Branco neste disco tem nomes ines-perados, como Carlos Bica: excelente compositor, mas difícil de imaginar neste universo, foi ele próprio que pediu para escrever uma canção. Jorge Palma, que “era para escrever uma canção, mas estava a preparar a sua ida ao Coliseu”, acabou por gra-var um dueto - opção que “não é nor-mal, nem no fado, nem em mim”, mas a que recorreu por querer traba-lhar com Palma. De fora ficou Fausto. “Ele está fechado a compor e não conseguiu arranjar tempo para com-por. Mas foi muito doce: telefonou imensas vezes a pedir desculpa, mesmo quando eu já estava no estú-dio.” Aquele cuja reacção Cristina mais temia era Zé Mário Branco, mas Zé Mário “foi fabuloso, disse logo que sim e foi sempre muito querido”.

Quem não aparece nesta lista é Chico Buarque (sonho antigo da can-tora), e não aparece por culpa de Cristina. Uma amiga comum passou-lhe o telefone dele, e ela sentiu-se tentada a pedir-lhe uma canção. “E liguei mesmo”, confessa. O resto da história ela conta a rir: “Ouvi uma voz masculina do outro lado, desliguei e atirei fora o número. Tremeram-me as pernas e as mãos.” E a colaboração acabou por nunca acontecer.

As versões finais das canções, diz Cristina, “ficaram completamente diferentes” dos originais. “Teriam de ficar sempre, porque este é o meu som”, ou, por outra, este é o som que ela criou com Custódio Castelo e do qual não quis abdicar. Ela não con-corda por completo com esta ideia: “Aquele som é o som de nós todos. O que era pessoal era a forma como o Custódio compunha”, especifica. “O Ricardo Dias já tinha sido o produtor do ‘Ulysses’ e teve o cuidado de adap-tar tudo ao som que vinha de trás.” Ao contrário dos discos anteriores, em que Custódio definia tudo, ela deu “liberdade total aos músicos”. O resultado, segundo Cristina, é um disco com “arranjos mais limpos, mais depurados: não há cacofonia, trabalhamos para a canção”.

Curiosamente, ela usa muito a pala-vra “canção” e usa menos a palavra “fado”. Esta é uma velha questão que, diz, já não lhe interessa: a de se faz ou não fado. “Eu estava tão distante do universo do fado que nunca ima-ginei que os meus discos não fossem de fado. Para mim eram discos de fado.”

E com este disco, o que vai acon-tecer? “Vão dizer que este não é um disco de fado, claro.”

Ver crítica de discos pág. 44 e 45

Uma amiga comum passou-lhe o telefone de Chico Buarque, e ela sentiu-se tentada a pedir-lhe uma canção. “E liguei mesmo”, confessa. O resto da história ela conta a rir: “Ouvi uma voz masculina do outro lado, desliguei e atirei fora o número. Tremeram-me as pernas e as mãos”

16 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

Comecemos pelo essencial: Marnie Stern é um OVNI na música da actuali-dade. Neste momento, a guitarrista, rainha do “tapping” e da pirotecnia de bom gosto, dona de uma voz que, pela estranheza, teimam em comparar a Yoko Ono, é um dos segredos mais mal guardados do underground nova-ior-quino, culpa de uma música, inclassifi-cável, onde vários mundos colidem: a procura de novas formas expressivas da vanguarda, os delírios eléctricos do rock’n’roll, o anseio pela universalidade própria da pop. Talvez por isso, tantos tão diferentes a elogiem: o sério “New York Times”, o site indie Pitchfork, a revista roqueira “Guitar World”.

Ignorada durante anos, habituou-se a tocar em clubes perante público que a olhava com uma expressão indife-rente, a enviar maquetas para as edi-toras que apreciava e a nada receber como resposta. Isto até que, em 2006, alguém decide abordá-la. Não alguém qualquer. Slim Moon, fundador da Kill Rock Stars, editora dos Deerhoof ou das Erase Errata, duas bandas idolatra-das por Marnie Stern. E que acontece nesse encontro? Segundo contou a pró-pria em entrevista à Pitchfork, Slim disse-lhe que não a podia assinar. Que não fazia sentido, que ela tocava a solo, que tinha trinta anos. E a adorável Stern, que via ali esfumar-se a sua opor-tunidade, que responde? Simples. “Está bem, mas podemos falar sobre música? Não tenho amigos com quem falar sobre música. Vamos falar dos Deerhoof”. Não sabemos o que levou a mudar de opinião mas, uma semana depois, Slim Moon telefonou-lhe e, em Fevereiro de 2007, foi editado “In Advance Of The Broken Arm”, o seu primeiro álbum.

Calem-me essa Sheril Crow! Marnie Stern tem algo de único. Pode ser isto de, aparentemente, não saber peva sobre como jogar o jogo da “cool-ness” pop - e não querer saber como o jogar. Pode ser da forma como canta golfinhos e sonhos infantis sobre música tão frenética quanto exigente. Pode ser esse pormenor de dar às can-ções títulos como “Plato’s fucked up cave” ou de ter baptizado o seu álbum mais recente de, preparem-se, “This Is It And I Am It And You Are It And So Is That And He Is It And She Is It And It Is It And That Is That” - retirado de um ensaio do poeta e orientalista bri-tânico Alan Watts.

Pode ser aquilo tudo, e é aquilo tudo mais a fita, muito estrela de hard-rock dos 80s, com que por vezes se apre-senta em palco. Marnie Stern, tal como a sua música, está à margem - e, de certa forma, à margem das margens.

Quando o Ípsilon telefonou para o número indicado para a entrevista, ouviu do outro lado da linha uma voz que se dizia Marnie Stern. Feita a apre-sentação do jornalista, percebemos que não era. “Marnie!”, ouvimos gritar repetidamente. O som de passos des-cendo uma escada, uma troca de pala-vras que não compreendemos e então sim, Marnie. A primeira voz era da mãe, com quem vive há dois meses na Florida - está a ajudá-la na convales-cença de uma perna fracturada. Con-siderando o contexto, um início ideal para a entrevista.

No ensolarado estado americano, cuidando da mãe, diz-nos que tudo se mantém como em Nova Iorque. “Não entro em estúdio para, durante dois meses, gravar um disco. Componho todos os dias, entrando e saindo de diversos formatos e estilos que me inte-ressem”. Marnie vive em Nova Iorque com uma pintora, Bela Foster, respon-sável pelas capas dos seus álbuns, que refere como uma das suas grandes influências. Talvez isso explique que, entre risos, nos descreva o seu estado de espírito criativo como “o meu perí-odo azul pop”.

Mas recuemos no tempo. Conhe-cendo-lhe o percurso, descobrimos o método.

Estudante de jornalismo, passou o período na faculdade “interessada em festas e sair à noite” - “mas como sou muito compulsiva, esgotei esse impulso.” A música atravessou-se como um chamamento. Um dia decidiu que iria pegar na guitarra e aprender a com-por canções: “Precisava de algo em que me pudesse concentrar. Aprender tar-diamente e do nada a fazer algo, tal como fiz, pode ser muito frustrante, a não ser que seja divertido. Se for diver-tido, consigo insistir”. E insistiu.

Começou por distinguir que havia pelo menos duas guitarras no “Free bird” dos Lynyrd Skynyrd, andou a compor canções à guitarra acústica e a ouvir a colega de quarto implorar “calem-me essa Sheril Crow!” Desco-briu as Sleater Kinney, e depois os Deerhoof, os Lightning Bolt, as Erase Errata ou os X-Models. Nessa altura, era certo que já ninguém lhe chamava Sheril Crow, mas também ninguém parecia interessado em ouvi-la - era demasiado estranha e eram demasiado difíceis de categorizar os concertos que dava, onde um gravador de mp3 ou um i-Pod debitavam o acompanha-mento sonoro para a sua voz e guitarra. Recordando esse período, diz-nos que tinha como certo que “nada iria acon-tecer nunca, que continuaria a compor

e a gravar em casa incessantemente e a tocar para um par de pessoas sem expressão”. Repare-se que não lhe aborrecia a falta de reconhecimento, apenas o sentir que estavam a aparecer uma série de bandas que adorava - e ela, diz-nos com uma candura que a esganiçada voz de criança acentua, queria “fazer parte disso”.

Eis então que tudo começou a con-jugar-se. Zach Hill, talentosíssimo bate-rista dos noise-rockers Hella, ouviu-a e ofereceu-se para colaborar. Depois desse encontro, depois dos concertos começarem a atrair mais gente e das caras sem expressão de outrora come-çarem a abordá-la para se apresenta-

rem - “era uma sensação boa e uma sensação terrível”, mas ela, assegura-nos com a tal candura desarmante, nunca foi “má” para ninguém -, chegou o providencial encontro com o funda-dor da Kill Rock Stars.

Olhando para trás, Marnie agradece o tempo demorado até gravar o seu primeiro álbum. “Nos meus vintes, queria soar a outros músicos ou pro-jectar uma imagem e isso, normal-mente, acaba por resultar em música muito aborrecida”. A longa espera pelo reconhecimento permitiu alcançar a “competência” para, descreve, se pôr a si própria em canção.

Apenas uma coisa não mudou. Per-feccionista, diz não ter composto uma única canção de que se orgulhe: “Exis-tem centenas que acho perfeitas, como algumas dos Talking Heads ou Thin Lizzy, mas são músicas rock clássicas e não é isso que procuro”. O que é? “Não sei”, responde. Aacrescenta: “Mas sei que está por aí algures”.

Tocando sete horas por dia enquanto trata da mãe convalescente na Florida ou enquanto a amiga Bela pinta em Nova Iorque, parece inevitável que o irá descobrir. Que continue a tentar, é tudo o que desejamos.

Ver crítica de discos págs. 44 e segs.

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Esta mulher é um

OVNI e é fascinante vê-la passar

Marnie Stern é um dos segredos mais mal guardados do underground nova-iorquino. É única, inebriante

e inclassifi cável. Mário Lopes

“Existem centenas [de canções] perfeitas, os Talking Heads ou dis Thin Lizzy, mas é rock clássico e não é isso que procuro”

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Um encontro de figuras notáveis da música brasileira. João Donato, um dos compositores e pianistas mais originais da música popular brasileira desde há 50 anos, convida para este concerto dois cantores célebres do Brasil: Joyce e Emílio Santiago. É acompanhado por um trio de onde sobressai Ricardo Silveira, guitarrista fundamental na internacionalização da música instrumental brasileira.

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18 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

Tony Bellotto veio a Portugal assistir à exibição do filme “Bellini e o Demô-nio” (baseado no seu romance homó-nimo, que tem esse título na edição brasileira, pois por cá tem o título “Um Caso com o Demónio”), a convite da organização do Fantasporto. Dias depois apresentou o romance, agora lançado pela Quetzal, numa livraria de Lisboa. A sala encheu-se de público e de alguns amigos músicos e amigos escritores. Aceitou falar com o Ípsilon na varanda de um hotel no Chiado.

Não tem ares de estrela pop, nem faz pose. Disponível, simpático e afá-vel, foi falando dos seus livros, da sua vida, do Brasil. Acha que a literatura policial tradicional não consegue expressar toda a violência social e a brutalidade que se vive no Brasil. No final, disse que Lisboa é uma cidade melancólica, que sentiu isso logo na primeira vez que cá esteve, em 1968.Quando escreveu o primeiro

livro da trilogia já tinha criado a personagem do detective Bellini ou ela foi crescendo com a escrita?O Bellini nasceu bem antes de eu escrever o primeiro livro, “Bellini e a Esfinge”, em 1994. Desde a adoles-cência que eu tinha o desejo de me tornar um escritor, desejo que nasceu junto com o de ser guitarrista. A música veio antes da escrita, eu já tocava na banda, nos Titãs, quando comecei a escrever. Mas eram textos dispersos, projectos para fazer con-tos, ainda muito influenciados pelo Hemingway, que tem aquela perso-nagem, o Nick Adams, um alter-ego de quando ele era adolescente, e aí, inspirado por essa ideia, eu criei o Remo Bellini, que não era ainda um detective, lembrando a minha ado-lescência numa cidade pequena no interior do estado de São Paulo.

Mas esses primeiros escritos nunca chegaram a dar em nada. Quando

decidi escrever a sério, e fazer um romance policial, no momento de criar o meu detective, imediatamente usei o Bellini, que era uma personagem que já existia na minha cabeça havia muito tempo. Agora é claro que ele depois se foi também criando, ou se aperfeiço-ando, ao longo da escrita do primeiro livro. Um livro de estreia é um livro demorado, que você escreve, rees-creve, demora para mostrar para alguém, fica cheio de dúvidas... E a personagem também chegou à matu-ridade dessa forma.Falou em Hemingway. Mas neste livro tem uma frase em que diz que foi o Dashiell Hammett quem criou a “prosa seca”. Foi influenciado por ele?[risos] Eu admiro o Hammett, li muito sobre ele, inclusive sobre toda essa controvérsia de quem criou a “prosa seca”. Mas relendo depois o Bellini, percebi que ele é muito mais um herdeiro do detective

Liv

ros

Tony Bellotto,

o roqueiro que se inspirou em

HemingwayO mediático guitarrista e líder da banda rock brasileira

“Titãs”, casado com a actriz Malu Mäder, pai de três fi lhos, criou uma personagem para perceber como

poderia ter sido a sua vida se as coisas não lhe tivessem corrido bem. Acaba de sair o segundo livro da trilogia

do detective Bellini, “Um Caso com o Demónio”. José Riço Direitinho

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Belloto, conta, criou a personagem de Remo Bellini inspirando-se em Nick Adams, o alter-ego de Hemingway...

“Os concertos são ao fim de semana,nos outros dias eu escrevo”

Animação SuíçaCompetição Longas

e curtas de EstudantesAnte-estreias

de filmes portuguesesExposições

MONSTRINHATransversalidades | Cabaret Voltaire

Formação

festival de animação de LISBOA animated film festival

09–15 Mar

Cinema São JorgeMuseu do OrienteMuseu da Marioneta

Museu de EtnologiaTeatro MeridionalEscola Sec. D. Diniz

MUSEU DA MARIONETA

ORGANIZAÇÃO

CO-PRODUÇÃO

APOIOMEDIA PARTNER

PARCERIA ESTRATÉGICA

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monstra

Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009 • 19

Philip Marlowe, do [Raymond] Chan-dler, do que propriamente das per-sonagens do Hammett...Porque o Marlowe é mais “humano” do que o Sam Spade...É isso, o Marlowe não é perfeito, tem defeitos como nós e mostra os senti-mentos... Eu acho o Philip Marlowe o grande detective da literatura de todos os tempos. Porém, a estrutura narra-tiva dos romances do Hammett, muito formal, eu acho bastante fantástica. E em termos de “prosa seca”, acho que ele por vezes chega mesmo a superar o Hemingway. Eu fui influenciado por toda essa linhagem dos escritores poli-ciais americanos, da “Pulp Fiction” até aos mais modernos como o Dennis Leahne... gosto também muito do Simenon. E no Brasil, claro, o Ruben Fonseca, que é o iniciador de uma lite-ratura mais urbana, com influência da literatura americana. Ele é para nós uma referência muito importante.

O Bellini não é o estereótipo do detective dos anos 40 de Hollywood, não é sisudo, não é machista, não tem os tiques imortalizados pelo Bogart... Quis criar um “anti-detective”?Eu acho que sim. Eu sigo muito a estrutura tradicional das tramas do romance policial clássico: o cadáver aparece na primeira página, o culpado quase na última. Mas isso foi uma coisa que só notei depois de os ter escrito ... não foi uma coisa pensada... isso é também o que me interessa nos livros, estas descobertas. Porém, a personalidade do Bellini é que difere do clássico, é que traz a originalidade para os meus livros. Talvez até pelo facto de ele não ter sido criado como uma personagem já feita “detective” ... ele é cheio de inseguranças, de dúvidas, de questionamentos, de impotências... Como você falou, ele não é machista, pelo contrário - e esses grandes detectives da literatura norte-

americana são mais do que machistas, são quase misóginos, a mulher é quase a personificação do mal... Isso eu não quis para o Bellini...Por isso o chefe do Bellini é uma mulher ...É, ele é subalterno de uma mulher, Dora Lobo, ele tem essa característica que contradiz um pouco o tradicio-nal... ele seria o “anti-detective” como você disse, até porque ele é bastante falível, e não há nada de brilhante nele como detective, a gente se afeiçoa à personagem mais pelas reflexões, pelas tiradas dele... pelo humor, pela franqueza e pela fraqueza...O que é que o Bellini tem do Bellotto?Acho que ele tem muita coisa. Tem um pouco da minha visão da vida. Eu cos-tumo dizer que levei às últimas conse-quências algumas coisas que são ape-nas sugeridas na minha personalidade. Um lado obscuro, uma sombra de fra-casso que todos carregamos... no Bellini eu exercitei isso ao extremo. Eu tenho uma carreira bem sucedida como guitarrista, tenho um casamento tradicional, com filhos... E no Bellini eu realizei tudo aquilo que podia não ter dado certo na minha vida. Um homem que não se consegue relacio-nar com as mulheres, é um solitário, um pouco fracassado, frustrado na tentativa de ter sido um advogado. Mas a visão que ele tem do mundo é muito parecida com a minha.Escreveu outros livros sem o detective Bellini ...Logo que comecei, escrevi os dois pri-meiros da série Bellini. Depois senti uma necessidade, uma vontade mesmo, de me expressar de outras formas e de não ficar preso a uma só personagem. Escrevi então “BR 163”, que apesar de não ter essa estrutura tão tradicional do romance policial ... são histórias onde existe um crime, mas não existe a figura do detective ou de alguém que vai desvendar o crime, nada disso. Depois escrevi outro Bellini, e o último que publiquei no Brasil foi “Os Insones”, que fala dessa violência no Rio de Janeiro actual, e que não tem o Bellini por uma necessidade de não ficar preso só a esse formato. Não quis ser o escri-tor de uma só personagem. O Brasil é um país tão pródigo em crimes, em violência social, que essa literatura policial tradicional não consegue expressar toda a violência e brutali-dade da realidade do Brasil. Então nesses dois livros eu procurei uma literatura talvez um pouco mais rea-lista... mais perto das ruas, das estra-das interiores do Brasil...Escreve as letras das canções dos “Titãs”? Como é que a sua escrita vive com a música?Não sou o único letrista da banda, todos nós compomos. O Sérgio Brito compõe até mais do que eu. É claro que a escrita e a música são universos diferentes, mas têm pontos em comum. De certa forma a música está sempre presente no que eu escrevo, desde o gosto musical do Bellini... os “blues”... até à importância do ritmo na narrativa, que é uma coisa que eu sinto bastante.Escreve apenas quando

não anda em tournée ou os concertos não lhe interrompem a escrita?Eu alterno. Nos períodos em que esta-mos a compor, em que estamos a pre-parar e a gravar um disco, eu não escrevo. Não há espaço para tanto. Mas depois de o disco ter sido lançado, e nós estamos só fazendo concertos, aí eu consigo escrever. Os concertos são ao fim de semana, nos outros dias eu escrevo. Alterno a criação da música com a criação literária.Sabe logo no início quem é o criminoso ou só vai descobrindo à medida que vai escrevendo?Há uma linha mestra, o esqueleto da história: quem morreu e quem matou. Isso eu penso logo. Agora a maneira como a história se vai desenrolar, isso eu deixo para acontecer... Porque esse é um dos grandes prazeres da escrita. De outra maneira seria só passar para o papel o que já está pronto na cabeça. O prazer é ir fazendo. Descobrir que às vezes precisamos de mais uma per-sonagem para justificar qualquer coisa... a história vai acontecendo. Há uma espécie de magia na escrita... de um processo menos objectivo do acto de escrever. Mas isso depende do escritor, conheço alguns que come-çam sem saber o que vão escrever, onde é que aquilo vai dar. Eu preciso de uma linha que me mostre o cami-nho que vou ter que percorrer.Repito uma pergunta que é feita ao Bellini logo na primeira página do seu livro: “O que tanto te atrai nos crimes?”[risos] É essa possibilidade de imagi-nar situações-limite... a morte sem-pre como um elemento perturbador e presente na vida o tempo todo... Porque sempre que há um crime há uma ruptura, uma quebra da rotina, uma quebra do sentido que nós damos à vida... de repente há um crime, há uma quebra nesse equilí-brio. Esse é sempre o ponto onde se vai descobrir uma situação. Porque morreu? O que é que tinha esta per-sonagem? Vem aquela curiosidade natural e então chega o detective...

Ver crítica de livros págs. 30 e segs.

“Tenho uma carreirabem sucedida como guitarrista, um casamento tradicional, com filhos... E no Bellini realizei aquilo que podia não ter dado certo na minha vida. Um homem que não se relaciona com as mulheres, é solitário, um pouco fracassado”

... mas Bellini, continua o brasileiro, é mais um herdeiro do Marlowe de Raymond Chandler

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Liv

ros Daniel Galera lembra-se daquilo até

hoje. Ainda não tinha nove anos, estava a jogar Metroid, o videojogo, e não sabia o que o esperava. Estava a con-trolar “um pirata espacial”, que enver-gava uma armadura com capacete e entrava em planetas estranhos para matar alienígenas. Até que chegou ao final do jogo, fez a personagem tirar o capacete... “E apareceu um cabelinho loiro. Era uma mulher. Foi uma sur-presa narrativa grande”, conta Daniel Galera, 29 anos, sentado no sofá de um hotel, na sua primeira visita a Por-tugal. Participou no Correntes d’Escritas, encontro de escritores de expressão ibérica na Póvoa de Varzim, onde lançou o romance “Mãos de Cavalo” (ed. Caminho).

O jogo omitia o visual da personagem por dentro daquela armadura e quem jogava assumia naturalmente que era um homem. “Hoje todo o mundo sabe que Samus Aran é uma mulher. Mas no primeiro jogo da série, nos anos 80, foi uma coisa forte. Escrevi até um artigo sobre isso, dizendo que falam muito do final do ‘Grande Sertão Veredas’, de Guimarães Rosa, em que se revela que Diadorim na verdade era uma mulher, e eu falava que, para mim, Diadorim foi na verdade Samus Aran. Tive o mesmo choque que as pessoas que leram ‘Grande Sertão Veredas’ pela primeira vez sem saber o final.” É um exemplo que gosta de usar “para argumentar que videogames [videojogos] também são uma forma de narrativa que pode ter profundidade apesar de muitas pessoas não acreditarem nisso.”

O cinema e os quadradinhos“Mãos de Cavalo” é o terceiro livro deste escritor e tradutor que nasceu em São Paulo mas viveu toda a sua vida em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Os fil-mes e as histórias aos quadradinhos não são uma influência para a sua escrita. Mas aparecem em “Mãos de Cavalo” como referências das personagens.

Aliás quando Galera lê livros de auto-res da sua geração em que o cinema, os jogos de vídeo, as bicicletas, os brinque-dos não estão presentes acha esquisito. “Tudo isso, que é uma parte tão impor-tante da vida das pessoas da nossa gera-ção, parece que não está nos livros.” Por isso neste seu romance isso está integrado e com a importância que ele acha que todas estas coisas têm na vida das pessoas. “Parece que essas coisas não são literárias, que se escrevem his-tórias e se deixa de lado a influência que esse tipo de coisa tem no nosso quoti-diano. Então esse meu personagem [de “Mãos de Cavalo”] é fixado em filmes de acção dos anos 80, como quase toda a criança daquela idade era na época. Ele se lembra de cenas de filmes quando está imaginando coisas. A imaginação da nossa geração está formatada pelo cinema e pelos quadrinhos.”

Nos romances de autores contem-porâneos que se passam na actuali-dade, o telemóvel e a comunicação através do computador parecem não existir. “Isso é um problema sério”, diz Daniel que andou a pensar nisto com o seu colega João Paulo Cuenca. “Por-que se se escrever de maneira realista

“Sou de uma geração que cresceu ouvindo dos pais que as pessoas podem ser aquilo que elas querem. Mas quando a gente pode ser tudo, parece que tudo tem o mesmo valor e que não é

muito.” Programa para a obra do escritor brasileiro. Isabel Coutinho

Daniel Galera

“Mãos de Cavalo” é o terceiro livro deste escritor e tradutor que nasceu em São Paulo mas viveu toda a sua vida em Porto Alegre, Rio Grande do Sul

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Da geração que pode ser tudo o que quiser,

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país, os jornais falaram da nova editora e começaram a receber encomendas do Brasil inteiro. “Começou a fazer sucesso e os jornalistas de Rio Grande do Sul perguntavam: ‘Como é que vocês conseguiram romper a barreira que separa o nosso Estado, Rio Grande do Sul?’. E perguntávamos: ‘Que barreira?’. Simplesmente mandámos os livros. Não falámos nunca de literatura gaúcha, isso não existe, há literatura brasileira.”

Faziam os livros em casa. Inspiraram-se na experiênca de um outro escritor da mesma geração, Joca Reiners Ter-ron, que criara a editora Ciência do Acidente. Tudo era resolvido entre os computadores que tinham em casa e a gráfica. Mas a Livros do Mal acabou. Tiveram que decidir se iam ser editores ou escritores. “Nem tínhamos a editora registada, era um negócio alternativo. Começou a crescer, começaram a pedir muitos livros, o negócio da distribuição começou a ser um problema e chegou no momento em que tivemos que deci-dir se íamos virar editores. Não dava para fazer as duas coisas, editar livros e escrever.” Decidiram ser escritores e tradutores.

Reality showO protagonista de “Mãos de Cavalo” é retratado por Galera em três fases da sua vida: primeiro é um garoto de dez anos, depois um adolescente de quinze e por fim um cirurgião plástico ente-diado com o seu casamento. A acção passa-se em Porto Alegre, sul do Brasil, anos 90. O bairro da sua infância na zona sul de Porto Alegre serviu de ins-piração ao escritor. Demorou meses a escrever o livro mas andou a pensar nele durante anos. “Carregava um monte de histórias e de ideias há muito tempo na imaginação.”

Usou experiências da sua vida para criar as histórias, mas só raramente numa obra sua se encontra algo real-mente biográfico. “Não pretendo contar a minha vida ali, só estou usando aquilo como matéria-prima para criar ficção”, diz, e incomoda-o que os leitores, em caso de dúvida, assumam que aquilo que ele escreve é autobiográfico.

“Acho que isso é um problema grave do leitor contemporâneo. Se a ficção que está lendo não for legitimada por algum vínculo com a realidade, com a biografia do autor, ou com algo que aconteceu, parece que não tem tanto valor. O leitor é ávido, deseja uma ponte entre a ficção que está lendo e a realidade e quando não a encontra não fica satisfeito. Parece que a imaginação, a ficção pura, não tem mais o valor intrínseco que tinha antes. É como se a estética do ‘reality show’ tivesse tomado conta de tudo. Se a coisa não é baseada na verdade, ela não é tão interessante. No entanto, a ficção não é nem realidade nem imaginação, ela é uma terceira coisa.”

Pelas suas obras passam histórias de amor, discussões, cenas de sexo, quotidianas, e também um certo mal de uma geração com excesso de pos-sibilidades. Trata-se de “gente que fez todo o roteiro previsto durante a vida - colégio, escola, faculdade - , que se forma num curso qualquer” e no momento em que tem de entrar na vida adulta, “parece que tudo o que se fez até então vai por água abaixo”. É gente que não se sente realizada, nem tem vontade de seguir carreira. Como se tudo aquilo que tivesse feito fosse “um ensaio para nada”.

