Cenário da exclusão e enobrecimento urbano - A Favela do Rato (Recife)

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INTRODUÇÃO

O Sol nasce e ilumina as pedras evoluídas que cresceram com a força de pedreiros suicidas. Cavaleiros circulam vigiando as pessoas, não importa se são ruins, nem importa se são boas. E a cidade se apresenta centro das ambições, para mendigos ou ricos, e outras armações. Coletivos, automóveis, motos e metrôs, trabalhadores, patrões, policiais, camelôs. A cidade não pára, a cidade só cresce. O de cima sobe e o debaixo desce. [...] A cidade se encontra prostituída por aqueles que a usaram em busca de saída. Ilusora de pessoas e outros lugares a cidade e sua fama vai além dos mares. No meio da esperteza internacional a cidade até que não está tão mal. E a situação sempre mais ou menos, sempre uns com mais e outros com menos [...] Num dia de Sol, Recife acordou com a mesma fedentina do dia anterior.. (A Cidade, Chico Science & Nação Zumbi, 1994).

Ao longo de sua história, a cidade do Recife, presenciou amplas transformações em

seu espaço público e urbano. Desse modo, uma das principais localidades que passou por esse

processo foi o Antigo Bairro do Recife, situado no Centro Histórico da cidade. Importantes

intervenções políticas nessa localidade proporcionaram uma mudança visível na estrutura

urbana, alterando as sociabilidades e os atores sociais, os quais acompanharam o conjunto de

modificações a despeito da inserção de novos usos e configurações do espaço: de um lado, há

o bairro que se configurou com a presença das camadas poderosas político e economicamente,

durante o decorrer de muitas décadas desde o século XIX; por outro, há aqueles que foram

excluídos social e espacialmente, embora, no atual período tenham habitados seu entorno e

suas ruas.

Desde a década de 1970, moradores de rua e os habitantes da “Favela do Rato”, local

situado em uma extensa área do bairro, encontram-se presentes percorrendo ruas e avenidas

do Antigo Recife. Perfazendo o trajeto do bairro, no qual destinam-se belas paisagens e um

antigo patrimônio material fundado desde a colonização do país, o qual hoje é elemento

central na consolidação do turismo e da cultura da cidade, há entretanto, uma área que

evidencia um cenário de exclusão social e espacial. Assim, a motivação maior deste trabalho

reside no sentido de compreender importantes processos que desencadearam uma série de

políticas públicas urbanas, enfocando diversas questões acerca dessa problemática no

horizonte das intervenções urbanas.

A título de exemplo, nas palavras de Chico Science1, há diversos atores sociais que

usam a cidade como um centro de representações e sentidos. Por isso, construir uma análise

que permita investigar os dilemas urbanos que se apresentam singulares para a sociedade

1 Science, Chico & Nação Zumbi. Da Lama ao Caos. Sony Music / Chãos, 1994.

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contemporânea e revelam um processo dinâmico o qual envolve os interesses cotidianos dos

sujeitos e as intervenções políticas das instituições modernas, pode ser visto como um desafio

sociológico que se constitui a partir do estudo da sociabilidade urbana em diversos aspectos.

Desse modo, o eixo fundamental presente neste estudo foi construindo-se passo a

passo, à medida que se realizava pesquisas sobre os processos de intervenções urbanas

contemporâneas no âmbito das políticas de revitalização, orientadas na lógica da

gentrification (enobrecimento). Compreendido no mesmo sentido designado pelos autores

Harvey (1992), Featherstone (1995), Zukin (1995), Smith (1996) e Leite (2004), o termo

gentrification é empregado na transformação do patrimônio público de uma cidade histórica

em segmentos de mercado. Especificamente, este processo tem sido implementado nos

centros históricos que passam por estágios de degradação.

Nesse sentido, pode-se elucidar que essas áreas se depararam com a deterioração da

malha urbana e o declínio de suas atividades setoriais, tais como os empreendimentos

comerciais e as áreas residenciais que deram lugar a atividades informais, à prostituição e a

mendicância. Assim, com a degradação dos espaços públicos dos centros, uma agenda política

foi construída através de parcerias público-privadas, com vistas a reabilitar a infra-estrutura, a

retomada de atividades e o usufruto de seus espaços. Dessa maneira, sendo esse um fato que

se evidencia não só no Brasil, mas em vários países, desde o século XIX até hoje,

constituíram-se em importantes estratégias políticas de intervenções urbanas – que se

fundamentam tanto na renovação da estrutura dos locais ou na reabilitação dos espaços

públicos – dos centros (urbanos, históricos, econômicos, comerciais etc.) incluindo praças,

ruas e o patrimônio edificado.

Seguindo estes preceitos, as políticas que fundamentam a gentrification adotam um

tipo de estratégia que visa alterar a paisagem urbana ao renovar a infra-estrutura existente

associada à prática de preservação do patrimônio histórico e cultural. Dessa forma, a

paisagem reabilitada realça outra imagem para a cidade e além configurar novas narrativas e

identidades ao retomar o sentido de tradição destes espaços, sugere novas representações e

significados simbólicos do patrimônio.

No Brasil as intervenções urbanas contemporâneas ganharam espaço nas agendas das

políticas públicas a partir dos anos 80. Os principais objetivos que constituem esses projetos,

decorrem da possibilidade de planejar estrategicamente a reorganização dos espaços das

cidades e atração de investimentos da iniciativa privada em parceria com o poder público. As

estratégias desses empreendimentos priorizam desenvolver o potencial turístico dessas

cidades, partindo de uma proposta de intervenção urbana com vistas para a restauração do

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patrimônio edificado e para a “revitalização” dos usos das áreas urbanas degradadas,

readequados para o entretenimento urbano e o consumo cultural (Leite, 2004).

Com o intuito de compreender as conseqüências desses processos, como está sendo

discutido na literatura sociológica, ou das Ciências Sociais em geral, considera-se em

primeiro lugar a crítica que se evidenciou conforme os trabalhos analisados, a saber a

exclusão social das camadas de baixo poder aquisitivo em favor de selecionar um público

específico, como os turistas ou as camadas de elevado poder de consumo. Portanto, a partir

dessa premissa, indagamos: até que ponto então, os projetos de revitalização não atendem a

estes objetivos? E quais os impactos que causam à população local de baixo poder aquisitivo

residentes nessas áreas?

Neste caso, delimitamos como objeto de investigação a Comunidade do Pilar,

conhecida também como “Favela do Rato”, situada no antigo Bairro do Recife. Essa

comunidade está situada em uma área específica do bairro desde a década de 1970, formada

por moradores que vivem em condições habitacionais precárias. Entretanto, sua população

não foi contemplada pelo processo de Revitalização do Recife Antigo nos anos de 1990,

embora tivessem sido alvos no âmbito de construção do projeto no fim da década de 80.

Sendo este o foco que instiga o desenvolvimento da presente pesquisa, procura-se investigar

qual a situação que se encontra atualmente a Comunidade, excluída social e espacialmente.

Procurou-se fazer no âmbito desta monografia uma abordagem ampla considerando

para o problema as múltiplas “possibilidades de olhar” as assimetrias relacionadas ao

processo de exclusão, como também a diversidade de fenômenos sociais e políticos os quais,

indutivamente, tentou-se estabelecer as possíveis relações existentes entre eles. Sustenta-se,

além disso, que os temas enfocados neste trabalho, dentre os quais consolidaram a perspectiva

de análise sobre os estudos urbanos, mais particularmente das grandes cidades e metrópoles

contemporâneas, versam sobre os modos e estilos de vida urbanos e as sociabilidades dos

mais heterogêneos atores sociais. Sendo assim, procurou-se entender como as diferenças e

desigualdades (culturais, identitárias e econômicas) dos atores que dinamizam os espaços

urbanos através dos usos que fazem na prática cotidiana, desenvolvendo tipos distintos de

sociabilidades com base em suas “visões de mundo”, trajetos, interações, finalidades e

valores.

Do exposto acima, é possível considerar que a importância dessa discussão se insere

no atual quadro do debate sobre a Globalização. Sabe-se que a globalização influencia tanto

os aspectos mais pertinentes da vida cotidiana, quanto os mais abrangentes na ordem das

economias em todo o mundo. Seus efeitos são, democraticamente, sentidos por todos, seja na

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esfera econômica, política, tecnológica, social, espacial ou a cultural. Não menos, sua

dimensão implica uma relação mais complexa, porém mais ampla e dinâmica entre as culturas

locais e a cultura global.

Nesse sentido argumenta Stuart Hall (2000, p.69), que neste processo, “desde os anos

70, tanto o alcance quanto o ritmo da integração global aumentaram enormemente, acelerando

os fluxos e os laços entre as nações”. Segundo o autor, a globalização causa impactos sobre as

identidades dos sujeitos à medida que podem desintegrá-las de uma localidade ou

ressignificá-las, dando novas concepções a ações e comportamentos desenvolvidas por eles.

Assim, como ressalta Giddens (2001), para compreender o estágio das estruturas socais atuais,

devemos relacionar duas esferas correspondentes à mudança social com desenvolvimento da

modernidade: 1) “a difusão extensiva das instituições modernas, universalizadas por meios

dos processos de globalização” (p.23) e; 2) “os processos de mudança intencional, que podem

ser conectados à radicalização da modernidade” (p.23).

Portanto, este estudo desdobrou-se, ora “de perto e de dentro” como sugere Magnani

(2002) para com isso conceber os comportamentos e estilos de vida que se fazem presentes no

Bairro do Recife, ora a fazer uma abordagem mais geral sobre os processos de enobrecimento

e sua “relação” com a população local, especialmente da Comunidade do Pilar. Este enfoque

metodológico proporcionou, dentro das limitações de toda pesquisa, uma visão bastante

elucidativa sobre o tema proposto a ser debatido neste presente trabalho.

O método que utilizamos na investigação foi procedido pela tentativa de comparar a

pesquisa literária e documental aos resultados empíricos obtidos. Neste caso, procurou-se

como quadro de referência, compreender as relações e características desses processos de

intervenções urbanas que envolvem diferentes períodos históricos, desde o século XIX e se

estendem até os dias atuais, em sua forma mais abrangente.

O procedimento de análise metodológica se baseou em um estudo histórico-

documental e etnográfico de corte longitudinal, compreendido entre 1985 e 2007. A pesquisa

segue o modelo qualitativo, pois se espera apreender um universo de significados que dão

formas aos fenômenos, às relações e aos processos sociais. Desta maneira, para os objetivos

de análise, adotou-se um plano de estudo, de forma que pudesse abranger uma gama de

informações e a construção de uma bibliografia que contribuísse para os intuitos desta

monografia.

O embasamento teórico sobre o tema foi construído com o levantamento e revisão de

literatura especializada sobre as temáticas urbanas relacionadas aos processos de intervenções

urbanas e gentrification. Outro procedimento utilizado foi o levantamento histórico-

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documental e a catalogação de fontes primárias e secundárias em órgãos públicos,

principalmente, bibliotecas e instituições, também com a ajuda de pesquisas on-line como

instrumento de coleta. A visita ao Escritório de Revitalização do Bairro do Recife

proporcionou reunir dados e informações importantes que basearam esta pesquisa. As

dificuldades mais relevantes, tendo em vista os documentos referentes ao Bairro do Recife,

deveram-se aos poucos materiais referentes à “Favela do Rato”, apesar de todas essas fontes

disponibilizarem um considerável acervo sobre as políticas de revitalização.

Outro importante procedimento concerne ao levantamento da iconografia histórica da

cidade do Recife: fotografias, postais e cartografia. A fim de fornecer um quadro de

representações sobre o objeto de estudo, construiu-se um banco de imagens que possibilitou

dinamizar o trabalho de campo, cujo procedimento foi realizado através incursões

etnográficas no Bairro em diferentes etapas da pesquisa entre 2006 e 2007. Durante as

observações feitas em diferentes dias e horários, foi possível perceber aspectos relevantes das

sociabilidades públicas que se apresentam no espaço selecionado, como também diversos

aspectos do processo em curso. Para a coleta de informações, realizou-se entrevistas

focalizadas, com o objetivo de enfocar a especificidade do tema e entrevistas informais a fim

de coletar dados e as impressões dos atores sociais quanto as questões que se relacionam ao

tema.

Assim, o presente trabalho compreende quatro capítulos divididos da seguinte

maneira: no primeiro capítulo, procura-se apreender a literatura acerca das principais

intervenções urbanas européias durante o século XIX e a influência desse processo no

contexto brasileiro no decorrer do primeiro período do século XX. Através deste

levantamento, menciona-se sobre as mudanças ocorridas no modo de vida das cidades e as

configurações que se sucederam com as primeiras reformas urbanas modernizantes. Este

capítulo se encerra com uma discussão sobre o desenvolvimento das políticas contemporâneas

de intervenção urbana pautadas na lógica da gentrification, seus desdobramentos e a relação

que esse processo sugere no tocante ao quadro da exclusão social.

No segundo capítulo, traçou-se uma análise sobre as paisagens urbanas enobrecidas e

as políticas de patrimônio, que revelam, no âmbito dos processos de gentrification, aspectos

centrais para a compreensão desse modelo de política urbana, tal como a construção de

paisagens que transformam os espaços urbanos degradados em áreas de entretenimento e

consumo. Estas paisagens são consideradas neste trabalho como os “novos cartões-postais”,

pois incidem diretamente na projeção da imagem e visibilidade da cidade no âmbito das

escalas turísticas globais. Procura-se, portanto, destacar as discussões acerca das políticas de

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patrimônio no sentido de analisar a relação que elas possuem com dimensão mercadológica ao

situar o consumo visual e simbólico, como também a reapropriação do patrimônio histórico e

cultural segundo as práticas de enobrecimento.

No capítulo seguinte, discorre-se sobre o processo de gentrification na cidade do

Recife. Nesta parte, procura-se observar o corte temporal das primeiras iniciativas datadas nos

fins da década de 80 e a mudança programática do Plano de Revitalização do Bairro do Recife

na década de 90 em diante. Em síntese, é apresentado um quadro sobre as questões políticas

nesses períodos, enquadrando as características do primeiro projeto de intervenção, voltado

aos moradores do Bairro do Recife, em seu conjunto pessoas de baixo poder aquisitivo,

especificamente da Comunidade do Pilar. Nesta parte, destaca-se ainda sobre a atual

configuração do Plano de Revitalização do Bairro do Recife e como esse excluiu os

moradores da Comunidade.

Por conseguinte, o quarto capítulo abrange a pesquisa sobre a situação da Comunidade

do Pilar, a qual é chamada aqui de paisagem contra-enobrecida. Demonstra-se através de

fontes e documentos pesquisados o motivo pelo qual este tema revela uma dimensão

importante que marca a exclusão social brasileira e as particularidades de um modelo de

política pública voltado ao incremento econômico em detrimento de políticas mais amplas de

corte social. No final deste capítulo, apresenta-se a pesquisa etnográfica e os resultados

colhidos ao longo deste trabalho. Assim, procura-se fazer uma descrição do local, a “Favela

do Rato”, onde foi possível perceber registrar a situação de exclusão que enfrenta seus

moradores, como também fazer o registro das sociabilidades nos principais pólos do bairro

através da descrição textual e apresentação de imagens que envolvem os principais aspectos

discutidos em torno do tema.

Vale destacar que construção desta pesquisa se insere no plano de trabalho

desenvolvido e elaborado no âmbito do LABEURC – Laboratório de Estudos Urbanos e

Culturais, grupo de pesquisa vinculado à Universidade Federal de Sergipe que tem

desenvolvido trabalhos no campo da sociologia urbana, acerca dos problemas relacionados a

diversas cidades no Brasil. Para o levantamento, foram utilizados os métodos convencionais

de fichamento e catalogação dos trabalhos acadêmicos produzidos nas duas últimas décadas.

As fontes foram pesquisadas nos seguintes acervos: Biblioteca Central da UFS (BICEN),

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP (Base de dados

Acervus), Biblioteca da USP (Sistema Dedalus), Acervo do Instituto Histórico e Geográfico

de Pernambuco, Fundação Joaquim Nabuco e Biblioteca Central da UFPE.

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CAPÍTULO 1

Em busca dos “belos tempos”: edificando a modernização das cidades através das intervenções urbanas.

Os cidadãos urbanos usurparam o direito de dissolver os laços da dominação senhorial – e esta foi a grande inovação, de fato, a inovação revolucionária das cidades medievais do Ocidente em face de todas as outras – a quebra do direito senhorial. Nas cidades centro e norte-européias originou-se o conhecido dito: ‘o ar da cidade liberta’.

Max Weber

O conjunto de mudanças pelo qual passaram as sociedades ocidentais européias,

conforme mecanismos e planos modernizadores difundiu a idéia de que na cidade o homem

viria adquirir a emancipação material e moral, como expressou Max Weber (Ribeiro e Santos,

2003)2. Não obstante, os crescentes avanços da ciência e da técnica, desde a metade do século

XIX, já contavam com conquistas importantes como a expansão da economia industrial e

acentuam sua configuração por volta de 1870. O progresso tecnológico e científico

proporcionou não somente transformações intensas à economia internacional e ao progresso

material dos países mais desenvolvidos industrialmente da Europa e nos Estados Unidos,

como também transformou drasticamente os modos de vida dessas sociedades. Esses

processos envolveram de modo intenso a mudança de padrões culturais, de hábitos cotidianos

e de sociabilidades, principalmente, do ponto de vista dos efeitos como essas inovações

mobilizaram novos ritmos e atividades no contexto do fenômeno das grandes metrópoles

modernas (Sevcenko, 1998, p.10).

Por essas proporções, surgiu o que se considerou necessário adequar os usos das

cidades ao triunfo da economia capitalista industrial e ao acelerado processo de urbanização.

O decorrente crescimento populacional e espacial dos centros urbanos europeus provocou o

superpovoamento dos antigos bairros medievais, como também dos bairros operários que

surgiram de forma desordenada em meio às fábricas que se instalavam na periferia das

2 Ribeiro e Santos (2003, p.80) demonstram que a cidade tem sido pensada, desde Marx, Weber, Simmel etc; como o lugar da modernidade e da democracia em razão do seu papel na autonomização do indivíduo das amarras que o ligavam à ordem estamental na formação das classes e na instituição dos direitos políticos e sociais. Contudo, esses autores inscrevem a discussão dentro do debate contemporâneo sobre impactos das atuais transformações econômicas nas grandes cidades, elucidando que os efeitos da atual ordem socioespacial estão para o surgimento de uma estrutura social dualizada entre ricos e pobres, uma organização espacial fragmentada e uma sociedade política semelhante ao ancien regime, isto é, uma sociedade dirigida pelas elites.

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cidades. O problema se agravara com a grande aglomeração de construções que dificultavam

a circulação de ar e penetração solar, pois havia muitas ruas imundas, mal calçadas ou sem

calçamento e falta de saneamento (Follis, 2004, p.22-23).

O resultado disso foi que no transcorrer do século XIX, a insalubridade dos antigos

bairros operários fundou o principal problema a ser enfrentado pelo poder público das mais

prósperas cidades européias, entre as quais destacaram-se Londres, Paris, Berlim e Viena.

Dessa forma, “a higienização tornou-se o mais eficaz elemento ideológico capaz de motivar e

justificar as reformas modernizadoras que transformariam a paisagem urbana de várias

cidades em todo o mundo” (Follis, 2004, p.23), dentre as quais, nota-se importantes cidades

brasileiras – Rio de Janeiro, São Paulo e Recife – que mais tarde viriam a experimentar os

métodos “clínicos” (Leite, 2004) empregados nas reformas urbanas. Importante sublinhar, que

além de desenvolverem uma legislação urbanística geral para tratar a questão da higienização

da cidade, outros dois métodos foram tomados como referências para as reformas em curso: o

ideal de “embelezamento” e a racionalização do espaço urbano.

Nesse contexto, na Europa, entre 1830 a 1950, a urbanística moderna vigorou com

métodos de intervenção em função da experiência dos defeitos da cidade industrial, onde “as

primeiras leis sanitárias são o modesto começo sobre o qual será construído, pouco a pouco, o

complicado edifício da legislação urbanística contemporânea” (Benevolo, 1989, p.91).

Entretanto, sendo os principais setores de ação difundidos de forma limitada, sobretudo, para

eliminar determinados problemas como a insuficiência de esgotos, a falta de água potável e a

difusão de epidemias que acompanharam o crescimento das cidades, o que evidenciou a falta

de uma programação eficiente para o setor público. Foi nesse sentido que autoridades de

diversas nações européias empregaram um discurso voltado a promover reformas urbanas,

considerando a necessidade da realização dos projetos de intervenções sobre todo o tecido

urbano a fim de coordenar o progresso das cidades industriais e visaram o controle de setores

fundamentais que possibilitassem a organização geral da sociedade.

Segundo Benevolo (1989), embora tenha alcançado muitos avanços, sendo um

processo de modificação estrutural, as reformas implementadas não alteraram em seu

conjunto as especificidades da vida econômica e social. O ambiente era de efervescência e

transformação, enquanto as dificuldades políticas e econômicas influenciadas pelo

pensamento liberal abriram espaço para a eclosão de movimentos socialistas após a

Revolução de 1848, devido à falta de representação política dos Estados. Entretanto, em

conseqüência dos movimentos de 1848, os países europeus viveram um novo panorama com a

condução de novos atores políticos no poder, influenciados por segmentos conservadores

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(Benevolo, 1989). Nesse contexto, é interessante citar o caso de Paris, onde o novo ciclo de

reformas tornou-se um dos mais importantes e eficazes instrumentos de poder ao promover os

meios de evitar os levantes populares promovidos pelos movimentos socialistas e pela classe

operária, através de um modelo urbanístico que tinha como objetivo evitar a formação de

barricadas e trincheiras (Benjamin, 1997; Leite, 2004).

Na França, o Estado foi conduzido pela direita francesa sob a figura de Napoleão III, o

qual teve seu projeto administrativo apoiado pela burguesia, o clero e as forças armadas.

Destaca-se em seu governo a reforma parisiense, na qual a capital foi redesenhada pelas

execuções de grandes obras públicas que sobrepuseram o antigo traçado da cidade com a

demolição das antigas ruas medievais para a construção das grandes avenidas desenhadas com

o propósito de evitar futuras conflagrações, tanto por parte dos motins revolucionários quanto

por possíveis revoltas das classes pobres3. Nesse conjunto de obras, insurge a nova Paris,

burguesa e monumental, ancorada por um pretensioso projeto, um tipo ideal para a

modernização urbanística. Projeto que tem como marco inaugural a grande reforma urbana

implementada na capital francesa pelo barão Georges Eugène Haussmann4, entre 1853 e

1869. A partir desse momento, destaca Follis (2004, p.16) “Paris tornou-se um modelo urbano

para muitas cidades de várias regiões do mundo”. Assim, o ideal político de Haussmann

orientava as reformas urbanas à tendência chamada por Walter Benjamin (1997) de

“embelezamento estratégico”, que se seguiu ao longo do século XIX – higienização,

embelezamento e racionalização dos espaços.

