Participação e Exclusão na Criação de uma Área de Proteção Ambiental no Norte Fluminente

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XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ) Grupo de Trabalho: Os Limites da Democracia Participação e exclusão na criação e gestão de uma Área de Proteção Ambiental (APA) no Norte Fluminense Autora: Natália Morais Gaspar

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XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA

28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ)

Grupo de Trabalho: Os Limites da Democracia

Participação e exclusão na criação e gestão de uma Área de Proteção

Ambiental (APA) no Norte Fluminense

Autora: Natália Morais Gaspar

Participação e exclusão na criação e gestão de uma Área de Proteção

Ambiental (APA) no Norte Fluminense

Este trabalho discute os avanços e limitações do processo participativo

através do estudo de caso a respeito da criação de uma unidade de

conservação (UC) no Norte Fluminense.

Trata-se de uma Área de Proteção Ambiental (APA)1, criada pela

prefeitura, cuja gestão foi atribuída a um Conselho Gestor deliberativo, formado

por organizações da sociedade civil e órgãos do governo municipal.

Recentemente, esta APA foi tema de trabalhos acadêmicos,

destacando-se uma dissertação de mestrado em Psicologia Social e uma tese

de doutorado em Geografia. Sem deixar de reconhecer a existência de grupos

alheios ou contrários à criação da unidade de conservação, ambos destacam a

“participação” e o papel da “comunidade”, através de seus representantes, no

processo de implantação da APA (Seabra 2005: 127; Cozzolino 2004: 121). E,

inclusive, utilizam estes elementos para justificar a escolha daquele local para a

realização de seus estudos.

Além disso, nas comunicações públicas e documentos da secretaria

municipal de meio ambiente (órgão criador da UC) e da própria APA, a sua

criação e as medidas subseqüentes de formação do Conselho Gestor e

elaboração do Plano de Manejo são descritos como um “processo participativo”

(por exemplo, Viva Rio 2003: p. 6).

A princípio, esta APA difere da maioria das APAs brasileiras pela rapidez

com que foram instalados os seus instrumentos de gestão – Conselho Gestor

deliberativo, Plano de Manejo, Zoneamento2. Segundo pesquisa feita com

1 SNUC, Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais. (Lei n 9.985/2000) 2 A lei 9998 de 2000, que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), no Art. 27, estabelece que o Plano de Manejo deve ser elaborado num prazo de cinco anos da criação da unidade, e assegura a “ampla participação da população residente” no caso das APAs e outras UCs de uso sustentável. O Decreto 4430, de 22 de agosto de 2002, regulamenta o Plano de Manejo (capítulo IV) e o Conselho (capítulo V), que pode ser consultivo ou deliberativo.

entidades presentes no workshop Panorama das Áreas de Proteção Ambiental

no Brasil3, com intenção de obter uma visão do estágio de implementação das

APAs: quanto à existência de Conselho Gestor, 18% das APAs o possuem e

1% declaram estar em formação; das 64 APAs pesquisadas, 45% não

possuem plano de manejo ou instrumento semelhante, e, em apenas 23% do

total das APAs, ele está em implementação; quanto ao Zoneamento, apenas

18% das APAs possuem este estudo (Cozzolino 2004: 44). Esta situação

permite indagar a respeito dos elementos que, numa conjuntura específica,

permitiram que esta unidade de conservação tivesse a sua implementação tão

agilizada.

Com base em pesquisa de campo para elaboração de tese de

doutorado, durante a qual foi realizado o acompanhamento sistemático da

formação do Conselho Gestor e de seus dois primeiros anos de atuação,

incluindo a elaboração de um Plano de Manejo para a Área de Proteção

Ambiental (APA), foi possível observar reorganizações nas relações de poder a

partir da interação de lideranças locais com os mecanismos da gestão

participativa.

Até então, alguns grandes proprietários intermediavam o acesso da

população à maioria dos serviços públicos e aos benefícios provenientes de

relações personalizadas com políticos. A transformação daquele distrito

serrano em APA se constituiu num momento emblemático de um processo

através do qual foi criada uma nova instância de poder, o Conselho Gestor da

APA. Com base no Zoneamento e nas recomendações contidas no Plano de

Manejo, foi atribuído ao Conselho Gestor o papel de promover uma

reconfiguração do espaço, através da regulação de toda sorte de atividades

interpretadas como interferências no meio ambiente.

Trata-se de um distrito serrano, cujos limites administrativos coincidem

com a demarcação da APA, e cuja ocupação se deu através do cultivo do café,

a partir do final do século XIX. Com a queda dos preços do café, principalmente

3 Organizado pela Fundação O Boticário e pela The Nature Conservancy do Brasil, com patrocínio da Agência de Cooperação USAID, o evento reuniu cerca de 70 pessoas, representando: 19 APAs federais, 38 estaduais e 12 municipais e 27 instituições (secretarias de meio ambiente, prefeituras e ONGs), pertencentes a 17 estados brasileiros (Guaryasssu 2003 apud Cozzolino 2005).

na terceira década do século XX, passaram a ser predominantes na região os

cultivos de subsistência, figurando a banana como principal produto comercial.

Houve decréscimo populacional e diminuição da atividade econômica,

associados a um isolamento infra-estrutural, principalmente de transportes e

telecomunicações, apesar da relativa proximidade a centros urbanos. O

reaquecimento da economia ocorreu com o turismo, a partir dos anos 80, mas

principalmente na década de 90.

Os atributos naturais da área já despertavam o interesse de pessoas da

cidade desde a década de 70, quando começaram a ser adquiridos terrenos

transformados em residências secundárias (para lazer e veraneio), algumas

das quais vieram a se tornar a residência principal de seus proprietários, muitos

deles interessados em adotar um estilo de vida diferente daquele que vinham

tendo nas suas cidades de origem. A fixação de moradores de origem urbana

tornou-se uma tendência crescente desde então. Associadas à presença de

pessoas da cidade, cada vez mais numerosa, surgiram, na década de oitenta,

e avolumaram-se no final dos anos 90, as iniciativas em prol da preservação do

meio ambiente. Da comunicação de problemas ambientais aos órgãos

competentes, mais freqüentes nos anos 80, à formação de organizações da

sociedade civil e participação no Conselho Gestor da APA, mais recentemente,

moradores de origem urbana que se fixaram no distrito vêm desempenhando

um papel fundamental na implantação da unidade de conservação naquele

território.