Explica melhor. “Sou de uma geração que cresceu ouvindo dos pais que as pessoas podem ser aquilo que elas que-rem. ‘Meu filho podes ser tudo o que tu quiser, basta tu querer, basta tu perse-guir’. Mas quando a gente pode ser tudo, parece que tudo tem o mesmo valor e que não é muito.” Isso nem sem-pre traz felicidade, afirma o escritor que pelo seu mais recente publicado no Bra-sil, “Cordilheira”, recebeu o Prémio Machado de Assis 2008.

Ver crítica de livros págs. 30 e segs.

os livros vão ser todos muito curtos. Boa parte dos conflitos e dos dramas iam desaparecer da literatura porque as pessoas hoje resolvem tudo por celular [telemóvel]. Cria-se uma histó-ria em que há desencontros, novidades e surpresas, e na verdade na vida moderna 70 por cento desses aconte-cimentos teriam sido resolvidos em 30 segundos com um telefonema do celu-lar. Às vezes, para escrever, é-se obri-gado a atirar isso fora.”

Do Cardosonline à Livros do MalDaniel Galera começou a escrever con-tos em 1997 quando tinha 18 anos. Publicava-os no Cardosonline, publica-ção electrónica enviada por e-mail para quem a pedia. “A ideia foi do próprio Cardoso, um amigo meu de Porto Ale-gre chamado André Czarnobai.” Os dois eram colegas na Faculdade de Comu-nicação da Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Galera andava em publi-cidade e André no curso de jornalismo. A determinada altura houve uma greve nas universidades públicas e os estu-dantes ficaram três meses sem nada para fazer. Cardoso começou então a mandar “e-mails” para uma lista de ami-gos com poemas que escrevia e com comentários a discos e filmes. “Sem pretensão nenhuma”, resume Galera, que naquela época, início de 1998, já visitava muitos “sites” na Internet e pro-pôs ao amigo a criação de um fanzine electrónico.

Abriram um “site”, deram um ende-reço de e-mail para quem quisesse fazer uma assinatura. Primeiro para 50 amigos, depois foi uma bola de neve. Em pouco tempo havia uma equipa de oito escritores, entre os 17 e 22 anos. “Éramos todos jovens, sem livros publicados e conseguimos um espaço de divulgação dos nossos textos que se tornou importante. Chegou a ter cinco mil assinantes.”

É por isso que o primeiro livro de Galera é uma antologia de contos, “Den-tes Guardados” (2000), que publicou na Livros do Mal (editora que fundou com Daniel Pellizzari e com Guilherme Pilla, também escritores do Cardoson-line) e que disponibiliza para que se descarregue gratuitamente através do seu “site” Rancho Carne.

Quando criaram a Livros do Mal os dois jovens queriam fazer face à ideia de que a literatura gaúcha (do Rio Grande do Sul) não conseguia ultrapas-sar a barreira geográfica. “Muitos auto-res e editoras gaúchas reclamavam que o centro do país, São Paulo, não dava atenção aos autores do Rio Grande do Sul que não conseguiam vender livros para fora do Estado.” Enviaram livros para órgãos de comunicação de todo o

“Parece que a imaginação, a ficção pura, não temmais o valor intrínseco que tinhaantes. É como se a estética do ‘reality show’ tivesse tomado conta de tudo”

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A primeira pergunta é de um espec-tador da plateia: “Que é que se passa?”. A segunda intervenção é de outro espectador: “Parece que estão a discutir no palco”. Um outro, das primeiras filas, dá a resposta e intro-duz a dúvida: “Talvez faça parte do espectáculo”.

O que é do espectáculo, o que não é do espectáculo?

Jorge Silva Melo é um encenador de um texto que é sobre o teatro no teatro. De uma peça que tem dentro outra peça, e portanto outro encena-dor. Uma peça que parece ter vida própria e por isso extravasa as fron-teiras-regras teatrais.

Como se o texto viesse por fora. Como se as personagens se insubor-dinassem em relações aos seus acto-res, e estes não soubessem mais onde são uma coisa e onde são outra, e mais outra. Onde é que a Lia Gama é na peça a mãe da Mommina. Onde é que a Lia Gama é na peça a actriz que interpreta a mãe da Mommina. Onde é que a Lia Gama é a mulher que reco-nhecemos como sendo a Lia Gama e que interpreta estas duas persona-gens na peça de Pirandello. Até onde é que Silva Melo a deixa estar como Lia. Até onde a quer como uma evo-cação da sua própria mãe. Até onde lhe pede que seja o que Pirandello permite.

A peça permite quase tudo. A base é a vida de uma família siciliana, com

uma mãe gaiteira, um pai debochado, umas filhas que fazem que escapam a umas aves de arribação - uns milita-res. Há o marido ciumento de uma delas, a mais delicada e talentosa, que morre de tristeza. Há um público que assiste e que não sabe o que pensar daquela barafunda. Há um director desta orquestra desafinada que não consegue impor a ordem. Silva Melo fala de uma “girândola de efeitos que anuncia a ficção da realidade”. Ate ao fim da noite, vive-se nesta ambigui-dade. Improvisa-se a partir dela.

É fácil pensar em si como o Doutor Hinkfuss, a personagem que faz de encenador. Contudo, a personagem central é Mommina, a mais talentosa das filhas da família La Croce. Em que momento da sua vida se identificou com ela?A Mommina é a personagem com que todas as pessoas que fazem teatro se identificam. Sacrificar a vida e morrer a cantar é um daqueles sonhos que todos têm. O Montaigne dizia: “Que a morte me apanhe semeando flores”. Ou seja, enquanto há vida. Dando vida. Esta foi uma das primeiras peças que li e pensei traduzir. Esta tradução [de Luís Miguel Cintra e Osório Mateus] foi editada por mim em 1974, mas foi encomendada em 1972; eu tinha 23 anos. Depois não se fez. Mas é esta mesma tradução [revista por

Silva Melo e José Maria Vieira Mendes] que está a ser seguida. Neste momento, identifico-me mais com a Mãe. Dona Inácia. Porquê?Há um momento que me toca parti-cularmente: quando a mãe pede à filha que cante, e diz: “Eu pago por elas. Elas que sejam felizes”. Acho tão bonito... É a mãe da “Belíssima” (1951), do Visconti. Todos os seus sonhos serão realizados - não por ela, que já falhou a vida, embora mante-nha um certo panache; mas por aque-les que continuam. A peça tem uma dedicatória muito comovente, a Marta Abba, a amante e actriz principal de Pirandello: “Para que eu não morra”. Este “para que eu não morra” apli-cado aos actores é um lema para mim. Se calhar por isso é que fundei os Artistas Unidos. Se calhar por isso é que quero que os Artistas Unidos se dissolvam e reapareçam noutros sítios, e que cada um continue a exis-tir por si próprio. É por isto que gosto tanto da peça: por começar numa grande barafunda, e acabar com uma actriz sozinha no palco, quase sem cenário, a contar durante 20 minutos a sua vida. O universo da peça é felliniano. Mas se pensamos num corpo para Dona Inácia, antes de sabermos que Lia Gama a interpreta, pensamos na “Mama Roma” (1962) de Pasolini, ou

no “Belíssima” de Visconti. Ambas interpretados por Anna Magnani.

A Lia, que foi vamp, não é só a Anna Magnani. Também é a Magali Noël do “Oito e Meio” (1963), e aquelas italia-nas que gostam de se aperaltar. Há uma frase do Max Ophüls de que gosto muito: “A frivolidade só é frívola para quem não é frívolo”. O direito a ser frívolo, a gostar de coisas pindéricas, de estolas e quicos, é tão bonito... O que é que gosta nisso?É querer superar a pobreza da sua pobre vida, de mulher casada, mal casada. Uma mulher que saiu da sua terra, de Nápoles, e vai viver para uma terra mais provinciana do que a sua, a Sicília. Tenta superar [a sua condi-ção] pelo canto das suas filhas. E com uma educação controversa, com a semiprostituição das filhas. Noutro meio social, poderia ser lido como uma apresentação social, uma preparação para um bom casamento - sem esse estigma da prostituição. Nesta condição social, que é a pequena burguesia, há uma mistura de: tentar a independência das filhas (pelo canto); uma delas, a Totina, vai ser cantora profissional. E tenta casá-las. Casá-las com as aves de arribação. O que ela faz, porque a vida não lhe corre muito bem, é abrir a casa para os militares passarem lá noites diver-tidas. Acha que é uma maneira

Esta noite quem é quem,

quando é o quê?

“Esta Noite Improvisa-se” é uma exortação à liberdade. Um carrossel frenético. E o debate de uma questão central na obra de Pirandello: o que

é que é da arte, o que é que é da vida? Perguntámos a Jorge Silva Melo. A peça está em cena até 5 de Abril no D. Maria II. Anabela Mota Ribeiro

“Na mãe, na Dona Inácia, há muito da minha mãe. A minha mãe era uma pessoa alegre; odiava ir ao cinema: “Que estupidez, fechar-me numa sala escura onde não conheço ninguém!”. Do que ela gostava era de bailes, encontrar pessoas, dançar, falar com os outros”

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A base de “Esta Noite Improvisa-se” é uma família siciliana, mãe gaiteira, pai debochado, fi lhas que fazem que escapam a umas aves de arribação - uns militares

Se pensamos num corpo para a mãe, Dona Inácia/Lia Gama, pensamos na “Mama

Roma” de Pasolini, ou no “Belís-sima” de Visconti, ambos inter-

pretados por Anna Magnani

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moderna de conviver. Na terra, é mal vista. Estamos na Sicília...Penso que tem muito que ver com um gosto provinciano do Pirandello: a especulação da má-língua. Uma senhora de quem fui amigo, pintora, Titina Maselli, sobrinha da mulher do Pirandello, que vivia no mesmo pré-dio quando era pequenina, dizia: “Aquilo o que era?, era um homem da Sicília que gostava de estar à esquina a dizer: ‘Esta é casada com aquele, mas anda a sair com o outro’. Sem consequências. O que ele gosta é de explorar as hipóteses narrativas”. Efabular. Gosta da má-língua sem mal-dade. Gosta das hipóteses romanescas que o real lhe oferece. A Titina dizia que ele era como o boticário da aldeia. Hoje diríamos que tem alma de porteira. Se fosse numa grande cidade, teria alma de porteira. Antes, seria o da farmácia ou o da mercearia da aldeia. Por falar em exploração das hipóteses romanescas: é como quando ia com a sua mãe, aos sábados à tarde, ver casas para alugar, só pelo prazer de inventar vidas que ali poderiam ter. “Aqui seria o teu quarto, aqui o sofá...”. É tal qual. Na mãe, na Dona Inácia, há muito da minha mãe. A minha mãe era uma pessoa alegre; odiava ir ao

cinema: “Que estupidez, fechar-me numa sala escura onde não conheço ninguém!”. Do que ela gostava era de bailes, encontrar pessoas, dançar, falar com os outros. O meu pai gos-tava muito de cinema. Visitar casas para alugar é também essa maneira de efabular. O começo do “Détective” do Godard, é isso. Vê-se uma rapariga na porta de uma estação: o que é que ela estará a fazer?, estará à espera do amante?, porque é que volta agora? Essa vontade de efabular é uma coisa que nos faz viver. Não é necessaria-mente um desejo de encontrar expli-cações. Eu não quero saber se aqueles são casados...Não lhe interessa a verdade? Um detective ocupa-se da verdade.O que eu gosto é de levantar hipóteses a partir do real. Se são verdadeiras ou não... Quanto mais engraçadas forem, é do que o Pirandello gostava. A minha mãe, que não era casamenteira como a Dona Inácia, gostava de se divertir. Apreciava o prazer. O meu pai, como muitos homens da época, era sorumbático, trabalhador e car-rancudo. Casaram-se nos anos 30 e este era muito o casamento pequeno-burguês do fascismo. Não sei até que momento a sua mãe o acompanhou, e como seguiu o seu percurso no teatro. Como deu autonomamente, sem ela, vida às personagens do teatro, às histórias.A minha mãe achava muita graça às

coisas que eu fazia. O meu pai tam-bém. O meu pai morreu mais cedo; tinha acabado de estrear os “Tambo-res na Noite” do Brecht. A minha mãe morreu estava eu a preparar o filme “Agosto”. Não viram as personagens que inventei para eles no “António, um Rapaz de Lisboa”, ou aqui. Mas há traços de que só me poderia lem-brar [a partir da minha mãe]. A estola. O quico da Lia. A vontade de ir à ópera a mostrar-se quando entra. São coisas que herdei da minha família ou dos amigos dos meus pais. Também muito na leitura de um escritor que está esquecido, o Rodrigues Miguéis. Mas esse ambiente era o seu? Percebe-se o fascínio em diversos momentos dos seus

filmes e das suas escolhas. Mas a par disso há uma sofisticação intelectual e cultural. E a sua família não coincide com isso que descreve.Pois não, era mais sofisticada. Mas não me vejo a montar peças passadas na alta burguesia. Gosto da vitalidade das personagens da pequeno-burgue-sia que tentam sobreviver mesmo desajustadas do seu local. Gosto mais da vitalidade da Claudia Cardinale do que da decadência, inteligentíssima, do Burt Lancaster, n’”O Leopardo”. [risos] Não acontece com a Claudia Cardinale, mas acontece na “Belíssima” e também em “Esta Noite Improvisa-se”: um

certo grotesco. A sua opção é fazer o espectador sentir não o grotesco, mas comiseração...Pelas pessoas. Pirandello chamou ao conjunto das suas peças “Máscaras Nuas”. O que é uma máscara nua senão uma aproximação do grotesco? Se há coisa que detesto é um espec-táculo em que se desprezam as per-sonagens. Sempre peço aos meus actores: “Vocês são o advogado de defesa da vossa personagem”. O Edu-ardo De Filippo tem uma coisa genial: “O actor é o confessor da persona-gem, conhece todos os seus defeitos, perdoa-lhes, conhece-o intimamente e é o seu guia espiritual”. O grotesco é [o advogado de] acusação da perso-nagem. Já que as pessoas estão jun-

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tas uma noite, que olhemos uns para os outros com amor.Também é capaz dessa impiedade...Sim, gosto da crueldade e do Billy Wil-der. Mas o Billy Wilder não despreza as personagens.É corrosivo, pelo humor. E pela mão dele, conseguimos sentir simpatia pelos canalhas.É disso que gosto. É mau para a socie-dade. Mas a Shirley MacLaine é sem-pre perdoável. O seu teatro é humanista - é o que está a dizer?Gostava que fosse cálido. Mesmo quando há acusação. O [Harold] Pin-ter também me ensinou isso. Há aquela personagem horrível que inter-pretei [em “Um para o Caminho”], que é um torturador, um homem des-prezível. Ele próprio, Pinter, interpre-tou aquela personagem. O teatro e o cinema devem permitir-nos ver aquilo que uma acusação não deixa ver. Ainda que o seu encontro com a peça tenha sido há anos, se a pusesse em cena com 23 anos o resultado seria diferente do que agora podemos ver no D. Maria?Muito diferente. O que é possível agora é a rapidez. Esta peça costuma demo-rar três horas, três horas e 20. [A minha] sem cortes, não demora mais do que uma hora e 50. Foi uma coisa que adquiri na vida, e também por fazer cinema: o domínio do tempo.

Por outro lado, a minha ideia é que toda a primeira parte até ao monólogo final da Mommina deve ser um car-rossel, uma valsa vertiginosa.Para conseguir isso, pensou no Max Ophüls? Uma das ideias centrais no cinema deste autor é a de movimento, e também a dança. Não por acaso, é “o cineasta vienense”. Claro. Pensei logo na “Lola Montès” (1955). Queria que se adensasse e que fosse strindberguiana nas duas cenas finais. Como no princípio do “Le Plai-sir” (1952): é uma valsa, uma valsa, uma valsa, e depois vê-se a máscara da morte. Gosto destas peças que mudam de estilo. Estávamos a falar do que teria feito se tivesse pegado na peça aos 23 anos.Nunca teria percebido na época que o Fellini só era possível nesta cultura - eu teria feito uma encenação mais viscontiana, ou seja, nobre, lenta, res-peitando os códigos teatrais. Descobri-o há dois anos num espectáculo que vi em Itália, e que era mau, de um encenador muito bom, o Federico Tiezzi. Tinha uma ideia engraçada: ele achava que “Os Gigantes da Monta-nha” era a origem de “Julieta dos Espí-ritos” (1965) do Fellini. Eia pá, nunca me tinha lembrado desta! E realmente, quer o “Oito e Meio”, quer o “Amar-cord” (1973) só eram possíveis numa cultura onde esta destruição da nar-

rativa já tivesse sido possível. Pirandello destrói a narrativa e integra o caos. Dá-se a espantosa coincidência de...ter nascido numa terra chamada Caos! Ao pé de um vulcão.Esse lado vulcânico de Pirandello faz pairar sobre a peça a permanente ameaça da erupção. Esta família La Croce tem uma mãe que é de Nápoles e um pai siciliano. Tudo se passa entre o Vesúvio e o Etna. Entre vulcões. Essa ameaça está na mais bonita encenação de Pirandello que vi, que alguma vez será feita, a de Klaus Michael Grüber, em 1980. A ideia para as “Seis Personagens” era que elas eram vítimas de um tremor de terra. É evidente que a terra treme debaixo dos pés desta gente. A terra, a verdade, a incerteza, e mesmo estas passagens entre uma coisa e outra [o carnaval e o adensamento final] tam-bém têm que ver com um tremor de terra. Na peça, uma personagem volta-se para o público e diz: “Não é um incêndio?”; e eu modifiquei e pus: “Não é tremor de terra?”. A imagem era importante, a terra estava a revol-ver-se. Nada ficava assente. Tudo na vida daquelas personagens estava em convulsão.Até que tudo assenta. Numa mesqui-nhez que vai levar à morte da Mom-mina. Mesquinhez strindberguiana,

“Lola Montès”, Max Ophüls, 1955 “Há uma frase do Max Ophüls de que gosto muito: ‘A frivolidade

só é frívola para quem não é frívolo’”

“[Esta peça] Foi escrita há 80 anos. Eu tenho 60. É raro dirigir peças de velhos. Mesmo quando dirigi Shakespeare ou Brecht, foram obras de juventude. Gosto da imprecisão das obras dos jovens. De não dominarem ainda o material. Se calhar chegou à altura de me interessar pelas últimas, quando os autores se estão nas tintas para a ordem. Já podem, como aqui, ser tão livres. Começou aminha altura de fazer últimas peças”

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“Sonho, mas talvez não”, que teve estreia mundial aqui no D.Maria em 1931. Foi o Pirandello que falou com o Cottinelli Telmo em alguma altura? Pode ser uma graça da época. Ou pode haver uma outra fonte comum. Nesta peça fala-se do teatro dentro do teatro. E do que é a arte. Além das definições do que é o teatro, surgem perguntas como: “A arte deve ser vida?”Isso é o grande tema do Pirandello. E por isso ele diz: “Para que eu não morra”. Ele é escritor, começa a inte-ressar-se por teatro, dirige uma com-panhia; nessa companhia, conhece as contingências que uma obra fixada num texto vive - esquecimento dos actores, imprecisão dos actores, tempo de ensaios. E a obra altera-se, a obra vive. O que ele não quer é está-tua. A nostalgia já não é uma palavra essencial do seu léxico. Houve uma altura em que a sua vida era indissociável daquele verso do Ruy Belo: “Triste é no Outono descobrir que era o Verão a única estação”. Já não é um tema seu.Não, não é. Na escrita, é. Agora, gosto mais da vida. A escrita é sempre nos-tálgica - o tempo da escrita é sempre posterior ao acontecimento. O teatro é durante, acontece ali, e tenho pouca paciência para ser nostálgico ou medi-

tativo.N’”A Viagem da Itália”, Goethe equipara a Sicília e Nápoles. Escreve que lhe faltam os órgãos certos para falar de Nápoles. O que ali se passa não pode ser dito/vertido através das palavras. Esta abordagem de Goethe cruza com o que está na peça de Pirandello: como falar desta matéria que é viva?Tem toda a razão. Nunca fui a Nápo-les, mas fui muito a Palermo. Adoro o lado arruinado e grandioso de Palermo, surpreendente, comovente, exaltante. Essa ideia é também o que o Pirandello sente. Qual é a forma para falar desta realidade? Na peça, a forma rebenta. Começa como uma peça coral e muda-a, transforma-se numa peça de câmara para dois per-sonagens. O que torna esta peça num desperdício total! Usa música ao vivo dois minutos e depois já não é precisa. Exige 40 actores que não são precisos a partir de meia hora do fim do espec-táculo. Exige actores muito treinados que sabem canto, mas só os usa durante cinco minutos. Esse desper-dício é uma ideia de velho. Já não é preciso poupar. No longo e comovente monólogo final, Mommina é uma voz estiolada. Na discussão que mantém que o marido, diz: “Pensar ainda pode depender da vontade; o sonhar (se eu sonhasse) seria sem querer”. A personagem estabelece um confronto entre pensar e sonhar.É. A peça anterior de Pirandello chama-se “Sonho, mas talvez não”. É sobre o ciúme que um homem tem dos sonhos da mulher. Claro que tudo isto tem que ver com o Freud, que está a ser descoberto. Como o Strin-dberg, que está a ser muito represen-tado na altura. Pessoa [escreve]: “O que em mim sente está pensando”. O teatro estava muito longe, mas ima-gino-o divertidíssimo com esta peça. Uma parte dele estaria neste marido patologicamente ciumento?Sim. Pirandello era casado com uma senhora que enlouqueceu e apaixo-nou-se perdidamente pela Marta Abba. Quando esteve em Lisboa, escrevia-lhe todos os dias [em papel de carta] do Hotel Avenida. “Espero, quando chegar a Paris, ter uma carta tua”, “A Amélia Rey Colaço é uma grande actriz, mas o resto da produ-ção é fraca”. É ciumento?De certeza. Embora não seja ciumento em relação a uma pessoa, sou ciu-mento de muita gente. Na peça, o ciúme é uma manifestação de vida. Que conduz à morte, que conduz ao assassínio. “Não sou eu que quero ser ciumento, mas sou ciumento”. Isso é a vida. Comove-se, ainda, até às lágrimas? Comove-se com a cena final, quando Mommina morre de verdade e as suas filhas pensam que ela está a representar?Tenho chorado. Tenho poupado a Sílvia Filipe [actriz que interpreta Mommina], que adoro, a fazer esta cena. Numa semana, ensaiámos duas vezes essa cena. E nunca ensaiei a cena a seguir à morte; só vou ensaiá-lo quatro dias antes da estreia [a entrevista é feita uma semana antes da estreia]. Apetece-me que os acto-res tenham os papéis na mão, que não saibam o texto de cor, e que se sinta uma desorientação, depois do momento de verdade - que é, afinal, a máxima mentira: ela morre em cena (o que é a máxima mentira: não pode morrer), mas que é a maior verdade. Apetecia-me que a peça se esfranga-lhasse depois disso.

Ver agenda de espectáculos págs. 39 e segs

psicológica, em que o ciúme mata tudo. Depois, descobri que as cenas finais são um resumo do “Otelo”. É um homem que emprenha pelos ouvi-dos, começam-lhe a dizer que a mulher o atraiçoa e ele não a mata, mas ela deixa-se morrer. A cantar, tal como a Desdémona. O nosso amigo Pirandello fartou-se de roubar cita-ções musicais e dramáticas também ao Verdi - que fez o “Othello”. Esta é uma das últimas peças do Pirandello. Foi escrita há 80 anos. Eu tenho 60. É raro dirigir peças de velhos. Mesmo quando dirigi Shakespeare ou Brecht, foram obras de juventude. Gosto da imprecisão das obras dos jovens. De não dominarem ainda o material. Se calhar chegou à altura de me interes-sar pelas últimas, quando os autores se estão nas tintas para a ordem. Já podem, como aqui, ser tão livres. Começou a minha altura de fazer últi-mas peças. Quer isso dizer que se sente a envelhecer? É evidente.Não estou a dizer que está a envelhecer. Estou a perguntar se se sente a envelhecer.Estou. Estes dez anos senti-me enve-lhecer, e este ano envelheci muito. Comecei a pensar: “Estou há um ano sem fazer nada. Isto não pode ser, não tenho Companhia, está tudo a desa-parecer. Porque é que não estão a ser

aproveitados estes meus anos? Apesar de tudo, tenho coisas para dizer ou para fazer”. Não posso partir para o estrangeiro.Viveu anos no estrangeiro. Não posso partir porque já estou velho e a minha irmã também. Sinto a velhice e as responsabilidades que não sentia há dez anos. A minha irmã tem 72 anos, está diminuída, e somos as únicas pessoas da família. Não posso pegar nas malas e ir para Paris ou Berlim como fui tantas vezes. Se o ano que tive o ano passado tivesse acontecido há dez anos, não estaria cá. Agora, não. Vai ser aqui que vou morrer. Vai ser aqui que vou ter que me organizar. Esta espera pelas obras d’A Capital, que se eterniza (até à chegada ao poder do Santana Lopes, brevemente!), tem sido muito desgastante. Não sei onde vou parar. Fiz uma peça com um título danado: “Onde Vamos Morar?”... [risos] A dedicatória da peça já é o lema. Enquanto, até agora, eu gostava de estar na origem de muitas coisas, agora já estou egoisticamente a pensar: “Para que eu não morra”. Nos anos que antecederam a fundação dos Artistas Unidos, esteve em casa, parado e deprimido. Foi o mesmo “para que eu não morra” que o fez fundar a Companhia?Não pensava muito nisso. Pensava que eu era preciso para que aquelas pes-soas encontrassem algumas bases. E

queria tornar útil a aprendizagem pri-vilegiada que tive pelo mundo fora. A ideia era: quero ser útil, quero ser útil, quero ser útil. Consegui. Agora é uma coisa mais centrada em mim, e como é que hei-de fazer para não morrer sem ter só uma estátua no Cemitério dos Prazeres.Voltemos às influências do cinema. “O Anjo Azul” foi inspirador? Na peça, o pai apaixona-se por uma corista. Como o professor do “Anjo Azul”. E ambos têm, em descrédito, e provocando a ruína dos que estão à volta, um chapéu igual. Na verdade é um par de cornos. Creio que esta cena da humilhação do Pai é copiada do “Anjo Azul”. São ambos de 1929, na Alemanha - onde o Pirandello estava.Marlene Dietricht como uma encarnação do pecado, da tentação?Tentação. Da decadência. E antes do filme, havia o livro do Heinrich Mann que ele leu de certeza. Há outra sus-peita que tenho: a cena do candeeiro [na peça], quando o homem fala com o candeeiro na rua pensando que está a falar com as estrelas, é igualzinha à cena d’”A Canção de Lisboa”, com Vasco Santana, bêbedo, a falar com o candeeiro. Ora, Cottinelli Telmo, rea-lizador d’”A Canção de Lisboa” foi quem fez a cenografia do espectáculo

“Le Plaisir”, Max Ophüls, 1952 “Como no princípio do ‘Le Plaisir”: é uma valsa, uma valsa, uma valsa, e

depois vê-se a máscara da morte. Gosto destas peças que mudam de estilo”

“Amarcord”, Fellini, 1973 “Nunca teria percebido na época [aos 23 anos] que o Fellini

só era possível nesta cultura - eu teria feito uma encenação mais viscontiana, nobre, lenta, respeitando os códigos teatrais

“A escrita é sempre nostálgica - o tempo da escrita é sempre posterior ao acontecimento. O teatro é durante, acontece ali, e tenho pouca paciência para ser nostálgico ou meditativo”

Esta peça, diz o encenador,costuma demorar três horas. Esta encenação não demora mais do que uma hora e 50. Foiuma coisa que Silva Melo diz ter adquirido, com a vida e com o cinema: o domínio do tempo. A ideia era por em movimento uma valsa vertiginosa

Esta tradução de “Esta NoiteImprovisa-se” (Luís Miguel Cintra e Osório Mateus) foi

editada por Silva Melo em 1974, e encomendada por ele em 1972,

aos 23 anos. Neste espectáculo segue-se essa tradução

(revista pelo encenador e por José Maria Vieira Mendes)

Exp

osiç

ões Setembro de 2001, mês negro - o

mês em que a América se transfor-mou em palco de guerra e trauma. E uma manhã, na Internet, à vista de milhares de pessoas em todo o mundo, uma imagem: um turista a posar no terraço das Torres Gémeas; por trás um avião a riscar a “skyline” de Nova Iorque em direcção às suas costas. Este seria o último docu-mento do último segundo antes do impacto, antes de toda a morte e des-truição. Alguém acreditou?

