A Criação da Detective Fiction e a Conspiração Clássica

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ANABELA DUARTE 3. A criação da detective fiction e a sua relação com a conspiração clássica Neste capítulo veremos como as principais histórias de detectives de Poe (ou Tales of Ratiocination, de acordo com o autor) contribuíram para a génese de um novo género de literatura – a literatura de detecção – cujos principais seguidores fizeram história, como é o caso de Sherlock Holmes, de Conan Doyle, porventura a figura mais mediática do género detectivesco. Da trilogia poeiana fazem parte, como é do conhecimento geral, os contos “Murder in The Rue Morgue”, “The Mystery of Marie Roget” e “The Purloined Letter”, a que ainda se poderia acrescentar como exemplos de Tales of Ratiocination, “The Gold-Bug” ou “Thou Art the Man”. Veremos ainda como a criação da detective fiction de Poe, ainda em embrião (na evolução do género) mas já de si plenamente acabada pela finura e recorte estilístico de cada história, vai contribuir para a definição de um tipo de conspiração de carácter urbano cujas raízes assentam em arquétipos culturais, desde a figura do xamã com a sua panóplia de técnicas de expurgação do mal social, aos famosos 39

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ANABELA DUARTE

3. A criação da detective fiction e a sua relação com a conspiração

clássica

Neste capítulo veremos como as principais histórias de

detectives de Poe (ou Tales of Ratiocination, de acordo com o autor)

contribuíram para a génese de um novo género de literatura – a

literatura de detecção – cujos principais seguidores fizeram

história, como é o caso de Sherlock Holmes, de Conan Doyle,

porventura a figura mais mediática do género detectivesco. Da

trilogia poeiana fazem parte, como é do conhecimento geral, os

contos “Murder in The Rue Morgue”, “The Mystery of Marie

Roget” e “The Purloined Letter”, a que ainda se poderia

acrescentar como exemplos de Tales of Ratiocination, “The Gold-Bug”

ou “Thou Art the Man”. Veremos ainda como a criação da detective

fiction de Poe, ainda em embrião (na evolução do género) mas já

de si plenamente acabada pela finura e recorte estilístico de

cada história, vai contribuir para a definição de um tipo de

conspiração de carácter urbano cujas raízes assentam em

arquétipos culturais, desde a figura do xamã com a sua

panóplia de técnicas de expurgação do mal social, aos famosos

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

eventos bíblicos onde guerra e poder se encontram intimamente

ligados a uma visão religiosa e conspirativa do mundo.

No decorrer da análise, veremos como a trilogia de

Auguste Dupin, célebre herói das histórias de detectives de

Poe e que iniciou uma saga de escritos e escritores dedicados

a seguir e a desenvolver a fórmula narrativa poeiana de cariz

detectivesco, explicita as ligações de Poe e da detective fiction a

Paul Auster e a The New York Trilogy. De seguida, relacionaremos a

detective fiction com a conspiração clássica e as suas ligações à

hard-boiled novel bem como ao negative thriller, e analisaremos os

pontos de contacto com a trilogia de Auster.

Do consenso geral já faz parte o reconhecimento de Edgar

Allan Poe como autor indiscutível da primeira história de

detectives (“Murder in the Rue Morgue”) e do género policial,

por excelência. O escritor, entretanto, inspirou-se na

literatura e na sociedade francesas da época, especialmente na

figura de Eugene Vidocq, cujas Mémoires (1828-9) constituem uma

fonte de conhecimento imprescindível sobre o sub-mundo do

crime dos inícios do séc. XIX. Vidocq, mestre da arte do

disfarce, era um criminoso que chegou a detective e a chefe

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ANABELA DUARTE

principal da Paris Sûreté,1 associação policial dedicada à

investigação criminosa, em 1812. As suas memórias pertencem a

uma tradição do romance policial, por elas iniciada,

constituída pela literatura popular (“low-life literature”) e,

sobretudo, pelas autobiografias de detectives.2 A tradição com

base na literatura popular descreve-a como uma literatura do

crime ligada ao exótico, à irrupção do patológico na ordem

geral da sociedade e reflecte uma grande simpatia pela figura

do herói fora-da-lei, dado que as desigualdades socio-

económicas atravessavam toda a estrutura social, sendo o

criminoso (especialmente o ladrão, pois o assassínio brutal

não captava a simpatia do povo) tratado com compaixão e, não

raras vezes, admiração. A tradição com base nas autobiografias

de detectives, como a própria denominação sugere, descreve as

peripécias do herói detective, inscrevendo-as num clima de

1 Uma importante medida política do séc. XIX diz respeito à emergência datomada de consciência do trabalho de detecção como uma actividaderespeitável e não raro era aproveitar-se o conhecimento dos criminosos e doseu mundo (como aconteceu com Vidocq) para os detectar com mais facilidade.Daí a criação da Sûreté, por Napoleão, em 1812. A investigação criminalganhou um novo impulso, seguindo-se-lhe a criação da Metropolitan Police,em Londes.2 Ver Jerry Palmer, Thrillers 128-135.

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

suspense e de “realismo”, como salienta F.W.Chandler no

prefácio à edição inglesa de Vidocq:

That his skill lay rather in plain, common-sense observation and utter fearlessness

than in the fantastic piecing together of apparently contradictory clues is merely because he was dealing with actual fact and not sensational fiction.3

Poe, na continuidade destas referências, criou aquele a que

poderíamos chamar o herói hermeneuta, cuja missão seria a de

bem interpretar e deduzir,4 iniciando o que se passou a chamar

literatura de detecção, e dando assim início ao romance

policial moderno. Na mesma linha, foi precursor do

desenvolvimento de um método eficaz para a descoberta do

crime/solução da conspiração, o que contribuiu também para uma

nova formulação científica da trama conspirativa. Até aí a

conspiração desenvolvera-se de acordo com as intrigas de

corte, nos bastidores, e agia como um escape aos conflitos

amorosos e sociais, ou de poder, que eram solucionados sem

método concreto, mas ao sabor das tendências político-sociais

do momento. Poe, através das primeiras histórias de

detectives, cria uma epistemologia da conspiração, uma teoria3 Ibidem 135.4 Ao contrário de Vidocq que o próprio autor critica por não ter uma visãopanorâmica dos acontecimentos, distanciação imprescindível a uma análiseobjectiva dos mesmos. Ver nota 22 deste capítulo.

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ANABELA DUARTE

científica cujo método hipotético-dedutivo fornece uma maior

qualidade interpretativa para a solução do crime.

Raymond Chandler, no trecho anteriormente citado, critica

precisamente esta postura e este método hermenêutico e procede

à apologia do herói da acção, ao invés do herói hermeneuta.

Todavia, a hard-boiled novel, como veremos mais adiante, não

descura uma componente intelectual forte a par da sua dilecta

componente física que confere um estilo peculiar a este tipo

de literatura. Assim, o método de Poe sobrevive nestas

histórias, embora nem sempre encontre a desejada solução, como

invariavelmente acontece nas histórias de Dupin.

Auguste Dupin, o herói detective das histórias de Poe, é

um excêntrico solitário, cujo poder de dedução o leva sempre a

descortinar o momento azado da conspiração e do crime para,

finalmente, encontrar a solução do mistério e o culpado do

crime que responde à questão essencial do whodunit.5 Assim, o

essencial é encontrar o criminoso, o autor do crime que gerou,

em primeiro lugar, o início da demanda de detecção. Para isso,5 Designação emblemática da literatura de detecção clássica: “The basicformula is this: a murder occurs; many are suspected; all but one suspect,who is the murderer, are eliminated; the murderer is arrested or dies.”Winks, Detective Fiction 15.

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

é utilizado, sobretudo, um conjunto de ferramentas

intelectuais, verdadeiros puzzles mentais, bem como uma série de

deduções engenhosas e uma linguagem, no caso de Poe, de cariz

literário.

