Uma pequena revolução: arte, mobilidade e segregação em uma favela carioca
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XV Congresso Brasileiro de Sociologia
26 a 29 de julho de 2011, Curitiba (PR)
Grupo de Trabalho: Sociologia da Cultura
Título do Trabalho: Uma pequena revolução: arte, mobilidade e segregação
em uma favela carioca
Nome completo e instituição do(s) autor(es):
Bianca Freire-Medeiros (CPDOC/FGV)
Lia de Mattos Rocha (UERJ)
Uma pequena revolução:
Arte, mobilidade e segregação em uma favela carioca
Bianca Freire-Medeiros (CPDOC/FGV)*
Lia de Mattos Rocha (UERJ)**
I. Introdução
Esta comunicação emerge do diálogo entre duas experiências de pesquisa1
que, por motivações distintas, compartilharam de um referente empírico comum: a
iniciativa comunitária, artística e social conhecida como Morrinho, que desde os
anos 1990 vem se constituindo em torno de uma enorme maquete de tijolos na
qual aspectos do cotidiano das favelas são encenados com pecinhas de Lego.
Recentemente reconhecido como Ponto de Cultura2, o Morrinho se desdobra em
quatro iniciativas complementares: TV Morrinho (que já produziu peças
audiovisuais para clientes como Nickelodeon e Coca-Cola); Turismo no Morrinho
(visitas guiadas à maquete); Morrinho Social (braço responsável pelo
desenvolvimento de atividades culturais na favela) e Morrinho Exposição
(reprodução da maquete em exposições internacionais e grandes feiras de arte). A
partir dessas quatro frentes, o Morrinho tem se tornado elemento de conexão
entre jovens da favela e habitantes de outros territórios no Brasil e, sobretudo, no
exterior.
Em sua origem, o Morrinho está ligado à história do passado violento da
favela onde se localiza. Atualmente, a Pereira da Silva é tida de certa maneira
como uma localidade atípica por não contar com tráfico de drogas organizado,
* Professora Associada da Escola Superior de Ciências Sociais e História (CPDOC/FGV) e Bolsista de
Produtividade em Pesquisa do CNPq. *
* Professora Adjunta do Dept. de Ciências Sociais e da Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 1 Bianca Freire-Medeiros: projeto intitulado Ações Solidárias e o Consumo de Experiências: Um estudo sobre
o campo do turismo voluntário no Rio de Janeiro, realizado desde 2008 com apoio do CNPq (Programa de
Bolsas de Produtividade em Pesquisa) e da FAPERJ (uma bolsista de IC, Juliana Pacheco, e financiamento parcial no contexto do Programa de Grupos Emergentes). A pesquisadora agradece a participação competente e entusiasmada das assistentes Fernanda Nunes e Livia Campello. Lia Rocha: Pesquisa de Doutoramento em Sociologia, realizado no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), entre 2005 e 2009, com bolsa CNPq e Bolsa Sanduíche Capes. 2 Segundo o MinC (2011), os Pontos de Cultura são “entidades reconhecidas e apoiadas financeira e
institucionalmente pelo Ministro da Cultura que desenvolvem ações de impacto sócio-cultural em suas comunidades (...), atuando em redes sociais, estéticas e políticas”.
milícia ou Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Durante os anos 1980 e 1990,
porém, a realidade era outra. Situada em um morro íngreme entre os tradicionais
bairros de Santa Tereza e Laranjeiras, a favela ocupava lugar importante no varejo
de drogas, tendo sido, segundo seus moradores e a mídia, palco de muitos
confrontos entre diferentes quadrilhas de traficantes e entres estes e a polícia. No
ano de 2000, como parte da política de segurança pública implementada pelo
então governador Anthony Garotinho, transferiu-se a sede do Batalhão de
Operações Policiais Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro para perto da entrada da favela. Na opinião dos moradores, a presença
dos policiais militares foi responsável por eliminar o tráfico de drogas da região,
daí ser percebida como uma favela “tranqüila” e “diferente das outras” (cf.
ROCHA, 2009).
No Pereirão, como é conhecida, vivem hoje pouco mais de cinco mil
pessoas entre ruas estreitas e vielas que inviabilizam o acesso por meios de
transportes motorizados. No âmbito da favela não há escolas, postos de saúde,
tampouco comércio variado. Sua população costuma usufruir, basicamente, dos
serviços oferecidos nas proximidades. A tabela abaixo evidencia a distância social
existente entre o Pereirão e o bairro de Laranjeiras, sua vizinhança:
Laranjeiras Pereirão
Moradores alfabetizados 94% 81%
Responsáveis pelos domicílios particulares permanentes com mais de 15 anos de estudo
54% 3%
Responsáveis pelos domicílios particulares permanentes com renda de 10 ou mais salários mínimos (de 2000)
61% 2%
Renda média do responsável pelos domicílios particulares permanentes (em salários mínimos de 2000)
19.6 3
Fonte: Censo 2000
Desde meados dos anos 2000, a pequena favela adquiriu uma visibilidade
duplicada: por um lado, passou a integrar o disputado campo das “favelas com
projetos sociais”, um universo composto particularmente por ONGs que disputam
financiamentos públicos e/ou privados a partir da mobilização de moradores e
não-moradores de favelas. Por outro, inseriu-se no mercado do turismo de
pobreza (FREIRE-MEDEIROS, 2006; 2009) graças não apenas ao Morrinho e ao
circuito de visitações pagas que este motiva, mas igualmente por conta da
Pousada Favelinha. Inaugurada no fim do ano de 2004 pela brasileira Andréia
Martins e pelo alemão Holger Zimmermann, a hospedagem apresenta-se como “a
primeira do Brasil” a oferecer serviços desse tipo numa favela.
