COLECÇÃO VIDA E CULTURA

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CAPA DE A. PEDRO Reservados todos os direitos pela legislação em vigor Lisboa Janeiro de 2000 Edição feita por acordo com a ROWOHLTS DEUTSCHE ENZYKLOPADIE COLECÇÃO VIDA E CULTURA ••\- RUTH BENEDICT PADRÕES DE CULTURA TRADUÇÃO DE ALBERTO CANDEIAS EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOA Rua dos Caetanot, it

Transcript of COLECÇÃO VIDA E CULTURA

C A P A DE A. P E D R O

Reservados todos os direitos pela legislação em vigor

Lisboa — Janeiro de 2000

Edição feita por acordo com a

ROWOHLTS DEUTSCHE ENZYKLOPADIE

COLECÇÃO VIDA E CULTURA

••\-

RUTH BENEDICT

PADRÕES DECULTURA

TRADUÇÃO DE

ALBERTO CANDEIAS

EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOARua dos Caetanot, it

lA CIÊNCIA DO COSTUME

• j • Costumes e Comportamento

A antropologia ocupa-se dos seres humanos como pro-dutos da vida em sociedade. Fixa a sua atenção nascaracterísticas físicas e nas técnicas iadustrjãlsT~iãas

convenções e valores que distinguem uma comunidade de todasas outras que pertencem a^ttma tradição diferente.

Õ que distingue â antropologia"das autuas ciências sociaisé o eia.fijcluir río~seíír campo, .para/ as escudar eiudadosairseiite,jociedades que não são a nossa sociedade. Paxá os seus finsqualquer norma socM de caaamienita e de reprodução temtanto significado como aquelas que nos são próprias, mesmoque "seja a dos Dyalcs do Mar, e^não. íem. jjualqiiiear,possívelrelação histórica com â da nossa cjyjjlfzação., Paia o antropolo-gisba," òs'injossos costumes e os de -uma tribo da Nova Guinésão dois esquemas sociais possíveis. qaè .tratam do amesino pro-blema, e cumpre ao aoiCropoIogisCa, enquanto antropologigta,evitar ttxta e qualquer apreciação de voo, em favor do outro.foter^sa-o a cocdtsta humattâ, tíSo comiõT moddaida por umacerta tradição, a nossa tradição, mas como o foi por qualquertradição, seja ela qral for. Jntereasa-o a vasta gama de costu^

em culturas diferentes, e o seu objectivo é

compreender o modo como essas culturas se transformam e sediferenciam, os faunas diferentes por que se exprimem, e amaneira como os costumes de quaisquer povos funcionam nasvidas dos indivíduos que os compõem.

Ora o costume não tem sido considerado assunto degrande importância. O funcionamento íntimo do nosso cérebro,eis o que nos parece constituir a única coisa digna de estudo;o costume, temos tendênrfo {"ara pfnrcairi f "orriMlt? "»•* i"forma mais vulgar. De facto, o oonitrámo é que é verdade.O costnimeftrariioiônal, considerado peto mundo em geral, éuma- massa de conduta pormenorizada mâás espantosa do queo que qualquer pessoa pode jamais revelar nas acções indivi-duais, por mais aberrantes. E no entanto isto é tzm aspecto um

i tanto trivial da questão. Q._que éygxiaé o papel •predomiiisainfie qu_e.jO~ oostumfe desempenha a

] experimentai na vida diária, e inO;,,qne_se-orê, e as ._í mente grandes variedades sob qute _Bod^jmamfestí»iHse.^^

A herança da criança

pensar. Nem mesmo «as suas concepções filosóficas ele con-segue su,btrair-se a esses estereótàpos; até: rajseiBjJMiceitos do\ieidadeiH)..e^dp_.feto_s^ainda referidos aiosiseus..pp:tíiçu]larescQstuoxes .istadidonais. John Dewey disse perifeitaimenile a sérioque o papel desempenhado pelo costume mo moldar do com-portamento do indivíduo, comparado com qualquer maneirapor que este possa afectar o costume tradicional, está namesma proporção que a totalidade do vocabulário da sualíngua materna compararia com os termos da sua linguageminíantil adoptados no vernáculo da família. Quando se estradama sério ordens sociais que se puderam desenvolver aiutonoma-

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mente, aquela comparaição não é mau que uma exacta obser- , ,(•vaçao de faoto. A-históriada..;vJda«iadividue} encima, de. tudo, uma ,acom!pdaçãp_ajps..padrões..de

Y medida fa^jcipnlajlme^ geração^ para geracãp,.... Desde que o indivíduo vem ao mundo

os__costumj65L;dQ_ambienite em que masceu moldaim a sua expe-Mência dos factos e a sua condim. Quando começa a falar,ele é o frutozMiò da sua cultura, e quando crescido e capazde 'tomar parte nas actividades desta, os hábitos dela são osseus hábitos, as crenças dela, as suas crenças, as incapacidadesdela» as suas inoaipacidades. Todo aquele que nasça no seugrupo delas partilhará com ele, e todo aquele que nasça numgrupo do lado oposto do globo adquirirá a milésima parte dessaherança. Nenhum outoo pnoblenVa sócia] roas cabe anais forço-samente conhecer do que este do papel quje o costume desem-penha na formação do imdíviidup. Enquanto não pudermoscomipreendíeir es suias leãs e as suas variedades, os principaisfactos que complicam a vida humana conítBiUiairão a ser paranós ininteligíveis.

A nossa falsa perspectiva

j O estudo do oosaume-so-iips ..pode 'apro^tor depois dedeases postulados têm

encxwitradõ erguàda contra st "uima oposição vialenita. Bm pri-meiro"luigaf "fiado bTegCudo científico exige a aiffiênciia de trata- ],manto preferencial de um. ou ouitiro dos temmoB da sfeâe ||

para ser eatudaite'. Bm todos os campos meras sujei-tos a controvérsia, como o estudo dos cactos, ou das térmites;ou da natureza das nebulosas, o método de estudo a seguiré o de Agrupar o materiai signfficaitívo e registar todas asjiossfvek formas e condições variantes. Foi deste modo queaprendemos tudo o que sabemos das leis da astronomia, oudos hábitos dos Insectos sociais, por exemplo. Só no estudo

do próprio homem é que as mais importantes ciências sociaissubstituíram aquele' método peto estudo de uma- vadaçip

\ antropologia) foi, por definição, impossível enquantoestas distinções, entre mós próprios e o primitivo, nós própriose o Bárbaro, nos próprios e o pagão, pôs .dominaram o esgoto.Foi necessário começar por atingir aquele grau de afinamentointelectual em que já não pomos a nossa crença em contrastecom a superstição do nosso vizinho; foi. _aieoessfcio_sabef re-

gremiKas, isto é: o sobrenatural, devem ser consideradas sobo. mesmo ângulo, aquelas como a aossa própria, para que talimpossibilidade desaparecesse.

i Na primeira metade do século xix este postulado demen-tar não podia: ocorrer nem sequer ao espírito rnafc esctoejgdo^dentre as pessoais da civilização Ocâdentail. O homem, aitravésdf toda, a «uahistoria. defendeu como um ponto de honraa odeia da sua incompanabSldade, do seu carácter de ser excep-cional. No .tempo deVgopjírnjco/esça ydvindioaçSo de supre-ííãcíaT era de 'tal modo ambiciosa que 'incluía trèsmõ à Terraem que ele vive, e oseçulq wv (recusousse.cpm paáxlo B admitira subordinação deste planeia a ocupar apenas ASTÍI lugar çn-Creoí outras no sistema isolar. No tempo de^amvinj; «eodo cedidoao inimigo o sistema solar, o homem lutou com todas asamuas de que dispunha pela exclusividade da aima, atributoinconcebível dado por Deus ao homem, de maneira (tal quenegou -a descendência do homem de quaisquer membros doreino amimai. Nem a falta de comtíríuidaide lógica da argumen-tação, nem quaisquer duvidais sobre a natuireza dessa «alma»,nem sequer & circunstância de o século xix não ter procuradoafirmar a sua fraternidade com quaisquer estranhos ao grupo—nenhum destes factos contaram contra a magnífica exal-tação que se manifestou rapidamente perante a indignâdiadeque a evolução propunha confira o conceito da excepcionaE-dade do homem, ser lírnco entre os seres.

Ambas essas batalhas se podem considerar ganhas — sengo jáv pelo menos eon breve; mas a luta só mudou de frente.Hoje estamos perfeitamen/6e dispostos a admitir qoue a revo-lução da terra em torno do Sol, ou a descendência animal dohomem, quase wada >tém que ver com a excepcionalidade dasnossas realizações humanas. Se habitamos um qualquer pla-neta dentre miríades de sistemas solares, tento maior glóriapara nós, e se todas as heteróclitas .raças humanas estão liga/das,por evolução, com o animal, tanto miais radicais são asdiferenças demonstráveis entre nós e qualquer BinâmaJ, e tantomãos notável é a unicidade das nossas instkuíçSes. Mas as^nossas reali2aç5es,as nossa£_mstitulções são únacais, incampa-_

de iimãordem feerenit)e^ag_das^ raças inferioresffr ?**»$$?* rijado o custo. De sorte que, ou seja

Uma questão de imperialisiao, ou de preconceito de raça, oude comparação entre Cristianismo e paganismo, continuamosenvaidecidos com a •unicidade, ngo das imsíátuieões humanasdo mundo em gerai, com que, iadiás, nunca ning-uém se preo-cupou, mas das nossas próprias instituições e realizacõeis,_da-nossa civilizaição.

COIlfllSãO de COStume local C.am Natnr/>7n knmnnn

A civilização Ooidenitel. devido a circunstâncias históricasfortuitas, teve <uma expansão mais vasta do qtíe a de qualqueroutro grupo locai até hoje conhecido, EstarDdawEzou-se porsobre a (major parte da glmhn. e fom.ce, pois, levados a aceitar

ia cjienjcaijajurJfoiimídaide da rorgjujaJiMmana'- que noutrascircunstâncias não teriai sorgido. Até povos muito primitivostêm, por vezes, muito ima is forte consciência do çue nós, osocidentais, do papel das feições cultuníais, e por onuito boasrazões. Sofreram a experiânciai íntíma de culturas diferentes.Viram a sua religião, o seu sistema económico, as suas restri-ções matrimoniais tombarem perante o branco. Renunciaram

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a «mas e aceitaram outras, muitas vezes •com bem grandeincompreensão delas; mas vêem com clareza que existemvários arranjos da vida humana. Atribuirão, por vezes, centoscaracteres.dommaiufies do branco à sua concora-êneia comercial,ou às suas instituições militares, muito da forma por que ofazem os antropologistas.

