Participação e Exclusão na Criação de uma Área de Proteção Ambiental no Norte Fluminente
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XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA
28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ)
Grupo de Trabalho: Os Limites da Democracia
Participação e exclusão na criação e gestão de uma Área de Proteção
Ambiental (APA) no Norte Fluminense
Autora: Natália Morais Gaspar
Participação e exclusão na criação e gestão de uma Área de Proteção
Ambiental (APA) no Norte Fluminense
Este trabalho discute os avanços e limitações do processo participativo
através do estudo de caso a respeito da criação de uma unidade de
conservação (UC) no Norte Fluminense.
Trata-se de uma Área de Proteção Ambiental (APA)1, criada pela
prefeitura, cuja gestão foi atribuída a um Conselho Gestor deliberativo, formado
por organizações da sociedade civil e órgãos do governo municipal.
Recentemente, esta APA foi tema de trabalhos acadêmicos,
destacando-se uma dissertação de mestrado em Psicologia Social e uma tese
de doutorado em Geografia. Sem deixar de reconhecer a existência de grupos
alheios ou contrários à criação da unidade de conservação, ambos destacam a
“participação” e o papel da “comunidade”, através de seus representantes, no
processo de implantação da APA (Seabra 2005: 127; Cozzolino 2004: 121). E,
inclusive, utilizam estes elementos para justificar a escolha daquele local para a
realização de seus estudos.
Além disso, nas comunicações públicas e documentos da secretaria
municipal de meio ambiente (órgão criador da UC) e da própria APA, a sua
criação e as medidas subseqüentes de formação do Conselho Gestor e
elaboração do Plano de Manejo são descritos como um “processo participativo”
(por exemplo, Viva Rio 2003: p. 6).
A princípio, esta APA difere da maioria das APAs brasileiras pela rapidez
com que foram instalados os seus instrumentos de gestão – Conselho Gestor
deliberativo, Plano de Manejo, Zoneamento2. Segundo pesquisa feita com
1 SNUC, Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais. (Lei n 9.985/2000) 2 A lei 9998 de 2000, que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), no Art. 27, estabelece que o Plano de Manejo deve ser elaborado num prazo de cinco anos da criação da unidade, e assegura a “ampla participação da população residente” no caso das APAs e outras UCs de uso sustentável. O Decreto 4430, de 22 de agosto de 2002, regulamenta o Plano de Manejo (capítulo IV) e o Conselho (capítulo V), que pode ser consultivo ou deliberativo.
entidades presentes no workshop Panorama das Áreas de Proteção Ambiental
no Brasil3, com intenção de obter uma visão do estágio de implementação das
APAs: quanto à existência de Conselho Gestor, 18% das APAs o possuem e
1% declaram estar em formação; das 64 APAs pesquisadas, 45% não
possuem plano de manejo ou instrumento semelhante, e, em apenas 23% do
total das APAs, ele está em implementação; quanto ao Zoneamento, apenas
18% das APAs possuem este estudo (Cozzolino 2004: 44). Esta situação
permite indagar a respeito dos elementos que, numa conjuntura específica,
permitiram que esta unidade de conservação tivesse a sua implementação tão
agilizada.
Com base em pesquisa de campo para elaboração de tese de
doutorado, durante a qual foi realizado o acompanhamento sistemático da
formação do Conselho Gestor e de seus dois primeiros anos de atuação,
incluindo a elaboração de um Plano de Manejo para a Área de Proteção
Ambiental (APA), foi possível observar reorganizações nas relações de poder a
partir da interação de lideranças locais com os mecanismos da gestão
participativa.
Até então, alguns grandes proprietários intermediavam o acesso da
população à maioria dos serviços públicos e aos benefícios provenientes de
relações personalizadas com políticos. A transformação daquele distrito
serrano em APA se constituiu num momento emblemático de um processo
através do qual foi criada uma nova instância de poder, o Conselho Gestor da
APA. Com base no Zoneamento e nas recomendações contidas no Plano de
Manejo, foi atribuído ao Conselho Gestor o papel de promover uma
reconfiguração do espaço, através da regulação de toda sorte de atividades
interpretadas como interferências no meio ambiente.
Trata-se de um distrito serrano, cujos limites administrativos coincidem
com a demarcação da APA, e cuja ocupação se deu através do cultivo do café,
a partir do final do século XIX. Com a queda dos preços do café, principalmente
3 Organizado pela Fundação O Boticário e pela The Nature Conservancy do Brasil, com patrocínio da Agência de Cooperação USAID, o evento reuniu cerca de 70 pessoas, representando: 19 APAs federais, 38 estaduais e 12 municipais e 27 instituições (secretarias de meio ambiente, prefeituras e ONGs), pertencentes a 17 estados brasileiros (Guaryasssu 2003 apud Cozzolino 2005).
na terceira década do século XX, passaram a ser predominantes na região os
cultivos de subsistência, figurando a banana como principal produto comercial.
Houve decréscimo populacional e diminuição da atividade econômica,
associados a um isolamento infra-estrutural, principalmente de transportes e
telecomunicações, apesar da relativa proximidade a centros urbanos. O
reaquecimento da economia ocorreu com o turismo, a partir dos anos 80, mas
principalmente na década de 90.
Os atributos naturais da área já despertavam o interesse de pessoas da
cidade desde a década de 70, quando começaram a ser adquiridos terrenos
transformados em residências secundárias (para lazer e veraneio), algumas
das quais vieram a se tornar a residência principal de seus proprietários, muitos
deles interessados em adotar um estilo de vida diferente daquele que vinham
tendo nas suas cidades de origem. A fixação de moradores de origem urbana
tornou-se uma tendência crescente desde então. Associadas à presença de
pessoas da cidade, cada vez mais numerosa, surgiram, na década de oitenta,
e avolumaram-se no final dos anos 90, as iniciativas em prol da preservação do
meio ambiente. Da comunicação de problemas ambientais aos órgãos
competentes, mais freqüentes nos anos 80, à formação de organizações da
sociedade civil e participação no Conselho Gestor da APA, mais recentemente,
moradores de origem urbana que se fixaram no distrito vêm desempenhando
um papel fundamental na implantação da unidade de conservação naquele
território.