Partindo desses pressupostos, o plano de reforma dos espaços de circulação e

sociabilidade na cidade se caracterizou por obras viárias que permitiram o avanço do processo

de urbanização em terrenos periféricos. Deste modo, as estratégias haussmannianas

concebiam fazer demolições de casebres, reestruturação da malha viária e dos equipamentos

técnicos, embelezamento e arborização das praças centrais, higienização e separação dos

3 Sobre a necessidade de reprimir ou evitar as possíveis revoltas das classes pobres, sufocadas pela crescente exclusão e, sobretudo, identificadas como classes perigosas, Hobsbawm (1996) assim descreve o fato: “Para os planejadores de cidades, os pobres eram uma ameaça pública, suas concentrações potencialmente capazes de se desenvolver e distúrbios deveriam ser cortadas por avenidas e bulevares, que levariam os pobres dos bairros populosos a procurar habitações em lugares não especificados, mas presumidamente mais sanitarizados e certamente menos perigosos” (1996, p. 295) 4 As polêmicas obras executadas por Haussmann dividiam-se em categorias examinadas através de regularidades que assegurassem um planejamento estratégico. Foram executados novos traçados dos edifícios e abertura de novas ruas e avenidas para os velhos bairros; que na prática, sobrepuseram o corpo da antiga cidade a nova malha de ruas largas e retilíneas, demolindo as antigas ruas medievais para facilitar o movimento das tropas. Também foram criados – em prol à modernização –, os grandes Boulevards da cidade e os famosos parques públicos (que atenderam também os bairros populares); renovou-se as instalações da velha Paris, abrangendo as instalações hidráulicas, rede de esgotos, iluminação, transportes públicos etc. (Benevolo, 1989).

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espaços públicos e privados (Benevolo, 1993). Examinado através deste quadro geral, o

“embelezamento estratégico” de Paris pretendia adequar a capital francesa às necessidades de

circulação do capital financeiro que a cidade industrial reclamava (Leite, 2004), ou como

sugere Walter Benjamin (1997, p.75), pretendia enobrecer as necessidades técnicas da cidade

com pseudo-finalidades artísticas5. Embora o modelo haussmaniano seja considerado como

ideal de progresso do século XIX, seus elos refletiram a instabilidade política e social da

época. Neste sentido, sintetiza Leite (2004) que “a reforma de Haussmann, apesar da intenção

modernizadora, foi antes uma reforma conservadora” (p. 110). Portanto, as políticas de

reformas urbanas são marcos que revelam essa intenção modernizadora e abordam as

principais características do período que marcaria a arquitetura na belle époque francesa,

época que ocorreu aproximadamente de 1880 até o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918.

Esse período foi caracterizado “pela expressão do grande entusiasmo advindo do

triunfo da sociedade capitalista nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX”

(Follis, 2004, p.15). Nesse sentido, a belle époque representa um clima de otimismo para a

burguesia ascendente, cadenciado pelo incessante progresso das sociedades modernas,

marcado pelas conquistas materiais e tecnológicas e pela ampliação das redes de

comercialização incorporadas à dinâmica da nova economia capitalista. Essa nova

configuração tem como crença, que o progresso material possibilitaria equacionar

tecnicamente os problemas da humanidade (Bonametti, 2006).

Conforme Botelho (2003): “As formas de expansão urbana, por sua vez, se definiram

socialmente em função de uma série de fatores associados à Revolução Industrial: descobertas

científicas, transformações demográficas, formação dos estados modernos nacionais,

movimentos de massa etc.” (p.02). Assim, neste contexto, as cidades insurgem como espaço

privilegiado para fruir o progresso material, tornando-se o lócus da atividade civilizatória ao

inscrever o novo modo de vida urbano introduzido pela modernidade (Simmel, 1997; Wirth,

1997; Follis, 2004).

5 Convém relatar uma passagem de Walter Benjamin (1997) sobre “Baudelaire ou as ruas de Paris”, que corresponde, em essência, o vinculo entre as primeiras intervenções urbanas em Paris e o ideal modernizante capitalista ao enfocar os usos dos lugares voltados para práticas de consumo. Assentado durante o século XIX, como o período da belle époque: “A questão decisiva em Baudelaire é o substrato social, moderno, do “idílio mortal” da cidade. A modernidade é a tônica essencial na sua poesia. É a modernidade que, com o spleen, estilhaça o ideal. [...] Mas é precisamente a modernidade que constantemente convoca a proto-história, devendo-se isso à ambigüidade que caracteriza as produções e as relações sociais desta época. A ambigüidade é a manifestação figurada da dialética, a lei da dialética imobilizada. Esta imobilidade é a utopia e a imagem dialética é, portanto, uma imagem de sonho. A mercadoria considerada em absoluto, quer dizer, como fetiche, dá uma imagem deste gênero, tal como as galerias que são a um tempo exterior e interior [...]” (p.75).

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O crescimento urbano é acompanhado pelo desenvolvimento e concentração do

poderio econômico e político convergidos nos grandes aglomerados urbanos industrializados.

Dessa forma, desenvolvem-se modos de vida específicos da cultura urbana e, esta sendo

disseminada através de um conjunto de oportunidades, das quais Simmel atribui como

característica o aprofundamento do espírito racional: “em vez de reagir emocionalmente, o

sujeito metropolitano reage principalmente de modo racional, pelo aprofundamento da sua

consciência e a criação de uma reserva mental que é, por sua vez, resultado da primeira.”

(Simmel; 1997: p. 32).

Nesse sentido, o modo de vida urbano está centrado na racionalidade e no

individualismo. Sendo assim, pode-se inferir que a cidade tornou-se a expressão do conjunto

de transformações que sustentam a modernidade. Para Louis With (1997) o crescimento físico

e mental da cidade traz consigo características peculiares para o desenvolvimento das relações

sociais na cidade e, ao mesmo tempo, apresentam diversos problemas e dilemas sociais que se

tornaram típicos da vida urbana. A cidade se apresenta como modo de vida, designa

divergências nos comportamentos peculiares, que os distinguem das sociedades rurais.

Segundo Wirth,

A urbanização já não significa apenas o processo pelo qual as pessoas são atraídas a um lugar chamado cidade e incorporadas no seu sistema de vida. Refere-se também a acentuação cumulativa das características distintivas do modo de vida associado ao crescimento das cidades e diz respeito, por ultimo, às alterações dos modos de vida tidos como urbanos, reconhecidas por aqueles que – onde quer que seja – sucumbiram perante as influências da cidade, graças ao poder que as suas instituições e personalidades exercem através dos meios de comunicação e de transporte (Wirth, 1997, p. 48).

Deve-se destacar também que a base econômica do período da belle époque foi

sustentada pela política liberal e o emergente capitalismo industrial. Esse modelo político-

econômico possibilitou difundir o padrão dominante da cultura européia, as relações

econômicas e a industrialização, a exploração colonial e a divisão do trabalho internacional.

No decorrer deste período emerge a nova definição social e cultural do modo de vida europeu

expressado pelas “vanguardas européias”6 na literatura, na música, nas artes visuais, pela

arquitetura e pelos padrões estéticos, que foram compreendidas como a principal forma de

representação ao invadirem e influenciarem as novas sociabilidades mundo afora.

6 C.f : http://www.cfh.ufsc.br/labhmm/bepoque.htm

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Culturalmente, este período caracteriza-se por uma intensa atividade artística e intelectual nas

grandes metrópoles modernas da Europa. A exemplo de Paris e Viena7, ícones dos planos

urbanos do século XIX (Schörske, 1990), estas cidades foram marcadas por profundas

transformações culturais que se traduziram em novos modos de pensar e viver o cotidiano. A

cultura predominante da modernidade é eminentemente urbana, onde a cidade torna-se, ela

própria, tema e sujeito das manifestações políticas, culturais e artísticas. Demonstra Follis:

[...] as cidades assumiram redobrado valor como lócus da atividade civilizatória, espaço privilegiado para usufruir o conforto material e contemplar as inovações introduzidas pela modernidade. Para isso, as cidades precisavam renovar suas feições de modo a se mostrarem modernas, progressistas e civilizadas. As cidades modernizadas constituíram então a maior expressão do progresso material e civilizatório de um período que se convencionou chamar de Belle Époque (2004, p.15).

Do conteúdo discutido acima, pode-se, conforme ressalta Botelho (2003), perceber que

a cidade moderna deu forma a uma “ideologia urbana” e ao novo modo de vida urbano que

apresenta dois pólos: o da “cidade ideal” e da “cidade real”. Concerne este autor, que estes

dois modos de referir a cidade moderna, apesar de exprimir a evolução do progresso material

e cultural, passaram também a refletir as dificuldades que as cidades em processo de

modernização tinham em se agregar e funcionar independente da cidade antiga: “Ao definir a

cidade como acúmulo ou concentração cultural, esta ideologia urbana, contudo, considera não

somente uma história da ideologia do poder, mas também toda a vivência dos indivíduos e da

sociedade moderna” (p.02).

O “ideário modernizante” das reformas urbanas no contexto brasileiro.

As primeiras intervenções urbanas realizadas na Europa influenciaram os métodos

empregados na política urbana adotadas no Brasil no período em que se inscrevia o discurso

da modernização do país. De acordo com Nicolau Sevcenko (1998), o país também viveu uma

7 Além de Paris e Viena, as cidades de Lyon, Marselha, Roma Nápoles etc, também seguem a mesma perspectiva. Em Viena, a experiência das reformas não seguiu a mesma estrutura linear verificadas em Paris. A reforma evitou a linearidade das longas avenidas e investiu no traçado circular da antiga cidade (Schörske, 1990). Schörske nos mostra que a interação entre política e cultura desdobra-se através da arquitetura modernista, concebe-se a “monumentalidade” arquitetônica como padrão para exprimir os ideais do liberalismo austríaco vigentes na época, a exemplo da Ringstrasse em Viena.

13

típica belle époque, o que se pode dizer, viveu ‘os belos tempos’: de enriquecimento e

estabilização entre produção e consumo. Neste aspecto histórico, o país sofreu importantes

transformações políticas e econômicas com o advento da república em 1889, seguindo as

tendências modernizantes da época. Segundo o autor (1998, p.15) o ideário modernizante

emergiu a partir do envolvimento dos grupos políticos e economicamente dominantes,

sobretudo, a oligarquia cafeeira do Sudeste, os militares e os políticos republicanos. Estes

grupos, deslumbrados com a expansão da cultura cafeeira, sentiram os efeitos e estímulos da

crescente demanda dos países europeus e dos Estados Unidos, motivo que levou a adoção de

uma completa abertura da economia brasileira aos capitais estrangeiros, ensejando um clima

geral de otimismo e confiança no crescimento econômico.

Após as primeiras mudanças, a partir da abolição da escravatura e o surto da grande

imigração, “a idéia das novas elites era promover uma industrialização imediata e a

modernização do país ‘a todo custo’ [...] era a entrada triunfal do Brasil na modernidade”

(Sevcenko, 1998, p.15). A belle époque brasileira, cuja duração abrange o período da guerra

européia, é resultado desta drástica, e ao mesmo tempo dinâmica transformação da sociedade

nacional e da consolidação do novo regime. Estava em curso o projeto de desenvolvimento da

modernização do país e, concomitantemente, sua inserção no contexto da expansão

internacional do capitalismo. O programa levou as autoridades do país a mobilizarem

praticamente os interesses das elites brasileiras, o qual foi, sobretudo, executado segundo a

visão de um período correspondente à “Regeneração” do país8. Palco do primeiro conjunto de

reformas urbanas no início do século XX, essa iniciativa tinha como objetivo central associar

o Brasil à modernidade e ao cenário de progresso, devido às mudanças socioculturais e

econômicas ocorridas em cidades como o Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife e

Manaus. Vinculou-se ainda à assimilação do modelo estrangeiro europeu por parte das elites

nacionais, absorvendo traços mais especificamente franceses, como se verificou no seu

primeiro alvo, a capital da República, a cidade do Rio de Janeiro.

O programa de reurbanização ocorreu durante o governo de Rodrigues Alves e na

administração municipal de Pereira Passos, a qual pretendia transformar a cidade do Rio de

8 Explica Sevcenko (1998): A chamada Regeneração era o correspondente brasileiro que levou ao surto amplo de entusiasmo capitalista e da sensação das elites de que o país havia se posto em harmonia com as forças inexoráveis da civilização e do progresso. Esse ideário lançava mão de tempos promissores no início do século XX e ao mesmo tempo do significado do novo regime, posto que patenteava a idéia de que a República viera para ficar e com ela o país romperia com a letargia de seu passado, alcançando-se novas alturas no concerto das nações modernas.

14

Janeiro em uma espécie de cartão-postal do país9. Segundo Paulo C. Marins (1998), a

prioridade era embelezar as ruas e as artérias e os bairros ao sul da cidade, possibilitando o

poder público mostrar sua real dimensão neste processo de intervenção que era “readequar os

padrões habitacionais, sanear e zonear socialmente a nova capital redesenhada” (p.152).

Paralelamente a isso, emergiu o movimento da Regeneração que teve como marco inaugural o

“bota-abaixo” da área central do Rio de Janeiro. Para efetivar o programa segundo o modelo

europeu, que fora realizado, por conseguinte, nas demais capitais do país, adotaram-se

medidas sanitárias no combate às doenças epidêmicas e endêmicas que assolavam a

população pobre das grandes cidades devido às precárias condições sociais e habitacionais.

Como demonstram Leite (2004) e Follis (2004), além dos ideários de higienização, do

embelezamento e de racionalização do espaço urbano, o método empregado para a construção

de parques, praças, jardins e monumentais edifícios de arquitetura moderna, proporcionou a

redefinição dos espaços públicos e privados dessas cidades, tanto que o projeto implementado

na capital carioca10 baseou-se nos mesmos princípios e processos de exclusão habitacional,

próprios do embelezamento da cidade, os quais, com efeito, fizeram-se presentes nas obras

públicas de Haussmann em Paris, ao elevar os preços dos terrenos circundantes em toda a

cidade e a valorização do centro da cidade.

Dessa forma, as intervenções realizadas no Brasil, por um lado, partiam de uma

perspectiva otimista e de confiança no crescimento econômico do país, mas, os grupos

populares nos sertões e nas capitais perdiam cada vez mais espaço e viam seu modo de vida e

seus valores tradicionais ameaçados11. O exemplo mais significativo de levante popular contra

as reformas, e de revolta com o descaso público, ocorreu na cidade do Rio de Janeiro ao

desencadear a Revolta da Vacina em 190412. Esse episódio consolidou uma tentativa da

população em contrapor as intenções da brusca demolição de residências iniciadas em 1903

pelas autoridades, mas que não evitou a expulsão dos moradores antigos numa operação que

ficou conhecida para a população pobre, os diretamente atingidos, o já mencionado “Bota-

9 A lógica era desenvolver uma política de estímulo à imigração e a entrada de capitais estrangeiros, contudo, para isso era preciso combater as mazelas herdadas do período colonial e da escravidão (Marins, 1998). 10 O mesmo processo ocorre nas demais cidades do país – Recife, São Paulo, Manaus, Belo Horizonte etc. 11 Sobre a condenação de hábitos tradicionais da velha sociedade colonial ver Needell (1993) e Moraes (1994). 12 Sob os auspícios das autoridades, a campanha de vacinação realizada sob a direção de Oswaldo Cruz, pretendia incluir a vacinação em massa da população com o pretexto de erradicar a epidemia de varíola. A campanha foi realizada de maneira agressiva, o que promoveu a revolta da população já insatisfeita com a expulsão das áreas centrais. Para detalhes sobre o motim, consultar Sevcenko (1998).

15

Abaixo” (Leite, 2004). Essa operação de um bota-abaixo se revelou mais tarde em outras

cidades do país.

Segundo Marins (1998), a partir da segunda metade do século XIX, circundava o

crescimento econômico e o desenvolvimento urbano nas principais capitais brasileiras. Essa

perspectiva de modernização abrangeu a expansão das reformas na malha urbana,

enquadrando a redefinição dos traçados arquitetônicos tradicionais de bairros, avenidas e ruas

das cidades. Nesse período, ocorreu em São Paulo o desenvolvimento da cultura cafeeira e da

industrialização; nas cidades de Belém e Manaus ocorreu o desenvolvimento econômico

impulsionado pelo ciclo da borracha; nas capitais nordestinas, Salvador e Recife, havia a

necessidade de manter a projeção nacional que possuíam como importantes cidades portuárias

e por suas importantes atividades comerciais. Em todas elas verificaram-se a ascensão de

novas classes que se projetaram no seio da belle époque brasileira e convergiram novas

perspectivas em busca da expressão de um Brasil moderno, representados principalmente pela

influência dos modelos europeus e cariocas (Marins, 1998, p.165).

Após esta breve análise dos aspectos circunstanciais sobre o papel desempenhado

pelas reformas urbanas no Brasil e na Europa, cabe examinar propriamente o processo de

intervenção na cidade do Recife. Nesse sentido, de acordo com Leite (2004),

No Recife, cidade que ainda no início do século se mantinha como a mais importante capital nordestina em decorrência da economia açucareira, condensa no Nordeste brasileiro a mais nítida expressão da busca dessa imagem de um Brasil moderno. A reforma de seu bairro portuário a partir de 1910 seguiu a mesma tendência que se proliferou em todo país, associando modernização da estrutura portuária com renovação urbana. (p.114-115)

Recife tornou-se internacionalmente conhecida nos fins do século XVIII e início do

século XIV, devido, essencialmente à construção de seu porto no Bairro do Recife (Gomes,

1995). Este bairro, conhecido também como Recife Antigo, conjuntamente com os bairros

Santo Antônio, São José e Boa Vista, constituem o centro histórico da cidade. Sendo o Bairro

do Recife a mais antiga porção da cidade, nele concentrava-se até o século XIX praticamente

toda a economia urbana da cidade, como o comércio atacadista e internacional, armazéns,

escritórios e os bancos, além de pequenas fábricas, oficinas e locais de serviços (Zancheti,

1995).

Desde a colonização portuguesa na América, a cidade do Recife possuía o traçado

regular do século XVII, tendo o tecido urbano do seu antigo bairro se estruturado sem

transformações significativas até fins do século XIX (Gomes, 1995). Com a expansão

16

econômica e urbana do Recife no século XIX, emergiram as propostas de modernização e

melhoramento das instalações do Porto e das reformas urbanas através dos novos padrões de

operação portuária aliados aos princípios higienista e sanitaristas que nortearam estas

reformas (Zancheti, 1995).

Esse período representa, portanto,

um dos aspectos mais relevantes para a

história social e econômica de

Pernambuco. As pretendidas reformas

adequavam-se à contínua busca das elites

pelo progresso, por uma nova imagem da

cidade, associada ao capital industrial do

Estado, ao comércio nacional e

internacional, à expansão do setor

usineiro, e ao crescimento da economia

financeira e urbana, embora contrastasse

com a situação precária da condição de vida da população pobre. Essa situação podia ser

percebida através da precariedade sanitária dos antigos sobrados e dos mocambos insalubres –

construídos em taipa de mão, palmáceas e capim expansos nos arrabaldes da cidade do Recife

– o que levou as autoridades locais, associar o plano de saneamento entre 1909-10 ao

programa de demolição de moradias entre 1910 e 1913 (Marins, 1998).

Conforme assinala Geraldo Gomes (1995, p.89), devido ao crescimento da cidade e

sua projeção a níveis internacionais nos séculos XVIII e XIX, as intervenções visavam a

expansão e melhoramento do porto. Procedeu-se a abertura de duas amplas avenidas de estilo

europeu (Marquês de Olinda e Rio Branco) e a construção de modernas formas de edifícios

ecléticos. Com a reforma, o antigo traçado colonial foi demolido e a preservação do

patrimônio do bairro tornou-se refém da ampliação das instalações do porto. Um fato

marcante, em conseqüência da dimensão das reformas, foi a demolição da igreja do Corpo

Santo. Esta ação não levou em conta as conseqüências sociais e o resgate histórico da

colonização portuguesa: “lamentada posteriormente, foi demolida por estar no leito de uma

das avenidas recém criadas” (Gomes, 1995, p.89).

Ilustração 01. Rua do Bom Jesus, século XIX (Cromolitografia de L. Krauss, entre 1878 e 1885.) Fonte: Atlas Histórico e Geográfico do Recife. Série Obras de Consulta vol.9. Fundação Joaquim Nabuco - Editora Massangana1

17

.

De acordo com Leite (2004, p.117), para além do sentido do discurso da higienização

no Recife, havia o discurso urbanístico apoiado sob “o ideário modernizante do início do

século” que associava a noção de “limpeza” e “embelezamento” das cidades. Destaca o autor,

Além do aspecto propriamente sanitário das reformas, havia o discurso urbanístico que associava, metafórica e politicamente, a necessidade de higienização com a remoção socialmente desejada pelas elites da população mais pobre do centro das cidades. A política sanitarista do início da República foi também um reflexo da tendência francesa de tornar análogos corpo e cidade, a partir da qual se buscava implantar formas eficazes de controle social (Leite, 2004, p.117).

Este aspecto sugere o que Walter Benjamin (1997) sintetizou: “a verdadeira finalidade

da obra de Haussmann era precaver a cidade contra a guerra civil” (p.76). Contudo, designou

uma reforma ampla à vida dos cidadãos parisienses, principalmente as classes proletárias que

foram deslocadas para os subúrbios, respondendo, ao que parece certo, aos anseios da

burguesia em ascensão. Relata Leite (2004) que “as grandes avenidas e a monumentalidade de

sua arquitetura expressavam os valores dessa classe, em contraposição à forma e pouca

funcionalidade do traçado centrípeto da cidade antiga” (p.111). O autor refere ao mesmo

modelo Parisiense empregado na cidade do Recife, o que conferiu à capital Pernambucana um

cenário típico de belle époque. Esse “cenário” representava a abertura de grandes avenidas

que facilitavam a rápida circulação de pessoas, além de uma reordenação espacial das

atividades ligadas ao comércio e às finanças e dos usos do bairro reformado, proporcionando,

uma cena política de construção de uma paisagem da modernidade.

Ilustração 02. Matriz do Corpo Santo: uma das primeiras igrejas a serem construídas na cidade, tão logo aportaram aqui os colonizadores portugueses. Fonte: Nordeste Histórico e Monumental Clarival do Prado Valladares vol.III.1

18

Ilustração 03.

Ilustração 04.

As inovações tecnológicas geradas pela Revolução Industrial condicionaram no Brasil

uma gradativa europeização de costumes para uma parcela da população. Esses processos

envolveram de modo intenso a mudança de padrões culturais, de hábitos cotidianos e de

sociabilidades e, dentre essas mudanças, influenciaram também as vertentes estéticas até

então vigentes no país. Foi implantado um novo modelo para a arquitetura, de estilo eclético,

o qual denotou a última preferência que se impunha ao gosto recifense, como também nas

demais capitais brasileiras.

Geraldo Gomes (1987) assinala que “as duas primeiras décadas do século XX foram

decisivas para a implantação da arquitetura eclética” (p.190), evidenciando uma analogia

contida na literatura, jornais e pela população, que se fez entre o ecletismo e modernidade. Ao

referir-se às construções das duas novas avenidas durante o programa de reformas, a Avenida

Rio Branco e a Marquês de Olinda, Gomes (1987) chama a atenção sobre as considerações

noticiadas de cada edifício construído e revestido no bairro do Recife, destinados a funcionar

escritórios comerciais e bancos, que conferiram ao ecletismo certo status de estilo, portanto,

conferiram significado e sentido à linguagem eclética.

Portanto, conforme Leite (2002), o novo traçado do bairro reflete a construção da

“moderna paisagem do Bairro do Recife” (p.117). Para o autor, a reforma do bairro em estilo

eclético pode ser compreendida como um modelo de renovação arquitetônica que se ajustou à

imagem da construção da paisagem de um Brasil moderno, orientado por padrões advindos

das metrópoles européias, tão em voga no início do século. Nesse aspecto, a reforma de 1910,

ao caracterizar o Bairro do Recife num espaço sofisticado e moderno pelos novos usos do

À esquerda, panorama do Bairro do Recife: A arquitetura eclética de suas antigas ruas. À direita, vista da Avenida Marquês de Olinda. (Fotos do autor, 2006/2007).