_OJ>rancot esse, -tem tido uma experiência diferente. Nunca,porventura, terá visto ura homem de outra civilização, a nãoser que o homem de outra civilização já esteja europeizado.Se viajou, muito provavelmente fê-lo sem «uraca «r .ficadofora de um hotel cosmopolita. Pouco gabe de quaásquerjna-netras de viver quengo sejam as suas. A uniformidade decostumes, de pontos de vista.., que vê em volta, de si parecem--Ihe suficientemente convincentes, e esconde das suas vistas ofacto de que se 'trata, afinal, de rum acidente histórico; Aceitasem anais complicações a> equivalência' da natureza humana edos seus próprios padrões de cultura.

E no encanto, ia grande \expamisao da civilização branca,não é uma circunstância histórica isolada. O grupo Polinésio,em épocas relativamente recentes, espraiou-se desde Ontong,Java, até à Ilha da Páscoa, de Havaí até à Nova Zelândia; e astribos de Língua Bantu espalharam-se desde o Sara à Áfricado Sul. Mais nós em nenhum caso consideramos esses povoscomo mais do que •uma variação local hipertrofiada da espéciehumana. A civilização Ocidental teve todas as suas invençõesem meios de transporte e todas ais suas organizações comer-ciais tíe largo âmbito, a apoiar a sua. vasta dispersão, e é fácilcompreender historicamente como isto se deu.

—j>A nossa cegueira perante outras culturas

As consequências psicológicas deste, expansão da ouJftunabranca têm sidodesproporcionadais quaindo comparadas com

. Esta difusão cultural iam giau

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mundial têm-nos- impedido, como- noraca o homem o foi atéaqui, de rtomar a sério as civilizações dos outros povos; temfeito que a nossa cultura e e nossa •unSvensalidade maciçatenham, desde há (muito tempo, deixado de tomar em consi-deração o que é de essência histórica, e que asBeníáinos ser,pelo contrário, necessário e inevitáivel. foterpretaimos a depen-

.económica, jxinio prova de qjte ue$a é a pri«imante cm^ quê "èlnat$»teâai 'pode conf ia<r,mais,_que o aSp^rtt^enito das crianças tal comove imoldadoEÊͧ^nossa..civilízaçBO > . e_ regia^o nas clínicas;évpsicologia infaíiítíl ou o modo por que o ainimal humanojovem tem de se comportar. O mesmo se dá quer se trateda nossa ética quer da <aassa> organfização familiair. O que defen*demos é a inevita/bHidade de cada motivação fenníliax, tisempre idendficair os nossos modos locafe de comportamento.com Comportamento, ou os otossos próprios hábitos em sooie-dade. com Natureza Humana, "noã -\, o homem modera» >fez desta tese tima das circuns-

tâncias vitais do seu pensar e da ema conduta prática, mas asfontes de qoie ela provém 'recuam até ao qw, a avaliar pelasua existência <univsrsail enfcre povos primitivos, parece seruma das mais primitiv&s distinções 'humainais, a ^diferença

. qijailitativa. entrg_«o meu jyópEpjL-^upo^echajdo^ e_o_que aele é estranho, "jjoda^^s tribos prMnitivas__ooaicordaím em re-

I çotnjhecer ^^^^^^^'^^S&>O&.JÍ^^^^G;^Í^^sÊo fora das disposições do código moral que é

observado dentro dq/uem Kumáriamenite ee nega .?m

nomes deowra^

povos primitivos se irecoiAe<^ jsi ^^oji»^_sioj«jein)OsQ.atiygs que designam «seres rjumanos». isto é, eles próprios.

do grupo fedtedo não há seres humanos E isto, a des-peito do faoto de, de TJim ponto de vista objeotivo, cada tribo

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estar ixxteada por povos que partilham das suas artes e inven-ções materiais, de práticas complicadas que se desenvolveramatravés de trocas mútuas de comportamento entre «m povoe ouitro.

OJromem primitivo n;u!iw3a cpnisiderouí o muíidgjnem viua Humanidade como se fosse um grtcpo, ..nem fez_çaufia. «xmumcom a sua espétíe. Desde inído foi um habitante de «ma pró-víniciai que se isolou, por meio de altas barreiras. Quer se tra-tasse de escolher mulher ou de cortar uma cabeça', a primeiradistinção que fazia, e a mais importante, era entne o seu pró-prio giMpo humano e os fora do grémio. O seu grupo e todosos seus modos de comportamento, eram únicos.

De modo que o homem moderno, quando distingue PovoEleito e estrangeiros perigosos, grupos dentro da sua própriacivilização genética e culturahnerate aparentados vem. com ooutro, como quaisquer 'tribos na< selva australiana o são, tempor trás da sua atitude a justificação de uma longa conitinlúdadehistórica. Os pigmeus têm as inesmias pretensões. E não nos éfácil libertatmwNnos de .uma feição humana 'tão fundamental,mas podemos, pelo menos aprender ai confessar a sua historiae as suais polímorfas manifestações.

Uma dessas manifiestações, e aquela que é muitas vezescitada como primária e ctmdicioniada mais por emoções reli-giosas do que por este mais generalizado provineialismo, é aatituide rniiversatoieate sustentada nas dvilizações Ocidentais/na medida em que a neligião se conservou entre elas umacircunstântiai viva. A distinção entre quajigjjer grupo fechadoe pQ3a»-esaaahQS_toipBr^e. em teiroftWle-. TeliftiSò.. a de verda-

g l Durante milhares de anos náo haviaponíos de contacto entre estas duas categorias. Não havianuma delas, ideias ou instituições que fossem válidas na outra.Pelo contrário, todas as omstítuicões eram consideradas anta-gónicas, só por pertencerem a uma ou a oufirai das, muitasvezes, levemente diferenciadas religiões: de um lado era umaquestão de Verdade Divina e de verdadeiro crente, de 'revelação

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e de Deus; do outro era uma questão de erro mortal, def ábuias, do maldito e de demónios. Não se tratava de equacio-nar as atitudes dos grupos em oposição, e por consequência,de compreender através de dados estudados objectivamente anatureza desta importante feição humana—religião.

reconceitos de raça

Nós sentimos uma certa superioridade justificada quandose aceita uma caracterização, como esta, da atitude religiosapadrão. Pelo menos desembaraçámo-nos daquela absurdidadeespecial, e aceitámos estudar comparadamente as religiões.Mas considerando o alcance que uma atitude semelhante temtido na nossa civilização sob a forma de, por exemplo, pre-conceitos de .raça, justifica-se certo cepticismo quanto a sera nossa largueza de vistas, em questões de religião, devida aofacto de termos superado a cândida infantilidade de visão,ou simplesmente ao facto de a religião ter deixado de ser otablado em que se põem em cena as grandes batalhas da vidamoderna. I>Jas quest ...reahnmte.yitete... ...9{»!»LáYÍlJÉe9S9oparece estarmos ainda longe de ter adquirido a atitude desin-teressada que tão largamente alcançámos s no .campo da^reUgião.

Outra circunstância fez do estudo sério do costume umadisciplina ainda em atraso e muitas vezes cultivada com hesi-tação, e esta é uma circunstância mais difícil de vencer do queaquelas a que vimos de nos referir. O costume não provocoua atenção. _dos, -teorizadores- sociais porque ele .constituía aprópria.,substânda .da. seu. pj3nsar:_era,^ppr assim Jizcr, a lentesemj^qyaLnada_pMiajr^^mental,_eidjtia_ fora_da . sua_atencão . canscjentó^ Tal. cegueiranada tem de enigmático. Depois de um investigador reunirõs~vãstos~aa~do¥ necessários para o estudo de créditos inter-nacionais, ou do processo de aprender, ou do narcisismo comofactor de psiconeuroses, é por intermédio e dentro deste corpo

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de dados que Q OU O PSJCOlOf-ista. ou o psiquiatraoperam. Não toma em consideração o facto de outros com-plexos sociais em que, porventura, todos os factores se dispõemde uma maneira diferente. Isto é, não conta com o condicio-namento cultural. Vê o aspecto que está a estudar como mani-festando-se de modos conhecidos e inevitáveis, e apresentaestes como se fossem absolutos, porque a eles se reduzem todos

ae-fee servem para trabalhar racionalmente. Iden-Jifjcanvse_atitudes locais da década de trinta,_conL-natUfezahumana^ e a sua caracterização, com Economia e Psicologia.

Na prática, isto. muitas vezes, não importa. Os nossosfilhos devem ser educados na nossa tradição pedagógica, e oestudo do processo de aprendizagem nas nossas escolas é oque realmente importa. Da mesma forma se justifica o en-colher de ombros com que muitas vezes se acolhe uma dis-cussão de outros sistemas económicos que não o nosso. Afinal,temos de viver dentro do quadro do meu e do teu que a nossaparticular cultura estabelece.

Isto é, realmente, assim, e o facto de as variedades deculturas se poderem discutir melhor tais como existem emespaço, é pretexto para a nossa aonchalance. Mas é apenasa limitação de material histórico o que impede que se tiremexemplos da sucessão das culturas em tempo. Essa sucessãoé coisa a que não podemos furtar-nos, mesmo que o queiramos,e quando olhamos mesmo só uma geração para trás que seja,então compreendemos até que ponto foi longe a revisão, porvezes no nosso mais íntimo comportamento. Até aqui taisrevisões têm sido não deliberadas, mas o resultado das cir-cunstâncias que só retrospectivamente podemos figurar. .E senão fosse a nossa relutância em enfrentar mudanças culturaisem questões essenciais, enquanto elas se nos não impõem, nãoseria impossível assumir uma atitude mais inteligente e autori-zada. Aquela relutância é em grande partg n-n\anossa incompreensãojtas convençfipjculturais. e especiajmejxte.umãjjuMimacjp daguelas^que pertencem à nossa nacj?"^ ^

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nossa década. Um conhecimento mesmo escasso de outrasconvenções e de como elas podem ser diferentes das nossas,contribuiria muito para promover uma ordem social racional.

O estudo de culturas diferentes tem ainda outro alcancemuito importante sobre o pensamento e o comportamento dehoje em dia. A vida moderna pôs muitas civilizações em con-tacto íntimo, e no momento presente a reacção dominante aesta situação é o nacionalismo e o snobismo racial. Nunca,mais do que hoje, a civilização teve necessidade de indivíduosbem conscientes do sentido de cultura, capazes de verem objec-tivamente o comportamento socialmente condicionado deoutros povos sem temor e sem recriminação.

Desdém pelo estrangeiro não é a única solução possível donosso actual contacto de raças e nacionalidades; esta nemsequer é uma solução cientificamente alicerçada, A tradicio-nal intolerância anglo-saxónica é uma feição cultural, local etemporal como qualquer outra. Mesmo um povo tão aproxima-damente do mesmo sangue e da mesma cultura como o espa-nhol dela não sofreu, e o preconceito de raça nos países decolonização espanhola é uma coisa completamente diferentedo dos países dominados pela Inglaterra e pelos EstadosUnidos. Nestes não se trata evidentemente de uma intolerân-cia dirigida contra a mistura de sangue de raças biologica-mente muito distantes, porque ocasionalmente a exaltação étão grande contra o católico irlandês em Boston, ou o italianona Nova Inglaterra, como contra o Oriental na Califórnia.É a velha distinção entre o grupo de dentro e o grupo de fora,e se neste aspecto continuamos a tradição primitiva, temosmuito menos desculpa do que as tribos selvagens. Nós viajá-mos, orgulhamo-nos das nossas vistas desempoekadas. Masnão conseguimos compreender a relatividadejfos hábito? cul-túrais,^jcontjjauáfnos_privadòs~aè^muito proveito e dejgàtoprazer nas nossas relações humanas com povos de diferentestipos de cultura, e a não ser dignos de confiança nas nossasrelações com eles.