Em 1997, tive meu primeiro contato com a ONG ambientalista local,
identificada pelos estudos acima referidos como a instituição que pôs em
discussão a idéia de criar uma unidade de conservação no distrito (Cozzolino
2004: 64), ou que teve a iniciativa de “sensibilizar e mobilizar parte da
comunidade e o poder público” para a transformação da área do distrito em
APA (Seabra 2005: 120). À época, eu freqüentava a localidade na condição de
turista. Filiei-me à instituição e participei de algumas reuniões, além de
desenvolver um trabalho, ainda na graduação, sobre o uso da fotografia em
mobilizações ambientalistas. Havia indicações de que os integrantes da
organização procuravam aliar uma sincera e obstinada vontade de evitar o que
era interpretado como a deterioração dos atributos naturais da região,
especialmente das cachoeiras do Vale das Águas, à aspiração de criar meios
para fixar residência, ou ao menos freqüentar assiduamente a região, através
de trabalhos relacionados à proteção do meio ambiente.
Em 1999, presenciei duas reuniões de lideranças locais com um
“facilitador” do SEBRAE, para elaboração de um planejamento estratégico para
o turismo. Tomaram parte nesta atividade não somente integrantes da ONG
ambientalista, mas também da recém fundada associação comercial, que
sediava o evento. Boa parte daqueles que participaram da elaboração do
documento vieram, mais adiante, a participar, também, das negociações e
atividades de implantação da APA, na condição de lideranças comunitárias, à
frente de organizações e associações civis locais que viriam a ser fundadas ou
revitalizadas nos anos seguintes. Estas observações conduziam à impressão
de que havia moradores e empreendedores locais efetivamente empenhados
em preservar os atributos naturais da região, que foram se organizando em
instituições da sociedade civil e se capacitando para tomar parte na gestão da
futura unidade de conservação.
A literatura que trata do movimento ambientalista tem elaborado tipos
ideais para compreender as diversas inspirações e aspirações das correntes e
ramificações dos ambientalistas e suas idéias, inseridos ou não em
organizações civis ou órgãos do governo (Castells 2002: 141-166), Diegues
(1996), Milton (1993), Viola (1987). Neste estudo de caso, contribui para a
análise das motivações daqueles militantes não só a aproximação com os tipos
de movimentos ambientalistas, mas também com reflexões a respeito do neo-
ruralismo (Chamboredon 1980), (Carneiro 1999), (Giuliani 1990), uma vez que
havia indicações de que o apreço pela natureza local também pudesse estar
associado ao desejo de se estabelecer e permanecer na localidade.
Em janeiro de 2001 (antes, portanto, da criação da APA), tive meu
primeiro contato direto com trabalhadores rurais e pequenos produtores,
realizando entrevistas em diferentes regiões do distrito, que deveriam subsidiar
a elaboração do meu projeto de mestrado. Constatei um grande
descontentamento com relação à fiscalização ambiental, especialmente em
relação às queimadas que precedem a lavoura. Ao mesmo tempo, a maioria
desconhecia a realização de encontros para discussões e negociações em
torno da criação de uma área protegida. Havia indicações de diminuição das
lavouras e abandono das atividades agrícolas devido ao medo da fiscalização.
Retornei a campo em março de 2002, quando ocorreu a primeira
reunião, amplamente divulgada, a respeito da APA. Nesta reunião foram
indicados os futuros representantes da sociedade civil no Conselho Gestor, que
veio a ser oficialmente nomeado sete meses depois. A reunião foi palco de
tensas e acirradas discussões sobre o processo de criação da unidade de
conservação. Pela primeira vez, veio a público o descontentamento de uma
grande parcela da população, especialmente dos produtores e trabalhadores
rurais, com a desinformação dos moradores a respeito da APA, com a
fiscalização ambiental e com escolha, aparentemente prévia, daqueles que
viriam a representar a comunidade no Conselho Gestor. Os descontentes se
queixavam da ausência de representantes do verdadeiro povo do lugar. Foi
mencionado, também, que alguns dos representantes escolhidos para falar em
nome da comunidade eram “funcionários da prefeitura” (terceirizados via uma
cooperativa), o que os impediria de defender os interesses da população.
A partir da percepção destes conflitos, orientei minha pesquisa de modo
a captar a interpretação daqueles que manifestaram seu descontentamento na
reunião e da parcela da população em nome da qual eles se pronunciavam.
Dali por diante, acompanhei todas as assembléias da associação de
produtores e trabalhadores rurais em vias de constituição, a única organização
local visivelmente contrária ao processo em andamento. Realizei 45 entrevistas
com trabalhadores rurais e pequenos produtores, desta vez concentrados em
duas regiões do distrito, das quais provinha a maioria dos freqüentadores
daquelas assembléias – que chegaram a reunir duas centenas de pessoas,
num distrito de menos de 2000 habitantes.
Residindo no lugarejo durante o ano de 2002, além de observar a
organização dos trabalhadores e pequenos produtores rurais, pude
acompanhar semanalmente as reuniões para elaboração do Plano de Manejo
da APA, das quais tomavam parte os indicados para representar a comunidade
no Conselho Gestor (CG). Procurei, também, informações a respeito das
organizações da sociedade civil que viriam a integrar o CG, através da
imprensa, de atas e documentos internos, e da freqüência a algumas de suas
reuniões públicas.
Por um lado, havia indicações de que o processo de implementação da
APA havia sido excludente e autoritário, pelo menos em relação à parcela da
população qualificada, nos discursos das lideranças da associação de
produtores e trabalhadores rurais, como o verdadeiro povo do lugar. De outro
lado, havia dirigentes e integrantes de várias associações, e de uma ONG
ambientalista, pessoalmente empenhados e entusiasmados, muitas vezes
sobrecarregados, buscando cumprir etapas e atender parâmetros necessários
à implantação da unidade de conservação. Estes parâmetros incluem o modelo
da gestão participativa e seus mecanismos específicos. Assim, sob a
perspectiva dos ambientalistas, pode-se dizer que estavam fazendo de tudo
para implantar a gestão participativa na APA. Diante disso, na visão das
pessoas que tomaram a frente deste processo, aqueles que se diziam
excluídos assim estavam porque, de fato, não queriam participar, ou ainda,
possuíam a disposição deliberada de atrapalhar todo o processo. O
contraponto entre estas diferentes versões constituía-se num problema a ser
pesquisado.