Tomada como um “caso particular do possível”, nos termos de Bachelard3, a
experiência mais ampla da Pereira da Silva -- e em especial do projeto Morrinho --
nos permite testar uma dupla hipótese: a) desde as suas origens as favelas
encontram-se enleadas em complexas redes globais, mas na atualidade esses
sistemas de mobilidades co-dependentes têm adquirido intensidades e
reverberações inesperadas (Cf. FREIRE-MEDEIROS, 2011); b) na confluência
dessas mobilidades, a categoria “favela” transmuta-se em um campo heurístico
privilegiado para repensarmos temas clássicos (segregação socioespacial, risco,
reconhecimento social) e testarmos temáticas emergentes no campo da sociologia
da cultura (projeto, capital de rede). Guiadas por essas hipóteses, procuramos
estabelecer um diálogo com o paradigma das novas mobilidades (SHELLER &
URRY, 2006; URRY, 2007; ELLIOT & URRY, 2010) e com o conceito de “cidade
por projeto”, tal como definido por Boltanski e Chiapello (1999).
O paradigma das novas mobilidades propõe uma teorização do “mundo
social” como uma vasta coleção de práticas econômicas, sociais e políticas, bem
como de infraestruturas e ideologias, que envolve, demanda ou (im)possibilita a
mobilidade. Nesse sentido, nos ajuda a problematizar de que maneira e por que
canais os intensos fluxos de capitais, corpos, câmeras, ideias e imagens que
atualmente convergem para certas favelas – como é o caso da Pereira – acabam
por definir, a um só tempo, o que é “a favela” no imaginário internacional e qual
seria “o problema da favela” no campo das políticas sociais. O conceito de projeto,
por sua vez, permite compreender o modelo de agenciamento social que dá
3 Apesar de o “caso particular” ser uma expressão razoável das estruturas do campo, sua emergência a partir
dessas estruturas não pode ser tomada nem como regra nem como algo facilmente reproduzível.
legitimidade à iniciativa Morrinho: uma ONG organizada em torno de um “projeto
social”. Utilizamos a noção de projeto social aqui como termo nativo (i.e. parte do
vocabulário utilizado pelos entrevistados e pelos profissionais do campo do
trabalho social), referido a uma atividade que reúne diferentes profissionais de
instituições públicas e privadas e que se volta para um público-alvo supostamente
portador de alguma "necessidade social" não satisfeita pelos canais institucionais4.
A seguir, traçamos um breve histórico do Morrinho e focamos nos padrões
de mobilidade, assim como nos diferentes princípios de conduta e
reconhecimento, que emergem em torno de um formato de ação pública bastante
comum nas favelas cariocas – o já mencionado projeto social – a cuja lógica o
Morrinho passou a se enquadrar. Argumentamos que o modelo de projeto social
permite aos participantes da iniciativa potencializar seu capital de rede (Cf. URRY,
2007) por meio do acionamento de um repertório compreensível por todo o
espectro de seu “público-alvo”: agentes públicos, ativistas, turistas, artistas e
potenciais financiadores. Encerramos trazendo algumas reflexões sobre o que
acreditamos ser um dilema experimentado não apenas pelo Morrinho, mas que
perpassa inúmeras experiências similares em outras favelas e que pode ser
formulado através da seguinte indagação: é possível conceber "arte" em/de favela
com algum grau de autonomia ou trata-se de uma categoria necessariamente
atrelada àquela de "projeto social"?
II. De brincadeira a projeto social: Morrinho e suas múltiplas mobilidades
A maquete Morrinho é composta por diferentes territórios, todos batizados
com nomes de favelas empíricas. Cada um dos rapazes5 é responsável pela
4 A utilização do termo projeto pode estar, ainda, relacionada à forma como essas atividades são
apresentadas, especialmente para fins de captação de recursos: através de documentos que descrevem intenções, planejamentos, ações futuras e resultados esperados. Para uma análise mais detida, ver Rocha, 2009. 5 Atualmente, o Morrinho é: Esteves Lúcio, José Carlos Silva Pereira "Júnior", Luciano de Almeida, Marcus Vinícius Ferreira, Maycon Oliveira "Mc Maiquinho", Jesus Nicolas, Paulo Vitor da Silva Dias, Pedro Henrique, Rafael Moraes, Raniere Dias, Renato Dias e Rodrigo de Maceda, além de Cilan Oliveira, que também compõe o conselho da direção.
concepção, construção e manutenção de sua própria favela, sendo perceptível a
preocupação de cada um em imprimir o seu gosto e subjetividade na organização
do território pelo qual é responsável. Esse mundo em miniatura, totalmente
construído com materiais reciclados, já ocupa uma área de mais três mil metros
quadrados no alto do morro e segue crescendo – "assim como as favelas de
verdade", ironizam seus criadores.