Abril de 2004, mês de escândalo internacional quando o magazine “60 Minutes” revela imagens do tipo de tortura praticado pelo Exército norte-

americano no interior da prisão de Abu Ghraib, Iraque: soldados norte-americanos a passear detidos árabes pela trela como cães, soldados norte-america-

nos sentados sobre pilhas de homens nus como pedaços de

carne no armazém de um talho, soldados norte-americanos perante um Cristo feito de pri-sioneiro com eléctrodos nas mãos e pés. Alguém acreditou

logo, no primeiro segundo?

A lista é imensa: George W. Bush a ler um livro aberto de pernas para o ar (afinal quem é que não quis acre-ditar?), John Kerry, o seu opositor democrata nas presidenciais de 2004, em novo, a preto e branco, ao lado de Jane Fonda num comício contra a guerra do Vietname (porque é que não haveríamos de acreditar?), e por falar em reescrever a história, Paul McCartney na capa de “Abbey Road”, o décimo primeiro álbum dos Beatles, a chegar ao século XXI sem cigarro na mão direita para fins comerciais (esta durou só até o primeiro “con-naisseur” se dar conta).

Diz-se: o Photoshop matou a foto-grafia. Que é como quem diz: o Photoshop acabou com o realismo e fez-nos cínicos - matou em nós a ino-cência necessária para ler a imagem fotográfica enquanto testemunho transparente do mundo.

Tinta invisível, cortinas de fumo, filtros, máscaras: sejamos duplamente cínicos, o Photoshop foi o fim sim, mas não o fim do real, foi o fim da ilusão - o fim da ilusão sobre a possi-bilidade de um olhar sem ponto de vista, sem intenção, sem artifício, que

é como quem diz um olhar sem ideo-logia. Acontece que a fotografia sem-pre foi uma arma ideológica. É só voltar atrás na história.

A viagemEstamos no Museu Berardo, numa das primeiras salas da exposição “Arquivo Universal - a condição do documento e a utopia fotográfica moderna”, um portento com mais de mil documentos fotográficos de meados do século XIX a finais da década de 80 do século XX, repre-sentando 250 autores internacionais e expondo como complemento deze-nas de publicações e filmes.

A viagem começa com Lewis Hine e o seu levantamento de 1907 para o Child Labor Committee da era Square Deal de Theodore Roosevelt, sobre o trabalho infantil nos EUA, considerado precursor de um tipo de fotografia documental reformista, centrada nas classes populares trabalhadoras e des-favorecidas - objectivo declarado pelo próprio Hine: mostrar o que devia mudar - e que culminaria, mais de vinte anos depois, na campanha de documentação dos efeitos da Grande

“Arquivo Universal”, a imensa nova exposição do Museu Berardo, propõe uma multiplicidade de percursos históricos pela fotografi a anterior ao

evento Photoshop. Aqui não se apaga nada, mas a manipulação está por todo o lado. Vanessa Rato

uma arma ideológicaMais de mil documentos fotográficos do século XIX a finais da década de 80 do século XX, representando 250 autores internacionais e expondo como complemento dezenas de publicações e filmes

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Jorge Ribalta

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mais tarde, acabaria adoptada pelo capitalismo (é em Lissitsky que se ins-pira a montagem original da campanha da Farm Security Administration norte-americana de 1935-43).

Isto do lado dos documentos fotográ-ficos. Depois há todo o material de apoio, por exemplo, vários números da histórica revista “Documents” (1929-1930) dirigida por Georges Bataille, imagens dos painéis do emblemático projecto “Mnemosyne” de Aby War-burg, de associação de imagens de diversas proveniências motivada pela sua pesquisa sobre a presença do legado clássico na cultura ocidental até ao Renascimento, e livros como “Balinese Character” (1942), de Margaret Mead, exemplo das duas teorias universalistas e paradigma do cruzamento entre a fotografia e o levantamento antropoló-gico, ou “Lisboa, cidade triste e alegre” (1959), com cerca de 200 imagens de Victor Palla e Costa Martins sobre a vida em zonas populares da capital como o Bairro Alto e Alfama.

Um dia, Jorge Ribalta, responsável pelo Serviço Educativo do MACBA, percebeu que, à força de exposição patogénica, tinha ficado “alérgico à forma superficial como o documento fotográfico tem sido tratado por uma série de criadores contemporâneos incapazes de politizar o espaço artís-tico” e o resultado foi este, este monó-lito na forma de mostra.

Ribalta partiu de três perguntas-base: qual o sujeito de uma imagem docu-mental?, que tipo de espaço público produz um documento?, e como é que um documento produz conhecimento? “Há teóricos que defendem que com o Photoshop a fotografia deixou de ser realista. Eu defendo que é necessário defender a fotografia como documento. Se não tiver este lado, para mim, a foto-grafia não serve para grande coisa. Para mim, o aspecto mais interessante da fotografia é não ser apenas arte e viver em diferentes campos sociais. Esta exposição tenta ser o contraponto à moda do documental na arte contem-porânea: tenta devolver densidade ao documento face à banalização do seu uso na arte contemporânea.”

Cita Jacques Le Goff quando diz que sem documento não há história e, como vários teóricos, propõe que olhemos para essa mesma história não como uma linha estendida entre dois pontos, mas como um amontoar estratificado e por vezes fusional de acontecimentos.

“Uma constelação de relatos sobre a genealogia e a trajectória de certos dis-cursos”: é o que encontramos na sua exposição - a proposta de uma revisão histórica, regresso à fotografia como linguagem universal, pré ou pós-linguís-tica, niveladora de todas as diferenças socioculturais, mas também a resposta a uma contemporaneidade, em que a desmaterialização do documento foto-gráfico - e, com este, do arquivo, na base de toda a utopia positivista - afectam conceitos até hoje estruturantes.

“O Photoshop e a fotografia digital parecem acabar com o realismo foto-gráfico ou, pelo menos, parecem com-portar uma mudança de estatuto do índice fotográfico. Mas, uma vez mais, esta possível mudança não deve ser banalizada porque comporta conse-quências decisivas sobre a própria noção de história”, escreve Ribalta no catálogo.

Apesar de a História ter morrido em 1806 na batalha de Jena, ter voltado a morrer com o Holocausto e, depois, de novo, com a queda do Muro de Berlim e a publicação de “The End of History”, de Francis Fukuyama, em 1989, Ribalta pergunta: “Será a era pós-fotográfica uma era pós-histórica?” E responde: “Renunciar ao documento (no caso da fotografia, renunciar ao realismo) não parece uma opção viável dado que enquanto houver formas de existência social e de produção de hegemonia o documento continuará a ser um espaço fundamental no conflito simbólico”.

Depressão promovida pela Farm Secu-rity Administration entre 1935 e 1943, envolvendo nomes como Walker Evans, Dorothea Lange ou Arthur Rothstein num dos momentos privilegiados de construção da imagem do New Deal de Franklin D. Roosevelt.

A viagem começa aqui, então, para acabar um mundo de informação depois em trabalhos como os da dupla alemã Bernd & Hilla Becher feitos em finais da década de 1980 para a última grande campanha fotográfica moderna, assumida como baliza histórica da apre-sentação portuguesa desta exposição produzida pelo Museu de Arte Contem-porânea de Barcelona (MACBA): a Mis-são Fotográfica do DATAR (Délégation à l’aménagement du territoire et à l’action régionale), promovida por Mit-terrand para documentar a mudança da França na viragem para uma socie-dade pós-industrial (em Espanha a exposição acabava com o núcleo de imagens de 15 fotógrafos contemporâ-neos convidados pelo MACBA a foto-grafar a capital catalã). Pelo caminho, imagens das campanhas que serviram de referência ao projecto DATAR como as das missões de 1850-1860 que na Europa registaram todo o tipo de monu-mentos e que nos EUA criaram a ideia de uma paisagem natural americana, servindo, em ambos casos, para a cons-trução de identidades nacionais (a deli-mitação do Parque Nacional de Yello-wstone nasceu aqui).

Mais alguns exemplos: uma repro-dução em detalhe do que foi o pavilhão soviético na “Internationale Austellung des Deutschen Werkbunds. Film und Photo” de 1929, em Estugarda, Ale-manha, com “design” de exposição de El Lissitsky, que foi ainda comissário da participação e artista exposto, com obras ao lado de filmes de autores como Dziga Vertov e a montagem geral da mostra - painéis montados a vários planos e níveis - a testar as suas conhe-cidas teorias de imersão total do público, estratégia de “educação de massas” do regime comunista que,

“Há teóricos que defendem que com o Photoshop a fotografia deixou de ser realista. Eu defendo que é necessário defender a fotografia como documento” Jorge Ribalta, comissário

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alguns relacionados directamente com o cineasta. Lembre-se, por exemplo, a escultura “Bresson”, um “retrato” do realizador apresentado num quarto do Palácio Nacional da Pena, no âmbito da exposição “Durante o Fim”

(2000). Outras obras, como “Vê como Tremo”, revelada em “Fora!” (Serralves, 2005) - mostra partilhada com Pedro Costa - sugerem também uma proximidade com o universo bressoniano. Existem ainda outras zonas de confluência, como o desejo de exactidão que se manifesta quer nos filmes do francês, quer nas esculturas de Chafes, vivificações do espírito. Em ambos os casos existe densidade, exactidão, silêncio. Actos de resistência, portanto.

Esculturas de bolso, íntimas. Ficções do espaço interior de uma mão. Revelações de um nada. Detalhes a que se chega pelo mais longo dos caminhos: as peças de Rui Chafes, tão próximas das sombras, da morte, têm, contudo, uma inesperada capacidade de redenção, sobretudo quando emergem de um silencioso horizonte, o destino. Como aponta Bresson numa das suas “Notas Sobre o Cinematógrafo” (Porto Editora, 2000): “Faz aparecer o que sem ti porventura nunca seria visto.” Ou então, como escreve João Miguel Fernandes Jorge no livro agora publicado - um volume com inúmeros inéditos -: “Porque te atormentas com os ventos frios da primavera, se são eles que sopram os negócios do mundo?”

Esse corpo que não vemos

At Eye LevelDe Susanne S. D. Themlitz.

Lisboa. Vera Cortês - Agência de Arte. Avenida 24 de Julho, 54 - 1ºE. Tel.: 213950177. Até 04/04. 3ª a 6ª das 11h às 19h. Dom. das 15h às 20h.

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Trata-se de uma exposição exclusivamente de desenho, o que não é habitual na obra da artista. E de desenhos surpreendentes: cada peça exibe uma profusão de personagens, objectos, seres híbridos, fragmentos de paisagem, plantas e outros motivos que nos recordam o universo onde coabitam instalações, esculturas, pinturas, colagens e fotografias de Themlitz . Inseridos na série “Parallel landscapes / In search of the mirror neurons” estes desenhos possuem a capacidade de desvendar mais das obsessões de Susanne Themlitz, e sobretudo com a que se prende com a definição da identidade própria.

Em algumas anteriores séries a artista criava máscaras que envergava ou seres estanhos cujo aparecimento obedecia a uma lógica de clonagem. Esses seres construíam-se por deformação das feições e dos membros humanos, à maneira dos extra-terrestres de BD ou da ficção científica de série B. A

máscara acabava por se dar

a perceber como alter-

ego da artista; foi o que sucedeu na série de diapositivos e fotografias realizados para uma das edições do Prémio BES-Photo (2006), onde a imagem do corpo próprio como alteridade se reforçava com a indicação da função biológica e social desse corpo: em algumas destas imagens surgia também uma criança, a filha da artista, igualmente provida de máscara.

Na série que agora nos ocupa, a reflexão sobre a identidade pessoal estende-se à enumeração de tudo aquilo que ela não é: seres de rosto alongado, lugares imaginários, perspectivas inusitadas (de olho de pássaro ou animal), criaturas vindas do gótico flamengo, como a reprodução de uma ave infernal de Bosch que se passeia de funil na cabeça, e sobretudo órgãos desenhados e pintados com uma técnica que lembra a do desenho de anatomia: corações, vísceras e outras carnes que não conseguimos identificar. Estamos num domínio onde não há certezas, apenas a constante interrogação do que pode ainda acontecer, e do que faltará para completar esta demanda sem fim.

O nome da série esclarece-nos melhor sobre este processo. O carácter “paralelo” da paisagem que aí é referido terá que ter o seu ponto de referência num corpo situado face a face com a superfíce do papel, que neste caso é inicialmente o lugar em branco onde o espaço se vem inscrever. Paralelo é também o espelho - liso ou deformante - que permite esse trabalho sobre a imagem própria que já mencionámos. Contudo, a última parte desta frase (“In search of the mirror neurons”), para além de mencionar esse espelho, indica também uma suposta inteligência no automatismo que gera as imagens. Porque o espelho é uma máquina de imagens. Como todas as máquinas, não possui um “cérebro” nem um “coração” humanos. Sendo assim, como poderá ter neurónios?

Na realidade, estes desenhos abrem a porta à sua própria conclusão: não é difícil imaginar que, a partir do espelho, Themlitz indague o modo como outras máquinas podem tornar-se vivas e começarem também a criar mundos tão ou mais estranhos do que este. Estamos em pleno mito do Golem, esse ser de barro que, na fábula judaica, se tornou vivo e ameaçador. Resta a melancolia que um texto de sala que acompanha a exposição também refere. Mas sendo a melancolia o sinal de uma falta profunda (da forma humana definitiva, de referências no espaço e no tempo), ela é talvez o motor que permite ao artista continuar o seu trabalho de forma consistente. Luísa Soares de Oliveira

InauguramDays DoneDe Jorge Abade. Porto. MCO Arte Contemporânea. R. Duque de Palmela, 141/143. Tel.: 225102328. Até 07/04. 2ª a Sáb. das 14h às 19h. PortoarteContemporânea. Inaugura 6/3 às 21h30.Pintura, Escultura.

Game OverDe Pedro Cabral Santo. Porto. In Transit. R. Miguel Bombarda, 457. Tel.: 936396964. Até 11/04. 3ª a 6ª e Sáb. das 15h às 19h30. Inaugura 7/3 às 16h.Vídeo.

MibomDe Ângelo de Sousa. Porto. Galeria Quadrado Azul Q1. R. Miguel Bombarda, 435. Tel.: 226097313. Até 11/04. 3ª a 6ª das 10h às 19h30. 2ª e Sáb. das 15h às 19h30. PortoarteContemporânea. Inaugura 7/3 às 16h.Pintura.

RiverDe André Cepeda. Lisboa. Galeria Pedro Cera. R. do Patrocínio, 67E. Tel.: 218162032. Até 11/04. 3ª a Sáb. das 11h às 19h30. Inaugura 7/3 das 18h às 20h; Concerto com André Cepeda, Rodrigo Amado, DJ Ride e Gabriel Ferandini. Apresentação do livro “River”.Fotografia.

Arquivo Universal - O Documento e a Utopia Fotográfi caDe El Lissitzky, Martha Rosler, Lewis Hine, John Grierson, Allan Sekula, entre outros. Lisboa. Museu Colecção Berardo. Pç. do Império - CCB. Tel.: 213612878. Até 03/05. 6ª das 10h às 22h. 2ª a Dom. e Feriados das 10h às 19h. Inaugura 9/3 às 19h30.Fotografia, Outros.

Borges, Coppola, Buenos AiresDe Horacio Coppola. Lisboa. CCB. Pç. do Império. Tel.: 213612400. Até 08/04. 2ª a 6ª das 14h às 18h. Sáb., Dom. e Feriados das 14h às 19h. Na Galeria Mário Cesariny. Inaugura dia 9/3 às 19h.Fotografia, Outros.

Agenda

Aparições da sombraEvocação de Bresson por Rui Chafes. Óscar Faria

PickpocketDe Rui Chafes.

Lisboa. Cinemateca Portuguesa. R. Barata Salgueiro, 39. Tel.: 213596200. Até 24/04. 2ª a Sáb. Das 11h às 20h.

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“Os meus direitos, tanto quanto sei, vão tão longe quanto pode ir o meu braço”. A frase do anarquista alemão Max Stirner, incluída em “O Único e a sua Propriedade” - a edição portuguesa, de 2004, é da Antígona e tem tradução de João Barrento -, foi citada por Robert Bresson a propósito de “Pickpocket” (1959). É João Bénard da Costa recorda-a numa folha da Cinemateca para nos falar daqueles personagens bressonianos acima da lei, “numa acepção que pode ter também eco em certos textos canónicos, nomeadamente na afirmação pauliniana do primado do espírito (A lei mata, mas o espírito vivifica).”

Bénard da Costa sublinha o facto de ter sido aí, nesse filme acerca de mãos - extremidades de um corpo, o de Michel, definido não pelos gestos do roubo, essa precisa habilidade, mas pela radical soberania, que nenhuma legislação consegue conter -, o momento no qual Bresson terá porventura ido mais longe na defesa da ideia do cinematógrafo ser a arte de, com imagens, não representar nada. E acrescenta: “Afirmação que só pode ser paradoxal a quem não tenha sido capaz de ver o que é esse nada que ‘Pickpocket’ mostra.”

Esta obra, que teve “Incerteza” como título de trabalho, é o ponto de partida do ciclo “Pickpocket: Robert Bresson visto por Rui Chafes e João Miguel Fernandes Jorge”, a decorrer na Cinemateca. A iniciativa inclui, para além de uma integral dos filmes do realizador francês, a edição de um livro e uma exposição, que funcionam complementarmente, ecoando ainda outros momentos, como a retrospectiva dedicada ao cineasta pela Embaixada de França e pela Fundação Gulbenkian em 1978 - as fotografias de Rita Azevedo Gomes visíveis no livro agora editado tinham sido já reveladas naquela ocasião.

A exposição de Rui Chafes é formada por seis pequenas esculturas em bronze datadas de 2004, não tendo sido, portanto, criadas para a

ocasião. Elas foram escolhidas não só pelo facto de nunca terem sido mostradas em Portugal - algumas peças desta série em progresso, “L’Innomable Feuille de...”, foram incluídas na mostra “Nocturno” (Fundação Eva Klabin, Rio de Janeiro, 2007) -, mas também, sobretudo, por confrontarem o espectador com um problema ético - a dimensão dos objectos, instalados num estreito corredor, é suficientemente tentadora para o público colocar a hipótese de acontecer ali um crime, mesmo não sendo praticado por si ( já depois deste texto estar escrito, aconteceu, de facto, o roubo de uma das esculturas, por coincidência a publicada nesta página).

A questão que se coloca, e também é a formulada por Bresson no seu filme, relaciona-se, portanto, com a propriedade. E recorda-nos Stirner: “A sociedade exige que os seus membros a não ‘ultrapassem’ e se rebelem, que permaneçam ‘adentro dos limites da legalidade’ ou seja, que só se permitam aquilo que lhes é permitido pela sociedade e pelas suas leis.” No seus escritório e atelier, onde tem também, há anos, um cartaz de “Pickpocket”, Chafes convive diariamente com um frase do realizador, quase um aforismo, inscrita sobre pequenas placas: “ Le vrai est inimitable, le faux est intransformable - “O verdadeiro é inimitável, o falso é intransformável.” Como chegar a essa essência, sem, contudo, perder a soberania?

Colocadas sobre plintos cinzentos com as dimensões do livro editado - cinzento que é também o dos primeiros filmes de Bresson -, cada escultura de Chafes aparenta ser o resultado de uma moldagem feita directamente sobre barro; essa é uma ilusão que a presença de uma fotografia, a preto e branco, na proximidade de cada peça ajuda a reforçar: as imagens mostram um grande plano dos objectos na mão do escultor. É necessário saber cada obra é minuciosamente talhada e lixada, sendo depois passada a bronze, para se perceber que é ela que obriga a mão a adaptar-se à sua forma e não o contrário. Existe, portanto, uma relação de proximidade com o desenho, sugerida por toda uma série de torsões, dobras, cortes, concavidades, igualmente visíveis em trabalhos sobre papel realizadas pelo artista. Imagens negativas, distorcidas, de corpos indefiníveis: são sombras, estas esculturas. E, por extensão, neste caso, sombras de um crime, o praticado por um carteirista.

A escolha de Chafes feita por João Miguel Fernandes Jorge para “Pickpocket” surge na continuidade de outros trabalhos feitos pelo artista,

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os¬Mau ☆Medíocre ☆☆Razoável ☆☆☆Bom ☆☆☆☆Muito Bom ☆☆☆☆☆Excelente

Nesta série de Themlitz estamos num domínio onde não há certezas, apenas a constante interrogação do que pode ainda acontecer

Cada escultura de Chafes aparenta

ser o resultado de uma moldagem

feita directamente sobre barro

AGENDA CULTURAL FNACentrada livre

APRESENTAÇÃO AO VIVO LANÇAMENTO EXPOSIÇÃO

EXPOSIÇÃO

O ARQUIVO DE STANLEY KUBRICKUma viagem pelo universo de um dos cineastas mais importantes do século XX

LANÇAMENTO

O QUE DARWIN ESCREVEU A DEUS E OUTRAS CARTAS IMAGINÁRIASde José Jorge LetriaApresentação por Miguel Real

Apoio:

AO VIVO

MACACOS DO CHINÊSRuídos Reais

AO VIVO

LUISA AMAROMeditherranios

AO VIVO

DOISMILEOITOdoismileoito

07.03. - 06.05.2009 FNAC VASCO DA GAMA

10.03. 18H30 FNAC CHIADO11.03. 21H30 FNAC ALFRAGIDE

14.03. 17H00 FNAC COLOMBO21.03. 17H00 FNAC CASCAISHOPPING

06.03. 22H00 FNAC NORTESHOPPING07.03. 17H00 FNAC GAIASHOPPING07.03. 22H00 FNAC BRAGA

13.03. 18H00 FNAC STA. CATARINA13.03. 22H00 FNAC MAR SHOPPING15.03. 17H30 FNAC VISEU

09.03. 18H30 FNAC CHIADO

06.03. 21H00 FNAC CASCAISHOPPING07.03. 19H00 FNAC COLOMBO

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30 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

Top BulhosaFicção

O Assassino InglêsDaniel SilvaBertrand

A Solidão dos Números PrimosPaolo GiordanoBertrand

Sinto MuitoNuno Lobo AntunesVerso de Kapa

O LeitorBernhard SchlinkAsa

Vendedor de SonhosAugusto CuryLivros d’Hoje

E agora, Obama?Carlos SantosEsfera do Caos

Bom PortuguêsA.A.V.V.Porto Editora

Uma Pequena História do MundoE. H. GombrichTinta da China

Mude a Sua Vida em Sete DiasPaulo MckennaLua de Papel

A Razão dos AvósDaniel SampaioCaminho

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Não Ficcção

Ficção

Trivial PursuitSem preocupações cronológicas ou exigências estilísticas, Vikas Swarup compõe uma série de quadros, ao jeito de cenas teatrais ou “cuttings”. Helena Vasconcelos

Quem Quer Ser BilionárioVikas Swarup(tradução de Teresa Curvelo)Edições Asa, €15

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Com grande alarido, um carro de polícia pára em frente a uma porta. Arrombam-na, prendem o jovem Ram Mohammad Thomas, perante a indiferença da vizinhança, levam-

no para a esquadra e torturam-no. A cena passa-se em Dharavi, o maior bairro de lata de toda a Ásia. A razão da detenção é, no mínimo, caricata: Ram, o mais pobre entre os pobres, acabou de ganhar mil milhões de rupias e as autoridades - manipuladas por uma cadeia televisiva - recusam-se a acreditar que um simples criado de mesa, sem instrução nem preparação, possa ter sido capaz de responder às obscuras,

díspares e complexas perguntas num concurso como os que inundam os média, à escala global.

A ironia desta história é transparente: numa altura em que o mundo está a braços com uma crise económica gigantesca, graças sobretudo aos grandes lucros obtidos por alguns tubarões de forma menos lícita, a injustiça da punição de um pobre diabo, que se limitou a acertar por pura sorte, é um isco demasiado apetitoso.

A sorte de Ram, o “everyman” em que todos nos revemos, interessa-nos sobremaneira. É essa, também, a reacção de Smita Shah, advogada dos direitos humanos que resgata Ram da prisão, exigindo, no entanto, que ele lhe explique a forma como conseguiu vencer todas as etapas do concurso. A justificação, contida nas várias histórias da sua atribulada vida, remete para a chave das questões e constitui a trama do livro. Cada capítulo, que equivale ao montante de cada resposta certa - de mil a um milhão - recria as etapas do concurso e refere os episódios da dramática, e por vezes hilariante, existência do protagonista.

Sem preocupações cronológicas ou exigências estilísticas, Vikas Swarup compõe uma série de quadros, ao jeito de cenas teatrais ou “cuttings”, o que poderá explicar, em parte, o sucesso de “Slumdog Billionnaire” à adaptação cinematográfica que, como é sabido, arrebatou Óscares e outros prémios e tem sido entusiasticamente louvada.

Ram, o rapaz abandonado à nascença em Pahargani, é recolhido por um padre, arranja amigos e inimigos, trabalha desde criança para, entre outros, um espião australiano e uma estrela de cinema, sofre o abandono, a fome e os mal tratos de um menino da rua, anda em bolandas entre Deli,

Agra e Mumbai, apaixona-se por uma jovem prostituta, torna-se

guia ilegal de turistas no Taj Mahal,

acompanha fielmente

o seu amigo Salim e

ainda tem tempo para ajudar quem mais precisa, mantendo sempre o sorriso, o bom senso e uma capacidade de resistência invulgar.

O autor deste fábula moderna é um proeminente diplomata que se tem aventurado na ficção, confessando abertamente a sua predilecção por thrillers e pelo universo fantástico, e por vezes ridículo, da Bollywood indiana.