Fundamental é, também, o interesse na reconstrução do crime

através do pormenor e não do quadro geral dos eventos, pois o

detalhe mais insignificante pode conter significações

profundas (uma pista, uma armadilha, etc.). Em “The Murders of

the Rue Morgue”, por exemplo, Poe explicita a importância dos

detalhes e da análise minuciosa dos acontecimentos, dando como

exemplo uma partida de xadrez:

He notes [the player] every variation of face as the playprogresses, gathering a fund of thought from thedifferences in the expression of certainty, of surprise,of triumph, or chagrin. (...) A casual or inadvertentword; (...) embarassment, hesitation, eagerness, ortrepidation – all afford (...) indications of the truestate of affairs.”6

Ainda em The New York Trilogy, Quinn, por exemplo, utiliza

abundantemente estes procedimentos próprios do detective

clássico: “in the good mystery there is nothing wasted, no

sentence, no word that is not significant.”7 Mas a Auster

voltaremos mais adiante.

6 Poetry and Tales 399.7 NYT 9.

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ANABELA DUARTE

Esta importância atribuída ao detalhe e ao infinitely little8

aponta para uma distinção fundamental no tipo de racionalidade

típica do romance policial clássico. Trata-se da dualidade

entre razão sintética e razão analítica, ou logica utens e logica

docens,9 se quisermos. A primeira exemplifica um tipo de lógica

usado no dia a dia, de carácter geral e rudimentar, de efeitos

práticos e imediatos na busca de uma verdade útil, ao invés do

segundo tipo de lógica, de carácter mais sofisticado, que

constitui no essencial um método de reflexão e descoberta

científica da verdade (ou de uma verdade). Contudo, a lógica

do quotidiano, a lógica comum, não é posta completamente de

parte, já que vai servir de alimento à depuração da lógica

analítica. O próprio e celebérrimo Holmes assegura que os seus

métodos não são nada mais do que systematized common sense10 mas, a

meu ver, talvez esteja a ser demasiado modesto, tendo em conta

a sua pose aristocrática e os inúmeros conhecimentos sobre

8 Expressão de Joseph Bell, médico eminente, mentor e fonte de inspiração deConan Doyle. Ver The Sign of the Three 35.9 Categorias da lógica de Peirce utilizadas por Thomas Sebeok e Jean Sebeoka propósito do romance policial e de Sherlock Holmes, maisespecificamente, e citadas na obra The Sign of The Three: Dupin, Holmes, Peirce 40.10 Umberto Eco and Thomas A. Sebeok, ed. The Sign of Three : Dupin, Holmes, Pierce 41.

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

variadíssimas matérias com que deleita o leitor mais ou menos

prevenido.

A tónica no raciocínio e no processo de descoberta da

verdade através do método hipotético-dedutivo é, no entanto,

um factor essencial no romance policial clássico e, em Poe,

isso é evidente nas três histórias de Dupin, bem como noutras,

em que a capacidade de raciocínio toma um cunho particular,

uma espécie de estado de espírito do narrador, que não detecta

nem deduz mas que, de certa maneira dominado por um transe

racional, realiza a mediação entre a própria experiência do

real e o seu estado de espírito muito particular.

Em “The Black Cat”, por exemplo, é curioso constatar como

o narrador realiza o diagnóstico e procede à análise da

experiência à medida que o seu comportamento se transforma

radicalmente, culminando no assassínio da esposa e do gato

preferido e, por fim, na astuta preparação da sua inocência,

que acaba por ser impressionantemente gorada. Ele próprio

afirma:

This spirit of perverseness, I say, came to my finaloverthrow. It was this unfathomablelonging of the soul to vex itself – to offer violence to itsown nature – to do wrong for the wrong’s sake only – that

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urged me to continue and finally to consumate the injury Ihad inflicted upon the unoffending brute.11

Assim, o narrador está consciente da sua ligação com o real e

do mal que perpetua mas, ao mesmo tempo, não consegue mudar de

rumo e vê-se impelido para a sua própria desgraça, analisando

a posteriori cada pormenor do seu comportamento, do seu pathos,

como se essa análise estivesse desde já implícita no próprio

momento da acção.

Em Poe, é sempre interessante salientar esta oscilação

entre uma capacidade de raciocínio extremamente aguda e

objectiva e o carácter pró-fantasmático dos acontecimentos que

tornam a aliança entre lógica e imaginação numa peça

fundamental da arte de narrar poeiana, quer nas peças de

análise introspectiva e dramática, como a que acabámos de

mencionar em “The Black Cat”, quer nas de carácter

detectivesco, em que é o próprio narrador que sugere essa

dicotomia/oscilação do carácter de Dupin que, no fundo, se

projecta no tipo de racionalidade e imaginação da pesquisa

detectivesca:

11 Poetry and Tales 599.

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

(...) I often dwelt meditatively upon the old philosophy ofthe Bi-Part Soul, and amused myself with the fancy ofa double Dupin – the creative and the resolvent.12

A filosofia da alma bipartida projecta, assim, uma dualidade

peculiar em Poe e no seu personagem Dupin. No livro, Poe Poe Poe

Poe Poe Poe Poe, Daniel Hoffman afirma igualmente: “His mind

(Dupin’s), working by metaphoric analogies, combines poetic

intuition with mathematical exactitude”.13 Esta conjugação

entre o tom racional e o tom poético na abordagem à solução do

mistério e do crime confere ao tipo de racionalização de Poe

uma espécie de sentido onírico que transcende a mera razão

positivista, levando essa razão mais longe e a vários níveis

da realidade, através da associação de ideias que aponta para

aquilo que hoje em dia se designa por nível inconsciente da

mente, do eu.

A dupla face do método detectivesco em Poe pode ainda

remeter-nos para a noção de Play of Musement do filósofo

americano Peirce, o qual chega a citar em obra própria “The

Murders of the Rue Morgue” de Poe, como um caso exemplar do

pensamento analítico.14 A Play of Musement constitui,12 “The Murders in the Rue Morgue”, Poetry and Tales 402.13 Daniel Hoffman, ed. “Disentanglements”, Poe Poe Poe Poe Poe Poe Poe 107-108. 14 É o que afirmam os Sebeok e passo a transcrever a citação peirceana:“Citing Dupin’s remarks in Poe’s “The Murders in the Rue Morgue” (to wit:“It appears to me that this mystery is considered insoluble for the very

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precisamente, um conceito que sugere a alegria da meditação e

da duplicidade que a rege, isto é, o próprio conceito encerra

dois vocábulos aparentemente opostos (jogo e

meditação/imaginação e lógica), transformando-os numa noção

que funciona como uma apologia do pensamento lúdico.

O conceito de play of musement partilha, de facto, muitas

analogias com a fonte poeiana, pois como afirma Dupin em “The

Murders of the Rue Morgue”:

As for the murders, let us enter into some examinations forourselves, before we make up an opinion respecting them. Aninquiry will afford us amusement,” (I thought this an oddterm, so applied, but said nothing)...15

Desta passagem sobressai exactamente a duplicidade do conceito

de Peirce, que oscila entre a lógica e a imaginação, sendo de

destacar a importância da investigação (musement) a par do

divertimento e do prazer causado pelo próprio exercício

intelectual (play). O narrador acha o termo “amusement”

reason which should cause it to be regarded as easy of solution. I mean theoutré character of its features”), Peirce remarks that “those problems thatat first blush appear utterly insoluble receive, in that verycircumstance...[t]heir smoothly-fitting keys. This particularly adapts themto the Play of Musement”. Cit. em “You Know my Method: a juxtaposition ofCharles S. Peirce and Sherlock Holmes”, Thomas A. Sebeok and Jean U.Sebeok, The Sign of The Three 28.15 Poetry and Tales 412. Itálico meu.