Fonte: Bianca Freire-Medeiros
Parte significativa da brincadeira tematiza a vida e o cotidiano dos
traficantes de drogas e daqueles que os cercam – namoradas, cúmplices, inimigos
e polícia. São encenados conflitos entre diferentes favelas e entre traficantes e
policiais, especialmente os do BOPE, com direito à reprodução de sua sede em
miniatura. A relação com o Batalhão, aliás, faz parte da narrativa de origem e
resistência do Morrinho, como relembra José Carlos “Júnior”, um dos criadores da
“brincadeira”:
No momento em que a polícia entrou (...) eles descobriram o Morrinho e pensavam que era uma estratégia para invadir outras comunidades, que era uma simulação de guerra. Tinha BOPE lá [na Pereira, perto da maquete], que ficava 24 horas direto... E a gente era criança... se sentia um pouco oprimido, porque eles ficavam engatilhando as armas deles e a gente ficava com medo. Teve um dia em que a gente começou a desmontar e eles perguntaram o que a gente estava fazendo. “A gente está desmontando. Não vamos mais brincar, não.” Aí o cara: “Não faz isso, não. O coronel está vindo aí e ele vai pensar que a gente mandou vocês desmontarem”. [Morrinho]: “Mas é verdade. Vocês é que mandaram a gente desmontar.” [BOPE]:“Mas não desmonta, não”. Chegou o coronel e ficou tudo preto lá, tinha mais de trinta BOPE no Morrinho. Eles começaram a conversar com a gente. O coronel perguntou o que era [a maquete]. A gente: “a gente está brincando. Isso aqui é só uma brincadeira de criança.”
6
6 Este e demais trechos aqui citados fazem parte da entrevista gravada em agosto de 2009 por Freire-
Medeiros.
O fato de a brincadeira girar quase inteiramente em torno da rotina dos
traficantes não parece ser, na perspectiva dos jovens do Morrinho, uma questão a
ser desculpada. Ao contrário: a temática da "brincadeira" é descrita como uma
"representação da verdade". Os participantes do Morrinho costumam reiterar que,
em tempos violentos, a brincadeira na maquete oferecia-lhes um refúgio que, em
larga medida, inscrevia-se em princípios paradoxais: era na encenação lúdica de
episódios da "vida real das favelas", com suas disputas violentas e alto nível de
arbitrariedade, que os meninos encontravam sentido em "resistir à sedução do
tráfico".
Fonte: Bianca Freire-Medeiros
Pecinhas com adereços distintos
representam traficantes de diferentes
facções e policiais, pedacinhos de giz
representam um quilo de cocaína,
enquanto outras pecinhas são
transformadas em armamentos de
toda ordem.
Já haviam se passado três anos de "brincadeira levada a sério" (a
encenação exige de seus participantes uma rotina de cuidados com a maquete,
além do respeito a inúmeras regras e a princípios de veracidade próprios à
dinâmica do jogo), quando os meninos receberam a visita de dois publicitários
interessados em fazer um filme documentário sobre a iniciativa7. Como gostam de
reforçar publicamente, o Morrinho como “projeto” - e não mais como brincadeira --
teria nascido do encontro entre “meninos da favela” e “homens do asfalto”
interessados na mesma "brincadeira". A partir desse encontro tornou-se possível a
transformação da "brincadeira" em ONG, dos “meninos” em artistas e técnicos de
audiovisual, assim como da "maquete" em instalação artística reproduzível em
outros contextos e territórios, como explica Júnior:
A gente fazia um curso (...) e o nosso professor Kiko era amigo do Fábio [Gavião, produtor audiovisual]. A gente nunca ia à aula dele, porque a gente estava sempre no Morrinho (antigamente o nome não era Morrinho, a gente chamava só de maquete. O Morrinho surgiu assim: a comunidade toda falava “o Morrinho, o Morrinho”). Aí teve um certo dia em que ele [o professor] foi lá, viu a gente brincando e falou: “(...) Vocês podem ficar aí matando a minha aula, porque aqui é um espaço de arte e cultura”. E aí ele foi e falou com o Fábio Gavião. O Fábio já queria fazer um documentário dentro da comunidade [e] marcou para ir lá junto com o Marcão, que é o fotógrafo. Eles chegaram lá e viram a gente brincando e ficaram encantados... Eles pegaram a câmera e começaram a gravar (...) O boneco morrendo e ele: “faz isso aqui de novo.” [Meninos do Morrinho]: “Não, se tu morreu, tu não vai voltar para falar. A realidade aqui é essa. É o cotidiano. Você não pode chegar aqui e mudar.” Aí ele [Fábio] falou: “Então eu vou deixar a câmera na mão de vocês e vocês gravam o que quiserem.” (...) A gente ficou encantado com a câmera, a gente nunca tinha mexido com uma câmera. (...) E quando ele viu o que a gente tinha gravado, ele ficou maluco: “caraca, vocês são incríveis!” Até um certo dia que a gente estava lá conversando, bebendo, e surgiu a idéia: “cara, vamos fazer uma TV, uma TV comunitária”. A gente ficou meio assim... É que todo mundo que ia lá prometia alguma coisa para a gente e até hoje ninguém nunca apareceu. Quando ele foi embora a gente disse: “esse cara está enrolando a gente”. Só que ele voltou com mais um produtor, que é o Chico. Aí a gente começou a ser convidado para fazer vídeos institucionais para as empresas. Ele [Fábio] era convidado, mas não ia e colocava a gente para fazer. E começou a vender a TV Morrinho: “Não, eu não vou. Quem vai são os garotos da TV Morrinho”.