“Quem Quer Ser Bilionário?” - “Q&A” na versão original - revela exactamente os seus gostos. A acção oscila entre a inverosímil e sentimental estética do cinema indiano e um realismo cru ocidentalizado e recuperado de páginas de autores como Dickens e Rudyard Kipling (recorde-se a figura do órfão Kim na história do mesmo nome), sem esquecer a influência do magnífico escritor indiano R. K. Narayan, especialista em fábulas ternas e simples, atravessadas por um humor subtil. De notar, também, o ritmo cartoonesco de algumas cenas e as figuras-tipo clássicas: a prostituta boazinha, o padre bom versus o padre perverso, o homem rico infeliz e amaldiçoado por uma paixão funesta, a diva de cinema decadente e suicidária, o amigo fiel (Salim) devorado pelo juvenil encantamento do cinema, o jovem autista que fala como um oráculo e o rapaz órfão, pobre e esforçado que, numa versão masculina de Cinderela - com fada madrinha que, tal como no conto popular, chega do passado para o salvar - é bafejado pela sorte, de uma forma milagrosa. Mas o autor não se fica por aqui: mistura habilmente temas contemporâneos, tais como os problemas sociais nos bairros pobres, a pedofilia, o autismo, a prostituição, o incesto, o alcoolismo, a mutilação de crianças para fazer delas pedintes, as condições miseráveis dos orfanatos, a batalha para ganhar o pão de cada dia, a pressão dos gangs, a guerra indo-paquistanesa e temperando este rosário de horrores com a força e o poder do humor, da poesia, da coragem, do amor, da lealdade e da amizade.

Swarup consegue traçar, com a sua prosa escorreita, um retrato fiel da Índia, um país onde uma vitória honesta é encarada com cepticismo e desconfiança, a polícia maltrata os presos e em que a maior parte da população vive abaixo do limiar da pobreza. Uma visão que vai ao encontro da apreciação muito crítica e cáustica de, por exemplo, V.S. Naipaul. Mas, na verdade, Vikas Swarup mostra também um outro lado da maior democracia do mundo: um lugar de oportunidades, pleno de fantasia e criatividade que, nas palavras do autor, é um grande país que resiste bem à crise económica e continuará a desempenhar um papel decisivo, a nível mundial.

No que diz respeito à Literatura (recorde-se que o último Booker também foi para um escritor indiano, Aravind Adiga) não faltam exemplos e nada mais há a acrescentar. Viva o novo herói ecuménico, Ram Mohammad Thomas, com o seu nome hindu, muçulmano e cristão.

O manuscrito perdidoTony Bellotto criou um detective que é um anti-herói: a imagem de Bogart foi desconstruída e remontada com talento e humor nas ruas de São Paulo. José Riço Direitinho

Um Caso com o DemónioTony BellottoQuetzal, € 15,95

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Depois de a Bertrand ter publicado no ano passado o romance “Um Caso de Espíritos” -(cronologi-camente é o terceiro da série do detective

Bellini, personagem criada pelo brasileiro Tony Belloto (São Paulo, 1960), o mediático guitarrista da banda rock “Titãs” - a Quetzal publica agora “Um Caso com o Demónio”, o segundo da série.

Para os leitores que ainda não conhecem o detective Remo Bellini, interessa dizer que vive em São Paulo, trabalha para uma agência que é comandada por Dora Lobo (“o Lobo” para os “muito íntimos”), ouve blues sempre que pode, é divorciado, alimenta-se pelos botecos de São Paulo, come sempre sanduíche de salame com provolone acompanhada de um copo de uísque, tem uma má relação com o pai (“um brilhante criminalista mas um pai pífio”), é um romântico solitário.

“A Cabeça de Fernando Pessoa”, de Luís Filipe Cristóvão (Torres Vedras, 1979), vai ser apresentado na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, na quinta-feira, às 18h30. Luís Filipe Cristóvão é um pseudón-

imo que escreveu poesia e assina também o blogue 1979 www.milnove79.blogspot.com. “O seu ente real prefere ser tratado como gestor criativo na área do livro”, lê-se na nota biográfi ca.

Lançamento

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A Tony Bellotto interessa contar os pequenos dramas humanos

Swarup consegue traçar, com a sua prosa escorreita, um retrato fi el da Índia

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SÁB *7�'��18:00 SALA SUGGIA | PAÍS TEMA BRASIL

��-�����,������&3�.�-��.�ORQUESTRA NACIONAL DO PORTO

O brasileiro António Meneses venceu o Concurso Internacional Tchaikovski de Moscovo e ficou internacionalmente conhecido após a gravação do Duplo Concerto de Brahms sob a direcção de Karajan. O violoncelista foi responsável pela recuperação de importantes obras do repertório brasileiro, nomeadamente a Fantasia de Villa-Lobos.

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��������,���:,�;��Concerto nº 1 para violonceloe orquestra,����������$����#������$� �����&����:.����%�������para violoncelo e orquestra������,��$�����Sinfonia nº 2

QUA **�'��0��22:00 SALA SUGGIA

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O nome de Wayne Shorter confunde-secom a história do jazz moderno, manifestando-se nalgumas das formações mais influentes e definidoras do hard bop. Compositor e solista de extrema originalidade, está entre os grandes do jazz, explorando com este quarteto um valioso repertório construído ao longo de uma carreira de 50 anos.

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Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009 • 31

Em “Um Caso com o Demónio”, e quando se pensa que o crime a ser desvendado é o que ocupa as primeiras páginas do livro (uma adolescente baleada num colégio para a classe média alta) e que passa a ser uma imagem recorrente na mente de Bellini - “uma menina de dezassete anos, sentada numa privada, com a calcinha nos calcanhares e um buraco na testa” - a agência é contratada por um detective americano para descobrir o paradeiro de um manuscrito inédito de um romance policial de Dashiell Hammett, que supostamente se encontra há décadas no Brasil nas mãos de um “playboy” dos anos 40.

Bellini parte para o Rio de Janeiro com o detective americano, e hospedam-se no mítico Copacabana Palace, ainda hoje frequentado pelo que resta da antiga aristocracia carioca. O americano não se cansa de lhe dizer: “Você ainda não é um detective, Bellini. Você é apenas um dos disfarces de Dora Lobo.”

E a verdade é que este Bellini não é um detective canónico (pelo menos pertencente ao cânone anglo-saxónico dos detectives imortalizados no cinema pela figura de Bogart), não é um duro, não é machista, não tem a auto-estima e a auto-confiança nos píncaros (antes pelo contrário), ele é quase um anti-herói. Ele cumpre uma função que ultrapassa o desvendar dos crimes - que de uma maneira ou de outra acabam por ser quase um assunto acessório -, o que ao autor Tony Bellotto interessa contar são os “pequenos” dramas humanos, as histórias que não vêm nos jornais, as tragédias das existências quotidianas em grandes metrópoles como São Paulo ou o Rio de Janeiro, a solidão, a violência dissimulada pela hipocrisia social. (E nisto assemelha-se muito a outro grande autor brasileiro: Rubem Fonseca.)

O que torna esta personagem

EnsaioWalden ou A Vida nos BosquesHenry David Thoreau(tradução de Astrid Cabral)AntígonaPublicado em 1854, este livro parece ser cada vez mais radical e

moderno: “Há um certo tipo de cépticos que às vezes me fazem perguntas deste género. Se acho que posso viver alimentando-me exclusivamente de vegetais. E eu, para atingir a raiz do assunto de uma vez por todas - porque a raiz é a fé - acostumei-me a responder-lhes que posso até viver à base de pregos. Se não podem entender isto, não podem entender grande parte do que tenho a dizer.”

FicçãoO Regesso do SoldadoRebecca West(tradução de José Miguel Silva)Relógio D’ÁguaEm 1916, em plena I Guerra Mundial, o Capitão Baldry regressa a casa,

vindo da linha da frente. Não é um regresso feliz, pois o soldado vem amnésico. Esperam-no três mulheres: a esposa dedicada, a prima favorita e uma paixão juvenil.

O Outro EuDaphne du Maurier(tradução de Maria Franco e Cabral do Nascimento)Relógio d’ÁguaComo outros romances da prolixa du

Maurier, também este foi transformado em filme, mas não por Hitchcock. A história não deixa de ser hitchockiana e é uma variação em torno do tema do duplo: um académico inglês e um aristocrata francês, inquietantemente parecidos, conhecem-se por acaso numa estação de comboios, conversam, bebem e acabam por trocar as respectivas identidades.

PoesiaPoemas, Sonetos e BaladasVinicius de MoraesQuasiComeça com “Soneto de fidelidade” e termina com o “Soneto de

separação” e muitos leitores os terão na memória. Vinicius (1913-1980) deve ser ainda o mais popular poeta do Brasil e esta recolha, publicada originalmente em 1946, “é, decerto, o mais importante e o mais belo livro” do autor, segundo Eucanaã Ferraz.

Saídas

Henry David Thoreau

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32 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

Hermano ficou sozinho com a lembrança de Bonobo, o estojo de lápis Caran d’Ache e o medo, com eles roteirizando a briga falhada. Sem iludir o facto, é da impossibilidade que o autor trata. Por exemplo, querer amar e não ser capaz. O blasé urbano é uma máscara como outra qualquer.

“Mãos de Cavalo” foi escrito a dois tempos: o tempo do rapaz, e o do homem. No lapso de um dia, o cirurgião alpinista escava o passado: tinha 15 anos, a Esplanada estava longe de ser um bairro, Hermano mantinha intacto “um resquício de excitação esperançosa, marcada por superstições e resoluções”. Agora é um profissional bem sucedido, com tédio da família: a mulher cita Ballard, ele faz abdominais. No entretanto, conjectura com o Cerro Bonete boliviano (existe outro na Argentina), mítica montanha intocada, ou quase, sem “estrada, cidade, porra nenhuma. O desgraçado fica na borda de uma cratera vulcânica com uns seis ou sete quilômetros de diâmetro”. A fala é de Renan, subir aos picos é a cara dele, mas Hermano assume o “transfert”.

Como quem não quer a coisa, porque a prosa dúctil e pouco adjectivada subtrai ênfase ao discurso, Galera faz um “mix” perfeito entre memorialismo (na acepção clássica do termo) e deriva pós-modernista. Impressiona o domínio da linguagem, aguentando o tom sem falha rítmica, mesmo nos períodos longos, nos quais disseca a trama com precisão de relojoeiro: da bicicleta Caloi Cross aro 20 às coordenadas do Google Earth nada surge fora de contexto, o que inclui provas de “downhill” (ciclismo de montanha), cenas de sexo e preocupações ambientais, porque a mulher, artista plástica, fez uma instalação a partir do transplante de uma figueira, coisa que ninguém faz sem um exaustivo protocolo prévio.

A todas essas a escrita não derrapa, adequando-se a cenografia a cada nova situação: “Levou ela até o Lami, estacionou sobre a areia num recanto secreto [...] e passaram o resto da madrugada avançando limites na história pessoal e no corpo do outro [...] como se isso pudesse fazer desmoronar aquele estado de felicidade quase eufórica que vibrava no interior do carro e parecia depender de um delicado equilíbrio de fatores.”

Após o triunfo da desconstrução e das alegorias dos anos 1980 e 90, as gerações novíssimas (o primeiro livro de Daniel Galera é de 2001) regressam à divisa de Forster: “the novel tells a story”. Digamos, sem favor, que o autor de “Mãos de Cavalo” o faz com brio.

cativante, para além do sentido de humor, é o facto de ter a fraqueza onde o leitor espera que haja uma capa coriácea. O detective Bellini tem por vezes quase pena de si próprio: “Voltei [atrás] muitos anos no tempo, quando era um jovem e idealista advogado recém-formado, recém-casado e recém-contratado como assistente do seu próprio pai, a temível raposa dos tribunais de São Paulo. De lá para cá, perdi a juventude, o idealismo, a carreira e o casamento.”

Bellini faz apenas o “trabalho sujo” no caso da demanda pelo manuscrito de Hammett. Procura, por entre uma galeria de personagens ímpares, aquele que nos anos 40 foi o “playboy” que se relacionou com a prostituta americana que uma manhã, depois de sair do meio dos vapores alcoólicos da cama do escritor Dashiell Hammett, levou consigo um manuscrito que estava ali à mão, sem saber porquê. Mas ao contrário de um detective “normal”, Bellini não chega ao fim do caso, pois a sua chefe Dora Lobo entra em acção e manda-o de volta a São Paulo. Sendo

ela quem colhe os louros do caso.A escrita de Bellotto, com

descrições bastante cinematográficas, é pontuada pelo humor e pela ironia crítica em relação ao Brasil. O detective Bellini nunca se cansa de proferir frases como esta: “Em questões de violência e drogas somos uma das grandes potências mundiais”, ou ainda: “Dificilmente alguém vai preso neste país, você sabe muito bem. O sujeito pode matar, roubar, seqüestrar, que sempre se dá um jeito.”

A imagem do crime que abre o romance - a rapariga assassinada na casa de banho de um colégio - não abandona a cabeça de Bellini (provavelmente também não a do leitor!). E regressado a São Paulo, ele recebe um pedido de ajuda de uma “irrequieta e sensual” jornalista para a ajudar a solucionar o mistério. Esse caso leva-o, entre outros, a ter um encontro com um demonólogo que tem uma cadela chamada Ângela...

Este é um livro onde o prazer da leitura é elevado a um lugar reservado a poucos.

A educação de Hermano

Entre memorialismo e deriva pós-modernista, uma história de iniciação, aprendizagem e busca de identidade. Eduardo Pitta

Mãos de CavaloDaniel GaleraCaminho, €14,98

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Quando se fala da renovação do português escrito no Brasil, a linha de fronteira é 1922, o ano da Semana de Arte Moderna de São Paulo. À época, a enfática oposição

de Mário de Andrade à matriz clássica da linguagem, patente no prefácio de “Paulicéia desvairada”, trazia consigo o propósito de sabotagem do português “solene” por interposta transgressão sintáctica. Nada disto é novidade, mas talvez ajude a explicar a progressiva evolução do português literário do outro lado do Atlântico, tendo por balizas Machado de Assis e Daniel Galera com, de permeio, as peculiares declinações de Érico Verissimo, Clarice Lispector, Rubem Fonseca, Hilda Hilst, Valêncio Xavier, Bernardo Carvalho e outros. Vale o intróito porque “Mãos de Cavalo”, de Daniel Galera (n. 1979), pode suscitar resistência por parte do leitor menos afeito às mil possibilidades da língua.

Daniel Galera ainda não tem 30 anos. Nasceu em São Paulo, vive em Santa Catarina, mas passou grande parte da vida em Porto Alegre; foi na capital do Estado do Rio Grande do Sul que fundou a editora Livros do Mal; entretanto, publicou três romances e uma colectânea de contos (alguns destes livros estão traduzidos na Argentina e em Itália); traduziu autores tão diferentes como Irvine Welsh ou Michael Coleman; antes e em simultâneo colaborou com regularidade no COL, o fanzine electrónico, melhor dito, o Mailzine, “sem imagens, sem formatação, sem html: texto puro”.

Chegou agora a Portugal o penúltimo livro, precisamente “Mãos de Cavalo”, romance de iniciação, aprendizagem e busca de identidade, com acção centrada em Porto Alegre e momentos deveras conseguidos: “Cada vez que levava um golpe no rosto, simulava o impacto jogando a cabeça com força para o lado, e o sangue espirrava sobre a porta do banheiro ou o vidro do box. [...] A porta estava coberta de respingos vermelhos. Tinta vermelha diluída escorria por seu pescoço e tórax. A pia estava toda vermelha. O chão estava vermelho.”

Traduções clássicasA obra de Poe continua sendo lida e popular. Mário Santos

O Mistério de Marie Rogêt/O Barril de AmontilladoEdgar Allan Poe(tradução de Jorge de Sena)Relógio D’Água, €12

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O CorvoEdgar Allan Poe(traduções de Fernando Pessoa e Machado de Assis)Relógio D’Água, €12

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Daniel Galera: o livro pode suscitar resistência ao leitor menos afeito às

mil possibilidades da língua

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SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL · METROPOLITANA · CULTIVARTE

4 de Março, 21h00 · Teatro São Luiz – Jardim de InvernoQUARTETO DE JAZZ MICHEL PORTAL

7 de Março, 22h00 · Cinema São JorgeMÍSIA, MICHEL PORTAL, BRUNO FONTAINEORQUESTRA METROPOLITANA DE LISBOA

11 de Março, 21h00 · Teatro São Luiz – Jardim de InvernoMICHEL PORTAL, AUGUSTIN DUMAY, VANESSA WAGNER

FESTIVALTRANS

PORTAL

ESPECTÁCULOS PARA M/3 BILHETES À VENDAMAIS INFORMAÇÕES EM SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPALWWW.TEATROSAOLUIZ.EGEAC.PT CINEMA SÃO JORGEWWW.OML.PT ONDAJAZZ · TICKETLINE

CO-PRODUÇÃO

4 A15 DE MARÇO DE 2009

TEATRO SÃO LUIZCINEMA SÃO JORGEMETROPOLITANAONDAJAZZ

Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009 • 33

Afirma Poe, em “The Philosophy of Composition”, um memorável texto de 1846 no qual ensaia uma análise do seu processo de “escrita criativa”, que foi sua intenção ao escrever “O Corvo” alcançar um poema que não aborrecesse o gosto popular e não ofendesse o gosto da crítica.

Na verdade, esta qualidade é extensível a boa parte (a ficcional, em particular) da obra de Edgar Allan Poe (1809-1849). Que continua sendo obra lida e popular, comprovam-no as regulares reimpressões de livros seus em Portugal como em todo o lado. Que exerceu (e ainda exerce) fundo fascínio no gosto crítico e especializado, comprovam-no as “comemorativas” edições da Relógio D’Água (passa o bicentenário do nascimento do autor). Atente-se no nome dos já “clássicos” tradutores: Machado de Assis, Fernando Pessoa e Jorge de Sena.

“O Mistério de Marie Rogêt” é a segunda (a primeira sendo “Os Crimes da Rua Morgue”) das três histórias de Poe protagonizadas por Auguste Dupin, personagem que não deixou de “angustiar” (por causa da influência) todos os autores de histórias policiais posteriores. Partindo de um crime real ocorrido em Nova Iorque, Poe situa a história em Paris e dá-nos um breve compêndio do método implacavelmente analítico e cerebral de Dupin para resolver um crime. Pura e dura exposição de um raciocínio, pode ser, enquanto “história”, um tanto árida para

mentes menos lógicas. “O Barril de Amontillado” é a narração breve e divertida de uma terrível e fria vingança. Abstemo-nos de revelar o que acontecerá ao objecto dessa vingança. São traduções juvenis de Sena (e não ficaria mal referi-lo na edição), publicadas pela primeira vez há mais de 60 anos, e isso nota-se.

“O Corvo”, um poema narrativo de tonalidade “gótica” com 108 versos (mas é provável que esta medida, em acordo com a brevidade proposta e cultivada por Poe, pareça já extensa a um leitor moderno), é seguramente o poema de Poe mais universalmente conhecido. Se os franceses, por exemplo, puderam lê-lo em traduções de Baudelaire e Mallarmé, os portugueses leram-no (e podem continuar a fazê-lo) nas traduções de Fernando Pessoa e Machado de Assis, que a presente edição retoma. Várias vezes reimpressa depois da sua primeira publicação na revista “Athena” em 1924, a tradução de Pessoa, “ritmicamente conforme com o original” (como se fazia questão de assinalar na “Athena”), é a nossa preferida. Justamente pela maior conformidade formal com o poema de partida. Machado de Assis, prosador genial mas poeta medíocre, afasta-se irremediavelmente da estrutura original do poema de Poe. Além de “O Corvo” (texto original e duas versões portuguesas), o volume inclui (em “anexo”) outro poema de Poe, “Annabel Lee”, e a não menos conhecida tradução que dele fez Pessoa.

Engenho trivial

Uma história demasiado sofisticada contada em linguagem demasiado trivial. Pedro Mexia

NatáliaHelder MacedoPresença, €13

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A capa é um mau prenúncio, mas não se esperava que Helder Macedo fizesse jus a uma capa tão desastrosa. Infelizmente faz. Depois de quatro romances que se

lêem com gosto (“Partes de África”, 1991, “Pedro e Paula”, 1998, “Vícios e Virtudes”, 2000, “Sem Nome”, 2005), Macedo cai a pique. “Natália” tenta a quadratura do círculo: contar uma história sofisticada numa linguagem o mais chã possível. E nada joga, porque enquanto os devaneios psicanalíticos se enovelam cada vez mais, a prosa voluntariamente vulgar torna a leitura penosa. Um narrador que escreve um português de subsistência não suporta as crueldades mentais a que Macedo se entrega. E a desadequação é tão grande que a narrativa implode.

Natália avisa: “Agora estou a escrever o que me vem à cabeça, sem pretensões literárias”, e ao longo de 200 páginas seguimos os seus diários, sempre naquele registo que ela própria qualifica como “ver no que isto vai dar”. A primeira metade do romance apresenta factos e relações entre personagens, e ainda é potável. Mas depois vêm as intrincadas perversidades e as histórias alternativas. Natália tem dúvidas sobre o seu passado, sobre quem eram de facto os seus pais, supostamente um casal antifascista assassinado em Argel, e alimenta-se das histórias que ouve ao avô, a sua figura de referência. Já adulta, descobre uns papéis e umas

fotografias, e percebe que afinal talvez ninguém seja exactamente quem diz que é.

Então conhece Fátima, cujo passado é igualmente obscuro, e em quem talvez resida a chave do enigma. Rapidamente se estabelece entre as duas uma relação quase vampiresca. Elas, para usar a linguagem técnica que Macedo emprega, sexualizam as carências uma da outra, e retomam aquela “generosidade vingativa” que define as relações humanas neste romance. Contados por Natália, os episódios são enfadonhos e obedecem a uma sintaxe confusa: “Éramos mulher e homem, mãe e filha, eu também me tornei na mãe da Fátima, no pai e no marido e no avô da mulher que eu amava, a Fátima era o corpo feminino de todos os meus desejos, era o corpo do desejo metamorfoseado no meu corpo de mulher, o corpo em que eu era a mulher da minha amada porque também era o corpo da mulher que ela amava e que eu amava” (pág. 156). Que esta fusão feminina acabe com uma cena lésbica de “madona lactante”, digna da famosa “sopa de

mamas” de José Rodrigues dos Santos, é um triste sinal.

Não é a primeira vez, e não será a última, que Helder Macedo escreve histórias perversas sobre a identidade. Mas um romancista culto, dado a divagações camonianas e parêntesis sobre Melanie Klein, não aguenta uma personagem tão trivial, que diz “pronto” e que por pouco não diz “é assim”. Para usar uma linguagem trivial: não bate a bota com a perdigota. A reconstituição e falsificação do passado é um belo tema. A manipulação dos outros nessa odisseia é um tema difícil. Mas tanto engenho exige alguma clareza de escrita, aqui impedida pela exasperante e incipiente coloquialidade. Aliás, vem tudo explicado nas próprias páginas do romance: “Há aquela velha e sábia norma popular que se devia ensinar em todos os cursos de literatura: ‘O que se diz não se escreve’. Ergo, não deveria ter escrito aquilo. Pelo menos daquela maneira, tal como foi dito. Por outro lado, se o que se diz não se escreve, é porque não tem importância” (pág. 144).

Edgar Allan Poe criou Auguste Dupin, personagem que angustiou todos os autores de histórias policiais posteriores

Helder Macedo

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34 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

História

Uma vida pela sobrevivência de Israel

A obra assume a forma de relatos curtos, seguindo a vida de Sharon, tão íntima e intensamente ligada à História de Israel. General Loureiro dos Santos

Conversas Íntimas com Ariel SharonUri DanPedra da Lua, €23,51

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O livro “Conversas Íntimas com Ariel Sharon” é escrito por um dos seus conselheiros mais próximos. O jornalista Uri Dan, seu autor, apenas com 19 anos,

encontrar-se-ia com o veterano da guerra da independência Ariel Sharon em 1954, quando, com 26 anos, era tenente-coronel comandante da única unidade de pára-quedistas de Israel.

Começou a acompanhar Sharon, como correspondente do semanário militar “Bamahané”. Esteve junto dele em todas as campanhas que se seguiram, correndo riscos semelhantes. E tornaram-se amigos inseparáveis, em sintonia sobre os grandes problemas com que Israel se foi confrontando. Ao longo do livro, tem-se consciência da forte ligação que unia os dois homens, não se sabendo muitas vezes quem influenciava quem.

A obra assume a forma de relatos curtos, seguindo a vida de Sharon, tão íntima e intensamente ligada à História de Israel. Por vezes, as recordações do autor acerca dos momentos vividos em comum são transpostas na forma de entrevistas, para melhor compreensão do leitor.

O livro está pleno de ressonâncias bíblicas. Os heróis da multi-milenar História do povo judeu perfilam-se, sempre presentes, nos diversos relatos e nas variadas conversas. Os lugares onde esses heróis viveram e combateram são permanentemente citados. Umas vezes para mostrar a legitimidade da sua pertença a Israel, como a frequente referência à Judeia Samaria, em vez de Cisjordânia. Outras, como símbolo do direito dos judeus a exercerem a soberania no território, caso do monte do Templo, para Sharon “a base fundamental da soberania de Israel sobre Jerusalém”. Ou então, durante a campanha do Suez, a frase proferida por um soldado, perante o desembarque de Ariel Sharon e Moshe Dayan na

margem ocidental do canal, na sequência da vitoriosa manobra do primeiro - “Moisés está de volta ao Egipto”.

A narração quase assume o lugar de um conjunto de “livros bíblicos”, nos quais o herói, o “patriarca”, o “juiz” é Sharon: Arik, o “Rei dos Judeus”, nome que o povo lhe chamou, ou Ariel, o “Leão de Deus”, cognome com que o autor o exalta.

Da História do Estado Judeu moderno, tudo está lá: a Guerra da Independência e as convicções de que era tempo de tudo sacrificar; a Campanha de Suez e a “guerra” de represálias, a cargo das forças de Sharon; a Guerra dos Seis Dias e o brilhantismo táctico dos generais de Israel, com Sharon à frente; a criação do Likud, do qual Sharon seria um dos mais ilustres membros, odiado por muitos dos seus pares, invejosos do seu gigantesco perfil, da sua indómita coragem, da sua infinita persistência, da sua inquebrável determinação; a Guerra de Yom Kippur, onde ficou demonstrada a sua opinião sobre a falsa segurança que a Linha Bar-Lev, qual Linha Maginot, dava aos israelitas, e se confirmou o enorme talento estratégico operacional de Arik; o papel de Ariel no ataque preventivo às instalações nucleares iraquianas do Iraque; a invasão do Líbano que obrigou Arafat a sair da Palestina; a defesa veemente de Sharon, inclusive na justiça, pelo facto de lhe terem assacado culpas pelos massacres de Sabra e Shatila; as dúvidas sobre as formas de combater o terrorismo; a sua ascensão a primeiro-ministro como efeito da visita ao monte do Templo; o combate ao Hamas; a constituição do Kadima e a retirada de Gaza.

Mas também encontramos no livro o homem do campo, o agricultor que considera o povoamento da Judeia Samaria como uma questão vital para consolidar o Estado de Israel e que elegia a cooperação na irrigação e fertilização dos solos áridos de toda a região como forma mais indicada para tecer um conjunto de interesses cruzados que ligassem Israel aos países árabes e garantissem a convivência indispensável à paz. Assim como perpassam os problemas familiares, as conversas com os amigos, o sofrimento e a dor.