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O reconhecimento da base cultural do preconceito deraça é hoje uma necessidade desesperada na civilização Oci-dental. Chegámos a ura ponto em que alimentamos precon-ceitos de raça contra os nossos irmãos-de sangue, os Irlande-ses, e em que a Noruega e a Suécia falam da sua inimizadecomo se também eles representassem sangues diferentes. A cha-mada linha racial, durante uma guerra em que a França e aAlemanha se batem em campos opostos, mantém-se para di-vidir o povo de Baden do da Alsácia, ainda que somaticamenteambos pertençam à sub-raça alpina. Numa época de movi-mentos sem embaraços e de casamentos mistos, na ascendênciados elementos mais desejáveis da comunidade, pregamos, semcorar de vergonha, o evangelho da raça pura.

O homem moldado pelo costume não pelo instinto

A isto a antropologia dá duas respostas. A_pj±neir;a res-peita à natureza da cultura,.e a segunda à natureza da herança.A resposta respeitante à natureza da cultura íeva-nos atií àssociedades pré-humanas. flá sociedadesem que. a .Naturezaperpetua o mais ténue .modo de_cQmpprtamento por meio demecanismos biológicos, mas tais,sflcjedades não s3o.de homens,são de insectos. A formiga rainha, transportada para um ninhosolitário, reproduzirá todas as feiçSes do comportamentosexual, todos os pormenores do ninho. Os insectos sociais re-presentam a Natureza não disposta a correr quaisquer riscos.O padrlo de toda a estrutura social, confia-o ao comporta-mento instintivo da formiga. Não há maior número de proba-bilidades de as classes sociais de uma sociedade de formigasou de os seus padrões de agricultura se perderem pela sepa-ração de uma formiga do seu grupo, do que de a formiga nãovir a reproduzir a forma das suas antenas ou a estrutura doseu abdómen.

Fejjz_ou infelizmente, a solução do homem ocupa o pólo

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oposto. Nada da sua organização social tribal, da sua lingua-gem, da sua religião local é itrãnsportãdcVriã ^nal. Na Europa.^m séculos passados, quando se encontravamcrianças que tinham sido abandonadas e se tinham conservadoem florestas, separadas de outros seres humanos, eram de talmoda parecidas entre si que Lineu as classificou como umaespécie à partej Homo ferus, e supôs que eram uma espéciede anões raros. Não podia conceber que tivessem nascido dehomens, esses brutos idiotas, esses seres sem interesse no quese passava à sua volta, oscilando ritmicamente para trás e paradiante como qualquer animal de jardim zoológico, com órgãosda fala e da audição que mal podiam educar-se, que resistiamao frio apenas com uns farrapos e tiravam batatas de água aferver sem o menor incómodo. Ê claro que n3o havia qualquerdúvida que se tratava de crianças abandonadas na infância,.e o que a todas faltara fora a associação com os seus seme-lhantes, só através da qual as faculdades do homem se afiname ganham forma.

Hoje, na nossa civilização, mais humanitária, já não seencontram crianças selvagens. Mas o facto ressalta com igualclareza de qualquer caso de adopção de uma criança em outraraça ou cultura.famflia ..a^^^adoptivos as atitudes, correntes, entre^as^ crianças _com qnembrinca, e encarreira-se para as , mesnias. profissões_ que _elasescolhem. Aprende todo o conjunto de feições culturais. _.§£sociedade que adoptou, e o grupo dos seus verdadeiros proge-nitores não desempenha em. tudo isto qualquer papel,. O mesmose passa em grande escala quando populações inteiras sedesembaraçam da sua cultura tradicional em duas ou trêsgerações e adoptara os costumes de um grupo estrangeiro.A cultura do Negro americano nas cidades do norte veio aaproximar-se em todos os pormenores da dos brancos nasmesmas cidades. Há alguns anos, quando se fez um recensea-mento cultural era Harlém, um dos traços peculiares aos

Negros era a moda que seguiam de apostar nos três últimosalgarismos dos investimentos da bolsa no dia seguinte. Pelomenos saía mais barato do que a correspondente predilecçãodos brancos por jogarem na própria bolsa, e tinha a mesmaincerteza e era igualmente excitante. Era uma variante dopadrão branco, mas nem por isso se afastava muito dele.E a maioria das feições de Harlém conservam-se ainda maispróximas das formas correntes em grupos 'brancos.

Por toda a parte, e desde o princípio da história dohomem, se demonstra que certos povos puderam adoptar acultura de povos de outro sangue. Não há na estrutura bioló-gica do homem nada que torne isto sequer difícil, muito menosimpossível. O homem nãn énhngado. pela sua constituição

a "tHanr Jormenor a qualquer variedade par-MJeater-4e_cornj)ortamento. A grande diversidade de soluções\s por ele em diferentes culturas relativamente à uniãoi dos sexos, por exemplo, ou ao comércio, são todas igualmente\s na base dos seus dotes originais. /A cultura não é ujjt

que seja transmitido blõlogicamente.em _

rez3jé.cQropejisaclo pelas vantagens dejuma major pjastíddade.No animal h\umno~i^'sr^èi^\c,_<ixx^^w^^i^,jasm^vestimenta^tado de, depois de muitas gerações, se adaptar aos rigoresárcticos. Ele aprende, sím7T fazer àgãsalhos^eiaíconsíiía^lum^casa de neve. Pelo_ que nos diz a história da inteligência nassociedades pré-humanas, como nas humanas, esta plasticidadefoi p húmus éhi que o progresso humano começou á "crescere em que se tem mantido vivo. Nos tempos dos mamutes, espé -cies sobre espécies semrplastieidade surgiram, ultrapassaram-see desapareceram, vítimas do desenvolvimento daquelas mesmasfeições que a adaptação ao ambiente nelas tinha produzido.Os animais carnívoros e por fim os símios superiores vieramlentamente a apoiar-se em adaptações não meramente bioló-gicas, e foi sobre a consequente plasticidade assim aumentada

que se estabeleceram, pouco a pouco, as fundações para odesenvolvimento da inteligência. Talvez, como muitas vezes sesugere, o homem venha a destruir-se a si próprio em virtudeexactamente do desenvolvimento da sua inteligência. Mas nuncaninguém se lembrou de aventar quaisquer meios por que possa-mos voltar aos mecanismos do insecto social; de modo que nãonos resta qualquer alternativa. A herança cultural humana,para nosso bem ou para nosso mal, não se transmite biologica-mente.

O corolário que daqui deriva em política moderna é quenão há qualquer fundamento no argumento de que podemosconfiar as nossas conquistas espirituais e culturais a quaisquerplasmas germinais especiais hereditários. Na nossa civilizaçãoOcidental a liderança passou, em diferentes períodos, sucessi-vamente para os Hamitas, para o subgrupo Mediterrâneo daraça branca e finalmente para os Nórdicos. Não há qualquerdúvida acerca da realidade do facto da continuidade culturalda civilização, seja quem for o seu portador em dado mo-re ento. Temos de aceitar todas as jmpjiçacões da nossa-beiancahumana,jumaraas maiorès"3Ss quaisj^a iniraportânciarelatfva^do. comportamento bipiogicamente transmrBgõT" ê" o papelenorme do processo cultural da trãnsmissãoJdlTtradi^ãQ.

-- -yA «pureza racial» é uma ihM/b

A segunda resposta dada pela antropologia ao argumentodo purista racial, respeita à natureza da hereditariedade. O pu-rista racial é a vítima de um mito. Porque, o que vem a ser«herança racial»? Sabe-se mais ou menos o que é herança de paipara filho. Dentro de uma linhagem familiar a importância

de linhagens farniliarea ^^ Para além. diss.o_.é_mitp.-,Eni comuni-dades pequenas e estáticas, como \iraa aldeia Esquimó isolada,hereditariedade racial e hereditariedade de filho e pais são pra-

í ír* '

ticamente equivalentes, e nessas condições a expressão heredi-tariedade racial faz sentido. Mascojno_cgnceite-aplicado a.

^jjtuBps espalhados por^uma^área vasta,, djgamo&_no^ caso dosNórdicos, não tem qualquer base real. Em primeiro, lugar, emtodas as nações nórdicas há linhagens de família que tambémsão representadas em comunidades alpinas ou mediterrâneas.Qualquer análise da constituição física de uma população euro-peia apresenta zonas de sobreposição: o Sueco de olhos e cabelosescuros representa linhagens de família que são mais concen-tradas para o Sul, mas ele deve ser considerado em relação aoque sabemos destes últimos grupos. A sua hereditariedade, namedida em que tem qualquer realidade física, é uma questãoda sua linhagem de família, que não se confina à Suécia. Nãosabemos até quer ponto tipos físicos podem variar sem entre-mistura. Sabemos que o intracruzamento provoca o apareci-mento de um tipo local. Mas este caso quase não se dá hanossa cosmopolita civilização branca, e quando se invoca a^^hereditariedade racial», como é habitual, para reunir um grupodejejsoas com, .aproximadamente, a mesma posição econó\, com cursos de.jãproxiinadamente, as mesmas escolas; e

~queTêetn~os mesmossemãnarios, tal jgtejgaâa_4Jia(|ajmgís_dQ.qõíe outra versão do grupTTdenfrolíogrémio e do grupo forado grémio, e não se refere à verdadeira homogeneidadegiea do grupõT

^^^Õ3JfiâlJd^eJigaj3S_homens é a sua cultura— asideías-e-osrp_adrjoj5~qTie t£m JBU, comum,. jfegnrVBZjle escolherura. símboJb..xomohere_ditAneda(3e jde" sangue xomumr e de parvorar em mntn { n a c ã n %'jrisse qntcs a sua atenção para acultura que une Q seujgpj^r>oixda.-cm-jflleyp _ps seus méritose reconhecendo os diferentesvãlõres' quTse podem desenvolvernuma cultura olfercnitèrs"ub^HtuIiia uma esp^cie.de simbolismpperigoso, por .ser. enganador, por um pensar realista.