A aquisição de um novo status e a profissionalização de suas atividades
representaram uma mudança substantiva no cotidiano do grupo. Não se trata
apenas de profissionalizar o que antes era uma brincadeira, mas de se adequar a
uma nova atividade a que são atribuídos papéis sociais bastante diversos, com
lógicas de ação e dinâmicas de visibilidade distintas "para dentro" e "para fora" da
favela.
7 O documentário Deus sabe tudo mas não é X9, dirigido por Fábio Gavião e Markão Oliveira, foi lançado em
2008 e retrata o que os jovens participantes chamam de “nossa história”. Com trechos de entrevistas com os participantes e de trabalhos realizados pelo grupo (exposições, viagens, apresentações), o documentário já foi exibido nos festivais do Rio de 2008 e de Ouro Preto em 2010, bem como no Museu de Arte Moderna de Nova York em 2009.
Financiados por grandes empresas públicas ou privadas, assim como pelo
governo em seus três níveis de atuação, os projetos sociais tornaram-se, nas
últimas décadas, uma importante mercadoria negociada e desejada por
moradores de favelas. Acredita-se que o engajamento nesse tipo de iniciativa
maximiza as chances de se conseguir um emprego melhor do que os oferecidos
aos jovens favelados em geral, ao mesmo tempo em que minimiza as chances de
o jovem se envolver em atividades ilegais. Para “dentro” da favela, isso é, para as
famílias, amigos e vizinhos dos participantes, estar engajado em um projeto
significa, portanto, fechar a porta à temida ociosidade e abrir uma janela de
possibilidade no mercado de trabalho.
Ambas as dimensões -- o combate à ociosidade e a perspectiva de
empregabilidade -- habitam os discursos dos participantes do Morrinho e dos
adultos que circulam em torno do projeto (pais, lideranças comunitárias,
participantes da ONG que não residem na favela). Estes mencionavam que o
engajamento no Morrinho significava uma ocupação positiva do tempo dos
participantes, afastando-os de “ideias ruins” e impedindo que fizessem “coisas
erradas”8. Como observamos anteriormente, os participantes também ressaltam o
papel de refúgio que a brincadeira tinha na época em que os traficantes de drogas
dominavam o Pereirão, pois estar no espaço da maquete significava não estar
circulando “de bobeira” pela favela, arriscando ser vítima no fogo cruzado durante
um confronto. É possível dizer que, no início e ainda como brincadeira, o Morrinho
já alterava os padrões de mobilidade física dos jovens participantes, traçando-lhes
rotas alternativas dentro do próprio espaço da favela. As possibilidades de
mobilidade física para fora da favela e de mobilidade social ascendente, por sua
vez, somente viriam com a transmutação da brincadeira em projeto.
O investimento na ONG como potencializadora de uma mobilidade social
positiva -- via profissionalização ou entrada no mercado de trabalho -- torna-se
8 “Cabeça vazia é a oficina do diabo”, um dos ditados mais populares entre favelados, é igualmente acionado
por pesquisadores, ONGs, poder público e jornalistas. Artigo do jornal O Globo sobre pesquisa realizada no Instituto de Economia da UFRJ, por exemplo, aponta uma correlação positiva no aumento das taxas de desemprego, ociosidade (fora da escola e sem trabalho) e homicídio entre jovens. Cf. O Globo, 16/05/2009.
evidente quando os jovens do Morrinho falam sobre a importância que a iniciativa
tem em suas vidas hoje. O fato de ganharem dinheiro com o projeto faz com que
sejam mais respeitados pelos pais, inclusive como artistas (ainda que muitos pais
preferissem um emprego formal e estável); alguns já têm família, que são capazes
de sustentar (mesmo que parcialmente) com o que ganham no Morrinho. Para
outros, a passagem pela ONG ajudou a conseguir emprego em produtoras de
audiovisual ou ainda em empresas da área de turismo. Por fim, o engajamento na
ONG lhes permite reivindicar o status de exemplo, de liderança dentro do
Pereirão:
Você está vendo que a molecada da comunidade não está indo para o caminho da violência, estão seguindo o caminho que eu segui. Você vê eles se espelhando em você. Sente emoção. Acho que isso é consideração e respeito. (Cilan, diretor artístico da maquete, em entrevista gravada por uma equipe universitária e disponível no Youtube).
