Uma pequena revolução: arte, mobilidade e segregação em uma favela carioca

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XV Congresso Brasileiro de Sociologia 26 a 29 de julho de 2011, Curitiba (PR) Grupo de Trabalho: Sociologia da Cultura Título do Trabalho: Uma pequena revolução: arte, mobilidade e segregação em uma favela carioca Nome completo e instituição do(s) autor(es): Bianca Freire-Medeiros (CPDOC/FGV) Lia de Mattos Rocha (UERJ)

Transcript of Uma pequena revolução: arte, mobilidade e segregação em uma favela carioca

XV Congresso Brasileiro de Sociologia

26 a 29 de julho de 2011, Curitiba (PR)

Grupo de Trabalho: Sociologia da Cultura

Título do Trabalho: Uma pequena revolução: arte, mobilidade e segregação

em uma favela carioca

Nome completo e instituição do(s) autor(es):

Bianca Freire-Medeiros (CPDOC/FGV)

Lia de Mattos Rocha (UERJ)

Uma pequena revolução:

Arte, mobilidade e segregação em uma favela carioca

Bianca Freire-Medeiros (CPDOC/FGV)*

Lia de Mattos Rocha (UERJ)**

I. Introdução

Esta comunicação emerge do diálogo entre duas experiências de pesquisa1

que, por motivações distintas, compartilharam de um referente empírico comum: a

iniciativa comunitária, artística e social conhecida como Morrinho, que desde os

anos 1990 vem se constituindo em torno de uma enorme maquete de tijolos na

qual aspectos do cotidiano das favelas são encenados com pecinhas de Lego.

Recentemente reconhecido como Ponto de Cultura2, o Morrinho se desdobra em

quatro iniciativas complementares: TV Morrinho (que já produziu peças

audiovisuais para clientes como Nickelodeon e Coca-Cola); Turismo no Morrinho

(visitas guiadas à maquete); Morrinho Social (braço responsável pelo

desenvolvimento de atividades culturais na favela) e Morrinho Exposição

(reprodução da maquete em exposições internacionais e grandes feiras de arte). A

partir dessas quatro frentes, o Morrinho tem se tornado elemento de conexão

entre jovens da favela e habitantes de outros territórios no Brasil e, sobretudo, no

exterior.

Em sua origem, o Morrinho está ligado à história do passado violento da

favela onde se localiza. Atualmente, a Pereira da Silva é tida de certa maneira

como uma localidade atípica por não contar com tráfico de drogas organizado,

* Professora Associada da Escola Superior de Ciências Sociais e História (CPDOC/FGV) e Bolsista de

Produtividade em Pesquisa do CNPq. *

* Professora Adjunta do Dept. de Ciências Sociais e da Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade

do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 1 Bianca Freire-Medeiros: projeto intitulado Ações Solidárias e o Consumo de Experiências: Um estudo sobre

o campo do turismo voluntário no Rio de Janeiro, realizado desde 2008 com apoio do CNPq (Programa de

Bolsas de Produtividade em Pesquisa) e da FAPERJ (uma bolsista de IC, Juliana Pacheco, e financiamento parcial no contexto do Programa de Grupos Emergentes). A pesquisadora agradece a participação competente e entusiasmada das assistentes Fernanda Nunes e Livia Campello. Lia Rocha: Pesquisa de Doutoramento em Sociologia, realizado no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), entre 2005 e 2009, com bolsa CNPq e Bolsa Sanduíche Capes. 2 Segundo o MinC (2011), os Pontos de Cultura são “entidades reconhecidas e apoiadas financeira e

institucionalmente pelo Ministro da Cultura que desenvolvem ações de impacto sócio-cultural em suas comunidades (...), atuando em redes sociais, estéticas e políticas”.

milícia ou Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Durante os anos 1980 e 1990,

porém, a realidade era outra. Situada em um morro íngreme entre os tradicionais

bairros de Santa Tereza e Laranjeiras, a favela ocupava lugar importante no varejo

de drogas, tendo sido, segundo seus moradores e a mídia, palco de muitos

confrontos entre diferentes quadrilhas de traficantes e entres estes e a polícia. No

ano de 2000, como parte da política de segurança pública implementada pelo

então governador Anthony Garotinho, transferiu-se a sede do Batalhão de

Operações Policiais Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do Rio de

Janeiro para perto da entrada da favela. Na opinião dos moradores, a presença

dos policiais militares foi responsável por eliminar o tráfico de drogas da região,

daí ser percebida como uma favela “tranqüila” e “diferente das outras” (cf.

ROCHA, 2009).