19

espaço urbano foi bem-sucedida no que se refere à afirmação de uma nova imagem da cidade,

contudo, criou, fundamentalmente, um ambiente para as sociabilidades de uma nova classe

emergente representada pelos republicanos e pela elite usineira pernambucana. No entanto,

Leite aponta que essas experiências de intervenções urbanas ecléticas foram apenas uma

síndrome de Haussmann, a qual, influenciou mudanças nos padrões culturais no Brasil.

A partir deste ponto de vista, considera-se que há uma relação entre as primeiras

intervenções descritas, como os casos do Rio de Janeiro e do Recife e das cidades européias

destacadas, com as atuais políticas urbanas de gentrification. De acordo com a leitura de

Smith (1996), a reforma parisiense marcou um típico modelo de protogentrification. A

adequação deste termo serve para designar as primeiras intervenções urbanas ocorridas no

período da belle époque, correspondentes ao período final do século XIX e início do século

XX, tanto na Europa em geral quanto no Brasil, tomadas na acepção dos planos de

modernização das cidades que marcariam mais tarde as políticas urbanas contemporâneas.

Esta convergência apresenta, portanto, aspectos importantes e característicos relacionados às

intervenções urbanas típicas do capitalismo pós-guerra, como descreve Leite:

Apesar de ser uma experiência típica do capitalismo pós-guerra – claramente identificada pela tendência de disputa das cidades pelo mercado internacional –, as políticas de gentrification podem ser consideradas sucessoras pós-modernas da experiência francesa bonapartista do final do século XIX (2002, p.118).

Nesse sentido, de acordo com Giddens (1991, p.65), o período entre guerras envolve

uma importante passagem que reconfigurou a ordem das economias dos Estados capitalistas.

Esta se relaciona com a nova organização da economia mundial, a qual se intensifica com o

desenvolvimento dos mecanismos econômicos capitalistas em escala global. Segundo o autor,

dois pontos devem ser considerados para esta questão: 1) A forma de produção dos estados

capitalistas, cujo empreendimento econômico passou a se constituir como principal relação

entre os centros de poder na economia mundial e 2) A organização institucional das

sociedades passou a envolver a regulamentação nacional e internacional das atividades

econômicas, determinada pelas forças das empresas e do mercado em relação a atividade

política dos Estados.

A concepção empregada por Giddens (1991) indica como as organizações econômicas

internacionais, aliadas aos interesses de grandes empresas locais, tendem a oferecer uma gama

de bens e serviços para o consumo e buscam consolidar suas bases e mercados nos territórios

de todo o mundo, ampliando os recursos que permitem a projeção de modelos estratégicos de

20

ação sobre a economia mundial. Entretanto, considera o autor, que para a organização

geopolítica dos Estados-nação tornou-se fundamental a disseminação destes preceitos. Neste

sentido, pode-se entender que a expansão deste modelo global tem alçado também a

disseminação dos modelos de políticas públicas urbanas sustentadas por critérios

primeiramente econômicos. Tal modelo pode ser observado como um conjunto de ações que

sustentam as características das políticas de gentrification que será abordado a seguir.

O desenvolvimento das políticas de enobrecimento e seus desdobramentos.

Diferente dos planos modernizantes de Haussmann e da sociedade industrial, o atual

estágio do enobrecimento urbano vincula-se às dimensões de uma sociedade dita pós-

moderna. David Harvey (1992, p.69) destaca que as reformas urbanas, compreendidas no

âmbito do projeto urbano pós-moderno pode ser entendido, em sentido amplo, como uma

ruptura dos ideais modernistas que concebiam o planejamento e o desenvolvimento das áreas

das cidades concentrados em um conjunto racionalizado de obras em larga escala. Ao

contrário, deseja-se cultivar um fragmento do tecido urbano que medeie as formas passadas e

tradicionais com a renovação das áreas que consistem historicamente uma “colagem”

(Harvey, 1992) entre o passado e o presente. Esse projeto constitui três concepções

fundamentais: 1) criação de formas arquitetônicas ecléticas e especializadas; 2) reemprego

dos usos correntes do patrimônio e; 3) a relocalização das tradições vernáculas e as histórias

locais (Leite, 2004).

Nesse sentido, entende-se as atuais políticas públicas urbanas como um projeto que

mescla estas noções e as tornam adequadas às intervenções urbanas contemporâneas. Após

essas primeiras impressões, destacam-se as análises dos autores Smith (1996, 2006), Harvey

(1992) e Featherstone (1995), Zukin (2000) e Leite (2004), sobre os momentos históricos e

políticos que favoreceram não só o progresso das políticas de intervenção, como também os

estudos que consideraram as diferentes contextualidades desses processos envolvendo as

práticas de gentrification.

Neil Smith (1996) afirma que a emergência dos processos de gentrification pode ser

compreendida no período pós-guerra. Esse período acompanha a modificação da economia

antes regida pela produção fordista para uma pós-fordista ou acumulação flexível (Harvey,

1992). Nesta concepção, a predominância do capital industrial se estendeu até a metade do

21

século XX, quando sucedeu a ascensão do capital financeiro e a fase de desindustrialização. O

processo de gentrification tem sido destacado no âmbito da transformação dos centros

urbanos como um elemento do urbanismo contemporâneo que personifica a generalização de

fronteiras sociais, a exemplo das práticas de “regeneração” e limpeza das paisagens, que têm

sido marcantes no quadro da segregação social. Nesse sentido, Smith considera previamente

que:

Gentrification is the process [...] by which poor and working-class neighborhoods in the inner city are refurbished via an influx of private capital and middle-class homebuyers and renters – neighborhoods that had previously experienced disinvestment and a middle-class exodus (1996, p.32).

Além de acompanhar a drástica transformação das cidades industriais, envolvidas

como parte integrante de uma ampla mudança na esfera global, as práticas de gentrification

concernem também ao redesenvolvimento das economias e à tomada das culturas locais e do

espaço geográfico no âmbito das políticas públicas urbanas desde 1970. Neste sentido, para

Smith, a gentrification contribuiu para uma série de mudanças nos anos de 1980, pois é um

processo que se relaciona ao redesenvolvimento social e econômico e da expansão geográfica

das grandes metrópoles, ou mesmo das pequenas cidades, sobretudo com a expansão da

economia global:

Systematic gentrification since the 1960s and 1970s is simultaneously a response and contributor to a series of wider global transformations: global economic expansion in the 1980s: the restructuring of national and urban economies in advanced capitalist countries toward services, recreation and consumption; and the emergence of a global hierarchy of world, national and regional cities (Sassen, 1991) (Smith, 1996, p.08).

Segundo Smith (1996, 2006), somente no período pós-guerra, em meados de 1950 a

1970, nos Estados Unidos é que os processos de gentrification começaram a ocorrer de forma

ainda esporádica e seu desenvolvimento foi parcelado e isolado em campos e moradias

comercializáveis. Essas primeiras iniciativas ocorreram em bairros no sul de Manhattan, em

Nova York mediante a migração de habitantes da classe média e média alta, motivo que

provocou a saída dos antigos moradores de renda mais baixa desses bairros (2006, p.64).

Novos casos começaram a emergir em outros bairros de Nova York nos anos 70, a exemplo

do SoHo, embora, ainda de forma esporádica, a gentrification passou a fazer parte dos

22

critérios de transformações urbanas em várias cidades do país, passando a ser uma linha

integrante de uma ampla reestruturação residencial:

Not only has gentrification become a widespread experience since the 1960s, then but it is also systematically integrated into wider urban and global processes, and this too differentiates it from earlier, more discrete experiences of “spot rehabilitation”. […] By the 1970s gentrification was clearly becoming an integral residential thread in a much larger urban restructuring (Smith, 1996, p.38).

No entanto, relata Smith (2006, p.65), durante a década de 70, tanto o Estado quanto

as instituições financeiras do ramo imobiliário e bancos não investiriam estrategicamente seu

capital sem especular retornos diretos de forma ampla e segura nas zonas ainda consideradas

“decadentes”. David Harvey (1992) demonstra que, durante os períodos de 1960 e de 1970, os

conflitos pós-guerra retrataram os problemas políticos, econômicos e sociais na esfera dos

países capitalistas avançados. Para evitar que as condições de vida entrassem em recessão

ainda maior, foi preciso que os governos estabelecessem diretrizes fundamentais e planos

estratégicos em setores que assegurassem o emprego, a habitação e o bem-estar da população.

Dentre os obstáculos, havia a preocupação maior com as crises econômicas e políticas dos

Estados durante um período no pós guerra (Harvey, 1992), tanto na Europa quanto nos

Estados Unidos, num período marcado pelas políticas de Renovação Urbana (1950 a 1970),

embora houvesse profundas diferenças nas estratégias de implementação dessas políticas

(Vargas e Castilho, 2006).

Foi nesse sentido que surgiram amplos programas de reconstrução e reorganização

política e social das cidades como tendência central, através do qual os poderes públicos

adotaram soluções visando o controle da expansão de empreendimentos imobiliários

realizados nos subúrbios que atraíram o setor comercial e da deterioração do centro das

cidades, provocada pela saída de capitais e da própria população. Concerne que neste período,

a Renovação Urbana (ou Reconstrução) aparece como um contraponto à rápida e pouco

controlada suburbanização que se verificava na Europa e Estados Unidos: “a intensidade da

deterioração dos centros urbanos atribuída à migração para os subúrbios [...] induziu ao

processo de renovação urbana de grandes proporções” (Vargas e Castilho, 2006, p.07).

Somente a partir de 1950, esses países adotaram os processos de intervenções com

objetivos estratégicos e almejaram seus resultados através de uma perspectiva ampla,

23

considerando um vocabulário emergente no decorrer de diferentes períodos.13 Nesse caso,

aponta Harvey (1992, p.71): “A reconstrução, reformulação e renovação do tecido urbano, se

tornaram ingredientes essenciais desse projeto”, sobretudo, reforçou a formulação de

estratégias de intervenções urbanas que aqueceram diversas investidas, por parte dos poderes

públicos e dos agentes privados nos centros urbanos mais antigos em diversos países.

A experiência norte-americana foi marcada pelas demolições das áreas industriais e

armazéns deteriorados, propondo-se renovar o tecido urbano sob uma nova óptica: construção

de edifícios empresariais, bancos, instituições públicas e cívicas, hotéis, restaurantes e lojas de

departamentos. O Estado foi um dos agentes que subsidiou a evolução dos mercados

imobiliários e por sistemas de habitação mantidos com recursos do governo e investimentos

públicos diretos na construção de auto-estradas, pontes, planejamento de parques urbanos,

(Harvey, 1992, p.72), considerando que a Renovação Urbana preparava as cidades “para ser o

espaço das artes, da educação, e da recreação, e para grupos de moradores que desfrutariam a

vida cultural e educacional” (Vargas e Castilho, 2006, p.09).

Em contrapartida, na Europa, a reconstrução urbana ocorreu de modo bem diferente.

Segundo Vargas e Castilho (2006, pp.07-08), influenciado pelo Movimento Moderno do

Urbanismo, os centros das cidades foram bastante valorizados devido aos seus aspectos e

significados culturais. A preocupação dos Estados era reverter os danos causados pelas

guerras, restringindo o processo de deterioração do patrimônio e valorizá-lo ao impedir

demolições em larga escala dos espaços mais atingidos pela guerra. Em suma, nos casos

europeus, observou-se o desejo de expandir densamente a renovação urbana. Havia a

necessidade de realizar projetos no âmbito de evitar o congestionamento das cidades e a

desvalorização da infra-estrutura urbana, promovendo a reutilização de edifícios antigos, a

dinamização do comércio e geração de empregos, até um plano mais amplo cujo objetivo era

a criação de cidades novas.

Em relação à gentrification, Smith (2006) aponta que somente a partir do fim dos anos

70 até o fim da década de 80, ocorreu de forma mais evidente a afirmação deste processo,

visto que a renovação das áreas proporcionou a discussão sobre a utilização dos edifícios

antigos como espaços de consumo. Esse processo consolidou o interesse do mercado

imobiliário e do poder público, que evoluiu em um certo grau, para uma nova referência de

política pública relacionada ao planejamento urbano, baseado em uma perspectiva que

13 Segundo Vargas e Castilho, embora estes períodos não sejam não excludentes entre si, podemos dividir em três fases: “Renovação Urbana, relativo às décadas de 1950 e 1960; Preservação Urbana, desenvolvido nas décadas de 1970 e 1980; e Reinvenção Urbana, nascido por volta de 1990 e prolongado até os dias de hoje” (2006, p.05).

24

abrangia a reconstrução e reabilitação da infra-estrutura urbana de centros antigos e de áreas

próximas aos centros14, principalmente nas áreas carentes. Essa nova fase abriu espaço para

que os processos de gentrification estendessem suas dimensões e influenciassem a natureza

geral das políticas públicas em vários países. Atingindo principalmente os centros e áreas

degradadas de grandes cidades industriais como Paris, Londres, Nova York e Sidney,

resultaram numa confluência de interesses do Estado, das classes políticas e empresariado,

que almejavam promover o redesenvolvimento econômico das cidades.

Segundo Smith (2006, p.69), a gentrification deixou de ser um empreendimento de

mercado imobiliário local e passou a desenvolver-se como uma importante componente

residencial, sugerindo de maneira ampla uma reformulação econômica, social e política do

espaço urbano. Percebe-se, portanto, como os processos de gentrification estão inscritos neste

modelo de expansão do desenvolvimento urbano, à medida que suas características

acompanharam a sucessão das áreas industriais para as áreas de serviços e mercados que

promoveu a nova experiência dos grandes centros econômicos voltada também à preservação

do patrimônio e à incorporação de novos usos para os centros.

Demonstram Vargas e Castilho (2006) que a Preservação Urbana tornou-se outro fator

importante e ganhou margem a partir de 1970 e que se estendeu até os anos 90. Era objetivo

da nova prática de intervenção pautada na preservação a inclusão das antigas áreas industriais

e edifícios históricos. Esse modelo destacou-se como o cerne das políticas urbanas tanto na

Europa e Estados Unidos quanto nos países da América Latina. O objetivo preservacionista

visava de maneira geral, associar a valorização da memória e impulsionar a organização da

sociedade em defesa do patrimônio histórico, do resgate da identidade e da cidadania. A

sociedade em geral assimilou um discurso de que “os centros das cidades seriam elementos

essenciais da vida urbana e gerariam identidade e orgulho cívico” (2006, p.18), o qual

relacionava a degradação, a sujeira e a desordem do espaço urbano às camadas sociais de

baixa renda e à violência.

Esses aspectos proporcionaram a evolução das práticas de gentrification que vão

sendo adequadas durante um contexto bastante conflituoso na época. Harvey (1992)

exemplifica o caso da cidade de Baltimore, nos Estados Unidos, como modelo típico destas

intervenções. Conhecido devido à luta dos movimentos sociais e étnicos em defesa dos

direitos civis, como também os distúrbios de rua, levantes, manifestações contra a guerra e

dos movimentos e eventos da contracultura pós-68, assegura este “modelo típico” de

14 Para uma discussão sobre o termo “Centro”, utilizado a partir de diferentes noções: Centros Urbanos, Centros Históricos, Centros Tradiconais etc., ver Vargas e Castilho (2006).

25

desenvolvimento das políticas de enobrecimento. Em Baltimore, o poder público fundou um

projeto de renovação para o centro da cidade com novas funções voltadas à construção de

escritórios, novos prédios, hotéis, praças, centros de convenções e centros de ciências, além

da preservação de grandes prédios históricos15. Mas os conflitos sociais, como os chamados

“distúrbios de rua”, que emergiram após o assassinato de Martin Luther King em 1968,

mobilizaram políticos e empresários a procurarem viabilizar uma forma de desanimá-los, pois

ameaçavam a vitalidade e o êxito dos investimentos no centro, como também foi preciso

evitar e combater o medo e o não-uso das áreas da cidade (Harvey, 1992, p.89-90).

A renovação urbana e a preservação do patrimônio foi um dos modelos de

planejamento estratégico que os governos locais adotaram para reverter a decadência

econômica, lançando projetos que, por meio do exercício de controle social, contornassem

conflitos, principalmente, racionalizando os usos dos espaços. Este aspecto torna salutar a

comparação feita por Leite (2004) sobre o caso de Baltimore, o qual “repetia, pela primeira

vez de forma metódica, o princípio haussmanniano de pulverizar manifestações públicas e

higienizar a cidade, criando a sensação de um local limpo e seguro” (p.62). O processo em

questão, assinalado por Leite, está baseado no fato de que os governos das cidades

compreenderam que havia estratégias fundamentais para assegurar o redesenvolvimento

socioeconômico e reverter os aspectos negativos causados pela desindustrialização,

objetivando um modelo de “Reinvenção Urbana” (Vargas e Castilho, 2006).

Além da mudança dos tipos de serviços que correspondessem às necessidades da nova

economia (empregos de restaurantes, zeladores, pessoal de limpeza, etc.) (Bidou, 2006), fazer

da imagem da cidade um meio de atrair capital e (de maneira seletiva) as pessoas, estes

projetos tornaram-se pressupostos estratégicos que visassem qualificar a aparência das

cidades e o modo como seus espaços urbanos estão organizados. Featherstone (1995)

considera que estes processos assinalam características da gentrification, enquanto

a reestruturação global das relações socioespaciais mediante novos padrões de investimentos que acabaram promovendo algumas tendências contrárias à descentralização urbana através do redesenvolvimento das áreas centrais. Esse processo supõe a desindustrialização das áreas centrais e portuárias, que são reocupadas por membros da nova classe média e desenvolvidas como locais de turismo e consumo cultural. Ao mesmo tempo, a classe trabalhadora e os pobres,

15 Outro projeto para a cidade, a “Baltimore City Fair” , surgiu como forma de promover o redesenvolvimento urbano e incrementar a atratividade turística. A feira tornou-se a principal atração para as multidões assistirem a toda espécie de espetáculo (já com uma nova significação), e pretendia, assim “celebrar a vizinhança e a diversidade étnica da cidade” (Harvey, 1992, p.90), embora adequada a fins comerciais e à criação de espaços de lazer em tono de arquiteturas ecléticas.

26

que anteriormente residiam nessas áreas, são expulsos ou encaminhados a outros redutos. (Featherstone , 1995, p.150)

Desta forma, por um lado, uma parcela da população acaba por sentir os efeitos mais

drásticos destes processos, não sendo contemplada, principalmente, a camada de

trabalhadores e as famílias de renda mais baixa. Por outro lado, o impacto que estes projetos

revelam à sociedade, porquanto a modernização desses espaços sugere a geração de

empregos, a ampliação de oportunidades para empresas e investidores locais e para pequenos

comerciantes, e propicia a abertura de áreas de lazer, entretenimento, consumo e

sociabilidades, assim como amplia a mobilidade da população. Nesse sentido, estes aspectos

“formam uma base material a partir da qual é possível pensar, avaliar e realizar uma gama de

possíveis sensações e práticas sociais” (Harvey, 1992, p.69). Mas, embora possamos ressaltar

o lado positivo dessas práticas de intervenção, visto que proporcionam elevar o fluxo de

capital e pessoas, por outro lado, devemos levar em conta a exclusão de uma determinada

parcela da sociedade.

Então, como incluir as diferentes camadas sociais e comunidades em um mesmo

projeto, já que as diferenças econômicas e culturais estabelecem fronteiras sociais? A crítica

feita por Harvey (1992) quanto à “ausência de um sistema democrático e igualitário de

planejamento baseado na comunidade que atenda às necessidades dos ricos e dos pobres”

(p.78), pode sugerir algumas pistas para a análise desta problemática. No entanto, destaca o

autor que antes é preciso tomar como ponto de partida uma “série de comunidades urbanas

bem formadas e coesas” (p.78) que vivem em constante fluxo e transição, de acordo com as

diferenças sociais e econômicas, culturais, estéticas e gostos dos indivíduos ou grupos ou, em

outra esfera, de acordo com as influências políticas ou os objetivos do mercado. Outro fator

importante deve-se a uma menor participação do Estado na gestão das políticas urbanas,

enquanto, intensificou-se a participação de empresas (do ramo imobiliário, entretenimento,

etc.) que destinaram seus recursos de acordo com as regras de mercado, mesmo que tenham

intensificado, ao mesmo tempo, a parceria público-privada (Smith, 2006; Zukin, 2000a).

Para Featherstone (1995), significa então, que desde a década de 70 às atuais

condições globais de competição, com a liberação das forças de mercado para investimento,

atração e fluxos de capital, as cidades tornaram-se vitrines empresariais e, portanto, mais

conscientes do realce de sua própria imagem para não ficarem à margem da intensa

competição global. Assim, buscam requalificar seus espaços através das intervenções urbanas,

27

inclusive como meio de fortalecer a economia local, o desenvolvimento do turismo e

consequentemente a geração de empregos (Featherstone, 1995).

Nesse sentido, a escolha das cidades, sua localização e a organização de seus espaços

compreendem pontos estratégicos que as empresas focalizam como áreas adequadas para

instalarem seus escritórios e oferecerem seus serviços. As metrópoles contemporâneas

possuem grande poder e importância política e econômica na medida em que estão imbricadas

à globalização (Kumar, 1997), por isso vendem a publicidade de alguns aspectos peculiares

aos estilos de vida, lazer, consumo e os bens e serviços que expressam uma dinâmica

condição de atuar nos setores de desenvolvimento das diversas cidades – ganham corpo e

ampla expressão global – a exemplo das novas tecnologias e das redes virtuais de veiculação

de informações. Estes setores propagam as imagens das paisagens e culturas locais para o

cenário internacional, através de serviços prestados pelas redes de turismo mundial. De

acordo com o Krishan Kumar:

A universalização e a padronização são apenas algumas das faces da globalização. A outra é a particularização e a diversidade. Além das economias de escala, há “economias de escopo”. O capitalismo, em sua fase global, pós-fordista, precisa diversificar e individualizar produtos. Cidades e regiões têm, também, que destacar as diferenças mútuas. Têm que acentuar suas peculiaridades de identidade e história – sua “herança” –, a fim de se tornarem atraentes não só para o capital internacional mas também para o turismo mundial (Kumar, 1997, p.199)16.

Estas características abrangem tanto os aspectos mais particulares de cada localidade e

os mais universais que correspondem às estruturas das instituições globais, às suas tendências

e exigências, tanto que as cidades ocupam papéis interdependentes no âmbito das redes

econômicas, tais como as redes de empresas multinacionais, as instituições financeiras, os

pólos produtores e distribuidores de determinados bens e serviços, e as redes de geração de

informações e imagens, etc. Com relação a estes processos, argumenta Kumar:

O resultado em ambos os casos foi o surgimento de diversidade e particularidade. Em todas as sociedades industriais há uma notável faixa de bens e serviços especializados e, não raro exóticos: cozinhas étnicas e regionais, arte “folclórica”, música do “terceiro mundo”, vestuário e mobiliário “tradicionais”, novas e restabelecidas formas de medicina e de produtos de saúde. Analogamente, ocorre (ou parece ocorrer) uma renascença de pequenas cidades e aldeias e a regeneração de velas áreas industriais, com freqüência como regiões turísticas [...] (1997, p.199).