Esse status, é importante reter, deve-se em grande parte ao circuito de
mobilidades internacionais que o engajamento no projeto proporciona aos
integrantes do Morrinho. Em 2004, os jovens foram convidados a participar do
Fórum Mundial Urbano em Barcelona, em 2005 estiveram no Point Ephémère em
Paris, no ano seguinte na Haus der Kunst em Munique. “Até o Gilberto Gil [então
Ministro da Cultura] veio ver a gente”, nos contou com orgulho Raniere Dias, um
dos fundadores do projeto. Em 2007, o grupo esteve na Bienal de Veneza, onde
construiu uma maquete de 200 metros quadrados e, em 2010, expôs em Oslo
(Noruega) e no prestigioso Southbank Center em Londres. Enquanto escrevemos
este artigo, o Morrinho prepara mais uma exposição, desta vez na Holanda.
Viajar o mundo com o Morrinho traz visibilidade positiva “para fora” e “para
dentro”, porém cobra o preço de tensionar os princípios da brincadeira e da
obrigação, como explica Júnior:
Tem moradores da comunidade que nunca viram o Morrinho. Ouviram falar, sabem o que é, mas nunca viram ao vivo. Não é por que não dão importância. Há oito anos eles não davam importância mesmo, a comunidade inteira. Mas, depois que a gente foi para a Europa, que a gente começou a conquistar o lado audiovisual e tal, as pessoas começaram a ver que aquilo ali era um trabalho mesmo. Mas também é uma brincadeira ainda. Quando a gente faz as exposições de ir para a Europa – as exposições grandes - a gente fica muito nervoso, a gente briga muito, porque às vezes a gente tem um prazo para entregar o trabalho. Então, a gente fica só trabalhando e não tem tempo de brincar.
O universo dos projetos organiza-se não apenas como um mercado – de
trabalho e de competição por financiamentos –, mas também como uma
gramática, uma forma de agenciamento social. Como identificou Novaes (2003:
148 e seguintes), ser “jovem do Projeto” ou “profissional de projeto” permite ao
participante apropriar-se de uma linguagem e de símbolos, compartilhados por
ONGs e pela mídia, que gravitam em torno de ideias positivamente valoradas:
cidadania, direitos, autoestima, empoderamento, etc. Conforma-se, então, uma
gramática da cultura local que incentiva a identificação com os valores e com as
manifestações culturais produzidas pelos favelados e no espaço da favela. Ao ser
levada para “fora da favela”, tal gramática permite ao jovem participante de projeto
realizar uma eficiente apresentação de si, sobretudo nos momentos em que é
necessário realizar operações de “limpeza moral”9. O passaporte simbólico do
“Jovem de Projeto” é carimbado com qualificativos que o distinguem como alguém
com autocontrole, disciplina e consciência sobre direitos e deveres – conteúdos
geralmente difundidos nas aulas teóricas dos projetos sociais (Cf. ROCHA e
ARAÚJO, 2008). O contraponto óbvio aqui são os jovens participantes de grupos
criminosos que supostamente seriam descontrolados, sem compreensão sobre
direitos e deveres, cidadania, etc. Não surpreende, portanto, que muitos jovens
participem de projetos sociais visando ampliar seu capital social e de rede,
potencializadores de sua entrada no mercado de trabalho10.
A afinidade entre o jovem de favela e o projeto social constitui-se
igualmente a partir de uma relação multifacetada – e muitas vezes paradoxal --
com as noções de risco e de mobilidade. Ao mesmo tempo em que participar do
projeto permite ao jovem adentrar outros territórios como alguém que não
representa um risco para a sociedade, possibilita que se proteja ele mesmo do
risco posto aos jovens favelados em seu próprio território. Trata-se, contudo, de
uma relação investida de expectativas que nem sempre se realizam. Durante o
9 Operação de apresentação de si que os moradores de favela constantemente têm que fazer para
estabelecer a distinção entre eles, “pessoas de bem”, e os traficantes de drogas e bandidos com os quais são identificados pelo senso comum em função da contiguidade territorial experimentada nos espaços de favelas. Cf. Machado da Silva e Leite, 2008; Rocha, 2009. 10 Segundo um jovem participante de um projeto de capacitação profissional financiado pelo governo federal:
ter no currículo a participação no projeto era como uma carta de recomendação (Cf. Rocha e Araújo, 2008).
trabalho de campo de uma das autoras, a sede do Projeto Morrinho foi invadida
por policiais do BOPE, que revistaram todos os presentes e também as
instalações em busca de armas ou drogas que acreditavam estar ali guardadas
(ROCHA, 2009). A indignação dos jovens com o fato era expressa nos seguintes
termos: “Nós somos uma ONG, um projeto social! Somos contra a violência! Não
tem sentido achar que somos envolvidos!”. Se eles então operavam com a lógica
que desassocia projeto social e criminalidade, a mesma lógica estava longe de
informar a ação do BOPE, que continuava tratando-os com a desconfiança
reservada a todos os favelados, vistos a priori como cúmplices dos traficantes de
drogas.