No Pereirão, como é conhecida, vivem hoje pouco mais de cinco mil

pessoas entre ruas estreitas e vielas que inviabilizam o acesso por meios de

transportes motorizados. No âmbito da favela não há escolas, postos de saúde,

tampouco comércio variado. Sua população costuma usufruir, basicamente, dos

serviços oferecidos nas proximidades. A tabela abaixo evidencia a distância social

existente entre o Pereirão e o bairro de Laranjeiras, sua vizinhança:

Laranjeiras Pereirão

Moradores alfabetizados 94% 81%

Responsáveis pelos domicílios particulares permanentes com mais de 15 anos de estudo

54% 3%

Responsáveis pelos domicílios particulares permanentes com renda de 10 ou mais salários mínimos (de 2000)

61% 2%

Renda média do responsável pelos domicílios particulares permanentes (em salários mínimos de 2000)

19.6 3

Fonte: Censo 2000

Desde meados dos anos 2000, a pequena favela adquiriu uma visibilidade

duplicada: por um lado, passou a integrar o disputado campo das “favelas com

projetos sociais”, um universo composto particularmente por ONGs que disputam

financiamentos públicos e/ou privados a partir da mobilização de moradores e

não-moradores de favelas. Por outro, inseriu-se no mercado do turismo de

pobreza (FREIRE-MEDEIROS, 2006; 2009) graças não apenas ao Morrinho e ao

circuito de visitações pagas que este motiva, mas igualmente por conta da

Pousada Favelinha. Inaugurada no fim do ano de 2004 pela brasileira Andréia

Martins e pelo alemão Holger Zimmermann, a hospedagem apresenta-se como “a

primeira do Brasil” a oferecer serviços desse tipo numa favela.

Tomada como um “caso particular do possível”, nos termos de Bachelard3, a

experiência mais ampla da Pereira da Silva -- e em especial do projeto Morrinho --

nos permite testar uma dupla hipótese: a) desde as suas origens as favelas

encontram-se enleadas em complexas redes globais, mas na atualidade esses

sistemas de mobilidades co-dependentes têm adquirido intensidades e

reverberações inesperadas (Cf. FREIRE-MEDEIROS, 2011); b) na confluência

dessas mobilidades, a categoria “favela” transmuta-se em um campo heurístico

privilegiado para repensarmos temas clássicos (segregação socioespacial, risco,

reconhecimento social) e testarmos temáticas emergentes no campo da sociologia

da cultura (projeto, capital de rede). Guiadas por essas hipóteses, procuramos

estabelecer um diálogo com o paradigma das novas mobilidades (SHELLER &

URRY, 2006; URRY, 2007; ELLIOT & URRY, 2010) e com o conceito de “cidade

por projeto”, tal como definido por Boltanski e Chiapello (1999).

O paradigma das novas mobilidades propõe uma teorização do “mundo

social” como uma vasta coleção de práticas econômicas, sociais e políticas, bem

como de infraestruturas e ideologias, que envolve, demanda ou (im)possibilita a

mobilidade. Nesse sentido, nos ajuda a problematizar de que maneira e por que

canais os intensos fluxos de capitais, corpos, câmeras, ideias e imagens que

atualmente convergem para certas favelas – como é o caso da Pereira – acabam

por definir, a um só tempo, o que é “a favela” no imaginário internacional e qual

seria “o problema da favela” no campo das políticas sociais. O conceito de projeto,

por sua vez, permite compreender o modelo de agenciamento social que dá

3 Apesar de o “caso particular” ser uma expressão razoável das estruturas do campo, sua emergência a partir

dessas estruturas não pode ser tomada nem como regra nem como algo facilmente reproduzível.

legitimidade à iniciativa Morrinho: uma ONG organizada em torno de um “projeto

social”. Utilizamos a noção de projeto social aqui como termo nativo (i.e. parte do

vocabulário utilizado pelos entrevistados e pelos profissionais do campo do

trabalho social), referido a uma atividade que reúne diferentes profissionais de

instituições públicas e privadas e que se volta para um público-alvo supostamente

portador de alguma "necessidade social" não satisfeita pelos canais institucionais4.

A seguir, traçamos um breve histórico do Morrinho e focamos nos padrões

de mobilidade, assim como nos diferentes princípios de conduta e

reconhecimento, que emergem em torno de um formato de ação pública bastante

comum nas favelas cariocas – o já mencionado projeto social – a cuja lógica o

Morrinho passou a se enquadrar. Argumentamos que o modelo de projeto social

permite aos participantes da iniciativa potencializar seu capital de rede (Cf. URRY,

2007) por meio do acionamento de um repertório compreensível por todo o

espectro de seu “público-alvo”: agentes públicos, ativistas, turistas, artistas e

potenciais financiadores. Encerramos trazendo algumas reflexões sobre o que

acreditamos ser um dilema experimentado não apenas pelo Morrinho, mas que

perpassa inúmeras experiências similares em outras favelas e que pode ser

formulado através da seguinte indagação: é possível conceber "arte" em/de favela

com algum grau de autonomia ou trata-se de uma categoria necessariamente

atrelada àquela de "projeto social"?