16 Sobre as “economias de escopo”, Giddens (1991) ressalta como são levadas à cabo pela dinâmica das instituições modernas e consiste esta característica “conforme diferentes áreas do globo são postas em interconexão, ondas de transformação social penetram através de virtualmente toda a superfície da terra.” (p.16).

28

Deste modo, como ressalta Smith (2006) que as políticas enobrecedoras “não

representam mais uma simples estratégia residencial, mas aparece na proa da mudança

metropolitana nas áreas centrais da cidade” (p.72). Este fato tem haver com sua

democratização e adequação à produção das paisagens urbanas de consumo, voltadas às

camadas médias e médias altas. No caso da cidade de Nova Iorque, o qual pode ser visto

como um modelo típico de gentrification17, a partir dos anos 90, os setores públicos e

privados americanos transformaram suas estratégias de intervenção para adequá-las às

demandas do consumo, lazer, trabalho e vida na cidade. Há nesse sentido, uma intenção

econômica e simbólica nessas ações. De um lado a intenção econômica, voltada ao consumo e

aos investimentos empresariais e, por outro, a busca de uma forte imagem e visibilidade da

cidade no contexto global que para isso procura “higienizar” determinadas áreas que

serviriam para os fins econômicos. Esse foi o caso do Times Square, que durante a Segunda

Guerra Mundial tornou-se um bairro onde estavam concentrados os cinemas, teatros e

atividades, manifestações e diversões populares, bem como de atividades comerciais e zona

de prostituição, estudado por Sharon Zukin (2000b).

De acordo com a autora, durante os anos 70, o bairro apresentava uma degradação

urbanística avançada e uma imagem pública negativa, associada também à presença das

atividades consideradas marginais18. Somente a partir dos anos 90, depois que o poder público

tentou investir em construções civis que visassem uma nova área comercial planejada para

substituir as atividades correntes, o Times Square começou a receber os incentivos

necessários à recuperação do valor simbólico que possuía o bairro para a cidade. Após um

acordo realizado pela prefeitura e pela iniciativa privada ligada a indústria de entretenimento,

a exemplo da Warner Brothers e a Disney Company, visou-se não apenas transformar o

aspecto visual da paisagem do bairro, mas, disciplinar os usos com a eliminação das

atividades consideradas ilegais e “marginais” que prejudicavam, sobretudo, o turismo da

cidade. No final da década de 1990, conforme relata Zukin (2000b, p.113) “Times Square

tornou-se a capital da indústria cultural de Nova York – não só o “quartel-general” de Mickey

Mouse e Pernalonga, mas também o lugar onde se tomam decisões sobre cultura de massa e

finanças. Isso deu um novo alento para uma paisagem disneyficada” .

17 Todos estes aspectos demonstrados no caso dos Estados Unidos reforçam o desenvolvimento das práticas de enobrecimento. Entretanto, Smith (2006) chama a atenção que não devemos tomar estes exemplos enquanto paradigmas, pois este processo hoje é mais marcante na Europa que nos Estados Unidos. 18 Zukin (2000b, p.112) relata que diversificavam em casas de fliperamas, prostituição e de strippers, pontos de drogas tomavam a área e os antigos teatros do bairro passaram a ser palcos de exibição de filmes pornográficos.

29

Dessa forma, o Times Square pode ser considerado um exemplo marcante de bairro

que acompanhou o processo de enobrecimento urbano em Nova York ao se evidenciar a

transformação da diversão “marginal” em mercadoria asséptica e familiar (Leite, 2004, p.64),

principalmente durante os anos de 1980 e 1990. Este exemplo permite lançar uma primeira

noção sobre o enobrecimento urbano, formulada por Zukin (2000b) é o:

[...] processo de melhoramento urbano e de deslocamento devido à ação do mercado privado e não ao planejamento do Estado [...] o ‘enobrecimento é um processo que resulta num mercado imobiliário em torno do ‘lugar’ de diversidade social e cultural criado por artistas, intelectuais e classes trabalhadoras. Numa paisagem cada vez mais homogênea, a diversidade tem valor de mercado (p. 108).

Baseado nessas condições, Zukin (2000a) revela que a reformulação da paisagem,

enquanto uma apropriação cultural dirigida a novos agentes sociais, consiste uma categoria na

qual é construída para estabelecer novos usos em um determinado espaço, sobre a qual ela

chamou de “paisagem de poder” (Zukin, 2000a). Além de reformular a paisagem, dois outros

pontos estratégicos tornaram-se fundamentais para pulverizar as sociabilidades marginais: 1)

o uso do consumo visual que protagoniza o incentivo a novas práticas sociais e sensações e,

sobretudo, age como meio de controle social e a “higienização social” como meio de

promover a visibilidade de um espaço limpo e seguro para o público.

30

CAPÍTULO 2

Paisagens urbanas enobrecidas: os novos cartões-postais da cidade.

As paisagens urbanas relacionam importantes aspectos em sua dimensão para a

compreensão de determinadas relações na cidade. Através delas, encontra-se, não somente

aquela “vista” que valoriza determinados espaços e apresenta aos mais distintos observadores

as mais variadas “construções”, sejam elas paisagens naturais ou culturais. Autores como

Arantes (1997, 2000) e Zukin (2000a) promoveram ampla abertura teórica voltada ao debate

sobre o conceito de paisagem. Segundo estes autores, a paisagem influi de modo significativo

na transformação de uma cidade, ela amplia o sentido conferido pela sociedade aos “projetos

de recuperação de áreas urbanas ou de estruturas arquitetônicas de valor patrimonial”

(Arantes, 2000, p.152), e ambiental, ou mesmo, inverte sua narrativa e representação

tradicionais. Essa visão tem como base relacionar a conservação do patrimônio histórico ou

“vernacular” ao modelo de planejamento urbano, conhecido na atualidade como planejamento

estratégico. Nesse sentido, a noção atribuída às paisagens torna-se central para a compreensão

das transformações espaciais no contexto das políticas de enobrecimento do espaço urbano e

de recuperação e conservação do patrimônio.

Partindo desse ponto de vista, como descrever o que provoca ao habitante ou mesmo

ao visitante (considerando em a ambos, suas diferenças culturais, políticas, econômicas, etc.)

a visibilidade e o design das instituições e dos grandes empreendimentos, do casario antigo

reabilitado pelas políticas de revitalização ou de edifícios com a arquitetura considerada pós-

moderna? Como pode ser possível considerar, em sentido amplo, as desigualdades sociais e os

trajetos sociais de cada indivíduo? Respostas para estas questões demandam uma ampla

apreensão de significados para as diferentes camadas socais.

Segundo Zukin (2000b), “a paisagem é, em grande parte uma construção material, mas

também é uma representação simbólica das relações sociais e espaciais [...] A paisagem é uma

poderosa expressão das restrições estruturais de uma cidade” (p.106). De acordo com a

concepção da autora, ela expressa um tipo de “ordem espacial” importante nos espaços da

estrutura urbana, sendo o “espaço” concebido potencialmente como “um agente estruturador

da sociedade” (2000a, p.84) e das relações entre os diferentes grupos sociais que se

estabelecem e se diferenciam através do poder político, do econômico e de padrões cultuais.

Para Zukin (2000b), a noção de espaço inclui a noção de paisagem. Dessa forma a paisagem

31

confere uma ampla dimensão sobre o ordenamento das relações sociais, que indicam como o

espaço das cidades e seus lugares são socialmente construídos, através de estruturas sociais

que tendem a legitimar ou demarcar as relações sociais, os estilos de vida etc. Deste modo, a

construção – simbólica ou material – da paisagem, seja um monumento cultural e histórico ou

um ambiente natural e conservado, torna-se um elemento importante para compreendermos a

transformação espacial.

Ressalta Zukin (2000a, p.84) que, no espaço urbano, ela está edificada em torno de

instituições sociais, econômicas e políticas dominantes, sendo ordenada pelo poder dessas

instituições (Igrejas, monumentos históricos, fábricas etc.) que contrastam com o que a autora

chama de “vernacular”, para referir às estruturas desprovidas de poder (edifícios e pequenas

casas dos pobres e das favelas). Esta diferenciação permite-nos perceber que em relação à

produção simbólica e material da cidade, as paisagens conferem sua importância para a

construção social através da assimetria entre o poder econômico e cultural. Desse modo, no

plano urbano, a paisagem valorizada (econômica, política e culturalmente) opõe-se à

paisagem vernacular, isto é, as características da paisagem compreendem uma forma

socioespacial de assimetria do poder, através de um sentido dual do termo:

[...] a paisagem dá forma material a uma assimetria ente o poder econômico e o cultural. [...] o termo “paisagem” diz respeito à chancela especial de instituições dominantes na topografia natural e no terreno social, bem como a todo o conjunto do ambiente construído, gerenciado ou reformulado de algum modo. No primeiro sentido, a paisagem dos poderosos se opõe claramente à chancela dos sem poder – ou seja, à construção social que escolhemos chamar de vernacular –, ao passo que a segunda acepção de “paisagem” combina com esses impulsos antitéticos em uma visão única e coerente no conjunto (Zukin, 2000a, p.84).

Essa distinção provocada por Zukin, também é ressaltada por Antonio Arantes (2000)

quando, no mesmo sentido atribuído à construção e reconstrução do espaço na experiência

urbana, sustenta que os projetos urbanísticos são meios de disciplinar os “usos que os

habitantes fazem da cidade” (p.11). Para a autora, os arranha-céus e os projetos de habitação

popular (poderíamos também relacionar os cafés e pubs e os bares populares, os shopping

centers e os mercados populares, etc.) são exemplos que constituem paisagens de poder que,

no sentido aqui destacado, demarcam a assimetria na estrutura urbana e representam

32

visivelmente as relações sociais e a estratificação19, além de incorporar e reforçar as

diferenças (Zukin, 2000b).

Ilustração 05

Ilustração 06

Paisagens do Recife: edifícios modernos, com vista do Shopping Recife; Igreja de São Pedro - Fotos do autor (2006/2007).

Com relação aos efeitos dos processos de globalização e a composição mercadológica

desses processos, a oposição entre paisagem vernacular (dos sem poder) e a paisagem de

poder, sugere uma forma de assimetria visual muito utilizada pelas instituições e pelos

empreendimentos turísticos nos espaços centrais das cidades. A infiltração desses

empreendimentos reforça o poder assimétrico no sentido visual, além de sugerir a “grande

capacidade dos capitalistas de projetar a partir de um repertório potencial de imagens e de

desenvolver uma sucessão de paisagens reais e simbólicas” (Zukin, 2000a, p. 85), de modo

similar, vincula o fluxo de capitais à mudança da paisagem material e impõe múltiplas

perspectivas à visibilidade paisagística, objetivando destacar a beleza do lugar. Conforme

Arantes,

[...] seus efeitos sociais são as obras de natureza cenográfica, geralmente localizadas nos centros históricos das grandes cidades ou nas zonas mais diretamente vinculadas às atividades formadoras do processo de globalização. [...] são ícones que identificam cada cidade, multiplicados infinitamente nos cartões postais e fotos turísticas. Essas configurações particulares da paisagem tendem a ser seqüestradas de seu contexto físico e social imediato, por intervenções que as estilizam dramaticamente e que – nessa nova roupagem – oferecem-nos para resgate pelo comércio e para o consumo visual de moradores e visitantes (2000, p.152).

19 Entendemos Estratificação Social definido por Sebastião Vila Nova (2000), como “o processo, ou o estado de localização hierárquica dos indivíduos em setores relativamente homogêneos da população quanto aos interesses, ao estilo de vida e às oportunidades de vida, segundo a sua participação na distribuição desigual de recompensas socialmente valorizadas (riqueza, poder e prestigio) (p.139).

33

Através dessa análise, as intervenções urbanísticas no espaço urbano quando

vinculadas aos fins comerciais, em face de sua multiplicidade de arranjos e valores que situam

o consumo em perspectiva, promovem, como ressalta Arantes (2000), com a tomada de novas

dinâmicas sociais e sentidos para os “valores e estilos de vida contemporâneos, a cidade

ressurge refigurada e estetizada pelo mercado [...] tendendo a ostentar o que se poderia

chamar imagens cenográficas de lugar” (p.12, grifos do autor).

Essas imagens criam os cartões postais para a visitação, lazer e turismo na cidade, elas

sujeitam, segundo Zukin (2000a), uma paisagem às forças de mercado, convertendo a

“estabilidade” das atividades diárias e os rituais sociais, que constituem o vernacular, para as

novas dinâmicas e tendências da estrutura sócio-espacial. Esse processo impõe uma mudança

no valor econômico do solo urbano devido à expansão do mercado imobiliário, de

loteamentos, do enobrecimento e outros investimentos nos setores de serviços, turismo,

alimentação (restaurantes, bares e cafés), como também, fornece o contexto sobre o qual a

paisagem foi construída e reconstruída ao longo do tempo, demonstrando como estas

instituições dominantes se encontram “difusas em meio ao vernacular” (2000a, p.86). No

mesmo sentido que Zukin, a noção de paisagem de poder é concebida por Leite (2004) não

somente vinculada à dimensão econômica, mas articulada à dimensão simbólica do poder:

A noção de paisagem articula-se, assim, a uma dimensão simbólica do poder: práticas de gentrification não se referem apenas a empreendimentos econômicos que visam otimizar o potencial de investimentos em áreas centrais; referem-se sobretudo à afirmação simbólica do poder, mediante inscrições arquitetônicas e urbanísticas que representam visualmente valores e visões de mundo de uma nova camada social que busca apropriar-se de certos espaços da cidade (p.63).

Por conseguinte, enquanto a presença desses empreendimentos ajuda “a estabelecer

um ‘cenário’ liminar entre mercado e lugar, o sucesso desse cenário funciona como um

veículo de valorização econômica.” (2000a, p.90). Todavia, de acordo com os pontos de

vistas abordados, estas mudanças promovem impactos para a população de renda mais baixa

ou às camadas populares, os quais são ocultados nesses processos, permitindo a abertura de

um conflito social e expõe a desigualdade dessa no cenário, principalmente, devido aos

deslocamentos espaciais desta população e à constituição de novos sujeitos e novas

identidades nas cidades20. Logo, conforme vimos, a diferenciação dos usos altera o sentido do

20 Para Harvey (1992) estes fatores enfatizam a diferenciação entre as camadas mais abastadas e as mais populares, assim, “a ênfase dos ricos no consumo levou, no entanto, a uma ênfase muito maior na diferenciação de produtos no projeto urbano” (p.80). Desta forma, o autor compreende que há a ausência de um sistema

34

espaço público, a dissolução das identidades socioespaciais e a sua reconstituição sobre novas

bases e liminaridades que produzem novos significados sociais e culturais e, nesse sentido,

misturam funções e histórias, situando o usuário entre instituições, centralidades e os distintos

lugares (Arantes, 2000; Leite, 2004; Zukin, 2000).

Políticas de Patrimônio e Enobrecimento

Ao transformar os sítios históricos em espaços selecionados e de visibilidade pública,

o argumento que justifica as atuais políticas de intervenção nessas áreas, fundamenta-se na

idéia de tradição. Segundo Leite (2004, p.20), esses processos resultam em diversas ocasiões a

relocalização estética do passado, cujo o critério torna o patrimônio passível de ser

reapropriado por alguns segmentos da população e visitantes. Para Carlos Fortuna (1997),

tanto a tradição quanto a inovação, “são antes de tudo, ‘pontos de vista’ ou mensagens

culturais. Seleccionam, num caso, elementos do passado e, noutro, elementos futurantes, de

modo a construírem um presente plausível, nem utópico nem derrotista.” (p.231). O conceito

de tradição analisado por Giddens (2001) remete-nos à idéia de que os aspectos tradicionais

vigentes nas sociedades estão em constante mutação, porém, ao mesmo tempo, elementos

como a crença, a memória, a organização de aspectos vinculados ao passado, a preservação de

certas práticas sociais e coletivas pressupõem a persistência de uma “integridade e

continuidade que resistem ao contratempo da mudança” (p.31).

De algum modo, a idéia de tradição quando aliada às praticas de preservação, poderia

ser concebida como uma forma de relatar a ligação entre as várias gerações e criar “vínculos

entre os cidadãos por fazer referência aos símbolos que são representativos da coletividade,

ou bens coletivos” (Tamaso, 2005, p.14). Contudo, observando o caso brasileiro como

exemplo, a perspectiva que as políticas urbanas oficiais aliam a noção de preservação do

patrimônio histórico e cultural à lógica do enobrecimento, promove uma alteração no modo

de operar o conceito de tradição, à medida que se pressupõe retomar o patrimônio como uma

mercadoria cultural. Entretanto, como analisa Leite (2004):

democrático e igualitário de planejamento baseado na comunidade e que atenda às necessidades de ambas as camadas, embora, devemos levar em consideração que há uma diversidade de comunidades urbanas bem formadas e coesas que está sempre em fluxo e transição.

35

o problema central desta perspectiva não a existência de uma dimensão econômica da cultura, mas a redução do valor cultural ao valor econômico, que poderia substituir a natureza propriamente cultural do patrimônio, resultando numa espécie de “fetichização” da cultura (2004, p.65)

Desta maneira, para o autor, a relação que as práticas de gentrification possuem com a

preservação do patrimônio, é orientada no sentido de “utilizar uma forma abrangente de

seleção dos bens, baseada em critérios de consumo que vão além de uma concepção

valorativa de nação.” (2004, p.69). Diversas cidades, no contexto brasileiro e internacional,

têm tomado em perspectiva a influência desses processos de maneira a precisarem produzir,

inovar e projetar seus bens culturais, readequar os usos de seus monumentos históricos,

planejarem a divulgação e a visibilidade de suas paisagens que possuam um valor simbólico

muito forte para atrair um público de “gosto distinto”, que se interesse pela “herança cultural”

(Kumar, 1997) que representa determinada sociedade e seus costumes. Entretanto, de maneira

crítica, ressalta Fortuna:

Perante a superficialização ou eventual perda das suas raizes identitárias, os indivíduos procuram no passado e na memória da cidade compensação para a coreespondente e desconcertante ambivalência de valores. Tal impõe à cidade o ónus da continua valorização estética do seu património histórico e monumental (...), ainda que, como geralmenre sucede, aí se plasme, inelutavelmente, a transfiguração do seu valor e significado histórico, sujeito a modulações diversas de sentido (1997, p.233).

A partir deste complexo processo, os sítios históricos tornaram-se espaços importantes

e objetos de políticas urbanas e culturais. Para Peixoto (2002) essa concepção estabelece

diretrizes fundamentais para os centros históricos, de maneira que a necessidade de recuperar

o patrimônio, de preservar os bens culturais e investir no melhoramento na infra-estrutura do

espaço urbano, tem sido fundamental para tornar as cidades passíveis de reapropriação por

parte da população e do capital, devido ao reconhecimento do valor arquitetônico e histórico.

Assim, reconhece-se que a orientação das políticas urbanas envolve projetos de mercado que

intensificam reabilitar e animar os centros históricos, com vistas a proporcionar fluxos

turísticos, consolidar um mercado urbano de lazeres e “uma cultura urbana baseada no

usufruto do espaço público” (Peixoto, 2002, p.36).

Nesse sentido, concerne o autor que “a requalificação do espaço urbano tem vindo a

ganhar uma centralidade inusitada nas políticas locais urbanas e a relação entre ação cultural e

qualificação dos espaços urbanos está na ordem do dia” (2002, p.36). De acordo com

Featherstone (1995), esse processo assinala a atual estratégia capitalista de investimentos,

36

para o redesenvolvimento das áreas centrais a partir da orientação do mercado e cultura de

consumo. Mediante este aspecto,

[...] tem-se verificado um reconhecimento crescente do valor das indústrias culturais para a economia das cidades, bem como dos diversos caminhos diretos e indiretos pelos quais a presença de instituições, atividades culturais e uma sensibilidade geral para os modos como o realce, a renovação e o redesenvolvimento das fachadas culturais, da trama e do espaço vivido pelas cidades rendem benefícios. (Featherstone,1995, p.148).

Essas políticas proliferam-se como forma das metrópoles adequarem as economias

locais às normas do mercado e tornarem o “cenário” local cada vez mais competitivo para

alcançarem maior visibilidade internacional, no contexto das disputas intercidades (Fortuna,

1997; Leite, 2004). Segundo Fortuna (1997), a concorrência intercidades “diz respeito tanto à

captação de investimentos como à fixação local de fluxos globais ou parcelas suas, como à

produção de imagens próprias da cidade” (p.234). Conforme este autor, a crescente atração

pelo turismo e pela projeção da imagem e da identidade da cidade, visa qualificá-la como um

dos locais de expressão no cenário global ao inscrever a própria história, seus elementos

simbólicos, suas representações e expressões culturais que agregam um conjunto de valores

de uma sociedade (a arte, a estética, os mitos, histórias, signos etc.). Portanto, atribui-lhe um

sentido próprio, reconhecimento público e “poder vinculativo da identidade forjada na própria

materialidade da cidade [...] para passar a ser aquilo que parece, representa e oferece aos

nossos sentidos” (Fortuna, 1997, p.232-233).

Os fatores acima, podem ser entendidos como forças que motivam os poderes públicos

e os agentes privados a promoverem a readequação dos espaços antes considerados

“marginais” em “centralidades”, quando envoltos de real dimensão simbólica, a exemplo da

transformação de degradados sítios históricos em áreas de entretenimento urbano e consumo

cultural. Pode-se considerar, portanto, que as políticas de gentrification constituem uma

dimensão importante para o desenvolvimento do fluxo de pessoas e capitais. Esses processos

inscrevem novas concepções ao complexo arquitetônico e urbanístico dos centros históricos,

como contextualiza Peixoto:

A reabilitação e a animação de centros históricos, de zonas monumentais e de praças públicas constitui uma dimensão importante das novas formas arquitetônicas e urbanísticas. Estas, enquadradas no âmbito da competitividade intercidades - e entre Estados -, reconhecem na cultura, no espírito de lugar e no patrimônio urbano um terreno a partir do qual podem ser criadas e inventadas diferenças que as cidades utilizam como recursos no contexto dos fluxos do turismo histórico e

37

patrimonial, da consolidação de um mercado urbano de lazeres e de estratégias de atração de novos residentes e investidores. Neste sentido, o patrimônio e a retórica patrimonial caucionam e legitimam as exigências das ideologias urbanas que estão na moda: qualidade de vida, desenvolvimento durável, turismo ecológico e não massificado, recuperação do espaço público, etc. (Peixoto, 2002, p.23).

Assim, ao elevar a esfera da cultura, do lugar e do patrimônio urbano, preparam um

terreno a partir do qual as empresas e administrações promovem as estratégias de marketing

urbano para as cidades (Arantes, 2000; Leite, 2004; Peixoto, 2002). Contudo, ainda que se

ressaltem os aspectos positivos de empreendimentos turísticos e os benefícios que rendem às

cidades, os processos de gentrification caracterizam-se fundamentalmente em dois pontos:

primeiro desencadeia a substituição dos antigos usuários dos seus espaços originais por um

novo público e seu estilo vernacular por novos personagens e atividades culturalmente

valorizadas. Segundo, a profusão das políticas de gentrification caracteriza-se também pela

substituição de antigos moradores que acabam desocupando suas casas, ruas e bairros devido

à valorização imobiliária (principalmente a classe trabalhadora e os pobres, que anteriormente

residiam nessas áreas, são expulsos ou encaminhados a outros redutos), sendo reapropriado

por outras pessoas de maior poder aquisitivo.