[28]

-*— *-*\Qazao para se fazer o estudode_j>ovosprimitivosj

No pensar social é necessário um conhecimento de diferen-tes formas de cultura, e este livro ocupa-se deste problema dacultura. Como acabámos de ver, forma do corpo, ou raça, éseparável de cultura, e, para o fim que temos em vista, talconceito pode ser posto de parte, excepto em certos pontos emque por qualquer razão especial passe a ser relevante. Umadiscussão de cultura exige em jprimeiro lugar que se baseie njirnalarga selecção âe formas culturais gossíveis. Só assim poderemosdistinguir, entre aqueles^ajustamentos humlmos^ãuIXíiSMêntecondjaonados_eos_que_.são comuns e, tanto quanto "podemossaber, inevitáY^.jia.,h_umanidade. Não poHèrSôs, "pòTlntrbs-pecção ou por observação de qualquer sociedade, descobrir quecomportamento é «instintivo», isto é, organicamente determi-nado. Para classificarmos de instintivo qualquer comporta-mento, não basta provar que ele é automático. O reflexo con-dicionado é tão automático como o determinado organica-mente, e reacções culturalmente condicionadas constituem amaioria do nosso vasto equipamento de comportamento auto-mático.ç EQj^pnsequência_ojnaterial mais significativg_gara o casod£_uma (jiicussão de^ormaTèprocêssõTcilltúrãíFiéo das socie-

^_____ .„, ^-r— ^—^^___ n- -^ i ^ -—f

dades tanto_quintõ~gosavel historicamõite^poiicp relacionadascom a nossa e entre si. Com a vasta rede de contactos liistóricosque asgrãndes civilizações espalharam sobre enormes áreas,as culturas primitivas são hoje a única fonte a que devemosrecorrer. Elas são um laboratório em que podemos estudar ajiversidkde ê^stitulcjesjíumanas. Com o seu relativo isola-mento, muitas regiões primitivas tiveram ao seu dispor váriosséculos em que puderam elaborar os temas culturais de que seapropriaram. Fornecem-nos, prontas para serem estudadas,informações relativas a possíveis grandes variações em ajusta-mentos humanos, e para qualquer compreensão dos processosculturais é essencial um exame crítico desses ajustamentos.

É este o único laboratório de formas sociais de que dispomosou disporemos.

Este laboratório tem outra vantagem. Os problemas põem-seaqui em termos mais simples do que nas grandes civilizaçõesOcidentais. Com as invenções que tomam fáceis os transportes,com cabos internacionais, telefones, rádiotransmissão, aquelasinvenções que asseguram permanência e vasta distribuição daimprensa, o desenvolvimento de grupos profissionais, cultos eclasses em concorrência e a sua uniformização por todo omundo, axúãUzaçâajnodOTiia^t^mou-^^demasiadamente com-

para -isso,.&e._frAcâane.jeiR,pjquenassecções arjtffíciais.J^estasanálises. paisiâis^^oJnadequadas^íorque-muitQs.iacíojes exter-nos que_se.apresentam nãoApodem ser controlados. Uma revistade qualquer grupo envolve indivíduos provenientes de gruposheterogéneos opostos, com padrões diferentes, diferentes objec-tivos sociais, relações familiares e moralidade. A inter-relaçãodestes grupos é demasiadamente complicada para a avaliarmoscom o necessário pormenor. Na sociedade primitiva, a tradiçãocultural é suficientemente simples para que_o_saberjde cadaadulto a abranja, e os modos" oféjbrocejder-e a-moral JÍÍLgrupoajustam-se a. u^mpjdrão^ge^KUan definido. B possível nesteambiente simples, avaliar a inter-relação de aspectos de umaforma impossível nas correntes que se chocam na nossa com-plexa civilização.

Nenhuma destas razões para insistir nos factos de culturaprimitiva tem nada que ver com o uso que classicamentese tem feito deste material. -EsxçLUSQjeisaya àorigens.. Os, antrqpjDlogista^,anteriores tentavam jdisporjtodos osaspectos jie_culturas^^ dtffirenles^numa, sç!qH.ência..eyj!>lutiyaljâesdeasjprimeiras formas até ao seu desenvolvimento últinia.riajç;ivi-

Nlizacãp Ocidental. Mas nlo se deve supor que ao discutir a reli-gião Australiana, e não a nossa, nós, estamos a revelar a religiãoprimitiva, ou que ao discutir a organização social Iraquiana

-v-5-V-.

revertemos aos hábitos de acasalamento dos primeiros ante-passados do homem.

Uma vez que somos forçados a aceitar que o homem cons-titui uma espécie, conclui-se daí que por toda a parte o homemtem atrás de si uma história igualmente longa. Jijpossíyeljiueceltas tribos primitivas; sejtenham conservado mais; próximas jde formas primitivas de comportamento do que o homem civi-lizado, mas pode suceder que isto seja apenas relativo, e asnossas^ suposições tanto poderá ser verdadeiras como erróneas.Não se justifica que identifiquemos qualquer primitivo costumeactual com o tipo original de comportamento humano. Noponto de vista de método _só,háL uma maneira de atingirjSnSconhecimento aproximado desses estádios primitivos da huma-nidade; pelo estuãoT^ Hi ^C. ^*! 11611'1 n!*n?ie?t) ÍSfeTçoes"uníversais ou quase universais da sociedade humana.Muitas são Ibera^conTbecidas. Dentre'""elas todos concordam emconterão animismo j1) e as restrições exógamas sobre o_casa-%.mento. Mais questionáveis são as concepções, que afinal mos- 'tram ser muito diferentes, sobre a alma humana e sobre uma jvida futura. Crenças quase universais como estas últimas, podem f

justjficadamente considerar-se como invenções humanas extraor-dinariamente antigas. O que não quer dizer que as consideremosdeterminadas biologicamente, pois que podem ter sido invençõesmuito primitivas do homem, feições «de berço» que se tor-naram fundamentais em todo o pensar humano. Em líltimaanálise podem ser tão socialmente condicionadas como qualquercostume local. Mas tornaram-se desde há muito automáticasno comportamento humano. São antigas e universais. Mas nãopodemos concluir daí que as formas que hoje se podem obser-var sejam as formas originais surgidas nos tempos primitivos,

j Nem há qualquer processo de reconstituir essas origens a partirdo estudo das suas variedades. Podemos isolar o núcleo uni-

P) Crença na existência do espírito -em 'toda a • Natureza.(N. ào T. alemão)

[303 [31]

versai da crença e derivar dele as suas formas locais, mas apesardisso é ainda possível que a feição particular tenha surgido deuma forma local pronunciada e não de qualquer mínimo deno-minador comum de todas as formas observadas.

Por isto, a utilização de costumes primitivos no estabele-cimento de origens 6 de natureza especulativa. É possível for-mular um argumento em apoio de quaisquer origens que sedesejem, origens que se excluam mutuamente ou que sejamcomplementares. De todas as utilizações de material antropo-lógico, é este aquele em que especulação seguiu especulaçãomais rapidamente, e em que, pela própria natureza da questão,não é possível fazer prova.

Tão-pquço a razão de utilizar sociedades primitivas na dis-cussão de formas sociais está necessariamente^reiácionada comum romântico regresso ao primitivo... Ele não se filia em qual-quer espírito de poetização dos povos menos evoluídos. Sobmuitos aspectos a cultura de um ou outro povo seduz-nos forte-mente nesta era de padrões heterogéneos e de confusa agitaçãomecânica. Mas n3o é num regresso a ideais conservados porpovos primitivos para nosso proveito, que a nossa sociedadecurará os seus males.- O romântico Utopianismojgue anseia peloprimitivo mais simples,, por atraente .que por,vezes, possa ser,constitui nos estudos de antropologia tanto um. empecilho, comoum auxílio.

S O estudo cuidadQsgjas sociedades primitivas éhoje. comoLx dissemos, importante, maspor fornecer matgnafpãira o estudoV 3èTfõE«ãs^pVeèêssos«culturaisJ. Aiuda-nos a distinguiFãsTés-

j _pos!tas espedfieas id£^"típos_culçuira& Ioõàis7 idãslçue sljò^gerais na^ Humanidade. Além disto ajudãln3ros~aravalíaFVc~ómpreender-

! o papel imensamente importante de comportamento cultural-i smente condicionado. A cultura, com os seus processos e funções,^-é-tim assunto sobre que necessitamos todo o esclarecimento

possível, e em nada como nos factos das sociedades pré-letradasnós podemos buscar colheita mais compensadora.

[3*]

A DIVERSIDADE. DE ÇULTHBAS

O vaso da vida

UM chefe dos índios Digger ('), como os habitantes daCalifórnia lhes chamam, falou muito -comigo a rés- •peito dos hábitos do seu povo em tempos idos. Era

cristão e pioneiro entre os seus na cultura de pêssegos e alpercesde regadio, inas ao falar dos xataãs que. vira ele com os seusolhos, se tinham transformado em ursos durante a dançswfos--ursos, as mãos tremiam-lhe e a voz vibrava de emoção. Era umacoisa extraordinária a energia do seu povo nos tempos antigos.Mais do que tudo gostava de falar do que o deserto lhes davacomo alimentos. Tratava cada planta que arrancava, com amore com uma segurança absoluta da sua importância. Nessestempos o seu povo tinha comido «da saúde do deserto», diziaele, e ignorava tudo a respeito de latas de conserva e do quese vendia nos talhos. Tinham sido estas inovações que tinhamacabado por fazê-Ios degenerar.

Um dia, sem transição, Ramon começou a descrever como

<•>) «índios Dígger», os autóctones da Grande Eccia. (N, do T.alemão)

3 - P. BE CULTURA. [331

se esmagava o mendobi e se preparava sopa de bolota. «No prin-cípio», diria, «Deus deu um vaso a cada povo, um vaso debarro, e por este vaso bebiam a sua vida.» Não sei se o símboloaparecia em qualquer rito tradicional do seu povo que nuncadescobri qual fosse, ou se era inventado por ele. É difícil admitirque o tivesse recebido dos brancos que conhecera em Banning;estes não eram gente que discutisse o etos de diferentes povos.Seja como for, no espírito deste índio humilde a figura de retó-rica era clara e rica de significado. «Todos enchiam o seu vasomergulhando-o na água», conthíuava, «mas os vasos eram dife-rentes. O nosso quebrou-se; desapareceu.»

O nosso vaso quebrou-se. Aquilo que tinha atribuído sgni-! ficado à vida do seu povo, os rituais domésticos de tomarem-os alimentos, as obrigações do sistema económico, a sucessãoidos cerimoniais nas aldeias, o estado de possessos na dança dojurso, os padrões do bem e do mal—'tudo desaparecera, e comjisso a forma e o significado da sua vida. O velho conservava-se! ainda vigoroso e continuava a ser quem orientava as relações(dos seus com os brancos. Não queria ele dizer, com aquelej modo de se exprimir, que se tratava de qualquer coisa como aextinção do seu povo. Mas no seu espírito havia como que aconsciência da perda de qualquer coisa que tinha um valorigual ao da própria vida, <;EDda-a--estnrnira dos^padrõesedascrençasj3o_sj2Luaawv Havia ..ainda outros~vãsõs~"dã" vidãrtãlvezceurnfníesma água, mas a perda era irreparável. Não se tratavade juntar aqui isto, de tirar ali aquilo. A modelação do vasofora fundamental, fosse como fosse era de uma só peça. Fora oseu vaso.