Ao longo do livro, fica clara a grande contradição de Sharon quanto aos desígnios estratégicos que teve para a sua pátria. Por um lado, na maior parte da sua vida, concebeu e

conduziu sucessivas acções tácticas que iam afirmando o objectivo estratégico de criar o Grande Israel. De todas elas, aquela que sempre considerou como a questão essencial foi o reforço do povoamento judeu do moderno Estado, particularmente da Judeia Samaria, avançando com a instalação de colonatos nesta área e em Jerusalém Leste, e impulsionando continuamente o seu estabelecimento e reforço, sempre que se encontrava investido de autoridade para o fazer. Embora invocando por vezes razões de segurança, a finalidade mítica do Grande Israel está sempre presente - nos actos tácticos no terreno, nos incentivos psicológicos e morais, nos símbolos invocados.

Segundo o autor do livro, a partir de 2003, “a ideia de abandonar certos territórios para fazer progredir a paz faz o seu caminho na mente de Sharon”. É uma grande viragem no seu pensamento, que resultou da avaliação efectuada à luz das realidades no terreno e das relações de forças regionais e globais. Constatou o insucesso do povoamento que sempre defendeu e promoveu, uma vez que o factor demográfico tende a evoluir progressivamente para o aumento da população palestiniana em relação à judia. E ainda a inevitabilidade de Israel ser obrigado a ter, cada vez mais, atenção à vontade dos EUA, a propósito da qual Sharon se lamentava amargamente do facto de os Estados terem cada vez menos independência...

Ariel, que criou uma aura de credibilidade e de respeito pelas acções firmes e determinadas de toda a sua vida em defesa dos interesses de Israel, tinha estatura suficiente para liderar com êxito a inversão estratégica que protagonizou, como demonstrou, aliás, com a retirada de Gaza, de onde muitos colonos foram obrigados a sair à força pelo Exército israelita.

Mas agora, sem Ariel Sharon, será bem mais difícil levar a efeito a nova estratégia por si iniciada. Até porque estão bem sólidos no terreno e nos espíritos de muitos judeus os efeitos das sucessivas medidas tácticas de que ele foi autor, que faziam subentender, se é que não indicavam com nitidez, o caminho para o Grande Israel. E principalmente porque a insegurança sentida presentemente por judeus e palestinianos os torna reféns do extremismo e dos extremistas.

Sem a ajuda da comunidade internacional, particularmente de uma acção rigorosa de árbitro, e não de jogador alinhado incondicional-mente com Israel, por parte do alia-do americano, será difícil encontrar

outro Arik.Sharon era uma figura rara. Pela sua coragem, pela sua

firmeza, pelo seu imenso talento táctico, e pela capa-cidade de fazer inverter o rumo da sua visão estraté-gica, de acordo com aqui-lo que a realidade acon-selhava.

Indispensável ler este livro.

Mas há truques. Já há portugueses que descarregaram a aplicação e estão a conseguir ler no iPhone ou iPod touch os excertos grátis dos livros em formato formato Kindle (AZW) que estão disponíveis

Isabel Coutinho

Ciberescritas

O futuro está mais pertinho

E aconteceu. Na quarta-feira foi lançada a aplicação Kindle para o iPhone e iPod touch na loja iTunes norte-americana. É gratuita mas só dá para ser descarregada por quem tenha conta nos Estados Unidos. Quem em

Portugal tentar descarregar essa aplicação no seu iPhone, depois de colocar os seus dados, recebe a mensagem: as suas compras só podem ser feitas na loja portuguesa. Mas há truques. Já há portugueses que descarregaram a aplicação e estão a conseguir ler no iPhone ou iPod touch os excertos grátis dos livros em formato Kindle (AZW) que estão disponíveis.

Esta nova aplicação permitirá aos donos de um Kindle, o leitor de livros electrónicos da Amazon.com (que só se vende nos Estados Unidos e desde o fi nal do mês passado tem uma nova versão, o Kindle 2) ler os livros também no iPhone ou no iPod touch. Os livros fi cam sincronizados em todos os dispositivos móveis. Se você não tiver o seu Kindle ao pé de si, mas tiver o seu iPhone não fi cará impedido de ler o livro que deixou em casa.

Isto signifi ca, está no “press release” da Amazon, que quem descarrega esta aplicação tem à sua disposição no iPhone ou iPod touch uma oferta de mais de 240 mil livros, dos quais 104 pertencem à lista dos 112 “best-sellers” do “New York Times”. E poderá com os dedos, utilizando o ecrã táctil destes dispositivos, ir fazendo a sua leitura. Também é possível adicionar bookmarks, ver as notas e os sublinhados.

Explicam também que é a tecnologia Whispersync que permite que haja sincronização entre o Kindle e os gadgets da Apple, de maneira que em todos os dispositivos de leitura apareçam as indicações da página do livro que se está a ler.

E esta aplicação permite também que se adapte o tamanho de letra ao pequeno ecrã do telemóvel ou leitor de Mp3.

“Estamos entusiasmados por lançar esta nova aplicação na App Store, a loja de aplicações da Apple, e acreditamos que os clientes vão gostar de ver como é fácil e divertido ler os livros em formato digital Kindle no seu iPhone e iPod touch”, afi rma no “press release” Ian Freed, vice presidente da Amazon Kindle. “A aplicação Kindle para o iPhone e iPod touch é uma óptima maneira de os clientes continuarem as suas leituras onde quer que estejam, quer seja na fi la no supermercado ou entre reuniões.”

Há algumas limitações (estavam à espera de quê?). Por exemplo, não se podem comprar e descarregar livros directamente através da aplicação do iPhone, é necessário utilizar um browser ou o Mobile Safari. Não se podem fazer buscas por palavras-chave, não se pode utilizar o text-to-speech que é permitido no Kindle (leitura do texto com voz de computador) quando o editor do livro o permite.

Mas é a cores! O Kindle é a preto e branco. Isto é o primeiro passo. Virão aí muitos mais.

[email protected]

(Ciberescritas já é um blogue http://blogs.publico.pt/ciberescritas)

Imagens da Kindle App para iPhonehttp://www.fl ickr.com/photos/shipstone/sets/72157 614790597974/detail/

TeleRead: Bring the E-Books Home http://www.teleread.org/2009/03/04 /fallout-from -kindle-software-iphonetou ch-150-used-kindles- soon-and-no -mobi-for -iphone touch-and-less-chance-of-epub/

Este espaço vai ser seu. Que fi lme, peça de teatro, livro, exposição, disco, álbum, canção, concerto, DVD viu e gostou tanto que lhe apeteceu escrever sobre ele, concordando ou

não concordando com o que escrevemos? Envie-nos uma nota até 500 caracteres para [email protected]. E nós depois publicamos.

EspaçoPúblico

O jornalista Uri Dan e Ariel Sharon (na foto) tornaram-se amigos inseparáveis

Cin

ema

Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009 • 35

Estreiam

O fi m das ilusões

É o fim do cinema de super-heróis tal como o conhecemos. Jorge Mourinha

Watchmen - Os GuardiõesWatchmenDe Zack Snyder, com Carla Gugino, Jeffrey Dean Morgan, Patrick Wilson, Patrick Wilson. M/16

MMMnn

Lisboa: Castello Lopes - Cascais Villa: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 16h20, 21h30; Castello Lopes - Loures Shopping: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h55, 16h10, 21h30; Castello Lopes - Loures Shopping: Sala 4: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 23h40; CinemaCity Alegro Alfragide: Sala 7: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 16h45, 21h, 00h15; CinemaCity Beloura Shopping: Cinemax: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 16h45, 21h, 00h15; CinemaCity Campo Pequeno Praça de Touros: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 17h15, 21h, 00h15; Medeia Fonte Nova: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h30, 18h, 21h30; Medeia Saldanha Residence: Sala 6: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 16h, 19h, 22h; UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 12: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h15, 17h30, 21h, 00h10; ZON Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 17h, 21h, 00h25; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h40, 17h, 21h, 00h15; ZON Lusomundo CascaiShopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 16h40, 21h, 00h30; ZON Lusomundo Colombo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 17h, 21h, 00h30; ZON Lusomundo Dolce Vita Miraflores: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 15h30, 18h30, 21h30 6ª Sábado 15h30, 18h30, 21h30, 00h30; ZON Lusomundo Odivelas Parque: 5ª 6ª Domingo 2ª 3ª 4ª 15h10, 18h30, 22h Sábado 13h, 17h, 21h, 00h20; ZON Lusomundo Oeiras Parque: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 17h, 21h, 00h25; ZON Lusomundo Torres Vedras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h50, 17h30, 21h, 00h25; ZON Lusomundo Vasco da Gama: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h55, 16h20, 21h, 00h15; Castello Lopes - C. C. Jumbo: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h10, 16h30,

21h40; Castello Lopes - Rio Sul Shopping: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 16h20, 21h30; Castello Lopes - Rio Sul Shopping: Sala 3: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 23h50; UCI Freeport: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 15h15, 18h25, 21h35; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h40, 17h10, 21h, 00h25; ZON Lusomundo Fórum Montijo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h15, 16h45, 21h, 00h20

Porto: Arrábida 20: Sala 16: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 14h10, 17h40, 21h05, 00h30 3ª 4ª 17h40, 21h05, 00h30; ZON Lusomundo Dolce Vita Porto: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 16h30, 21h, 00h30; ZON Lusomundo Ferrara Plaza: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 15h, 18h10, 21h20 6ª Sábado 15h, 18h10, 21h20, 00h30; ZON Lusomundo GaiaShopping: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 10h, 17h30, 21h 6ª Sábado 10h, 17h30, 21h, 00h20; ZON Lusomundo MaiaShopping: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 13h50 , 17h30 , 21h10 6ª Sábado 13h50 , 17h30 , 21h10, 00h30; ZON Lusomundo Mar Shopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 16h30, 21h10, 00h30; ZON Lusomundo NorteShopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 16h50, 21h, 00h45; ZON Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h20, 17h50, 21h20, 00h40; Castello Lopes - 8ª Avenida: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 16h10, 21h30; ZON Lusomundo Glicínias: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h50, 17h30, 21h, 00h35

É assim que os super-heróis morrem: em segredo, sem máscara, longe dos olhares do público que supostamente protegem. Mas estes super-heróis, reformados por ordem executiva, não são “os do costume”: estão longe de ser santos, deixaram os anos de combater o crime corroer a sua noção de justiça até nada restar a não ser uma mão-cheia de amargos de boca e amarguras existenciais para, no fim, todos se virarem contra eles e eles próprios perceberem que “a verdade, a justiça e o modo de vida americano” pelo qual lutaram são coisas muito mais flexíveis do que parecem à primeira vista.

Sejam bem-vindos ao reverso do sonho americano tal como concebido por Alan Moore, o escritor que virou o “comic-book” tradicional de cabeça para baixo, e pelo seu cúmplice, o desenhador Dave Gibbons. Sejam bem-vindos a uma América alternativa onde os super-heróis ajudaram a combater as guerras e Richard Nixon está a cumprir o terceiro mandato

consecutivo, e onde o destino de um mundo ainda e sempre em Guerra Fria, à beira do holocausto nuclear, está nas mãos de meia-dúzia de super-heróis reformados, ilegais, francamente confusos e com muito pouco de super. Não admira que tenham sido precisos vinte anos e uma série de tentativas intermináveis para trazer a novela gráfica de Moore e Gibbons ao cinema: de certa maneira, só depois da humanização existencialista dos “comic-books” que atingiu os seus picos com o “Homem-Aranha” de Tobey Maguire e Sam Raimi, e da sua reconfiguração como metáfora distorcida do nosso mundo com o “Cavaleiro das Trevas” de Christopher Nolan, só agora, dizíamos nós, um filme como este pode fazer sentido.

Porque “Os Guardiões” é o anti-”blockbuster” e ai de quem vier aqui à espera de um contínuo de acção cinética e efeitos visuais. Denso, violento, perturbante, niilista, paranóico, adulto e sombrio, contado à sombra de Dylan e Cohen, é um cadinho fervilhante de ideias que transcendem em muito a proverbial aventura de super-heróis — aqui tão vilões como heróis, numa dualidade que o filme de Zack Snyder não se cansa de reforçar — e o próprio género em que se inscrevem. Respeitando, à superfície, os códigos (desde a estrutura de investigação de um crime até à revelação do “vilão” que manipulou os cordelinhos desde o princípio e aos combates finais) mas, ao mesmo tempo, corroendo-os pelo interior, subvertendo-os e dinamitando-os até nada restar senão uma “carcaça”, um andaime vazio que revela todo o mecanismo como uma imensa ilusão. De certa maneira, um “apocalipse” no sentido bíblico da questão, de “novo começo” depois de acontecimentos que fazem tábua rasa do passado — mas nesta história sobre o fim das ilusões nem destino nem divindade existem, apenas uma espécie de infernal encadeamento de escolhas e decisões onde mesmo o prazer de combater o crime por gostar de praticar o bem é algo de efémero, quase vão. E isso tem tudo a ver com a cavalgada louca em direcção ao apocalipse que a história constrói sem abrandar.

Some-se a isto as quase três horas de duração de “Os Guardiões” e ficamos a perceber que este é uma espécie de “blockbuster”-limite — segue na tradição recente de usar actores em vez de vedetas (e o elenco, aqui, é inatacável), leva ao limite a tonalidade sombria de que muitos acusaram os dois “Batman” de Nolan, trata os seus espectadores como gente que pensa e quer ser estimulada, deixa de fora logo à partida o mero flash de adrenalina adolescente. Este não é um filme para putos que vêm à procura de emoções fortes – é isso que o torna tão estimulante na corrente paisagem cinematográfica americana.

Mas essa sensação de “filme de

ideias” mais do que de espectáculo, de “comic-book” entendido como filme de arte e ensaio que faz a força de “Os Guardiões”, é também o que o enfraquece — porque, de repente, percebemos que Zack Snyder não traz à história de Alan Moore nada de seu nem de especificamente cinematográfico, e provavelmente nunca o terá querido fazer. Ilustra apenas, com respeito e devoção, a obra que lhe coube em mãos. “Os Guardiões” limita-se a querer fazer justiça em imagens à narrativa visionária de Moore — e se o respeito pela obra é não apenas legítimo como louvável (sobretudo face a alguns dos travestis que se fizeram anteriormente passar por adaptações do seu trabalho), deixa-nos um travozinho de tristeza na boca por não ser mais do que uma tradução respeitosa para cinema dos painéis de Gibbons, por não se sentir sequer aqui a urgência do “Despertar dos Mortos” nem as referências picturais de “300”. Ficamos assim, a meio caminho entre a admiração pela capacidade de pôr em imagens uma obra seminal e a frustração por não ser mais do que isso — que, é verdade, já é muito. Mas que, face ao que “Os Guardiões” é no papel, corre o risco de não ser suficiente.

A casa dos mortos

A vida de Patti Smith também é uma história de mortos. Falar da sua vida implica, como ela diz, falar de “um tempo em que todos os meus amigos estavam vivos”. Luís Miguel Oliveira

Patti Smith: Dream of LifeDe Steven Sebring

MMMnn

Lisboa: CinemaCity Classic Alvalade: Sala 2: 5ª 2ª 3ª 4ª 14h05, 16h15, 18h45, 21h45 6ª 14h05, 16h15, 18h45, 21h45, 24h Sábado 11h45, 14h05, 16h15, 18h45, 21h45, 24h Domingo 11h45, 14h05, 16h15, 18h45, 21h45;

“Dream of Life” também é o nome de um disco de Patti Smith, o do seu “come back” em finais da década de 80. Puxado para título do filme de Steven Sebring, é justo que seja tomado mais pela letra do que pela referência: “Patti Smith – Dream of Life” é um filme onde Patti Smith “sonha” a sua vida, uma rememoriação de pessoas, lugares, acontecimentos, feita numa cadência e num registo associativo de que em certos momentos se podia dizer serem, propriamente, “oníricos”. Sebring andou atrás da “madrinha do punk rock” durante alguns anos, acompanhou-a domestica e publicamente, filmou-a em casa e “on the road”, em

Jorge Mourinha

Luís M. Oliveira

Mário J. Torres

Vasco Câmara

O Casamento de Rachel mmnnn mmmnn mmmnn mmmnn

Homem no Arame MMmnn nnnnn nnnnn nnnnn

Imagens de Palermo nnnnn nnnnn nnnnn a

Maradona nnnnn nnnnn mnnnn mnnnn

Milk mmmmm mmmmn mmmmm mmmmn

Patti Smith, Dream of Life mmmnn mmmnn nnnnn nnnnn

Revolutionary Road nnnnn mmnnn mmmnn mnnnn

Um dia de cada vez mmmmn nnnnn mmnnn mnnnn

Watchmen- Os Guardiões mmmnn mmnnn nnnnn nnnnn

O Wrestler nnnnn mmmnn mmmnn mmmnn

As estrelas do público

Sejam bem-vindos ao reverso do sonho americano tal como concebidopor Alan Moore, o escritor que virou o “comic-book” tradicional de cabeça para baixo

Cin

ema

36 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

digressão. Depois, deu-lhe a última palavra: “Dream of Life” é uma espécie de longo monólogo de Patti Smith, a sua voz e o seu “texto” são o centro condutor da montagem e o elemento aglutinador de toda a diversidade (imagens de arquivo dos anos 70, fragmentos encenados, actuações ao vivo, pequenos momentos classicamente “rockumentary”) de que o filme de Sebring se compõe.

Sendo – ela não o nega – a “vida com que sonhou”, a vida de Patti Smith também é uma história de mortos. Falar da sua vida implica, como ela diz, falar de “um tempo em que todos os meus amigos estavam vivos”. Há muitos mortos na vida de Patti Smith: evidentemente Robert Mapplethorpe, mas também o irmão, e ainda outros, William Burroughs, Allen Ginsberg, ´”ícones”, inspirações, figuras paternas, amigos. “Dream of Life” fala de todos eles, às vezes parece que é mais sobre eles do que sobre Patti Smith, e se isto dá a “Dream of Life” uma dimensão “mortuária” um pouco inesperada, às vezes elegíaca (o breve apontamento sobre Ginsberg) outras quase “fetichista” na sua memorabilia da morte (a cena em que ela acaricia, é o termo, as cinzas de Mapplethorpe), também acentua as analogias oníricas – como naqueles sonhos em que todos os nossos mortos “voltam”. Ou então, uma espécie de nobreza, como se

Patti Smith aproveitasse um documentário sobre si própria menos para se auto-homenagear e se auto-retratar no centro do mundo e mais para relatar a sua vida como simples parte de um mundo muito mais vasto. E com isso o filme ganha, porque também é um olhar sobre figuras e factos da cultura americana, “underground”, “marginal”, das últimas décadas (e especialmente dos anos 70 e 80). O que não impede que, sendo isto um filme sobre os pais, os amantes e os irmãos de Patti Smith, também apareçam os filhos, os biológicos e os “adoptivos” (Michael Stipe, Thom Yorke e, num breve plano, juraríamos que Bono).

“É preciso tirar o que está a mais”, diz Patti Smith a certa altura, pouco antes de uma cena numa praia onde se fala da redução ao essencial como cúmulo do trabalho de uma vida. Deve ter sido o único conselho de Smith a que o realizador Steven Sebring (que a certa altura até promete ir ver o “Don’t Look Back” que nunca tinha visto) não prestou atenção. Só é pena haver em “Dream of Life” certos momentos em que Sebring parece andar a correr atrás do monólogo de Patti Smith, andar a correr atrás da “ilustração” de maneira um pouco aleatória, deixando a imagem tornar-se “lastro”, que está lá só porquetem que estar. Mas não tem – e há alturas, quando Patti Smith entra em “transe” poético e narrativo, em que o melhor é fecharmos os olhos e imaginarmos um ecran negro.

Descobrir Angela Schanelec

O nome mais relevante de uma “escola de Berlim” é apresentado num ciclo na Culturgest. Luís Miguel Oliveira

A crueldade depois do teatro - Os filmes de Angela Schanelec5ª 12, 21h30: “A Sorte da Minha Irmã”6ª, 13, 18h30: Primeiros Filmes: “Bela Cor Amarela”, “Muito Longe”, “Praga, Março 92”, “Passei o Verão em Berlim”; às 21h30: “Lugares nas Cidades”Sábado 14, 18h30: Carta branca a Angela Schanelec: “Rainha de Ouros”; às 21h30: “De Tarde”Domingo 15, 18h30: “A Minha Vida Lenta”; às 21h30: “Marselha”Lisboa Culturgest

De um conjunto de cineastas alemães contemporâneos comummente descrito como a “escola de Berlim” (menos por alguma lógica de “colectivo” do que pelo simples facto de terem frequentado a Academia de Cinema e Televisão daquela cidade) o nome de Angela Schanelec é por muitos apontado como o mais relevante. Nascida em 1962, tem cinco longas-metragens no currículo, mais um punhado de curtas. Entre os dias 12 e 15 apresenta-se esta obra na Culturgest, praticamente na íntegra, faltando apenas a sua muito recente contribuição para “Deutschland 09”, filme em episódios dirigidos por cineastas diversos, e estreado no mês passado no Festival de Berlim. Durante os dias da retrospectiva, Schanelec orientará uma “workshop” de direcção de actores.

Destaca-se muito, como traço fundamental do cinema de Schanelec, justamente o seu trabalho com os actores. A sua carreira começou no teatro (presença explícita em pelo menos alguns dos seus filmes), e foi a vontade de olhar e trabalhar quer a representação como a encenação de um ponto de vista “exterior” que a conduziu ao cinema. E os seus filmes têm, de facto, uma dramaturgia especial, que alternadamente se cerra e se distende, uma relação e uma integração das personagens nos décors que nunca é “neutra” (quer dizer, nunca é causal) mesmo quando é para chegar a uma espécie de “neutralidade” (quer dizer, a um “mutismo”, a uma ausência de comentário). Um cuidado plástico (exponenciado pelo recurso preferencial mas não exclusivo ao plano fixo) aliado a uma determinação expressiva, mesmo se para fazer sobressair um “vazio” de expressão. Vê-se muito bem na maneira como as cidades (Berlim, mas também Marselha no filme homónimo) habitam os seus filmes, ou como os seus filmes habitam as cidades - um rumor, visual e sonoro, que quase se limita a “estar lá”, um quadro que acompanha as

personagens mas não se lhes sobrepõe. Histórias simples, ou tornadas simples na aparência pela abundância de não-ditos: se há um “tema” saliente no cinema de Schanelec ele andará à volta das possibilidades de comunicação e expressão de uma intimidade afectiva ou familiar, e onde as palavras têm tendência a revelar-se curtas e insuficientes. Talvez por isso, alguns dos mais belos momentos dos seus filmes nascem da presença da música (uma lenga-lenga, uma canção) como detonador de um entendimento interior, no limite da sua própria possibilidade expressão. Quando a protagonista de “Marselha” recorre ao “La Mer” de Trenet (para mais, excelente “gag”) ou um magnífico plano com duas raparigas, uma piscina e uma aparelhagem portátil em “Lugares nas Cidades”.

Um tempo que passou

Homem no ArameMan on WireDe James Marsh, com Philippe Petit. M/0

MMMnn

Lisboa: Medeia King: Sala 3: 5ª Domingo 3ª 4ª 14h, 16h, 18h, 20h, 22h 6ª Sábado 2ª 14h, 16h, 18h, 20h, 22h, 00h30; UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 11: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 14h, 16h, 18h, 20h, 22h, 00h15 Domingo 11h30, 14h, 16h, 18h, 20h, 22h, 00h15

Em Agosto de 1974, o funâmbulo francês Philippe Petit cumpriu um sonho de longa data: esticar um arame entre as duas torres gémeas do World Trade Center de Nova Iorque e andar na corda bamba a 104 andares de distância do chão, no vazio absoluto. O que o documentarista britânico James Marsh faz em “Homem no Arame” é contar ao pormenor a história desse “fait-divers” perdido no tempo, feito quixotesco que existiu apenas porque Philippe Petit assim o decidiu, ou, mais prosaicamente, apenas porque. Porque não há outra razão para esticar um arame entre dois edifícios daquele tamanho e atravessá-lo senão por eles estarem lá — é a lógica das grandes aventuras, das grandes conquistas, dos grandes desafios.

O que, no entanto, há de

É como se Patti Smith aproveitasse um documentário sobre siprópria menos para se auto-retratar no centro do mundo e maispara relatar a sua vida como simples parte de um mundo mais vasto

O funâmbulo Philippe Petit e a lógica das grandes aventuras, das grandesconquistas, dos grandes desafi os

InternetEstamos online. Entre em www.ipsilon.pt. É o mesmo suplemento, é outro desafi o. Venha construir este site connosco.

“Marselha”, um dos títulos de uma cineasta a descobrir na Culturgest

Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009 • 37

genuinamente interessante em “Homem no Arame” vai para lá do seu tópico: começa por estar na sua estrutura híbrida, em que a um proverbial documentário de “cabeças falantes”, com entrevistas contemporâneas e (poucas) imagens de época, se anexa uma reconstituição dos factos realizada em estúdio de modo quase expressionista — porque, na verdade, não existem imagens do feito (tudo foi feito em segredo para não alertar as autoridades que proibiriam certamente a tentativa). Aí residem algumas das questões mais interessantes do filme: a oposição entre o pragmatismo e o sonho, entre o “porquê?” e o “porque sim”, entre a necessidade de encontrar um motivo e a compreensão de que não é preciso motivo nenhum. Mas também a dúvida sobre a veracidade de tudo isto — se algo não ficou registado, existiu realmente? Algo que apenas perdura na memória de poucos tem o mesmo peso de um acontecimento que todos recordam?

Claro que, depois, tudo isto ganha uma outra dimensão por ter acontecido nas torres gémeas — a sombra do 11 de Setembro paira sobre todo o filme, a sensação de “Homem no Arame” estar a resgatar uma “pequena história” que de outro modo teria sido esquecida apenas por acontecer neste sítio. A verdade, ainda assim, é outra, e é isso que é também fascinante no filme de James Marsh (que venceu o Óscar de melhor documentário mas foi produzido para televisão, para a grelha documental da BBC Storyville, e que, por vezes, parece “pequeno demais”, um pouco perdido no grande écrã): percebemos que estas pessoas, estes “heróis” que viveram esta história, pouco têm em comum, já não se falam, perderam o contacto ao longo dos anos. E todos eles têm memórias e verdades diferentes. Marsh não procura sequer conciliar essas memórias e verdades diferentes numa única: limita-se a registar o momento em que foram uma equipa e conseguiram algo que mais ninguém conseguiu, antes ou depois (e que agora já nunca mais se conseguirá), sem se preocupar com os pormenores que não encaixam na perfeição. O importante é resgatar ao esquecimento um tempo que passou — e, aí, a aposta está ganha. J.M.

