Consumo favela

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Consumo Favela Adriana Facina Somos desiguais e queremos ser sempre desiguais. E queremos ser bonzinhos benévolos comedidamente sociologicamente mui bem comportados. (Trecho do poema Favelário, de Carlos Drummond de Andrade) O geógrafo Mike Davis, no livro Planeta Favela, diz que os favelados são pelo menos um terço da população urbana global. O impacto desse dado faz com que as projeções urbanísticas para um futuro próximo devam levar em consideração que (...) as cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e aço, como fora previsto por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em grande parte de tijolo aparente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e restos de madeira. Em vez de cidades de luz arrojando-se aos céus, boa parte do mundo urbano do século XXI instala-se na miséria, cercada de poluição, excrementos e deterioração. (DAVIS, 2006: 28-9). Essa precariedade, no entanto, não inviabiliza o “esplendor”, no dizer de Vera Malaguti citando Foucault, necessário ao capitalismo vídeo-financeiro, que tem nas favelas uma de suas fronteiras mais promissoras para expansão de um ordenamento espetacularizado que combina consumo com controle social. Nas palavras da socióloga: Para ele [Foucault] esplendor seria a beleza visível da ordem e o brilho de uma força que se manifesta e que se irradia. Manter a ordem num campo de forças naquele território usado, desigual, múltiplo, controlando as populações. (MALAGUTI, 2011: 4) A ordem necessária ao esplendor é garantida pela força das armas, mas também pelo consenso construído a partir de subjetividades organizadas em torno do consumo. Sem querer demonizar o consumo, que inclui práticas muito heterogêneas, é fato que as demandas e necessidades geradas por essas práticas na sociedade contemporânea capturam boa parte da vida e dos esforços de sobrevivência dos

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Consumo Favela

Adriana Facina

Somos desiguais e queremos ser

sempre desiguais. E queremos ser

bonzinhos benévolos comedidamente

sociologicamente mui bem comportados.

(Trecho do poema Favelário, de Carlos Drummond de Andrade)

O geógrafo Mike Davis, no livro Planeta Favela, diz que os favelados são

pelo menos um terço da população urbana global. O impacto desse dado faz com que

as projeções urbanísticas para um futuro próximo devam levar em consideração que

(...) as cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e aço, como fora previsto por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em grande parte de tijolo aparente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e restos de madeira. Em vez de cidades de luz arrojando-se aos céus, boa parte do mundo urbano do século XXI instala-se na miséria, cercada de poluição, excrementos e deterioração. (DAVIS, 2006: 28-9).

Essa precariedade, no entanto, não inviabiliza o “esplendor”, no dizer de Vera

Malaguti citando Foucault, necessário ao capitalismo vídeo-financeiro, que tem nas

favelas uma de suas fronteiras mais promissoras para expansão de um ordenamento

espetacularizado que combina consumo com controle social. Nas palavras da

socióloga:

Para ele [Foucault] esplendor seria a beleza visível da ordem e o brilho de uma força que se manifesta e que se irradia. Manter a ordem num campo de forças naquele território usado, desigual, múltiplo, controlando as populações. (MALAGUTI, 2011: 4)

A ordem necessária ao esplendor é garantida pela força das armas, mas

também pelo consenso construído a partir de subjetividades organizadas em torno do

consumo. Sem querer demonizar o consumo, que inclui práticas muito heterogêneas,

é fato que as demandas e necessidades geradas por essas práticas na sociedade

contemporânea capturam boa parte da vida e dos esforços de sobrevivência dos

indivíduos, sobretudo os mais pobres. Podemos afirmar que a favela é hoje o centro

desse processo, palco de ocupações armadas e cenário de uma expansão de fronteiras

de todo tipo de consumo, em meio ao celebratório discurso das classes emergentes,

nova face do capitalismo à brasileira. Assim, parte do Planeta Favela de que fala

Davis, é o Consumo Favela, território de práticas diversas de financeirização da vida,

mas também de recriação das formas de sobrevivência dos pobres.

Em uma breve pesquisa no site de buscas Google a palavra favela descortina

um mundo ligado a diversos tipos de práticas de consumo. É fato: a favela está na

moda. Concorrendo com as históricas representações estigmatizadoras da favela como

lugar de carência e de violência armada, surge a imagem da favela como negócio,

uma marca poderosa capaz de atrair investimentos públicos e privados para todo tipo

de atividade econômica. Turismo, grandes lojas de varejo, pousadas para receber

gringos, eventos culturais de grande porte, shoppings, festas e até mesmo um

videogame on line são parte desse cardápio à disposição de quem deseja consumir a

favela. Há ainda uma recente e intensa valorização imobiliária, fenômeno que atinge

sobretudo as áreas que receberam Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), e também

uma presença frequente da favela como cenário ou tema de diversas produções da

indústria cultural, sejam os chamados favela movies, sejam as novelas televisivas.

Tornada consumo, a favela serve inclusive para vender coisas que não têm

diretamente a ver com ela, sendo utilizada como sinal de modernidade criativa e

“descolada”. É o caso de bares e estabelecimentos no Brasil e no exterior que

ostentam o nome Favela, bem como de marcas como a Favela Hype. De acordo com

o site da loja roupas, criada em 2001:

A marca propõe um lifestyle repleto de referências urbanas e passa pelos mais variados universos. Cachaça Samba Club, Pobre Star, Soul do Rio e Toda Nudez Será Castigada são algumas das coleções criadas pela estilista.1

Sem deixar de portar um estigma que confere a seus habitantes uma identidade

deteriorada, nos termos de Erving Goffman (1988), que transparece no uso do termo

“favelado” como categoria de acusação, favela se torna também um signo que remete

a significados outros. Para analisar essas ressignificações associadas a diferentes

práticas de consumo, pretendo dividir estas em três categorias: 1. Consumo do

                                                                                                               1 Retirado do site http://www.favelahype.com.br em 24/10/2013.

território. Como exemplo desta categoria, tratarei os tours de favelas para turistas, em

sua maioria, estrangeiros; 2. Intervenções culturais. Aqui está a realização de eventos

de grande porte (shows, festas etc) por empresas ou produtores culturais de fora da

favela, muitas vezes parte de um “pacote cultural” que acompanha a implementação

de algumas UPPs; 3. Favela que consome. Enquanto nas categorias anteriores o foco

está nos “de fora” consumindo a favela, aqui o olhar se volta para novos hábitos de

consumo dos moradores e as iniciativas que buscam lucrar com esses hábitos.