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

empregue por Dupin um pouco estranho, dadas as circunstâncias

de carácter tão dramático, mas Dupin sabe de antemão que é

essa capacidade de jogo e de divertimento intelectual que

levará à solução do mistério. Podemos verificar, igualmente,

em Poe, como os acontecimentos mais imprevisíveis e

fantásticos são reduzidos, como o próprio afirma: “ (to)

nothing more than an ordinary sucession of very natural causes

and effects”.16 E por outro lado, como muitas vezes os factos

tão aparentemente banais escondem a solução dos maiores

enigmas e mistérios.

Do primeiro caso poder-se-á tomar como exemplo “The Black

Cat”, cujos acontecimentos extraordinários são reduzidos logo

no início do texto a um desvario da personalidade do narrador,

não constituindo, por isso, nada de transcendente mas apenas e

só uma sucessão natural de causas e efeitos.17Na mesma linha de

pensamento, poderíamos citar Dupin em “The Murders of The Rue

Morgue”:

16 “The Black Cat”, Poetry and Tales 597.17 “My immediate purpose is to place before the world, plainly, succintly,and without comment a series of mere household events. In theirconsequences, these events have terrified-have tortured-have destroyed me.(...) Hereafter, perhaps, some intellect may be found which will reduce myfantasm to the commonplace – some intellect more calm, more logical, andfar less excitable than my own, which will perceive, in the circumstances Idetail with awe, nothing more than an ordinary sucession of very naturalcauses and effects.” Ibidem.

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It appears to me that this mystery is considered insoluble,for the very reason which should cause it to be regarded aseasy of solution – I mean for the outré character of itsfeatures. 18

Um crime tão insólito quanto o da Rue Morgue, de acordo com

Dupin, será mais fácil de solucionar devido, precisamente, ao

carácter excessivamente insólito dos acontecimentos. O

insólito, neste caso, constitui o próprio indicador daquela

“sucessão natural de causas e efeitos” atrás mencionada, na

medida em que Dupin consegue deduzir, do quadro geral dos

acontecimentos, que tal crime não poderia ter sido cometido

por um ser humano, facto que não havia sequer sido ponderado

pela polícia local.

Pelo contrário, aquando do assassinato de Marie Roget,

por exemplo, Dupin afirma, depois de analisar minuciosamente

os factos e as testemunhas através dos jornais diários da

época, tratar-se de um caso de mais difícil solução, devido

exactamente à sua qualidade menos peculiar:

This is an ordinary, although an atrocious, instanceof crime. There is nothing peculiarly outré about it. Youwill observe that, for this reason, the mystery has been

18 Poetry and Tales 414.

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considered easy, when, for this reason, it should have beenconsidered difficult, of solution. 19

Esta passagem remete-nos, assim, para o segundo caso

característico da narrativa poeiana, como atrás mencionámos,

em que não raras vezes os factos aparentemente mais banais

revelam, na realidade, os crimes mais hediondos e encerram em

si mesmos a chave da sua própria solução.

A questão do método detectivesco na análise dos factos e

do crime é, de facto, essencial em Poe e no romance policial

clássico que o autor inaugurou. Em The Murders of the Rue Morgue, a

primeira história do detective Dupin, são lançadas as bases

daquilo que viria a ser a literatura de detecção e o romance

policial moderno, com base num método extremamente

convincente:

As the strong man exults in his physical ability,delighting in such exercises as call his muscles intoaction, so glories the analyst in that moral activity whichdisentangles. He derives pleasure from even the most trivialoccupations bringing his talent into play. He is fond ofenigmas, of connundrums, hieroglyphics; exhibiting in hissolutions of each a degree of acumen which appears to theordinary apprehension praeternatural. His results, broughtabout by the very soul and essense of method, have, intruth, the whole air of intuition.20

19 “The Mystery of Marie Roget”, Poetry and Tales 519.20 Poetry and Tales 397.

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ANABELA DUARTE

Os resultados, isto é, a solução do mistério e do crime, só

alcançam sucesso graças à aplicação do método detectivesco

elaborado por Dupin. Frequentes vezes é a falta de método que

Dupin critica na actuação da polícia local: “There is no

method in their proceedings, beyond the method of the

moment”.21 O método detectivesco consiste, então, numa

actividade mental superior (superior acumen) que utiliza a

análise através dos processos de indução e dedução de modo a

desembaraçar os nós dos acontecimentos (to disentangle) e a

produzir uma explicação e uma solução final dos factos que até

aí constituíam um problema insolúvel. O investigador/detective

retira desta poderosa actividade analítica, grande prazer,

como sublinhámos anteriormente com a expressão de Peirce Play of

Musement, isto é, o analista deleita-se com o amusement do

musement- o prazer do raciocínio. É esta capacidade de retirar

prazer da actividade intelectual o resultado, como vimos, da

associação entre poesia (imaginação) e lógica, dado tratar-se

duma razão intuitiva.

21 Ibidem 411.

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

Na tentativa de enaltecer o seu método, o detective Dupin

selecciona como exemplo e, por contraponto, o famoso detective

e criminoso Vidocq:

Vidocq, for example, was a good guesser and a perseveringman. But, without educated thought, he erred continually bythe very intensity of his investigations. He impaired hisvision by holding the object too close. He might see,perhaps, one or two points with unusual clearness, but inso doing he, necessarily, lost sight of the matter as awhole. (...) Truth is not always in a well. In fact, asregards the more important knowledge, I do believe that sheis invariably superficial. 22

Assim, um dos elementos importantes da análise e do método é a

visão topográfica, isto é, a visão minuciosa e abrangente do

crime e não apenas a visão e a análise dos factos per se. O

distanciamento em relação ao objecto de análise torna-se

necessário para se poder usufruir dos variados planos e nuances

da acção, que não têm forçosamente de encontrar-se junto ao

objecto.

A procura da verdade é um factor fundamental porque se

torna premente achar um fechamento da acção e do crime. Mas a

verdade pode encontrar-se a um nível muito superficial e cabe

ao investigador, através dos seus superiores poderes de

observação e inferência, discernir quais os factos a observar

22 Ibidem 412.

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ANABELA DUARTE

e que, de acordo com Dupin, nem sempre são os mais profundos.

A qualidade da observação impõe-se para além daquilo que os

manuais podem prescrever sendo, por isso, necessário encontrar

a própria medida e o próprio ethos da investigação:

Thus to have a retentive memory and proceed by “the book”are points commonly regarded as the sum total of goodplaying. But it is in matters beyond the limits of mererule that the skill of the analyst is evinced. He makes, insilence, a host of observations and inferences. (...) andthe difference in the extent of the information obtained,lies not so much in the validity of the inferences as inthe quality of the observation. 23

Aparte o prestígio do método e dos pormenores, da qualidade da

observação e da duplicidade do raciocínio, do fechamento e da

busca da totalidade na narrativa policial e da importância das

técnicas autodiegéticas (sobretudo na ficção poeiana), é

também importante a narração na terceira pessoa (sobretudo nos

contos de carácter detectivesco), quer em Poe, quer nos seus

mais directos seguidores como Conan Doyle ou mesmo o próprio

Auster, cuja trilogia utiliza abundantemente muitas das

características do romance policial clássico e de Poe, em

geral.