Romão tinha tido a .experiência, pessoal daquilo de quefalava. Fizera a forquilha entre duas .culturas cujosT valores emodos He pensamento eram incomensuráveis.. Duro destino.Na civilização Ocidental as nossas experiências foram diferentes.

' j Somos educados para viver dentro de uma cultura cosmopolita,j e as nossas ciências sociais, a nossa psicologia e a nossa teologiai teimam em ignorar a verdade expressa pela figura de Romão.

[341

O curso da existência e a pressão do ambiente, para nãofalar da facúndia da imaginação humana, .proporciona um nú-mero incrível de orientações possíveis, todas as quais, aparente-mente, permitem que sejam adoptadas por uma sociedade.Há os esquemas da propriedade, com a hierarquia social que sepode associar ao que se possui; há coisas materiais e as compli-cadas técnicas correspondentes; há todas as facetas da vidasexual, da paternidade e do culto dos antepassados; há as asso-ciações ou os cultos que podem estruturar a sociedade; há. astrocas económicas; há os deuses e as sanções sobrenaturais.Cada um destes aspectos e muitos outros serão exaustivamenteseguidos com uma elaboração cultural e cerimonial que mono-poliza a energia cultural e deixa pouco lugar para a criaçãode outros aspectos. Aspectos da vida que se nos afiguram impor-tantíssimos foram ignorados e desatendidos por povos cujacultura, orientada noutra direcção, esteve longe de ser pobre.Ou a mesma feição comum pode tornar-se complicada a talponto que a consideramos fantástica.

Necessidade de ama selecção

Passa-se na vida cultural o que se passa com a linguagem.O número de sons que as nossas cordas vocais e as nossas ícavidades bucais e nasais podem emitir é praticamente ilimi- ;tado. As três ou quatro dezenas da língua inglesa constituem !uma escolha que nem com a de outras línguas tão intimamente /relacionadas com ela como o Alemão e o Francês coincide, j ;Nunca ninguém ousou calcular o número total desses sons j }usados em diferentes linguagens. Mas cada língua tem deescolher os seus e de os aceitar, sob pena de perder toda ainteligibilidade. Uma língua que utilizasse mesrão~"ãs"poucascentenas Sós elementos fonéticos possíveis—-e realmente regis-

r Wdos—seria inutilizável como meio de comunicação oral. Poroutro lado muito da nossa incompreensão das línguas que não

[353

sejam afins da nossa resulta de tentarmos relacionar sistemasfonéticos estranhos, com o nosso próprio romn popt^ do r*f A,rência. .. Nós só reconhecemos um K. . Se outras têm cincosons diferentes de K localizados em diferentes pontos na gar-ganta e na boca, é-nos" impossível compreender diferenças devocabulário e de construção que dependem daquelas locali-zações enquanto não dominarmos estas. Nós temos um de um n. Entre eles pode haver um som intermediário que, senão conseguimos identificá-lo,. representaremos ora por um <fora por um, n, introduzindo distinções que não existem. "A-con-dição prévia elementar da análise linguística é possuir a.cons-.ciência desse incrível número de sons ao nosso dispor, dê quecada linguagem escolhe uns tantos.

Também em cultura temos de imaginar um grande arcoem que alinham os interesses possíveis que^o ciclo da vidahumana, ou o ambiente, ou as várias actividades dohomem

Tbfflecem. Uma cultura que acumulassê"mesmo uma proporçãoconsiderável desses interesses seria tão inteligível como uma

' todos Qpensões glóticas, todas as labiais, dentais, sibilantes, e guturaisdas mudas às tónicas, das orais às nasais. O seu carácter distin-tivo, como uma cultura, depende da escolha de certos seg-mentos desse arco. Toda_a-SQCÍedgde humana, onde quer que

^eja^jeajizQULessa egcojha nas suas insrttujrj^rnilfTira^ Cadauma delas, do ponto de vista de qualquer "outra," ignora o que

l é essencial e explora o que é irrelevante. Uma cultura quasenão reconhece valores monetários; outra tornou-ds fundamen-tais em todos os campos do comportamento. Numa sociedadea técnica é inacreditavelmente desdenhada, mesmo naquelesaspectos da vida que parecem necessários para garantir a sobre-vivência; em outra tão simples como ela, os aperfeiçoamentostécnicos são extraordinariamente complexos e admiravelmenteadequados a cada situação. Uma erige uma enorme superstra-tura cultural sobre a adolescência, outra, sobre a morte, outraainda, sobre a vida futura.

[36]

O caso da adolescência é particularmente interessante, jáporque está em foco na nossa civilização, já porque sobre eledispomos de informações suficientes relativas a outras culturas.Entre nós toda uma vasta bibliografia de estudos psicológicospôs em relevo a inevitável inquietação do período da puber-dade. Na nossa tradição ele é um estado fisiológico tão precisa-mente caracterizado por explosões domésticas e por rebelião,como a tifóide o é pela febre. Não são os factos que faltam.Na América são comuns. O problema está antes na sua inevi-tabilidade.

i. Maneiras diferentes em diferentes sociedades—4^" de considerar a adolescência e a puberdade

O exame mais perfunctório dos modos como diferentessociedades têm considerado a adolescência, põe em evidência oseguinte facto: mesmo naquelas culturas que dão mais impor-tância a esje-aspecto^ aCidade emjque. fa^em incídirji sua^aten-ção varia num largo, ,interv.alcude,anos, Ê, pois, imediatamenteclaro que se continuamos a pensar em termos de_j>uberdadebiológica as chamadas; instítuiçSes-de_pubecdade .j o,jama.j3iádesignação. Çvj>uberdaje_jjue elas consideram é de naturezãjciai, e as cej^6iuãs~õõrTespõndenfe_são uni* reconhecimento,variável na forma, da.nova condição do estado de adulto dacriança. Esta investidura em novas ocupações e obrigações éconsequentemente tão variada e culturalmente tão condicionadacomo ò são aquelas mesmas ocupações e obrigações. Se o únicodever considerado honroso do homem adulto são os feitosguerreiros, a investidura do guerreiro faz-se mais tarde e é denatureza diferente da de uma sociedade em que o estado deadulto confere o privilégio de dançar numa representação dedeuses mascarados. Para compreendermos as instituições depuberdade não é da análise da necessária natureza dos rituaisde^transição que nós precisamos; do que precisámos é, antes,

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de^saber o quedem jifergnjes culturas..seJdentifiça .conxQJnfcio« i.?a?e de a<*ulto e quais os seus métodos de admissão no novoestado jgmarartclade: ^~~ ^ *"

MÍtufidãdTTiã^mérica CentrajNsignifica capacidade de^zer_a^|Uèttá._Hòhorabilidade nesta é.a grande ambição detodos os homens. O tema sempre repetido da emancipação domancebo, como da preparação para a carreira das armas emqualquer idade, é um ritual mágico do êxito na guerra. A tor-tura não é inflingida aos iniciados por outrem, mas por estesa si próprios: cortam tiras de pele nos braços e pernas, amputamdedos, arrastam grandes pesos fixados aos músculos do peitoou das pernas, O seu galardão é exaltação de proezas em feitosde guerra.

Na Austrália, pelo contrário, maturidade significa partici-pação num culto exclusivamente masculino cuja feição funda-mental é a exclusão de mulheres. Qualquer mulher que ouçasequer o homem que solta o urro do touro nas cerimónias, écondenada a morrer; ela nunca deve ter conhecimento dos ritos.As cerimónias de puberdade são repudiaçSes simbólicas e com-plicadas das ligações com a fêmea; os homens são simbolica-mente promovidos a seres que se bastam a si próprios e ele-mentos completamente responsáveis da comunidade. Para alcan-çarem esse fim empregam-se drásticos ritos sexuais e confe-rem-se ao iniciado garantias sobrenaturais.

Os factos fisiológicos claros da adolescência são, pois, prinr

cipalmente, interpretados socialmente, mesmo onde eles sãopostos em relevo. Mas uma revista das instituições de puber-dade torna evidente uma coisa: a puberdade é, no ponto de vistafisiológico, uma coisa diferente no ciclo vital do macho e dafêmea. Se o aspecto cultural acompanhasse o aspecto fisiológico,as cerimónias no caso das raparigas seriara mais fortementecaracterizadas do que no dos rapazes; isso, porém, não é oque se dá. As cerimónias celebram um facto social: as prerro-gativas do homem têm mais largo alcance do que as dasmulheres, seja qual for a cultura, e por consequência, como

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, \s casos acima citados, é mais comum nas sociedades daremi ^atenção a este período nos rapazes do que nas raparigas.

A puberdade de rapazes e de raparigas pode, porém, sercelebrada na tribo da mesma maneira. Onde, como no interiorda Colúmbia Britânica, os ritos de adolescência são um treinomágico para todas as ocupações, os rapazes e as raparigas sãosujeitos aos mesmos tipos de procedimento. Os rapazes fazemrolar pedras pelas montanhas empurrando-as encosta abaixopara serem rápidos na corrida, ou arremessam varas-de-arre-messo para serem bem sucedidos nos jogos; as raparigas trans-portam água de fontes distantes ou deixam cair pedras entreas roupas e o corpo, para que os seus filhos nasçam com tantafacilidade como as pedras caem.

Numa tribo como a Nandi, da região dos lagos da ÁfricaOriental, rapazes e raparigas partilham em comum num rito depuberdade uniforme, ainda que, atendendo ao papel dominantedo homem na cultura, o seu período de treino juvenil seja maisintenso do que o das mulheres. Neste caso os ritos são umaprovocação infligida pelos já admitidos à situação de adultos,aos que eles agora são forçados a admitir no seu seio; Exigemdeles o mais complexo estoicismo perante engenhosas torturasrelacionadas com a circuncisão. Os ritos para os dois sexossão separados mas seguem o mesmo padrão. Em ambos, osnoviços envergam para a cerimónia os vestuários dos seusnamorados. Durante a operação espiam-se-lhes os mais ligeirossinais de sofrimento, e a retribuição da coragem é conferidacom grande regozijo pelo namorado, que se adianta para receberqualquer dos seus adornos. Para ambos, rapariga e rapaz, osritos marcam a sua entrée numa nova situação de sexo: o rapazé agora um guerreiro e pode ter uma namorada, a raparigapode casar-se. Os testes de adolescência são para. ambos os sexos

S uma provação pré-marital, em que a palma é conferida pelosl respectivos namorados.l—' Os ritos de puberdade podem também assentar nos factos

da puberdade da rapariga, sem admitir extensão aos rapazes.