II. De brincadeira a projeto social: Morrinho e suas múltiplas mobilidades

A maquete Morrinho é composta por diferentes territórios, todos batizados

com nomes de favelas empíricas. Cada um dos rapazes5 é responsável pela

4 A utilização do termo projeto pode estar, ainda, relacionada à forma como essas atividades são

apresentadas, especialmente para fins de captação de recursos: através de documentos que descrevem intenções, planejamentos, ações futuras e resultados esperados. Para uma análise mais detida, ver Rocha, 2009. 5 Atualmente, o Morrinho é: Esteves Lúcio, José Carlos Silva Pereira "Júnior", Luciano de Almeida, Marcus Vinícius Ferreira, Maycon Oliveira "Mc Maiquinho", Jesus Nicolas, Paulo Vitor da Silva Dias, Pedro Henrique, Rafael Moraes, Raniere Dias, Renato Dias e Rodrigo de Maceda, além de Cilan Oliveira, que também compõe o conselho da direção.

concepção, construção e manutenção de sua própria favela, sendo perceptível a

preocupação de cada um em imprimir o seu gosto e subjetividade na organização

do território pelo qual é responsável. Esse mundo em miniatura, totalmente

construído com materiais reciclados, já ocupa uma área de mais três mil metros

quadrados no alto do morro e segue crescendo – "assim como as favelas de

verdade", ironizam seus criadores.

Fonte: Bianca Freire-Medeiros

Parte significativa da brincadeira tematiza a vida e o cotidiano dos

traficantes de drogas e daqueles que os cercam – namoradas, cúmplices, inimigos

e polícia. São encenados conflitos entre diferentes favelas e entre traficantes e

policiais, especialmente os do BOPE, com direito à reprodução de sua sede em

miniatura. A relação com o Batalhão, aliás, faz parte da narrativa de origem e

resistência do Morrinho, como relembra José Carlos “Júnior”, um dos criadores da

“brincadeira”:

No momento em que a polícia entrou (...) eles descobriram o Morrinho e pensavam que era uma estratégia para invadir outras comunidades, que era uma simulação de guerra. Tinha BOPE lá [na Pereira, perto da maquete], que ficava 24 horas direto... E a gente era criança... se sentia um pouco oprimido, porque eles ficavam engatilhando as armas deles e a gente ficava com medo. Teve um dia em que a gente começou a desmontar e eles perguntaram o que a gente estava fazendo. “A gente está desmontando. Não vamos mais brincar, não.” Aí o cara: “Não faz isso, não. O coronel está vindo aí e ele vai pensar que a gente mandou vocês desmontarem”. [Morrinho]: “Mas é verdade. Vocês é que mandaram a gente desmontar.” [BOPE]:“Mas não desmonta, não”. Chegou o coronel e ficou tudo preto lá, tinha mais de trinta BOPE no Morrinho. Eles começaram a conversar com a gente. O coronel perguntou o que era [a maquete]. A gente: “a gente está brincando. Isso aqui é só uma brincadeira de criança.”

6

6 Este e demais trechos aqui citados fazem parte da entrevista gravada em agosto de 2009 por Freire-

Medeiros.

O fato de a brincadeira girar quase inteiramente em torno da rotina dos

traficantes não parece ser, na perspectiva dos jovens do Morrinho, uma questão a

ser desculpada. Ao contrário: a temática da "brincadeira" é descrita como uma

"representação da verdade". Os participantes do Morrinho costumam reiterar que,

em tempos violentos, a brincadeira na maquete oferecia-lhes um refúgio que, em

larga medida, inscrevia-se em princípios paradoxais: era na encenação lúdica de

episódios da "vida real das favelas", com suas disputas violentas e alto nível de

arbitrariedade, que os meninos encontravam sentido em "resistir à sedução do

tráfico".

Fonte: Bianca Freire-Medeiros

Pecinhas com adereços distintos

representam traficantes de diferentes

facções e policiais, pedacinhos de giz

representam um quilo de cocaína,

enquanto outras pecinhas são

transformadas em armamentos de

toda ordem.

Já haviam se passado três anos de "brincadeira levada a sério" (a

encenação exige de seus participantes uma rotina de cuidados com a maquete,

além do respeito a inúmeras regras e a princípios de veracidade próprios à

dinâmica do jogo), quando os meninos receberam a visita de dois publicitários

interessados em fazer um filme documentário sobre a iniciativa7. Como gostam de

reforçar publicamente, o Morrinho como “projeto” - e não mais como brincadeira --

teria nascido do encontro entre “meninos da favela” e “homens do asfalto”

interessados na mesma "brincadeira". A partir desse encontro tornou-se possível a

transformação da "brincadeira" em ONG, dos “meninos” em artistas e técnicos de

audiovisual, assim como da "maquete" em instalação artística reproduzível em

outros contextos e territórios, como explica Júnior:

A gente fazia um curso (...) e o nosso professor Kiko era amigo do Fábio [Gavião, produtor audiovisual]. A gente nunca ia à aula dele, porque a gente estava sempre no Morrinho (antigamente o nome não era Morrinho, a gente chamava só de maquete. O Morrinho surgiu assim: a comunidade toda falava “o Morrinho, o Morrinho”). Aí teve um certo dia em que ele [o professor] foi lá, viu a gente brincando e falou: “(...) Vocês podem ficar aí matando a minha aula, porque aqui é um espaço de arte e cultura”. E aí ele foi e falou com o Fábio Gavião. O Fábio já queria fazer um documentário dentro da comunidade [e] marcou para ir lá junto com o Marcão, que é o fotógrafo. Eles chegaram lá e viram a gente brincando e ficaram encantados... Eles pegaram a câmera e começaram a gravar (...) O boneco morrendo e ele: “faz isso aqui de novo.” [Meninos do Morrinho]: “Não, se tu morreu, tu não vai voltar para falar. A realidade aqui é essa. É o cotidiano. Você não pode chegar aqui e mudar.” Aí ele [Fábio] falou: “Então eu vou deixar a câmera na mão de vocês e vocês gravam o que quiserem.” (...) A gente ficou encantado com a câmera, a gente nunca tinha mexido com uma câmera. (...) E quando ele viu o que a gente tinha gravado, ele ficou maluco: “caraca, vocês são incríveis!” Até um certo dia que a gente estava lá conversando, bebendo, e surgiu a idéia: “cara, vamos fazer uma TV, uma TV comunitária”. A gente ficou meio assim... É que todo mundo que ia lá prometia alguma coisa para a gente e até hoje ninguém nunca apareceu. Quando ele foi embora a gente disse: “esse cara está enrolando a gente”. Só que ele voltou com mais um produtor, que é o Chico. Aí a gente começou a ser convidado para fazer vídeos institucionais para as empresas. Ele [Fábio] era convidado, mas não ia e colocava a gente para fazer. E começou a vender a TV Morrinho: “Não, eu não vou. Quem vai são os garotos da TV Morrinho”.

A aquisição de um novo status e a profissionalização de suas atividades

representaram uma mudança substantiva no cotidiano do grupo. Não se trata

apenas de profissionalizar o que antes era uma brincadeira, mas de se adequar a

uma nova atividade a que são atribuídos papéis sociais bastante diversos, com

lógicas de ação e dinâmicas de visibilidade distintas "para dentro" e "para fora" da

favela.

7 O documentário Deus sabe tudo mas não é X9, dirigido por Fábio Gavião e Markão Oliveira, foi lançado em

2008 e retrata o que os jovens participantes chamam de “nossa história”. Com trechos de entrevistas com os participantes e de trabalhos realizados pelo grupo (exposições, viagens, apresentações), o documentário já foi exibido nos festivais do Rio de 2008 e de Ouro Preto em 2010, bem como no Museu de Arte Moderna de Nova York em 2009.

Financiados por grandes empresas públicas ou privadas, assim como pelo

governo em seus três níveis de atuação, os projetos sociais tornaram-se, nas

últimas décadas, uma importante mercadoria negociada e desejada por

moradores de favelas. Acredita-se que o engajamento nesse tipo de iniciativa

maximiza as chances de se conseguir um emprego melhor do que os oferecidos

aos jovens favelados em geral, ao mesmo tempo em que minimiza as chances de

o jovem se envolver em atividades ilegais. Para “dentro” da favela, isso é, para as

famílias, amigos e vizinhos dos participantes, estar engajado em um projeto

significa, portanto, fechar a porta à temida ociosidade e abrir uma janela de

possibilidade no mercado de trabalho.

Ambas as dimensões -- o combate à ociosidade e a perspectiva de

empregabilidade -- habitam os discursos dos participantes do Morrinho e dos

adultos que circulam em torno do projeto (pais, lideranças comunitárias,

participantes da ONG que não residem na favela). Estes mencionavam que o

engajamento no Morrinho significava uma ocupação positiva do tempo dos

participantes, afastando-os de “ideias ruins” e impedindo que fizessem “coisas

erradas”8. Como observamos anteriormente, os participantes também ressaltam o

papel de refúgio que a brincadeira tinha na época em que os traficantes de drogas

dominavam o Pereirão, pois estar no espaço da maquete significava não estar

circulando “de bobeira” pela favela, arriscando ser vítima no fogo cruzado durante

um confronto. É possível dizer que, no início e ainda como brincadeira, o Morrinho

já alterava os padrões de mobilidade física dos jovens participantes, traçando-lhes

rotas alternativas dentro do próprio espaço da favela. As possibilidades de

mobilidade física para fora da favela e de mobilidade social ascendente, por sua

vez, somente viriam com a transmutação da brincadeira em projeto.

O investimento na ONG como potencializadora de uma mobilidade social

positiva -- via profissionalização ou entrada no mercado de trabalho -- torna-se

8 “Cabeça vazia é a oficina do diabo”, um dos ditados mais populares entre favelados, é igualmente acionado

por pesquisadores, ONGs, poder público e jornalistas. Artigo do jornal O Globo sobre pesquisa realizada no Instituto de Economia da UFRJ, por exemplo, aponta uma correlação positiva no aumento das taxas de desemprego, ociosidade (fora da escola e sem trabalho) e homicídio entre jovens. Cf. O Globo, 16/05/2009.

evidente quando os jovens do Morrinho falam sobre a importância que a iniciativa

tem em suas vidas hoje. O fato de ganharem dinheiro com o projeto faz com que

sejam mais respeitados pelos pais, inclusive como artistas (ainda que muitos pais

preferissem um emprego formal e estável); alguns já têm família, que são capazes

de sustentar (mesmo que parcialmente) com o que ganham no Morrinho. Para

outros, a passagem pela ONG ajudou a conseguir emprego em produtoras de

audiovisual ou ainda em empresas da área de turismo. Por fim, o engajamento na

ONG lhes permite reivindicar o status de exemplo, de liderança dentro do

Pereirão:

Você está vendo que a molecada da comunidade não está indo para o caminho da violência, estão seguindo o caminho que eu segui. Você vê eles se espelhando em você. Sente emoção. Acho que isso é consideração e respeito. (Cilan, diretor artístico da maquete, em entrevista gravada por uma equipe universitária e disponível no Youtube).