O consumo do território

Território é um conceito em voga atualmente, sobretudo nos jargões das

políticas culturais. Nos debates das Ciências Humanas, território aparece como algo

mais do que um espaço delimitado por fronteiras físicas, tais como aquelas do Estado-

Nação. Pierre Bourdieu chama atenção para a dimensão de poder presente na

definição de qualquer território e para o aspecto simbólico que nos permite pensar o

território como prática e não apenas como um espaço físico. Junto deste, haveria um

espaço social marcado por distinções e hierarquizações demarcadas por relações de

poder. (BOURDIEU 1989 e 1998)

Assim, quando definimos a favela como um território, não estamos nos

referindo somente ao espaço físico das diferentes favelas, mas também às construções

simbólicas que informam as representações sobre elas, bem como às práticas culturais

e experiências compartilhadas por seus moradores, por sua vez implicadas em

processos de formação de identidades.

O turismo em favelas organizado por agências situadas fora delas e voltado

prioritariamente para turistas estrangeiros opera na ambiguidade das representações

existentes sobre os territórios favelados. O exotismo com que o passeio é apresentado

o uso de jeeps como veículos para a condução dos “gringos” fazem com que a

associação com os safáris nas savanas africanas seja frequentemente acionada pelos

moradores de favela. Michel Silva, jovem morador da Rocinha, ativista e

comunicador popular, expressa essa ideia nos seguintes termos:

Acho legal quando saem para conversar, alguns até se mudam para cá, porque a vida é dura, mas é boa. Só não curto os que ficam presos dentro dos jipes. Parece um safári. (apud ABREU E SILVA, 2013: 99)

A mesma crítica pode ser vista no cartaz abaixo, retirado do blog O Cotidiano

(http://www.ocotidiano.com.br), do fotógrafo Franscisco Valdean, morador da favela

da Maré:

O exotismo tanto remete à violência e ao perigo, quanto a um conhecimento

profundo sobre que seria a sociedade brasileira, como está, em inglês, no site da

empresa Favela Tour: “Se você quer entender o Brasil, não vá embora do Rio sem

fazer o Favela Tour.”2

Já no site da empresa Jeep Tour, podemos ler:

Numa comunidade é natural que todos estampem um soriso (sic) no rosto, mesmo com as dificuldades do cotidiano. No tour pelas favelas, é possível obter um choque cultural tendo uma aula prática de antropologia, conhecendo um lugar com uma diversidade enorme quando o assunto é a sobrevivência. Explore esta sensação, numa passagem fantástica entre realidades e contrastes de várias comunidades inseridas no cenário carioca.3

Em 2008, quando realizava trabalho de campo na Rocinha para minha

pesquisa de pós-doutorado sobre o funk, vi diversas vezes os jeeps camuflados

repletos de turistas estrangeiros, alguns realmente vestindo roupas e chapéus

utilizadas em safáris, passeando pelas ruas da favela. Pude ver também as expressões

faciais e ouvir os comentários dos moradores, sempre indignados com a cena. No

livro Gringo na laje, Bianca Freire-Medeiros apresenta uma pesquisa sobre o turismo

na Rocinha na qual demonstra que, ao lado de uma aceitação dessa atividade, existem

tensões entre moradores e turistas, ou entre moradores e as agências de turismo.

Segundo a pesquisa, realizada em 2009, os moradores vêm no turismo não tanto uma

possibilidade de ganho econômico, mas sim uma atividade estratégica para a reversão

do estigma que pesa sobre a favela. Mas, ao mesmo tempo, se incomodam com as

câmeras, a exotização e a falta de interação entre eles e os turistas. (FREIRE-

MEDEIROS, 2009)

Essa atividade cresceu em várias favelas após o estabelecimento das UPPs,

que criaram uma imagem das favelas pacificadas como lugares seguros aos visitantes

de fora, em oposição às favelas não pacificadas, ainda tidas como “no-go areas”,

termo que Les Back utiliza para falar da criminalização de uma região do sul de

Londres habitada majoritariamente por negros e pobres. (LES BACK, 1996) De

acordo com matéria publicada em O Globo em 21 de janeiro de 2013, baseada em

pesquisa realizada em 2011 pela FGV, mais da metade dos turistas que chegam ao

Rio de Janeiro quer conhecer as favelas, o “Brasil Real”, nos termos de um turista

canadense entrevistado pelo jornal. Ao mesmo tempo, a mesma pesquisa revela que

                                                                                                               2http://www.favelatour.com.br/ing/whatis.htm, capturado em 24 de outubro de 2013. 3http://www.jeeptour.com.br/index.php/2013-02-18-15-26-11/favelas, capturado em 24 de outubro de 2013.

os turistas pouco consomem nesses locais e que têm receio de comer nas favelas, pois

vêm o lixo e esgoto nas ruas com “nojo”. De acordo com o jornal,

O baixo consumo na favela contradiz com a percepção geral declarada por 82,1% dos turistas brasileiros entrevistados no aeroporto, de que esse tipo de atividade traria benefícios sociais à comunidade. Entre os estrangeiros, esse percentual foi de 73,2%. Percentual similar de estrangeiros — 73% — declarou que as operadoras de turismo lucram com a miséria, ante 65,8% dos brasileiros. O estudo ouviu 900 pessoas que deixavam o Rio, sendo metade brasileiros e metade estrangeiros; 400 estrangeiros que faziam o passeio no Dona Marta; e 25 moradores, trabalhadores e policiais do morro, que falaram na condição de anonimato. O levantamento tratou também de outra questão polêmica: o comportamento de quem visita a favela. Para 70,2% dos estrangeiros ouvidos no aeroporto, os turistas se comportam como num "zoológico de pobre". O percentual de brasileiros que pensam assim é menor: 46,1%.4