Imagens de PalermoPalermo ShootingDe Wim Wenders, com Campino, Giovanna Mezzogiorno, Dennis Hopper. M/0

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Lisboa: Medeia Nimas: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h45, 17h, 19h30, 22h; ZON Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 16h20, 19h, 21h45, 00h20;

É um momento de agudo “kitsch” do beato Wim Wenders, sempre à volta das imagens e da sua perda de “essência”. Um fotógrafo (interpretado por uma estrela rock alemã, Campino), personagem em crise existencial, descobre o embuste da existência durante uma rodagem (o “shooting” do título) - a crise leva-o a ver o rosto da morte em Palermo tal como Jack Nicholson “desaparecia” no deserto de Almeria em “Profissão: Repórter”, de, claro, Michelangelo Antonioni. Depois, há Dennis Hopper enquanto Morte, e para nos vir à memória, claro, “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman; e ainda o anjo Lou Reed enquanto anjo Lou Reed ou Milla Jovovich enquanto Milla Jovovich. E diálogos de uma aflitiva banalidade a comporem um pretensioso “requiem”. Que é um filme visualmente tão saturado de novo-riquismo e de pechisbeque figurativo, há um odor de hipocrisia aqui à solta. Até de oportunismo. E de uma sobranceria que por mais que seja disfarçada não se esconde: Wenders dedica o filme aos desaparecidos Michelangelo Antonioni e a Ingmar Bergman parecendo querer sobretudo colocar-se no retrato de uma família que, quer mostrar, trata por “tu”. Vasco Câmara

Continuam

O WrestlerThe WrestlerDe Darren Aronofsky, com Mickey Rourke, Marisa Tomei, Evan Rachel Wood. M/16

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Lisboa: Castello Lopes - Cascais Villa: Sala 5: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 16h, 18h40, 21h50 6ª Sábado 13h20, 16h, 18h40, 21h50, 00h20; Castello Lopes - Londres: Sala 1: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h30, 19h, 21h30 6ª Sábado 14h, 16h30, 19h, 21h30, 24h; Castello Lopes - Loures Shopping: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h20, 18h40, 21h50, 00h15; CinemaCity Alegro Alfragide: Sala 9: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 13h40, 15h50, 18h30, 21h40, 23h50 Sábado Domingo 11h30, 13h40, 15h50, 18h30, 21h40, 23h50; CinemaCity Classic Alvalade: Sala 4: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 14h20, 16h45, 18h55, 21h20 6ª Sábado 14h20, 16h45, 18h55, 21h20, 23h40; Medeia Saldanha Residence: Sala 5: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h10, 16h40, 19h10, 21h40, 00h15; UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 5: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 14h15, 16h50, 19h15, 21h30, 23h55 Domingo 11h30, 14h15, 16h50, 19h15, 21h30, 23h55; ZON Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h30, 18h10, 21h30, 00h05; ZON Lusomundo CascaiShopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h50, 15h20, 18h, 21h40, 00h20; ZON Lusomundo Colombo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h45, 15h30, 18h15, 21h10, 23h50; ZON Lusomundo Oeiras Parque: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h10, 15h45, 18h25, 21h20, 23h55; UCI Freeport: Sala 5: 5ª 2ª 3ª 4ª 16h, 18h40, 21h30 6ª 16h, 18h40, 21h30, 24h Sábado 13h40, 16h, 18h40, 21h30, 24h Domingo 13h40, 16h, 18h40, 21h30; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h10,

15h45, 18h20, 21h30, 00h10; ZON Lusomundo Fórum Montijo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h40, 16h20, 18h45, 21h30, 24h

Porto: Arrábida 20: Sala 20: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h15, 16h50, 19h25, 22h, 00h45; Medeia Cidade do Porto: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h20, 16h50, 19h20, 21h50; ZON Lusomundo GaiaShopping: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h30, 18h10, 21h20 6ª Sábado 13h, 15h30, 18h10, 21h20, 00h10; ZON Lusomundo NorteShopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 16h10, 19h, 21h50, 00h35; ZON Lusomundo Fórum Aveiro: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 16h10, 18h50, 21h30 6ª Sábado 13h20, 16h10, 18h50, 21h30, 00h10

Darren Aronofsky nunca foi grande espingarda. No entanto, este veículo pensado para o “comeback” de Mickey Rourke, um dos maiores actores da sua geração, entretanto desaparecido nos meandros do pug i l i smo profissional, e irreconhecível de tão deformado e envelhecido, consegue atingir os seus objectivos. Rourke não terá a interpretação da sua vida, mas reflecte-se no pequeno monstro que recria em “O Wrestler”, com uma veemência extrema (às vezes excessiva), a justificar a nomeação para os Óscares. O filme assume-se como fora de moda, até no modo como articula a personagem de Marisa Tomei (espantosa prestação, entre a vulnerabilidade de uma heroína de “western” B e a força melodramática). Do ponto de vista cinematográfico, não será impecável, mas oferece-nos personagens complexas e ricas de contradições. M.J.T.

O Casamento de RachelRachel Getting MarriedDe Jonathan Demme, com Anne Hathaway, Rosemarie DeWitt, Debra Winger. M/12

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Lisboa: CinemaCity Classic Alvalade: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 16h; Medeia Monumental: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h50, 16h20, 21h30; UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 7: 5ª 6ª Sábado Domingo 3ª 19h10, 21h35, 24h 2ª 21h35, 24h 4ª 19h10, 24h

Porto: Arrábida 20: Sala 6: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 18h45, 00h10; Medeia Cidade do Porto: Sala 3: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 19h; ZON Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 20h, 22h40; ZON Lusomundo Fórum Aveiro: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 21h50 6ª Sábado 21h50, 00h40

Jonathan Demme possui o talento para imiscuir a ficção num olhar quase documental, recriando um real credível e sem história de uma forma simples e despretensiosa. Tudo, em “O Casamento de Rachel”, parece situar-se nos antípodas da encenação grandiosa e medida da sua obra mais famosa, “O Silêncio dos Inocentes”: embora se trate de uma grande produção, reina a surdina, o silêncio dos pequenos gestos, num filme de família, centrado na prodigiosa interpretação de Anne Hathaway, toda em filigranas e subtilezas. Para além do mais, assinala o regresso, em grande forma, de Debra Winger, de quem tínhamos saudades. Trata-se de um “filmezinho”, mas bonito e comovente. Mário Jorge Torres

Bárbara Reis

Coff ee-break

O cordel do granel

Os jornais em papel vão acabar, especula-se, dentro de 5 ou 10 anos, talvez menos. Há anos que dizemos que o “online é o futuro” quando o online já era o presente, mas agora é a sério. Um teórico até antecipou uma

data: o último jornal impresso do mundo será vendido em Abril de 2040.

Já ninguém nos compra (você é um ser raro, olhe à sua volta). Há quem pague para ler notícias, reportagens, análises e artigos de opinião, mas muitas pessoas, cada vez mais, só lêem o que o online lhes dá gratuitamente e fi cam felizes - não precisam de mais.

Na Noruega, talvez o país do planeta onde mais se lê jornais, diários que vendiam 290 mil exemplares por dia em 2007, vendem hoje menos 20 mil. O “New York Times” está em crise profunda, o “Washington Post” teve menos 21 por cento de anúncios no último trimestre. O preço mundial do papel sobe e a publicidade cai a pique, o nosso “modelo de negócio”, como lhe chamam os gestores, está morto, só não está enterrado.

E no meio de tudo disto eu e a minha geração, que há 19 anos ajudou a fundar o PÚBLICO, somos aprendizes outra vez. Sabemos que a forma como fazemos o nosso trabalho não tem futuro, mas não sabemos o que vai sair do actual turbilhão de ideias e experiências.

Não tenho a nostalgia do papel, não é isso. Todas as profi ssões tiveram e terão novas tecnologias, novos instrumentos e novas formas de trabalhar e há princípios sagrados que nenhuma mudança de paradigma alterará - na nossa é a procura do rigor absoluto. Os dilemas, hoje, são outros: apostamos toda a energia e dinheiro no online e

abandonamos o nosso suporte original ou reinventamos os jornais? Se o online não tem receitas sufi cientes para manter redacções grandes, como fazemos jornalismo de qualidade? Quem paga o bom jornalismo? Mecenas privados ou o Estado?

No fi m dos anos 1980, quando eu estava na universidade, entrevistei o Appio Sottomayor, na altura

chefe de redacção d’A Capital e já um homem de cabelos brancos, que me explicou como, nos anos 1950, lhe pediam os textos.

O editor tirava da parede um cordel - o “cordel do granel”, chamava-se -, esticava-o, dando uns nós se necessário, e dizia “escreve isto”, mostrando-lhe 10, 15 ou 20 centímetros. O comprimento do cordel correspondia ao número de linhas que o jovem Appio teria de escrever.

Os cordéis estavam numa parede ao pé do prelo e tinham vários tamanhos. Chamavam-se “cordéis do granel” porque as notícias eram paginadas pelos tipógrafos em granéis (“porções de composição tipográfi ca antes de paginada”) e, para que as frases linotipadas não se espalhassem, amarrava-se tudo com um cordel. Mal o granel fi cava pronto, era posto no “mármore”, uma grande mesa que as tipografi as dos jornais tinham, e ali fi cava à espera de ser paginado. O noticiário da revolução de Abril de 1974 ainda foi todo feito assim, com notícias presas em cordéis à espera no “mármore”.

Eu sempre pensei nesta história de pedir notícias ao cordel como uma história pré-histórica que só uma pessoa que vivesse muitos anos poderia contar. À minha volta, já nenhum dos meus colegas mais velhos fez textos a cordel; já entraram todos no tempo dos “linguados”, que precederam os “caracteres”.

Hoje, porém, dou por mim a sentir que já tenho a minha curiosidade arqueológica para contar aos futuros estagiários: “No princípio do século, nós escrevíamos notícias para jornais de papel e as pessoas compravam-nos!”

Ontem o PÚBLICO fez 19 anos e, digo-vos, não está fácil.

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Sabemos que a forma como fazemos o nosso trabalho não tem futuro, mas não sabemos o que vai sair do actual turbilhão de ideias

“O Casamento de Rachel”

“O Wrestler”

DV

Dacção, todas elas rodadas no formato gigante IMAX e apresentadas separadamente na “janela” desse formato (extra inútil, já que dificilmente um écrã caseiro permite apreender a diferença de resolução).

Música

Maria BethâniaMúsica é PerfumeDe Georges GachotEd. Quitanda, distri. IPlay

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Este não é mais um simples documentário sobre Maria Bethânia em palco (há muitos) nem apenas sobre a sua evolução na música com

enquadramento biográfico. É um acto de paixão de um documentarista franco-suíço, que em 1998 viu a cantora no festival de Montreux e se deixou enfeitiçar pela sua voz e presença. Até essa altura, Georges Gachot, nascido em 1962, não sabia quase nada de música brasileira, o seu objecto de interesse era sobretudo a música clássica. Por isso, as filmagens que depois o levaram ao Brasil, para entrevistas e para seguir dois espectáculos de Bethânia (“Brasileirinho” e “Que falta você me faz”), deram origem a um mosaico documental e também poético sobre o universo bethaniano. Não é de estranhar, por isso, que o filme comece com ela, em voz “off”, a dizer o poema “Pátria minha” e a cantar “Gente humilde”, ambos de Vinicius de Moraes, enquanto se vêem imagens solitárias do Rio à noite, a força do mar, a última limpeza da areia, vultos na obscuridade a reunir os despojos do dia. “Botar voz num disco eu amo. Eu amo cantar nessa solidão”, diz ela. Mas o inverso, o pisar o palco, é aquilo que a move. Gachot filma tendo sempre como fio condutor a voz e a presença da própria Bethânia. E filma-a a cantar com tal intensidade que Caetano Veloso, seu irmão, já disse que em nenhum outro filme ela tinha cantado assim. Não é exagero: há, aqui, momentos antológicos. O filme percorre os traços da memória no recôncavo da Bahia (há um momento em que a mãe, Dona Canô, hoje centenária, diz que Bethânia não cantava na escola “porque a voz dela era feia”), questiona lugares e personagens e desagua no mistério de uma voz. Além do filme (82 min, 16:9, som 5.1), premiado nalguns festivais, há ainda uma hora de extras com algumas reflexões sobre a cantora (Caetano, Chico Buarque, Miúcha, Moogie Canazio ou Susana de Moraes, filha de Vinicius) e oito canções, onde se destaca “Tarde em Itapoã”, Bethânia de rosto suado a enfrentar uma multidão. Nuno Pacheco

Cinema

Os enjeitados dos ÓscaresO melhor cinema que se fez em 2008 nos EUA passou por estes dois filmes que reuniram a aclamação da crítica e o triunfo comercial... mas que os Óscares ignoraram. Jorge Mourinha

Wall-Eanimação de Andrew StantonWalt Disney Studios Home Entertainment, distribuição ZON Lusomundo

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O Cavaleiro das TrevasThe Dark Knightde Christopher Nolan, com Christian Bale, Michael Caine, Heath LedgerWarner Home Video, distribuição Castello Lopes Multimedia

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Pode haver algo de perverso no nosso regresso a estas fitas lançadas em DVD no Natal - mas o interesse de uma edição em DVD não se esgota no momento em que ela sai para a rua; o formato permite vivermos com um filme para lá da visão em sala, para lá da pressão mediática que implica que tudo tenha de acontecer “agora”. E a entrega dos Óscares é o pretexto ideal para voltar a “Wall-E” e “O Cavaleiro das Trevas” - porque aqui estão dois dos melhores filmes americanos de 2008, que a Academia tratou como “filmes menores”.

Se os Óscares quisessem premiar apenas o cinema para lá das campanhas com mais ou menos

“hype” que se geram à sua volta, dificilmente “Wall-E” e “O

Cavaleiro das Trevas” teriam falhado pelo

menos a nomeação para Melhor Filme. Em vez disso, e apesar de uma assinalável quantidade de nomeações, ambos foram para casa com os “prémios

de consolação” que se

previam: melhor longa de animação para “Wall-E”, melhor actor secundário para o falecido Heath Ledger em “O Cavaleiro das Trevas”. Ora, é insultuoso reduzir desta maneira ambos os filmes, como se nada mais pudessem ser para lá de um “filme de animação” ou do último filme de um actor talentoso que nos deixou cedo demais.

“Wall-E”, por trás de toda a tecnologia, inscreve-se na grande linhagem do cinema clássico, no que chega a ser quase experimental para os nossos dias: a sua história de um robot apaixonado que devolve a humanidade a si própria é contada com o mínimo de diálogo, apenas através da imagem e do som, numa actualização das premissas de base do cinema. Num dos muitos e estimulantes extras incluidos no DVD, o realizador Andrew Stanton aponta que os dois maiores estilistas da comédia dos tempos do mudo, Charles Chaplin e Buster Keaton, foram visão obrigatória para a equipa do filme - e isso sente-se na meticulosa atenção ao pormenor presente em cada plano, em cada “gag”, em cada encadeamento de acções.

Mas esse “regresso às origens” é feito dentro de um quadro de ficção-científica distópica fortemente influenciado pelos clássicos dos anos 1970 como “2001: Odisseia no Espaço”, ganhando uma dimensão de sátira consumista que não se esperaria num filme de animação (e que Stanton diz nunca ter sido prevista e ter surgido naturalmente à medida que o guião ganhou forma). Vamos ser sinceros: qual foi o último filme - assim mesmo, “filme”, sem nenhum adjectivo - tão consciente da sua própria genealogia, que assumiu abertamente a sua dívida aos primórdios do cinema e os reinventou para os nossos tempos tecnológicos sem que isso afogasse a história e a atenção às personagens?

Admissivelmente, não se pode dizer o mesmo de “O Cavaleiro das Trevas”, a segunda aventura cinematográfica de Batman desde que Christopher Nolan, o realizador de “Memento”, pegou no “franchise” e o reinventou. Mas o que Nolan fez em “O Cavaleiro das Trevas” foi algo, a seu modo, igualmente difícil: pegar no que seria “apenas” um filme de super-heróis, e depurá-lo até nada restar senão um filme policial adulto, operático e escuro sobre a luta entre o Bem e o Mal. Onde nem há uma pretensão de “final feliz” por trás da resolução da narrativa, onde a própria Gotham City parece ser uma metáfora de uma civilização cercada pela ameaça do terrorismo e os “heróis” dão por si a terem de pesar sacrifícios em nome de algo maior que o indivíduo. Não estamos longe dos clássicos filmes de guerra ou de gangsters da Warner dos anos 1930 e 1940, por um lado, nem dos filmes de James Bond, por outro, até na “força” de um vilão (o assombroso Joker de Heath Ledger) que suga o filme e o centra à sua volta.

Também por isso é insultuoso que o Óscar póstumo entregue a Ledger lhe tenha sido atribuído na categoria de actor secundário - se há coisa que a

sua “performance” não é, claramente, é secundária. O Joker de Ledger, corporização de um Mal quase sobrenatural e ao mesmo tempo demasiado humano, indizível e indefinível, cujos motivos para lançar Gotham City no caos nunca serão conhecidos, é o centro do filme, à volta do qual tudo se organiza e a que tudo reage. E reduzir a sua presença à de um mero “actor secundário” é passar ao lado da meditação diagonal sobre o mundo em que vivemos que Nolan, cineasta que de “Memento” a “O Terceiro Passo” tem explorado o modo como a identidade se relaciona com a sociedade, nos propõe, sob a capa de um “blockbuster” de Verão mais adulto do que a maioria.

Em ambos os casos, estamos perante filmes que, lá por serem entretenimento popular e abrangente, não abdicaram das suas ambições artísticas - não teria ficado mal a uma Academia que premiou no passado filmes que reuniam ambas as condições como “E Tudo o Vento Levou”, “Lawrence da Arábia” ou “My Fair Lady” tê-lo reconhecido, em vez de nomear academismos como “Frost/Nixon”. No fundo, é tudo uma questão de percepção (ou, se quisermos, preconceito) - não só ambos pertencem a géneros que a Academia tem relutância em considerar “sérios”, como foram êxitos de bilheteira que tinham já o essencial da sua carreira pública feita antes das nomeações (mas, por essa bitola, nem “O Estranho Caso de Benjamin Button” nem “Quem Quer Ser Bilionário?”, que tinham já boas carreiras de bilheteira antes das nomeações, deveriam estar na lista). Os Óscares pensam em si, actualmente, como uma cerimónia “de prestígio” - e, pelos vistos, ainda há quem pense que o prestígio é incompatível com o êxito de massas. Mas algo nos diz que estes filmes continuarão a ser recordados muito depois de “Frost/Nixon” ou “O Estranho Caso de Benjamin Button” terem sido esquecidos.

Abstraindo do facto de que os filmes foram feitos para serem vistos em sala e perdem vistos num pequeno écrã, ambos os DVDs surgem em disco duplo de boa transcrição de imagem. Melhor a edição de “Wall-E”, cheia de extras, que, através do comentário audio de Stanton (único extra não legendado), de quatro cenas eliminadas em vários estados de acabamento e pequenas peças sobre várias áreas da produção (desde o trabalho de som à evolução das personagens humanas), possibilita apreender o modo como uma longa de animação vai tomando forma, num percurso que envolve, por vezes, parar tudo e voltar ao princípio. Incluem-se ainda um documentário de 90 minutos sobre a história da Pixar, pequenos “gags” construídos para promover o filme, a curta “Presto”, que acompanhou “Wall-E” em salas, e uma curta inédita, “Burn-E”. Menos interessante a de “O Cavaleiro das Trevas”, que propõe uma série de eficazes “making ofs”, mas frustrantemente concentrados nos aspectos práticos das cenas de

“Wall-E” inscreve-se nalinhagem do cinema clássico, noque chega a ser experimental para os nossos dias

“O Cavaleiro das Trevas”: depurar o fi lme de super-heróis até nadarestar senão um policial adulto, operático e escuro sobre a luta entre o Bem e o Mal

¬Mau ☆Medíocre ☆☆Razoável ☆☆☆Bom ☆☆☆☆Muito Bom ☆☆☆☆☆Excelente

Maria Bethânia, “objecto” da paixão de um documentarista franco-suíço

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Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009 • 39

Dança

Joana Providência da cabeça aos pés

A retrospectiva organizada pela Academia Contemporânea do Espectáculo / Teatro do Bolhão mostra de onde vem e para onde foi a coreógrafa Joana Providência. Inês Nadais

20 Anos - Mostra retrospectiva de Joana Providência

Mecanismos + In-TensõesCom Anabela Sousa, Andreas Dyrdal, António Júlio, Susana Cerqueira e Vera Santos. Hoje, às 21h30.

Mão na BocaCom Anabela Sousa, António Júlio e Vera Santos. Amanhã, às 21h30

Ladrões de AlmasCom Anabela Sousa, Andrea Moisés, Andreas Dyrdal, António Júlio e Vera Santos. Dom., dia 8, às 21h30.

Porto. Auditório ACE / Teatro do Bolhão. Praça Coronel Pacheco, 1. Tel. 22 2089007. Até domingo, às 21h30. Bilhetes entre 3,5 e dez euros.

Para ser uma integral tinha que estar aqui tudo o que ela fez entre “Mecanismos”, a peça com que se estreou profissionalmente em 1989, e “Ladrões de Almas”, a peça aonde foi parar em 2008 (e precisávamos de mais do que três dias: são quase 40 trabalhos). E para ser um “best of” tinha que estar aqui “Zaap!”, o primeiro espectáculo em que a palavra e o movimento “se afectaram muito um ao outro”.

Não é uma coisa, nem outra. É Joana Providência (Braga, 1965) a parar para se reorganizar e para marcar na agenda, como se marca uma efeméride, os primeiros 20 anos nisto que ela tem na cabeça e nos pés, como disse numa entrevista: “A dança é uma forma de estar, vive comigo, faz parte do meu corpo como o meu cabelo ou os meus pés.”

A retrospectiva agora organizada pela Academia Contemporânea do Espectáculo / Teatro do Bolhão - e que estaciona a partir de hoje no Porto, depois de uma primeira apresentação no Cine-Teatro Constantino Nery, de Matosinhos, há uma semana - é uma espécie de “de onde vem e para onde vai” Joana Providência. Começa onde ela começou - com “Mecanismos”, o espectáculo de fim de curso que mostrou em 1989 nos Encontros Acarte - e acaba em 2009, porque “Ladrões de Almas” já não é exactamente a mesma coisa que era em Abril do ano passado, quando se estreou em Lisboa, na Culturgest. “Os ‘Mecanismos’ tinham de estar. Foi o meu primeiro trabalho e é importante perceber de onde é que tudo partiu, em que terreno é que dei os meus primeiros passos. E o

“Mão na Boca”, 2004, um encontro imediato com Paula Rego

Agenda

Dança

EstreiamChama-me FadoCoreografia: Lucília Baleixo. Com Lara Afonso (voz), Carlos Lopes (acordeão), Manú Teixeira (percussão), Rui Silva (contra-baixo), Tiago Oliveira (guitarra). Beja. Teatro Pax-Júlia. Largo São João. Dia 08/03. Sáb. às 16h. Tel.: 284315090. 3€ (c/ descontos).

Eu “not” PessoaCoreografia: Rita Galo. Leiria. Teatro Miguel Franco (Centro Cultural de Leiria). Largo Santana. Dia 07/03. Sáb. às 21h30. Tel.: 244860480. 10€

Subterrâneos do CorpoCoreografia: Ana Martins. Bailarino:Francesca Bertozzi, Inês Oliveira Santos. Lisboa. Instituto Franco-Português. Av. Luís Bívar, 91. Dia 07/03. Sáb. às 21h30. Tel.: 213111400. 7€

Teatro

EstreiamEsta Noite Improvisa-seDe Luigi Pirandello. Encenação: Jorge Silva Melo. Com Andreia Bento, António Simão, Cândido Ferreira, Cecília Henriques, Crista Alfaiate, João Meireles, João Miguel Rodrigues, Lia Gama, Pedro Lacerda, Sara Belo, Sílvia Filipe, entre outros. Lisboa. Teatro Nacional D. Maria II. Pç. D. Pedro IV. Até 05/04. 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às 21h30. Dom. às 16h00. Tel.: 213250835. 7,5€ a 16€.

Ver texto pág. 22 a 25

A TempestadeDe William Shakespeare. Encenação: Luis Miguel Cintra. Com António Fonseca, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, João Pedro Vaz, José Manuel Mendes, Luis Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Márcia Breia, Nuno Lopes, Pedro Lamas, Ricardo Aibéo, Rita Durão, Paulo Moura Lopes, Sofia Marques, Tiago Matias, Vítor D’Andrade. Lisboa. Teatro da Cornucópia - Bairro Alto. R. Tenente Raúl Cascais 1A. De 12/03 a 26/04. 3ª, 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às 21h. Dom. às 16h. Tel.: 213961515.

TransaçõesDe David Williamson. Encenação: João Reis. Com Catarina Furtado, António Durães, Carlos Gomes, Joaquim Horta, Lígia Roque, Mafalda Vilhena, Marta Furtado. Lisboa. Teatro Municipal Maria Matos. Av. Frei Miguel Contreiras, 52. De 12/03 a 03/05. 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às 21h30. Dom. às 17h. Tel.: 218438801. 20€ e 15€

A NoiteDe Al Berto. Encenação: João Brites. Com Ana Lúcia Palminha, Pedro Gil. Lisboa. Teatro Nacional D. Maria II. Pç. D. Pedro IV. De 12/03 a 05/04. 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às 21h45. Dom. às 16h15. Tel.: 213250835. 12€.

ContinuamAgora Eu EraEncenação: Rui Rebelo.

Com João Madeira, Leonor Cabral, Patrícia Adão Marques. Guarda. Teatro Municipal da Guarda. Rua Batalha Reis, 12. Dia 07/03. Sáb. às 16h. Tel.: 271205241. 5€.

CavemanDe Rob Becker. Encenação: António Pires. Com Jorge Mourato. Porto. Teatro Rivoli. Pç. D. João I. De 06/03 a 19/05. 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às 21h30. Dom. às 19h. Tel.: 223392200.

A Verdadeira TretaDe Eduardo Madeira, Filipe Homem Fonseca. Encenação: António Feio, José Pedro Gomes. Com António Feio, José Pedro Gomes. Estarreja. Cine-Teatro Municipal de Estarreja. Rua do Visconde de Valdemouro. De 06/03 a 07/03. 6ª e Sáb. às 21h30. Tel.: 234811300.

CavaterraEncenação: André Braga. Com André Braga, João Vladimiro, Alberto Carvalhal, Patrick Murys. Coimbra. Teatro Académico de Gil Vicente. Pç. República. Dia 06/03. 6ª às 21h30. Tel.: 239855636. 10€ (sujeitos a descontos).

Primeiro AmorDe Samuel Beckett. Encenação: Sandro William Junqueira. Com Rui Cabrita. Lisboa. Teatro da Trindade. Largo da Trindade, 7 A. Até 14/03. 5ª, 6ª e Sáb. às 21h30. Tel.: 213420000. 8€ (sujeitos a descontos).

Queres Fazer Amor Comigo?De Henrique Félix. Encenação: Henrique Félix. Com Ana Videira, Cátia Ribeiro, Jenny Romero, Rita Frazão, Sílvia Balancho. Estoril. Casino Estoril. Pç. José Teodoro dos Santos. Até 28/03. 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às 22h00. Tel.: 214667700. 15€ e 10€.

Variações EnigmáticasDe Eric-Emmanuel Schmitt. Encenação: João Mota. Com Carlos Paulo, Álvaro Correia. Lisboa. Teatro da Comuna. Pç. Espanha. Até 31/12. 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às 21h30. Dom. às 16h00. Tel.: 217221770. 10€ e 7,5€ (quartas e quintas: 5€).