Esse status, é importante reter, deve-se em grande parte ao circuito de

mobilidades internacionais que o engajamento no projeto proporciona aos

integrantes do Morrinho. Em 2004, os jovens foram convidados a participar do

Fórum Mundial Urbano em Barcelona, em 2005 estiveram no Point Ephémère em

Paris, no ano seguinte na Haus der Kunst em Munique. “Até o Gilberto Gil [então

Ministro da Cultura] veio ver a gente”, nos contou com orgulho Raniere Dias, um

dos fundadores do projeto. Em 2007, o grupo esteve na Bienal de Veneza, onde

construiu uma maquete de 200 metros quadrados e, em 2010, expôs em Oslo

(Noruega) e no prestigioso Southbank Center em Londres. Enquanto escrevemos

este artigo, o Morrinho prepara mais uma exposição, desta vez na Holanda.

Viajar o mundo com o Morrinho traz visibilidade positiva “para fora” e “para

dentro”, porém cobra o preço de tensionar os princípios da brincadeira e da

obrigação, como explica Júnior:

Tem moradores da comunidade que nunca viram o Morrinho. Ouviram falar, sabem o que é, mas nunca viram ao vivo. Não é por que não dão importância. Há oito anos eles não davam importância mesmo, a comunidade inteira. Mas, depois que a gente foi para a Europa, que a gente começou a conquistar o lado audiovisual e tal, as pessoas começaram a ver que aquilo ali era um trabalho mesmo. Mas também é uma brincadeira ainda. Quando a gente faz as exposições de ir para a Europa – as exposições grandes - a gente fica muito nervoso, a gente briga muito, porque às vezes a gente tem um prazo para entregar o trabalho. Então, a gente fica só trabalhando e não tem tempo de brincar.

O universo dos projetos organiza-se não apenas como um mercado – de

trabalho e de competição por financiamentos –, mas também como uma

gramática, uma forma de agenciamento social. Como identificou Novaes (2003:

148 e seguintes), ser “jovem do Projeto” ou “profissional de projeto” permite ao

participante apropriar-se de uma linguagem e de símbolos, compartilhados por

ONGs e pela mídia, que gravitam em torno de ideias positivamente valoradas:

cidadania, direitos, autoestima, empoderamento, etc. Conforma-se, então, uma

gramática da cultura local que incentiva a identificação com os valores e com as

manifestações culturais produzidas pelos favelados e no espaço da favela. Ao ser

levada para “fora da favela”, tal gramática permite ao jovem participante de projeto

realizar uma eficiente apresentação de si, sobretudo nos momentos em que é

necessário realizar operações de “limpeza moral”9. O passaporte simbólico do

“Jovem de Projeto” é carimbado com qualificativos que o distinguem como alguém

com autocontrole, disciplina e consciência sobre direitos e deveres – conteúdos

geralmente difundidos nas aulas teóricas dos projetos sociais (Cf. ROCHA e

ARAÚJO, 2008). O contraponto óbvio aqui são os jovens participantes de grupos

criminosos que supostamente seriam descontrolados, sem compreensão sobre

direitos e deveres, cidadania, etc. Não surpreende, portanto, que muitos jovens

participem de projetos sociais visando ampliar seu capital social e de rede,

potencializadores de sua entrada no mercado de trabalho10.

A afinidade entre o jovem de favela e o projeto social constitui-se

igualmente a partir de uma relação multifacetada – e muitas vezes paradoxal --

com as noções de risco e de mobilidade. Ao mesmo tempo em que participar do

projeto permite ao jovem adentrar outros territórios como alguém que não

representa um risco para a sociedade, possibilita que se proteja ele mesmo do

risco posto aos jovens favelados em seu próprio território. Trata-se, contudo, de

uma relação investida de expectativas que nem sempre se realizam. Durante o

9 Operação de apresentação de si que os moradores de favela constantemente têm que fazer para

estabelecer a distinção entre eles, “pessoas de bem”, e os traficantes de drogas e bandidos com os quais são identificados pelo senso comum em função da contiguidade territorial experimentada nos espaços de favelas. Cf. Machado da Silva e Leite, 2008; Rocha, 2009. 10 Segundo um jovem participante de um projeto de capacitação profissional financiado pelo governo federal:

ter no currículo a participação no projeto era como uma carta de recomendação (Cf. Rocha e Araújo, 2008).

trabalho de campo de uma das autoras, a sede do Projeto Morrinho foi invadida

por policiais do BOPE, que revistaram todos os presentes e também as

instalações em busca de armas ou drogas que acreditavam estar ali guardadas

(ROCHA, 2009). A indignação dos jovens com o fato era expressa nos seguintes

termos: “Nós somos uma ONG, um projeto social! Somos contra a violência! Não

tem sentido achar que somos envolvidos!”. Se eles então operavam com a lógica

que desassocia projeto social e criminalidade, a mesma lógica estava longe de

informar a ação do BOPE, que continuava tratando-os com a desconfiança

reservada a todos os favelados, vistos a priori como cúmplices dos traficantes de

drogas.

