Classe em Farrapos - Acumulação integral e expansão do lumpemproletariado

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Classe em Farrapos Acumulação integral e expansão do 

lumpemproletariado             

   

Lisandro Braga   

   

  

 Classe em Farrapos 

Acumulação integral e expansão do lumpemproletariado 

             

 

Copyright © do autor  Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos do autor.   Lisandro Braga  

Classe em Farrapos. Acumulação integral e expansão do lumpemproletariado. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. 222p.  ISBN 978‐85‐7993‐???‐?  

1. Lumpemproletariado. 2. Acumulação de capital. 3. Desemprego. I. Título.  

CDD – 410  Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito       Conselho Científico da Pedro & João Editores: 

Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F. Gurgel  do  Amaral  (UNIR/Brasil);  Maria  Isabel  de  Moura  (UFSCar/Brasil); Maria  da  Piedade  Resende  da  Costa  (UFSCar/Brasil);  Rogério  Drago (UFES/Brasil). 

       

    

Pedro & João Editores www.pedroejoaoeditores.com.br 

13568‐878 ‐ São Carlos – SP 2013 

SUMÁRIO (CORRIGIR)     

Prefácio Introdução

Acumulação capitalista e lumpemproletariado A dinâmica da produção capitalista de mercadorias

A produção de mais-valor e classes fundamentaisO processo de lumpemproletarização

Formação e desenvolvimento do lumpemproletariadoA expansão do lumpemproletariado no regime de

acumulação integral A teoria do regime de acumulação integral

Expansão e criminalização do lumpemproletariado nos EUA

Lumpemproletarização e luta de classes na Argentina Lumpemproletarização na era da acumulação integral

no Brasil Mudanças nas relações de trabalho e toyotismoNeoimperalialismo e capitalismo subordinado

Desemprego e intensificação da lumpemproletarização Conclusões Referências

 

  

  

A classe em farrapos:  elementos para uma teoria do lumpemproletariado 

 Lucas Maia∗ 

 A discussão  sobre  as  classes  sociais  é  algo  recorrente no  conjunto 

das  ciências  humanas.  De  diferentes  maneiras,  a  partir  de  diversos métodos de  abordagem, discute‐se  esse  fenômeno  óbvio, que  em não raras  oportunidades  é  tão  mal  compreendido.  Desde  as  diversas ideologias da estratificação social, até as mais diversas  leituras a partir da  teoria  marxista,  bem  como  das  derivadas  da  deformação  do marxismo  (bolchevismo,  socialdemocracia  etc.),  que  as  classes  sociais vem sendo interpretadas e reinterpretadas. 

Fazer  aqui  uma  antologia  de  tais  interpretações  é  algo completamente  contraproducente.  Contudo,  para  situar,  tanto  no campo teórico metodológico, quanto no campo político a presente obra de  Lisandro  Braga,  faz‐se  necessária  uma  breve  digressão  acerca  das principais linhas de abordagem das classes sociais.  

Uma  primeira  linha  de  interpretação,  ligada  à  ideologia  da estratificação social, apresenta a leitura das classes sociais, do ponto de vista metodológico, como algo completamente arbitrário. Uma vertente é a que divide a sociedade em classe alta, média e baixa. Esta maneira de  compreender  a  questão  apresenta  vários  inconvenientes.  Em primeiro lugar, homogeneíza classes e grupos que, de per si, apresentam pouca  semelhança. Nesta maneira de  conceber  a  questão,  entraria  na classe  alta,  por  exemplo,  altos  executivos  de  empresas,  grandes burocratas  estatais,  grandes  capitalistas  (industriais,  banqueiros  etc.). Nas  classes  médias,  poderia‐se  colocar:  intelectuais  (médicos, advogados  etc.),  burocratas de  grandes partidos políticos, professores universitários etc. Nas classes baixas, por exemplo, poderia ser colocado num  mesmo  bloco  desempregados,  operários,  trabalhadores domésticos,  camponeses  etc. Ou  seja,  o  primeiro  inconveniente  desta interpretação acerca das classes sociais é o de se precisar com exatidão a 

∗ Professor do Instituto Federal de Goiás, campus Anápolis. Autor das obras Comunismo de  conselhos  e  autogestão  social. Pará de Minas, MG: Virtual Books,  2010  e As  classes sociais em O capital. Pará de Minas, MG: Virtual Books, 2011. 

colocação  de  um  ou  outro  grupo  ou  classe  social  na  mesma classificação.  