Os Maias no TrindadeDe Eça de Queiroz, António Torrado. Encenação: Rui Mendes. Com Afonso Malão, Augusto Portela, Igor Sampaio, João Didelet, José Airosa, José Fidalgo, Luis Alberto, Luis Mascarenhas, Mário Jacques, Pedro Górgia, Rogério Vieira, Sofia Duarte Silva. Lisboa. Teatro da Trindade. Largo da Trindade, 7 A. Até 26/04. 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às 21h30. Dom. às 16h00. Tel.: 213420000. 10€ a 15€

Peça Para DoisDe Tennessee Williams. Com Rita Lello, Pedro Giestas. Lisboa. A Barraca - Teatro Cinearte. Lg Santos, 2. Até 29/03. 5ª, 6ª e Sáb. às 20h00. Dom. às 15h00. Tel.: 213965360/ 213965275.

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“A Tempestade”

“Primeiro Amor”

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40 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

Luna Park

No cinema

Tem de ser possível voltar a haver salas de cinema com cadeiras de napa vermelha, salas de cinema enormes com um tipo a fumar na primeira fila, uma tipa a comer fruta na última fila e dois senhores que sabem quais são as

melhores técnicas para fazer prodigiosas deduções fiscais mesmo nos lugares à nossa frente - salas de cinema como aquela onde estivemos sentados no sábado, em Vila do Conde, na Malásia (embora os senhores dos lugares à nossa frente, com a sua conversa fiada sobre prodigiosas deduções fiscais, quase nos tenham feito pensar que a Malásia é uma sala de cinema em Portugal).

Fomos ao cinema na Malásia, em Vila do Conde, com o rapaz dos fi lmes do Tsai Ming-liang (da primeira vez que estivemos na mesma sala que ele, não era um cinema malaio em Vila do Conde: era um restaurante chinês no Porto, e ele passou o tempo todo a dormir com a cabeça em cima da mesa, a poucos centímetros da galinha com amêndoas). Não era uma sala de cinema como aquelas que tínhamos visto na Ásia (mas noutro continente, o indiano): era uma sala de cinema como aquelas que tínhamos visto em Portugal, mas agora é tarde de mais para falar nisso (ainda há salas dessas, mas transformaram-se em vídeo-

instalações).Na Índia, esse país que

todas as telenovelas agora descobriram (ah, que vontade de ser mais uma a falar, se calhar mal mas pelo menos a falar, de “Quem Quer Ser Bilionário?”, só que para isso era preciso ter visto o fi lme) como se tivessem descoberto a pólvora (e não é verdade, a Índia não é menos do que isso), o cinema parecia ter acabado de chegar, mesmo sendo aquilo o Outono de 2004. Havia casos em que tinha mesmo acabado de chegar - e também aí, a milhares de quilómetros da crise de espectadores do mundo ocidental, tivemos uma sala de cinema só para nós e para o senhor Malik, a sabe-se lá quantos quilómetros da cidade mais próxima (mas parte da cidade tinha visto ver: não o fi lme, mas a rapariga aloirada e o rapaz careca, o tipo de “blockbuster” que nunca estará em crise no mundo não-ocidental). Era quase tão

impressionante como a sala de jantar do senhor Malik, mas sem os tigres embalsamados e os empregados do tempo em que ainda havia império (a comida era óptima, claro, mas não estávamos habituados a tanta assistência, e nunca tínhamos visto osgas daquele tamanho, o que muito divertia o senhor Malik).

Quando entrámos, a meio, o governador da Califórnia andava a explodir camiões - e o senhor Malik, que já tinha visto aquele fi lme, continuava tão espantado como se fosse a primeira vez - e a seguir começou um fi lme que nunca mais acabava, e que nos perseguiu até ao fi m desse mês. Estávamos quase a escapar com vida, mas dois dias antes de nos metermos num avião de Bombaim para Paris metemo-nos num avião de Varanasi para Bombaim e o nosso agente Ravi Kishan (um rapaz com duas fi lhas que anos mais tarde foi expulso em grande do “Big Brother” indiano) apanhou-nos nos lugares da janela. Foi assim que conhecemos (e tivemos um autógrafo, porque ele fazia questão, sobretudo depois de saber que nunca mais tínhamos conseguido dormir depois de ver um fi lme em que ele começava bem, mas acabava mal) um actor de Bollywood. Temos a sorte de isso nos ter acontecido muito antes do fi lme do Danny Boyle.

Inês Nadais

Não era uma sala de cinema como aquelas que tínhamos visto na Ásia: era uma sala de cinema como aquelas que tínhamos visto em Portugal, mas agora é tarde de mais para falar nisso

‘Ladrões de Almas’ também, porque é o ponto em que eu estou agora. A peça mudou desde a primeira versão porque incluímos a lembrança da Madalena Victorino, que originalmente estava apenas no filme que acompanha o espectáculo, e porque tivemos de substituir duas intérpretes. A Anabela Sousa e a Vera Santos trouxeram qualquer coisa delas ao trabalho”, explica.

Agora que se vê ao espelho e está 20 anos mais nova, há coisas em que se reconhece e há coisas em que não se sente na pele dela: “Nesta retrospectiva incluí duas partes dos ‘Mecanismos’ e isso foi muito curioso. Enquanto o ‘Mecanismos’ é um trabalho que ainda hoje tenho a sensação que poderia fazer, já não sinto o mesmo em relação ao ‘In-Tensões’. Tem um lado ‘naïf ’ que vem muito dos primeiros tempos e que tem pouco a ver com o que faço agora.”

Depois de “Mecanismos” (hoje, às 21h30), a retrospectiva Joana Providência faz um salto quântico de 15 anos - passando por cima de “In-Vitro” (1992), “Zaap!” (1999), “Causa / Efeito” (2000) e “Pioravante Marche” (2003), algumas das criações mais significativas da coreógrafa - e aterra em “Mão na Boca” (2004), encomenda da Fundação de Serralves que integrou o programa paralelo à grande exposição de Paula Rego.

Há um antes e um depois desse encontro imediato com o universo de Paula Rego, admite: “Depois de o ‘Mão na Boca’ estar feito, senti que me tinha levado para um trabalho de movimento bastante diferente de tudo o que eu tinha feito até ali. Trouxe-me uma organicidade, e até mesmo uma visceralidade, que enriqueceu muito a minha linguagem coreográfica.”

Se tivesse de levar um dos seus espectáculos para a ilha deserta, era este: “Os intérpretes foram muito longe e isso foi muito enriquecedor. Mas também me marcou por causa da Paula Castro: foi o último espectáculo que fiz com ela [morreu em Janeiro de 2007], e a energia dela ainda está muito presente.”

A vídeo-instalação “Textos Secretos” - uma encomenda do Festival Internacional de Marionetas do Porto, em 2006, em que a coreógrafa cruzou as histórias de amor de cinco casais com o universo visual dos lenços de namorados - e a peça “Ladrões de Almas” (2008) completam esta volta a Joana Providência em três dias. Para ela, é uma viagem de reconhecimento: “Há pessoas que me dizem que, olhando para o primeiro espectáculo, já se via o tipo de movimento que eu ia acabar por fazer. Eu não consigo olhar para estes três trabalhos e fazer essa leitura de conjunto. Mas desde o início há um desejo: que o movimento tenha como impulso qualquer coisa que ultrapasse e supere a sua própria forma. Essa vontade de que o movimento seja humano existe desde o meu primeiro espectáculo.

O espectáculo “Ptolomeu e a sua viagem de circum-navegação”, do Teatro Art’ Imagem, vai encerrar no dia 8 a 2ª edição do

Festival Ibero-Americano de Teatro de São Paulo, Brasil, organizado pela Fundação Memorial da América Latina.

Em trânsito

Local:Hotel Palácio, Estoril

Junto ao Centro de Congressos e ao Casino do Estoril

Datas e Horários:13 de Março, das 16 às 22.30 horas14 de Março, das 15 às 22.30 horas15 de Março, das 15 às 20.30 horas

O melhor do Som e da Imagem!

Local:Hotel Palácio, Estoril

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SEX *<�'��21:00 SALA SUGGIA

1+�.��������������� 3,#=�-�83,REMIX ENSEMBLE

Um programa onde o violoncelo merece destaque enquanto instrumento solista, proporcionado pelos mais aclamados compositores de origem grega do séc. XX. Em estreia mundial, uma nova obra do Jovem Compositor em Residência 09.

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1������'�������'������(Homenagem a Haydn)¹3�����=���@���()�����������A������*����$�'���, para violoncelo e ensemble²��������A������+�$���3�����=���@�����$��, para violoncelo e ensemble3�����=���@��,�����

1 Estreia mundial, encomenda da Casa da Música

2 Encomenda Casa da Música

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42 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

Jazz

Super Jazz

Wayne Shorter, um dos maiores saxofonistas de todos os tempos, visita-nos de novo com o seu quarteto de alto rendimento, na Casa da Música, Porto. Rodrigo Amado

Wayne Shorter QuartetCom Wayne Shorter (saxofone), Brian Blade (bateria), John Patitucci (baixo), Danilo Perez (piano). Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho de Albuquerque. 4ª às 22h00. Tel.: 220120220. 30€.

Wayne Shorter é, com John Coltrane e Sonny Rollins, um dos maiores saxofonistas de sempre e um dos compositores mais influentes da história do jazz. Mesmo aqueles que não reconhecem o nome, é altamente provável já terem ouvido o som do seu saxofone numa das faixas que gravou com os celebrados Weather Report, nas universalmente famosas gravações com o quinteto de Miles Davis ou em alguns dos “cameos” que fez com artistas pop como Joni Mitchell ou Steely Dan.

Discos como “Speak no Evil” ou “Adam’s Apple”, gravados em nome próprio, marcaram o seu lugar na história do jazz tornando-se registos obrigatórios em qualquer discografia do género, e temas como “Footprints”, da sua autoria, são hoje standards tocados em todo o mundo.

O que é verdadeiramente extraordinário, no entanto, é que Shorter, hoje com 76 anos e na sua

sexta década de actividade, se mantenha no topo da

indústria jazz, tocando com um super-quarteto cujos espectáculos, além de serem dos mais bem pagos, são também dos melhores a que se podem assistir.

Sempre rodeada da maior expectativa, a

música do quarteto é sinónimo de um jazz

vibrante e exploratório, impactado pela improvisação de

alto rendimento do próprio Shorter,

Danilo Perez, John Patitucci e Brian Blade.

Encontro a oriente

Off RoadCom Xu Fengxia (guzheng), Carlos Zíngaro (violino), Joe Fonda (contrabaixo) e Lucas Niggli (bateria).Lisboa. Museu do Oriente. Hoje, 21h30. €15

Oportunidade rara para testemunhar o poder universal da comunicação musical, num

encontro que reúne quatro músicos de locais tão diversos como a China, Portugal, Estados Unidos e Camarões. Um espectáculo em que se antevê uma música de tonalidades orientais, dadas essencialmente pelo guzheng de Fengxia, abordada sob o ponto de vista de uma música de câmara contemporânea, de forte cariz espontâneo e improvisacional, pontuada por colorações jazz e de música do mundo.

Poderíamos também dizer apenas que se trata de uma música nova, raramente ouvida, interpretada por quatro improvisadores consagrados.

Xu Fengxia é uma instrumentista chinesa de Xangai, virtuosa no guzheng, instrumento tradicional de cordas chinês que pode ser tocado com os dedos, com arco ou percutido com baquetas próprias. A sua carreira alterou-se significativamente após conhecer o contrabaixista alemão Peter Kowald, com o qual actuou extensivamente em toda a Europa, integrada no seu projecto “Global Village”. Carlos Zíngaro dispensa apresentações, sendo unanimemente considerado o maior e mais importante improvisador nacional. Do contrabaixista Joe Fonda, que já visitou Portugal diversas vezes, podemos dizer que integrou alguns dos mais interessantes projectos de Anthony Braxton, entre 1984 e 1999. Finalmente, Lucas Niggli, o menos conhecido dos quatro, é um percussionista global, que acumula colaborações com gente tão diversa como Fred Frith, Barry Guy, Pierre Favre, Sylvie Courvoisier ou Sainkho Namchylak. R.A.

Clássica

Excelência democrática

Lisa Batiashvili e Orquestra de Câmara da EuropaCom Lisa Batiashvili (violino). Maestro: Osmo Vänskä. Lisboa. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian. Avenida de Berna, 45A. Dom. às 19h00. Tel.: 217823700. 20€ a 40€.

Mojca Erdmann e Orquestra de Câmara da EuropaCom Mojca Erdmann (soprano). Maestro: Thomas Hengelbrock. Lisboa. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian. Avenida de Berna, 45A. 2ª às 19h00. Tel.: 217823700. 20€ a 40€.

No ano passado, a Orquestra de Câmara da Europa (OCE) foi a protagonista de alguns dos mais empolgantes concertos da temporada Gulbenkian. De regresso a Lisboa para uma nova residência - entre 5 e 15 de Março - promete deslumbrar-nos de novo com três programas e com a qualidade fora de série dos seus instrumentistas.

Em entrevista ao PÚBLICO na sua última passagem por Lisboa (ver P2 de 13-1-2008), o director geral desta conceituada formação, Simon Fletcher, dizia que um dos segredos do sucesso se devia ao facto de se tratar de “uma orquestra dos próprios músicos”, onde todos se envolvem democraticamente nas opções artísticas. “Não há director artístico nem em cima do pódio, nem nos bastidores, são os instrumentistas que decidem tudo.”

A orquestra é actualmente formada por 50 instrumentistas de 15 países, que correspondem aos mais altos padrões de excelência. “Por exemplo, o naipe dos violinos tem 18 elementos, 12 deles são líderes em diferentes orquestras e ensembles europeus. Ou seja, temos 12 concertinos!”, explicou Flechter.

A OCE não tem uma base fixa ou uma sede para temporadas e ensaios, funcionando como uma formação itinerante, que faz residências em instituições e países diferentes. A ideia surgiu em 1980 no Festival de Salzburgo, quando alguns dos membros mais experientes da Orquestra de Jovens da Comunidade Europeia manifestaram o desejo de continuar a tocar juntos numa base mais profissional, e foi encorajada por Claudio Abbado que dirigiu uma série de concertos e gravações de enorme sucesso logo nos primeiros anos, incluindo o premiado registo da ópera de Rossini “Il Viaggio a Reims”. Destaca-se também a relação privilegiada com Nikolaus Harnoncourt, com quem gravou a integral das sinfonias de Beethoven e Schubert (ambas prémios Grammophon).

No próximo domingo, na Gulbenkian, a OCE vai interpretar a Sinfonia nº3, de Brahms, e o Concerto para Violino, de Sibelius (com Lisa Batiashvili como solista e a direcção de Osmo Vanska) e no dia 9 propõe trechos de ópera romântica italiana, cantados pela soprano Mojca Erdemann, e uma homenagem a Haydn no ano do bicentenário da sua morte (com a Sinfonia nº 104). Em colaboração com o Coro Gulbenkian, a orquestra apresenta, ainda, nos dias 13 e 14, mais um programa imperdível, constituído pela oratória “A Criação”, de Haydn. Cristina Fernandes

Sinfónica da Galiza no CCB

Orquestra Sinfónica da GalizaDirecção Musical: Victor Pablo Pérez. Com Anne Schwanewilms (soprano). Lisboa. Centro Cultural de Belém. Praça do Império. 6ª às 21h00. Tel.: 213612400. 5€ a 25€ (sujeito a descontos).

Orquestra Sinfónica da Galiza IIDirecção Musical: Victor Pablo Pérez, Joan Company (coro), Mireia Barrera (coro). Com Elena de La Merced (soprano), Maite Arruabarrena (meio-soprano), Agustin Prunell (tenor). Com Coro da Sinfónica da Galiza, Cor Madrigal. Lisboa. Centro Cultural de Belém. Praça do Império. Dom. às 17h00. Tel.: 213612400. 5€ a 25€ (sujeito a descontos).

O Centro Cultural de Belém apresenta dois concertos com a Orquestra Sinfónica da Galiza, uma das mais prestigiadas formações instrumentais espanholas, sob a direcção do seu maestro titular Víctor Pablo Perez. Dois imponentes programas colocam lado a lado grandes obras da história da música ocidental com peças de compositores espanhóis, contemplando a participação de vários solistas internacionais, do Coro da Sinfónica da Galiza e do Cor Madrigal.

No concerto de hoje (às 21h), com a soprano Anne Schwanewilms, domina a música de Mahler, representada por quatro Lieder da

Músicos da China, Portugal, EUA e Camarões no espectáculo “Off Road”

Wayne Shorter, um dos maiores saxofonistas de sempre

Orquestra de Câmara da Europa

Orquesta da Galiza, uma das mais prestigiadas formações espanholas

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Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009 • 43

compilação “Des knaben Wunderhorn” e pela belíssima Sinfonia nº4. A abrir, será apresentada a peça “But in vain...”, de Eduardo Soutullo (n. em Bilbao, em 1968), um dos representantes do pós-modernismo musical por oposição à vanguarda experimental da geração anterior.

No domingo, às 17h, a obra “Impressão Nocturna”, de Andrés Gaos (1874-1959), compositor galego que viveu grande parte da sua vida na Argentina, precede a Sinfonia nº 2 (“Lobgesang”), de Mendelssohn, cuja estrutura recorda a Nona de Beethoven ao incluir um andamento para coros e solistas no final.

Criada em 1992 pela Câmara Municipal da Corunha, a Sinfónica da Galiza tem construído um sólido percurso artístico. Foi a orquestra residente do Festival Rossini de Pesaro entre 2003 e 2005 e constitui a formação base do Festival Mozart da Corunha desde a sua criação em 1998. As suas digressões internacionais têm incluído a Alemanha, a Áustria e a América do Sul e as suas gravações para diversas editoras (Decca, EMI, Koch, Naïve, BMG e Arts) ilustram parcerias com intérpretes tão importantes como Juan Diego Flórez, Peter Maag, Antonio Meneses, Manuel Barrueco, María Bayo, Plácido Domingo, Juan Pons ou Ewa Podles. C.F.

Pop

Pop em farrapos

BarnwavePorto. Plano B. Rua Cândido dos Reis, 30. Hoje, às 23h00. Com Karl Injex & Maria Gambina. Tel.: 222012500. Bilhetes a 5 euros.

Lisboa. Galeria Zé dos Bois, R. da Barroca, 59. Amanhã, às 23h. Com Rita Braga e Martírio Baptista. Tel.: 213430205 Bilhetes a 8 euros

Ninguém sabe muito bem o que esperar de um concerto dos Barnwave, o duo de Kevin

Blechdom, agitadora feminista com currículo na música electrónica e na performance, e Christopher Fleeger. Há quem lhes chame “computer country” ou “industrial country cabaret”, rótulos que, a bem da verdade, pouco ou nada esclarecem.

Alguns vídeos no YouTube fornecem mais pistas, mas da pesquisa só saímos mais confundidos: eis Kevin Blechdom com chapéu de “cowboy” e garrafa de cerveja na mão; ei-la a entregar-se a uma versão de Evanescence (com desafinações vocais a sublinhar o drama), a fazer em farrapos “Ring the Alarm” de Beyoncé; eis o duo a passar por pedaços de músicas de Eminem e Kylie Minogue com o mesmo à vontade com que arriscam canções de cabaret e baladas desbragadas ao piano, sem medo do ridículo (ele é parte do espectáculo).

Depois dos Adult Rodeo e Blectum From Blechdom, Barnwave é mais um veículo artístico de Kevin Blechdom, artista apostada em confundir os ouvintes e diluir as fronteiras entre a arte dita séria e a música popular mais hedonista. Versões e canções do seu próximo álbum, “Gravity”, agendado para Abril, devem figurar no alinhamento dos dois concertos que dará em Portugal.

A passagem por Lisboa será uma oportunidade para Kevin conhecer a

cidade onde será encenado “Demo”, um musical do Teatro

Praga cuja música original será composta em colaboração por ela e Andres Lõo, músico e performer estónio - estreará em Julho no Teatro Municipal São Luiz. Na ZDB, a noite começa com as canções ao “ukulele” (instrumento semelhante ao cavaquinho) de Rita Braga e termina com Marta Von Calhau da dupla portuense Calhau!, sob o alter ego Martírio Baptista, a ocupar-se dos discos (tarefa que no Porto caberá aos DJ Karl Injex e Maria Gambina). Pedro Rios

Vendaval Mão Morta chega ao Porto

Mão Morta + Smix Smox SmuxPorto. Teatro Sá da Bandeira. R. Sá da Bandeira, 108. 6ª às 21h30. Tel.: 222003595. 18€. Pré-venda: 15€.

Em palco, a aventura de “Maldoror” já lá vai. Agora é tempo de apreciar o DVD, recentemente editado, que documenta o espectáculo baseado nos “Cantos de Maldoror”, de Conde de Lautréamont, com que os Mão Morta percorreram o país entre 2007 e 2008. E, depois desse

espectáculo singular, concerto performance ou dramaturgia rock em que os autores de “Mutantes S. 21” recriaram uma das suas obras de referência, ei-los de volta ao rock’n’roll no formato em que estamos habituados.

“Ventos Animais” é o título da digressão e diz-nos duas coisas. Primeiro, sugere o carácter violento, urgente e visceral que sempre associámos às actuações da banda bracarense. Segundo, considerando que “Ventos animais” é também título de uma das canções de “Corações Felpudos”, o segundo álbum dos Mão Morta, estimula-se a ideia de que a digressão se constrói de revisita à obra do grupo. Deles, contudo, convém não esperar o conforto da nostalgia tão habitual no universo do rock. Nada isso interessa aos Mão Morta, que nunca se preocuparam com a datação inscrita nas canções. Tocam-nas hoje para que ressoem no presente, celebram-nas agitando-as e eliminando qualquer hipótese de conservadora cristalização. O “Oub’lá”, o “Anarquista Duval” ou o “Em directo (para a televisão)” que se ouvirão no Teatro Sá da Bandeira, nesse Porto onde não actuam há longos cinco anos, não são relíquias a tratar com cuidado redobrado. São matéria viva e, ontem como hoje, altamente inflamável.

A primeira parte do concerto será da responsabilidade dos também bracarenses Smix Smox Smux, trio que prepara o seu primeiro registo oficial (sairá pela Amor Fúria) e que, desde meados do ano passado, vem suscitando curiosidade crescente pelo rock’n’roll directo e propositadamente descuidado, onde guitarras esculpem melodias deliciosamente trauteáveis e três vozes, em português e de coros afinados na estética punk, se dedicam a cantar historietas do quotidiano com imagens de um nonsense desarmante. Mário Lopes

A pop burlesca de Simon Bookish

Simon BookishFamalicão, Casa das Artes. Sábado, 7. Às 21h30. € 10

Autor multifacetado, tão conhecido por criar instalações para o circuito da arte como compor para dança contemporânea ou criar bizarras canções pop, o inglês Leo Chadburn, mais conhecido por Simon Bookish, estreia-se em Portugal, revelando o seu mais recente álbum, “Everything/Everything”.

Disco editado na segunda metade do ano passado que lhe granjeou culto, difícil de enquadrar, algures entre as aventuras conceptuais de Matthew Herbert, a musicalidade barroca de Final Fantasy e o gosto refinado e muito britânico de cantar do ex-Pulp Jarvis Cocker. É uma sonoridade algo intricada, mas ao mesmo tempo de apelo directo, aquela que tem para propor, recheada de orquestrações e motivos electro-acústicos, enleados num jogo de palavras delirante, frequentemente acompanhadas por trompetes, clarinetes ou harpas. O resultado final é excessivo, como se Simon Bookish fosse uma trovador romântico dos tempos modernos. Como é que este teatro burlesco funcionará em palco é o que se verá em Famalicão. V.B.

Blechdom, agitadora feminista

Os Mão Morta de volta ao rock

Simon Bookish, sonoridade intrincada

Agenda

Sexta 6Simone & Zélia DuncanLisboa. Praça de Touros do Campo Pequeno. Campo Pequeno. 6ª às 21h30. Tel.: 217820575. 15€ a 60€.

Dual IdentityCom Steve Lehman (saxofone), Rudresh Mahnathappa (saxofone), Liberty Ellman (guitarra), Matt Brewer (contrabaixo), Damion Reid (bateria). Braga. Theatro Circo. Av. Liberdade, 697. 6ª às 22h00. Tel.: 253203800. 10€, 40€.

The Legendary Tiger ManCaldas da Rainha. Centro Cultural e Congressos das Caldas da Rainha. Rua Doutor Leonel Sotto Mayor. 6ª às 21h30. Tel.: 262889650. 10€

André Fernandes QuartetoCom André Fernandes (guitarra), Mário Laginha (piano), Nelson Cascais (contrabaixo), Alexandre Frazão (bateria). Espinho. Auditório de Espinho. Rua 34, 884. 6ª às 21h30. Tel.: 227340469. 10€.

Jazz Lovers - Os Amantes do JazzDirecção Musical: Carlos Martins (saxofone). Com Tiago Rodrigues (actor), João Moreira (trompete), Nelson Cascais (contrabaixo), Bruno Pedroso (bateria), Nuno Ferreira (guitarra), Rui Caetano (piano). Portimão. Teatro Municipal de Portimão. Praça 1º de Maio. 6ª às 21h30. Tel.: 282480496. 10€ (sujeito a descontos).

Bunnyranch + Tó TripsLisboa. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59 - Bairro Alto. 6ª às 23h00. Tel.: 213430205. 6€.

Ana & The GoodfellasEstoril. Casino Estoril. Pç. José Teodorodos Santos. 6ª e Sáb. às 21h30 e 00h20 (dias 13 e 14).6ª e Sáb. às 22h55 e 01h35 (dias 6 e 7).2ª, 3ª, 4ª, 5ª e Dom. às 22h10 e 00h10. Tel.: 214667700. Entrada livre.

Gala do Kretcheu: Dany Silva + Rui Veloso + Maria Alice + Tito ParisLisboa. Armazém F. R. Cintura Porto Lisboa, Armazém 65, Cais do Gás. 6ª às 20h00. Tel.: 213220160. 25€ ( jantar-concerto); 12€ (concerto). Informações e reservas: 963660756, [email protected].

Sábado 7Divino SospiroCom Chiara Banchini (violino), Maria Christina Kiehr (soprano). Maestro: Chiara Banchini. Lisboa. Centro Cultural de Belém. Praça do Império. Sáb. às 19h00. Tel.: 213612400. 12,5€ a 15€ (sujeito a descontos).

Mísia, Michel Portal e Orquestra Metropolitana de LisboaDirecção Musical: Bruno Fontaine. Com Michel Portal (saxofone; clarinete e bandonéon), Mísia (voz), Bruno Fontaine (piano). Lisboa. Cinema São Jorge. Av. Liberdade, 175. Sáb. às 22h00. Tel.: 213103400. 10€ a 20€.

Festival Trans-Portal

Domingo 8Concerto de Solidariedade às Comunidades AfricanasLisboa. Aula Magna. Alam. Universidade. Dom. às 17h00. Tel.: 217967624. 17,5€.

Com Nelson Freitas e Kaysha

Segunda 9Músicas de Buenos AiresCom Marcelo Nisinman (bandoneon), Araceli Fernández González (soprano), Corinne Chapelle (violino), Tiago Pinto-Ribeiro (contrabaixo), Pedro Madaleno (guitarra eléctrica), Rosa Maria Barrantes (piano). Lisboa. Centro Cultural de Belém. Praça do Império. 2ª às 21h00. Tel.: 213612400. 12,5€ a 15€ (sujeito a descontos).