Essas duas características promovem uma espécie de “curetagem” social, como nos

indica Certeau (1996), pois enquanto os novos moradores reocupam os espaços e casas e

imprimem a eles outros valores simbólicos e de usos (Tamaso, 2005) a população nativa que

construiu seu “pedaço” (Magnani, 2002) é deslocada para outros, o que supõe uma perda do

referencial espacial e dos código de reconhecimento e comunicação compartilhados naquele

espaço. Desta forma acaba por desapropriar os sujeitos de suas representações, interações e

sociabilidades de rua, enquanto espaço de uma vida pública e experiência (Leite, 2004). Nesse

sentido, evidencia-se a segregação urbana, cuja conseqüência implica tanto uma dimensão

econômica como política, pois aponta para formas de exclusão social e espacial. Para Certeau,

que analisou a transformação na paisagem do bairro francês Croix-Rousse21. Segundo o autor,

21 No século XIX, o Croix-Rousse era habitado por operários e com o tempo passou por uma cresceste desvalorização do seu terreno. Semelhante aos casos já citados neste trabalho, a valorização dessa área foi retomada por novos moradores (artistas e intelectuais) que se deslocaram para o velho bairro, atraídos pelos baixos preços imobiliários, que por sua vez, atraíram estabelecimentos comerciais (bares e livrarias). Mais tarde, devido à valorização do local, agentes imobiliários ousaram investimentos destinados a atender uma camada social de renda média mais elevada que a anterior. Em conseqüência, os preços dos aluguéis e impostos se elevaram e uma nova substituição ocorreu, fazendo com que os artistas e intelectuais que contribuíram para a valorização do antigo bairro operário fossem expulsos. Este exemplo constitui para Certeau uma espécie de “curetagem social”: “Ela leva a um terreno deteriorado e restaurado por burgueses e pelos profissionais liberais. Os alugueis sobem. A população muda. As ilhotas reabilitadas formam os guetos de pessoas abastadas e as ‘curetagens’ imobiliárias se tornam assim ‘operações segregativas’.” (Certeau, 1996: 196).

38

este bairro passou por esse processo de substituição de seus usuários, tais implicações,

seletivamente, “subtrai a usuários o que apresenta a observadores”, à medida que

[...] faz passar esses objetos de um sistema de práticas (e de uma rede de praticantes) a um outro. Empregado para fins urbanísticos, o aparelho continua fazendo esta substituição de destinatários; tira de seus usuários habituais os imóveis que, por sua renovação, destina a uma outra clientela e a outros usos. A questão já não diz mais respeito aos objetos restaurados, mas aos beneficiários da restauração. […] A restauração dos objetos vem acompanhada de uma desapropriação dos sujeitos (Certeau, 1996, p. 195-196).

Portanto, essa concepção é reforçada por ser seletiva quanto aos consumidores e ao

consumo de um modelo cultural que estabelece identidade sócio-espacial, tornando a

identidade coletiva definida por uma estratégia de apropriação cultural e ao mesmo tempo,

simbolizada e percebida pelo consumo visual socializado por uma paisagem imaginária – de

poder (Zukin, 2000a).

39

CAPÍTULO 3

O enobrecimento urbano no Brasil: o caso da Cidade do Recife

O Bairro do Recife apresenta características típicas para compreendermos a inscrição

das políticas de gentrification na experiência brasileira. Leite (2002, 2004) assinala o

incremento desse processo no bairro que se tornou importante objeto de políticas urbanas e

culturais que buscavam recuperar seu patrimônio cultural, preservando os bens históricos e

investindo no melhoramento da infra-estrutura do espaço urbano, para torná-lo passível de

reapropriação por parte da população e do capital em busca de maior visibilidade

internacional. Esse pretexto levou diversos setores da cidade do Recife à mobilização que

ansiaram pela recuperação do antigo Bairro.

No decorrer da década de 50, o Recife Antigo passou por um longo processo de

decadência dos usos e esvaziamento devido à descentralização econômica das atividades

centrais, à degradação das infra-estruturas urbanas e à redefinição funcional entre espaços da

economia urbana recifense. Além disso, a descentralização econômica tornou o centro do

Recife uma área de poucos atrativos à incorporação imobiliária, perdendo espaço para outros

bairros mais afastados do centro, a exemplo do bairro de Boa Viagem. Nesse período o Bairro

foi tomado por pequenos comerciantes e pelo intenso comércio ambulante e de camelôs, ainda

mais a área foi estigmatizada como zona “marginal” e perigosa, provocando a ausência de

“vida urbana” (Zancheti,1995).

Consta no relatório do Escritório de Revitalização do Bairro do Recife22, criado em

1986, que do início do plano até o ano 2001, houve cinco fases distintas para a implementação

de propostas de revitalização do bairro. A primeira fase, que compreende o período de 1976 a

1985, é considerada uma fase preliminar na qual se objetivou conscientizar a sociedade

pernambucana da necessidade de preservar os sítios históricos no Estado. Num segundo

momento, entre 1986 a 1990, ganhou escopo as ações de revitalização e reabilitação que

abrangiam todo o Centro da cidade. Um terceiro período vai de 1991 a 1997, caracterizou-se

pela elaboração e implementação do Plano de Revitalização do Bairro do Recife (PBR),

documento concluído em 1993. Em 1997, destacou-se a Lei 16.290 que definiu um modelo de

regulação do uso do solo no Bairro do Recife. Daquele período em diante, expõe o relatório,

22 PCR/URB/ERBR. Revitalização do Bairro do Recife, 1986/2001 – Recife, 2001.

40

contam mais duas fases, 1998 a 2000 e 2001 até hoje, que se caracteriza pela continuidade do

PBR, embora deva-se considerar diferenças importantes no sentido do projeto.

As ações promovidas a partir do período de 1986 possibilitam compreender a

administração de Jarbas Vasconcelos (1986-1988), cuja orientação política visava

fundamentalmente a reabilitação residencial, com enfoque direto para a melhoria da qualidade

de vida de seus moradores. Com a implementação do PBR em 1993, em pouco tempo o

processo foi convertido no ostensivo programa de gentrification. Essa conversão relaciona

questões complexas que acompanham os interesses políticos e financeiros dos grupos que

apoiariam a iniciativa de enfrentar a revitalização dos velhos centros urbanos degradados. De

todo modo, entende-se ser válido questionar: Quais grupos apoiariam ou financiariam um

projeto voltado às camadas populares de uma localidade há muito tempo abandonada pelo

poder público? E por quê? Desta forma, o Recife Antigo mereceu um tratamento especial e

essas questões começaram a ganhar corpo em um debate que envolveu diversos setores da

sociedade: poder público, empresas privadas, comunidade de moradores, meios de

comunicação, entre outros.

Segundo Leal (1995) a proposta do município se consolidou através do processo

democrático de gestão e caracterizou-se como o marco mais importante ao adotar um modelo

de gestão global, apoiado em uma estratégia de descentralização político-administrativo. Os

objetivos pertinentes à descentralização das ações do poder local estruturaram o Programa

Prefeitura nos Bairros, o qual definia os problemas dos bairros e as prioridades e estratégias

de ação em diversos setores da cidade, a partir da intervenção direta da população na

administração.

A Prefeitura assumiu o que chamariam de “compromisso com a maioria”, estratégia

que se traduzia na “mediação dos conflitos entre os diversos atores e na atuação sobre

elementos estratégicos cuja transformação pudesse ser efetuada” (Leal, 1995, p.213). Esses

“conflitos” condizentes à transformação do bairro expressaram, sobretudo, o resultado da

inter-relação de vários agentes envolvidos dos quais atuam a população, o poder público e as

forças econômicas da cidade. Assim, demonstra Suely Leal, que o compromisso para

assegurar a proposta do chamado Plano de Revitalização do Centro Expandido, através de

uma “gestão democrática do espaço”, deveria convergir em diversos princípios básicos que

garantissem, em suma, o controle e preservação da democracia do espaço público, a

conscientização coletiva e os diversos interesses da população.

Os objetivos do Plano de Reabilitação foram diagnosticados pelo Grupo Permanente

de Debates, dentre os quais, incluíam:

41

1. Reabilitação funcional – resgate da vitalidade do Bairro pela capacidade de

absorver novos usos e funções;

2. Reabilitação física – aproveitamento máximo da estrutura funcional e física

existente;

3. Preservação da população existente;

4. Defesa do uso habitacional para as camadas populares;

5. Proteção do patrimônio histórico cultural;

6. Integração Porto/cidade;

7. Exercício da gestão democrática do espaço

8. Preservação das características essenciais do conjunto, entendidas além das

características físicas: o popular; o povo na sua expressão de convivência, na sua

forma de se expressar; a festa dos espaços comuns; a afetividade que liga o povo

ao lugar, o cotidiano da cultura.23

Com a criação do Escritório de Revitalização do Bairro do Recife, os pontos básicos

como referência dessa concepção de gerenciamento visavam expressamente:

1. Melhorar a ambiência do espaço central, convidando o cidadão a procurá-lo com

maior freqüência;

2. Propiciar a infra-estrutura de apoio às funções urbanas;

3. Garantir a circulação nos logradouros públicos;

4. Prover espaços de descanso e lazer, para toas as idades;

5. Animar a convivência, gerando oportunidades de utilização criativa do espaço;

6. Regatar da história marcada nas edificações e na morfologia urbana para fortalecer

a memória da cidadania;

7. Reabilitar o casario, quando fosse culturalmente relevante e economicamente

justificável; e,

8. Implantar/restaurar equipamentos de uso coletivo.24

Como percebe-se nessas pautas, o direcionamento das ações estava voltado,

basicamente, para um grupo social desprovido de renda: favelados, prostitutas e trabalhadores

23 PCR/URB/ERBR. Revitalização do Bairro do Recife, 1986/2001 – Recife, 2001, p.20. 24 Op. Cit, p.18.

42

portuários, camelôs e a própria população local (Leal, 1995). Ao reconhecer a deterioração do

lugar e as péssimas condições sociais as quais estavam submetidos seus moradores, a equipe

administrativa passou a defender que a reabilitação fosse um instrumento de ação política para

a recuperação das funções habitacionais do bairro (Leite, 2004, p.162).

Essa postura política marcaria a nova administração através do apoio às classes

populares e um “compromisso com a maioria”, principalmente com os movimentos populares

e grupos sociais de menor renda que deram grande apoio à eleição do Prefeito que tinha sua

candidatura apoiada por uma composição política formada por grupos e partidos políticos, em

sua maioria de esquerda: PMDB, PTB, PCdoB, PCB, PDT e PSB. Assim, a primeira fase que

começou em 1986, visava a reabilitação residencial através de um projeto amplo de

revitalização dos edifícios antigos. O programa tinha um objetivo específico e uma orientação

política clara, visto que o bairro deveria ser reabilitado para seus próprios moradores, como

relatado no Plano de Reabilitação do Bairro do Recife: “as populações prioritárias do plano

são as moradoras, símbolo de resistência do bairro, e os portuários, responsáveis pela mais

bela apropriação do espaço público do bairro”25.

Essa postura de gestão participativa e “democrática do espaço” concebia valorizar a

participação dos usuários e moradores como cidadãos, a garantir que nesse modelo de gestão,

o direito do cidadão pudesse ser prioridade nas definições da propostas. De acordo com a

análise de Leite (2004), a prioridade política conferida à integração da população no processo

de reabilitação do bairro, moveu como mecanismo central de desenvolvimento da idéia, o

projeto Memória em Movimento26, fundado em agosto de 1988, segundo o qual havia a

pretensão de resgatar as memórias do Bairro. Como resultado desse trabalho, foi lançado o

livro “Bairro do Recife: Porto de Muitas Histórias”. Assim, argumenta o autor: “a

metodologia da proposta estava voltada, por assim dizer, a uma política de contra-

enobrecimento da área” (Leite, 2004, p.163). Esta orientação pode ser percebida, segundo o

autor, em dois aspectos centrais:

1. A proposta não tinha como objetivos estimular atividades de consumo através do

turismo e comércio cultural;

25 Plano de Reabilitação do Bairro do Recife. Recife, PCR-DPSH, agosto de 1987. 26 Consta no relatório Além do projeto memória em movimento outros projetos foram estabelecidos pelo Grupo Permanente de debates, mas nem todos foram realizados. Dentre os projetos destacam-se: Memória Urbana; Pintura nas Quadras; Recuperação Física; Núcleo de Vida Cooperativa; Habitação Coletiva; Restaurante Popular e o Teatro Hermilio Borba Filho.

43

2. A proposta não defendia nenhuma forma de deslocamento da população residente:

propunha ao contrário, uma forma ampla de integração dos moradores e usuários

do bairro (2004, p.163).

No sentido apresentado, o plano evidenciava a intenção de incrementar novos usos

daquele patrimônio, buscou relacionar as políticas de preservação com perspectivas de auto-

sustentabilidade econômica. No entanto, residiam como ênfase central do plano os programas

que se relacionassem diretamente às condições de vida da população residente: programas de

saúde, drenagem, pavimentação, paisagismo, limpeza urbana, iluminação, segurança,

educação, animação cultural, etc. Todas estas medidas eram consideradas prioridades sociais

sobre qualquer outra de cunho econômico ou destinado à renda. Por isso, que a primeira fase

da revitalização do Bairro do Recife “apresentava um perfil complexo, envolvendo uma

população desassistida e ruas que refletiam o desgaste dos equipamentos e da infra-estrutura

urbana. Não havia mais escola, nem posto de saúde, a segurança era precária” (Leite, 2004,

p.173).

Entretanto, o plano de propostas não atraiu os principais agentes capazes de alterar o

processo de decadência do bairro: os setores imobiliários, os industriais, os grupos financeiros

e do comércio internacional não apoiaram o projeto até o termino da gestão do prefeito Jarbas

Vasconcelos, o qual assumiu novamente o cargo em 1992, quando finalmente sob uma nova

perspectiva implementou com sucesso o novo plano, com base nas políticas de

enobrecimento. Com a eleição de um novo prefeito Joaquim Francisco (PFL), em 1988,

depois governador entre 1990-94, uma nova composição de forças políticas mais

compromissadas com os setores empresariais da cidade altera a estratégia de ação no centro

(Zancheti, 1995, p.104).

Com a mudança da gestão municipal em 1989, os trabalhos do Plano de Reabilitação

sofreram sua desaceleração e foram desfeitos, inclusive o Grupo de Trabalho de Revitalização

do Centro Expandido e o Escritório Técnico do Bairro do Recife foram dissolvidos. A nova

gestão decidiu por não implementar os projetos existentes mesmo que existissem recursos

para a continuidade do trabalho27. Um novo plano foi elaborado e com uma visão

empreendedora, a economia e o desenho urbano foram incorporados à pratica do

Planejamento Urbano28.

27 PCR/URB/ERBR. Revitalização do Bairro do Recife, 1986/2001 – Recife, 2001, p.21. 28 Op. Cit. p.21

44

A partir dos anos 90, o cerne do projeto, consolidou-se segundo os critérios de

intervenção e revitalização vinculados à lógica do enobrecimento. Após a aliança firmada

entre governo e prefeitura, no período entre 1990 e 1994, os recursos para o plano de

revitalização foram repassados ao município sugerindo essa nova perspectiva. No ano de

1993, um acordo firmado entre a Fundação Roberto Marinho, a empresa Akzo do Brasil

(Tintas Ypiranga) e a prefeitura da cidade para pintar as fachadas do antigo bairro, demandou

como objetivo a perspectiva de resgatar a imagem da cidade e adequá-la ao fluxo de capital e

pessoas. Foi com a reforma da Rua do Bom Jesus, pilar do projeto, que resultou o Plano de

Revitalização do Bairro do Recife (PBR). O projeto concebia não somente tratar de uma

proposta de revitalização do patrimônio edificado, mas de uma articulada idéia de intervenção

urbana na forma de um longo empreendimento voltado ao turismo.

A solicitação de recursos junto a “organismos internacionais de desenvolvimento”29

resultou em uma parceria firmada entre o Ministério da Cultura e o Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID), através de um consórcio assinado em Paris em março de 1999, que

firmou também uma parceria com empresas nacionais. Surge assim o Programa

Monumenta/BID30, o qual pretendeu atender metas para financiar projetos de melhorias de

infra-estrutura urbana em cidades históricas, sendo encarregado ao Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a função de órgão gerenciador do projeto concebido

pelo programa.

O Monumenta previu estratégias que superassem os aspectos arquitetônicos de

preservação concebidos pela política do IPHAN. Os objetivos do programa estavam

direcionados para restauração dos usos – econômicos e sociais – dessas áreas. As metas

estabelecidas pretendiam alcançar um amplo público que dinamizasse as atividades

econômicas do setor, ou seja, o público turista, notabilizando a principal diferença entre a

primeira fase de implantação do Plano de Reabilitação do Bairro e segunda fase, na qual

gerou o Plano de Revitalização do Bairro do Recife (PBR). Estrategicamente os objetivos da

parceria eram:

1. Conservar o patrimônio histórico e cultural, através do uso, resgatando a vida neste

espaço;

29 Op. Cit. p.22 30 BID, Preservation of Urban Historical and Cultural Sites (Monumenta Program), Projeto nº BR-0261. O valor fixado para a realização do programa foi de aproximadamente US$ 200 milhões, sendo US$ 62,5 milhões destinados pelo BID e US$ 62,5 milhões pelo governo brasileiro (em âmbito federal, estadual e municipal).

45

2. Transformar a economia do Bairro do Recife no sentido de torná-lo um centro

metropolitano regional;

3. Tornar o Bairro um espaço de lazer e diversão para a população da cidade, e;

4. Tornar o Bairro um centro de atração turística nacional e internacional31.

Essas propostas relacionaram, além da reforma e reconstrução das infra-estruturas

existentes, o desenvolvimento de novas funções urbanas, novas organizações espaciais das

atividades do bairro, novos padrões de ocupação urbanística e o incremento de seu potencial

construtivo. Com todas estas características, o velho Bairro foi reinventado pelo processo de

gentrification. Nesse sentido destaca Leite (2004):

O processo de gentrification que reinventou o Bairro do Recife como lugar deslocou para a esfera do consumo os sentidos tradicionais da sua história. A memória do bairro, inscrita em seu patrimônio edificado e na vida cotidiana dos moradores mais antigos, foi subsumida pelas estratégias de marketing urbano, que equipararam o antigo Povoado dos Arrecifes a um shopping center. Hoje, o bairro ocupa cada vez mais os espaços das narrativas sobre a singularidade do local para a cidade do Recife (2004, p.191).

Do exposto acima, percebe-se que o bairro teve seu patrimônio transformado em

mercadoria cultural enquanto o projeto de revitalização enfocou somente um público com

possibilidades de usufruir os espaços (de consumo) do bairro. De acordo com o que foi dito, a

31 PCR/URB/ERBR. Revitalização do Bairro do Recife, 1986/2001 – Recife, 2001, p.22-23.

Ilustrações 07: Rua do Bom Jesus - Foto do autor, 2006.

Ilustração 08: Praça do Marco Zero – Foto do autor, 2007.

46

reforma das habitações dos moradores foi mencionada no projeto, mas até o momento nada

foi feito, pois essas ações somente focalizaram a reforma de casarios e locais degradados e os

monumentos históricos, a exemplo da Praça do Marco Zero e da Torre Malakoff32, entre

outras estruturas do bairro. A ênfase dada ao turismo por seus idealizadores parece não ter

levado em conta o lado habitacional de maneira sistematizada. O caráter mercadológico desse

processo revelou uma estratégia com proposta de ações a prazo mediano, orientadas para os

usos turísticos e não do cotidiano da população do bairro ou transeuntes.

No âmbito da consecução do plano, a

parcela da população residente da

Comunidade do Pilar, a qual havia sido

contemplada na primeira iniciativa, ficou de

fora desse processo vendo inconformada sua

exclusão. Esse fator evidencia a problemática

a ser discutida neste trabalho.

Nesse projeto existiram áreas de

empreendimentos públicos e privados,

chamados Pólos de Interesse para a

revitalização: Pólo Bom Jesus, Pólo

Alfândega, Pólo Arrecifes que compunham o Setor de Intervenção Controlada; o Pólo Fluvial

e Capibaribe, no Setor de Consolidação Urbana e no Setor de Renovação Urbana, o Pólo

Pilar, o qual ficou de fora desse processo e tem permanecido fora até hoje. Nele está situado a

antiga Favela do Rato, hoje conhecida carinhosamente como Comunidade Nossa Senhora do

Pilar, onde podemos encontrar características bastante distintas das outras áreas do bairro,

sendo que parte dos moradores do Recife Antigo reside nesta localidade. Em artigo do

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) destaca-se:

O bairro do Recife (também conhecido como Recife Antigo) amarga alguns dos piores indicadores sociais do município. Os poucos domicílios que não deram lugar a lojas, repartições públicas, empresas de serviços portuários, restaurantes e instituições financeiras concentram-se na Comunidade do Pilar, uma favela que abriga a menor renda média e os piores indicadores de saneamento da cidade” (PNUD, 2006).33

32 http://www.cultura.pe.gov.br/patrimonio14_malakoff.html 33 Em 2000, viviam no Recife Antigo apenas 8,58% dos moradores em domicílios com água encanada (um regresso em relação a 1991, quando 31,02% tinham o recurso) e 54,46% em lares com instalação sanitária (número bem inferior ao do segundo pior bairro da cidade nesse quesito, Ilha Joana Bezerra, com 85,16%). Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, No berço do Recife, o pior do Recife, Recife, 2006.

Ilustração 09. Feirinha do Bom Jesus, local de atração turística e consumo de bens relacionados à cultura pernambucana. Foto do autor (2006)

47

CAPÍTULO 4

A paisagem contra-enobrecida: a Favela do Rato como um cartão postal da exclusão social no Recife.

Historicamente e socialmente excluída pelos sucessivos governos da cidade do Recife,

a Comunidade Nossa Senhora do Pilar (Favela do Rato)34, teve sua origem durante a década

de 1970, quando algumas áreas do Bairro do Recife foram desapropriadas (um total de 06

quadras) por determinação do Porto do Recife ou com a finalidade de expandir o seu espaço e

sua atividade. Ruas e diversos casarões que possuíam arquitetura eclética foram demolidos,

sendo construído no local um muro com 02 metros de altura para cercar as áreas desocupadas.

Após a demolição das ruas, a ampliação do Porto não se realizou e o muro construído serviu

para que famílias desabrigadas “que tinham o Bairro do Recife como referência de trabalho

ou sentimento”35 começassem a tomar posse das calçadas próximas e construíssem seus

barracos. Foi nesse período que a ocupação da área iniciou-se e deu origem à chamada

“Favela do Rato”, nome atribuído devido à elevada quantidade de ratos na área que se

proliferavam por se alimentarem dos grãos de trigo despejados pelo Moinho do Recife36.

Durante a ocupação, a Guarda Portuária entrou em conflito com os novos moradores

ao tentar destruir os barracos, embora não conseguisse impedir as novas construções. Motivo

que em 1987 o número de barracos já era de 89 e abrigava cerca de 330 habitantes37, sendo a

Comunidade gradativamente ampliada ao passar dos anos e ocupa hoje uma área de 2,0ha.