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Um dos mais ingénuos deste género é a instituição da casa-de-íengorda para raparigas, na África Central. Na região em que abeleza quase se identifica com a obesidade, a rapariga na puber-dade é segregada, às vezes durante anos, alimentada com gor-duras e substâncias doces, e não desenvolve qualquer actividade,e fricciona-se-lhe o corpo repetidamente com óleos. Duranteesse período ensinam-se-lhe os seus futuros deveres, e a reclusãotermina com uma exibição da sua corpulência a que se segue ocasamento com o noivo, orgulhoso. Quanto ao homem não seconsidera necessário que ele atinja semelhante forma de apa-

. rente beleza.As ideias usuais em torno das quais as instituições de pu-

berdade gravitam, e que não se alargam naturalmente aos| rapazes, são as relacionadas com a menstruação. A impureza5 da mulher menstruada é uma ideia muito espalhada, e em certas\s a primeira menstruação tomou-se o foco em que con-

Ívergem todas as atitudes com ela relacionadas. Os ritos de pu-berdade nestes casos têm um carácter completamente diferentedos daqueles de que já: falámos. Entre os índios Carríer da

' Colúmbia Britânica, o temor e o horror da puberdade de umarapariga atingiu o grau máximo. Os seus três ou quatro anosde isolamento designavam-se pela expressão .«enterramento emvida», e durante todo esse tempo ela vivia sozinha na selva,numa cabana de ramos afastada de todas as veredas frequen-tadas. Constituía uma ameaça para todo aquele que sequera visse, mesmo só de fugida, e as suas meras pegadas poluíamum carreiro ou um rio. Andava coberta com uma grande capade pele curtida que lhe escondia a cara e os peitos e por tráslhe caía até aos pés. Os braços e pernas estavam carregadoscom tiras de tecido tendinosb, para a proteger do espírito maude que estava possessa. Em perigo, ela mesma, constituía paraos outros uma fonte de ameaças.

As cerimónias de puberdade das raparigas, fundamentadasnas ideias que se associam ao menstruo, são facilmente conver-tíeis no que, do ponto de vista do indivíduo em questão, é o

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comportamento exactamente oposto. Há sempre dois aspectospossíveis do sagrado; ele pode ser uma fonte de perigos ou umajonte de bênçãos. Em certas tribos a primeira menstruaçãoda rapariga é umíT grande bênção sobrenatural. Assim, entreos apaches, vi os próprios padres passarem, de joelhos, diante dafileira de solenes rapariguúihas, para delas receberem a bênçãode os tocarem. Todas as criancinhas e os velhos acorrem tam-bém até elas, para que os aliviem dos seus" males. As adoles-centes não são segregadas como fontes de perigos, mas rende-se--Ihes preito como a fontes de bênçãos sobrenaturais. Pois que asideias em que assentam os ritos de puberdade das raparigas,se fundamentam em crenças relativas à menstruação, tantoentre os Carrier como entre os Apaches, aqueles não são exten-síveis aos rapazes» e a puberdade destes é celebrada em vezdisso, e superficialmente, com simples testes e provas de vi-rilidade. '

De modo que o comportamento de adolescência, mesmonas raparigas não era ditado por qualquer carácter fisiológicodo próprio .período, rnas sim por requisitos maritais ou mágicoscom ele socialmente relacionados. Estas crenças faziam que aadolescência fosse numa tribo serenamente religiosa e bené-fica, e noutra, tão perigosamente impura -que a adolescentetinha de advertir os outros em altos gritos, para que evitassemna selva a sua proximidade. A adolescência das raparigas podetambém, como vimos, ser um tema quç a cultura não institu-cionaliza. Mesmo onde, como na maior parte da Austrália, aadolescência dos rapazes recebe um tratamento complicado,pode suceder que os ritos sejam uma entrada na situação doestado de adulto e na participação do macho em questSes detribo, e que a adolescência da fêmea passe sem qualquer espé-cie de reconhecimento formal.

Estes factos, porém, deixam ainda sem resposta a questãofundamental. N&)rjtojráj]is_as^ult^^. _ ^\urbacoesjiarurais deste período, mesino que se. lhes .não-dêexpre^io_ÍMtitúcibnàÍ? À Dr> Mèad estudou esta.questão em

Samoa. Aí a vida da rapariga passa por períodos bem caracte-rizados. Os seus primeiros anos depois da infância, passa-os empequenos grupos vizinhos de companheiras da mesma idade,de que os rapazes são estritamente excluídos. O cantinho daaldeia a que ela pertence é o que realmente importa, e os rapa-zitos são seus inimigos tradicionais. O seu dever é tratar dacriança de idade infantil, mas em vez de ficar em casa a cuidardela, leva-a consigo, e assim os seus divertimentos não sãoseriamente prejudicados. Alguns anos antes da puberdade,quando já ganhou forcas suficientes para se lhe poderem exigirtarefas mais pesadas e se tomou suficientemente sensata paraaprender técnicas que exigem mais habilidade, o seu grupo,em que cresceu e brincou, dispersa-se. Passa a usar trajes demulher e cabe-lhe cooperar na lida da casa; Para ela este pe-ríodo é bem pouco interessante, e não passa de calma rotina.A puberdade não altera nada.

Passados anos, depois de ser mulher feita, começam ostempos agradáveis de namoricos casuais e irresponsáveis qtie elaprolongará tanto quanto possa até ao momento em que é con-siderada já capaz de casar. Nenhuma manifestação social re-conhece expressamente a sua puberdade, nem mudança deatitude nem expectativa. Tudo se passa como se a sua timidezde pré-adolescente continuasse durante alguns anos. A vida derapariga, em Samoa, é absorvida por outras considerações quenão a de maturação fisiológica do sexo, e a puberdade passacomo um período particularmente apagado e calmo duranteo qual não se manifestam quaisquer conflitos de adolescente.A adolescência, por consequência, não só não é celebrada prarqualquer cerimoniai, comõ~nÍõjEi»--. i -

i tância na vida_ernoeional da raparigapara com ela.

na atitudf tla_ aldeia

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Povos que nunca ouviram falar de guerra

A guerra é outro tema social que pode ser ou não consi-derado em cada cultura. Onde se lhe liga grande importância,pode ter objectivos diferentes, diferente organização relativa-mente ao Estãâo, e arrastar consigo sanções diferentes. Pode serum meio de obter cativos para sacrifícios religiosos, comosucede entre os Astecas. Como os espanhóis combatiam, segundoo modo de ver Asteca, para matar, faltavam às regras do jogo.Os astecas perderam a coragem, e Cortês entrou vitorioso nacapital.

Há, até, em diferentes partes do mundo, noções a respeitoda guerra que são, do nosso ponto de vista, ainda mais singu-lares. Para o fim que nos propomos basta notar o que se passanaquelas regiões em ,que não se encontram meios organizados dematança mútua entre grupos sociais. Só a nossa familiaridadecom a guerra torna inteligível que um estado de guerra alternecom um estado de paz nas relações de uma tribo com outra.Esta ideia, é, naturalmente, perfeitamente vulgar em váriaspartes do mundo. Mas, por um lado, para certos povnp- & inrnn-cebível um estado de paz, o que para a sua maneira de ver,sena equivalente a admitir- tribos.mirrúgasjDaJSil£goria_de sereshumanos que, por definição,-eles não sãorrnesmo-que_a_ttibpexcluída possa ser da mesma raça e ter a.meán^jcjriturajqueas outras.

Por outro lado, pode ser igualmente impossível a um povo,conceber um estado de guerra. Rasmussen fala-nos da perplexi-dade com que o Esquimó reagiu à sua exposição do nossocostume. Os esquimós compreendem perfeitamente que se mateura homem. Se ele se lhe atravessa no caminho, deita contasà sua própria força e, se se sente capaz de o fazer, mata-o.Se o que matou é forte, não há intervenção social. Mas a ideiade uma aldeia esquimó atacar outra aldeia esquimó em ar deguerra, ou de uma tribo atacar outra tribo, ou, até, de outraaldeia poder ser legitima mente atacada de emboscada, é para

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eles completamente estranha. Matar é sempre matar, e não sedistinguem, no acto, categorias, como nós fazemos: ser o matar,num caso coisa meritória e noutro ofensa capital.

Eu próprio tentei falar de guerra aos índios da Missão, daCalifórnia, mas era coisa impossível. A sua incompreensão deum estado de guerra era irredutível. Não havia na sua culturabase em que assentasse tal ideia, e as suas tentativas de pro-curar interpretá-la racionalmente reduziam as grandes guerras,a que nós estamos prontos a entregar-nos com fervor moral,a meras desordens de vielas. Não tinham na sua cultura padrãonada que lhes permitisse •distinguir uma coisa da outra.

A guerra é, vemo-nos forçados a admitir, mesmo perante olugar enorme que ocupa na nossa civilização, um aspectoassociai. No caos que se seguiu à Segunda Grande Guerra Mun-•dial, todos os argumentos que lio decorrer dela se apresentavampara explicar o alto preço da coragem, do altruísmo, dos va-lores espirituais, soavam desagradavelmente a falso. Guerra, nanossa civilização, é o melhor exemplo dos excessos de destrui-ção até que pode conduzir o desenvolvimento de uma feiçãoculturalmente escolhida. Se justificamos a giiêrra é porquetodos os povos justificam os aspectos de que se sentem possui-dores, não porque a guerra resista a um exame objectivo dospróprios méritos.

Costumes relacionados com o casamento

A guerra não é um caso isolado. Em todas as partes domundo e em todos os níveis de complexidade cultural é possívelencontrar exemplos da elaboração presunçosa e, afinal decontas, associai de uma feição da cultura. Esses casos slo damáxima clareza onde, como por exemplo, em normas de regimealimentar jou de acasalamento, a tradição vai contra osjmjmísosbioló|icos^À organização social, em antropologia, tem um sig-nificado inteiramente especializado, devido à unanii

t44l

tente em todas as sociedades, em acentuar os grupos-de.-paren>.júe o Casamento é proibido.. Não. há. nenhum povo

em que toda a mulher seja considerada,.como uma,,esposapossível. Isto não é um meio de, como muitas vezes se supõe,evitar uniões consanguíneas, no sentido. em que isto nos éfamiliar, porque em muitas partes do mundo a esposa previstaé uma prima» muitas vezes a filha de um tio materno. Osj?a-rentes a que aprojbicão se. refere,cariam, radkalmente^ê-povo^

_gara povo,, mas todas as sociedades humanas se^assemelharn.no respeitante a fazer restrições desíe-tiper-O incesto, mais doque qualquer ideia humana, tem tido, em cultura, constantes ecomplicadas elaborações. Os grupos de.incesto são muitas vezesas unidades funcionais mais importantes da tribo, e os deveresde cada indivíduo em relação a qualquer outro definem-se pelassuas relativas posições nesses grupos. Tais grupos funcionamcomo unidades em cerimoniais religiosos e em ciclos de trocaseconómicas, e é enorme o papel que têm. desempenhado nahistória social. "~

Algumas religiões consideram moderadamente tabu oincesto. A despeito das restrições feitas, pode haver um númeroconsiderável de mulheres com que um homem pode casar.Noutras o grupo que é tabu, alarga-se, em virtude de umaficção social, de modo a incluir grande número de indivíduosque não tenham quaisquer antepassados comuns discerníveis,e a escolha de uma consorte é consequentemente excessiva-mente limitada. Esta ficção social tem expressão inequívocanos termos de relação de parentesco usados. Em vez de dis-tinguir parentesco linear de parentesco colateral, como nósfazemos na distinção entre pai e tio, irmão e primo, um dostermos usados significa, literalmente, «homem do grupo de meupai (parentesco, localidade, etc.) da sua geração» sem distinguirentre linhas directa e colateral, mas fazendo outras distinçõesque nós nlo fazemos. Certas tribos da Austrália oriental usamuma forma extrema deste chamado sistema de classificaçãode parentesco. Aqueles a quem chamam irmãos e irmãs são os

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da sua geração com quem reconhecem ter qualquer parentesco.A categoria primo ou qualquer coisa que lhe corresponda n5oexiste; todos os parentes da geração de um indivíduo são seusirmãos e irmãs.