Recentemente, alguns autores têm-se debruçado sobre o tema da
implantação e gestão de unidades de conservação. Multiplicam-se os estudos
sobre as limitações do envolvimento participativo das populações classificadas
como tradicionais e dos grupos étnicos na implementação destas áreas
protegidas4. De uma maneira geral, estes estudos apontam para a presença
indispensável de intermediários e tradutores dos interesses destas populações
no processo dito participativo – papel geralmente delegado às ONGs, ou
antropólogos, ou ambientalistas -, distorcendo as suas necessidades e
aspirações e adequando-as aos critérios da preservação ambiental.
Simultaneamente, põem em questão os efeitos da submissão destas
populações à tutela do Estado em troca de alguns direitos territoriais,
geralmente operada por intermediários, sem que as mesmas estejam sequer
4 Diegues (1996), Menezes (2004: 209), Lobão (2006).
cientes de todas as implicações deste “reconhecimento”5. E há ainda os casos,
como o deste estudo, nos quais a população que lida com os recursos naturais
não é tratada como tradicional. No caso em estudo, grande parte da população
residente na unidade de conservação conjuga atividades agrícolas com
empregos no comércio, na construção civil e serviços domésticos, e sua
representação no processo de criação de gestão da APA ocorre através de
associações de moradores, de categorias profissionais (como trabalhadores
rurais, produtores rurais, comerciantes, guias turísticos) ou de instituições
religiosas (Igreja Católica, Igreja Batista, etc.).
Como nos casos analisados pelo grupo de pesquisa de Leite Lopes no
estado do Rio de Janeiro, além do movimento ambientalista, diversas
associações de moradores passaram a atuar na questão ambiental naquela
localidade, em nome da totalidade da população do distrito, ou de diferentes
regiões do distrito (geralmente associadas aos afluentes do rio principal). Além
disso, durante o período analisado, somaram-se às associações de moradores
uma associação de comerciantes e uma associação de produtores e
trabalhadores rurais6.
A seleção das instituições, do poder público e da “sociedade civil”, para
compor o Conselho Gestor da APA, atende os critérios da legislação, mas não
deixa de se constituir numa apropriação local destes critérios, uma vez que
eles são bastante gerais e deixam uma considerável margem de arbítrio para o
órgão criador da unidade.
5 Em sua tese, Lobão alerta para a contribuição de certos antropólogos para que a tutela de determinadas populações seja regulamentada, sem que tenham sido devidamente esclarecidas sobre as condições nas quais serão exercidos seus novos direitos (2006: 261). 6 A atuação destas organizações apresenta semelhanças com aquelas tratadas pela literatura, envolvendo as mesmas questões não resolvidas: a preocupação com a “manipulação” do movimento por políticos ou administrações, que lançariam mão da “legitimidade” e do “prestígio” das associações; e o problema da representatividade, que se torna crítico quando um ou alguns poucos militantes representam o “movimento”, uma vez que a dinâmica da participação em conselhos e fóruns dificulta a permanente consulta às bases. “É nessa dificuldade que se originam as suspeitas confirmadas ou não de cooptação dos membros dos movimentos e das próprias entidades” (Lopes e alli 2004: 248).
As instituições que representam o poder público, que poderiam ser de
diversos tipos7, são todas secretarias e empresas municipais. A seleção destas
instituições ficou a cargo do presidente do conselho, o então secretário de meio
ambiente.
As organizações da sociedade civil, que também poderiam, de acordo
com a legislação8, abranger um espectro mais amplo de entidades,
restringiram-se, primeiramente, às instituições com sede no distrito. O critério
assumido publicamente pela secretaria de meio ambiente era o de que
qualquer organização local poderia fazer parte do CG, desde que dispusesse
da documentação exigida. No entanto, é possível supor que outras forças
atuaram na seleção dos representantes da comunidade no CG da APA.
O critério da documentação em dia excluía, por exemplo, a associação
de produtores e trabalhadores rurais, que ainda estava em vias de constituição.
Contudo, a associação do Vale das Águas, formada majoritariamente por
proprietários de origem urbana que se estabeleceram no local mais atrativo, em
termos turísticos e de fruição da natureza, e amplamente favoráveis à criação
da unidade de conservação, só veio a regularizar sua fundação em outubro de
2002, às vésperas da nomeação oficial do CG. À época da reunião pública de
formação do CG (em março), não dispunha, portanto, da supracitada
documentação. Isto, no entanto, não veio a público, e a associação do Vale das
Águas foi tomada como apta para integrar o CG. Ao mesmo tempo, a
documentação em dia não foi suficiente para que fosse incluído no CG o clube
de futebol local, cuja diretoria era composta por proprietários de origem local e
extra-local, e que apresentava questionamentos ao processo em curso. Assim
sendo, é possível observar que os critérios impessoais ditados pela legislação
foram apropriados de acordo com os interesses da aliança que conduzia a
7 Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002. Capítulo V – Do Conselho. Art. 17. 1º - A representação dos órgãos públicos deve contemplar, quando couber, os órgãos ambientais dos três níveis da Federação e órgãos de áreas afins, tais como pesquisa científica, educação, defesa nacional, cultura, turismo, paisagem, arquitetura, arqueologia e povos indígenas e assentamentos agrícolas. 8 2º - A representação da sociedade civil deve contemplar, quando couber, a comunidade científica e organizações não governamentais ambientalistas com atuação comprovada na região da unidade, população residente e do entorno, população tradicional, proprietários de imóveis no interior da unidade, trabalhadores e setor privado atuantes na região e representantes dos Comitês de Bacia Hidrográfica.
implantação da APA, naquele momento, selecionando organizações aliadas e
excluindo organizações oposicionistas, dentro do possível.
Dentre as seis organizações da comunidade selecionadas para compor
o CG, quatro foram representadas, naquele período inicial, por ambientalistas
(em nome da associação de moradores de todo o distrito, da associação de
moradores e proprietários do Vale das Águas, da associação de comerciantes
e da ONG ambientalista). A exceção foi a associação de moradores da
Nascente, representada, a partir da nomeação oficial do CG (outubro de 2002),
por um filho de lavradores, engenheiro agrônomo, ex-funcionário da prefeitura.
Esta associação veio a apresentar questionamentos pontuais ao processo em
curso. A outra exceção foi a vaga no CG destinada ao “segmento religioso”,
cuja representante aliou-se aos ambientalistas em virtude de sua parceria no
processo paralelo de revitalização da associação de moradores do distrito.