23 Ibidem 398-399.

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

A trilogia de Poe composta pelas short stories de Auguste Dupin é

de carácter homodiegético, em que a existência de um narrador

privilegiado com acesso directo à acção favorece bastante o

sucesso da fórmula de detecção elaborada por Poe e

desenvolvida pelos seus seguidores: Sherlock Holmes e o seu

Watson, Poirot e o seu Capitão Hastings, Philo Vance e o seu

Van Dine, etc.24 De acordo com Dorothy L. Sayers, esta fórmula

de narração na terceira pessoa e de criação de uma entidade

narrativa que se situa simultaneamente dentro e fora da acção,

facilita também uma certa expressividade panegírica do autor

em relação ao personagem central. Ao mesmo tempo,

distanciando-se do personagem principal através da mediação do

narrador/actor secundário, o autor/narrador ganha maior

verosimilhança aos olhos do leitor (como entidade imparcial) e

o herói maior consistência diegética e dramática.25

24 A existência destes “pares de eleição” caracteriza precisamente anarração em 3ª pessoa, dado que em cada um deles existe um narrador atravésdo qual temos acesso directo à acção: Watson é o narrador privilegiado deConan Doyle, o Capitão Hastings é o de Agatha Christie e Van Dine é o deS.S. Van Dine.25 É o que afirma Dorothy L. Sayers no artigo “The omnibus of crime”: “Inthe three Dupin stories, we have the formula of the eccentric and brilliantprivate detective whose doings are chronicled by na admiring and thick-headed friend. (...) It’s not surprising that this formule should have beenused so largely, for it is obviously a very convenient one for the writer.(...) the admiring satellite may utter expressions of eulogy which would beunbecoming in the mouth of the author, gaping at his own colossalintellect. (...) by describing the clues as presented to the dim eyes andbemused mind of Watson, the author is enabled to preserve a spuriousappearence of frankness, while keeping to himself the special knowledge onwhich the interpretation of those clues depends. This is a question of

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ANABELA DUARTE

De igual modo, segundo Hoffman, ao caracterizar-se o narrador

como um indivíduo um pouco ingénuo e que permanece

frequentemente estupefacto pela superior inteligência do

detective, o autor/narrador confere ao leitor o poder de

antecipar e de criticar a própria inaptidão do narrador no

processo de solução do enigma e ainda de garantir uma

atmosfera de autenticidade através do questionamento

aparentemente sincero do narrador ao detective, garantindo

este um discurso eloquente e resposta sempre pronta.26 Assim, a

narração de terceira pessoa trata também de criar um efeito de

maior verosimilhança na narrativa, sugerindo uma ética de tipo

moralizante na descoberta da verdade. Tudo tem de acabar bem e

de acordo com os códigos sociais vigentes, onde supostamente

reside a normalidade. Tal como nos diz Todorov na sua

“Introdução ao Verosímil”: “fala-se de verosimilhança de uma

obra, na medida em que ela tenta fazer-nos crer que se submete

paramount importance, involving the whole artistic ethic of the detectivestory.”Winks, Detective Fiction 57. 26 Em Poe, Poe, Poe Poe, Poe, Poe, Poe, Hoffman sublinha: “ (...) by introducing anintermediary as narrator who seems as mystified as is the reader by theinricacies of the plot, Poe freed his plot from the appearance ofimposition. (115)

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

ao real e não às suas próprias leis”,27 quando na verdade são

as próprias leis da arquitectura da obra que criam o real, tal

como acontece em Poe.

Em “The Purloined Letter”, por exemplo, pretende-se

descobrir um documento que fora roubado e devolvê-lo a

determinada pessoa cuja honra se encontra em causa.Toda a

história é composta de modo a ser possível e inverosímil, isto

é, “a revelação, quer dizer, a verdade, é incompatível com a

verosimilhança”.28 Deste modo, Dupin solucionará o caso graças

a um golpe de génio ou daquilo a que se costuma chamar, na

literatura de detecção, o método de the most unlikely person ou,

neste caso, the most unlikely place – sendo o documento encontrado,

muito naturalmente e depois de pesquisas policiais intensas,

num porta-cartas “escondido” à vista de todos.29 É reposta,

então, a verdade e a sua compatibilidade com a verosimilhança.

Poderíamos citar ainda “The Gold-Bug” ou “Thou Art the Man”,

histórias de detecção muito interessantes que, embora não

façam parte da trilogia do detective aristocrata, partilham,

todavia, as mesmas características narrativas (análise e

método) e a mesma qualidade do verosímil.27 Tzvetan Todorov, Poética da Prosa 97.28 Ibidem 100.29 João Ferreira Duarte, “Introdução”, O Espelho Diabólico: Construção do Objecto daTeoria Literária 14.

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ANABELA DUARTE

Uma outra característica a salientar diz respeito à

representação da ficção policial (e respectiva trama

conspirativa, que analisaremos mais adiante) como um espelho

da sociedade, reflectindo os seus medos e ansiedades mais

profundos, como se poderá verificar pelos resultados do

diagnóstico elaborado aos leitores da época de Sherlock

Holmes: um receio profundo da complexidade das organizações

criminosas; o comércio crescente que apelava à cobiça alheia;

a suspeição em relação às antigas ordens do poder, rurais e

aristocráticas, em contraste com a classe média urbana; e o

medo dos direitos da mulher, que começavam a abalar a

estrutura familiar tradicional.30 A criação e a representação

do romance policial clássico reveste, assim, uma função

catártica de libertação das emoções ao nível individual e

social, constituindo uma espécie de literatura de escape com

que os leitores se identificam e confirmam, ou não, as suas

suspeitas em relação ao mundo que os rodeia.31

30 M. Priestman, Crime Fiction: From Poe to the Present 17.31 Robin W.Wink em Detective Fiction assim o afirma: “Detective fiction thusbecomes a mirror to society. Through it we may see society’s fears mademost explicit; for some, those fears are exorcised by the fiction.” Em relação à hard-boiled novel afirma ainda o seguinte: “Paranoia has replacedthe catharsis of placing guilt clearly just there, where it belongs.” (7)

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

O caso de Poe é também por si só sintomático chegando,

por vezes, a considerar-se Dupin uma espécie de alter-ego de

Poe, devido à natureza aristocrática de Dupin que, tal como

Poe, viveu à margem da sociedade. Como quase todos os seus

heróis, aliás, destituído de amigos e vida social, Poe, génio

criador de superioridade intelectual, é assim descrito por

Ross MacDonald:

In his creation of Dupin, Poe was surely compensating forhis failure to become what his extraordinary mental powersseemed to fit him for. He had dreamed of an intellectualhierarchy governing the cultural life of the nation,himself at his head. Dupin’s outwitting of an unscrupulouspolitician in “The Purloined Letter”, his “solution” of anactual New York case in “Marie Roget”, his repeatedtrumping of the cards held by the Prefect of Police, arePoe’s vicarious demonstrations of superiority to anindifferent society and its officials. 32

A uma sociedade indiferente ao génio criador responde Poe com

a criação sistemática de histórias magníficas, ricas em

imaginação e engenho. Mas, de algum modo, a sua sede de

racionalidade parece constituir um pretexto, um refúgio, para

se esconder dos demónios interiores que o atormentam devido a

uma consciência demasiado lúcida e superiormente crítica em

relação a uma sociedade superficial e anódina.

32 Ross MacDonald, “The Writer as Detective Hero”, Detective Fiction: A Collection ofCritical Essays, ed. Robin W. Winks 179.

60

ANABELA DUARTE

Num ensaio do poeta americano William Carlos Williams sobre

Poe, afigura-se-nos aquilo que poderia ser a imagem perfeita

do escritor:

About Poe there is – No supernatural mystery – No eccentricity of fate –

He is American, understandable by a simple exercise ofreason; a light in the morass – which must appear eerie, even to himself, by force ofterrific contrast, an isolation that would naturally lead to drunkenness and death,logically and simply – by despair, as the very final evidence of a too fine seriousness anddevotion. 33