Em 1997, tive meu primeiro contato com a ONG ambientalista local,

identificada pelos estudos acima referidos como a instituição que pôs em

discussão a idéia de criar uma unidade de conservação no distrito (Cozzolino

2004: 64), ou que teve a iniciativa de “sensibilizar e mobilizar parte da

comunidade e o poder público” para a transformação da área do distrito em

APA (Seabra 2005: 120). À época, eu freqüentava a localidade na condição de

turista. Filiei-me à instituição e participei de algumas reuniões, além de

desenvolver um trabalho, ainda na graduação, sobre o uso da fotografia em

mobilizações ambientalistas. Havia indicações de que os integrantes da

organização procuravam aliar uma sincera e obstinada vontade de evitar o que

era interpretado como a deterioração dos atributos naturais da região,

especialmente das cachoeiras do Vale das Águas, à aspiração de criar meios

para fixar residência, ou ao menos freqüentar assiduamente a região, através

de trabalhos relacionados à proteção do meio ambiente.

Em 1999, presenciei duas reuniões de lideranças locais com um

“facilitador” do SEBRAE, para elaboração de um planejamento estratégico para

o turismo. Tomaram parte nesta atividade não somente integrantes da ONG

ambientalista, mas também da recém fundada associação comercial, que

sediava o evento. Boa parte daqueles que participaram da elaboração do

documento vieram, mais adiante, a participar, também, das negociações e

atividades de implantação da APA, na condição de lideranças comunitárias, à

frente de organizações e associações civis locais que viriam a ser fundadas ou

revitalizadas nos anos seguintes. Estas observações conduziam à impressão

de que havia moradores e empreendedores locais efetivamente empenhados

em preservar os atributos naturais da região, que foram se organizando em

instituições da sociedade civil e se capacitando para tomar parte na gestão da

futura unidade de conservação.

A literatura que trata do movimento ambientalista tem elaborado tipos

ideais para compreender as diversas inspirações e aspirações das correntes e

ramificações dos ambientalistas e suas idéias, inseridos ou não em

organizações civis ou órgãos do governo (Castells 2002: 141-166), Diegues

(1996), Milton (1993), Viola (1987). Neste estudo de caso, contribui para a

análise das motivações daqueles militantes não só a aproximação com os tipos

de movimentos ambientalistas, mas também com reflexões a respeito do neo-

ruralismo (Chamboredon 1980), (Carneiro 1999), (Giuliani 1990), uma vez que

havia indicações de que o apreço pela natureza local também pudesse estar

associado ao desejo de se estabelecer e permanecer na localidade.

Em janeiro de 2001 (antes, portanto, da criação da APA), tive meu

primeiro contato direto com trabalhadores rurais e pequenos produtores,

realizando entrevistas em diferentes regiões do distrito, que deveriam subsidiar

a elaboração do meu projeto de mestrado. Constatei um grande

descontentamento com relação à fiscalização ambiental, especialmente em

relação às queimadas que precedem a lavoura. Ao mesmo tempo, a maioria

desconhecia a realização de encontros para discussões e negociações em

torno da criação de uma área protegida. Havia indicações de diminuição das

lavouras e abandono das atividades agrícolas devido ao medo da fiscalização.

Retornei a campo em março de 2002, quando ocorreu a primeira

reunião, amplamente divulgada, a respeito da APA. Nesta reunião foram

indicados os futuros representantes da sociedade civil no Conselho Gestor, que

veio a ser oficialmente nomeado sete meses depois. A reunião foi palco de

tensas e acirradas discussões sobre o processo de criação da unidade de

conservação. Pela primeira vez, veio a público o descontentamento de uma

grande parcela da população, especialmente dos produtores e trabalhadores

rurais, com a desinformação dos moradores a respeito da APA, com a

fiscalização ambiental e com escolha, aparentemente prévia, daqueles que

viriam a representar a comunidade no Conselho Gestor. Os descontentes se

queixavam da ausência de representantes do verdadeiro povo do lugar. Foi

mencionado, também, que alguns dos representantes escolhidos para falar em

nome da comunidade eram “funcionários da prefeitura” (terceirizados via uma

cooperativa), o que os impediria de defender os interesses da população.

A partir da percepção destes conflitos, orientei minha pesquisa de modo

a captar a interpretação daqueles que manifestaram seu descontentamento na

reunião e da parcela da população em nome da qual eles se pronunciavam.

Dali por diante, acompanhei todas as assembléias da associação de

produtores e trabalhadores rurais em vias de constituição, a única organização

local visivelmente contrária ao processo em andamento. Realizei 45 entrevistas

com trabalhadores rurais e pequenos produtores, desta vez concentrados em

duas regiões do distrito, das quais provinha a maioria dos freqüentadores

daquelas assembléias – que chegaram a reunir duas centenas de pessoas,

num distrito de menos de 2000 habitantes.

Residindo no lugarejo durante o ano de 2002, além de observar a

organização dos trabalhadores e pequenos produtores rurais, pude

acompanhar semanalmente as reuniões para elaboração do Plano de Manejo

da APA, das quais tomavam parte os indicados para representar a comunidade

no Conselho Gestor (CG). Procurei, também, informações a respeito das

organizações da sociedade civil que viriam a integrar o CG, através da

imprensa, de atas e documentos internos, e da freqüência a algumas de suas

reuniões públicas.

Por um lado, havia indicações de que o processo de implementação da

APA havia sido excludente e autoritário, pelo menos em relação à parcela da

população qualificada, nos discursos das lideranças da associação de

produtores e trabalhadores rurais, como o verdadeiro povo do lugar. De outro

lado, havia dirigentes e integrantes de várias associações, e de uma ONG

ambientalista, pessoalmente empenhados e entusiasmados, muitas vezes

sobrecarregados, buscando cumprir etapas e atender parâmetros necessários

à implantação da unidade de conservação. Estes parâmetros incluem o modelo

da gestão participativa e seus mecanismos específicos. Assim, sob a

perspectiva dos ambientalistas, pode-se dizer que estavam fazendo de tudo

para implantar a gestão participativa na APA. Diante disso, na visão das

pessoas que tomaram a frente deste processo, aqueles que se diziam

excluídos assim estavam porque, de fato, não queriam participar, ou ainda,

possuíam a disposição deliberada de atrapalhar todo o processo. O

contraponto entre estas diferentes versões constituía-se num problema a ser

pesquisado.