Desta primeira dificuldade, surge outra: como definir os limites que separam uma classe da outra? Qual o limite ou quais os critérios para se definir  o  que  é  classe  baixa, média  e  alta?  Cada  pesquisador,  neste particular, pode inventar o seu: status, modo de vida, renda etc. Pode‐se ainda  acrescentar mais  um  elemento  a  este  conjunto  de  dificuldades metodológicas: como se relaciona ou qual a natureza do relacionamento entre estes estratos sociais? Como é possível compreender a relação da classe alta, com a média e com a baixa? Se esta concepção homogeneíza o que  é heterogêneo,  se não  consegue definir  com precisão os  limites que  separam  um  estrato  do  outro,  muito  menos  terá  condições  de estabelecer a plêiade  complexa de  relações que as  classes estabelecem entre si. 

Deste modo, esta maneira de compreender a divisão da  sociedade em  classes  é bastante  limitada. Estes  três  estratos não  são  capazes de abarcar  o  conjunto de  classes,  frações de  classes  e grupos  sociais que compõem a teia de relações sociais que constitui as sociedades de classe.  

Uma  outra  técnica  ou  metodologia,  fundada  na  ideologia  da estratificação social, é que tenta, a partir da análise da renda, definir as classes sociais. Geralmente, quando se utiliza desta concepção, divide‐se a sociedade em classes A, B, C, D, E e assim por diante. Dependendo do critério,  dos  objetivos  do  pesquisador,  pode‐se  identificar  quantas classes  for  necessário.  Esta  forma  de  analisar  a  questão  padece  das mesmas dificuldades da  anterior:  coloca  em uma mesma  classe  social grupos, classes e frações de classe distintos, a delimitação de uma classe para outra é algo completamente arbitrário, pois reduz‐se a situação de classe ao rendimento. Assim, por exemplo, num mesmo estrato (A, B, C etc.)  pode‐se  ter  indivíduos  com  mesmo  rendimento,  mas  com atividades,  modo  de  vida  etc.  completamente  distintos.  Da  mesma forma que a postura anterior, também esta não consegue compreender a natureza do relacionamento entre as classes, pois ao estratificar, a partir de  critérios  arbitrários,  as  classes  sociais,  não  se  consegue  incluir  na análise a relação entre um estrato e outro. Como o estrato A se relaciona com  o  C,  o  B  com  o  D  etc.?  Impossível  definir  isto  a  partir  deste procedimento. 

Duas  constatações  são  graves  com  relação  à  ideologia  da estratificação social: a) as classes não são algo real, mas sim resultado de criação  arbitrária,  variando  as  classes  de  acordo  com  os  critérios, objetivos  de  cada  pesquisador;  b)  não  há  história,  nem  historicidade nestas  interpretações,  ou  seja,  as  classes  são  naturalizadas.  Resta  ao pesquisador,  de  forma  neutra,  somente  identificá‐las.  Vê‐se,  deste modo, a natureza conservadora desta abordagem. 

Esta  abordagem,  embora  faça  parte  da  vulgata  sobre  as  classes sociais,  povoando  o  imaginário  da  população,  não  é,  em  hipótese alguma,  a única maneira de  conceber  a  questão. Uma  outra,  também muito disseminada, é a feita a partir da  interpretação  leninista da obra de Marx. Lênin, um dos principais  ideólogos da burocracia do Partido Comunista  Russo,  bem  como  um  dos  principais  responsáveis  pela deformação  do  pensamento  original  de  Marx,  tem  também  sua ideologia das classes sociais. O interesse em resgatar este ideólogo deve‐se  à  sua  importância na difusão de uma  caricatura da  obra de Marx. Lênin, ao tentar analisar as classes sociais, afirma aprofundar as teses de Marx. Contudo,  analisando‐se  os dois  pensadores  percebe‐se  grandes diferenças: em primeiro lugar, a interpretação de Lênin é fundada num economicismo  que  não  se  verifica  em Marx.  Lênin  define  as  classes sociais  a  partir  de  sua  posição  frente  às  relações  de  produção  e  aos meios  de  produção.  Portanto,  de  acordo  com  Lênin,  as  classes  se definem somente a partir do modo de produção, ficando o conjunto da população, que não está diretamente vinculado ao processo produtivo fora das classes sociais. Nesta maneira pobre de compreender as classes, define‐se a burguesia, o proletariado, o  campesinato  etc. Mas  é difícil encontrar um lugar nesta definição para, por exemplo, os trabalhadores domésticos,  intelectuais, burocratas etc. Por  isto é comum na  literatura leninista  as  expressões:  camadas  sociais,  pequena  burguesia,  classes médias etc.  