Este modo de avaliar o parentesco é mais comum do quepode julgar-se, mas na Austrália há, além disso, um horror semigual pelo casamento com uma irmã, e um desenvolvimentosem paralelo de restrições exógamas. Assim os Kurnai, com oseu sistema de classificação de parentesco levado ao extremo,sentem o horror característico do australiano peias relaçõessexuais com todas as suas irmãs, isto é, com as mulheres dasua geração que de qualquer modo com eles são aparentados.Além disto, os Kurnai têm regras locais estritas que presidemà escolha de uma companheira. Por vezes duas localidades dasquinze ou dezasseis que pertencem à mesma tribo, são obrigadasa trocar as mulheres, e não escolher esposas em qualquer outrogrupo. Mais ainda, como sucede em toda a Austrália, os velhossão um grupo privilegiado, e os seus privilégios vão até poderemcasar com as raparigas jovens e atraentes. Resulta destas regrasque, é claro, em todo o grupo local que deve por prescriçãoabsoluta fornecer a um mancebo uma esposa, não há raparigaque não caia dentro do campo destes tabus. Ou é uma das quepor parentesco com a mãe daquele é sua irmã, ou foi já nego-ciada por um velho, ou por qualquer razão menos importante évedada ao pretendente.

Isto não leva os Kumai a reformular as suas regras deexogamia. Insistem em que elas sejam respeitadas, por todasas formas de violência. Por consequência, o único meio por queconseguem casar-se é" levantando-se francamente contra as re-gulações, recorrendo ao rapto. Logo que a aldeia tem conheci-,mento do que se passou, lança-se em perseguição dos fugitivos,e se o par é apanhado, matam os dois. Não importa que, comopode suceder, os perseguidores se tenham casado também porrapto. A indignação moral é enorme. Há, porém, uma ilha queé considerada refúgio seguro, e se os fugitivos conseguem chegar

lá e aí se conservarem até que lhes nasça um filho, quando devolta são ainda recebidos com pancadas, é certo, mas podemdefender-se. Depois de aceitarem o repto e de passarem entrefilas de. homens, e de serem por eles açoitados e espancados,assumem então o estado de pessoas casadas na tribo.

Esta maneira de os Kurnai resolverem o seu dilema culturalé bem típica. Alargaram e complicaram um aspecto particularde conduta até ao ponto de o tomar um impedimento. Ou têmde o modificar, ou o rodeiam por subterfúgio.. Ao recorreQosubterfúgio_evitam a extinção, e mantêm ajma^ ética sem alte-ração jpatente. Este modo de tratar o mores nada perdeu como progresso da civilização. A geração antecedente da nossacivilização defendeu a prostituição, e nunca os louvores damonogamia foram tão fervorosos como nos grandes tempos dosbairros da lanterna vermelha às portas. As sociedades justificamsempre as fórmulas tradicionais favoritas. Quando estas sãoexcedidas e se recorre a alguma nova forma de comportamentosuplementar, presta-se preito à fórmula tradicional como se estenão existisse.

Entzetecimento de feições culturais

-Esta rápida Hf, nuUuraiff põe aclaro vários falsos conceitos coirtuns. ¥rm primeiro,!iicar as instfrtuições que as culturas humanas erigem sobre as indicações ?dadas pelo ambiente ou era virtude das necessidades físicas do .homem, não-S&jnantêmsem sedegvia rem do impulso' original^tão mtegràlmentê comÕTãcilménte se julga. Àquelas indicaçõessão, na realidade, meros esboços grosseiros, uma lista de factoscrus. São potencialidades ínfimas, e a elaboração que em voltadelas se borda é ditada por muitas considerações estranhas àquestão, jjuerpi nãn £_a "ypiwMn rln inflimi H^-fíf^^sidad"A belicosidade do homem è uma característica tão ínfima nocarácter humano que pode nem ter qualquer, expressão nls

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relações entre as tribos. Quando é institucionalizada, a fórmulaque assume segue outras linhas de pensamento diferentes dasimplícitas nojmpulso jMJ|inal>Belicosidade não passa de um

; leve ponto de contacto na bola do" costume, e unr ponto, alémdisso, que pode não ser tocado.

Estemodo de ver os processos cukuraisjxjge uma rectifi-cacãõ~~d<r muitos dQsnQssos_argugientos correntes em defesa3^s~TiDSsaiHnsT:ituiçoês~tradicignais. Esses_argumentos assentam

' ardinãriImêntêTia impossibilidade de o homemgusjgcladessas particulares formas ifadje^S^Mesmo feiçõesmuitõ~especíais intervém nesta espêcié~de validação, como,por exemplo, a forma particular de móbil económico que surgeno nosso sistema particular de posse de bens individuais. É estauma motivação especialíssima, e há provas de que mesmo nanossa geração está a sofrer fortes modificações. Seja porém

li como for, não temos de tomar confuso o problema discutiado-oi l Como se se tratassgjjp iymn gnert™ fte. valores rijf"plõl6gícaT Manutenção do indivíduo é um, motivo de que a4 nossa civilização tirou proveito. Se a nossa estrutura mudar de

modo que este motivo perca o valor de móbil tão forte como ofoi na era da grande fronteira e do industrialismo em expansão,há muitos outros motivos que seriam adequados a uma novaorganização económica. Cada cultura, cada era, explora apenaspoucas de entre -um grande número de alternativas possíveis.As transformações podem ser muito inquietantes e envolveremgrandes perdas, mas isso resulta das dificuldades de tudo o queé mudança em si, não do facto de a nossa época e o nosso paísterem acertado na única possível motivação pela qual a vidahumana pode conduzir-se. Devemos lembrar-nos que as trans-.formações, apesar de todas as dificuldades que arrastam, sãoinevitáveis. Os nossos temores perante até os mínimos desviosda norma são, ordinariamente, inanes. As civilizações podiammudar muito mais radicalmente do que qualquer autoridadehumana jamais tenha desejado ou imaginado mudá-las, e no

' entanto funcionarem perfeitamente. As pequenas transforma-

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coes que tanta repulsa hoje provocam, tais como o aumento donúmero de divórcios, a secularização cada vez maior das nossascidades, as reuniões cariciosas de rapazes e raparigas, e muitasoutras, podiam ajustar-se perfeitamente num padrão de culturasó muito levemente diferente do nosso. Desde que se tornassemtradicionais receberiam a mesma riqueza de conteúdo, a mesmaimportância e o mesmo valor que os velhos padrões tiveramnoutras gerações.

A verdade da questão está, antes, em que os possíveis mo-tivoseinstituicík*-4ramaiias^^

x^aê~sunplici3áde ou complexidade culturais, e que a sabedoriagBnmtFTTUTfi n frímfn Tntqor- toterânieialpara-^aguajjuas_yjrie 'dades. Ninguém_pode participar cpmpletamente_ em^ualguercultura se não tiver sídõvcríãdcTdentro dasjua&formajs e vividode acordo com elas; mas todos podem cpncedejr,.que outrasculturas fêhi, pára os seus participantes, o mesmo significããpque se rècxmhecêm" nã"suã; prÓJnàT""'"

À diversidade das culturas resulta não apenas da facilidadecom que as sociedades elaboram ou repudiam aspectos possíveisda existência, É devida ainda mais a um complexo entreteci-mento de feições culturais. A forma final de qualquer insti-tuição tradicional vai, como dissemos, muito além do impulsohumano original. Em grande parte esta forma final depende domodo como esta feição se fundiu com outras de diferentescampos da experiência.

Uma feição largamente espalhada pode, num povo, sersaturada com crenças religiosas è"fnnciohàr "como" um'aspectoimportante "da sua religiãorNoutro, pode" sei- absolutamente .uniaquestão de transferência económica e constituir, por isso, umaspecto dós seus arranjos monetários. As possibilidades neste'campo são inúmeras, e os ajustamentos, muitas vezes singu-lares. A natureza da feição será variável com as regiões e deacordo com os elementos com que está combinada.

Importa quejvejamfls^aiaxaejjte__ejte^rocesso, pois, deconffário, caímos facilmente na tentação de generalizar numa

- P. DE CULTURA [49]

lei social geral os resultados de uma fusão local de feições, outomamos a sua união como um fenómeno universal. O gran-dioso período da arte plástica da Europa foi motivado religiosa-mente. A arte pintou e tornou propriedade comum as cenasreligiosas e os dogmas, fundamentais no ponto de vista desseperíodo. A estética europeia moderna teria sido absolutamenteoutra se a arte medieval tivesse sido puramente decorativa enão tivesse feito causa comum com a religião.

No ponto de vista puramente histórico têm-se, no campoda arte, dado grandes acontecimentos notavelmente alheios àmotivação e à utilização religiosa. A arte pode manter-se defi-nitivamente alheia à religião, mesmo onde uma e outra atin-giram alto desenvolvimento. Nos povos do Sudoeste dos EstadosUnidos> as formas de arte da olaria e dos tecidos provocamgrande respeito nos artistas de qualquer cultura, mas os seusvasos sagrados usados pelos padres ou próprios dos altares sãoinferiores, e as decorações, rudes e não estilizadas. Nalgunsmuseus têm-se posto de parte objectos religiosos do Sudoestepor estarem muito abaixo do nível tradicional de habilidade.Os índios Zunis dizem, querendo significar que as exigênciasreligiosas eliminam toda a exigência de perfeição artística:«Temos de, representar aqui uma rã.» Esta distinção entre artee religião não é um carácter exclusivo dos Pueblos. Certas tribosda América do Sul e da Sibéria fazem a mesma distinção, aindaque a manifestem de maneiras diferentes. Não utilizam a habi-lidade artística para servir a religião. Em vez, pois, de buscar-mos fontes da expressão artística em um assunto localmenteimportante, a religião, como os velhos críticos de arte por vezestêm feito, devemos antes investigar até que ponto arte e religiãomutuamente se interpenetram, e as consequências de tal inter-penetração para a arte e a religião.