A inclusão, na última hora, tanto do “segmento religioso” quanto da
secretaria de interior, foi uma tentativa clara de amenizar as contestações a
respeito da falta de representação do verdadeiro povo do lugar no CG.
A Igreja Batista, que ficou com a suplência da vaga destinada ao
“segmento religioso”, possui um grande número de freqüentadores no distrito e
realiza uma série de atividades, como grupos de jovens, aulas de música e de
coral, encontros com Igrejas Batistas de outras localidades, etc. A Igreja
Católica, que ficou como titular do “segmento religioso” no CG, parece ser bem
menos ativa, não ocorrendo sequer missas na localidade, mas conta com
adeptos pertencentes à elite agrária local. Além destas duas, há, no distrito,
diversas outras igrejas evangélicas, tais como Assembléia de Deus,
Presbiteriana, Congregação Cristã do Brasil, com templos também nas regiões
da Nascente e da Barra do Lima, que não foram cogitadas para compor o CG.
A escolha de instituições religiosas para representar a população foi justificada
por serem as únicas organizações oficialmente existentes que teriam o poder
de reunir a população local. Mas eram, também, instituições que não
esboçavam qualquer atuação política no sentido de defender os interesses da
população.
A justificativa da escolha da secretaria de interior, para manter a
“paridade”9, explica-se por ser este seria o órgão municipal dentro do qual o
presidente da associação de produtores e trabalhadores rurais, que vinha
tentando construir uma oposição ao processo de implementação da APA,
possuía uma aliança política. A indicação da secretaria de interior parece ter
sido, naquele momento, uma tentativa de incluir o líder da associação
oposicionista, sem contemplar, no entanto, a organização de produtores e
trabalhadores que ele vinha liderando.
A importância desta formação do Conselho Gestor está ligada ao seu
papel na elaboração dos instrumentos de gestão da APA – Plano de Manejo e
Zoneamento.
A contratação da ONG Viva Rio pela secretaria municipal de meio
ambiente, para coordenar a confecção de um Plano de Manejo para a APA, foi
orientada pela necessidade de utilizar métodos considerados participativos10. O
Plano de Manejo se constituía em um dos “produtos” de um “projeto”11
financiado pela medida compensatória12 de uma usina termo-elétrica que se
instalava no Estado.
9 Decreto 4.430, de 22 de agosto de 2002. Art. 17 3º - A representação dos órgãos públicos e da sociedade civil nos conselhos deve ser, sempre que possível, paritária, considerando as peculiaridades regionais. 10 Concordo com Lobão quando afirma que os conceitos de “empoderamento”, participação e stakeholders, apesar da apresentarem uma historicidade distinta em alguns contextos, constituem um pacote nos cenários nos quais as políticas públicas ambientais e de desenvolvimento sustentável estão sendo implantadas (p.235). Ele questiona o efeito da implantação destes conceitos “exógenos” em sistemas sociais distintos.
11 Pareschi nomeia “projetismo” o conjunto das regras e procedimentos de realização de projetos, que estariam imersos na ideologia do desenvolvimento e do planejamento, que anima especialmente as agências multilaterais de desenvolvimento e as agências de cooperação, e é compartilhado por ONG´s, que vivem de projetos. Nos anos 80, os projetos passaram a operar com metodologias participativas, que consistem na construção conjunta, entre promotores dos projetos e as populações locais, de diagnósticos, avaliações e gestão de projetos. (2002: 5 e 48) 12 No final dos anos 80, foram instituídas, no Brasil, as compensações aos danos ambientais e foram criados fundos públicos de multas e compensações. Segundo Lopes, no Estado do Rio de Janeiro, a Feema atua no controle de impacto ambiental, sendo ela responsável, não só por exigir EIA-RIMAs (conforme as leis Conama 01 e estadual 1.356, de Carlos Minc) nos processos de licenciamento (licença prévia, de instalação, de operação), como também por promover e coordenar as audiências públicas resultantes desses processos (Lopes et alii 2004: 273).
O Plano de Manejo da APA – Fase 1 foi elaborado pelo coordenador da
ONG Viva Rio, com o apoio de técnicos contratados para itens pontuais – como
o Zoneamento – e, em reuniões semanais, realizadas na própria localidade,
das quais participaram regularmente representantes de quatro organizações da
“sociedade civil” local – associação de moradores de todo o distrito, associação
de moradores e proprietários do Vale das Águas, associação comercial e a
ONG ambientalista local. Estas quatro organizações, juntamente com o
“segmento religioso” e a associação de moradores da Nascente, haviam sido
indicadas para compor o Conselho Gestor da APA.
Embora a elaboração do Plano de Manejo tenha tido início em abril de
2002 e o CG só tenha sido oficializado pelo prefeito em outubro daquele ano,
os participantes regulares daquelas reuniões locais trabalhavam na elaboração
do plano, tratando a si mesmos como o conselho. Além destes, alguns
associados destas mesmas instituições, que não integravam suas diretorias,
também participaram das reuniões de elaboração do plano com regularidade.
A participação daquele conselho na elaboração de um Plano de Manejo
para a APA consistia na execução de tarefas relacionadas à elaboração do
plano e a outros “produtos” do projeto no qual ele estava inserido: realização
dos estudos identificados como necessários pelo coordenador; a confecção de
um “sistema de sinalização” para a APA (placas); a escolha de uma “identidade
visual” para a APA; e a recuperação demonstrativa de uma “área degradada”.
O conselho que se envolveu ativamente na elaboração do plano era
constituído de cerca de uma dezena de pessoas, metade das quais tiveram
acesso à educação escolar até o nível médio, três haviam completado o nível
superior (Biologia, Jornalismo e Publicidade) e as outras não o haviam
concluído. Estas pessoas tinham acesso e consultavam com freqüência
diversas fontes de informação – jornais, revistas, livros e internet. Muitas delas
tinham uma certa experiência no relacionamento institucional e informal com
políticos e órgãos governamentais, advinda da sua trajetória de reivindicações
ao poder público, em sua maioria de ordem ambiental e relacionadas ao
próprio distrito. Além disso, algumas destas pessoas possuíam empregos na
esfera municipal, contratados via uma cooperativa. Algumas delas eram
proprietárias de terras no Vale das Águas.