Desse modo, podemos perceber que nem sempre o turismo se apresenta como

oportunidade econômica para os moradores de favelas, gerando pontos de atrito entre

turistas e moradores. Ainda de acordo com O Globo,

O levantamento no Dona Marta constatou que a relação entre moradores e turistas tem focos de tensão. Uma delas diz respeito à privacidade da população local, que reclama de visitantes que saem tirando fotos de tudo e todos, sem pedir licença. Houve inclusive moradores que expressaram temor com o destino das imagens, sobretudo de crianças, temendo a presença de pedófilos entre os turistas estrangeiros.5

Atualmente desenvolvo pesquisa sobre produção cultural e práticas de

letramento no Complexo do Alemão e no trabalho de campo sempre ouço falas que se

referem à transformação daquele território em ponto turístico da cidade. Em matéria

publicada na internet, o Governo do Estado celebra o fenômeno:

Rio de Janeiro (RJ) – Os olhares curiosos, os cliques de câmeras fotográficas e os idiomas estrangeiros falados no vai e vem do teleférico do Morro do Alemão revelam que o turismo chegou ao local. De acordo com a Supervia Trens Urbanos, responsável pela administração do equipamento, 14 mil pessoas transitam diariamente pelos vagões suspensos da comunidade pacificada. Desse total, o turismo responde por 35,7% durante os dias úteis e 64,3% aos fins de semana. O quantitativo é superior ao registrado pelos vagões do Pão de Açúcar, conhecido como um dos principais pontos turísticos do estado.6

                                                                                                               4 http://oglobo.globo.com/rio/mais-da-metade-dos-turistas-quer-conhecer-favelas-do-rio-7349831, consultado em 24/10/2013. 5Idem. 6http://www.turismo.gov.br/turismo/noticias/todas_noticias/20130121.html , capturada em 28/10/2013.

Até a ocupação militar de dezembro de 2010, essa era uma área sempre

representada nos meios de comunicação como violenta, decadente economicamente,

perigosa e sem atrativos. A despeito disso, alguns coletivos, como o Instituto Raízes

em Movimento e o Verdejar Socioambiental, já se dedicavam a uma atividade de dar

a conhecer o território para pessoas de fora, um certo tipo de “turismo de vivência”

como define Alan Brum, sociólogo morador da favela e fundador do Raízes.

No atual contexto após implementação de UPPs e a inauguração do teleférico

que foi construído como parte do PAC (Programa de Aceleração ao Crescimento),

diversos grupos de dentro e de fora da favela começaram a organizar visitas turísticas.

Em decorrência disso, surgiram conflitos sobre os usos turísticos daquele território.

Como no Santa Marta, moradores reclamam da falta de privacidade trazida pelos

turistas, com o agravante que o teleférico permite que se olhe e fotografe cenas

ocorridas dentro de suas casas e nas suas lajes, estes locais onde se festeja, pega sol,

toma banho de mangueira etc. Atividades estas consideradas do âmbito familiar

privado. Essa visita turística que se faz pelo passeio no teleférico, com parada apenas

em suas estações e imediações delas, é denominado por grupos de moradores que

organizam visitas ao Complexo como sendo “turismo pelo alto”. Para eles, esse tipo

de passeio não permite ao visitante conhecer de fato a favela e estabelece com seus

moradores uma relação de exotização e exploração econômica considerada perversa.

Em contraposição, esses grupos organizam visitas por becos e vielas, o chamado

“turismo por baixo”, visto como mais verdadeiro e comprometido com a população da

favela. Um exemplo é o Rolê Afetivo, organizado pelo coletivo Ocupa Alemão,

formado por jovens moradores. Outro exemplo é o Fotoclube Alemão, criado pelo

fotógrafo Bruno Itan, e que mistura moradores e visitantes em passeios por dentro das

favelas do Complexo produzindo fotos e discutindo a criação de um novo olhar sobre

o território.

Pude comprovar a desvinculação do “turismo pelo alto” com a vida na favela

um dia em que fui a um evento que acontecia na última das estações do teleférico, a

de Palmeiras. Era um sábado de sol e havia muitos turistas no teleférico e na estação.

De repente, caiu um temporal muito forte e o teleférico fechou. Um grupo de uns dez

turistas ficou apavorado, perguntando aflito na bilheteria se o teleférico voltaria a

funcionar. Diante da negativa do funcionário, ficaram muito assustados em ter de

descer o morro em que fica a estação e pegar um transporte alternativo (Kombi,

mototáxi etc) para chegar ao “asfalto”. Fui caminhando junto com eles, pois tinha de

ir a outro evento na Praça do Conhecimento, na favela Nova Brasília. Ouvi seus

comentários que misturavam tensão, medo, revolta e uma imensa vontade de sair

correndo daquele lugar o mais rápido possível.

Essas tensões em torno do consumo do território explicitam uma cidade em

disputa, material e simbolicamente falando. Quais são as apropriações e as

representações da cidade que os diversos tipos de turismo em favelas pode criar? O

turismo que segrega favela e asfalto ou o turismo que integra e afirma “favela é

cidade”?Ao consumo do território favelado como perversidade, se contrapõe um tipo

de interação entre iguais no qual saberes sobre o território são trocado por novas

imagens produzidas sobre ele, na contramão da estigmatização dominante.

Assim como o turismo, a produção cultural também é um campo a ser

explorado pelos agentes da comoditização da favela, reproduzindo desigualdades de

diversos tipos que instituem as relações de poder em nossa sociedade.