Delineado, deste modo, o romance policial clássico de tradição

poeiana, seguimos a sua evolução até ao romance policial

americano, denominado hard-boiled novel, e que coloca a tónica dos

eventos na acção ao invés de no raciocínio. A questão coloca-

se aqui ao nível do whydunit e já não do whodunit, e traz ainda

diferenças fundamentais, sobretudo ao nível da linguagem de

carácter mais coloquial, com o objectivo de reproduzir com

grande acuidade as instâncias e problemas da sociedade

33 William Carlos Williams, In the American Grain: Essays by Wlilliam Carlos Williams 222.

61

A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

envolvente, em que a paranóia substitui, como veremos, a

catarse típica do policial clássico.34

Existem dois elementos indispensáveis à hard-boiled novel e

ao thriller35 em geral. São eles o herói e a conspiração. Estes

representam igualmente dois elementos cruciais na estrutura do

policial clássico, como vimos, contribuindo um para a criação

da instabilidade (mala in se -conspiração)36 e o outro para a

restauração da ordem (herói). Estas distinções (mala in se e mala

prohibita) são constituídas pelo pensamento e discurso legal do

séc. XVIII. Ao contrário dos mala prohibita (ofensas à ordem

civil), os mala in se representavam as ofensas às leis naturais

ou de ordem divina. Trata-se, no fundo, da distinção entre

ofensas à propriedade privada e propriedade pública (valores,

crenças, bem geral). No caso do policial clássico, esta

distinção ainda é significativa, dando-se uma importância

vital ao crime brutal sem explicação aparente, irracional, ou

seja, a quebra de uma ordem imanente do mundo/espaço público

(e.g., The Dog of the Baskervilles de Poe), ao passo que na hard-boiled

34 Ver Robin W. Winks, ed. Detective Fiction 8.35 Jerry Palmer na sua obra Thrillers:Genesis and Structure of a Popular Genre, denomina oromance policial como thriller, não fazendo distinções entre os géneros erespectivos nomes. Para ele, o thriller na sua evolução – da história policialclássica à actualidade – engloba naturalmente essa diversidade.36 Palmer,Thrillers 201.

62

ANABELA DUARTE

novel atribui-se à conflação dos dois termos uma forma mais

acentuada, tal como haviam sido elaborados no séc. XIX:

(...) the old distinctions between mala in se andmala prohibita, and between public and private wrongs,declined in importance. Of course crimes we stilldistinguished according to degree of malignancy, but itwas agreed that the prevention of crime in general was amatter of public concern and public money.37

Assim, no romance policial moderno, tanto as ofensas à ordem

natural ou divina como as ofensas à sociedade civil passam a

ser encaradas sob o denominador comum do crime e da

conspiração. A hard-boiled novel, no entanto, introduz diferenças

significativas. O herói detective, de tipo hermenêutico,

típico personagem da classe média alta, como Holmes ou Dupin,

dá lugar ao herói maldito, de carácter violento, a uma

linguagem coloquial e a um forte impacto emocional,

representando um dos pólos da luta de titãs entre o Bem e o

Mal do período do pós-guerra, onde imperam a alienação e a

desordem.

O herói hermeneuta é, desta maneira, substituído pelo

private eye americano que, para além de ter de combater a

37 Sobre estas noções ver Palmer, Thrillers 185.

63

A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

incompetência da polícia, tem ainda de enfrentar a corrupção e

a brutalidade desta, substituindo o método dedutivo por um

conhecimento em primeira mão do mundo e sub-mundo urbano e por

um forte sentido moral. A sua sensibilidade é mais física do

que intelectual e obedece a um código moral muito próprio. Já

não se trata de repor a ordem momentaneamente abalada, como no

whodunit, onde a conspiração e o crime surgem como uma irrupção

na ordem natural das coisas. A desordem e a corrupção são

agora a ordem do novo dia, em que o Sonho Americano se

transforma em Pesadelo Americano. O próprio detective destaca-

se dos modelos de detecção clássicos e dedica-se mais ao

progresso da demanda do que à sua solução.38 Não segue as

regras da sociedade e, muitas vezes, não partilha da admiração

e satisfação que acompanhavam o detective tradicional. Raymond

Chandler descreve-o assim: “I see him always in a lonely

street, in lonely rooms, puzzled but never quite defeated.”39 A

solidão é a sua marca, faz parte do próprio estatuto do herói:

desconfiado, auto-confiante e carismático. Não existe ninguém

em quem possa confiar senão nele próprio. Todos os outros são

incompetentes ou traiçoeiros.

38 Ver Detective Fiction 106-113 e ainda Thrillers 3.39 In George Grella, “The Hard-Boiled Detective Novel”, Detective Fiction: A Collection of Critical Essays, ed., Robin W. Winks 115.

64

ANABELA DUARTE

Se bem que o objecto primeiro da demanda consista em

salvar a sociedade da conspiração, o carácter ambíguo do

herói, dividido entre o grupo e o isolamento (inside-outside),

confere-lhe um estatuto muito particular, de outsider, levando-

o, por vezes, a tomar a conspiração como uma demanda

particular, incompatível com a regra da lei. A sua

representação do mundo é uma representação paranóica,

combinando uma “auto-asserção inequívoca” com um forte grau de

desconfiança e estabelecendo, assim, a paranóia como

ideologia. O mundo é visto através do olhar paranóico, sendo

esta representação da sociedade perfeitamente racional,

consistindo numa interpretação e sobre-interpretação

constantes de factos e acontecimentos. O paranóico é então

aquele que nunca se encontra satisfeito e que, como refere o

psiquiatra Mounier:

(...) [he] is constantly self-satisfied; any pretext willdo to confirm his pride; he admits neither his wrongs norhis faults, failure has no effect on him. His distrust ofeveryone around him is a direct function of his touchypride. The attention of the entire world appears to him toconverge on his actions and gestures. He is on the look-out for plots, mockery, duplicity, interprets everything,

65

A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

sees connections that no one else would dream of, and isall the more triumphant the more his conclusion isparadoxical.40

Mounier, como acabamos de ver, estabelece uma análise

psiquiátrica do paranóico que nos é muito útil para podermos

compreender a representação do mundo através do olhar

paranóico que, neste caso, caracteriza profundamente o tipo de

conspiração subjacente, tipicamente paranóica e patológica e

vista como fonte primordial dos males do mundo.

Aparte o carácter paranóico do tough detective e da

representação da conspiração a ele subjacente, podemos

concluir que na hard-boiled novel, embora o detective utilize a

detecção como método, não é esse, no entanto, o seu

posicionamento principal, mas sim o carácter físico e violento

da acção, a sua competividade individual, a preocupação com

uma forma de estar enérgica e actual repleta de personagens de

resposta pronta e atitude cool e prática, como sublinha Raymond

Chandler no ensaio The Simple Art of Murder:

I suppose the principal dilemma of the traditional orclassic or straight deductive or logic and deuction novelof detection is that for any approach to perfection itdemands a combination of qualities not found in the samemind. (...) The master of rare knowledge is livingpsychologically in the age of the hoop skirt. If you know

40 Citado por Jerry Palmer em Thrillers 86.

66

ANABELA DUARTE

all you should know about ceramics and Egyptianneedlework, you don’t know anything at all about thepolice. If you know that platinum won’t melt under about3000’F. by itself, but will melt at the glance of a pairof deep blue eyes if you put it near a bar of lead, thenyou don’t know how men make love in the twentiethcentury.41

Chandler ataca com um certo humor os métodos do detective

clássico e, por isso, sublinha o carácter urgente da

actualização da narrativa policial em que a conspiração, fruto

de uma sociedade corrupta, preenchida pelo falseamento e

disfarce, é de natureza paranóica, fazendo parte da própria

estrutura da sociedade a interpretação e suspeição

sistemáticas dos acontecimentos mais banais. Torna-se pois

necessário e indispensável que o investigador possua uma

atitude mais activa e directa com o meio urbano e os meandros

policiais. Por vezes, é o próprio detective a iniciar o

processo conspirativo, na tentativa de mudar a ordem vigente,

ao estilo romântico, ou para manter a ordem estabelecida, como

acontece nas short-stories de Poe e no romance policial clássico.