Sendo assim, pela sua formação escolar, sua trajetória de atividades e
as áreas de conhecimento para as quais estava voltado o seu interesse, eram
pessoas que compartilhavam um universo comum de conhecimentos não
especializados a respeito de alguns temas ambientais ou ecológicos. Eram
capazes de discorrer fluentemente, sem o compromisso do rigor técnico ou
científico, a respeito de saneamento, reciclagem de lixo, agricultura, uso de
insumos químicos, ecoturismo, mapeamento, solo, clima, fauna, flora,
legislação ambiental e assuntos afins. Este conjunto de saberes e
competências tornava as pessoas que então compunham o conselho mais
capazes de executar as tarefas previstas do que outros moradores da
localidade13. Além disso, alguns deles pareciam encarar a sua participação em
assuntos de interesse coletivo, especialmente de caráter ecológico, como uma
espécie de missão ideológica em prol da ecologia, ou até mesmo uma missão
existencial.
Nas reuniões para elaboração do Plano de Manejo, era comum
lançarem mão da sua vivência de uma, duas ou até três décadas no distrito –
acumulando variadas experiências em termos de produção agrícola, manejo de
suas propriedades, convivência com o turismo e a população local,
encaminhamento de reivindicações ao poder público – como um conhecimento
que lhes permitia proferir afirmações generalizantes e concludentes a respeito
da localidade. Esta postura, de acordo com algumas destas pessoas e
confirmada pelo representante da ONG Viva Rio, contribuiu para que uma parte
das tarefas previstas para a confecção do então denominado “plano diretor”
13 Da mesma forma que um Plano de Manejo de uma Área de Proteção Ambiental, se feito de acordo com o Roteiro Metodológico do IBAMA, um “pequeno projeto de desenvolvimento sustentável” “não pode ser realizado por pessoas que não sejam formadas na mesma tradição cultural daqueles que elaboram os roteiros ou serão seus avaliadores”. Os grupos aos quais os projetos se destinam, em geral, estão situados em “outros universos culturais cujas lógicas diferem substancialmente da lógica cartesiana e positivista dos projetos de desenvolvimento” (Pareschi 2002 apud Lobão 2004:241). Pensando o campo ambiental como um campo de disputas, de acordo com a teoria de Pierre Bourdieu sobre o espaço social (2000: 133), pode-se afirmar que este conjunto de saberes e competências conferia aos ambientalistas em questão sua posição privilegiada dentro do campo, dotando-os de poderes atuais e potenciais e acesso aos ganhos específicos que eles ocasionam.
fosse trazida para a realização local, possibilitando o envolvimento desses
indivíduos e o aproveitamento destes seus conhecimentos14.
Ou seja, a participação, inicialmente, foi interpretada por aquelas
lideranças como trabalhar, de forma remunerada, no projeto que previa a
elaboração de um Plano de Manejo para a APA. O fato de estarem realizando
tarefas que normalmente caberiam a especialistas era mencionado como o
envolvimento de “atores sociais” na elaboração do documento, agregando
conhecimentos específicos frutos do seu vínculo com a localidade – as suas
vivências e experiências desde que haviam se estabelecido no lugar, além dos
vínculos afetivos com o território construídos ao longo desta permanência.
No discurso das autoridades municipais, o empenho dos ambientalistas
na realização das tarefas e o empenho do coordenador em identificar possíveis
segmentos e procurar saber suas demandas eram demonstrações da
“participação comunitária” na elaboração do Plano de Manejo. A disposição em
participar da comunidade do distrito foi citada pelo secretário de meio ambiente
como um dos fatores determinantes para a criação da unidade de conservação.
E aos conflitos foi atribuído um sentido positivo, como um fator capaz de atrair
a atenção do poder público para pensar e trabalhar as questões trazidas pela
população.
Inicialmente, as demandas por “participação” de integrantes da
associação de produtores e trabalhadores rurais foram respondidas de forma a
incluí-los nos “grupos de trabalho” (o coordenador dividira os participantes em
três grupos de estudo a respeito dos “meios” “biótico”, “abiótico” e “sócio-
econômico”). Foi dito que aqueles representantes poderiam participar no grupo
que estudava a sócio-economia, trazendo demandas e informações sobre os
agricultores, apesar de a sua associação não estar formalizada para ser
incluída no conselho. Assim sendo, sua presença nas reuniões foi, de um certo
modo, tratada como uma concessão.
14 “Então, como a sociedade aqui do (...) já tá bem organizada, já tem Conselho Gestor, tem ongs como o (...) trabalhando há anos, muita informação produzida, muitas universidades, a turma da (...) [Psicologia Social – UFRJ](...) Vamos reunir toda a informação disponível porque isso vai ser a fonte, subsídios para a elaboração do plano.” (Representante do Viva Rio na primeira reunião local para elaboração do Plano de Manejo – abril de 2002)
A postura daqueles que foram assimilados como representantes dos
produtores rurais foi a de declarar fazer parte, de fato, da dita associação.
Porém, estariam ali presentes como cidadãos, pois não haviam sido escolhidos
como representantes. E questionaram a legitimidade das organizações da
“sociedade civil” selecionadas para integrar o CG, na condição de
representantes da população local15. Questionaram a capacidade daqueles
representantes para realizar os estudos para o plano, ao mesmo tempo em que
se recusaram a participar daqueles levantamentos por não se sentirem
capacitados para tanto. Ou seja, nas suas demandas, a “participação” era
entendida como a possibilidade de questionar até mesmo a maneira pela qual
estava sendo organizada a elaboração do plano (sugerindo a contratação de
especialistas), de pôr em debate o processo de formação daquele Conselho
Gestor, enfim, era uma demanda por uma discussão ampla a respeito de todo
o processo de implantação da APA.
O coordenador procurava trazê-los para a “participação” nos moldes
previstos, explicando que aqueles questionamentos teriam lugar nos capítulos
seguintes do plano, para os quais seriam feitas dinâmicas de grupo com
identificação de problemas e soluções por parte dos “atores sociais” locais.