Recentemente, alguns autores têm-se debruçado sobre o tema da

implantação e gestão de unidades de conservação. Multiplicam-se os estudos

sobre as limitações do envolvimento participativo das populações classificadas

como tradicionais e dos grupos étnicos na implementação destas áreas

protegidas4. De uma maneira geral, estes estudos apontam para a presença

indispensável de intermediários e tradutores dos interesses destas populações

no processo dito participativo – papel geralmente delegado às ONGs, ou

antropólogos, ou ambientalistas -, distorcendo as suas necessidades e

aspirações e adequando-as aos critérios da preservação ambiental.

Simultaneamente, põem em questão os efeitos da submissão destas

populações à tutela do Estado em troca de alguns direitos territoriais,

geralmente operada por intermediários, sem que as mesmas estejam sequer

4 Diegues (1996), Menezes (2004: 209), Lobão (2006).

cientes de todas as implicações deste “reconhecimento”5. E há ainda os casos,

como o deste estudo, nos quais a população que lida com os recursos naturais

não é tratada como tradicional. No caso em estudo, grande parte da população

residente na unidade de conservação conjuga atividades agrícolas com

empregos no comércio, na construção civil e serviços domésticos, e sua

representação no processo de criação de gestão da APA ocorre através de

associações de moradores, de categorias profissionais (como trabalhadores

rurais, produtores rurais, comerciantes, guias turísticos) ou de instituições

religiosas (Igreja Católica, Igreja Batista, etc.).

Como nos casos analisados pelo grupo de pesquisa de Leite Lopes no

estado do Rio de Janeiro, além do movimento ambientalista, diversas

associações de moradores passaram a atuar na questão ambiental naquela

localidade, em nome da totalidade da população do distrito, ou de diferentes

regiões do distrito (geralmente associadas aos afluentes do rio principal). Além

disso, durante o período analisado, somaram-se às associações de moradores

uma associação de comerciantes e uma associação de produtores e

trabalhadores rurais6.

A seleção das instituições, do poder público e da “sociedade civil”, para

compor o Conselho Gestor da APA, atende os critérios da legislação, mas não

deixa de se constituir numa apropriação local destes critérios, uma vez que

eles são bastante gerais e deixam uma considerável margem de arbítrio para o

órgão criador da unidade.

5 Em sua tese, Lobão alerta para a contribuição de certos antropólogos para que a tutela de determinadas populações seja regulamentada, sem que tenham sido devidamente esclarecidas sobre as condições nas quais serão exercidos seus novos direitos (2006: 261). 6 A atuação destas organizações apresenta semelhanças com aquelas tratadas pela literatura, envolvendo as mesmas questões não resolvidas: a preocupação com a “manipulação” do movimento por políticos ou administrações, que lançariam mão da “legitimidade” e do “prestígio” das associações; e o problema da representatividade, que se torna crítico quando um ou alguns poucos militantes representam o “movimento”, uma vez que a dinâmica da participação em conselhos e fóruns dificulta a permanente consulta às bases. “É nessa dificuldade que se originam as suspeitas confirmadas ou não de cooptação dos membros dos movimentos e das próprias entidades” (Lopes e alli 2004: 248).

As instituições que representam o poder público, que poderiam ser de

diversos tipos7, são todas secretarias e empresas municipais. A seleção destas

instituições ficou a cargo do presidente do conselho, o então secretário de meio

ambiente.

As organizações da sociedade civil, que também poderiam, de acordo

com a legislação8, abranger um espectro mais amplo de entidades,

restringiram-se, primeiramente, às instituições com sede no distrito. O critério

assumido publicamente pela secretaria de meio ambiente era o de que

qualquer organização local poderia fazer parte do CG, desde que dispusesse

da documentação exigida. No entanto, é possível supor que outras forças

atuaram na seleção dos representantes da comunidade no CG da APA.

O critério da documentação em dia excluía, por exemplo, a associação

de produtores e trabalhadores rurais, que ainda estava em vias de constituição.

Contudo, a associação do Vale das Águas, formada majoritariamente por

proprietários de origem urbana que se estabeleceram no local mais atrativo, em

termos turísticos e de fruição da natureza, e amplamente favoráveis à criação

da unidade de conservação, só veio a regularizar sua fundação em outubro de

2002, às vésperas da nomeação oficial do CG. À época da reunião pública de

formação do CG (em março), não dispunha, portanto, da supracitada

documentação. Isto, no entanto, não veio a público, e a associação do Vale das

Águas foi tomada como apta para integrar o CG. Ao mesmo tempo, a

documentação em dia não foi suficiente para que fosse incluído no CG o clube

de futebol local, cuja diretoria era composta por proprietários de origem local e

extra-local, e que apresentava questionamentos ao processo em curso. Assim

sendo, é possível observar que os critérios impessoais ditados pela legislação

foram apropriados de acordo com os interesses da aliança que conduzia a

7 Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002. Capítulo V – Do Conselho. Art. 17. 1º - A representação dos órgãos públicos deve contemplar, quando couber, os órgãos ambientais dos três níveis da Federação e órgãos de áreas afins, tais como pesquisa científica, educação, defesa nacional, cultura, turismo, paisagem, arquitetura, arqueologia e povos indígenas e assentamentos agrícolas. 8 2º - A representação da sociedade civil deve contemplar, quando couber, a comunidade científica e organizações não governamentais ambientalistas com atuação comprovada na região da unidade, população residente e do entorno, população tradicional, proprietários de imóveis no interior da unidade, trabalhadores e setor privado atuantes na região e representantes dos Comitês de Bacia Hidrográfica.

implantação da APA, naquele momento, selecionando organizações aliadas e

excluindo organizações oposicionistas, dentro do possível.

Dentre as seis organizações da comunidade selecionadas para compor

o CG, quatro foram representadas, naquele período inicial, por ambientalistas

(em nome da associação de moradores de todo o distrito, da associação de

moradores e proprietários do Vale das Águas, da associação de comerciantes

e da ONG ambientalista). A exceção foi a associação de moradores da

Nascente, representada, a partir da nomeação oficial do CG (outubro de 2002),

por um filho de lavradores, engenheiro agrônomo, ex-funcionário da prefeitura.