O risco como possibilidade, no entanto, não aparece apenas quando “os de

fora” se referem aos jovens de favela. Ao disputar no mercado escassos

financiamentos para suas atividades, as ONGs lançam mão, via de regra, de um

repertório que descreve seu público-alvo como potencialmente perigoso ou

passível de sedução pelo “mal” representado pela adesão ao crime. Dito de outro

modo, na busca por recursos materiais e simbólicos as ONGs acabam por

incorporar e reproduzir a ideologia do risco. Como discutido por Ulrich Beck

(2000b), risco não é o mesmo que catástrofe, mas a consciência da catástrofe no

passado e a antecipação da catástrofe futura no presente. O risco leva a uma

existência duvidosa e alusiva, produzindo como resultado uma política do medo

e/ou uma política da prevenção. Conforma-se, então, uma gramática dos projetos

sociais que vitimiza seus participantes, apresentando-os como “jovens em

situação de risco”. Mesmo sendo a Pereira da Silva descrita por seus moradores

como “uma favela tranquila” e “diferente das outras”, em suas narrativas públicas o

Morrinho apresenta seus participantes como sendo fruto da violência vivenciada

no passado e em confronto constante contra os apelos da vida criminosa no

presente. No plano de negócios11 da ONG TV Morrinho para o ano de 2007, os

jovens participantes são descritos como “em situação de risco social”, e um dos

11 O plano de negócios é um projeto que apresenta a potenciais investidores os objetivos, ações, resultados

esperados, fraquezas e forças de iniciativas que podem ser no campo do trabalho social, como no caso, ou em empreendimentos econômicos.

objetivos da iniciativa seria “diminuir os níveis de violência e marginalidade na

comunidade do Pereirão”.

Outra dimensão constitutiva da gramática dos projetos sociais é a descrição

desse tipo de atividade como uma ação limitada no tempo e no espaço, isto é,

com duração pré-determinada e sobre um território específico (geralmente uma

favela ou conjunto delas). Assim sendo, só pode se sustentar a partir de parcerias

a serem refeitas ou desfeitas, e não de engajamentos mais definitivos. Nesse

sentido, a gramática dos projetos sociais compartilha com a gramática da cidade

de projetos um repertório de objetos e dispositivos que se organizam em torno de

conceitos como parceria, acordo, rede e projetos (BOLTANSKI e CHIAPELLO,

1999: 177). É essa configuração do projeto que permite também um engajamento

menos intensivo por parte dos voluntários que trabalham nessas iniciativas, em

um formato mais contemporâneo de filantropia, bem como de engajamento político

e moral.

No chão empírico do Morrinho, tal formato atualiza-se, sobretudo, na

experiência do chamado volunturismo. Não cabe aqui nos alongarmos nos

debates em torno dessa atividade híbrida na qual se conciliam práticas de lazer e

turismo com algum tipo de trabalho voluntário em projetos sociais (Cf. WEARING,

2001; SIMPSON, 2005). Mas vale lembrar que o circuito do volunturismo seria

impensável sem a presença de ONGs que, por um preço determinado, alocam

turistas-voluntários em “localidades carentes” do sul global (FREIRE-MEDEIROS,

2009; NUNES E PACHECO, 2009). Por conta de uma parceria estabelecida com

duas ONGs que prestam esse tipo de serviço, uma com sede no Brasil e a outra

com sede na Inglaterra, o Morrinho passou a receber volunturistas interessados

em colaborar de diferentes formas com o projeto durante um período de pelo

menos três semanas. Atualmente, duas jovens americanas que conheceram o

Morrinho na qualidade de volunturistas fazem parte de seu Conselho de Direção.

Nesse sentido, não surpreende que seja parte importante da gramática dos

projetos a ideia de redes. Para Boltanski e Chiapello (1999) a rede é a “figura

harmoniosa da ordem natural” da cidade por projetos (1999: 167 e 190); é a forma

“natural” pela qual os projetos se organizam e se reproduzem, e também o formato

de dinâmica social que modela a atuação dos agentes, dentro do novo modelo de

capitalismo vigente. No caso das ONGs e de seus participantes, o relacionamento

com diferentes redes -- apoio, filantropia, preocupação social -- é fundamental

para a continuidade de sua atuação, pois permitem contatos que viabilizam

projetos e, por conseqüência, a entrada em outras redes e projetos,

consecutivamente. Entrar e participar de redes é possível, nesse novo capitalismo,

quando o ator/sujeito incorpora valores como flexibilidade, versatilidade,

engajamento temporário e passa a agir por projeto.