Intervenções culturais

Boa parte do que se entende como cultura carioca, ou mesmo brasileira, são

criações produzidas ou relacionadas às populações e aos modos de vida existentes em

favelas e periferias. É o caso do samba, música e dança identificados como típicos do

Rio de Janeiro. É também o caso do funk que ganhou o adjetivo de carioca como

afirmação de sua especificidade territorial. Assim, parece haver um consenso em

torno da favela como locus de produção de arte e de cultura.

No entanto, olhando com mais cuidado, vemos que não é bem assim. Um

discurso frequentemente pronunciado por ONGs, representantes do Estado e pela

mídia corporativa apresenta as favelas como lugar de carências. E a carência cultural

é uma delas.

No caso das ONGs voltadas para o desenvolvimento de projetos culturais ou

artísticos em favelas, observamos com frequência a associação entre a “necessidade

da arte” e a prevenção, ou mesmo “recuperação”, da criminalidade entre os jovens

habitantes desses territórios. A Cultura, com C maiúsculo, seria uma maneira de

ampliar seus horizontes e retirar o poder simbólico dos criminosos enquanto

referência identitária da comunidade. Por vezes, esta intenção é tão explícita que

aparece já no nome da coisa, como é o caso da instituição “Dançando para não

dançar”, que utiliza a gíria “dançar”, sinônimo de ir preso ou ser assassinado, em

contraposição ao “dançando”, significando aprender balé clássico e fazer parte do

projeto que hoje conta com diversos patrocínios e apoios, como o da Petrobrás. No

site da instituição (www.dancandoparanaodancar.org.br), encontramos a seguinte

descrição:

Em 1998, foi fundada a Associação Dançando para não Dançar, em 10 de novembro, com o objetivo de ampliar o raio de atuação do projeto e dedicar-se mais à integração social de menores que vivem em situação de risco nas favelas da cidade. Além das aulas de balé clássico, passaram a ser ministradas aulas de dança contemporânea e de prática e teoria musicais. Passou-se a oferecer, também, suporte social-educativo com aulas de reforço escolar e de informática; atendimento médico, dentário, psicológico; apoios de assistente social e de fonoaudióloga, inclusive para os familiares diretos.

A Cultura que salva vem de fora e, mais do que elemento artístico ou de valor

estético, importa a sua capacidade de integrar os “menores”, termo tipicamente

criminalizante para designar jovens e crianças pobres, à sociedade. Entendida como

algo universal, essa Cultura desconsidera as culturas dos espaços populares, ou aos

toma como particularidades hierarquicamente inferiores. Apresentada como universal

e politicamente neutra, tal concepção se encaixa perfeitamente na função de controle

social dessa camada da população, contendo rebeldias e potencialidades pouco afeitas

à ordem que resultam da experiência cotidiana da pobreza e da opressão. Nas palavras

de Terry Eagleton,

Não é, na verdade, apenas a cultura que está aqui em questão, mas uma seleção particular de valores culturais. Ser civilizado ou culto é ser abençoado com sentimentos refinados, paixões temperadas, maneiras agradáveis e uma mentalidade aberta. É portar-se razoável e moderadamente, com uma sensibilidade inata para o interesse dos outros, exercitar a autodisciplina e estar preparado para sacrificar os próprios interesses egoístas pelo bem do todo. Por mais esplêndidas que algumas dessas prescrições possam ser, certamente não são politicamente inocentes. Ao contrário, o indivíduo culto parece-se suspeitosamente com um liberal de tendências conservadoras. É como se os noticiaristas da BBC fossem o paradigma da humanidade em geral. Esse indivíduo civilizado certamente não se parece com um revolucionário político, ainda que a revolução também faça parte da civilização. A palavra “razoável” significa aqui algo como “aberto à persuasão” ou “disposto a concessões”, como se toda convicção apaixonada fosse ipso facto irracional. A cultura está do lado do sentimento em vez do da paixão, o que quer dizer do lado das classes médias de boas maneiras em vez do das massas iradas. Dada a importância do equilíbrio, é difícil ver por que alguém não seria solicitado a contrabalançar uma objeção ao racismo com o seu oposto. Ser inequivocamente contrário ao racismo pareceria ser distintamente não

pluralista. Já que a moderação é sempre uma virtude, um leve desagrado em relação à prostituição infantil pareceria mais apropriado do que uma oposição veemente a ela. E já que a ação pareceria implicar um conjunto de escolhas razoavelmente definitivas, essa versão da cultura é, inevitavelmente, mais contemplativa do que engagé. (EAGLETON, 2005: 32-3)

Esse “leve desagrado” pode ser traduzido no discurso crítico da “realidade

social” feito de forma vaga, com o objetivo de não desagradar e afastar possíveis

parceiros que possam viabilizar economicamente os projetos. É importante ainda, na

corrida por investidores, apresentar a favela como território da ausência de Cultura. E

a relação que se faz entre esta ausência e problemas sociais, notadamente a violência

armada ligada ao crime, a favela torna-se valiosa para estratégias de captação de

recursos públicos e privados para projetos culturais variados.

A chegada das UPPs potencializa isso e abre caminho não somente para mega

ONGs que trabalham como braço do Estado, notadamente o Afroreggae, mas também

para que a própria polícia militar possa fazer esse “trabalho cultural”, militarizando

ainda mais os territórios ocupados. A UPP se apresenta, sobretudo, na mídia

corporativa, como oportunidade de levar “cultura” como complemento à pacificação

armada. São inúmeras as notícias de soldados da PM oferecendo aulas de música ou

de modalidades esportivas. No site oficial do governo de Estado do Rio de Janeiro

uma notícia dessas merece destaque:

UPP Babilônia/Chapéu Mangueira oferece aulas de violão

Por Julia de Brito Assessoria de Comunicação do Palácio

O amor pela música e pela farda fizeram com que o soldado da PM Fausto Oliveira Cunha aceitasse o convite para dar aulas de violão, no projeto Vozes e Acordes, nas comunidades do morro da Babilônia e Chapéu Mangueira. A oportunidade oferecida pelo comandante da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), capitão Felipe Magalhães, que serve às duas comunidades, é considerada pelo PM uma realização pessoal que está levando crianças e adultos a conhecer a linguagem universal da música.