Mas o mais importante é que a conspiração nem sempre resulta

num crime/morte, como no policial clássico, nem usufrui sempre

41 Raymond Chandler, The Simple Art of Murder 4.

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

de inequívoca solução, dada a ambiguidade do mundo envolvente

e o questionamento crescente da verdade e dos valores

associados. Caminha-se, assim, para um tipo de contingência

própria dos tempos modernos e pós-modernos, que começa a dar

forma a um outro género policial designado Negative Thriller.42

No Negative Thriller o tipo de sensibilidade, fruto da

contingência e do desconforto causado por uma determinada

ambiguidade no desfecho e sucesso das soluções, constitui uma

característica muito própria. Isto mesmo é afirmado por

Palmer:

Here the distinguishing features are the reader’s sensethat the evil the hero has dealt with will reappearwithout difficulty in another form, and that the hero hasn´t derived any personal satisfaction from fighting evil:he has done it because that is what he’s there for.43

Assim, o detective age por obrigação em relação ao bem-estar

social, quando não por motivos pessoais, mas nunca para disso

tirar prazer, pois sabe que não vale a pena; assim, ele não

acredita em soluções finais mas provisórias, contingentes.

Tudo o que resta é a possibilidade de começar de novo outra

vez, mas mesmo isso não garante nenhuma melhoria futura. Não

existe nenhum sentido de segurança e conforto que caracterizam

42 Jerry Palmer, Thrillers 40.43 Ibidem 43.

68

ANABELA DUARTE

os finais do policial clássico e alguma da ficção da hard-boiled

novel, nem aquela sensibilidade do exorcista que, tal como o

xamã, erradica o mal, porque não há catarse. E sublinhámos,

anteriormente, quanto era importante a função catártica para a

coesão social e individual no policial clássico, em Holmes e,

sobretudo, em Poe. O Negative Thriller constitui, assim, uma

espécie de embrião das futuras transformações da sociedade

tecnológica ligadas a uma nova formação da identidade que

apela, sobretudo, à contingência e às potencialidades do

indivíduo “em aberto,” isto é, livre de resoluções definitivas

mas atento a numerosas alternativas.

Depois de analisarmos a criação da detective fiction em Poe e

consequentes desenvolvimentos até épocas mais recentes,

gostaríamos de relacionar a detective fiction, isto é, o policial

clássico, com a conspiração clássica. No sentido clássico das

teorias da conspiração estão implícitas as ideias de partilha

e de comunidade e a questão da linguagem que visa, sobretudo,

o plano pragmático e o mundo da acção,44 embora igualmente44 Informação referida no seminário “Teorias da Conspiração”, do Mestrado emLiterature Comparada: Profª Doutora Helena Carvalhão Buescu. Ver da mesmaautora “Forme di cospirazione: valore, etica, erotismo”, in Cospirazioni,Trame, Quaderni di Synapsis II 112.

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

importantes sejam, como mais adiante veremos, a reflexão sobre

a própria linguagem (a auto-reflexividade característica da

metaficção) e o texto em geral. 45

Conspirar é respirar em conjunto e, tradicionalmente, de

modo secreto e/ou codificado.46 Desde tempos remotos que a

conspiração, aliada aos mitos e às práticas mágico-religiosas,

tem por objectivo aplacar a ansiedade e a tensão social, de

modo a recuperar a totalidade perdida e a inserir o indivíduo

no fluxo da ordem social. O xamã,47 por exemplo, mediador entre45 Trata-se de analisar a conspiração como “efeito de linguagem,” no sentidoem que nos propomos  examinar e descodificar a produção discursiva sobra aconspiração que, na sua acepção mais geral, é concebida como paranóia ou,quando muito, como superstição destinada aos espíritos mais incrédulos e,por isso, destituída de qualquer valor sociocultural e político. Foucault,em A Vontade de Saber, exprime precisamente esta concepção de “efeito delinguagem” como descodificação das estratégias discursivas e comunicativassobre o sexo (séc. XVII e XVIII) ao longo de uma iluminadora história dasexualidade: “Trata-se, em suma, de interrogar o caso de uma sociedade quehá mais de um século se fustiga ruidosamente pela sua hipocrisia, falaprolixamente do seu próprio silêncio, se obstina em pormenorizar o que nãodiz, denuncia os poderes que exerce e promete libertar-se das leis que afizeram funcionar.” (14)46 Informação referida no seminário “Teorias da Conspiração”, do Mestrado emLiteratura Comparada pela docente Profª Doutora Helena Carvalhão Buescu.Ver ainda Djelal Kadir em Cospirazioni, Trame 21. No seu ensaio sobre as formasda conspiração Helena Buescu sublinha a estreita relação entre o dramapessoal e sentimental e aquele propriamente político no enquadramento daconspiração, conferindo-lhe assim uma dimensão afectiva, estética e ética.Quando a comunicação erótica e interpessoal se torna impossível aconspiração aparece, de acordo com a ensaísta, como um modo alternativo deconferir ordem ao universo e aos seus valores. Ver da autora “Forme dicospirazione: valore, etica, erotismo”, in Cospirazioni, Trame, Quaderni diSynapsis II 112.

47 “(De shaman, em tunguse, língua altaica, ‘aquele que é abalado,transportado’)” cit. em “Chamanismo,” Dicionário de Etnologia, 1979. O xamãinventa estratagemas para manter a coesão social através das práticasmágico-religiosas. Nesse sentido, ele é o herói hermeneuta da conspiração

70

ANABELA DUARTE

dois mundos, a comunidade e o mundo sobrenatural, através do

êxtase e da possessão dos espíritos, empreende uma viagem ao

mundo sobrenatural e luta com os espíritos malignos de modo a

restituir a cura ao paciente. Trata-se duma performance, de

uma manipulação conspiradora que, através da criação de

técnicas de persuasão sui generis e secretas (como a extracção por

sucção, do corpo do doente, de um seixo escondido na boca,

apresentado como a causa da doença, o intruso maligno), opera

a ab-reacção48 do paciente e o consensus social. Da mesma

maneira, os cânticos e encantamentos, recorrendo ao

inconsciente colectivo e, por isso, à mitologia da comunidade,

ao serem activados pelo xamã induzem transformações orgânicas

no paciente, constituindo uma mitologia psico-fisiológica e

psico-social criadora do fenómeno a que Lévi-Strauss chamou

eficácia simbólica. Tal eficácia garante um desfecho onde

chamado a solucionar o enigma da ordem ameaçada da comunidade.48 “Termo tomado da psicanálise que diz respeito ao momento decisivo dacura, quando o doente revive intensamente a situação inicial que está naorigem da sua perturbação, antes de superá-la definitivamente.” ClaudeLévi-Strauss, Antropologia Estrutural 209.

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

todos os protagonistas do complexo xamanístico49 reencontram o

seu lugar e a reposição da ordem momentaneamente ameaçada.

Trata-se, na realidade, de uma variação do efeito de

linguagem atrás citado, na medida em que o xamã fornece uma

linguagem (simbólica) ao paciente, com a qual este se

identifica e exprime o seu estado não-formulado, reorganizando

o processo fisiológico na sequência sugerida pelo xamã e os

seus cantos. A conspiração engloba, deste modo, um carácter

positivo de terapia individual e, simultaneamente, de grupo,

devido à ab-reacção sofrida pela triangularidade xamã-

paciente-comunidade/público.

Devemos, no entanto, salientar que Lévi-Strauss também

distingue o lado mais negro, por assim dizer, dessas práticas

mágico-religiosas ligadas à conjura e ao enfeitiçamento, com o

propósito de aniquilar ou anular o objecto do malefício

(remetendo-o à troça social, no caso de a cura de um xamã ser

ineficaz e outro rival ser bem sucedido, ou à exclusão social

que, como sublinhámos anteriormente, conduz progressivamente à

morte física do indivíduo). Outras vezes, o próprio indivíduo,

consciente de ser vítima de um feitiço, somatiza o malefício e

49 Elementos que se articulam em torno de dois pólos: um formado pelo xamã erespectivas técnicas e outro formado pelo consenso colectivo e pelopúblico.