Naquele momento, a pauta da reunião, todavia, seriam os estudos sobre a
APA16. Quanto à insuficiência técnica daqueles que estudavam, o coordenador
mais uma vez elogiou o envolvimento dos “atores locais” na execução das
15 M. (Segunda reunião do Plano de Manejo, maio de 2002) -“Eu tô vendo assim uma coisa extremamente irregular em termos de legitimidade, em termos de trabalho envolvendo toda a população de fato, tá entendendo? E, rapaz, eu não sei, esse conselho tá me parecendo bastante ilegítimo. Até porque, ele também não foi precedido pelas organizações que representam a sociedade civil, de uma... Eu queria saber assim das atas, tá entendendo? Como é que as pessoas foram, digamos assim, escolhidas, entende? Não existe muitos dados a esse respeito. São coisas que nós, pelo menos eu enquanto cidadã, apesar de eu fazer parte da recém formada associação de produtores e trabalhadores rurais, não estou falando em nome dessa associação, estou falando enquanto cidadã, entende? Eu vi, acompanhei todo esse processo e realmente foi um processo bastante conturbado e extremamente anti-democrático, entendeu? Essa é a minha visão, não é só a minha visão. Nós temos cento e não sei quantas pessoas fazendo parte da associação de produtores rurais, que têm essa mesma visão. São pessoas que trabalham, tiram o seu sustento da pequena produção, mas são cidadãos, têm que ser considerados.” 16 Henri Acselrad chama a atenção para o esforço generalizado de criação, em vários países da América Latina, de projetos voltados para a disseminação de tecnologias de resolução de conflitos ambientais. “Tais iniciativas pretendem a difusão de modelos de análise e ação que pressupõem que a falta de instituições está na origem dos conflitos ambientais, e que a paz e a harmonia deveriam provir de um processo de despolitização dos conflitos através de táticas de negociação direta capazes de prover ganhos mútuos. Trata-se de psicologizar o dissenso, prevenindo conflitos e tecnificando seu tratamento através de regras e manuais.” (2004: 9-10)
tarefas, como parte da uma “gestão participativa”. E explicou que não se
tratava de um Plano de Manejo, mas de um “plano diretor” acompanhado de
zoneamento, como fora previsto na lei de criação da APA, o que permitiria um
limite mais superficial para as informações levantadas.
Quando os questionadores compareceram a outra reunião, os membros
do conselho já estavam plenamente empenhados nas suas tarefas.
Conversavam sobre as informações que haviam sido levantadas naquela
primeira semana de trabalho pelos grupos de trabalho e sobre a maneira de
obter materiais, tais como fotos aéreas, imagens de satélite, mapas e
levantamentos. Empolgados com as suas atividades e constantemente
apressados por uma exigência de urgência por parte da secretaria de meio
ambiente, sempre lembrada pelo coordenador, os ambientalistas interpretavam
aqueles questionamentos como algo que estava atrasando e atrapalhando a
elaboração do então plano diretor da APA17.
A análise do conjunto de pronunciamentos enunciados durante as
assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais permite
observar a construção de um discurso de reação ao processo de
implementação de medidas ambientais no distrito. Este discurso apóia-se no
direito à participação da população residente na gestão da unidade de
conservação. Mas, mais do que isso, o cerne do discurso é a reivindicação do
reconhecimento do vínculo de uma parcela da população com o território, em
função da antiguidade do seu estabelecimento ali e do seu modo de vida – o
verdadeiro povo do lugar. Esta reivindicação se baseia, também, na 17 Há semelhanças com o caso da elaboração do Plano Municipal de Desenvolvimento Rural (PMDR), pelo conselho municipal de desenvolvimento rural, em Lagoa Seca, na Paraíba. “Na lógica dos representantes da prefeitura, o plano deveria ser elaborado rapidamente por ser (...) uma condição para o acesso ao PRONAF (...). Pelo lado da concepção da maioria dos conselheiros aliados ao sindicato dos trabalhadores rurais, o CMDR deveria ser um lugar de coordenação visando estabelecer um plano de ação concertado.” (Marques & Flexor 2006: 17). Os autores mencionam este caso como um exemplo de como a hegemonia dos “pleitos da prefeitura” pode sufocar a participação da sociedade civil. No presente estudo de caso, este sufocamento parece ainda mais inevitável, uma vez que as pessoas que falavam em nome dos trabalhadores rurais sequer estavam incluídas no Conselho Gestor. Por se tratar da gestão de uma unidade de conservação (ao contrário de um conselho destinado especificamente ao “desenvolvimento rural”), não era requerida especificamente a presença de representantes dos trabalhadores rurais, mas dos “atores locais”, o que tornava possível o questionamento até mesmo da existência de trabalhadores rurais naquela localidade. Ao mesmo tempo, os próprios representantes da sociedade civil compartilhavam a pressa na elaboração do Plano de Manejo e o interesse em atender às exigências de prazo dos financiadores, uma vez que a elaboração do plano ocorreu financiada como um “projeto”.
desqualificação dos moradores que estiveram envolvidos na transformação do
distrito em APA como gente de fora, negando, de certa forma, a identificação
daquelas pessoas com aquele território – que foi um dos argumentos centrais
para a apresentação do processo como participativo pelas autoridades
municipais18.
A divisão entre povo do lugar e gente de fora obscurece as diferenças
internas do povo do lugar, formado tanto por grandes proprietários de terras
quanto por trabalhadores diaristas, e todas as matizes intermediárias entre
estes dois pólos. Não há dúvida de que estiveram envolvidos na formação
desta associação grandes proprietários de terras preocupados com a
interferência da fiscalização ambiental em suas atividades e com a inserção
dos ambientalsitas na disputa pelos recursos públicos. No entanto, a aliança
indispensável com proprietários de origem urbana, identificados com a
associação devido à sua trajetória de militância em partidos de esquerda e
sindicatos, que militavam a favor dos “pequenos”, permitiu que fossem
conferidas voz e visibilidade às necessidades da população mais pobre do
distrito.