- Este trabalho começou no fim de novembro do ano passado. Começamos no Chapéu Mangueira, mas agora houve um pedido para o Babilônia. Por dia, dou cinco aulas, nas terças e nas quintas. Sempre fui músico e sou recém-formado na polícia. O capitão me perguntou se eu sabia ensinar, se já tinha dado aula de violão. Já trabalhei profissionalmente com música. Tenho um irmão mais velho que é músico. Tenho percebido um grande interesse dos alunos e acho que é um diferencial ter um policial passando este conhecimento para eles – ressalta.

No armário do quarto, o violão encostado não possuía serventia até que Maria Lúcia Teodoro Pereira, de 42 anos, recebeu a notícia de que a UPP Babilônia/ Chapéu Mangueira estava oferecendo aulas gratuitas de violão. Agora, depois de aprender os primeiros acordes, o sonho acalentado há tempos está sendo realizado:

- Só agora consegui realizar este sonho. Tinha o violão, mas não sabia nada. O professor Cunha deixa a gente muito à vontade, ele cobra, mas é paciente. No começo, foi difícil aprender violão. Comecei a me dedicar mais em casa. Gosto de MPB. Estou aprendendo músicas da Ana Carolina – conta.

Instalada com o objetivo de garantir mais segurança aos moradores das comunidades e desmobilizar o mercado do tráfico nos morros, a UPP Babilônia/ Chapéu Mangueira está cumprindo com o seu papel pacifista ao estabelecer uma nova interação dos membros da corporação lotados nestas comunidades com seus moradores.

Para a moradora do morro da Babilônia, de 45 anos, Arlete dos Santos, a tranquilidade dos moradores, depois da instalação da UPP, não é conversa de governo.

- Acho que a interação está muito boa e jogou por terra muitos mitos. A UPP está mudando a visão do policial para a comunidade. Está havendo uma aproximação do policial com os moradores e esta interação é positiva. Quando o policial chegava à comunidade era de forma agressiva, acho que isto está mudando – diz.

As aulas de violão tiveram início na comunidade Chapéu Mangueira, mas o grande número de pedidos fez com que o curso abrisse vagas para alunos do morro da Babilônia esta semana. As aulas acontecem nos turnos da manhã e da tarde, sempre às terças e quintas-feiras7

O “diferencial” de que fala o soldado professor de música, o violão da

moradora que estava “sem serventia” e passa a tocar “MPB”, símbolo de distinção

social, a cultura que tem “papel pacifista” ao integrar policiais e moradores são

significados atribuídos a cultura entendida como dispositivo de controle social, de

transmissão de valores hegemônicos e deslegitimação de práticas culturais próprias

daquele território. O baile funk, por exemplo, seguia proibido. Todas as atividades

culturais envolvendo festejos que aconteciam antes da UPP devem agora ser

submetidas à anuência do comandante policial local.Em 2012, participei de uma roda

de funk organizada pela APAFUNK (Associação dos Profissionais e Amigos do

Funk) no morro Chapéu Mangueira e as lideranças comunitárias responsáveis tiveram

de ficar quase todo o tempo do evento, que ocorreu no final de tarde de um sábado,

                                                                                                               7http://www.intranet.rj.gov.br/exibe_pagina.asp?id=8954, capturado em 30/10/2013.

“desenrolando” com policiais para que eles não interrompessem a festa. Sendo que a

UPP já havia sido comunicada com antecedência, fato que, em si, já demonstra o

estado de exceção implementado nessas favelas. O mesmo ocorreu na Rocinha

durante o sarau da APAFUNK em conjunto com a paulista Cooperifa. Apesar do

horário de matinê, de haver um ambiente familiar com a presença de muitas crianças,

do som estar numa altura dentro da lei, das comunidades estarem a favor da sua

realização, ainda assim havia a presença de policiais fortemente armados e olhando de

forma intimidadora todos que ali estavam.

O principal parceiro institucional da “cultura pacificada”, com apoio não

somente dos governos municipal e estadual, mas também de empresários de setores

variados, inclusive o poderoso setor financeiro, e, sobretudo da mídia corporativa, em

particular as Organizações Globo, é o Afroreggae. Segundo seus estatutos,

disponíveis em http://www.afroreggae.org/wp-content/uploads/2013/01/Estatuto-

GAS.pdf e em http://www.afroreggae.org/wp-content/uploads/2013/01/Estatuto-

GCAR.pdf, o Afroreggae é Associação Civil para Fins não Econômicos e é também

Associação Grupo Cultural Afroreggae. Em ambos fica clara a definição da entidade

como não possuindo fins lucrativos e em seus relatórios financeiros, bem como em

declarações dadas por José Júnior, coordenador da mesmo, a receita em 2012 girou

em torno de 22 milhões de reais.

O Afroreggae ganhou destaque ao denunciar os horrores da Chacina de

Vigário Geral, impetrada por policiais em 1993, trabalhando com cultura, sobretudo

música, como maneira de superar o trauma sofrido pela população daquela favela.

Hoje em dia, o Afroreggae se especializou em buscar oferecer alternativas de vida a

criminosos, sobretudo os comerciantes varejistas de drogas mais famosos, gerentes

importantes ou mesmo dono de morros, estejam eles presos ou em liberdade. Seu

coordenador ganhou destaque midiático ao buscar negociar com os bandidos do

Complexo do Alemão a sua rendição ou não reação à ocupação militar daquele

território ocorrida no final de 2010. Episódio nebuloso que possui várias versões. Para

a mídia corporativa, José Júnior foi um herói destemido. Já para muitos moradores

sua atuação foi, para dizer o mínimo, questionável. As intenções do Afroreggae, por

meio das quais os apoios governamentais e de empresas como Santander e Natura são

obtidos, podem ser resumidas em seu manifesto8:

                                                                                                               8http://www.afroreggae.org/manifesto, capturado em 30/10/2013.