O  uso  da  expressão  camada  social  é  algo  recorrente  na  literatura leninista,  geralmente  utilizada  para  qualificar  os  intelectuais  e  os burocratas, que segundo Lênin e os leninistas não são classes, mas sim, camadas  sociais.  Com  este  artifício  ideológico,  consegue‐se  de  uma tacada  só  eliminar  a  posição  privilegiada  e  de  dominação  que  estas classes exercem sobre as classes exploradas e oprimidas da sociedade. A grande  questão,  do  ponto  de  vista  leninista,  é  justamente  isentar  a 

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burocracia e a intelectualidade de sua posição de classe, transformando‐a  em  camada  social. Muda‐se  a  palavra, mas  o  conteúdo  que  ambas expressam  é o mesmo, ou  seja, de que a burocracia  é uma  classe que exerce atividade de controle e domínio dentro das instituições típicas da sociedade  burguesa.  Ao  fazer  isto,  Lênin  e  os  demais  leninistas buscavam camuflar o fato de o Partido Comunista Russo ter‐se tornado uma instituição dominante dentro da Rússia e posteriormente na União Soviética. 

Várias  outras  interpretações,  oriundas  de  concepções  claramente burguesas,  sobre  as  classes  sociais  poderiam  aqui  ser  elencadas: Raimond Aron, Georges Gurvich, Antony Giddens etc., mas tornariam este texto por demais extenso. Só retomamos as duas leituras anteriores, dada  sua  importância na divulgação de  concepções  errôneas  sobre  as classes,  bem  como  sua  influência  sobre  as  demais  interpretações. Ademais, a existência de todas estas ideologias só demonstra uma coisa, o  debate  em  torno  das  classes  sociais  é  algo  premente  e  necessita sistematização.  Uma  grande  contribuição  a  este  propósito  foi  dada recentemente pela excelente obra de Nildo Viana, publicada em 2012: A Teoria  das  Classes  Sociais  em  Karl  Marx.  Diferentemente  das interpretações  anteriores,  Viana  faz  uma  reconstituição  fidedigna  e complexa acerca da leitura de Marx das classes sociais. Marx não partia, em  sua análise das  classes,  como  fazem os  ideólogos da estratificação social, ou seja, de critérios arbitrários para definir e identificar as classes sociais.  Nem  muito  menos  reduzia  sua  leitura  a  um  economicismo empobrecedor,  tal  como  Lênin.  E,  de  forma  alguma,  reduziu  a sociedade  capitalista  a  duas  classes,  tal  como  interpretaram Marx  os sociólogos e economistas de matriz ideológica burguesa.   

Sua  interpretação buscava expressar, no campo do pensamento, as classes  existentes  concretamente.  Este  procedimento  metodológico permite,  analisando‐se  a  divisão  social  do  trabalho,  identificar  uma quantidade razoável de classes, portanto, completamente antagônica às interpretações  burguesas  de Marx  (Aron,  Gurvich  etc.)  que  viam  na obra de Marx somente duas classes. Qualquer  leitura séria da obra de Marx resultará em conclusão oposta. Também, qualquer leitura rigorosa perceberá o equívoco de Lênin e os  leninistas em geral em restringir a definição de  classes  em Marx  ao processo produtivo  e  à propriedade dos meios de produção.  

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A  leitura de Marx, como demonstra Viana, é bem mais complexa e parte da divisão social do trabalho, da oposição de interesses, da luta de classes, do modo de vida, modo de atividade, valores, concepções etc. Assim, uma classe social não se define por sua posição diante dos meios de  produção.  Este  procedimento  define  somente  as  classes fundamentais do capitalismo, ou seja, burguesia e proletariado. A estas classes fundamentais relaciona‐se um conjunto de outras, denominadas por Viana de classes subsidiárias, ou seja, que se apropriam de uma ou outra maneira  do mais‐valor  produzido  a  partir  da  relação  entre  as classes  fundamentais.  Entre  as  classes  subsidiárias,  pode‐se  citar: burocracia,  intelectualidade,  lumpemproletariado,  trabalhadores domésticos etc.  