A freqüência dos questionadores às reuniões semanais para elaboração
do Plano de Manejo não foi regular, uma vez que eles não se envolveram com
a realização dos estudos e execução das tarefas. Foram convidados a
comparecer, a pedido do coordenador, nos dias em que foram realizadas
dinâmicas de métodos considerados participativos, quando suas colocações
provocavam discussões acaloradas e bastante hostis. Nestas ocasiões, foram
trazidas também lideranças do chamado “segmento religioso” e da associação
de moradores da Nascente, que, embora tivessem sido selecionados para
18 Para Boudieu, o discurso herético deve não somente contribuir para quebrar a adesão ao mundo do senso comum (no caso do distrito do Lima, a assimilação dos ambientalistas locais como parte da comunidade e a inatingibilidade do discurso pela preservação do meio ambiente), professando publicamente a ruptura com a ordem ordinária, mas também produzir um novo senso comum e fazer entrar nele as práticas e experiências até então tácitas ou recalcadas de todo um grupo, investidas da legitimidade que conferem a manifestação pública e o reconhecimento coletivo (1988: 70). Neste sentido, o acionamento do discurso em defesa do povo do Lima, em oposição aos ambientalistas locais ou às autoridades municipais, como gente de fora, vai de encontro não só ao descontentamento de parte da população com as medidas ambientais, vistas como proibições, mas também com relação aos problemas de convivência e assimilação dos novos moradores e freqüentadores de origem urbana ao quotidiano da localidade. Portanto, o discurso das lideranças da associação de produtores e trabalhadores rurais tornou público, organizou e institucionalizou, pela primeira vez, o descontentamento de uma parcela significativa da população.
integrar o CG, não se envolveram com as demais atividades de elaboração do
plano.
Enfim, ao longo do processo de elaboração do planejamento para a
APA, foram atribuídos sentidos diversos à participação. Para os ambientalistas,
participar era empenhar-se na realização das tarefas previstas no projeto de
elaboração do Plano de Manejo, atendendo às exigências necessárias para dar
encaminhamento a mais uma etapa da implantação da APA. Para outros,
questionadores daquele processo, participar seria ter a oportunidade de
debater os fundamentos da implantação da APA, a legitimidade do seu órgão
gestor. Para outros, ainda, seria ter a oportunidade de acompanhar e debater,
enquanto cidadãos, as medidas que estavam sendo planejadas para o distrito.
Assim, no período em que foi construído o aparato legal e institucional
no qual se apóia a gestão do território e dos recursos da APA em estudo, as
tomadas de decisão e o poder de enunciar o discurso oficial a respeito da
implantação da APA estavam nas mãos de ambientalistas, apoiados em sua
aliança com a secretaria municipal de meio ambiente. Através de uma
linguagem “técnica” (tanto em relação à natureza quanto em relação à gerência
participativa), somada à associação entre questões locais a questões “globais”,
os implementadores da APA conseguiram tornar vigente o seu projeto para
aquele território. O monopólio do discurso oficial a respeito da APA, ostentado
por ambientalistas e secretaria de meio ambiente, naquele período, tornou
possível a justificação e a legitimação de seu posicionamento em uma série de
disputas locais, construindo o Conselho Gestor como uma nova instância de
poder local, apoiado nos instrumentos de manejo da APA
Passado o período do acirramento do conflito, com o CG já operando, foram
ressurgindo diferenciações entre os grupos liderados por ambientalistas, que
atuaram como um bloco único durante o processo de implementação da APA.
A estruturação do trabalho da Secretaria Executiva do Conselho Gestor
contribuiu para que este órgão pudesse ampliar seu poder de ação, passando
a intermediar a relação dos moradores com o CG. A condição de não
remuneração do cargo de Secretário Executivo favorece a escolha de
funcionários da prefeitura, pois as atribuições do cargo demandam bastante
dedicação. Assim, mesmo sendo votado pela plenária, é pequena a margem de
escolha dos conselheiros. Desta forma, esta condição permite que o Secretário
Executivo seja percebido pela população, e até mesmo pelos próprios
conselheiros locais, como um entreposto da secretaria de meio ambiente.
Com o passar do tempo, as reuniões do CG passaram a ser palco da
expressão de uma série de conflitos, alguns deles insuflados pelos efeitos da
fiscalização, mas muitos deles, apesar desta motivação última, traduzindo e
ressignificando disputas pré-existentes.
Parece ter havido, de fato, um aumento do poder do Conselho Gestor
sobre as questões relativas à APA, concretizando-se os desejos dos
ambientalistas de que o conselho viesse a ter maior poder de deliberação que
os secretários e até mesmo que o prefeito. Ao mesmo tempo, a exigência da
presença de diversos integrantes do governo municipal no distrito,
bimestralmente, colocou o distrito sob a atenção da Prefeitura. As instituições
municipais que integram o CG, mal ou bem, têm que prestar contas das
medidas pensadas para os problemas e que eles se comprometem a tomar.
Por outro lado, é um espaço para o aumento da visibilidade política de alguns
secretários e funcionários de empresas municipais.
O Conselho Gestor se tornou, também, uma instância de poder local,
capaz de interferir em toda sorte de atividades realizadas no território do
distrito, que pudessem ser interpretadas como causadoras de impacto ao meio
ambiente. Desse modo, supõe-se, também, um crescimento do poder da
secretaria de meio ambiente sobre outras esferas do governo municipal, pelo
menos no que tange às questões da APA. Pois o poder de regular as ações de
outros órgãos municipais no território da APA acabaria, num certo sentido,
cabendo a ela.
Procurando relativizar o paradigma da prioridade da preservação
ambiental sobre outras questões, e observando o processo pelo qual são
selecionadas as atividades que serão tratadas como causadoras de impacto
ambiental, poder-se-ia pensar que o Conselho Gestor se tornou uma instância
de poder local que viabiliza a ambientalização de conflitos, com base na sua
autoridade para escolher e priorizar os “problemas ambientais” da localidade19.
Considerando-se a vasta legislação aplicável àquele território, não só
sob a forma de APA, mas incluindo a área de uma RPPN, diversas áreas
classificadas como APPs, além da legislação urbanística municipal e diversas
outras, poder-se-ia supor que nenhum morador ou proprietário local está isento
de incorrer em algum tipo de ação que poderia ser interpretada como lesiva ao
meio ambiente – de cortar o galho de uma árvore a consertar um
encanamento. Assim sendo, a escolha de quem será acusado e de quais serão
as atividades condenadas pode obedecer a critérios políticos20.
Esta interpretação coincide, em muitos pontos, com as interpretações da
população em geral sobre o processo de implementação da APA, captadas em
entrevistas ou nas ruas, em conversas informais, na observação do quotidiano
local. Para muitos moradores, a APA significou o “empoderamento” de um
determinado grupo de pessoas, que se tornou capaz de interferir em toda sorte
de atividades realizadas no distrito, desde grandes empreendimentos até as
ações consideradas mais corriqueiras e quotidianas. Neste sentido, a denúncia
de crime ambiental ter-se-ia tornado uma arma em disputas pessoais e/ou
políticas. E as reuniões plenárias do Conselho Gestor, um palco para a
encenação pública destas disputas.