Esta associação veio a apresentar questionamentos pontuais ao processo em

curso. A outra exceção foi a vaga no CG destinada ao “segmento religioso”,

cuja representante aliou-se aos ambientalistas em virtude de sua parceria no

processo paralelo de revitalização da associação de moradores do distrito.

A inclusão, na última hora, tanto do “segmento religioso” quanto da

secretaria de interior, foi uma tentativa clara de amenizar as contestações a

respeito da falta de representação do verdadeiro povo do lugar no CG.

A Igreja Batista, que ficou com a suplência da vaga destinada ao

“segmento religioso”, possui um grande número de freqüentadores no distrito e

realiza uma série de atividades, como grupos de jovens, aulas de música e de

coral, encontros com Igrejas Batistas de outras localidades, etc. A Igreja

Católica, que ficou como titular do “segmento religioso” no CG, parece ser bem

menos ativa, não ocorrendo sequer missas na localidade, mas conta com

adeptos pertencentes à elite agrária local. Além destas duas, há, no distrito,

diversas outras igrejas evangélicas, tais como Assembléia de Deus,

Presbiteriana, Congregação Cristã do Brasil, com templos também nas regiões

da Nascente e da Barra do Lima, que não foram cogitadas para compor o CG.

A escolha de instituições religiosas para representar a população foi justificada

por serem as únicas organizações oficialmente existentes que teriam o poder

de reunir a população local. Mas eram, também, instituições que não

esboçavam qualquer atuação política no sentido de defender os interesses da

população.

A justificativa da escolha da secretaria de interior, para manter a

“paridade”9, explica-se por ser este seria o órgão municipal dentro do qual o

presidente da associação de produtores e trabalhadores rurais, que vinha

tentando construir uma oposição ao processo de implementação da APA,

possuía uma aliança política. A indicação da secretaria de interior parece ter

sido, naquele momento, uma tentativa de incluir o líder da associação

oposicionista, sem contemplar, no entanto, a organização de produtores e

trabalhadores que ele vinha liderando.

A importância desta formação do Conselho Gestor está ligada ao seu

papel na elaboração dos instrumentos de gestão da APA – Plano de Manejo e

Zoneamento.

A contratação da ONG Viva Rio pela secretaria municipal de meio

ambiente, para coordenar a confecção de um Plano de Manejo para a APA, foi

orientada pela necessidade de utilizar métodos considerados participativos10. O

Plano de Manejo se constituía em um dos “produtos” de um “projeto”11

financiado pela medida compensatória12 de uma usina termo-elétrica que se

instalava no Estado.

9 Decreto 4.430, de 22 de agosto de 2002. Art. 17 3º - A representação dos órgãos públicos e da sociedade civil nos conselhos deve ser, sempre que possível, paritária, considerando as peculiaridades regionais. 10 Concordo com Lobão quando afirma que os conceitos de “empoderamento”, participação e stakeholders, apesar da apresentarem uma historicidade distinta em alguns contextos, constituem um pacote nos cenários nos quais as políticas públicas ambientais e de desenvolvimento sustentável estão sendo implantadas (p.235). Ele questiona o efeito da implantação destes conceitos “exógenos” em sistemas sociais distintos.

11 Pareschi nomeia “projetismo” o conjunto das regras e procedimentos de realização de projetos, que estariam imersos na ideologia do desenvolvimento e do planejamento, que anima especialmente as agências multilaterais de desenvolvimento e as agências de cooperação, e é compartilhado por ONG´s, que vivem de projetos. Nos anos 80, os projetos passaram a operar com metodologias participativas, que consistem na construção conjunta, entre promotores dos projetos e as populações locais, de diagnósticos, avaliações e gestão de projetos. (2002: 5 e 48) 12 No final dos anos 80, foram instituídas, no Brasil, as compensações aos danos ambientais e foram criados fundos públicos de multas e compensações. Segundo Lopes, no Estado do Rio de Janeiro, a Feema atua no controle de impacto ambiental, sendo ela responsável, não só por exigir EIA-RIMAs (conforme as leis Conama 01 e estadual 1.356, de Carlos Minc) nos processos de licenciamento (licença prévia, de instalação, de operação), como também por promover e coordenar as audiências públicas resultantes desses processos (Lopes et alii 2004: 273).

O Plano de Manejo da APA – Fase 1 foi elaborado pelo coordenador da

ONG Viva Rio, com o apoio de técnicos contratados para itens pontuais – como

o Zoneamento – e, em reuniões semanais, realizadas na própria localidade,

das quais participaram regularmente representantes de quatro organizações da

“sociedade civil” local – associação de moradores de todo o distrito, associação

de moradores e proprietários do Vale das Águas, associação comercial e a

ONG ambientalista local. Estas quatro organizações, juntamente com o

“segmento religioso” e a associação de moradores da Nascente, haviam sido

indicadas para compor o Conselho Gestor da APA.

Embora a elaboração do Plano de Manejo tenha tido início em abril de

2002 e o CG só tenha sido oficializado pelo prefeito em outubro daquele ano,

os participantes regulares daquelas reuniões locais trabalhavam na elaboração

do plano, tratando a si mesmos como o conselho. Além destes, alguns

associados destas mesmas instituições, que não integravam suas diretorias,

também participaram das reuniões de elaboração do plano com regularidade.

A participação daquele conselho na elaboração de um Plano de Manejo

para a APA consistia na execução de tarefas relacionadas à elaboração do

plano e a outros “produtos” do projeto no qual ele estava inserido: realização

dos estudos identificados como necessários pelo coordenador; a confecção de

um “sistema de sinalização” para a APA (placas); a escolha de uma “identidade

visual” para a APA; e a recuperação demonstrativa de uma “área degradada”.

O conselho que se envolveu ativamente na elaboração do plano era

constituído de cerca de uma dezena de pessoas, metade das quais tiveram

acesso à educação escolar até o nível médio, três haviam completado o nível

superior (Biologia, Jornalismo e Publicidade) e as outras não o haviam

concluído. Estas pessoas tinham acesso e consultavam com freqüência

diversas fontes de informação – jornais, revistas, livros e internet. Muitas delas

tinham uma certa experiência no relacionamento institucional e informal com

políticos e órgãos governamentais, advinda da sua trajetória de reivindicações

ao poder público, em sua maioria de ordem ambiental e relacionadas ao

próprio distrito. Além disso, algumas destas pessoas possuíam empregos na

esfera municipal, contratados via uma cooperativa. Algumas delas eram

proprietárias de terras no Vale das Águas.