Cada uma destas classes comporta também um conjunto de frações de  classes.  A  burguesia,  por  exemplo,  fraciona‐se  em  burguesia comercial,  financeira,  industrial, agrária. O proletariado em  industrial, agrário,  de  minas,  da  construção  civil.  A  burocracia  em  partidária, eclesial,  empresarial,  sindical  etc.  A  intelectualidade  em  artistas, cientistas  etc.  Cada  uma  destas  classes  e  frações  define‐se  por  um determinado modo de atividade, por sua posição na divisão social do trabalho,  por  determinado  modo  de  vida  e  rendimentos,  por determinados valores e interesses. O que, por definição, coloca uma em relação  com  as  outras  e,  por  consequência,  as  coloca  em  situação  de conflito ou de aliança.  

Vê‐se, deste modo, que a concepção de Marx é bem mais complexa do que  se apresenta à primeira vista. É a partir desta abordagem que Lisandro  Braga  trás  sua  contribuição  ao  discutir  como  o lumpemproletariado  se  constitui  e  evolui  ao  longo  da  história  do capitalismo. O título da obra é bastante expressivo de seu conteúdo. A Classe  em Farrapos é uma alusão ao significado etimológico da palavra lumpemproletariado, ou seja, proletariado em farrapos. 

A pesquisa histórica e teórica desenvolvida por Braga é uma grande contribuição à  teoria marxista das classes sociais.   Sua análise da obra de  Marx  no  que  concerne  ao  lumpemproletariado  é  uma  marca importante  do  presente  livro.  Demonstra  como  este  “proletariado” esfarrapado  pertence  ao  capitalismo  tanto  quanto  a  burguesia  e  o proletariado.  Contudo,  o  grande  elemento  definidor  do lumpemproletariado, diferentemente das demais classes subsidiárias, é 

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o fato de estar fora da divisão social do trabalho. Assim, como destaca o autor,  não  existe  exclusão  social,  o  que  implicaria  em  dizer  que  o lumpemproletariado está fora da sociedade, algo impossível. Esta classe está, na verdade, excluída da divisão  social do  trabalho. O que Braga demonstra, a partir das obras de Marx e Engels é que a constituição da relação‐capital,  ou  seja,  da  burguesia  e  do  proletariado  implica, ontologicamente, na criação do lumpemproletariado.  

O  livro está dividido em  três  capítulos. No Capítulo 1: Acumulação Capitalista  e  Lumpemproletariado,  o  autor  demonstra  a  relação inextrincável  entre  modo  de  produção  capitalista  e  formação  do lumpemproletariado. A partir da análise de Marx acerca da “Lei Geral da  Acumulação  Capitalista”,  Braga  demonstra  como  a  produção  da riqueza  enquanto  capital  implica  necessariamente  no  crescimento  do lumpemproletariado.  Segundo  Marx,  o  aumento  da  composição orgânica do capital implica necessariamente num crescimento absoluto da população  trabalhadora, bem como em seu decréscimo  relativo em relação ao conjunto do capital investido. Assim, o desenvolvimento do capital  reside  num  crescente  aumento  do  investimento  em  capital constante em oposição ao  capital variável. Ambos  crescem em  fatores absolutos,  mas  o  capital  constante  cresce  relativamente  mais  que  o capital variável. Esta relação “natural” do capital cria aquilo que Marx denominou  exército  industrial de  reserva ou  superpopulação  relativa. Em  O  Capital,  Marx  refere‐se  aos  estratos  mais  inferiores  desta superpopulação  relativa  como  sendo  o  lumpemproletariado (prostitutas,  incapacitados  para  o  trabalho,  desempregados  crônicos etc.).  Braga  propõe  uma  “ressignificação”  do  termo lumpemproletariado, passando a compor esta classe todo o conjunto do exército  industrial  de  reserva.  Após  demonstrar  a  essência  do Lumpemproletariado, discute  seu processo de  formação histórica,  seu modo de vida, condições de existência etc. desde a origem do modo de produção  capitalista  até  finais  do  século  XIX,  período  analisado  por Marx. 