O risco como possibilidade, no entanto, não aparece apenas quando “os de
fora” se referem aos jovens de favela. Ao disputar no mercado escassos
financiamentos para suas atividades, as ONGs lançam mão, via de regra, de um
repertório que descreve seu público-alvo como potencialmente perigoso ou
passível de sedução pelo “mal” representado pela adesão ao crime. Dito de outro
modo, na busca por recursos materiais e simbólicos as ONGs acabam por
incorporar e reproduzir a ideologia do risco. Como discutido por Ulrich Beck
(2000b), risco não é o mesmo que catástrofe, mas a consciência da catástrofe no
passado e a antecipação da catástrofe futura no presente. O risco leva a uma
existência duvidosa e alusiva, produzindo como resultado uma política do medo
e/ou uma política da prevenção. Conforma-se, então, uma gramática dos projetos
sociais que vitimiza seus participantes, apresentando-os como “jovens em
situação de risco”. Mesmo sendo a Pereira da Silva descrita por seus moradores
como “uma favela tranquila” e “diferente das outras”, em suas narrativas públicas o
Morrinho apresenta seus participantes como sendo fruto da violência vivenciada
no passado e em confronto constante contra os apelos da vida criminosa no
presente. No plano de negócios11 da ONG TV Morrinho para o ano de 2007, os
jovens participantes são descritos como “em situação de risco social”, e um dos
11 O plano de negócios é um projeto que apresenta a potenciais investidores os objetivos, ações, resultados
esperados, fraquezas e forças de iniciativas que podem ser no campo do trabalho social, como no caso, ou em empreendimentos econômicos.
objetivos da iniciativa seria “diminuir os níveis de violência e marginalidade na
comunidade do Pereirão”.
Outra dimensão constitutiva da gramática dos projetos sociais é a descrição
desse tipo de atividade como uma ação limitada no tempo e no espaço, isto é,
com duração pré-determinada e sobre um território específico (geralmente uma
favela ou conjunto delas). Assim sendo, só pode se sustentar a partir de parcerias
a serem refeitas ou desfeitas, e não de engajamentos mais definitivos. Nesse
sentido, a gramática dos projetos sociais compartilha com a gramática da cidade
de projetos um repertório de objetos e dispositivos que se organizam em torno de
conceitos como parceria, acordo, rede e projetos (BOLTANSKI e CHIAPELLO,
1999: 177). É essa configuração do projeto que permite também um engajamento
menos intensivo por parte dos voluntários que trabalham nessas iniciativas, em
um formato mais contemporâneo de filantropia, bem como de engajamento político
e moral.
No chão empírico do Morrinho, tal formato atualiza-se, sobretudo, na
experiência do chamado volunturismo. Não cabe aqui nos alongarmos nos
debates em torno dessa atividade híbrida na qual se conciliam práticas de lazer e
turismo com algum tipo de trabalho voluntário em projetos sociais (Cf. WEARING,
2001; SIMPSON, 2005). Mas vale lembrar que o circuito do volunturismo seria
impensável sem a presença de ONGs que, por um preço determinado, alocam
turistas-voluntários em “localidades carentes” do sul global (FREIRE-MEDEIROS,
2009; NUNES E PACHECO, 2009). Por conta de uma parceria estabelecida com
duas ONGs que prestam esse tipo de serviço, uma com sede no Brasil e a outra
com sede na Inglaterra, o Morrinho passou a receber volunturistas interessados
em colaborar de diferentes formas com o projeto durante um período de pelo
menos três semanas. Atualmente, duas jovens americanas que conheceram o
Morrinho na qualidade de volunturistas fazem parte de seu Conselho de Direção.
Nesse sentido, não surpreende que seja parte importante da gramática dos
projetos a ideia de redes. Para Boltanski e Chiapello (1999) a rede é a “figura
harmoniosa da ordem natural” da cidade por projetos (1999: 167 e 190); é a forma
“natural” pela qual os projetos se organizam e se reproduzem, e também o formato
de dinâmica social que modela a atuação dos agentes, dentro do novo modelo de
capitalismo vigente. No caso das ONGs e de seus participantes, o relacionamento
com diferentes redes -- apoio, filantropia, preocupação social -- é fundamental
para a continuidade de sua atuação, pois permitem contatos que viabilizam
projetos e, por conseqüência, a entrada em outras redes e projetos,
consecutivamente. Entrar e participar de redes é possível, nesse novo capitalismo,
quando o ator/sujeito incorpora valores como flexibilidade, versatilidade,
engajamento temporário e passa a agir por projeto.