Sendo assim, pela sua formação escolar, sua trajetória de atividades e

as áreas de conhecimento para as quais estava voltado o seu interesse, eram

pessoas que compartilhavam um universo comum de conhecimentos não

especializados a respeito de alguns temas ambientais ou ecológicos. Eram

capazes de discorrer fluentemente, sem o compromisso do rigor técnico ou

científico, a respeito de saneamento, reciclagem de lixo, agricultura, uso de

insumos químicos, ecoturismo, mapeamento, solo, clima, fauna, flora,

legislação ambiental e assuntos afins. Este conjunto de saberes e

competências tornava as pessoas que então compunham o conselho mais

capazes de executar as tarefas previstas do que outros moradores da

localidade13. Além disso, alguns deles pareciam encarar a sua participação em

assuntos de interesse coletivo, especialmente de caráter ecológico, como uma

espécie de missão ideológica em prol da ecologia, ou até mesmo uma missão

existencial.

Nas reuniões para elaboração do Plano de Manejo, era comum

lançarem mão da sua vivência de uma, duas ou até três décadas no distrito –

acumulando variadas experiências em termos de produção agrícola, manejo de

suas propriedades, convivência com o turismo e a população local,

encaminhamento de reivindicações ao poder público – como um conhecimento

que lhes permitia proferir afirmações generalizantes e concludentes a respeito

da localidade. Esta postura, de acordo com algumas destas pessoas e

confirmada pelo representante da ONG Viva Rio, contribuiu para que uma parte

das tarefas previstas para a confecção do então denominado “plano diretor”

13 Da mesma forma que um Plano de Manejo de uma Área de Proteção Ambiental, se feito de acordo com o Roteiro Metodológico do IBAMA, um “pequeno projeto de desenvolvimento sustentável” “não pode ser realizado por pessoas que não sejam formadas na mesma tradição cultural daqueles que elaboram os roteiros ou serão seus avaliadores”. Os grupos aos quais os projetos se destinam, em geral, estão situados em “outros universos culturais cujas lógicas diferem substancialmente da lógica cartesiana e positivista dos projetos de desenvolvimento” (Pareschi 2002 apud Lobão 2004:241). Pensando o campo ambiental como um campo de disputas, de acordo com a teoria de Pierre Bourdieu sobre o espaço social (2000: 133), pode-se afirmar que este conjunto de saberes e competências conferia aos ambientalistas em questão sua posição privilegiada dentro do campo, dotando-os de poderes atuais e potenciais e acesso aos ganhos específicos que eles ocasionam.

fosse trazida para a realização local, possibilitando o envolvimento desses

indivíduos e o aproveitamento destes seus conhecimentos14.

Ou seja, a participação, inicialmente, foi interpretada por aquelas

lideranças como trabalhar, de forma remunerada, no projeto que previa a

elaboração de um Plano de Manejo para a APA. O fato de estarem realizando

tarefas que normalmente caberiam a especialistas era mencionado como o

envolvimento de “atores sociais” na elaboração do documento, agregando

conhecimentos específicos frutos do seu vínculo com a localidade – as suas

vivências e experiências desde que haviam se estabelecido no lugar, além dos

vínculos afetivos com o território construídos ao longo desta permanência.

No discurso das autoridades municipais, o empenho dos ambientalistas

na realização das tarefas e o empenho do coordenador em identificar possíveis

segmentos e procurar saber suas demandas eram demonstrações da

“participação comunitária” na elaboração do Plano de Manejo. A disposição em

participar da comunidade do distrito foi citada pelo secretário de meio ambiente

como um dos fatores determinantes para a criação da unidade de conservação.

E aos conflitos foi atribuído um sentido positivo, como um fator capaz de atrair

a atenção do poder público para pensar e trabalhar as questões trazidas pela

população.

Inicialmente, as demandas por “participação” de integrantes da

associação de produtores e trabalhadores rurais foram respondidas de forma a

incluí-los nos “grupos de trabalho” (o coordenador dividira os participantes em

três grupos de estudo a respeito dos “meios” “biótico”, “abiótico” e “sócio-

econômico”). Foi dito que aqueles representantes poderiam participar no grupo

que estudava a sócio-economia, trazendo demandas e informações sobre os

agricultores, apesar de a sua associação não estar formalizada para ser

incluída no conselho. Assim sendo, sua presença nas reuniões foi, de um certo

modo, tratada como uma concessão.

14 “Então, como a sociedade aqui do (...) já tá bem organizada, já tem Conselho Gestor, tem ongs como o (...) trabalhando há anos, muita informação produzida, muitas universidades, a turma da (...) [Psicologia Social – UFRJ](...) Vamos reunir toda a informação disponível porque isso vai ser a fonte, subsídios para a elaboração do plano.” (Representante do Viva Rio na primeira reunião local para elaboração do Plano de Manejo – abril de 2002)

A postura daqueles que foram assimilados como representantes dos

produtores rurais foi a de declarar fazer parte, de fato, da dita associação.

Porém, estariam ali presentes como cidadãos, pois não haviam sido escolhidos

como representantes. E questionaram a legitimidade das organizações da

“sociedade civil” selecionadas para integrar o CG, na condição de

representantes da população local15. Questionaram a capacidade daqueles

representantes para realizar os estudos para o plano, ao mesmo tempo em que

se recusaram a participar daqueles levantamentos por não se sentirem

capacitados para tanto. Ou seja, nas suas demandas, a “participação” era

entendida como a possibilidade de questionar até mesmo a maneira pela qual

estava sendo organizada a elaboração do plano (sugerindo a contratação de

especialistas), de pôr em debate o processo de formação daquele Conselho

Gestor, enfim, era uma demanda por uma discussão ampla a respeito de todo

o processo de implantação da APA.

O coordenador procurava trazê-los para a “participação” nos moldes

previstos, explicando que aqueles questionamentos teriam lugar nos capítulos

seguintes do plano, para os quais seriam feitas dinâmicas de grupo com

identificação de problemas e soluções por parte dos “atores sociais” locais.