Levantamentos realizados pela Prefeitura do Recife nos últimos quinze anos demonstram a

evolução do número de barracos e habitantes38:

34 Optamos por chamar de “Favela do Rato” no título e subtítulos deste trabalho, embora no desenvolvimento do texto preferimos chamar por Comunidade do Pilar, nome dado pelos próprios moradores. 35 PCR/URB/ERBR – Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002, p.16 – Recife, 2002. 36 O Moinho Recife foi inaugurado em 1919, sua história, no entanto, se iniciou em 1914, com a criação da S.A. Grandes Moinhos do Brasil, que planejou sua construção e linha de produção. Na década de 1920, o moinho produzia farinha e na década de 1933, iniciou sua atuação também no setor doméstico e de produção de rações balanceadas na década de 1940. Em 1986, a razão social da empresa foi alterada, passando de Grandes Moinhos do Brasil para Moinho Recife S.A. Empreendimentos e Participações. No ano de 1993, foi incorporado pela Moinho Santista Alimentos e, atualmente, é uma das unidades da Bunge Alimentos em industrialização de trigo com estrutura portuária. (http://www.fundacaobunge.org.br/port/memoria/cmbunge.asp?id=185). 37 Fonte: http://www.informar.org.br/comunidadepilar/dados.htm 38 PCR/URB/ERBR – Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002, p.17 – Recife, 2002.

48

Tabela 01: Evolução do Assentamento da Comunidade do Pilar

Ano

Nº de Edificações

Nº de Habitantes

1987

89

330

1995

268

699

1998

370

961

2001

463

1052

Estes números demonstram o elevado crescimento populacional da Comunidade, o

qual não foi acompanhado pelo poder público na consolidação de sua infra-estrutura urbana,

como destacaremos adiante. Segundo é atestado no documento do Programa de

Requalificação Urbanística e Inclusão Social da Prefeitura do Recife, “o crescimento do

assentamento vem sendo significativo, potencialmente atrelado ao sucesso do processo de

revitalização do bairro nos últimos anos” (p.17). Essa preocupação contida no documento

reflete dois problemas fundamentais: 1) demonstra a fragilidade das ações administrativas que

implantou o Plano de Revitalização do Bairro do Recife em 1993, e consequentemente a falta

de organização política para conter a migração de pessoas em situação de pobreza naquela

localidade; 2) a perspectiva de sociabilidade e o sentido atribuído por essas pessoas à

revitalização das atividades do bairro, enquanto espaço de fluxo de turistas e capitais, o que

possibilitaria a interação com o público usuário de alguma maneira, por uma lado através da

mendicância ou do comércio ambulante, por outro, a procura de empregos nos bares e

restaurantes.

Verifica-se na tabela 01, entre 1989 e 1995, o aumento do número de edificações foi

de 179 moradias, sendo que o número de habitantes praticamente dobrou de 330 para 699.

Entre 1995 a 2001, período em que se consolidava a revitalização do bairro, houve aumento

também significativo. O número de habitações passou, em 1998, para 370 (somando 102

casas a mais) e em 2001 para 463 (mais 93 casas), enquanto em relação ao número de

pessoas, o índice continuava alto: de 699 pessoas em 1995, para 961 no ano de 1998 e 1052

em 2001, somando um total de 353 novos habitantes na área. Outro aspecto relevante é a

tipologia da habitação que se caracteriza pelas precárias condições de habitabilidade, onde

mais da metade dos imóveis tem apenas um cômodo, totalizando 55,9% e seguido de imóveis

Fonte: PCR/URB/ERBR – Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002 – Recife, 2002

49

de dois cômodos, que são 22,7% das habitações39. Dentre estes 1052 barracos, as moradias

são feitas por madeira, papelão ou alvenaria, havendo a predominância de habitações em

alvenaria, totalizando cerca de 43,6%, como pode ser percebido na tabela 02 abaixo:

Tabela 02: Tipologia da Habitação/Percentual

Alvenaria

43,6%

Taipa

9,7%

Madeira

17,9%

Misto

11,5%

Outros

17,3%

Os baixos índices sociais da Comunidade indicam uma realidade que abrange

inúmeras favelas em todas as regiões brasileiras. O crescimento desordenado é sempre

acompanhado por significativos índices de migração de pessoas com baixo nível de renda,

que geralmente se instalam em locais como favelas, periferias ou nas ruas das grandes

cidades. Essa população possui acesso precário a bens de consumo coletivo, tais como o

acesso a água corrente, ao transporte público, eletricidade, telefone, esgotos, moradia

adequada, segurança, coleta de lixo, assistência à saúde e educação.

39 PCR/URB/ERBR – Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002, p.20 – Recife, 2002.

Fonte: PCR/URB/ERBR – Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002 – Recife, 2002

Ilustração 10. Barracos dos moradores da Favela do Rato. Foto do autor (2006)

Ilustração 11. Vista panorâmica da Favela do Rato Foto do autor (2006)

50

A cidade do Recife amarga alto percentual de pobreza e de desigualdade social, a

título de exemplo geral, pode-se retratar a realidade que se inserem os moradores do Pilar. A

incidência de renda mensal da população varia entre um salário mínimo (41,3%) e de até dois

salários míninos (64,8%), enquanto 10,4% dos habitantes não possuem renda40. Estes

números elucidam a má distribuição de renda da cidade como um todo. Conforme a tabela

(03) abaixo, podemos ter uma demonstração da desigualdade socioeconômica no Recife:

Tabela 03: Recife/PE – Percentual de pobres, Intens idade da pobreza e Percentual de Renda da população

Indicador Unidade 1991 2000

Percentual de pobres % 38,39 31,51

Intensidade da pobreza % 46,58 49,38

Percentual da renda apropriada pelos 40% mais pobres da população % 5,55 5,28

Percentual da renda apropriada pelos 10% mais ricos da população % 54,17 55,07

Fonte: PNUD - Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil / MuniNet - Rede Brasileira para o Desenvolvimento Municipal41

40 Op. Cit. p.18 41 Metodologia utilizada pelo PNUD para estes indicadores: Percentual de pobreza – Proporção dos indivíduos com renda domiciliar per capita inferior a R$75,50, equivalentes a 1/2 do salário mínimo vigente em agosto de 2000. O universo de indivíduos é limitado àqueles que vivem em domicílios particulares permanentes. Intensidade de pobreza – Distância que separa a renda domiciliar per capita média dos indivíduos pobres (definidos como os indivíduos com renda domiciliar per capita inferior à R$ 75,50) do valor da linha de pobreza, medida em termos de percentual do valor dessa linha de pobreza. Percentual de renda – É a proporção da renda do município apropriada pelos indivíduos pertencentes ao décimo mais rico e pertencentes aos dois quintos mais pobres da distribuição de indivíduos segundo a renda familiar per capita.

Ilustração 12. Foto do autor (2006)

51

Esses dados servem para elucidar a formatação socioeconômica e a discrepância

numérica apresentada no Recife. Bernardo Sorj (2006, p.23) define pelo menos três amplas

categorias que reproduzem o eixo central da estratificação social no Brasil, considerando o

acesso desigual aos bens de consumo coletivo administrado pelo Estado. Segundo Sorj, a

primeira categoria concerne aos funcionários do setor público: esses possuem enorme

variação de salários, garantia de estabilidade de emprego e regras de aposentadoria

diferenciada de outros setores, como o privado. A segunda é definida pelo autor, por pessoas

que trabalham no setor “formal” do mercado de trabalho privado, que são inscritos no sistema

de previdência social e possuem carteira de trabalho. A terceira, portanto, são os trabalhadores

não inscritos na proteção social, geralmente formado por assalariados de empresas menores e

com salário médio inferior ao do setor formal. Moradores de favelas, o setor rural,

trabalhadores domésticos e ambulantes, por exemplo, constituem esta categoria. Muitos deles

são habitantes de localidades com baixo nível sócio-econômico e, quando não estão

desempregados, possuem baixa qualificação de trabalho.

A faixa etária da população da Comunidade do Pilar é, segundo o levantamento da

Prefeitura, relativamente equilibrado (ver tabela 04), embora a distribuição da população por

faixa etária indique que cerca da metade seja considerada jovem, menores de 21 anos

(46,1%)42. Cada família possui em média 2,3 indivíduos e a densidade populacional da área é

de 526hab/ha; sendo considerada relativamente alta. Entre outros dados relevantes, chama

atenção uma observação feita pelo levantamento sobre o índice de escolaridade: “É observado

um índice de analfabetismo relativamente baixo (7,3%), se comparado com outras áreas de

baixa renda do Recife”43.

Tabela 04 – Composição da população por idade

Idade 0 - 1 2 - 5 6 - 10 11- 15 16-20 21-25 26-30 31-40 41-50 51-60 + 61

% 4,40 7,60 11,80 12,10 10,20 8,40 9,10 16,90 9,10 5,30 4,10

Em síntese, a Tabela (05) demonstra o perfil sócio-econômico da Comunidade Nossa

Senhora do Pilar:

42 PCR/URB/ERBR – Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002, p.18 – Recife, 2002. 43 Op. Cit. p. 18

Fonte: PCR/URB/ERBR – Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002 – Recife, 2002

52

Tabela 05 – Perfil sócio-econômico da Comunidade No ssa Senhora do Pilar

Área Aproximadamente 2ha

Imóveis 463 unidades

Esgotamento sanitário Inexistente*

Energia elétrica Grande incidência de ligações clandestinas

Uso predominante dos imóveis 79,70% residencial

Condições de ocupação dos imóveis 94,50% próprios

Tipologia dos imóveis 43,60% de alvenaria

Local de trabalho 72,40% trabalham na área e no entorno

Localização dos imóveis 81,80% em logradouros públicos

População 1.052 pessoas

Composição etária 46,10% menores de 21 anos – 43,50% na faixa dos 30 aos 50 anos

Escolaridade da população 68,30% são alfabetizados

Renda familiar 75,20% de 0 até 02 salários mínimos

Tipo de comércio 64,70% são bares

Número de cômodos 55,90% apenas um cômodo. 22, 70% dois cômodos

Famílias que desejam permanecer na área 56,80% das famílias

Os dados levantados motivaram a formulação de um abrangente programa para a

Comunidade. Chamado de “Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social” pela

nova administração da Prefeitura do Recife, sob a candidatura do prefeito João Paulo

(formada por uma aliança entre o PT e o PCdoB com um grupo de partidos menores, PCB, PC

e PGT, em 2001), foi lançada uma proposta através de uma “Carta Consulta” ao Banco

Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em Agosto 2002 que, embora

não foi implantada, a Carta ostentou um valor de R$11,6 milhões44 para viabilizar uma nova

infra-estrutura básica ao local. Na apresentação do programa, o enfoque dado à Comunidade

do Pilar foi sobretudo motivado por objetivos sociais que pudessem levar vitalidade àquela

área. Já no primeiro parágrafo estava expresso:

Com o compromisso de construir uma cidade socialmente equilibrada e culturalmente forte, a Prefeitura do Recife, desenvolveu o Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social da Comunidade do Pilar, colocando essa comunidade como objeto central do Programa na Revitalização do Bairro do Recife, não só como um dos atores nesse processo, mas como co-autora e co-

44 O BNDES, que é um banco federal entraria com um investimento de R$ 7 milhões no projeto. Fonte: PNUD

Fonte: PCR/URB/ERBR – Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002, p.20 – Recife, 2002

53

gestora das propostas (Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002, p.02).

À perspectiva adotada, além de incluir o Programa para a Comunidade do Pilar ao

Plano de Revitalização do Bairro do Recife, seriam destacados três componentes

fundamentais para a gestão de Renovação Urbana do Pólo Pilar, conforme descrito na tabela

(06) abaixo:

Tabela 06:

Componentes principais Formulação do Projeto, Final idades e Objetivos específicos

Valorização do Patrimônio

Restauro da Igreja Nossa Senhora do Pilar e suas imagens, que devolverá aos

moradores, usuários do bairro e visitante o Patrimônio deteriorado;

Projeto Interpretativo de Prospecção Arqueológica do Forte de São Jorge, o qual

almeja o resgate da história da cidade e a reconquista do lugar.

Fortalecer as relações identitárias, despertando o sentido de pertencimento ao

Bairro de forma a consolidar o desejo de permanência na comunidade.

Desenvolver a auto-estima dos moradores, a cidadania e a integração ao

contexto social, físico e econômico da metrópole e o interesse pelo Bairro,

enquanto Patrimônio Histórico.

Requalificação urbanística

Implantação dos Projetos Urbanístico e Arquitetônicos de praças, abertura de

vias de acesso publico, escola, creche, quadra de esportes, centro cultural, posto

de saúde, posto policial;

Complementações das redes de esgoto, água, energia elétrica, iluminação

pública e de drenagem;

Melhoria dos espaços físicos, dos hábitos, atitudes e comportamento dos

habitantes.

Promover a realocação e o reassentamento da população em conjuntos

habitacionais a serem construídos na área;

Integrar o espaço à malhar urbana da cidade, proporcionando o fluxo de

visitação da sociedade ao local;

Promover a Educação Ambiental e Patrimonial da Comunidade.

Inclusão Social

Manutenção das relações de convivência comunitária, de vizinhança, dos

vínculos com o bairro e das relações econômicas de prestação de sérvios,

inclusive durante a implementação;

Estimular processos de mobilização e participação comunitária, para a

construção e desenvolvimento de projetos futuros;

Inclusão dos moradores no mercado de trabalho, principalmente no Bairro do

Recife e entorno;

Estimular a auto-gestão da Comunidade com a eleição de grupos

representativos e o desenvolvimento social.

Fonte: PCR/URB/ERBR – Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002, págs. 44 e 45 – Recife, 2002.

54

Como previsto no Art.12 da Lei N° 16.290 / 97 para o Setor de Renovação Urbana do

Plano de Revitalização do Bairro do Recife, as intervenções públicas ou privadas tem como

objetivo promover a renovação do conjunto urbano, através de ações que permitam a: a)

alteração do padrão de ocupação, com incremento construtivo nas áreas vazias ou

subutilizadas; b) valorização dos Elementos Preserváveis, através da sua incorporação aos

novos empreendimentos; c) ampliação de ofertas de espaços destinados ao convívio público;

d) implementação de condições favoráveis à instalação de usos habitacionais e; e)

recuperação ou ampliação da infra-estrutura existente45.

Neste Pólo, a preocupação informada no documento do Plano de Revitalização,

consiste, principalmente devido à “baixa densidade construtiva” do local. Conforme expresso

no Art.44 da mesma Lei (N° 16.290 / 97)46, os incentivos para a implementação da renovação

urbana, adviria da promoção de empreendimentos como maior padrão de adensamento e

diversificação de usos e atividades, destacando-se ações de infra-estrutura e paisagismo,

habitação e comércio47. Nesse sentido, as ações previstas no Programa de Requalificação

Urbanística e Inclusão Social pretendiam incorporar o Pólo Pilar como parte da cidade e

atribuir um “valor estético-morfológico” (p.45) às habitações que seriam construídas no lugar

dos barracos existentes, no sentido de respeitar o contexto arquitetônico do Bairro, inclusive

devido às características arquitetônicas da Igreja do Pilar.

Para isso, as ações deveriam enfocar os aspectos quantitativos e de funções

qualitativas para garantir soluções adequadas no conjunto da intervenção para a cidade, o

bairro e a comunidade, regularizando as condições fundiárias e instalando equipamentos

comunitários48. Foi planejado também o Plano de Reassentamento das famílias, que seriam

realocadas para outras áreas com condições viáveis durante o processo de intervenção. Outras

intervenções diretas como os planejamentos de assistência social, de acompanhamento e

orientação das famílias e atendimento emergencial de saúde foram previstas também. Assim,

essas ações foram definidas a partir de metodologias específicas de intervenção social, com

abordagem interdisciplinar e integrada visando a sustentabilidade do projeto a partir de ações

sociais de educação ambiental, patrimonial, geração de trabalho e renda, como também gestão

45 PCR/URB/ERBR – Plano Específico de Revitalização da Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural 09 – Sítio histórico do Bairro do Recife – p. 06, Recife, 1997. 46 Op. Cit. p. 12. 47 PCR/URB/ERBR – Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002, p.56 – Recife, 2002 48 Op. Cit. p.56

55

condominial49. Nesse sentido, é possível perceber que se trata de um complexo programa

formulado no começo da gestão do Prefeito João Paulo, que se iniciou em 2000.

Um dos pontos chave deste Programa era elaborar uma campanha de Marketing

Social50 que chamasse a atenção da sociedade e do empresariado para investimentos previstos

segundo um regulamento elaborado no plano. A estratégia de Marketing Social visava

contribuir para a mudança comportamental e de atitudes dos moradores, o qual poderia ser

realizado a partir da produção e distribuição de materiais informativos e educativos sobre a

importância de preservar o ambiente e o patrimônio, fomentar o cooperativismo e a cidadania.

Decerto, havia o intuito de abranger as instancias governamentais (municipais, estaduais e

federais) e diversos setores da sociedade, dentre eles empreendedores e o terceiro setor

(ONGs), contudo não houve interesse destes setores, evidenciando a fraca relação entre

parcerias público-privadas no Brasil. Havia no âmbito do projeto a consolidação do Porto

Digital (empresa que atualmente mantém uma série de programas sociais), que a partir de sua

implementação o Bairro do Recife ganharia um status de espaço de excelência em tecnologia

e, como previsto no Plano de Revitalização, de Centro Cultural Metropolitano. Nesse sentido

é atestado no relatório do Programa:

Não é concebível a convivência com a situação de exclusão social e segregação espacial em que se encontra a Comunidade do Pilar, localizada no setores de Renovação Urbana do Bairro do Recife. Assim, essa comunidade é objeto central das preocupações sociais e das propostas para a ação imediata que compõem o Projeto apresentado (Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002, p.28).

Embora destaque-se a idéia de integrar a Comunidade na “vida da cidade” ao propor a

melhoria da qualidade de vida da população e a permanência dos antigos moradores no local,

valorizando a vida dos moradores, a sociabilidade e convivência cultural, esta proposta tem

como fundamento incrementar a vitalidade econômica da área. Nele inclui um “pacote” de

opções voltadas à iniciativa de empreendimentos privados e à infra-estrutura turística.

Entretanto, questiona-se como será possível manter a sociabilidade dos moradores com o

público visitante na área, haja vista a forte discriminação social, econômica e cultural que se

revela na sociedade brasileira.

49 Op. Cit. p.47. 50 Op. Cit. p.54.

56

Outro ponto importante a ser analisado, concerne quanto à viabilidade do programa do

ponto de vista financeiro e institucional já demonstrado no primeiro Plano de Reabilitação do

Bairro do Recife lançado em 1987, na administração de Jarbas Vasconcelos, o qual não

logrou devido a não participação de setores fundamentais da sociedade. Nesse caso, as

dificuldades tornaram-se ainda mais complexas pois, como já foi dito, o Pólo Pilar trata-se de

uma área distinta em relação ao restante do bairro. A partir destas indagações, procuramos,

portanto, uma análise mais próxima à vida dessas pessoas e conhecer alguns aspectos do

“modo de vida” que os indivíduos da Comunidade estão inscritos.

Mapeando a paisagem contra-enobrecida: conhecendo as sociabilidades “marginais”

e os cenários “insalubres”.

Após a exposição sobre os dados socioeconômicos e características espaciais da

“Favela do Rato”, pretendemos relatar, a partir das observações feita no local durante o

incurso etnográfico, os aspectos que chamou a atenção, tais como a situação de pobreza e

precariedade da área, tendo em vista que demonstram uma forte relação entre as políticas

públicas urbanas descritas nesta monografia e a exclusão política desta parcela da sociedade

recifense, já excluída no âmbito social e econômico. Para tais propósitos, tentaremos fazer

uma exposição analítica e descritiva dos fatos observados e propor uma discussão acerca das

evidências de nossas observações. Sendo assim, apresenta-se a “Comunidade do Pilar”, ou

mais de perto, a “Favela do Rato”.

Caminhando pelas ruas do Recife Antigo percebe-se a monumentalidade arquitetônica

e a construção histórica do bairro, o que provoca uma sensação de está sendo seduzidos pelo

local. Desde a Praça do Marco Zero ao final da Av. Marquês de Olinda ou Av. Rio Branco,

qualquer transeunte depara-se com diversos e belos prédios antigos. Se não fosse o estado de

degradação e abandono que apresentam alguns edifícios, esta sedução talvez fosse maior.

Interessante observar o estilo eclético dos casarios, o qual denotava os primeiros sinais do

ideário modernizante que tomou conta do país no início do século XX, entre outros aspectos,

chama a atenção a paisagem que constrói a retilínea Av. Marquês de Olinda. A partir dela os

usuários do bairro pode ter o contato com diversas ruas do Bairro, inclusive de seu início a

começar pela Praça do Marco Zero à outra ponta, que leva à Ponte Maurício de Nassau. Por

outro lado, as diversas ruas do bairro levam as pessoas a enfrentarem outros “cenários” ou

“paisagens”: pessoas em situação de rua, pobres e desamparadas pelo poder público. De

57

alguma maneira, o que se sente ao andar no lugar, quando contrastamos com os monumentos,

é uma ligeira sensação de insegurança. Calçadas são tomadas por homens, mulheres, velhos e

crianças, as quais estão deitados em papelões, apresentando seus escassos bens materiais

(velhas roupas, cobertores rasgados ou de papelão, rastros de comidas, lixos no chão, etc.).

Enquanto uns dormem, outros cheiram cola, outros observam os transeuntes.

Favela do Rato

Igreja do Pilar

Marco Zero

Sensações de sedução ou de insegurança acometem-nos em alguns momentos. De um

trabalhador informal, que não quis se identificar, uma frase de efeito inscreveu novas

possibilidades de condução dos propósitos deste trabalho e permitiu relatar essa situação

quando procurávamos informações sobre o acesso à “favela do Rato”, disse ele: “Recife é um

campo minado, você tem que saber onde vai pisar, não importa se é dia ou noite, aqui é

Recife!”51. O discurso da violência52 enraizado nas palavras desse informante demonstra

como as representações são de fato um instrumento poderoso para estimular a sensação de

insegurança. Ao final da conversa, completou o rapaz que ir à favela ou à comunidade não é

51 Dialogo com um jovem vendedor de ingressos para passeios pelo Rio Capibaribe até os Arrecifes. Citação permitida pelo autor da frase, 2006. 52 Procuramos ter acesso aos dados estatísticos na Secretária de Defesa Social de Pernambuco (SDS) sobre os meios de violência (roubos, furtos, assaltos à mão armada, agressões, mortes etc.) mas, apesar de ter sido liberados os dados, não pudemos receber em mãos. Para isso, havia sido garantido o envio por correio eletrônico, contudo não recebemos os dados. Entramos em contato para uma nova tentativa e o mesmo não considerado. Um meio de comunicação interessante, pelo qual podemos ter alguma informação acerca deste tipo de problema, foi encontrado em um canal de relacionamentos na internet (www.orkut.com), onde em comunidade destinada ao Recife Antigo, há discussões dos participantes sobre o assunto.

Ilustração 13. Referência Cartográfica: Mapa-Base Bairro do Recife/URB

58

nada seguro. Perigo seriam eles pensarem que o pesquisador em questão fosse um turista, se

ele estivesse com máquina, relógio ou qualquer objeto, eles iriam assaltar. Embora fossemos

avisados, continuamos motivados em conhecer esse “perigoso” lugar.

Quando realizou-se a pesquisa era época de campanha eleitoral para a Presidência da

República. As eleições de 2006 configurariam uma nova engrenagem ao movimento em favor

da reeleição de Luis Inácio Lula da Silva (PT) e a eleição Eduardo Henrique Accioly (PSB)

para o governo de Pernambuco. Com o apoio do atual prefeito João Paulo Cunha (PT),

Eduardo venceu em segundo turno Mendonça Filho (PFL) que contava com o apoio de

consagrados atores políticos no Estado, dentre eles Jarbas Vasconcelos (PMDB). Nesta época,

o policiamento no bairro era ostensivo durante os períodos diurnos. Segundo informou um

Policial, devia-se ao fato de que as pontes que ligam o Bairro ao centro da cidade era local de

tumulto entre os militantes. Por outro lado, quando procurou-se informações aos policiais

sobre como chegar a determinada rua, eles alertavam sobre perigos. Ao informar sobre o

acesso à Av. Alfredo Lisboa, um policial alertou: “cuidado ao andar por aí, é perigoso”.