Ao mesmo tempo, a autoridade do Conselho Gestor aparentemente
repousa sobre argumentações “técnicas”. Ou seja, posicionamentos críticos
são aceitos até o limite de não colocarem em questão o paradigma da
19 José Sergio Leite Lopes trata a “ambientalização” dos conflitos sociais como um processo histórico de construção de novos fenômenos, associado a um processo de interiorização, pelas pessoas e pelos grupos sociais, das diferentes facetas da questão pública do “meio ambiente”, notada pela transformação na forma e na linguagem de conflitos sociais e na sua institucionalização parcial (2004:17). 20 Nas Ciências Sociais e, especialmente, na Antropologia, tem prevalecido a perspectiva que não toma os problemas ambientais como dados, tampouco trata os riscos ambientais como conseqüências diretas dos perigos inerentes à situação física. Os estudiosos têm tratado as disputas em torno de questões ambientais como disputas de diferentes concepções da natureza e do mundo, cujo desenlace sempre está imbricado nas relações de poder (Douglas 1982, Parkin & Croll 1992, Ingold 1993, Milton 1993). Este estudo de caso também pode ser pensado como uma análise do processo de disputas em torno do significado e do uso do espaço e dos atributos naturais, cujo desenrolar só pode ser pensado se associado às relações de poder.
conservação ambiental. É permitido discutir o que será tratado como agressão
ambiental, mas não se pode pôr em dúvida o postulado da prioridade da
preservação da natureza acima de todos os interesses21. Dessa forma, a
competição entre diferentes projetos para o espaço e os recursos e a disputa
entre diferentes formas de compreensão e previsão dos mecanismos naturais,
apoiadas em conhecimentos construídos de maneira diversa, são tratadas no
âmbito das reuniões do CG como questões “técnicas”.
Além disso, é possível inferir uma limitação do poder supostamente
atribuído às organizações da “sociedade civil” por membros do Conselho
Gestor, pois as ações seriam limitadas àquelas que obtêm apoio material do
governo municipal. Outra limitação ao desempenho destas instituições no
âmbito do Conselho Gestor é a suposição de que muitas de suas lideranças
possam de fato prestar serviços regulares ou ocasionais à Prefeitura, que
funcionam como os demais empregos concedidos como beneces políticas.
Esta dependência em relação à esfera municipal imporia limites à capacidade
destas instituições em aprofundar questionamentos da população.
Por outro lado, não resta dúvida de que a implementação da “gestão
participativa” na APA e a formação do Conselho Gestor constituíram-se num
forte estímulo à organização de grupos de cidadãos em organizações e
associações.
Se, no momento da criação da APA, as decisões primordiais que
passaram a reger o território dali para frente foram tomadas pelos
ambientalistas junto com a Prefeitura, com o tempo, no entanto, foi havendo
um incremento da organização local e surgiram grupos de associações locais –
como nas regiões da Nascente e da Barra do Lima. Ainda predominam as
organizações encabeçadas por ambientalistas, dotados de maior preparo para
adentrar os fóruns da APA, mas já despontam outras possibilidades de
organização da população local. E, ainda assim, houve um estímulo para que
21 De acordo com Acselrad, uma das concepções que prevalecem no debate ambiental contemporâneo é a idéia da objetividade de uma “crise ambiental”, que tende a desconsiderar o processo social de construção de noção de “crise ambiental”, tido como relativamente descolado das dinâmicas da sociedade e da cultura. Existiria uma “consciência ambiental” una, “aquela que corresponde a um ambientalismo antecipatório, fundado nos indicadores objetivos do colapso ecológico” (2004: 13).
ambientalistas, favoráveis à preservação ambiental, saíssem de soluções
individuais para preservar a natureza (hortas orgânicas, preservação de matas
ciliares em suas propriedades, etc.) para organizações coletivas22.
Não há, no entanto, uma organização que represente o interesse dos
camponeses, tampouco que expresse a totalidade de suas insatisfações. Ou o
povo adere aos fazendeiros, numa tradição de organização política vertical, ou
vai se adequando às regras ambientais e “comendo pelas bordas” os
benefícios, empregando jovens em projetos ambientais, recebendo mudas para
reflorestamento, recebendo auxílio para suas construções23.
Sob um ponto de vista mais geral, vão, aos poucos, sendo estabelecidos
critérios para a preservação de determinados recursos naturais escolhidos
como prioritários – principalmente as águas – e vai sendo promovida uma lenta
adequação das atividades da população a estes critérios. Contudo, esta
adequação está associada, freqüentemente, a uma elitização do acesso aos
recursos naturais e aos proventos do turismo, pois vão sendo excluídos os
empreendedores mais pobres, que não têm condições de atender a todas as
exigências.
22
Como nas experiências de envolvimento público e participação popular no controle da poluição industrial, que, segundo Leite Lopes, constituem-se “numa base não desprezível para o aprendizado e para o estímulo generalizado à participação dos cidadãos na melhoria do meio ambiente e de suas condições de vida” (2004: 250), observa-se que, no localidade em estudo, a implantação da gestão participativa na APA estimulou a formação ou reorganização de organizações da sociedade civil com base no incremento da participação de uma parte da população na melhoria do meio ambiente e de suas condições de vida. 23 De acordo com Maria Isaura Pereira de Queiroz, os camponeses, no Brasil, sempre “dependentes de uma camada superior – fosse esta composta de fazendeiros, de criadores de gado, de comerciantes, de chefes políticos, de citadinos endinheirados – os camponeses esposavam-lhes as disputas e partilhavam-lhes as lutas. (...) Não se desenvolve entre eles uma solidariedade horizontal ou classista (1976: 28-30).” No caso em estudo, não houve, tampouco, intermediários capazes de tornar possível a passagem da qualificação de “incompetentes” e “irracionais”, freqüentemente atribuída a comunidades atingidas por restrições ambientais, à oportunidade de estas serem ouvidas, através de profissionais ou instâncias que constituem uma antiexpertise, como nos casos de “participação da população” no controle da poluição industrial, analisados por Leite Lopes e alli (2004: 259).
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