Terça 10O MorcegoEncenação: Alexander Herold.

Direcção Musical: Martin Mázik. Com Wiener Operetten. Compositor: Johann Strauss. Lisboa. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão, 96. 3ª às 21h30. Tel.: 213240580. 10€ a 40€. Camarotes: 75€ a 210€.

Quarta 11Opus EnsembleCom Olga Prats (piano), Ana Bela Chaves (viola), Alejandro Erlich Oliva (contrabaixo), Pedro Ribeiro (oboé). Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho de Albuquerque. 4ª às 19h30. Tel.: 220120220. 10€.

TrioCom Michel Portal (clarinete), Augustin Dumay (violino), Vanessa Wagner (piano). Lisboa. Teatro Municipal de S. Luiz. R. Antº Maria Cardoso, 38-58. 4ª às 21h00. Tel.: 213257650. 10€ (sujeito a descontos).

Quinta 12Shelly HirschPorto. Museu de Serralves. Rua Dom João de Castro, 210. 5ª às 22h00. Tel.: 226156500.

Fabulous Diamonds + Tropa MacacaLisboa. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59 - Bairro Alto. 5ª às 23h00. Tel.: 213430205. 8€.

Maria Alice, hoje, na Gala do KretcheuMísia, no Festival Trans-Portal, sábado

Michel Portal, sábado e domingo

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44 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

Pop

Terna era a noite

Figuras de culto do rock/folk (Arcade Fire, Cat Power, Feist, Antony, National) dão as mãos pela organização Red Hot e daí nasce uma boa compilação. Vítor Belanciano

VáriosDark Was The Night 4 AD, distri. PopStock

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Desde 1990, altura em que foi editada a antologia Red Hot + Blue, com versões de Cole Porter, que a organização Red

Hot tem sido responsável por importantes compilações com vista à recolha de fundos para a luta contra a sida. “Dark Was The Night” é a última de uma longa série de operações semelhantes e merece ficar entre as melhores.

Normalmente, há sempre um ponto de partida para as colectâneas, seja um autor, um lugar ou um género. Nesse sentido, esta dupla antologia parece funcionar como continuação de “No Alternative”, do princípio da década de 90, que reflectia as linguagens mais alternativas do rock da época contendo temas dos Nirvana, Smashing Pumpkins, Soundgarden ou Sonic Youth.

A nova compilação recruta uma multidão de nomes que tem tido visibilidade nos últimos quatro anos, conotados com os cenários mais alternativos do rock ou folk, como Arcade Fire, Blonde Redhead, Beirut, Feist, Sufjan Stevens, Antony, Grizzly Bear, Dirty Projectors, Yeasayer, Andrew Bird, Bon Iver ou os The National, que acabaram por estar ligados à produção do disco.

Uma constatação óbvia, comparando as duas colectâneas: dos anos 90 para cá, o rock está menos incisivo e estridente. Agora a maior parte dos protagonistas opta por desenvolver atmosferas mais tranquilas, seja na abordagem de originais ou na criação de versões para canções tradicionais americanas

No total são 31 canções

exclusivas, que resultaram de abordagens solitárias ou de parcerias. No campo das parcerias destaca-se a junção da canadiana Feist com os americanos Grizzly Bear ou o encontro de duas gerações de nova-iorquinos, os magníficos Dirty Projectors com letra e voz do sempre renovado David Byrne. A electrónica rendilhada dos americanos The Books com a voz do sueco Jose Gonzales ou a de Antony com a guitarra acústica de Bryce Dessner dos National, em “I was young when i left home” de Bob Dylan, são outros duetos em evidência.

Uma das surpresas é a versão de “With a girl like you” dos Troggs por David Sitek dos TV On The Radio ou as novos originais dos Grizzly Bear e Yeasayer, numa linha mais harmónica do que costumam oferecer. Também há semi-desilusões (Sufjan Stevens, Arcade Fire) e faltam por aqui nomes óbvios (com destaque para os Animal Collective). Mas isso não diminui uma compilação muito acima da média.

Vida quase clonadaÉ um disco de belíssimas canções à qual por vezes falta um pouco de frémito. João Bonifácio

Cristina BrancoKronosUniversal

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Ao longo de 13 anos e quase uma dezena de discos de originais, Cristina Branco foi criando um corpo musical de

meticulosa coerência, em que a canção e alguns elementos do fado se casam, sempre com prestimoso cuidado nos arranjos - que não existem por acaso ou porque sim,

mas para servir aquela específica voz. Tudo na obra de Branco tem

a sua voz

por epicentro e tudo decorre daí, como se a voz fosse a única constante de uma equação de múltiplas variáveis - pelo que desde o início foi na voz que se concentraram os elogios e dúvidas acerca de cada disco: os defensores de Branco gabam-lhe a colocação exímia de cada nota, os detractores acusam-na de ser demasiado delicada.

Têm ambos razão, curiosamente, como é verificável ao longo da sua obra (e concertos ao vivo) e novamente se manifesta em “Kronos”, o seu mais recente álbum de originais, primeiro desde “Ulisses” (2005) e primeiro sem Custódio Castelo, que, desde o início, compôs e desenhou o som, a rede que sustentou a delicada voz da fadista. “Kronos” tem, por isso, um motivo de interesse suplementar: ver se há vida em Cristina depois de Castelo. Há vida, sim, e vida bela, mas é vida clonada, ou quase: o “som” que Branco cria neste disco está muito próximo daquele que Castelo lhe imaginou. Branco herdou o som e introduziu apenas as mudanças que decorriam de já não ter compositor fixo; além disso, fez uma operação de limpeza, concentrando-se no essencial: fazer ouvir mais a canção enquanto todo que a beleza dos arranjos. A mais valia imediata de “Kronos” é o talento de composição: por aqui passam escritores de canções como Janita Salomé, Sérgio Godinho, Carlos Bica, Zé Mário Branco, Mário Laginha, Vitorino e nenhum deles oferece refugo. O piano e a guitarra continuam a dominar, mas, mais que variações sobre o fado, desta feita parece ser o tango a ser alvo de desmontagem e reconstrução (método aplicado ao longo de 13 anos). Isso está patente no “Tango” que Laginha oferece a Branco (canção muito bonita, muito bonita mesmo), e é notório em outras faixas: naquele piano em pára-arranca de meticulosas pausas de “Longe do Sul” (Bica), com um belíssimo arranjo de guitarra e exímio refrão; e mesmo no fado que abre o disco, “Trago um Fado”, está-se mais próximo da América Latina que da velha Europa. Esse ritmo arrastado percorre todo o disco, e Branco atravessa-o com classe, dando aqui mais densidade à voz, ali maior leveza: as alterações ao registo habitual de Branco são mínimas, mas de uma subtileza apreciável. No entanto, por vezes ela não consegue evitar que a marca autoral se imponha à voz e é claro desde o primeiro acorde que “Bomba Relógio” sai da pena de Godinho, tal como ninguém duvida que “Bichinhos Distraídos” tenha assinatura de Zé Mário Branco.

É um grande disco? É um disco de belíssimas canções, prolongando o registo que já lhe conhecíamos (até porque é notório que os compositores escreveram para esta voz) e alcançando a mesma beleza, à qual por vezes falta um pouco de frémito.

Beirut March Of The Zapotec and Real People HollandPompeh, distri. PopStock

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Após o momento de aclamação que constitui o segundo álbum, “The Flying Club Cup“ (2007), o

americano Zach Condon (Beirut) entrou, literalmente, em colapso físico. Talvez para atenuar a pressão das expectativas, resolveu agora editar um álbum que não é bem um álbum, trata-se de um duplo EP com duas partes distintas. Na primeira (“March Of The Zapotec”) faz-se acompanhar do colectivo mexicano The Jimenez, na segunda (“Real People Holland”) propõe uma abordagem singular à canção pop de roupagem electrónica. Tal como os seus dois primeiros discos, constituídos por canções que revelavam um espírito boémio capaz de evocar as avenidas chiques de Paris ou os espaços despojados dos Balcãs, também a primeira parte propõe uma viagem. Desta feita somos transportados para as ruelas de uma qualquer vila do México, deambulação vagabunda ao som de uma charanga, capaz de propor aquele tipo de clima ambíguo, também comum na música dos balcãs, doses iguais de festa e melancolia - som de marcha funerária ou será de bailarico no salão de baile da vila? Na segunda metade, a vocação acústica perde terreno para as electrónicas, em canções que apesar do dinamismo rítmico nunca perdem o carácter melancólico. Como conceito, é um objecto singu-lar, apontando para visões muito dife-renciadas da personalidade musical de Zach Condon, mas em qualquer uma delas encontram-se ideias com solidez para que Beirut continue sob observação, até que o verdadeiro terceiro álbum chegue. V.B.

Marnie SternThis Is It And I Am It And You Are It...Kill Rock Stars; distri. Sabotage

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Tudo parece exagerado na música de Marnie Stern. As guitarras sobrepostas e tocadas com precisão mecânica

e a bateria do virtuosíssimo Zach Hill, dos Hella, que preenche todos os espaços com ligeireza de insecto e peso de mastodonte. Isso e a voz esganiçada de Stern, isso e canções que se desenvolvem a velocidade estonteante e que, de resto, nem são bem canções, são cavalgadas de suster a respiração. À primeira vista, Marnie pertence à

Marnie Stern

Uma parceria a destacar na compilação: os magnífi cos Dirty Projectors com letra e voz do sempre renovado David Byrne

Para atenuar a pressão, Zach Condon lança um álbum que não é bem um álbum

Os defensores de Branco gabam-lhe a colocação exímia de cada nota, os detractores acusam-na de ser demasiado delicada; têm ambos razão R

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¬Mau ☆Medíocre ☆☆Razoável ☆☆☆Bom ☆☆☆☆Muito Bom ☆☆☆☆☆Excelente

Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009 • 45

classe de bandas que retalha os formatos rock canónicos para os reconstruir em novas e irreconhecíveis configurações - lembramo-nos de Lightning Bolt, Numbers ou X-Models, e, recuando no tempo, encontramos paralelismos com a atitude vanguardista da no-wave nova-iorquina. Acontece que, se Marnie Stern é vanguardista, imaginamo-la de fita na cabeça, improvisando air-guitar sobre canções de Thin Lizzy e Van Halen. E se a música é convulsiva - histericamente convulsiva, diríamos - é-o de uma forma única. Ouça-se “Ruler”: a guitarra, incandescente, desenhando rápidas pinceladas, a voz de girl-group alucinado, a bateria de uma irrequietude incrivelmente precisa e, ali no momento em que tudo isto se conjuga num refrão, a melodia define-se por fim e damos por nós, acima do turbilhão anterior, a levitar entre as nuvens de um céu deliciosamente pop. Em Marnie Stern, há riffs hard-rock para nosso prazer “headbanger”, há vanguardismo que prefere comunhão a forçar uma cisão, há cenários de tensão cinematográfica e uma surpreendente inventividade, capaz de encontrar harmonia no caos, capaz de transformar uma orquestra de sons de guitarra em rock que, à semelhança de uns Deerhoof, procura extrair algo de familiar das combinações mais improváveis. Nesta histriónica Marnie Stern descobrimos alguma da música mais entusiasmante e surpreendente dos últimos tempos. Mário Lopes

Jazz

Dedicado à vida

Shirley Horn captada ao vivo num momento de grande forma, demonstrando que menos pode ser mais. Rodrigo Amado

Shirley Horn“Live at the 1994 Monterey Jazz Festival”MJF, dist. Universal

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Em 1994, Shirley Horn estava no auge da sua carreira, facto pouco usual para uma cantora com 60 anos de idade.

Depois de um período em que gravou nos anos 60 impulsionada por dois dos seus maiores admiradores, Miles Davis e Quincy Jones, afastou-se durante mais de uma década para regressar com uma série de registos para a Steeplechase, entre os quais o belíssimo “Violets for Your Furs”. Em 1987, já com 53 anos, assina contrato

com a Verve Records e inicia um período de ouro em que conquista o reconhecimento do público e da crítica, recebendo inclusive um Grammy pelo aclamado “I remember Miles”.

Neste “Live at the 1994 Monterey Jazz Festival”, gravação inédita com excelente qualidade áudio, Shirley Horn actua com o seu trio num set de invulgar simplicidade e intimismo. Bastante longe de alguns excessos de produção que marcaram outros registos desta fase, a cantora entrega-se por completo em interpretações notáveis de alguns “standards” e temas do cancioneiro pop como “The look of love”, de Burt Bacharach, ou “A song for you”, de Leon Russell, esta última imortalizada por Donny Hathaway. Acompanhada pelo seu habitual baixista, Charles Ables, e por Steve Williams na bateria, demonstra que menos pode ser mais, e a sua mestria na interpretação de baladas revela-se com uma simplicidade desarmante, sem qualquer tipo de maneirismos ou afectações.

Outro factor que reforça a magia da sessão é a forma como a cantora toca piano, optando por uma invulgar escolha de acordes e mergulhando fundo na harmonia das canções em alguns inspirados momentos de improviso. Destaque para “I’ve got the world on a string”.

Labirinto de faunos Em “Warblepeck” há múltiplas novas direcções para o jazz actual. Rodrigo Amado

Tony Malaby Cello TrioWarblepeckSonglines, dist. Trem Azul

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Tony Malaby é um virtuoso absoluto no saxofone e um dos poucos músicos que está realmente à vontade tanto no jazz mais tradicional como nas correntes mais modernas e experimentais do género. O seu talento invulgar e a absoluta paixão com que se entrega a cada projecto fez dele um dos mais requisitados “sidemen” de Nova Iorque. Para além das centenas de concertos que realiza todos os anos com os mais diversos projectos, o seu saxofone aparece em mais de 50 álbuns, em registos de músicos como Paul Motian, Marty Ehrlich, Fred Hersch, Mark Helias, Tom Varner ou Mario Pavone, sempre a marcar a diferença e com um único propósito; servir a música. Esta é, aliás, uma das características da sua abordagem - apesar de possuir uma enorme técnica, Malaby não opta nunca por demonstrações estéreis de virtuosismo, mas sim por procurar a musicalidade certa para cada situação, encontrando por vezes soluções de uma simplicidade desarmante.

Neste registo, surpreendente do início ao fim, Malaby explora fundo a criatividade musical e aquilo que se pode fazer com um saxofone, um violoncelo e uma bateria. Para isso, foi buscar dois dos mais extraordinários músicos da actualidade; o violoncelista Fred Lonberg-Holm (membro dos Vandermark 5 ou do Chicago Tentet de Peter Brotzmann) e o baterista John Hollenbeck (mentor dos Claudia Quintet). A música tocada é de uma criatividade extrema, desdobrando-se em direcções inesperadas e diferentes de faixa para faixa. No entanto, a consistência do registo é enorme, unificada pela intensidade emocional do trio e por uma forte noção de que a esta variedade corresponde uma personalidade multifacetada dos músicos, algo de muito verdadeiro. Notável a versão de “Waiting inside”, tema de Bill Frisell onde o trio desenvolve uma música de câmara envolvente, de um lirismo intenso. No outro extremo estão “Remolino”, segunda parte de “Fly on wall” onde o saxofone de Malaby emula a distorção amplificada do violoncelo de Lonberg-Holm, ou o rigor estrutural de “Sky church”, com uma sequência fulgurante de riffs saxofone-bateria. Mais vivo que isto, é difícil.

Alexandra Lucas Coelho

Viagens com bolso

Frederick

Estou em falta para com Frederick.

No fi m de Junho, a caminho do aeroporto de Cabul, fi z um desvio relâmpago pela casa onde ele dormia e deixei-lhe todos os meus postais comprados na rua, escritos na véspera e por

enviar. Na maioria dos casos nem chegavam a ser postais, eram

rectângulos de papel fotográfi co com cenas da diversidade afegã. O que eu gostava mais tinha dez caras de homens sorridentes, “pashtuns”, “tajiqs”, “hazaras”, turcomenos, uzbeques, em diferentes tons de pele, barba e cabelo, uns de olhos em bico, outros de turbante e “khol” nos olhos. Esse era um postal a sério, mas alguns dos postais-fotografi a pareciam reuniões familiares com alguém já um pouco fora do enquadramento ou a cabeça cortada.

Sou uma péssima correspondente, e tendo deixado os postais para o fi m, como sempre, teriam sido precisas horas para descobrir os correios em Cabul, horas que subitamente eu já não tinha. Mas Fredrick também precisava de enviar postais, só partia para Hong Kong dois ou três dias depois de eu partir para Lisboa e ofereceu-se para tratar da minha correspondência.

Foi assim que todos os destinatários portugueses receberam em casa, talvez um mês depois, envelopes a sério, com carimbos locais e uma sólida caligrafi a.

O melhor do meu correio afegão é pois obra de um inglês, um verdadeiro viajante inglês daqueles que eu ainda só tinha encontrado nos livros, porque já não estão vivos.

Além de estar vivo, a vantagem de Frederick é ser tão novo que ninguém tão novo anda a viajar pelo Afeganistão, sobretudo quando já viajou umas sete vezes pela China, sem contar com a Mongólia, o Irão e a Turquia.

Acreditem, Frederick tinha 21 anos e agora não pode estar muito mais velho. Em Junho, quando o conheci, já ele estava certo de que um dia será ministro dos Negócios Estrangeiros.

“Torie”, claro. É menos provável que

aos 21 anos os fi lhos da classe trabalhadora, entre várias outras línguas, falem fl uentemente mandarim, e

se ofereçam para passar parte das férias a trabalhar no Afeganistão. Mesmo que quisessem provavelmente não podiam.

Frederick quer, pode e está a ser preparado para isso desde os quatro anos, pelo menos, quando começou a usar gravata antes de ter aprendido a atar os sapatos. Vive entre Hong Kong, Londres e Princeton, mas andou dias com a mesma “shalwar kamiz” afegã, os mesmos sapatos cambados das pedras e da lama, e comeu peixinhos do rio sentado no chão, quando o carro parou numa banca de estrada, depois de passarmos a aldeia taliban que era o nosso suor frio.

Foi por causa deste carro que conheci Frederick. Como muitos viajantes ingleses nos livros, ele poderia

- suponho eu, claro que ele nunca o disse - pagar um carro sozinho para ir ver os Budas a Bamiyan, até dois carros com escolta armada (que era como as pessoas estavam a ir se não iam de avião, por causa dos taliban, dos salteadores e dos raptos).

Mas não seria a aventura fugazmente partilhada. E assim, uma portuguesa, uma alemã e o afegão mais sorridente de Cabul são personagens da aventura de Frederick em Bamiyan, tal como Frederick é personagem da nossa aventura.

Frederick, ou aquelas pessoas que nunca voltaremos a ver, e assim é.

Mas tenho de cumprir o prometido e enviar as fotografi as dele a sair dos lagos de Band-e-Amir com a “shalwar kamiz” molhada até aos pés, antes de subir para a carcaça de um tanque. Farão a lenda de um futuro ministro.

[email protected]

O melhor do meu correio afegão é obra de um inglês

Para mim, este é um dos mais aguardados discos de 2009. Quatro anos após o fantástico “Some Cities”, os Doves vão voltar a levantar voo com “Kingdom of Rust”, que tem edição agendada para 6 de Abril. Apesar de estarmos diante de uma

pequena eternidade, já é possível escutar “Jetstream”, tema onde a voz de Jimi Goodwin aparece escondida por trás de uma onda dançante perfurmada, anunciando uma explosão que nunca chega a acontecer - estará

certamente guardada para o quarto mês do calendário. O tema está disponível para download no site ofi cial da banda, em www.doves.net.Pedro Miguel Silva, 35 anos, Técnico de Comunicação

EspaçoPúblico

Tony Malaby é um virtuoso absoluto no saxofone

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Shirley Horn

46 • Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009

Que comece o n da vida de E Quase cinco anos depois do último álbum de originais, Eminem e

tem data de lançamento ofi cial, apesar de Março ser referido por muitos c

Ípsilon • Sexta-feira 6 Março 2009 • 47

o novo capítulo e Eminem

m está (quase) de regresso com um novo disco, “Relapse”. Ainda não s como mês provável. É um dos álbuns mais secretos de 2009. Pedro Rios

Já o vimos empunhando uma moto serra, com a face escondida por uma máscara de hóquei, a lembrar um psicopata, numa digressão conve-nientemente chamada de “Anger Management”, a “rappar” letras polé-micas contra homossexuais, mulhe-res e estrelas do mundo do espectá-culo, a alimentar uma polémica de faca e alguidar com a mãe nos jornais, acusando-a de não lhe ter dado boa educação.

Mas em 2006 o irrequieto, incon-veniente e outrora rei do hip hop calou-se e escondeu-se - e o silêncio foi pesado, tendo em conta que o último álbum de originais do músico de Detroit, “Encore”, era de Novem-bro de 2004.

O que é que leva um artista destes - que se tornou num dos vários “ini-migos públicos número um” da Amé-rica conservadora e moralista, sendo alguém que se alimenta da polémica e que faz dela parte fundamental do seu espectáculo e cuja “energia ver-bal” foi elogiada, em 2003, pelo Nobel da Literatura Seamus Heaney - a calar-se durante tantos anos?

A vida real, a mesma que no pas-sado serviu como propulsor criativo para Eminem ou Marshall Bruce Mathers III, nome civil do “melhor ‘rapper’ vivo”, segundo uma votação organizada em 2008 pela importante revista especializada “Vibe”.

Em 2006, Proof, companheiro nos D12, banda onde Eminem milita, amigo de infância e padrinho do seu segundo casamento com Kimberley Anne Scott, foi assassinado. Depois desse acontecimento trágico, que afectou mentalmente Eminem, raras vezes as notícias sobre ele tinham algo a ver com a música. Já em 2005, “Slim Shady” tinha cancelado uma digressão alegando cansaço extremo e outros problemas de saúde (além de ter tratado a sua dependência de medicamentos para dormir). Com a morte de Proof, fechou-se na sua mansão em Clinton Township, na área metropolitana de Detroit, sem dar entrevistas, nem fazer digressões. O “site” TMZ, especializado em rumo-res, escândalos e figuras públicas, garantia em Janeiro do ano passado que o “eremita” Eminem estava com mais de 100 quilos (situação resol-vida meses depois). Ainda neste perí-odo, divorciou-se de Kimberley, com quem casara pela segunda vez (o segundo casamento durou menos de três meses).

O silêncio está prestes a terminar - afirmamos isto sem 100 por cento de certeza porque o sucessor de

“Encore”, que se chamará “Relapse”, já teve várias hipotéticas datas de lan-çamento. E ainda não tem data de lançamento oficial, apesar de Março ser referido por muitos como mês provável. É um dos álbuns mais secre-tos de 2009. E também um dos mais esperados: “Crack a Bottle”, “single” que junta Eminem, 50 Cent e Dr. Dre (os três artistas da Interscope terão álbuns a sair com intervalos curtos entre si) e deve estar no disco, bateu o recorde de vendas de “singles” em formato digital na semana de lança-mento, com mais de 418 mil “down-loads” legais.

Em Dezembro, Eminem abriu, pela primeira e única vez, um pouco o véu sobre o álbum, numa entrevista à “Billboard”. “Relapse” tem produção de Dr. Dre, que o acompanha desde “The Slim Shady” (1999), o primeiro álbum de Eminem com forte visibili-dade. “Eu e Dre estamos de regresso ao laboratório, como nos velhos dias”, contou. “Ele a fazer as faixas e eu a atingir aquela faísca que me faz escrever versos em cima delas. Não tenho uma química tão boa com nenhum outro produtor - nem por sombras. Dre acabará por produzir a maioria das faixas de ‘Relapse’.”

Antes e depois de Proof“Torture chambers, secret passage ways, vats of acid and deadly vaults. Damn, it feels good to be back, like having a relapse” (“Câmaras de tor-tura, passagens secretas, barris de ácido e cavernas mortíferas. Sabe mesmo bem estar de volta, é como ter uma recaída”), ouve-se em “I’m having a relapse”, o curto aperitivo (não chega a ser uma canção de pleno direito) que lançou em Outubro.

Especula-se que o disco espelhe o que Eminem, hoje com 36 anos, pas-sou nos últimos tempos, sobretudo com a morte de Proof. É sobre ele o primeiro capítulo de “The Way I Am”, a autobiografia que lançou em Outu-bro de 2008, vista como o pré-anún-cio do regresso ao “show business”. “Há uma vida enquanto o Proof estava connosco e uma vida depois disso - [a morte dele] marca uma ver-dadeira divisão. Ele significa para mim muito mais do que um capítulo de um livro poderia descrever, mas estou contente por tê-lo posto em primeiro lugar, como ele fez por mim tantas vezes”, disse à Billboard.

Numa animação em destaque no seu “site” oficial, Eminem surge num pequeno auditório, vazio, com o seu popular fato de treino cinzento, extremamente gordo (atrás dele há

um painel: “Hip-hop heroes of yes-terday”) - uma referência clara ao que foram dizendo sobre ele enquanto esteve fechado em casa. É como se dissesse: “Os que previam o meu fim enganaram-se redondamente.”

Na verdade, Eminem não esteve parado. Este mês o “The Indepen-dent” noticiava que os tempos de reclusão foram “surpreendentemente positivos”. “Ouvi dizer que tem mais de 300 canções completas, criadas nos últimos três anos”, disse ao jornal britânico Terry Simaan, proprietário da editora de hip hop de Detroit Oh Trey Nine. “Ele é um rato de estúdio. Se lhe apetecer, passa 12 a 15 horas por dia no estúdio.”

Especula-se que Elton John possa entrar no álbum: o cantor terá sido visto nas redondezas do estúdio. A concretizar-se, será uma nova cola-boração entre Marshall e Elton John, depois do dueto nos Grammys de 2001. Mais certa só a presença de 50 Cent em alguns temas, a julgar pelo que o próprio tem declarado.

Além do estúdio, durante os anos em que esteve longe dos holofotes, Eminem transformou-se num pai res-ponsável, dedicando-se a educar a filha Hailie, a sobrinha Alaina e Whi-tney, filha de Kimberley de outra rela-ção. O “rapper”que escandalizou a América estará mais maduro?

Nos excertos que a “Entertainment Weekly” publicou da autobiografia, ele diz: “Quando olho para os anos em que tudo me estava a acontecer, talvez tenha sido um pouco ... agres-sivo e ruídoso.” Algumas linhas à frente, reconhece que ainda não con-trola totalmente as emoções, apesar de a idade “ter feito uma diferença”. “Hailie e Alaine estão a crescer e já não levo as coisas tão a peito. Quer dizer, ainda tenho mau feitio, mas agora tenho mais controlo. (...) A minha família vem primeiro.”

“Está a olhar para a frente agora, com os níveis de energia e concen-

tração no máximo”, disse Paul Rosenberg, “manager” de Emi-nem, ao “New York Times”, quando foi lançada a autobiogra-fia do músico. “De certa forma, este é o fim do primeiro capítulo da carreira dele”, completou.

Quando decidir ver a luz do dia, “Relapse” será o iní-cio do próximo capítulo.

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“Eu e Dre estamos de regresso ao laboratório, como nos velhos dias”, contou. “Ele a fazer as faixas e eu a atingir aquela faísca que me faz escrever versos em cima delas. Não tenho uma química tão boa com nenhum outro produtor - nem por sombras. Dre acabará por produzir a maioria das faixas de ‘Relapse’”Eminem à “Billboard”