MANIFESTO AFROREGGAE

Mundo degradado. Caos crescente.

O planeta, uma grande favela. O homem continua desumano.

Tudo parece, sob medida, para dar errado. Mas, há utopia.

Loucos insistentes acreditam na transformação.

Somos Afroreggae. Trocar o fuzil pelo berimbau. Derrubar todas as fronteiras

com explosões de vitalidade e alegria.

Das ruínas fazer nascer à liberdade

e o orgulho de ser o que se é. Somos Afroreggae.

Lutar pelo lado certo da vida errada. Por uma vida sem lado.

Vida inteira de pessoas inteiras. Porque ninguém precisa ser o que não é.

Somos Afroreggae. Lutar, mesmo só,

porque ninguém está sozinho. Conexões humanas, conexões urbanas.

Se tinha tudo para dar errado, porque está dando certo?

Somos Afroreggae. Salve a arte que nos salva.

No meio da guerra, tráfico da liberdade e da militância cultural.

Mudar a vida das pessoas para mudar as nossas também.

Salve a arte que nos salva. Somos Afroreggae.

Porque nenhum motivo explica a guerra.

O fuzil trocado pelo berimbau, a arte que salva, a ideia de que há uma guerra

em curso. Como parte de um de seus projetos mais famosos, o Conexões Urbanas, o

Afroreggae leva shows para favelas, com uma grande estrutura, com o discurso de

levar a qualidade dos shows “da Zona Sul”, ou “da orla” para as favelas cariocas. Em

setembro de 2007, por exemplo, com patrocínio da TIM, o projeto promoveu um

show de Marisa Monte no Complexo do Alemão. O evento, muito noticiado na

imprensa na ocasião, ocorreu poucos meses após a Chacina do Pan, quando no

mínimo 19 pessoas foram mortas por forças militares do Estado em um só dia. A

atuação como braço do Estado fica clara na notícia da Folha de S. Paulo:

No local do show havia várias faixas anunciando a presença do governador do Rio, Sérgio Cabral, que acabou sendo representado pelo vice-governador Luiz Fernando Pezão. Essa segunda etapa do Conexões Urbanas está associada às obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Pezão anunciou um investimento de R$ 480 milhões para obras no complexo. José Junior, coordenador do Afroreggae, disse que "é a primeira vez que o movimento tem relação de intimidade com o governo estadual". Nos últimos três dias a Força Nacional de Segurança passou a fazer o policiamento inclusive à noite, no lugar da Polícia Militar, para reduzir a tensão e permitir o show.9

Com eventos garantidos manu militari, como também o foi o recente Desafio

pela Paz, corrida de rua promovida pela instituição, a “cultura que salva” é um ótimo

negócio para o Afroreggae, conferindo legitimidade perante governos e elites

(econômicas e culturais), oferecendo pouco pão e muito circo para os moradores de

favelas. Perante a essas conexões estreitas com o Estado e ao apoio empresarial,

tornam-se invisíveis as iniciativas culturais locais e as especificidades do território.

Quanto custam esses shows? Quem escolhe os artistas que se apresentam? Quantos

moradores participam efetivamente da produção desses eventos? Qual o papel dos

artistas e agentes culturais das favelas nos quais eles ocorrem?Quais os impactos

duradouros de iniciativas como essas nas localidades? Em julho de 2013, após o

incêndio numa das sedes do Afroreggae no Complexo do Alemão, mais um

                                                                                                               9 Ver, por exemplo, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0110200737.htm, visitado em 30/10/2013.

misterioso fato envolvendo a instituição, a Prefeitura do Rio de Janeiro destinou 3,5

milhões para a mega ONG como resposta aos supostos ataques do comércio varejista

de drogas. São cifras imensas na opinião dos grupos culturais que atuam no

Complexo e que são invisibilizados pelo gigantismo da ONG cultural oficial, muitas

delas lutando por fatias de verbas públicas conferidas em minguados editais.

A atuação que apaga os grupos culturais locais foi algo comum nas

intervenções do PAC, ao qual o Conexões Urbanas estava ligado. Um caso

emblemático é o dos grafites que foram pintados no interior das estações do teleférico

do Complexo do Alemão, realizados pelo Studio Kobra, do famoso grafiteiro de São

Paulo. O Alemão possui artistas do grafite reconhecidos, como David Amen, uma

referência naquele território. David jamais foi contactado, como artista do local, para

pintar os painéis, que tratam da história e da realidade das favelas do Complexo. Ao

mesmo tempo em que erguia seu monumento mais imponente, o PAC destruía uma

das maiores galerias de grafite a céu aberto do Brasil, que ornava os muros da

Avenida Central, no Morro do Alemão, com pinturas de artistas locais e de várias

partes do mundo.

Essas intervenções sinalizam que a cultura como negócio tende a ser

concentrada nas mãos de poucas instituições, capazes de tornar a favela consumível,

já que ordenada e pacificada para caber nos gostos e tranquilizar os medos dos que

com ela mais lucram, material ou simbolicamente falando.

Mas, além de objeto de consumo, a favela consome, produzindo contradições

tortuosas como seus becos e vielas, com muitos caminhos e possibilidades de

reinvenção de desejos e práticas.