Após os primeiros dias de incurso e de algumas observações no entorno do Bairro,

informações foram coletadas sobre a localização da Comunidade. Soube-se da existência de

uma Escolinha, onde poderia encontrar pessoas para ajudar a realizar esta etapa, conhecer a

favela. Foi lá que simpaticamente fomos atendidos por Jonatan Nascimento, o Gão, como é

conhecido em sua área. Jovem, 21 anos, evangélico e morador da Comunidade, prontamente

nos atendeu e propôs uma visita ao local no dia seguinte.

Ilustração 14. Avenida Marquês de Olinda, vista dos casarios reformados. Foto do autor (2006)

59

Ao chegar à Escola Municipal Nossa Senhora do Pilar (chamada geralmente de

Escolinha do Pilar), já nos aguardava ansioso nosso informante, Jonatan Nascimento. Após a

troca de cumprimentos, prontamente Jonatan comentou: “Por que demorou a chegar? Pensei

que tivesse desistido ou ficou com medo de vim pra cá”. Logo veio a lembrança de algumas

observações feitas ao longo do percurso pelo Bairro, não menos dos últimos momentos antes

de chegar à Escolinha, atravessando a pé a Avenida Alfredo Lisboa. Uma sensação estranha

causaria a qualquer pessoa que desconhecesse o local, visto a cidade do Recife é tida como

um “campo minado”. Pouco movimento de carros e nenhum ônibus coletivo passava por lá,

apenas ouvia-se o barulho da fábrica Pilar e de vozes de alguns trabalhadores descarregando

mercadorias de um caminhão.

Diversas crianças faziam aulas de maracatu e danças na Escolinha do Pilar. Mais

especificamente, a percussão era tocada por meninos e as meninas ensaiavam alguns passos

de danças de salão. Enquanto observava o movimento de professores, ensinando o próximo

Ilustração 15. Foto do autor (2006) Ilustração 16. Foto do autor (2007)

Ilustração 17. Escolinha do Pilar, umas das funcionalidades é manter as crianças da Favela em algum tipo de atividade alternativa à prática de pedir esmolas nas ruas, a exemplo de uma formação pedagógica voltada a atividades culturais, dança e música.

60

ritmo a ser tocado, Jonatan, que também é coordenador de aulas de danças e música da Escola

Municipal, informava que este trabalho estava sendo desenvolvido por voluntários ou alguns

contratados pela prefeitura: “eu sou voluntário aqui também, acho muito bonito e o que vale é

a certeza que estamos construindo algo por eles e pelos menos eles se mantém ocupados, não

vão ficar rodando nas ruas lá no bairro”53.

Acabou-se por saber que a funcionalidade da escolinha aos fins de semana servia para

manter as crianças em algum tipo de atividade alternativa à prática de pedir esmolas nas ruas,

ao mesmo tempo em que torna possível ampliar a perspectiva desses indivíduos encontrarem

outras práticas para o cotidiano e uma formação voltada a atividades culturais. Por um motivo

inesperado, Jonatan precisou ausentar-se e foi preciso cancelar a visita à Comunidade do Pilar

naquele momento. Remarcada a visita para o dia seguinte, um dia de semana normal,

procedeu-se obter um recorte da rotina semanal dos moradores do Pilar.

Ao retornar à Escolinha, local de encontro para nossa visita à Comunidade,

procurando descontrair, Jonatan brincou novamente: “Ficou com medo de vim aqui depois de

saber que ia entrar por aquele beco?”. O acesso à Comunidade do Pilar pode ser feito por

outras ruas (a exemplo da Rua do Brum ou pelos fundos da Fábrica do Pilar), embora, o

referido “beco”, além da proximidade da escolinha levaria diretamente a primeira razão pela

qual dirigimo-nos àquela área: conhecer a Igreja Nossa Senhora do Pilar, um bem tombado

pelo IPHAN em 1965, situada em um largo no qual se formou a “favela”, no início dos anos

70.

53 Depoimento concedido ao autor, na Comunidade do Pilar, Bairro do Recife, 15/10/2006

Ilustração 18. Foto do autor (2006) Ilustração 19. Foto do autor (2006)

61

A Igreja Nossa Senhora do Pilar

situa-se no largo da Rua São Jorge.

Construída entre 1680 e 1686 e

restaurada entre 1898 e 1906 quando o

Recife tornou-se o centro econômico do

Nordeste. Hoje a igreja encontra-se

abandonada, exemplo que demonstra um

pífio compromisso por parte das

sucessivas administrações da cidade do

Recife para com um bem histórico da

cidade e do país. Fechada por cimentos

em suas portas e janelas, saqueada e em

avançado estado de deterioração, a Igreja revela uma cena que negligencia o valor desse bem

histórico da cidade e para o cotidiano do bairro.

Como já foi relatado no decorrer deste

trabalho, a área da Igreja do Pilar não foi concebida no

contexto da revitalização no Programa

Monumenta/BID, situação esta, que infligiu à

população local a exclusão de um bem que

representava a própria história da área a ser

conservada, evidenciando também, os processos de

exclusão dos usuários locais dos usos de um bem

público devido às políticas consolidadas para a

orientação do turismo e do mercado. Importante

ressaltar que os habitantes da Comunidade também

foram excluídos do processo de Revitalização, sem

acesso aos espaços enobrecidos e sem condições para

usufruir as áreas de lazer e entretenimento do local.

Enquanto que Jonatan passava as primeiras “instruções” para entrarmos naquela área,

dentre as quais, mostrar disposição, simpatia e comunicação consistiria os primeiros passos a

serem dados com tranqüilidade, despreocupação e sem preconceitos, observamos o

movimento de pessoas saindo do estreito corredor ou “bequinho”. Após situar-se no largo da

Rua São Jorge, uma cena inusitada marcaria aquela visita, pois ao ver de perto o que é visto

Ilustração 21. Foi tombada pelo IPHAN em 1965. Hoje está abandonada. Foto do autor (2006)

Ilustração 20. A igreja foi restaurada entre 1898 e 1906 quando o Recife foi o centro econômico do Nordeste. Foto do autor (2006)

62

todos os dias nos jornais, apreende-se a discernir o que significa estar, como diria Magnani

(2002) de perto e de dentro de um lugar a estar de fora e de longe.

Tal cena aconteceu quando uma moradora da Comunidade, que já havia sido

observada andando bêbada e vestida de noiva ou camisa da Seleção Brasileira de Futebol em

uma das ruas no entorno da Praça do Arsenal. Ela dançava ao lado dos abastados turistas nos

corredores, feitos pelas barracas de artesanato da Feira do Bom Jesus. Ela fez um convite para

que entrássemos em seu barraco, ao mesmo tempo em que agradecia pela gentileza e pedia

novamente algum trocado para comprar cachaça. Após concordar com convite, ao entrar

pode-se constatar que a condição de vida desta, entre outros moradores, não convém a creditar

conforto, bem-estar e segurança a vida de uma pessoa. O casebre, situado no largo da Rua São

Jorge, tinha apenas duas pequenas divisórias, cheirava a mofo e nenhum móvel pôde ser visto,

somente uma cama de ferro sem colchão e no lugar desse havia um vestido de noiva que a

moradora usava na ocasião anterior.

Jonatan, não se constrangia em mostrar a situação de abandono do lugar. Lixos

espalhados ao lado da Igreja do Pilar, esgotos exalavam um forte odor, ruas de areia e casas

humildes constituíam a paisagem da área.

Pessoas passavam e principalmente os

homens observavam com discrição a

presença do pesquisador em questão e

estabeleciam uma comunicação com o olhar

ou gestos discretos. Um jovem “enrolava”

seu cigarro de maconha. Ao ser observado, o

jovem parecia tentar esconder o cigarro, mas

antes foi feito um gesto de que ficasse à

vontade. Ele, sorrindo levemente,

prontificou-se a oferecer, mas de antemão

apenas houve um outro gesto de “obrigado”. Jonatan comentou em seguida que os usuários

temem ser repreendidos por policiais, motivo que todo “estranho” que entra na área é visto

com desconfiança. Outras pessoas chegaram próximo do jovem usuário, no entanto, por um

motivo ou outro não acenderam o cigarro, apenas continuavam a observar a presença daquele

estranho a fazer fotografias da degrada Igreja do Pilar.

O mau cheiro exalava da areia escura na parte de trás da Igreja, devido à falta de

saneamento. Após observar a falta de estrutura da área de entorno desta, passamos a percorrer

as diversas ruas da Comunidade, onde pode-se fazer fotos das ruas e dos antigos casarões que

Iilustração 22. Largo da Rua São Jorge. Foto do autor (2006)

63

foram apropriados pelos moradores. Em alguns desses casarões bastante degradados, havia

uma aglomeração de casas que lembrava um típico cortiço. Atento às nossas impressões

comentava Jonatan: “aqui as pessoas encontram algum jeito de sobreviver”.54

Por um momento nosso amigo resolveu contar sobre parte de seu trajeto de vida: de

usuário de drogas, pois utilizou-as como forma de fugir da dura realidade da infância pobre e

sem algum recurso, ao culto evangélico que o levou a acreditar em Deus e não precisar mais

fugir de si mesmo.55 Emocionado, lembrou-se dos antigos amigos que não “superaram” o uso

de drogas e viveram parte da “curta” vida a assaltar pessoas e furtar carros. Mais adiante

observamos um estacionamento de carros improvisado no entorno das ruas da Comunidade,

os quais eram, segundo Jonatan, de funcionários da prefeitura, de lojas e da fábrica do Pilar.

Antes de sair da área, ao conversar com uma velha senhora, a qual não quis identificar-se,

perguntamos sobre um dos pontos que chamava bastante a atenção: em quase todas as casas

havia pelo menos um adesivo com fotos ou nomes do Presidente Lula, candidato à reeleição

pelo governo federal e Eduardo Campos, candidato ao governo estadual de Pernambuco.

Após a pergunta, ela respondeu sorrindo: “O Bolsa Família, meu querido. Eles nos ajudam

com o Bolsa Família”.56

Estas primeiras impressões nos possibilitou remeter à noção que Michel De Certeau

atribui sobre o cotidiano, na sua forma de buscar os significados e narrar a prática da

sociabilidade dotada de conflitos, mas quase invisível, do outro:

54 Depoimento concedido ao autor, na Comunidade do Pilar, Bairro do Recife, 16/10/2006. 55 Depoimento concedido ao autor, na Comunidade do Pilar, Bairro do Recife, 16/10/2006. 56 Depoimento concedido ao autor, na Comunidade do Pilar, Bairro do Recife, 16/10/2006.

Ilustrações 23 e 24: Fotos do autor, 2006.

64

O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se deve esquecer este “mundo memória” [...] é um mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres. Talvez não seja inútil sublinhar a importância do domínio desta história "irracional” ou desta “não-história” [...]. O que interessa ao historiador do cotidiano é o invisível... (Certeau , 1996, p.31)

Decerto, o ambiente é considerado “insalubre”. Pode-se verificar a falta de

organização dos espaços, as ruas estreitas e sem calçamento, a ocupação desordenada do solo

e a ausência de saneamento básico adequado. A estrutura geral do local é deficiente,

verificamos a ausência de áreas de lazer, motivo que leva as crianças a brincarem em meio

aos esgotos e lixos espalhados por diversas ruas no interior da Comunidade, como também a

se deslocarem para outras áreas do bairro, principalmente para a Praça do Arsenal. No

levantamento feito pela prefeitura constatou-se que há várias incidências de incêndios devido

à ligação clandestina dos serviços energia elétrica e alta incidência de doenças infecto-

contagiosas.57

Como foi possível observar, a população do Pilar vive uma série de problemas sociais

e econômicos, demonstrando uma zona com concentração urbana bastante problemática, o

que reforça o quadro da segregação socioespacial da cidade do Recife. Entretanto, os planos e

programas referentes à comunidade, já demonstrados no âmbito desta monografia,

57 PCR/URB/ERBR – Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social, 2002 – Recife, 2002.

Ilustrações 25 e 26. Cenários da Exclusão. Fotos do autor, 2006.

65

explicitavam a importância de incluir a Comunidade como prioridade para o trabalho

municipal.

O documento do Programa de Requalificação Urbanística e Inclusão Social foi

lançado no ano de 2002, embora, vendo a realidade que vivem estas pessoas, não percebemos

muitas transformações até o momento em que foi feito a pesquisa, ou seja, um tempo de quase

5 anos. Considerando a complexidade do Programa almejado pela atual administração, no

qual as mudanças seriam feitas de forma gradativa, pouco foi feito, além da inclusão de

alguns jovens em programas culturais e sociais desenvolvidos pelo Porto Digital, como

destacamos. Ademais, no decorrer da pesquisa uma nova expectativa pode ser criada para a

população com o anuncio de um investimento de R$ 20 milhões para a urbanização da

Comunidade, em decorrência do Plano de Aceleração do Crescimento, coordenado pelo

Governo Federal, na atual gestão do Governo Lula (2007-2010), pelo qual a cidade recebeu

uma ordem de cerca de R$ 400 milhões com vistas à implementar obras estratégicas para a

cidade.58

***

Além da Comunidade podemos destacar outro espaço “contra-enobrecido”, a Rua da

Moeda, localizada como setor de interesse do Plano de Revitalização, no Pólo Moeda.

Atualmente a Rua está interditada para as reformas por conta de um projeto reurbanização

paisagística, incluso no Plano de Revitalização. Esta concerne à criação de canteiros, alocação

de bancos, arborização e estacionamento para carros de clientes do Shopping Paço Alfândega.

De certa forma, esta nova intervenção, evidencia a continuidade das práticas de

enobrecimento no bairro, assim nos permite reforçar os aspectos que evidenciamos

anteriormente. Estes serão retratados à medida que descreveremos os usos observados no

local, para depois procurarmos uma aproximação desta intervenção às políticas que seguem a

lógica do enobrecimento urbano.

O Pólo Moeda apresenta características singulares em relação aos outros espaços e

atividades do bairro. Já estudado por Leite (2002, 2004) este espaço de consumo e

sociabilidades “diferenciadas”, é bastante freqüentado por um público “alternativo”, com

gostos e estilos bastantes variados (roqueiros, mangueboys, skatitas, artistas populares etc.),

58 Tivemos acesso a essa informação através do portal da Prefeitura do Recife na notícia “Prefeito fala sobre PAC em coletiva” (http://noticias.recife.pe.gov.br/)

66

geralmente formado por “grupos de jovens com menor poder aquisitivo, constituídos em sua

maioria por jovens sempre em busca de diversão gratuita, passaram a se encontrar na área

menos fashion da cidade: A Rua da Moeda” (Junqueira, 2006, p.152). Assim, podemos

encontrar um público bastante heterogêneo, em relação àquele voltado ao turismo.

Durante a tarde, a Rua da Moeda e entorno apresenta um movimento rotineiro de

pessoas que trabalham nos locais próximos (Paço Alfândega, bancos, farmácias etc.) que se

dirigem aos ótimos restaurantes de comidas típicas e caseiras de Pernambuco. O diferencial

pode ser percebido à noite. Os usos modificam-se e a rua torna-se um lugar em que as

sociabilidades são marcadas por um conjunto de ações sociais distintas de outros do bairro.

Para prosseguir o fundamento desse argumento, deve-se antes, discorrer sobre algumas

noções que sugerem este caráter transformador. Para Leite (2002, 2004), essas ações, por

resignificarem os sentidos conferidos pelas estratégias aos lugares e modificarem os usos do

local, desdobram-se em tipos de contra-usos. Esse autor desenvolve esta noção a partir de

outras duas referências: as noções de “estratégia” e “tática” concebidas por Certeau (1994) e

as noções de “paisagem de poder” e “paisagem vernacular” trabalhadas por Zukin (2000b),

enquanto categorias que constroem e reconstroem os usos dos espaços. A noção de estratégia

pode ser assim concebida:

o cálculo (ou a manipulação) das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos e ameaças [...] (Certeau, 1994, p. 98).

Dessa maneira, relacionando à noção de “poder”, entende-se por “estratégia” como um

meio em que as instituições dominantes constroem suas paisagens e delimitam os usos a partir

de uma imposição visual da estética dos espaços da cidade, como concebe Zukin (2000b).

Correlacionando essa mesma análise à noção de “vernacular”, a “tática” configura-se,

segundo Certeau, como a “arte do fraco” ou aquela que é “determinada pela ausência de

poder” e se opõe à lógica institucional das estratégias, consistindo e protagonizando

criativamente as ações sociais dos sujeitos que praticam a realidade, como discorre Certeau

(1994). Assim, de acordo com este autor, entende-se por “tática”:

a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o

67

organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, [...]: a tática é movimento ‘dentro do campo de visão do inimigo’ [...] e do espaço por ele controlado (Certeau, 1994, pp. 100-101).

Neste sentido, a trama social é desenvolvida a partir de sociabilidades consideradas

marginais (Arantes, 2000) que subvertem os usos atribuídos a um determinado espaço (Leite,

2004). No caso da Rua da Moeda e arredores (Ruas Tomazina e Mariz e Barros), essa

“subversão” é explicita quando nos deparamos com determinadas situações às quais tomamos

a noção de contra-uso para descrevê-las, portanto:

quando associadas à dimensão espacial do lugar, que a tornam vernacular, constituem-se em um contra-uso capaz não apenas de subverter os usos esperados de um espaço regulado, como também de possibilitar que o espaço que resulta das “estratégias” se cinda para dar origem a diferentes lugares, a partir da demarcação socioespacial da diferença e das resignificações que esses contra-usos realizam (Leite, 2004, p.215)

***

Era intenso o movimento de pessoas,

a maioria formada por grupos de jovens, em

um sábado à noite, as Ruas Moeda,

Tomazina e Mariz e Barros, todas ligadas

uma à outra pelo grande fluxo de pessoas,

que trafegavam sob uma iluminação

precária. As características arquitetônicas

deste Pólo apresentavam-se inalteradas à

reforma urbana do bairro, sendo possível

observar os edifícios com condições

deterioradas e pinturas descascadas ou com

paredes pichadas e a existência de alguns bo rdéis – um deles ficava acima do antigo e famoso

bar Pina de Copacabana. A luz vermelha que emitia pelas janelas, onde algumas peças

“intimas” estavam dependuradas, assinalava o movimento do bordel. Não somente o

heterogêneo público consumidor animava as ruas, os bares e os restaurantes do Pólo Moeda,

como também havia também uma grande concentração de ambulantes e vendedores

informais, dispostos nas calçadas ou andando à vontade nos espaços das ruas. Essa

observação é confirmada nos dizeres de Araújo (2004):

Ilustração 27. Mapa do Pólo Moeda. Referência Cartográfica: Mapa-Base Bairro do Recife/URB

68

Na Moeda, abriga-se uma população que faz jus à fama de underground do bairro: marinheiros, estrangeiros, prostitutas em busca de companhia, meninos cheirando cola e pedindo “um dinheirinho”, ambulantes vendendo pipoca, batatas fritas, pastel, caldo de cana e principalmente, bandos de jovens reunidos em torno de pequenos botecos ou simplesmente sentados nas calçadas, comendo batatas fritas, bebericando vinho barato, trazido de casa em garrafas plásticas de refrigerante. As fronteiras são visíveis e percebidas pelos jovens que freqüentam a área (Araújo, 2004, p. 115-116 apud Junqueira, 2006, p. 152).

A dispersão de vozes e sons de

músicas diversas também dava vida ao local,

mesas e cadeiras tomavam contam das

mediações das ruas. Na Rua Tomazina, por

exemplo, era preciso desviar de pessoas e

cadeiras espalhadas, a estreita rua ficava

completamente tomada, de uma ponta à

outra. Nas outras ruas do bairro, inclusive na

Rua do Bom Jesus, havia pouco movimento

nos bares e calçadas.

Outras características apontam as

sociabilidades existentes naquela área além

do tipo que foi descrito acima. Em uma das oportunidades que tive para entrevistar algum

usuário do bairro, havia um tom de descontração na fala de Raquel: “adoro esse lugar, mesmo

que eu não venha sempre, pois tem muitos pontos legais no Recife [...] é muita energia e

liberdade pra você curtir e aproveitar. Apesar de algumas coisinhas que incomodam, aqui é o

melhor do Recife Antigo”.59 Nesse mesmo sentido, essa opinião é compartilhada por Paula:

“Olha na verdade não gosto muito de lá não. Chego lá a galera fica usando ou vendendo muita

droga, ai eu não uso não, sabe? Eles chegam e tão invadindo o espaço de quem não quer, mas

eu gosto dos bares da lá, tem o Burburinho e outros que às vezes vou”60. Este “pequeno

incomodo” relatado por Raquel e explícito por Paula, refere-se aos outros “usos” que se

apresentam naquelas ruas, ou como chamaremos, o incomodo era devido aos “contra-usos”

(Leite, 2002, 2004).

59 Maria Raquel de Lira Gomes, 22 anos, em entrevista concedida ao autor, na Rua Tomazina, Bairro do Recife, 14/10/2006. 60 Paula Cristina Gomes, 21 anos, em entrevista concedida ao autor, na Rua Tomazina, Bairro do Recife, 14/10/2006.

Ilustração 28. Cenários de contrastes da Rua da Moeda. Foto do autor, 2006.

69

Nestas ruas havia um pequeno número de prostitutas e um razoável número de

usuários de entorpecentes, como maconha e cocaína. O cheiro de cigarro de maconha que se

espalhava no parco vento era forte em alguns pontos, como também havia um número alto de

vendedores. Ao constatarmos a venda desses “elementos” ilegais, percebemos que os

vendedores, impondo suas táticas em movimento, ficavam nos principais acessos das ruas.

Muitas pessoas que chegavam ao local comentavam sobre o “cheiro”, os mais comedidos

retornavam ou mudavam o trajeto e outros eram abordados pelos vendedores de maneira

explícita, o que causava até certo impacto em algumas pessoas que, ora afastavam-se ou

acenavam um sinal de negativo, ora olhavam para os lados como uma prevenção ou

aceitavam a oferta da droga. Quando referimos que a oferta da droga era “explícita”, deve-se

ao fato de que os vendedores abordavam de forma, muitas vezes indiscriminada, ao oferecer

insistentemente: “Maconha, maconha, maconha...”; quando o cliente negava a erva, outro

chegava e oferecia: “Coca, coca, coca...”, senão, “pó, pó, pó...”. Geralmente abordavam

assim, repetindo diversas vezes o nome de cada produto.

Todas as vezes em que saíamos de um local para o outro, éramos abordados por

diversos vendedores. Em uma dessas ocasiões, quando um deles se aproximou para oferecer

seu produto, aproveitamos para perguntar o valor: o vendedor ofereceu uma diversidade para

cada produto (variava entre R$ 2,00; 5,00 e 10,00 a maconha e entre R$ 10,00 e 20,00 o

pacotinho de cocaína – diga-se de passagem, eram os dois únicos produtos oferecidos).