Quando indagado sobre o que há de positivo e de negativo no estabelecimento
de redes de contato, Júnior pondera:
“O que tem de bom é o conhecimento, o conhecimento e a amizade que a gente faz, porque a partir das amizades a gente pode fazer projetos mais a frente com essa galera. E conhecimento é porque a gente conhece as culturas, aprende algumas coisas da língua deles
– não só dos índios12
, mas quando a gente vai na Europa...Temos muitos amigos na Europa.
Não vejo um lado ruim. Eu acho que o ruim era quando a gente estava estudando, porque a gente tinha que parar de estudar para fazer as exposições, para vender o nosso produto. Mas, hoje em dia, não tem um lado ruim...”
12 Júnior faz menção aqui à viagem ao Acre financiada pela ONG Video nas Aldeias, que provê oficinas de
vídeo por todo Brasil. Antes da ida de três integrantes do Morrinho ao Acre, um grupo de índios passou três semanas na Pereira, filmando não apenas as atividades do Morrinho, mas também a rotina local.
Ainda que, nas palavras de Júnior, não haja “um lado ruim” na articulação em
redes e por projeto, é preciso reter que o estabelecimento dessas conexões de
várias ordens não vai sem esforço – afinal, cabe aos atores sociais envolvidos
maximizar o que Urry (2007) chama de capital de rede (network capital).
Consequência das múltiplas mobilidades – reais ou potenciais -- que estabelecem
variadas formas de distinção social, o capital de rede exige a aquisição de novas
habilidades, entre elas o domínio do vocabulário das diferentes redes para que se
possa fazer uso delas. O sujeito precisa ser capaz de gerar, sustentar e
instrumentalizar relações sociais com pessoas não necessariamente próximas que
possam trazer-lhe benefícios emocionais, financeiros e práticos não redutíveis aos
benefícios gerados pelo que Bourdieu (1984) chama de capital cultural e capital
econômico – o que, por sua vez, exige a articulação em rede de uma série de
objetos e aparatos tecnológicos. No processo, cria-se uma nova hierarquia
baseada na capacidade que os sujeitos possuem de deslocamento físico,
flexibilidade no uso do tempo e acionamento de parceiros distantes-porém-
próximos por meio de ferramentas de comunicação.
III. Considerações Finais
No artigo intitulado “Putting Hierarchy in Its Place”, Arjun Appadurai (1988)
discute o papel desempenhando pelo “nativo” e provoca: “Por que algumas
pessoas são vistas como confinadas por, e em, seus lugares?”. Se, nas narrativas
da favela turística, dos favelados se espera que atuem como anfitriãos, nunca
como hóspedes, pode-se dizer que o Morrinho inverte expectativas. Porque é
capaz de maximizar seu capital de rede, articular-se em diferentes projetos e atrair
fluxos de corpos, ideias e capitais em sua direção, o Morrinho possibilita que
jovens negros, de baixa renda e com pouca escolaridade deixem seu lugar de
origem e viajem pelo mundo. Mas quais são as condições efetivas dessa
mobilidade globalizada?
Antes de mais nada, é preciso lembrar que os participantes do Morrinho
carregam literalmente a favela consigo aonde quer que vão: sua arte depende do
tipo de tijolo produzido no Brasil, o que demanda o transporte de centenas de
quilos de tijolos a cada exposição (em diversas ocasiões, o alto custo da operação
de transporte do material acaba inviabilizando o contrato). Se não existe Morrinho
sem tijolos brasileiros, tampouco existe exposição sem os próprios artistas: todas
as instalações são produzidas in loco, o que determina o deslocamento senão de
todos os jovens do projeto, ao menos da maioria deles a cada viagem.
A inserção no projeto social, por sua vez, exige que seja definida uma
identidade hifenizada: os jovens do Morrinho jamais serão “apenas artistas”, mas
necessariamente artistas-favelados. Espera-se que sua estética esteja em
consonância com sua condição “de risco”, que faça referência à “vida na favela” --
aqui incluídas todas as generalizações que habitam o imaginário sobre o que é a
favela no mercado global. As particularidades da experiência da Pereira da Silva
ficam, de certa forma, subsumidas em uma narrativa necessariamente mais
genérica e passível de compreensão por um público amplo.
Como argumentam Boltanski e Chiapello (1999), o capitalismo em seu “novo
espírito” exige dos agentes, em sua trajetória rumo ao sucesso econômico ou ao
reconhecimento social, que sejam flexíveis e polivalentes, sem grandes
engajamentos, participando de várias redes e projetos pontuais. Como buscamos
demonstrar ao longo desta comunicação, para o grupo participante do Morrinho,
constituir-se como “projeto” possibilitou a adequação a um formato em que tanto
sua participação como a de seus “parceiros de projeto” pode ser pontual e flexível.