A favela que consome

Formada como complexidade, a favela sempre foi lugar de heterogeneidades e

desigualdades. Segundo Licia Valladares, é um equívoco considerar a favela como

lugar de pobreza, já que as desigualdades de renda e de níveis de consumo estão

presentes em várias delas. (VALLADARES, 2008). No entanto, recentemente, as

favelas têm sido tomadas como exemplo da emergência econômica das classes C, D e

E repetidamente afirmada em discursos governamentais desde a “era Lula”. No dia 30

de outubro de 2013, uma matéria veiculada pelo Jornal Nacional apresentou pesquisa

realizada pelo instituto Data Popular, especializado em consumo popular e dirigido

por Renato Meirelles, que afirmava que a classe média já formava a maioria dos

moradores de favelas no Brasil. Em tom celebratório, os dados foram apresentados

pelo diretor do Data Popular como sinal de que as favelas são um bom negócio, lugar

bom de se investir. Na reportagem, o programa associava essa prosperidade, no Rio

de Janeiro, à “chegada” das UPPs. Esta “chegada” levou à formalização de negócios e

ao pagamento de contas de luz e outros encargos, vistos como fenômenos positivos, a

despeito da fala do presidente da Associação de Moradores do Santa Marta afirmando

que a tal prosperidade não era acompanhada de serviços essenciais, como saneamento

básico.

É significativo que de modo quase que simultâneo à instalação de UPPs, as

favelas recebam agências bancárias, lojas de grandes redes de comércio varejista,

empresas de TV a cabo procurando vender o serviço que antes era conseguido de

modo gratuito com o gatonet. Serviços básicos historicamente obtidos “na marra”

também são comoditizados, como luz elétrica, água e internet. Em diversas

entrevistas e debates, o Repper Fiel, artista-ativista morador do Santa Marta, afirma

que o efeito disso foi uma gentrificação da favela e uma “expulsão branca” dos

moradores mais pobres. É preciso se estudar ainda o impacto da chegada dessas

grandes redes comerciais no pequeno comércio local, que não possuem recursos para

competir com esses novos concorrentes.

A ascensão do consumo na favela é noticiada por uma reportagem da revista

Isto É em 21 de junho de 2013, significativamente intitulada Favela S/A. O

personagem principal é Celso Athayde, fundador da CUFA (Central Única das

Favelas) e apresentado como exemplo de empresário bem sucedido, capaz de

transformar em cifras milionárias o ainda pouco explorado “Eldorado” das favelas:

Favela S/A Conheça Celso Athayde, o empresário carioca que, com a parceria de potências como P&G, TIM e o Grupo Doimo, da Itália, está montando uma ampla teia de negócios para atuar exclusivamente nas favelas brasileiras. Sua meta é investir R$ 1,5 bilhão até 2017 Por Rosenildo Gomes FERREIRA Enquanto dirige seu utilitário-esportivo Freemont, na cor preta, pelas vielas da Cidade de Deus, bairro carente da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, o empresário Celso Athayde, 50 anos, dono da Favela Holding (FHolding), acena para conhecidos. Em diversas ocasiões ele é parado por gente em busca de ajuda para “dar um gás” em empreendimentos de pequena monta, como a roda de pagode que acontece no fim da tarde de domingo na quadra da Central Única das Favelas (Cufa). Seu extenso currículo como agitador cultural e ativista social o transformou em uma referência nas comunidades cariocas –

jargão politicamente correto usado para designar os mais de mil morros e favelas do Rio de Janeiro. Atuando nos bastidores, Athayde se tornou amigo de artistas renomados, empresários e políticos daqui e do Exterior. Considerado um Ph.D. em matéria de baixa renda e um dos maiores conhecedores das favelas, o empreendedor carioca é requisitado pelo Banco Mundial para proferir palestras em toda a América Latina. Agora, ele quer transformar esses atributos em negócios. Para isso, Athayde e seus sócios pretendem investir R$ 1,5 bilhão, até 2017, em dez empreendimentos que cobrem desde áreas de entretenimento até logística, passando pela fabricação de móveis, venda de passagens aéreas e distribuição de peças de motocicleta. A maior parte dessa dinheirama irá para a construção de shopping centers. Detalhe: todos esses negócios, que serão replicados em outros Estados, terão a favela como base. “Resolvi me tornar empreendedor porque percebi que ninguém vai querer promover os talentos das comunidades”, diz Athayde. “Além disso, percebi que não se faz revolução para valer sem a ajuda do capital.” A ambição de Athayde, um ex-morador de rua, está calcada em pesquisas que mostram as favelas brasileiras como uma espécie de Eldorado, ainda pouquíssimo explorado. São 12 milhões de moradores que gastam nada menos que R$ 56 bilhões na compra de bens e na contratação de serviços a cada ano, de acordo com estudo das consultorias Data Popular e Data Favela. Esse montante é superior ao Produto Interno Bruto (PIB) de países como a Bolívia ou o Paraguai. Mais: o poder de consumo médio dessa fatia da população triplicou nos últimos dez anos. Por conta disso, 3,2 milhões de moradores de favelas passaram a ser classificados como integrantes da classe média. A aposta de Athayde é simples: cobrir a lacuna deixada pelas grandes empresas. Hoje, é possível contar nos dedos das mãos as ações destinadas a dominar uma fatia desse apetitoso bolo. As poucas iniciativas se resumem em tentar convencer esse consumidor a adquirir produtos específicos ou serviços que, muitas vezes, só estão disponíveis nos bairros mais sofisticados das metrópoles. Por essas razões, Athayde já costurou uma série de parcerias no asfalto, com empresas dispostas a subir o morro. 10

Sócio de Renato Meirelles no Data Favela, projeto do Data Popular, o maior

produtor de dados sobre consumo em favelas, Celso Athayde divulga dados que

favorecem empreendedores com seu perfil, cuja legitimidade para comoditizar a

favela vem de sua origem popular. “Se eu posso, todo favelado pode”, parece querer

dizer com seu “exemplo”. No entanto, a população favelada aparece de modo

                                                                                                               10http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/122091_FAVELA+SA,  capturado  em  30/10/2013.  

subalternizado em seus projetos, como clientela a ser explorada duplamente, como

força de trabalho e como consumidores.

Ainda que a força do consumo na favela seja um fato, em meu trabalho de

campo no Complexo do Alemão tenho ouvido diversas críticas a essas iniciativas,

entendidas, mesmo no caso de um ex-favelado como Athayde, como vindas “de fora”.