Quando indagado sobre o que há de positivo e de negativo no estabelecimento

de redes de contato, Júnior pondera:

“O que tem de bom é o conhecimento, o conhecimento e a amizade que a gente faz, porque a partir das amizades a gente pode fazer projetos mais a frente com essa galera. E conhecimento é porque a gente conhece as culturas, aprende algumas coisas da língua deles

– não só dos índios12

, mas quando a gente vai na Europa...Temos muitos amigos na Europa.

Não vejo um lado ruim. Eu acho que o ruim era quando a gente estava estudando, porque a gente tinha que parar de estudar para fazer as exposições, para vender o nosso produto. Mas, hoje em dia, não tem um lado ruim...”

12 Júnior faz menção aqui à viagem ao Acre financiada pela ONG Video nas Aldeias, que provê oficinas de

vídeo por todo Brasil. Antes da ida de três integrantes do Morrinho ao Acre, um grupo de índios passou três semanas na Pereira, filmando não apenas as atividades do Morrinho, mas também a rotina local.

Ainda que, nas palavras de Júnior, não haja “um lado ruim” na articulação em

redes e por projeto, é preciso reter que o estabelecimento dessas conexões de

várias ordens não vai sem esforço – afinal, cabe aos atores sociais envolvidos

maximizar o que Urry (2007) chama de capital de rede (network capital).

Consequência das múltiplas mobilidades – reais ou potenciais -- que estabelecem

variadas formas de distinção social, o capital de rede exige a aquisição de novas

habilidades, entre elas o domínio do vocabulário das diferentes redes para que se

possa fazer uso delas. O sujeito precisa ser capaz de gerar, sustentar e

instrumentalizar relações sociais com pessoas não necessariamente próximas que

possam trazer-lhe benefícios emocionais, financeiros e práticos não redutíveis aos

benefícios gerados pelo que Bourdieu (1984) chama de capital cultural e capital

econômico – o que, por sua vez, exige a articulação em rede de uma série de

objetos e aparatos tecnológicos. No processo, cria-se uma nova hierarquia

baseada na capacidade que os sujeitos possuem de deslocamento físico,

flexibilidade no uso do tempo e acionamento de parceiros distantes-porém-

próximos por meio de ferramentas de comunicação.

III. Considerações Finais

No artigo intitulado “Putting Hierarchy in Its Place”, Arjun Appadurai (1988)

discute o papel desempenhando pelo “nativo” e provoca: “Por que algumas

pessoas são vistas como confinadas por, e em, seus lugares?”. Se, nas narrativas

da favela turística, dos favelados se espera que atuem como anfitriãos, nunca

como hóspedes, pode-se dizer que o Morrinho inverte expectativas. Porque é

capaz de maximizar seu capital de rede, articular-se em diferentes projetos e atrair

fluxos de corpos, ideias e capitais em sua direção, o Morrinho possibilita que

jovens negros, de baixa renda e com pouca escolaridade deixem seu lugar de

origem e viajem pelo mundo. Mas quais são as condições efetivas dessa

mobilidade globalizada?

Antes de mais nada, é preciso lembrar que os participantes do Morrinho

carregam literalmente a favela consigo aonde quer que vão: sua arte depende do

tipo de tijolo produzido no Brasil, o que demanda o transporte de centenas de

quilos de tijolos a cada exposição (em diversas ocasiões, o alto custo da operação

de transporte do material acaba inviabilizando o contrato). Se não existe Morrinho

sem tijolos brasileiros, tampouco existe exposição sem os próprios artistas: todas

as instalações são produzidas in loco, o que determina o deslocamento senão de

todos os jovens do projeto, ao menos da maioria deles a cada viagem.

A inserção no projeto social, por sua vez, exige que seja definida uma

identidade hifenizada: os jovens do Morrinho jamais serão “apenas artistas”, mas

necessariamente artistas-favelados. Espera-se que sua estética esteja em

consonância com sua condição “de risco”, que faça referência à “vida na favela” --

aqui incluídas todas as generalizações que habitam o imaginário sobre o que é a

favela no mercado global. As particularidades da experiência da Pereira da Silva

ficam, de certa forma, subsumidas em uma narrativa necessariamente mais

genérica e passível de compreensão por um público amplo.

Como argumentam Boltanski e Chiapello (1999), o capitalismo em seu “novo

espírito” exige dos agentes, em sua trajetória rumo ao sucesso econômico ou ao

reconhecimento social, que sejam flexíveis e polivalentes, sem grandes

engajamentos, participando de várias redes e projetos pontuais. Como buscamos

demonstrar ao longo desta comunicação, para o grupo participante do Morrinho,

constituir-se como “projeto” possibilitou a adequação a um formato em que tanto

sua participação como a de seus “parceiros de projeto” pode ser pontual e flexível.