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""SP Espíritos guardiões e visões

A interpenetração de diferentes campos da experiência,e a consequente modificação que para eles daí resulta, podeexemplificar-se por factos de todas as fases da existência:economia, relações entre os sexos, folclore, cultura materiale religião. O processo pode ser ilustrado por uma das feiçõesreligiosas largamente espalhadas dos Ameríndios do Norte. Portodo o continente, em todas as áreas de cultura, excepto a dospovos do Sudoeste, o poder sobrenatural obtinha-se através deum sonho ou visão. O êxito na vida, segundo as suas crenças,resultava de um contacto pessoal com o sobrenatural. A visãode cada um conferia-lhe poder para durante toda a vida, e emcertas tribos renovava-se constantemente o contacto com osespíritos buscando novas visões. Fosse o que fosse que ele visse,um animal ou uma estrela, uma planta ou um ser sobrenatural,fazia de quem o visse um protegido pessoal, e aquele que assimficava sob a sua protecção, podia a isso recorrer quando o ne-cessitasse. Ele tinha deveres a cumprir para com o seu patronoem visão, oferendas a dar-lhe e obrigações de toda a espécie.Em troca, o espírito conferia-lhe os poderes específicos que lheprometera no momento da visão.

Em cada grande região da América do Norte este complexoespírito guardião tomava formas diferentes segundo as outrasfeições da cultura com que estava mais intimamente associado.Nos planaltos da Colúmbia Britânica associava-se com as ceri-mónias de adolescência a que nos referimos. Rapazes e rapa-rigas, nessas tribos, iam, na adolescência, para as montanhas,para realizarem um treino mágico. As cerimónias de puber-dade estão largamente espalhadas ao longo de toda a Costa doPacífico, e na maior parte dessa região são completamentedistintas das práticas do espírito guardião. Mas na ColúmbiaBritânica confundiam-se. O clímax do treino de adolescênciapara os rapazes era a aquisição de um espírito guardião quepelos seus dons ditava a profissão do jovem para toda a vida.

Seria guerreiro, sacerdote, caçador, jogador, segundo o quelhe ditasse a visão sobrenatural. As raparigas também recebiamos seus espíritos guardiões, que representavam os seus laboresdomésticos. A_ experiência do espfritn -gmmtim~*titrp estespovos está/tão profundamente moldada pela sua associaçãocom o cerimonial de adolescência, que antropologistas queconhecem essa região têm sugerido que todo o complexo davisão dos Ameríndios tem a sua origem nos ritos de puberdade.Mas não há correlação genética entre as duas coisas. Confun-dem-se, localmente, e ao confundir-se ambos os aspectos assu-miram formas especiais e características.

j Noutras partes do continente, a busca do espírito guardiãoí não tem lugar na puberdade, nem é levada a cabo por todos\s jovens da tribo. Logo, o complexo não tem nestas culturasl qualquer espécie de parentesco com os ritos de puberdade! mesmo quando estes existem. Nas planícies do Sul é o homem

adulto que busca as sanções místicas. O complexo da visão con-funde-se com um aspecto muito diferente dos ritos de puber-dade. Os Osage estão organizados em grupos de parentesco emque a linhagem válida é a paterna, sendo a materna desprezada.Estes grupos cll têm uma herança comum de bênção sobre-natural. A lenda de cada clã diz como o seu antepassado buscouuma visão e foi abençoado pelo animal cujo nome o clã herdou.O antepassado do clã do mexilhão buscou sete vezes, com aslágrimas correndo-lhe pelo rosto, uma bênção sobrenatural.Por fim encontrou o mexilhão e dirigiu-se-lhe dizendo.

Oh meu-avô.Os pequeninos não têm nada de que façam os seus corposAo que o mexilhão respondeu:Dizes que os pequeninos não têm nada de que façam os seus

corpos.Que os façam, então, do meu corpo.Quando o fizerem do meu corpoViverão sempre até à velhice.

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Repara nas rugas da minha pele (concha)Que eu fiz para por elas chegar à velhice.Quando os pequeninos fizerem de mim os seus corpos.Viverão sempre até verem sinais da velhice na sua pele.As sete curvas do rio (da vida)Passo-as a salvo.

E nas minhas viagens nem os próprios deuses podem ver orasto que deixo

Quando os pequeninos fizerem de mim os seus corposNinguém, nem mesmo os deuses, poderão ver o rasto que eles

deixam.

Neste povo todos os elementos familiares da visão estãopresentes, mas esta foi conquistada por um primeiro antepas-sado do clã, e as bênçãos que ele conferiu foram herdadas porum grupo de parentesco.

Esta situação entre os Osage revela uma das mais com-plexas representações que existem, do totemismo, esse mistoíntimo de organização social de veneração religiosa pelo ante-passado. Em todas as partes do mundo existe totemismo, ecertos antropologistas têm defendido a ideia de que o totemde clã tem a sua origem no «totem pessoal», ou espírito guar-dião. Mas a situação é perfeitamente análoga à dos planaltosda Colúmbia Britânica onde a busca da visão se fundiu nos ritosde adolescência. Somente aqui fundiu-se nos privilégios heredi-tários do clã. Esta nova associação tomo-u-se tão forte que jánão se pensa que uma visão dê automaticamente poder aohomem. Só a herança confere as bênçãos da visão, e entre osOsage surgiram cânticos novos que descrevem os encontros dosantepassados e pormenorizam as bênçãos que os seus descen-dentes podem, consequentemente, reivindicar.

Em ambos estes casos não é só o complexo_da .visão que)táqj3jrej:afácter diferente em diferentes regiões, conforme seconfunde com os ritos <ie puDerdade ou com a organização em

C 53]

clã. As cerimónias de adolescência e a organização social rece-bem também coloridos especiais pela sua interpenetração coma busca da visão. A interacção é mútua. O complexo da visão,os ritos de puberdade, a organização em clã, e muitas outrasfeições que entram também em relação com a visão, são fiosque se entrelaçam em muitas combinações. As consequênciasdas diferentes combinações que resultam desta interpenetraçãode feições slo extraordinariamente importantes. Em ambas asregiões que acabámos de citar, tanto onde a experiência religiosase associou com os ritos de puberdade como onde se associoucom a organização em clã, todos os indivíduos da tribo, comocorolário natural das práticas que se se tinham associado, po-diam receber o poder proveniente da visão, de alcançar êxitoem qualquer empreendimento. O êxito, fosse qual fosse aocupação, era atribuído à reivindicação do indivíduo de umaexperiência de visão. Tanto um jogador com sorte como umcaçador com sorte derivavam daquela o seu poder, exactamentecomo um xamã bem sucedido na sua profissão. De acordocom o seu dogma todos os caminhos do êxito estavam vedadosa quem não conseguisse um patrono sobrenatural.

Na Califórnia, porém, a visão era a garantia profissional doxamã. Marcava-o como pessoa à parte das outras. Era exac-tamente aí, por consequência, que se tinham desenvolvido osaspectos mais aberrantes desta experiência. A visão já não erauma ligeira alucinação para a qual se podia montar a cena pormeio do jejum, da tortura e do isolamento. Era uma experiên-cia de transe que sobrevinha aos membros excepcionalmenteinstáveis da comunidade, e especialmente às mulheres. Entreos Shasta admitia-se que só as mulheres eram assim abençoadas.A experiência requerida era decididamente de natureza catalép-tica e atacava a •noviça depois de um sonho prelimimar terpreparado o caminho. Esta caía no solo, rígida, sem sentidos.Quando voltava a si espumava sangue pela boca. Todas ascerimónias pelas quais, nos anos seguinte, ela validava a sua

vocação de xamã, eram novas demonstrações da sua aptidãopara cair em catalepsia e eram consideradas como a cura pelaqual se lhe salvara a vida. Em tribos como a Shasta não só aexperiência da visitação se modificara no seu carácter, adqui-rindo o aspecto de uma crise violenta que distinguia os ofician-tes religiosos de todos os outros, mas também o carácter dosxanrãs se itin-h» igualmente -modificado pela: natureza daexperiência de transe. Estes eram decididamente os membrosinstáveis da comunidade. Nesta região as cerimónias de emu-lação entre xamãs assumiam a forma de compitas para verqual deles vencia os outros a dançar, isto é, suportava a dançapor mais tempo antes de cair na crise de catalepsia que aca-bava por dominá-los. Tanto a experiência de visitação como oxamanismo tinham sido profundamente afectados pela íntimainterpenetração que entre eles se estabelecera. A associação dosdois aspectos, à semelhança da associação da experiência devisitação e dos ritos de puberdade ou da organização em clã,tinha modificado radicalmente ambos os campos de com-portamento.

-*• {/" Casamento e Igreja

Semelhantemente, na nossa própria civilização a indepen-da igreja e do sacramento do matrimónio está histori-

camente averiguada, e no entanto o sacramento religioso domatrimónio ditou, durante séculos, transformações tanto nocomportamento sexual como na igreja^O Carácter particulardo casamento durante esses séculos proveio da associação dedois aspectos culturais essencialmente independentes um dooutro. Por outro lado o casamento foi muitas vezes o meio

Em culturas em que isto se dá a íntima associação do casamentocom. a transferência da riqueza pode obliterar completamenteo facto de o casamento ser fundamentalmente uma questão

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de arranjo sexual e de reprodução. O casamento deve, em cadacaso, ser interpretado como em 'relação com outros aspeetes..

assimilação, e nSo devíamos cair no_erro (fo pensar que ajãsãmêiitõirs&jiQde nÕMÕkcasos inter-pretar pelo mesmo conjunto de ideias. Devemos contar comos diferentes componentes combinados na mesma feição re-sultante.

Estás associações são social,não biologicamente inevitáveis

Precisamos urgentemente de ser capazes de analisar osaspectos da nossa herança cultural destrinçando as diferentespartes que os constituem. As nossas discussões da ordem sociatganhariam em clareza sê ajirelid&|semô¥^modo a complexidade mesmo do mais simples aspecto àpnosso comportamento. Diferenças raciais e prerrogativas deprestígio de tal modo se fundiram entre os povos Anglo-Sáxões,que não conseguimos separar questões raciais de naturezabiológica dos nossos mais socialmente condicionados precon-ceitos. Mesmo em mações tão proximammte apareatadas com osanglo-saxões como são os povos Latinos, tais preconceitosassumem formas diferentes, de modo que em regiões decolonização espanhola e nas colónias britânicas, diferençasraciais não têm o mesmo significado social. O cristianismo e a

mulher na sociedade são, anàTogatrante^cuítp-ais historiçamenteinteT-relacionãdos, e, em épocas dife-

T;éjãté7rinfTwhciaram^sé"redprôcàffl modo muito dife-ren&. A actual elevada posição que a mulher ocupa nos paísescristãos não é mais uma «consequência» do cristianismo doque o era a associação da mulher com tentações demoníacas,de Orígenes. Estas interpenetrações de aspectos culturais surgeme desaparecem, e a história da cultura é em elevado grau umahistória da sua natureza, destinos e associações. Mas

genáticaque com tanta facilidadedescobrimos numa fei-

cão complexa e o nosso horror por qualquer perturbação dasidade das possíveissuas inter-relacSes sitobero i

indiacriminadamente erigir-se

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