Sempre sob suspeita, para algumas lideranças comunitárias, grupos de economia

solidária entre outros, essa ideia da favela como “Eldorado” a ser explorado

economicamente rompe com práticas econômicas baseadas em princípios morais que

se sobrepõem à lógica de mercado, vista como “fria” e individualista. No lugar do

dono da venda que vende fiado e ajuda famílias em necessidade, grande empresas que

inscrevem os nomes dos devedores no SPC.

No entanto, apesar de importante, a força dessa mercantilização ainda não se

impõe sobre as práticas econômicas específicas de territórios faveladas, marcadas por

intensa criatividade e reguladas por uma lógica que faz conviver economia moral e

economia de mercado. Na rua principal da favela Nova Brasília, a rádio do intenso

comércio ali presente anuncia nos auto-falantes presos nos postes uma pet shop

especializada em “estética animal”, voltada para o embelezamento de animais

domésticos, incluindo a oferta de serviço de pet-táxi com ar-condicionado para buscar

e levar os bichinhos. Além da criatividade, a proximidade com o cliente é algo muito

valorizado e é marca distintiva dos inúmeros comércios de favelas. Não basta oferecer

produtos bons e baratos, e nem algo inovador, é preciso ser amável, simpático, íntimo.

De modo muito explícito, consumo na favela é relação social, forma de interação

valorizada para além do que se compra e do que se vende, para o que não há

equivalência em moeda. Daí a sempre presente ambiguidade diante da ostentação de

riqueza. Mesmo esta tem de ter uma razão extra-econômica.

Indagado sobre seus hábitos de consumo de luxo, José Júnior, o coordenador

do Afroreggae, sempre afirma que é importante demonstrar poder com o uso desses

objetos para ser uma referência de indivíduo bem-sucedido economicamente para os

jovens da favela, como “alternativa ao crime”. Mesmo no discurso de um dos maiores

agenciadores da favela como negócio, a justificativa para o enriquecimento em

cenário de desigualdades brutais, afinal, é moral.

Consumo e identidade

Em 2008, durante pesquisa de campo na favela de Acari, conheci um bonde de

funk que gastava mais dinheiro comprando roupas para apresentações do que para

produzir suas músicas. Na minha cabeça de branca de classe média, eu não via

sentido algum naquilo. Como pode artistas priorizarem a vestimenta, pagando 200

reais numa camiseta de malha de marca, por exemplo, ao invés de investirem numa

produção mais bem acabada de suas músicas? Quando fiz essa pergunta a esses

meninos, todos eles negros, a resposta foi uma verdadeira lição pra mim, dessas que

fazem a gente matutar por muito tempo:

Adriana, é assim, quando a gente chega pra se apresentar numa boate de Zona Sul, o playboy lá pode tá até de bermuda rasgada e havaiana. Mas se a gente chega vestido mais ou menos, é logo “volta pra favela”, “favelado”. Então, a gente tem de ir vestido com as marcas mesmo, pra não dá moral pra esses caras. Eles já ficam putos de verem as meninas gritando pra gente, se tiverem a oportunidade de esculachar, esculacham mesmo. Então, a gente não vai dar esse mole pra eles. Ao mesmo tempo meio de distinção e de integração, o consumo, além de

fornecer elementos para construção de identidades, é também instrumento poderoso

de reversão de estigmas, ainda que essa reversão possa ser situacional. Se no palco

sua indumentária lhes dá um passaporte para o mundo dos “playboys”, fora dele os

rapazes do bonde de funk podem ser abordados de modo agressivo por policiais

simplesmente por usarem roupas ou tênis considerados muito caros para o poder

aquisitivos de jovens pobres, negros e favelados. “Onde você conseguiu esse tênis?” é

pergunta frequente feita por policiais a jovens favelados durante suas abordagens,

demonstrando de modo muito claro os limites da associação entre consumo e

cidadania.

O consumo também pode ser capaz de inverter fluxos culturais,

principalmente o que se volta para novas tecnologias informacionais. A tese de

doutorado e Pâmella Passos, intitulada Lan house na favela (2013), analisa os usos e

reinvenções criativas que donos e usuários de lans nas favelas de Acari e Santa Marta

produzem ao garantir acesso a essas tecnologias em meio a toda sorte de dificuldades

e precariedades estruturais. Mais uma vez, retorno ao bonde de funk de Acari. Uma

vez, assistindo a um ensaio deles, fiquei curiosa com um passos diferentes que eles

inseriram numa coreografia. Perguntei de onde eles tinham tirado aquilo e eles riram

de mim. “Isso é kuduro! Vai dizer que você nunca ouviu falar?” Era 2008, bem antes

da moda do kuduro assolar rádios e televisões no Brasil. De fato, do alto de minha

ignorância, tive de admitir que nunca tinha ouvido falar naquilo. Li no rosto deles

“como essa mulher pode estudar funk e não conhecer isso?”. Mas, educados que

eram, tiveram a paciência de me explicar: “É a última moda em Angola. É como se

fosse o funk de lá”. Para completar minha lição de diáspora africana, eles me levaram

numa lan house e me mostraram vídeos dos meninos africanos dançando kuduro.

Na contramão do fluxo centro-periferia, os meninos foram buscar em outras

margens a matéria-prima da sua criatividade artística. Esta, por sua vez, reapropriada

pelo centro, virou moda e tema musical de abertura de novela da Globo. Afinado com

essa experiência de uma modernidade alternativa, Veríssimo Junior, diretor do grupo

Teatro da Laje, sediado no favela Vila Cruzeiro, diz que, quando perguntado sobre se

o teatro pode salvar os meninos da favela, responde: “Não temos de perguntar o que o

teatro pode fazer por esses meninos e sim como esses meninos podem contribuir para

o teatro”. Com essa inversão, ele reafirma seu lema, que pode ser também o de todos

que procuram ver essa história a contrapelo: “Favela não é carência. Favela é

potência.”

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