Assim, podem conseguir financiamento para atividades determinadas sem que os

apoiadores tenham que assumir outros compromissos de subsídio no futuro. Aos

“parceiros” do projeto, por sua vez, também é oferecido um tipo de atuação

política bastante confortável porque sem grandes prescrições ideológicas. Se o

formato projeto permite que o “mundo exterior” se interesse pelo Morrinho e

participe dele sem um investimento de longa duração, permite igualmente que

este circule pelo mundo, se desfaça ou se modele de acordo com a necessidade e

o contexto: o Morrinho pode ser uma obra de arte, uma iniciativa comunitária, um

destino turístico, etc. -- de acordo com o lugar e o público para o qual se

apresenta.

Se as performances e viagens ao exterior fornecem um tipo de engajamento

no mundo do trabalho, este é necessariamente localizado e com um prazo de

validade bastante curto: o jovem participa da viagem, trabalha naquele momento,

mas não há qualquer garantia de obtenção de um emprego estável no Brasil ou

em quaisquer outros países. No mais das vezes, durante as viagens ao exterior,

os jovens do Morrinho têm que lidar com a ambiguidade de ser reconhecidos –

como artistas talentosos e criativos – e confundidos (misrecognized) – como

representativos icônicos da pobreza no Brasil. Seu potencial de mobilidade está

em larga medida determinado não apenas pela capacidade de lidar com a

identidade hifenizada que lhes é atribuída e que eles mesmos ajudam a construir,

mas também pelos limites postos pelos pertencimentos originários os quais

remetem a compromissos familiares e afetivos. A reflexão de Júnior é bastante

ilustrativa do que estamos procurando argumentar aqui:

“Eu já tive convites para morar fora, só que eu ficava um pouco preocupado com a minha mãe. Era só eu e minha mãe e eu não queria deixar ela sozinha(...) Mas eu já recebi muitos convites para morar na Europa.(...) Pelas pessoas que me convidaram, eu acho que eu ia estar bem de vida, sim. E quando a gente chegava lá, a gente era superartista, né? Essas pessoas são da alta roda. Teve uma vez que a gente foi para a Alemanha e eu não acreditei – a gente foi convidado para jantar no castelo de um cara que era um dos mais ricos da Alemanha! As pessoas comendo um pouquinho assim e a gente comendo pratão. Aí depois começamos a beber e ficou tudo mais tranqüilo.” (Entrevista gravada por Freire-Medeiros em agosto de 2009)

Ainda que o formato “projeto” permita um novo circuito de mobilidades, a

complementação “social” (re)territorializa seu pertencimento. Por se tratar de um

projeto social, a referência à favela -- seja ela a localidade específica do Pereirão

ou a favela imaginada e dissubstancializada que circula em película, livros e

manchetes dos jornais -- está sempre presente. Nesse contexto, ser “social”

remete à pobreza e à vulnerabilidade que identificam a condição de moradores de

favelas, de favelados. Contudo, ao mesmo tempo em que são “projeto social”, os

integrantes do Morrinho produzem (e comercializam) uma imagem da favela

considerada por eles alternativa, formatada com o explícito objetivo de "desafiar a

percepção popular [leia-se do senso comum] das favelas brasileiras". Assim, a

partir da construção que fazem sobre si mesmos, dão forma a uma representação

híbrida (e por vezes ambivalente) das favelas: positiva porque ligada à dimensão

cultural, mas que contém em si o risco representado pela potencial irrupção da

violência.

Nesse sentido, o caso do Morrinho permite evidenciar como duas

gramáticas divergentes podem estar articuladas em função de um determinado

contexto, compartilhando para tanto de um mesmo vocabulário, mas sem

necessariamente se confundirem13. A “gramática do projeto social”, que aciona o

conceito de risco, e a “gramática da cultura local”, que aciona o pertencimento e a

identificação com o território, ambas convergem para um mesmo ponto: a favela,

seus moradores, e o lugar social que ocupam na cidade e na sociedade brasileira.

A ambivalência dessa posição – que faz da “favela” generalizada

concomitantemente temida e desejada, combatida e festejada – encontra uma

expressão possível nesse grupo de jovens, cujos padrões inesperados de

mobilidade pelo mundo têm a ver com o enraizamento no território e a

apresentação de si como artista que, por sua vez, cola-se na representação como

jovem perigoso.

Se, na formulação de Urry (2007: 196), o capital de rede é definido como

um “pré-requisito da vida no norte rico do capitalismo contemporâneo”, o caso do

Morrinho aponta para a centralidade deste tipo de capital também na

sobrevivência de boa parte dos projetos sociais que hoje habitam a periferia

global, na visibilidade de seus atores sociais “para fora” de seus territórios de

origem e, em termos mais amplos, na própria definição do que é a favela no

imaginário internacional.

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13 É importante ressaltar que a dimensão cultural está na base de muitas das novas formas de ativismo e

engajamento políticos, como os movimentos negro, indígena, gay, ecológico, etc. (Cf. Touraine, 1978 e 2005; Alexander, 1998), e nem sempre está articulada com novas formas de participação no mercado.

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