Aproveitamos também para perguntar se eles ofereciam a qualquer pessoa que chegasse ao

local, como foi suposto. Segundo nos informou um dos vendedores, que preferiu não se

identificar, pois a conversa seria gravada, a oferta depende do movimento: “Às vezes é só

pros que freqüentam aqui. A gente já reconhece, mas quando o movimento ta fraco, a gente

apela”. Questionado sobre rondas policiais na área, comentou que sempre há viaturas

passando, contudo não paravam com constância: “Sempre tem. Às vezes eles dão problemas,

às vezes param ou passam logo, mas eles sabem da gente, só descem do carrinho quando

querem encrencar, mas aí a gente se mistura e se finge de flanelinhas”.61 Após conseguir a

entrevista e ao agradecer pelas informações, ele ainda insistia em vender alguma coisa ou que

fosse ajudado com um “trocadinho”: “Ajuda ai chegado. Vim de Alagoas e a coisa aqui ta

boa. Trouxe de lá, dá uma de dois reais, senão me arranje uns cinqüenta centavos de troco”.

61 Depoimento concedido ao autor, na Rua Mariz e Barros, Bairro do Recife, 14/10/2006.

70

Importante ressaltar que havia nessas ruas diferentes grupos, os quais, entre usuários e

não-usuários de entorpecentes, caracterizavam um tipo de sociabilidade gregária62 (Sorj,

2006), bastante diferente do que podia ser visto nas áreas enobrecidas do bairro. A ‘noite’

começou quando um grupo de músicos estendeu uma lona preta na Rua Tomazina e

despacharam seus equipamentos de som em cima de uma mesa improvisada. Um estilo Rock

n’ Roll que mesclava a tradicional sonoridade dos anos 70 e com os modernos arranjos atuais,

foi a atração principal. Enquanto isso os usos “táticos”, continuavam a manifestar sua força

pelos diversos sentidos e atores sociais.

***

Como dissemos antes, a Rua da Moeda caracteriza um típico espaço que propicia um

modelo de intervenção no sentido aqui já discutido. Servindo estrategicamente como pano de

fundo para o público usuário do Shopping Paço Alfândega, a intervenção no Pólo Moeda

segue os parâmetros do enobrecimento. Segundo Sebastião Carlos de Oliveira, membro do

Centro de documentação do Escritório de Revitalização do Bairro do Recife, o projeto de

revitalização continua em andamento:

Esse projeto de revitalização vai existir sempre porque ele inclui a manutenção e inclui esses movimentos agora com a exposição do museu na Bom Jesus, a Alfredo Lisboa vai ser recuperada, a Moeda está interditada. O projeto pra Moeda é paisagístico, urbanístico, é pra humanizar aquele local. Até os bares continuarão funcionando. Mas acredito que os usos terão mudanças. O tratamento é a Rua da Moeda, é rolamento, arborizar, bancos, estacionamento, tem o Paço Alfândega, o Chanteclair que é um projeto grande [...]será transformado em cinemas e cafés63.

Nas palavras de Oliveira, podemos compreender a idéia de “humanizar” e mudanças

dos usos e do tratamento destinado à rua, como uma intervenção voltada a pulverizar essas

atividades “marginais” e atribuir nova sociabilidade àquele Pólo, cuja idéia estratégica

articula-se à projeção que o Shopping Paço Alfândega tem para o turismo e o consumo no

Recife Antigo, que também é um cartão postal da cidade. O Shopping foi fundado no antigo

62 Bernardo Sorj entende por sociabilidade gregária a partir da inserção de redes pessoais e na valorização dos contatos pessoais, fundado em um forte corporativismo e no interesse dos grupos “em relação a uma maior individualização ou identificação com valores pessoais [...] é uma cultura pouco propensa à confrontação ou à crítica aberta, já que a pessoa nunca sabe quando poderá “precisar” da outra num sistema cuja base de funcionamento é o favor e a boa vontade” (2006, p.31). 63 Em entrevista concedida ao autor, no Centro de Documentação do Escritório de Revitalização do Bairro do Recife, em 22/03/2007.

71

prédio da Alfândega datado de 1732, situa-se na Rua Alfândega, um local estratégico para a

visitação e apreciar uma bela paisagem da cidade do Recife.

A estética externa e interna do Paço

Alfândega diferencia-se dos demais

Shoppings do Recife. O público também é

distinto. Em seus 3 andares, lojas de padrão

voltado à clientela de alto poder aquisitivo,

mesclam suas características modernas com

a arquitetura da área interna do Paço

Alfândega, a qual recupera elementos

tradicionais do estilo arquitetônico do bairro.

No piso do térreo há uma linda Rosa dos

Ventos e algumas pinturas que sugerem um estilo simbólico de outras artes. A vigilância é

outro ponto que deve ser considerado no âmbito deste trabalho.

Voltado ao público elitizado, a vigilância é constante e disciplina o fluxo de pessoas,

notadamente com os “olhares” atentos dos seguranças e câmeras. Em termos de análise, o

empreendimento constitui uma paisagem de poder (Zukin, 2000b) a contrapor a paisagem e

usos vernaculares da Rua da Moeda. O ideal de embelezamento e higienização do local se

mescla à disposição estratégica do Paço Alfândega. Chegando à cobertura do shopping

podemos visualizar as paisagens do Recife em perspectiva e uma multiplicidade de arranjos e

valores que situam as imagens cenográficas da cidade, como chamou Arantes (2000). Da

Ilustrações 30 e 31: Térreo e vista panorâmica do Paço Alfândega. Fotos do autor, 2007

Ilustração 29. Fonte: Atlas Histórico e Geográfico do Recife. Série Obras de Consulta vol.9 Fundação Joaquim Nabuco - Editora Massangana Capturado em: http://www.longoalcance.com.br/brecife/banco

72

mesma forma podemos visualizar instituições simbólicas de poder (Zukin, 2000b, Leite,

2004), mediante, por exemplo, as inscrições arquitetônicas da Igreja de São Pedro e

urbanísticas do entorno do Rio Capibaribe, formado pelas pontes Maurício de Nassau e

Buarque de Macedo, formando uma bela paisagem entre os mangues.

***

Ao longo dessa descrição comentamos que o Recife Antigo proporciona sensações de

sedução e insegurança. Uma das causas que medeiam essas sensações tem sido preocupação

dos visitantes do bairro. Conforme relatou Maria Raquel de Lira Gomes:

Às vezes quando me chamam pra cá, já reclamo logo: poxa no Recife Antigo de novo? Não tem outro lugar não?! [...] Eu gosto muito, tudo aqui me atrai, só acho que a prefeitura tem que olhar mais por lá. É muito abandonado! Pra você ter uma idéia, uma das pontes estava sem iluminação o que é um perigo pra quem passa ali à noite. O prefeito só cuida na época do carnaval, mas carnaval tem turista não é? [...] Quem precisa de ônibus pra voltar pra casa passa por perigos sempre, principalmente porque é ponto de prostituição e drogas. Quando o ônibus não passa pela Marquês, temos que atravessar as pontes e aquelas pontes são um perigo. Nós vamos, mas é arriscado passar ali só à noite.64

Tanto pela “frase de efeito” recitada pelo vendedor ambulante, quanto pelas

preocupações expressadas pelas camadas menos abastadas, as primeiras impressões que esse

64 Maria Raquel de Lira Gomes, 22 anos, em entrevista concedida ao autor, na Rua Tomazina, Bairro do Recife, 14/10/2006.

As imagens cenográficas de lugar: vista panorâmica da cidade do Recife. Ilustração 32: vista da Ponte Maurício de Nassau, da copa do Shopping Paço Alfândega. Ilustração 33: vista da Torre Malakoff. Fotos do autor (2006)

73

tipo de discurso causa poderia levar qualquer um a acreditar que o bairro enobrecido está

passando por um período de declínio de suas atividades norteadoras do projeto. Neste caso,

principalmente as atividades turísticas e de consumo na Rua do Bom Jesus foram afetas,

sofrendo certo “esvaziamento” durante a gestão do Prefeito João Paulo.

Este esvaziamento tem provocado diversas manifestações de descontentamento a

muitos empresários que investiram na ocasião da implementação do PBR. Segundo Antônio

Gomes dos Santos, 72 anos, proprietário do bar “As galerias”, fundado no bairro desde 1928,

não há casos de violência no Recife Antigo, apenas alguns pequenos crimes, como

arrombamentos de automóveis e assaltos esporádicos. Para ele falar sobre violência influi em

parte para as pessoas não utilizarem o bairro como ponto de encontro, pois não há a segurança

necessária levando as pessoas a ficarem com receio de serem assaltas. Mas “violência bruta,

de tiros, assassinatos aqui não existe isso não [...] mas à noite não existe policiamento, quando

dá dez horas ou onze da noite, não existe um policial por aqui”, relata Antônio.65

Segundo Sebastião Carlos de Oliveira, para a orientação política da atual

administração, o foco predominante de ações concretas por parte do poder público ganhou

nova direção. Enquanto a aliança política anterior se detinha no poder ao longo de 10 anos, a

oposição (atual gestão em situação) trazia em suas campanhas para governos municipal e

estadual o tema da violência no bairro como forma de demonstrar que o PBR não seria o

suficiente para levar à comunidade daquele bairro o desenvolvimento que se esperaria

sustentável. De acordo com Oliveira, o que mudou de fato, mas que concorreu para o

desaquecimento das atividades do bairro foi a “inversão de prioridades”66. Segundo nos

informou, a prefeitura discordava das características do PBR e como eram feitas as tentativas

de manter a organização social nas ruas, “com todos aqueles serviços envolvendo o Projeto

Hora de Acolher”. Estaria a prefeitura dando ênfase a projetos sociais que envolvem,

principalmente, a inclusão social, educação, profissionalização para a Comunidade do Pilar:

“Sem esses projetos não há o resgate da memória. Chama-se ‘memória’ porque se pretende

fazer do Bairro um espaço de memória para a população. Ao invés de grandes festas e eventos

a prioridade é buscar a melhoria das escolas, creches e a construção de postos de saúde”.

A fala de Oliveira entusiasma a quem não conhece a realidade da Comunidade, cuja

situação tem sido velada pelo poder público no âmbito do PBR, até o momento presente.

Então, se houve tal “inversão”, por que a população do Pilar continua vivendo à margem do

65 Em entrevista concedida ao autor, na Rua do Bom Jesus, Bairro do Recife, 25/03/2007. 66 Em entrevista concedida ao autor, no Centro de Documentação do Escritório de Revitalização do Bairro do Recife, em 22/03/2007.

74

“resgate da memória” atribuída a outros redutos do Bairro do Recife Antigo, a exemplo das

escavações que fundaram o Museu a céu aberto na Rua do Bom Jesus? Se a prioridade é a

população carente do Pilar, por que passados quase 5 anos, como constatamos em nossa visita

ao local, nenhum projeto para a infra-estrutura da Comunidade foi feito? Para contrapor a

noção de cidadania e memória como foi colocada, “da qual se pretende fazer do Bairro um

espaço de memória para a população”, partiremos da perspectiva utilizada por Sorj (2006) e

Arantes (2000).

Segundo Sorj (2006, p.25) “a cidadania refere-se sempre a uma forma particular de

pertencer a uma comunidade e de acesso a uma série de direitos”. Esta vem a significar o

direito de incluir uma gama indivíduos na vida comum da cidade, dando-lhe direito de

participar ativamente. Mas é justamente pelas limitações práticas do campo político, por

exemplo, que o tema cidadania esbarra. Para Sorj, estas limitações revelam “contradições no

âmbito dos valores e incongruências no nível das principais instituições constitutivas da

cidadania moderna: o indivíduo e a comunidade nacional” (p.105).

Para Arantes (2000), o tema cidadania envolve dois importantes aspectos: “sentimento

de pertencer, compartilhar interesses, memórias e experiências com outrem, sentir-se parte de

uma ampla coletividade, possuir valores em comum e sentimentos profundos de

identificação” (p.132). Partindo dessa concepção, a cidadania estabelece uma ponte entre a

localização do indivíduo no contexto social e sua identificação plena que o situa, o inclui e

exclui no âmbito da coletividade e no universo de direitos e responsabilidades políticas e

sociais. Desse modo, conforme este autor, a cidadania estabelece uma ponte entre o

sentimento de pertencer – sentimento que leva ao indivíduo sentir-se parte da nação – e o

sentimento de reconhecimento da condição de cada um, no sentido que “regula o acesso a

determinados recursos materiais e simbólicos” (Arantes, 2000, p.133) e o acesso aos bens

coletivos e de consumo oferecidos pela sociedade e pelo Estado (Sorj, 2006).

Sem a pretensão de fazer uma análise mais ampla, entendemos nesse sentido, que a

perspectiva de integrar a Comunidade do Pilar à vida comum do bairro não poderia ser

somente a partir de uma “qualificação” das capacidades profissionais de seus moradores.

Particularmente outras questões estão implicadas nesse conjunto de significados, como

comentamos anteriormente, sobre os possíveis conflitos advindos da discriminação social,

cultural e econômica, que traduzem preconceitos velados na sociedade brasileira. Dada a

sociabilidade “marginal” que, ao longo de muito tempo, os moradores foram condicionados a

viver, a pretensão de fazer um projeto que viabilize, retomando De Certeau (1996), o “mundo

memória”, na perspectiva destinada ao fluxo turístico implicaria nesses possíveis conflitos e

75

somente através de estudos mais elaborados poderíamos tecer as bases desta possível

integração com a sociedade.

Ao assumir a prefeitura, o atual prefeito deixara claro que não permaneceriam os

incentivos para os eventos naquela localidade, segundo nos informou Cassius Costa Carvalho,

proprietário do Arsenal do Chopp, bar situado na Rua do Bom Jesus67. De forma critica,

Cassius observa da seguinte maneira: “O problema aqui é eminentemente político. Muda de

gestão acabam os incentivos. O público alvo inicial do projeto da revitalização era o público

de turismo para mostrar o que é nossa arquitetura, nossa história do bairro, a cultura, tudo,

tudo era para ser colocado aqui [...] hoje em dia eles só visam os grandes eventos. É o

carnaval, é o São João”68. Na memória de Cassius, o sucesso do bairro ocorreu durante

inauguração no final de 97. Até o ano de 2001 a lugar vivia seu auge, mas desde então, o

declínio tornou-se peça inevitável de um ideário político diferenciado, o qual, ao invés dos

lucrativos eventos na rua, a exemplo do “Domingo na Rua” (evento que voltado a animações

infantis), visava alguma definição para problemas gerais da cidade, como a construção de

escolas, postos de saúde etc. Alguns sobreviveram até 2003, embora continuasse o declínio,

mas com uma curva menos acentuada. Mas em 2004 a gestão não continuou mais a promover

os eventos69.

Um dos problemas responsáveis por essa queda das atividades seria a falta de

planejamento habitacional, de fácil observação ao passear pelo bairro, justamente como

percebe o proprietário do Arsenal do Chopp, que sendo o cartão de entrada do Recife, o bairro

foi tomado como uma área praticamente comercial, além de ser afastado dos locais de áreas

residenciais. Desta forma, o problema foi para consolidar a sustentabilidade do projeto, mas

além disso, a mudança de gestão viria priorizar novos setores da Cidade (escolas municipais e

postos de saúde etc), retirando os incentivos públicos, o movimento no bairro já passava por

um período de declínio. Sem uma população suficiente, pois poucas pessoas habitavam a Ilha,

os comerciantes locais não conseguiram sustentar a planilha orçamentária durante todo o ano.

67 Em entrevista concedida ao autor, na Rua do Bom Jesus, Bairro do Recife, 16/10/2006. 68 Em entrevista concedida ao autor, na Rua do Bom Jesus, Bairro do Recife, 16/10/2006. 69 Em entrevista concedida ao autor, na Rua do Bom Jesus, Bairro do Recife, 16/10/2006.

76

Embora as atividades tenham entrado em relativo declínio, eventos como o Domingo

na Rua e Feirinha do Bom Jesus permanecem construindo sociabilidades na Rua do Bom

Jesus. Diversos contra-usos e assimetrias que se estruturaram neste local, marcando ruídos

visuais e fissuras no cenário enobrecido (Leite, 2004, p.231) permanecem indiferentes ao

“declínio” das atividades da rua.

Ilustrações 35 e 36. Contra-usos na Rua do Bom Jesus. Fotos do autor, 2007

Ilustração 34: cenários da exclusão e enobrecimento. Foto do autor (2007)

77

Em nossa passagem pelas Av. Marques de Olinda e Rio Branco, constatamos a

presença de pessoas em situação de rua. Já na Rua do Bom Jesus muitos ambulantes se

infiltravam nos espaços concedidos às barracas. Alguns deles apressavam-se em abordar

quem passasse por ali. Vendendo produtos baratos, chamavam a atenção de crianças que se

prontificavam em manifestar vontade e chamavam a atenção de seus pais. Outro aspecto

interessante, o qual discorreremos através de imagens e alguns comentários adiante,

tentaremos interpretar de acordo com a noção de sabedoria ou trampolinagem que De Certeau

(1994) conceituou para descrever uma retórica de práticas e ações sociais que interferem na

sociabilidade da seguinte maneira:

O que aí se chama sabedoria, define-se como trampolinagem, palavra que um jogo de palavras associa à acrobacia do saltimbanco e à sua arte de saltar no trampolim, e como trapaçaria, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos contratos sociais. Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outro, caracterizam a atividade, sutil tenaz, resistente, de grupos que, por não ter um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de representações estabelecidas. (Certeau, 1994, p.79)

Essa concepção apresenta um modelo de prática social que contribui para fortalecer as

“táticas” ou “arte do fraco” dentro condições em que os mecanismos de reflexividade

institucional, ou nas palavras de Giddens (2002) mecanismos que regularizam “o

conhecimento sobre as circunstâncias da vida social como elemento constitutivo de sua

organização e transformação” (p.26). Assim, esta arte de saber-fazer estabelece uma conexão

entre os diferentes estilos de vida através de uma determinada “confiança” que liga nossa

auto-identidade à apreciação dos outros (Giddens, 2002, p.41)70, posto um contexto em que o

conflito social que caracteriza o espaço público e a paisagem urbana, a exemplo das

desigualdades culturais, étnicas, profissionais etc., que estabelecem, dado a flexibilidade das

fronteiras simbólicas, um relacionamento na desigualdade (Arantes, 2000, p.149) entre os

atores sociais e segregam os espaços político, cultural, econômico e socialmente.

As imagens apresentadas a seguir, sugerem uma análise mais próxima para o que

argumentamos como problemática desta pesquisa. Vejamos então como elas podem estar

relacionadas ao “movimento” dos atores sociais que em diversos contextos e perspectivas,

apresentam suas representações, táticas, estéticas e saberes. Assim como estas e outras ações

70 No sentido que Giddens (2002) concebe: “Em suas manifestações genéricas, a confiança está diretamente ligada à obtenção de um senso precoce de segurança ontológica. A confiança [...] afasta ameaças e perigos potenciais que até mesmo as atividades mais corriqueiras da vida cotidiana contêm. A confiança nesse sentido é fundamental para um “casulo protetor” que monta guarda em torno do eu em suas relações com a realidade cotidiana” (p.11).

78

chamam a atenção para a pesquisa sociológica, como parte de uma dada realidade social que

nos leva, como Weber (2004) concebeu, à necessidade de compreender as possíveis instâncias

que abrangem e elaboram a sociabilidade moderna, dotada de “concepções de mundo” que se

relacionam em múltiplos sentidos – ou como o próprio Weber refere, a vida social não

constitui em si mesma uma realidade ordenada, mas a partir de uma trama inesgotável de

ações individuais ou coletivas, cujas regularidades estão representadas em distintos arranjos e

sentidos que se ordenam e desordenam.

Ilustração 37 Ilustração 38

Foto do autor, 2007. Foto do autor, 2007.

Ilustração 39

Foto do autor, 2007.

Ilustrações 40-44

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Imagens e cenáriosdo velho Bairro. Fotos do autor, 2007.

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Considerações finais

De acordo com as leituras e pesquisas estudadas e os fatos descritos no presente

trabalho, é perceptível que o tema intervenções urbanas abrange um assunto bastante amplo e

que nos levaria a uma infinita discussão sobre suas conseqüências, sobretudo porque decorre

de diversos fatores, o que nos permite observar com maior dimensão quanto aos modelos de

intervenções empregados em diversos países do mundo e no Brasil. Quando situados na

lógica do enobrecimento, a qual envolve diversos critérios, como a inscrição das cidades nas

práticas de mercado globais, ao mesmo tempo, estimula a exclusão social das camadas de

renda mais baixa ou populares. Como relatamos, desde as primeiras intervenções no século

XIX até hoje, o conjunto das obras realizadas nas cidades, contempla uma parcela das

sociedades, a qual tem um diferenciado poder aquisitivo, cultural e político, enquanto a outra

parcela, as camadas pobres permanecem à margem destes processos.

Dessa forma, a intensificação dos processos de urbanização tornou-se um fator central

no tocante ao desenvolvimento do gerenciamento das cidades. Evidenciam-se, sobretudo

marcos importante nesta trama social, a exemplo da tentativa de coordenar as estruturas

sociais a partir da necessidade de ordenar o espaço urbano para que seus habitantes possam

participar, utilizar ou consumi-las. Esses projetos envolvem diversas ações políticas, as quais

contemplam trazer vitalidade aos lugares, promover os aspectos peculiares das paisagens, a

sociabilidade dos visitantes com a população local, a troca cultural e, dentre outros exemplos,

a melhoria na qualidade de vida e o desenvolvimento econômico. Para isso parcerias

institucionais e empresariais têm focalizado este modo de vida capitalista, contundo, devido à

própria lógica deste modo de vida, os mesmos demonstram fortes contradições, pois, são

processos excludentes os quais, como demonstramos, objetivam democratizar os usos dos

espaços urbanos a uma parcela da sociedade ao subtrair dos mesmos lugares, das paisagens,

das sociabilidades, da troca cultural e da qualidade de vida e econômica, uma grande parcela

já socialmente excluída.

O desenvolvimento desta análise propiciou verificar a seletividade desses processos, o

que implica no fortalecimento das desigualdades e das limitações das dimensões de uma vida

democrática. O caso da revitalização do Bairro do Recife pode ser analisado semelhantemente

às características das experiências de intervenções urbanas ocorridas nas demais cidades

citadas, não sendo ele único no Brasil. À medida que localizamos a importância da

reestruturação de importantes espaços das cidades, devemos, entretanto, observar como os

projetos têm sido realizados na esfera das políticas de intervenções urbanas para garantir a

81

pluralidade de seus usos. Por isso, é importante salientar que essas questões levantadas

permitem-nos perceber como a “modernização” de determinados espaços das cidades não

constitui projetos homogeneizadores, tornando um processo desigual e exposto a uma série de

contradições.

O caso da “Favela do Rato” no Bairro do Recife evidencia a importância de um tema,

cujas características sugerem uma análise que não se esgota no quadro que procuramos

delimitar. Como foi relatado no âmbito desta monografia, a favela, passados quase 10 anos

após a implementação do PBR, continua abandonada e degradada e permanece fora do

processo de revitalização, tornando-se uma área problemática. As informações apresentadas

neste trabalho podem ser tomadas por um aspecto importante: há a existência de projetos e

dados referentes a esta Comunidade, embora, ainda não foram aplicados de forma que

incidam a solucionar os problemas que a população do Pilar enfrenta. Ao contrário, não houve

interesse de diversos setores da sociedade e de instituições sociais que permitissem saneá-los.

Do acima exposto o que se evidência é um perverso efeito de segregação urbana, cujas

implicações resultam formas de exclusão socioespacial, político e econômica. A ausência de

projetos que apresentem parâmetros mais democráticos, vão de encontro à transformação

social almejada para a vida em uma sociedade formada por conjecturas modernas, como a

brasileira.

82

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