72

ANABELA DUARTE

é intimamente persuadido, através do consenso social

(incluindo parentes e amigos), de que está irremediavelmente

perdido e condenado: “A integridade fisíca não resiste à

dissolução da personalidade social”, como explica Lévi-

Strauss.50 A pouco e pouco o indivíduo, vítima da intriga

geral, vai perdendo todos os laços que o uniam ao grupo e cede

ao terror que experimenta, passando de sujeito de direitos e

obrigações (vivo) a sujeito de ritos e interditos (morto).51

Vimos, assim, como todas estas manipulações da linguagem

simbólica, associadas, por sua vez, à eficácia simbólica e aos

mitos fundadores da comunidade, constituem verdadeiras

narrativas da coesão social, ligando causas e efeitos na

criação de histórias míticas que contribuem fortemente para o

desfecho final da experiência vivida. Neste sentido,

correspondem à estrutura da conspiração clássica em que as

ideias de partilha e de comunidade são fundamentais, dado que

conspirar implica, como o sublinha o prefixo con, a ideia de um

50 Claude Lévi-Strauss, Antropologia Estrutural 194.51 A título de curiosidade, faz-me lembrar o estribilho de Beaumarchais dafamosa ópera de Rossini, Il Barbiere di Siviglia: “La calunnia è unventicello/un’auretta assai gentile/che insensibile e sottile/leggermente,dolcemente/incomincia a sussurrar (...) E il meschino caluniato/avvilito,calpestato/sotto il pubblico flagelo/per gran sorte va a crepar.” (121-28)

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

colectivo, de uma legitimidade garantida por meio de elos

éticos e passionais, um ethos e um eros que, neste caso, subjazem

à configuração mágico-religiosa do tecido social.52

A conspiração reúne, assim, características de positividade

efectiva no confronto solidário da praxis individual e social

e,53 por outro lado, assume aspectos de negatividade dessa

mesma solidariedade, transportando os indivíduos para um

patamar de suspeição e paranóia ao pôr em destaque os seus

receios mais íntimos, ainda que providencie a capacidade para

fabular e mentir, lugar de uma diferença fundamental, de

acordo com Oscar Wilde. 54

Na detective fiction a conspiração despoleta a acção com um

crime ou uma irrupção extraordinária na ordem natural das

coisas, como é, por exemplo, o caso, em “The Murders of the

Rue Morgue”, “The Case of Marie Roget” e “The Purloined

Letter”. E através do método hipotético-dedutivo cabe ao

detective descortinar a trama dos acontecimentos, suas causas

52 Ver Sergio Givoni, Eros/Ethos, Einaudi.53 “Ogni congiura, vista da questa prospettiva, si propone allora come unritorno a un ordine eticamente legittimo che il regime politico [práticas mágico-religiosas, neste caso] aveva sovvertito: cospirare, nel suo significatolimite, non è più solo un diritto, ma anche un dovere.” Helena Buescu,“Forme di cospirazione” 121.54 Diferença essa progressivamente anulada na sociedade moderna, ou seja, asociedade homogeneizada e global. Ver Oscar Wilde, “The Decay of Lying”,Complete Works of Oscar Wilde.

74

ANABELA DUARTE

e consequências, de modo a estabelecer de novo a ordem social.

O detective encarna, deste modo, metaforicamente, a figura do

xamã dos tempos modernos, não usando, porém, uma linguagem

simbólica mas uma linguagem altamente racional e lógica que

implica, todavia, uma certa dose de intuição e imaginação, a

razão intuitiva que anteriormente abordámos. Assim, o

detective é chamado a resolver a conspiração, do mesmo modo

que o xamã é chamado a resolver a desordem individual e social

da comunidade, consequência da intriga e do segredo ritual a

ela subjacente. Ao romance policial clássico corresponde,

deste modo, a conspiração clássica. No entanto, poderá existir

conspiração clássica sem policial clássico, visto que o

fenómeno conspirativo antecede o género detectivesco e remonta

a tempos ancestrais, desde as sociedades ditas “primitivas”,

como vimos em Lévi-Strauss, passando pela Bíblia ou pela

mitologia greco-romana. De igual modo, o facto de o detective

descobrir e deslindar a trama de um crime não impede que novos

crimes aconteçam. Aliás, a figura e a presença do detective

pressupõem a existência de crimes cada vez mais complicados

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

que, tal como afirma Dupin, constituem um desafio permanente

às capacidades lógicas do investigador e da sociedade em

geral.

Em suma, tanto nas sociedades primitivas (lugar do xamã)

que mencionámos, como nas mais modernas (lugar do detective),

a vida e a morte, a riqueza, a guerra e o poder e a conquista

social ou amorosa, são alguns dos ingredientes mais comuns da

conspiração e do policial clássicos. As nuances da intriga, o

segredo, o mistério, o desconhecido, as alianças, os jogos de

bastidores, as paixões, a inveja e o ciúme, são outros tantos

elementos que indicam o desfecho final. Todavia, a teoria da

conspiração é, sobretudo, uma teoria do poder que, na sua

acepção mais clássica, como a que estamos a analisar, tende a

instaurar ou a restabelecer uma ordem e a eliminar o caos. E é

ao nível da comunidade, precisamente, que ela vai fazer surgir

um sentimento de partilha e de identidade comunal, na busca de

uma verdade redentora e da coesão social. Esta estreita

ligação entre cultura/comunidade e conspiração é igualmente

sublinhada por Djelal Kadir:

Come nel caso del “coltivare” comune e collettivo cheproduce la cultura, la cospirazione è anche filologicamentepredicata su una solidarietà ansiosa, una comunanzainvariabilmente segnalata dal prefisso lessicale sia in

76

ANABELA DUARTE

latino sia in greco: syn- in greco, con- in latino. Talecomunanza sopporta anche il relitto di un chiasmo, undoppio gioco che, ancora una volta, comunque trasforma lasolidarietà in sospetto e la rende clandestina. Questo è loscarto che si muove dal respiro all’atto clandestino, dallapreghiera comune alla non comune paranoia, dalla collusionealla delusione, dal consenso al dissenso e alla sfiducia. 55

Configura-se, no entanto, como uma espécie de ligação

pendular, que ora oscila para a completude, ora para o

infinito, ou seja, trata-se de uma ambivalência própria à

teoria conspirativa que pressupõe duas interpretações opostas

e, muitas vezes, simultâneas da realidade, mas sempre com o

intuito ou um desejo quase religioso de conferir uma ordem ao

caos do mundo.56

Em “The Purloined Letter”, por exemplo, trata-se de um

crime de contornos políticos em que uma carta comprometedora é

supostamente roubada à sua legítima proprietária, de modo a

causar-lhe perda de reputação. Dupin, seguindo o percurso e os

actores da intriga, consegue desvendar o mistério, acabando

por encontrar o documento. A ordem é restabelecida e o poder

continua intocável. Na hard-boiled novel, ao contrário, vimos como55 “La cospirazione della cultura e la cultura della cospirazione”, in Cospirazioni, Trame, Quaderni di Synapsis II 23.56 Ver ainda Rasmus Kjaergaard Rasmussen, “Impigliato negli indizi. ThomasPynchon e il detective paranoico”, Cospirazioni, Trame, Quaderni di Synapsis II325.

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A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

a conspiração se reveste de um carácter paranóico, onde nada é

dado como certo e, muitas vezes, não existe um desfecho final,

nem uma solução inequívoca. A conspiração ainda de traços

clássicos na maioria dos policiais começa, no entanto, a

caminhar para um tipo de sensibilidade própria dos tempos

modernos e da contingência a eles subjacente.

Deste modo, entramos no universo de Auster e em The New

York Trilogy, onde os traços da conspiração clássica são nítidos

mas onde, sobretudo, se evidenciam as pistas de um

desenvolvimento que irá dar lugar à conspiração pós-moderna

analisada em capítulos posteriores. Contudo, o que nos

interessa salientar neste contexto, em particular, é a

influência da detective fiction e da conspiração clássica nas três

histórias da trilogia austeriana.