Assim, podem conseguir financiamento para atividades determinadas sem que os
apoiadores tenham que assumir outros compromissos de subsídio no futuro. Aos
“parceiros” do projeto, por sua vez, também é oferecido um tipo de atuação
política bastante confortável porque sem grandes prescrições ideológicas. Se o
formato projeto permite que o “mundo exterior” se interesse pelo Morrinho e
participe dele sem um investimento de longa duração, permite igualmente que
este circule pelo mundo, se desfaça ou se modele de acordo com a necessidade e
o contexto: o Morrinho pode ser uma obra de arte, uma iniciativa comunitária, um
destino turístico, etc. -- de acordo com o lugar e o público para o qual se
apresenta.
Se as performances e viagens ao exterior fornecem um tipo de engajamento
no mundo do trabalho, este é necessariamente localizado e com um prazo de
validade bastante curto: o jovem participa da viagem, trabalha naquele momento,
mas não há qualquer garantia de obtenção de um emprego estável no Brasil ou
em quaisquer outros países. No mais das vezes, durante as viagens ao exterior,
os jovens do Morrinho têm que lidar com a ambiguidade de ser reconhecidos –
como artistas talentosos e criativos – e confundidos (misrecognized) – como
representativos icônicos da pobreza no Brasil. Seu potencial de mobilidade está
em larga medida determinado não apenas pela capacidade de lidar com a
identidade hifenizada que lhes é atribuída e que eles mesmos ajudam a construir,
mas também pelos limites postos pelos pertencimentos originários os quais
remetem a compromissos familiares e afetivos. A reflexão de Júnior é bastante
ilustrativa do que estamos procurando argumentar aqui:
“Eu já tive convites para morar fora, só que eu ficava um pouco preocupado com a minha mãe. Era só eu e minha mãe e eu não queria deixar ela sozinha(...) Mas eu já recebi muitos convites para morar na Europa.(...) Pelas pessoas que me convidaram, eu acho que eu ia estar bem de vida, sim. E quando a gente chegava lá, a gente era superartista, né? Essas pessoas são da alta roda. Teve uma vez que a gente foi para a Alemanha e eu não acreditei – a gente foi convidado para jantar no castelo de um cara que era um dos mais ricos da Alemanha! As pessoas comendo um pouquinho assim e a gente comendo pratão. Aí depois começamos a beber e ficou tudo mais tranqüilo.” (Entrevista gravada por Freire-Medeiros em agosto de 2009)
Ainda que o formato “projeto” permita um novo circuito de mobilidades, a
complementação “social” (re)territorializa seu pertencimento. Por se tratar de um
projeto social, a referência à favela -- seja ela a localidade específica do Pereirão
ou a favela imaginada e dissubstancializada que circula em película, livros e
manchetes dos jornais -- está sempre presente. Nesse contexto, ser “social”
remete à pobreza e à vulnerabilidade que identificam a condição de moradores de
favelas, de favelados. Contudo, ao mesmo tempo em que são “projeto social”, os
integrantes do Morrinho produzem (e comercializam) uma imagem da favela
considerada por eles alternativa, formatada com o explícito objetivo de "desafiar a
percepção popular [leia-se do senso comum] das favelas brasileiras". Assim, a
partir da construção que fazem sobre si mesmos, dão forma a uma representação
híbrida (e por vezes ambivalente) das favelas: positiva porque ligada à dimensão
cultural, mas que contém em si o risco representado pela potencial irrupção da
violência.
Nesse sentido, o caso do Morrinho permite evidenciar como duas
gramáticas divergentes podem estar articuladas em função de um determinado
contexto, compartilhando para tanto de um mesmo vocabulário, mas sem
necessariamente se confundirem13. A “gramática do projeto social”, que aciona o
conceito de risco, e a “gramática da cultura local”, que aciona o pertencimento e a
identificação com o território, ambas convergem para um mesmo ponto: a favela,
seus moradores, e o lugar social que ocupam na cidade e na sociedade brasileira.
A ambivalência dessa posição – que faz da “favela” generalizada
concomitantemente temida e desejada, combatida e festejada – encontra uma
expressão possível nesse grupo de jovens, cujos padrões inesperados de
mobilidade pelo mundo têm a ver com o enraizamento no território e a
apresentação de si como artista que, por sua vez, cola-se na representação como
jovem perigoso.
Se, na formulação de Urry (2007: 196), o capital de rede é definido como
um “pré-requisito da vida no norte rico do capitalismo contemporâneo”, o caso do
Morrinho aponta para a centralidade deste tipo de capital também na
sobrevivência de boa parte dos projetos sociais que hoje habitam a periferia
global, na visibilidade de seus atores sociais “para fora” de seus territórios de
origem e, em termos mais amplos, na própria definição do que é a favela no
imaginário internacional.
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13 É importante ressaltar que a dimensão cultural está na base de muitas das novas formas de ativismo e
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