Naquele momento, a pauta da reunião, todavia, seriam os estudos sobre a

APA16. Quanto à insuficiência técnica daqueles que estudavam, o coordenador

mais uma vez elogiou o envolvimento dos “atores locais” na execução das

15 M. (Segunda reunião do Plano de Manejo, maio de 2002) -“Eu tô vendo assim uma coisa extremamente irregular em termos de legitimidade, em termos de trabalho envolvendo toda a população de fato, tá entendendo? E, rapaz, eu não sei, esse conselho tá me parecendo bastante ilegítimo. Até porque, ele também não foi precedido pelas organizações que representam a sociedade civil, de uma... Eu queria saber assim das atas, tá entendendo? Como é que as pessoas foram, digamos assim, escolhidas, entende? Não existe muitos dados a esse respeito. São coisas que nós, pelo menos eu enquanto cidadã, apesar de eu fazer parte da recém formada associação de produtores e trabalhadores rurais, não estou falando em nome dessa associação, estou falando enquanto cidadã, entende? Eu vi, acompanhei todo esse processo e realmente foi um processo bastante conturbado e extremamente anti-democrático, entendeu? Essa é a minha visão, não é só a minha visão. Nós temos cento e não sei quantas pessoas fazendo parte da associação de produtores rurais, que têm essa mesma visão. São pessoas que trabalham, tiram o seu sustento da pequena produção, mas são cidadãos, têm que ser considerados.” 16 Henri Acselrad chama a atenção para o esforço generalizado de criação, em vários países da América Latina, de projetos voltados para a disseminação de tecnologias de resolução de conflitos ambientais. “Tais iniciativas pretendem a difusão de modelos de análise e ação que pressupõem que a falta de instituições está na origem dos conflitos ambientais, e que a paz e a harmonia deveriam provir de um processo de despolitização dos conflitos através de táticas de negociação direta capazes de prover ganhos mútuos. Trata-se de psicologizar o dissenso, prevenindo conflitos e tecnificando seu tratamento através de regras e manuais.” (2004: 9-10)

tarefas, como parte da uma “gestão participativa”. E explicou que não se

tratava de um Plano de Manejo, mas de um “plano diretor” acompanhado de

zoneamento, como fora previsto na lei de criação da APA, o que permitiria um

limite mais superficial para as informações levantadas.

Quando os questionadores compareceram a outra reunião, os membros

do conselho já estavam plenamente empenhados nas suas tarefas.

Conversavam sobre as informações que haviam sido levantadas naquela

primeira semana de trabalho pelos grupos de trabalho e sobre a maneira de

obter materiais, tais como fotos aéreas, imagens de satélite, mapas e

levantamentos. Empolgados com as suas atividades e constantemente

apressados por uma exigência de urgência por parte da secretaria de meio

ambiente, sempre lembrada pelo coordenador, os ambientalistas interpretavam

aqueles questionamentos como algo que estava atrasando e atrapalhando a

elaboração do então plano diretor da APA17.

A análise do conjunto de pronunciamentos enunciados durante as

assembléias da associação de produtores e trabalhadores rurais permite

observar a construção de um discurso de reação ao processo de

implementação de medidas ambientais no distrito. Este discurso apóia-se no

direito à participação da população residente na gestão da unidade de

conservação. Mas, mais do que isso, o cerne do discurso é a reivindicação do

reconhecimento do vínculo de uma parcela da população com o território, em

função da antiguidade do seu estabelecimento ali e do seu modo de vida – o

verdadeiro povo do lugar. Esta reivindicação se baseia, também, na 17 Há semelhanças com o caso da elaboração do Plano Municipal de Desenvolvimento Rural (PMDR), pelo conselho municipal de desenvolvimento rural, em Lagoa Seca, na Paraíba. “Na lógica dos representantes da prefeitura, o plano deveria ser elaborado rapidamente por ser (...) uma condição para o acesso ao PRONAF (...). Pelo lado da concepção da maioria dos conselheiros aliados ao sindicato dos trabalhadores rurais, o CMDR deveria ser um lugar de coordenação visando estabelecer um plano de ação concertado.” (Marques & Flexor 2006: 17). Os autores mencionam este caso como um exemplo de como a hegemonia dos “pleitos da prefeitura” pode sufocar a participação da sociedade civil. No presente estudo de caso, este sufocamento parece ainda mais inevitável, uma vez que as pessoas que falavam em nome dos trabalhadores rurais sequer estavam incluídas no Conselho Gestor. Por se tratar da gestão de uma unidade de conservação (ao contrário de um conselho destinado especificamente ao “desenvolvimento rural”), não era requerida especificamente a presença de representantes dos trabalhadores rurais, mas dos “atores locais”, o que tornava possível o questionamento até mesmo da existência de trabalhadores rurais naquela localidade. Ao mesmo tempo, os próprios representantes da sociedade civil compartilhavam a pressa na elaboração do Plano de Manejo e o interesse em atender às exigências de prazo dos financiadores, uma vez que a elaboração do plano ocorreu financiada como um “projeto”.

desqualificação dos moradores que estiveram envolvidos na transformação do

distrito em APA como gente de fora, negando, de certa forma, a identificação

daquelas pessoas com aquele território – que foi um dos argumentos centrais

para a apresentação do processo como participativo pelas autoridades

municipais18.

A divisão entre povo do lugar e gente de fora obscurece as diferenças

internas do povo do lugar, formado tanto por grandes proprietários de terras

quanto por trabalhadores diaristas, e todas as matizes intermediárias entre

estes dois pólos. Não há dúvida de que estiveram envolvidos na formação

desta associação grandes proprietários de terras preocupados com a

interferência da fiscalização ambiental em suas atividades e com a inserção

dos ambientalsitas na disputa pelos recursos públicos. No entanto, a aliança

indispensável com proprietários de origem urbana, identificados com a

associação devido à sua trajetória de militância em partidos de esquerda e

sindicatos, que militavam a favor dos “pequenos”, permitiu que fossem

conferidas voz e visibilidade às necessidades da população mais pobre do

distrito.