Começando por City of Glass, vimos como o escritor de

policiais, Quinn, se transforma em detective e como a sua

demanda em busca de sentido e verdade constitui uma influência

directa do policial clássico. O narrador de tipo autodiegético

muito peculiar, oblíquo, se quisermos usar uma expressão

austeriana, assim o confirma: 57

57 A narrativa principia na terceira pessoa, mas no final o narrador aparecena primeira pessoa, conferindo à narrativa, de certa maneira, um carácteroblíquo, como salienta o autor. “(...) in City of Glass you have a book writtenin the third person throughout, and then, right at the end, the narrator

78

ANABELA DUARTE

In the good mystery there is nothing wasted, no sentence,no word that is not significant. (...) the detective is onewho looks, who listens, who moves through this morass ofobjects and events in search of the thought, the idea thatwill pull all these things together and make sense ofthem.58

Constatamos por este breve trecho a importância atribuída ao

mínimo pormenor e à procura de padrões de sentido que

preencham a sede de totalidade e unidade próprias ao policial

clássico e à detective fiction. A própria conspiração em City of Glass

começa com um sobressalto na ordem natural dos acontecimentos:

um telefonema misterioso que confunde Quinn e que irá

transformar radicalmente a sua vida. A partir daí, o processo

conspirativo e de restabelecimento da ordem segue os passos da

detecção clássica, embora vá servir propósitos diversos em

Auster, como o mesmo reconhece em The Art of Hunger:

[...] my work has very little to do with it [withdetective fiction]. I refer to it in the three novels ofthe trilogy, of course, but only as a means to an end, as away to get somewhere else entirely. (310)

appears and announces himself in the first-person-which colours the book inretrospect somehow, turning the whole story into a kind of oblique, first-person narrative.” Art of Hunger 317.58 NYT 9.

79

A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

Quinn, ainda, através do personagem por si criado e que dá

pelo nome de William Wilson, escritor de policiais, aponta,

simultaneamente, para a tradição poeiana da narrativa com o

mesmo nome, sugerindo intertextualmente a influência de Poe na

sua obra e na textura do seu policial pós-moderno. William

Wilson, que aparece como figura emblemática do tema do duplo

romântico na obra de Poe, acaba por surgir transformado em

temática detectivesca na obra de Auster, numa pirueta muito

própria do conceito de metaficção historiográfica elaborado

por Hutcheon.59

Max Work, o detective das histórias de Quinn (ou William

Wilson), assimila as qualidades dos detectives da hard-boiled

novel, um género de narrativa, como tivemos ocasião de

explicitar, ainda sob o domínio do enquadramento clássico do

policial mas que aponta, desde já, para o policial pós-

moderno. De acordo com o narrador: “Whereas Quinn tended to

feel out of place in his own skin, Work was aggressive, quick-

59 Isto é, ilustra perfeitamente as noções de “instalação” e “subversão” emque Hutcheon fundamenta a sua tese relativamente ao carácter duplo daestética pós-modernista. Assim, o duplo romântico é extraído do contextonarrativo original e instalado noutro contexto que, por sua vez, vaisubverter o contexto inicial e o próprio motivo do duplo, dado que lhe éatribuído um outro significado e uma outra intenção. Auster acaba porprestar homenagem ao personagem de Poe (William Wilson), nomeando-o na suaobra e, simultaneamente, subverte-o, ao transformá-lo num escritor depoliciais. Ver Linda Hutcheon, A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction.

80

ANABELA DUARTE

tongued, at home in whatever spot he happened to find

himself”.60 Quinn é um sujeito à procura da sua identidade, em

cisão interior, como os protagonistas de Poe, e projecta nos

personagens que constrói a energia e o gosto pela vida que ele

perdeu. A multiplicação das identidades constitui, no entanto,

um sinal inconfundível da contingência dos tempos modernos.

Logo no início da história, como vimos, começa a desenhar-se a

conspiração através de sucessivos telefonemas anónimos que vão

servir de mote a todo o desenvolvimento da trama conspirativa.

A suspeita, a intriga e o presumível crime, ou seja, a

libertação de Stillman que levaria ao assassinato de Peter

Stillman, levam Quinn a investigar o caso à maneira do

detective clássico. No entanto, ele não consegue solucionar a

conspiração e devolver intacta a ordem ameaçada, como o fariam

Dupin, o xamã de que falámos anteriormente, ou até o detective

da hard-boiled novel. Esta falta de fechamento sistemático da

conspiração nas três histórias de Auster, conduz à formulação

de um novo tipo de conspiração que, por sua vez, implica

também a criação de um novo tipo de detective, como veremos.

60 NYT 10.

81

A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

Do mesmo modo, em Ghosts, Blue é contratado para seguir

Black e descobrir o motivo do seu isolamento. Ao seguir os

tradicionais métodos policiais constata que não são válidos

para compreender claramente a situação em que se encontra e a

trama conspirativa apresentada. A suspeita, a intriga e o

segredo, fazem parte da dinâmica conspirativa da narrativa,

mas o fim da mesma já não é descobrir a solução de um crime,

pois não existe uma vítima. Mais uma vez, trata-se de outra

coisa, de um outro tipo de conspiração incompatível com os

métodos de detecção clássicos. Na realidade, Blue

consciencializa o facto de que esses métodos detectivescos não

se adaptam à nova situação da sua condição enquanto

investigador, embora utilize os procedimentos da detecção

clássica próprios da detective fiction, com base na racionalização

dos acontecimentos, e ainda o método da hard-boiled novel com

ênfase na acção:“In every report he [Blue] has written so far,

action holds forth over interpretation”61. Assim, acaba por

chegar à conclusão de que nada disso se adapta à sua actual

situação: “Clues, legwork, investigative routine-none of this

is going to matter anymore. But then, when he tries to imagine

61 NTT 374.

82

ANABELA DUARTE

what will replace these things, he gets nowhere”.62 Deste modo,

a rotina profissional do investigador carece de eficácia nesta

demanda particular de Blue mas, simultaneamente, ele não sabe

como resolver o novo problema devido ao facto de ainda não

existir um novo método de pesquisa que lhe permita descobrir o

sentido da investigação. Ao tomar consciência da ineficácia do

método policial clássico, Blue faz ainda ressaltar a percepção

da importância do método tradicional nas suas pesquisas

anteriores.

Por último, em The Locked Room, a conspiração surge com o

aparecimento de Fanshawe que tinha sido dado como desaparecido

e a narrativa decorre praticamente em flashback, à maneira dos

narradores (voice-over) do film-noir. Apesar de existir um

detective de nome Quinn a soldo de Sophie, esposa do narrador,

quem de facto retoma o processo da demanda detectivesca é o

próprio narrador dramatizado que, através de pistas várias,

vai reconstruindo a vida e os passos de Fanshawe até,

finalmente, conseguir chegar à descoberta do seu paradeiro:

62 NYT 175.

83

A CRIAÇÃO DA DETECTIVE FICTION E A CONSPIRAÇÃO CLÁSSICA

I was a detective, after all, and my job was to huntfor clues. Faced with a million bits of randominformation, led down a million paths of fake inquiry, Ihad to find the one path that would take me where Iwanted to go.63

Nesta procura da totalidade do sentido busca o detective a

solução final do mistério e da conspiração. Contudo, embora a

conspiração assuma as características e os métodos do policial

clássico, são nítidos novos desenvolvimentos que sugerem já o

perfil da conspiração pós-moderna e da anti-detective fiction, de que

falaremos mais adiante.

EXCERTO DA TESE DE MESTRADO EM LITERATURA COMPARADA “A CRIAÇÃODA DETECTIVE FICTION E A SUA RELAÇÃO COM A CONSPIRAÇÃOCLÁSSICA.” CEC – FLUL, Universidade de Lisboa, 2006I Parte, “PROLEGÓMENOS À CONSPIRAÇÃO PÓS-MODERNA: PAUL AUSTERE A HERANÇA DE EDGAR ALLAN POE – TRADIÇÃO E MODERNIDADE.”

Anabela Duarte

.

63 NYT 332.

84

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