A freqüência dos questionadores às reuniões semanais para elaboração

do Plano de Manejo não foi regular, uma vez que eles não se envolveram com

a realização dos estudos e execução das tarefas. Foram convidados a

comparecer, a pedido do coordenador, nos dias em que foram realizadas

dinâmicas de métodos considerados participativos, quando suas colocações

provocavam discussões acaloradas e bastante hostis. Nestas ocasiões, foram

trazidas também lideranças do chamado “segmento religioso” e da associação

de moradores da Nascente, que, embora tivessem sido selecionados para

18 Para Boudieu, o discurso herético deve não somente contribuir para quebrar a adesão ao mundo do senso comum (no caso do distrito do Lima, a assimilação dos ambientalistas locais como parte da comunidade e a inatingibilidade do discurso pela preservação do meio ambiente), professando publicamente a ruptura com a ordem ordinária, mas também produzir um novo senso comum e fazer entrar nele as práticas e experiências até então tácitas ou recalcadas de todo um grupo, investidas da legitimidade que conferem a manifestação pública e o reconhecimento coletivo (1988: 70). Neste sentido, o acionamento do discurso em defesa do povo do Lima, em oposição aos ambientalistas locais ou às autoridades municipais, como gente de fora, vai de encontro não só ao descontentamento de parte da população com as medidas ambientais, vistas como proibições, mas também com relação aos problemas de convivência e assimilação dos novos moradores e freqüentadores de origem urbana ao quotidiano da localidade. Portanto, o discurso das lideranças da associação de produtores e trabalhadores rurais tornou público, organizou e institucionalizou, pela primeira vez, o descontentamento de uma parcela significativa da população.

integrar o CG, não se envolveram com as demais atividades de elaboração do

plano.

Enfim, ao longo do processo de elaboração do planejamento para a

APA, foram atribuídos sentidos diversos à participação. Para os ambientalistas,

participar era empenhar-se na realização das tarefas previstas no projeto de

elaboração do Plano de Manejo, atendendo às exigências necessárias para dar

encaminhamento a mais uma etapa da implantação da APA. Para outros,

questionadores daquele processo, participar seria ter a oportunidade de

debater os fundamentos da implantação da APA, a legitimidade do seu órgão

gestor. Para outros, ainda, seria ter a oportunidade de acompanhar e debater,

enquanto cidadãos, as medidas que estavam sendo planejadas para o distrito.

Assim, no período em que foi construído o aparato legal e institucional

no qual se apóia a gestão do território e dos recursos da APA em estudo, as

tomadas de decisão e o poder de enunciar o discurso oficial a respeito da

implantação da APA estavam nas mãos de ambientalistas, apoiados em sua

aliança com a secretaria municipal de meio ambiente. Através de uma

linguagem “técnica” (tanto em relação à natureza quanto em relação à gerência

participativa), somada à associação entre questões locais a questões “globais”,

os implementadores da APA conseguiram tornar vigente o seu projeto para

aquele território. O monopólio do discurso oficial a respeito da APA, ostentado

por ambientalistas e secretaria de meio ambiente, naquele período, tornou

possível a justificação e a legitimação de seu posicionamento em uma série de

disputas locais, construindo o Conselho Gestor como uma nova instância de

poder local, apoiado nos instrumentos de manejo da APA

Passado o período do acirramento do conflito, com o CG já operando, foram

ressurgindo diferenciações entre os grupos liderados por ambientalistas, que

atuaram como um bloco único durante o processo de implementação da APA.

A estruturação do trabalho da Secretaria Executiva do Conselho Gestor

contribuiu para que este órgão pudesse ampliar seu poder de ação, passando

a intermediar a relação dos moradores com o CG. A condição de não

remuneração do cargo de Secretário Executivo favorece a escolha de

funcionários da prefeitura, pois as atribuições do cargo demandam bastante

dedicação. Assim, mesmo sendo votado pela plenária, é pequena a margem de

escolha dos conselheiros. Desta forma, esta condição permite que o Secretário

Executivo seja percebido pela população, e até mesmo pelos próprios

conselheiros locais, como um entreposto da secretaria de meio ambiente.

Com o passar do tempo, as reuniões do CG passaram a ser palco da

expressão de uma série de conflitos, alguns deles insuflados pelos efeitos da

fiscalização, mas muitos deles, apesar desta motivação última, traduzindo e

ressignificando disputas pré-existentes.

Parece ter havido, de fato, um aumento do poder do Conselho Gestor

sobre as questões relativas à APA, concretizando-se os desejos dos

ambientalistas de que o conselho viesse a ter maior poder de deliberação que

os secretários e até mesmo que o prefeito. Ao mesmo tempo, a exigência da

presença de diversos integrantes do governo municipal no distrito,

bimestralmente, colocou o distrito sob a atenção da Prefeitura. As instituições

municipais que integram o CG, mal ou bem, têm que prestar contas das

medidas pensadas para os problemas e que eles se comprometem a tomar.

Por outro lado, é um espaço para o aumento da visibilidade política de alguns

secretários e funcionários de empresas municipais.

O Conselho Gestor se tornou, também, uma instância de poder local,

capaz de interferir em toda sorte de atividades realizadas no território do

distrito, que pudessem ser interpretadas como causadoras de impacto ao meio

ambiente. Desse modo, supõe-se, também, um crescimento do poder da

secretaria de meio ambiente sobre outras esferas do governo municipal, pelo

menos no que tange às questões da APA. Pois o poder de regular as ações de

outros órgãos municipais no território da APA acabaria, num certo sentido,

cabendo a ela.

Procurando relativizar o paradigma da prioridade da preservação

ambiental sobre outras questões, e observando o processo pelo qual são

selecionadas as atividades que serão tratadas como causadoras de impacto

ambiental, poder-se-ia pensar que o Conselho Gestor se tornou uma instância

de poder local que viabiliza a ambientalização de conflitos, com base na sua

autoridade para escolher e priorizar os “problemas ambientais” da localidade19.

Considerando-se a vasta legislação aplicável àquele território, não só

sob a forma de APA, mas incluindo a área de uma RPPN, diversas áreas

classificadas como APPs, além da legislação urbanística municipal e diversas

outras, poder-se-ia supor que nenhum morador ou proprietário local está isento

de incorrer em algum tipo de ação que poderia ser interpretada como lesiva ao

meio ambiente – de cortar o galho de uma árvore a consertar um

encanamento. Assim sendo, a escolha de quem será acusado e de quais serão

as atividades condenadas pode obedecer a critérios políticos20.

Esta interpretação coincide, em muitos pontos, com as interpretações da

população em geral sobre o processo de implementação da APA, captadas em

entrevistas ou nas ruas, em conversas informais, na observação do quotidiano

local. Para muitos moradores, a APA significou o “empoderamento” de um

determinado grupo de pessoas, que se tornou capaz de interferir em toda sorte

de atividades realizadas no distrito, desde grandes empreendimentos até as

ações consideradas mais corriqueiras e quotidianas. Neste sentido, a denúncia

de crime ambiental ter-se-ia tornado uma arma em disputas pessoais e/ou

políticas. E as reuniões plenárias do Conselho Gestor, um palco para a

encenação pública destas disputas.

Ao mesmo tempo, a autoridade do Conselho Gestor aparentemente

repousa sobre argumentações “técnicas”. Ou seja, posicionamentos críticos

são aceitos até o limite de não colocarem em questão o paradigma da

19 José Sergio Leite Lopes trata a “ambientalização” dos conflitos sociais como um processo histórico de construção de novos fenômenos, associado a um processo de interiorização, pelas pessoas e pelos grupos sociais, das diferentes facetas da questão pública do “meio ambiente”, notada pela transformação na forma e na linguagem de conflitos sociais e na sua institucionalização parcial (2004:17). 20 Nas Ciências Sociais e, especialmente, na Antropologia, tem prevalecido a perspectiva que não toma os problemas ambientais como dados, tampouco trata os riscos ambientais como conseqüências diretas dos perigos inerentes à situação física. Os estudiosos têm tratado as disputas em torno de questões ambientais como disputas de diferentes concepções da natureza e do mundo, cujo desenlace sempre está imbricado nas relações de poder (Douglas 1982, Parkin & Croll 1992, Ingold 1993, Milton 1993). Este estudo de caso também pode ser pensado como uma análise do processo de disputas em torno do significado e do uso do espaço e dos atributos naturais, cujo desenrolar só pode ser pensado se associado às relações de poder.

conservação ambiental. É permitido discutir o que será tratado como agressão

ambiental, mas não se pode pôr em dúvida o postulado da prioridade da

preservação da natureza acima de todos os interesses21. Dessa forma, a

competição entre diferentes projetos para o espaço e os recursos e a disputa

entre diferentes formas de compreensão e previsão dos mecanismos naturais,

apoiadas em conhecimentos construídos de maneira diversa, são tratadas no

âmbito das reuniões do CG como questões “técnicas”.

Além disso, é possível inferir uma limitação do poder supostamente

atribuído às organizações da “sociedade civil” por membros do Conselho

Gestor, pois as ações seriam limitadas àquelas que obtêm apoio material do

governo municipal. Outra limitação ao desempenho destas instituições no

âmbito do Conselho Gestor é a suposição de que muitas de suas lideranças

possam de fato prestar serviços regulares ou ocasionais à Prefeitura, que

funcionam como os demais empregos concedidos como beneces políticas.

Esta dependência em relação à esfera municipal imporia limites à capacidade

destas instituições em aprofundar questionamentos da população.

Por outro lado, não resta dúvida de que a implementação da “gestão

participativa” na APA e a formação do Conselho Gestor constituíram-se num

forte estímulo à organização de grupos de cidadãos em organizações e

associações.

Se, no momento da criação da APA, as decisões primordiais que

passaram a reger o território dali para frente foram tomadas pelos

ambientalistas junto com a Prefeitura, com o tempo, no entanto, foi havendo

um incremento da organização local e surgiram grupos de associações locais –

como nas regiões da Nascente e da Barra do Lima. Ainda predominam as

organizações encabeçadas por ambientalistas, dotados de maior preparo para

adentrar os fóruns da APA, mas já despontam outras possibilidades de

organização da população local. E, ainda assim, houve um estímulo para que

21 De acordo com Acselrad, uma das concepções que prevalecem no debate ambiental contemporâneo é a idéia da objetividade de uma “crise ambiental”, que tende a desconsiderar o processo social de construção de noção de “crise ambiental”, tido como relativamente descolado das dinâmicas da sociedade e da cultura. Existiria uma “consciência ambiental” una, “aquela que corresponde a um ambientalismo antecipatório, fundado nos indicadores objetivos do colapso ecológico” (2004: 13).

ambientalistas, favoráveis à preservação ambiental, saíssem de soluções

individuais para preservar a natureza (hortas orgânicas, preservação de matas

ciliares em suas propriedades, etc.) para organizações coletivas22.

Não há, no entanto, uma organização que represente o interesse dos

camponeses, tampouco que expresse a totalidade de suas insatisfações. Ou o

povo adere aos fazendeiros, numa tradição de organização política vertical, ou

vai se adequando às regras ambientais e “comendo pelas bordas” os

benefícios, empregando jovens em projetos ambientais, recebendo mudas para

reflorestamento, recebendo auxílio para suas construções23.

Sob um ponto de vista mais geral, vão, aos poucos, sendo estabelecidos

critérios para a preservação de determinados recursos naturais escolhidos

como prioritários – principalmente as águas – e vai sendo promovida uma lenta

adequação das atividades da população a estes critérios. Contudo, esta

adequação está associada, freqüentemente, a uma elitização do acesso aos

recursos naturais e aos proventos do turismo, pois vão sendo excluídos os

empreendedores mais pobres, que não têm condições de atender a todas as

exigências.

22

Como nas experiências de envolvimento público e participação popular no controle da poluição industrial, que, segundo Leite Lopes, constituem-se “numa base não desprezível para o aprendizado e para o estímulo generalizado à participação dos cidadãos na melhoria do meio ambiente e de suas condições de vida” (2004: 250), observa-se que, no localidade em estudo, a implantação da gestão participativa na APA estimulou a formação ou reorganização de organizações da sociedade civil com base no incremento da participação de uma parte da população na melhoria do meio ambiente e de suas condições de vida. 23 De acordo com Maria Isaura Pereira de Queiroz, os camponeses, no Brasil, sempre “dependentes de uma camada superior – fosse esta composta de fazendeiros, de criadores de gado, de comerciantes, de chefes políticos, de citadinos endinheirados – os camponeses esposavam-lhes as disputas e partilhavam-lhes as lutas. (...) Não se desenvolve entre eles uma solidariedade horizontal ou classista (1976: 28-30).” No caso em estudo, não houve, tampouco, intermediários capazes de tornar possível a passagem da qualificação de “incompetentes” e “irracionais”, freqüentemente atribuída a comunidades atingidas por restrições ambientais, à oportunidade de estas serem ouvidas, através de profissionais ou instâncias que constituem uma antiexpertise, como nos casos de “participação da população” no controle da poluição industrial, analisados por Leite Lopes e alli (2004: 259).

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