A  segunda  grande  contribuição  de  Braga  para  uma  teoria  do lumpemproletariado  está  presente  no  Capítulo  2:  Expansão  do Lumpemproletariado  no  Regime  de  Acumulação  Integral.  Sua  pesquisa, portanto, não se restringe a afirmar o que Marx disse, o que demonstra o caráter não‐dogmático do autor e de sua obra. Marx desenvolveu os 

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elementos essenciais da análise do modo de produção capitalista e das classes  sociais, mas  não  fez  tudo  e  nem  poderia  fazê‐lo.  Também,  o capitalismo  contemporâneo  não  é mais  o  do  século XIX.  É  com  base nesta  premissa,  que  Braga  se  apropria  da  teoria  dos  regimes  de acumulação  tal  como desenvolvida por Nildo Viana nas obras Estado, Democracia  e Cidadania  e O Capitalismo na Era  da Acumulação  Integral  e discute  o  desenvolvimento  do  lumpemproletariado  a  partir  do desenvolvimento mesmo do modo de produção capitalista. A sociedade moderna  passou  por  cinco  regimes  de  acumulação:  extensivo  (da revolução  industrial  até  finais do  século XIX);  intensivo  (de  finais do século  XIX  até  a  Segunda  Guerra Mundial);  conjugado  (da  Segunda Guerra Mundial até a década de 1980); e integral (da década de 1980 até os dias atuais). Braga analisa dois regimes de acumulação e demonstra como  o  lumpemproletariado  se  comporta,  como  classe  em  cada  um deles. Analisa o regime de acumulação extensivo, o discutido por Marx, debate realizado no primeiro capítulo. No segundo capítulo, discute o lumpemproletariado  na  contemporaneidade,  ou  seja,  no  regime  de acumulação integral. A conclusão a que chega o autor é que a tendência à  lumpemproletarização cada vez mais  radical da sociedade  se afirma na  etapa  atual  do  capitalismo.  E  isto  ocorre  tanto  nos  países imperialistas  (Estado  Unidos,  Europa  Central  etc.)  quanto  nos  de capitalismo  subordinado  (América  Latina, África  etc.).  Para  os  países imperialistas,  cunha o  termo “lumpemproletarização expansiva”, para os países subordinados “lumpemproletarização intensificada”.  

A  grande  contribuição  desta  parte  da  obra  é  demonstrar:  a)  o lumpemproletariado,  ou  seja,  miséria,  desemprego  etc.  são  uma realidade  no  mundo  inteiro,  inclusive  no  centro  do  capitalismo mundial, os EUA; b) o lumpemproletariado não é necessariamente uma classe reacionária, contrariando com esta tese várias abordagens, como a  de  Alberto  Passos  Guimarães  em  seu  livro  As  Classes  Perigosas. Continuando  a  reflexão  que  já  havia  feito  no  capítulo  1,  quando demonstrou que o lumpemproletariado foi ativo em vários processos de luta durante o  regime de  acumulação  extensivo, durante o  regime de acumulação  integral, suas  lutas  levaram a uma  radicalização beirando as raias do processo revolucionário na Argentina. Analisa, neste ponto, a ação política do Movimento Piqueteiro na Argentina e demonstra que o  lumpemproletariado  não  é  essencialmente  contra‐revolucionário. A 

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experiência na Argentina, durante a década de 1990 e os primeiros anos da década de 2000 o demonstram. 

Finaliza  o  livro  com  o  Capítulo  3:  Lumpemproletarização  na  Era  da Acumulação  Integral  no  Brasil.  Demonstra,  como  rigor  analítico,  o processo de estabelecimento da acumulação  integral no Brasil, ou seja, da reestruturação produtiva fundada no toyotismo, no estabelecimento do Estado neoliberal  iniciado com o governo Collor em 1990, processo  continuado até os dias atuais e na relação subordinada do Brasil com os países  imperialistas, onde os ajustes estruturais propostos pelo Fundo Monetário  Internacional  –  FMI,  Banco Mundial  etc.  arrebentaram  as poucas  políticas  sociais  e  garantias  trabalhistas  que  existiam  no  país. Este conjunto de processos agravou uma situação que já era por demais crônica. Tal como no caso argentino, a lumpemproletarização no Brasil foi drástica ou como define e autor,  “intensificada” durante os anos de 1990 e 2000.  Isto, contudo, não  implicou na criação de um movimento social radical como na Argentina. 

Assim,  a  presente  obra,  que  agora  o  leitor  tem  em mãos,  é  uma preciosa contribuição à teoria marxista das classes sociais. Seu enfoque está  centrado  em uma  classe  social  específica,  o  lumpemproletariado, sendo outras classes marginalmente analisadas no livro. Esta obra tem, portanto, vários méritos:  a)  interpretar de maneira  correta  a  teoria de Marx das  classes  sociais em geral e especificamente  sua  concepção de lumpemproletariado;  b)  refundir  e  ressignificar  alguns  elementos  da teoria  de  Marx  acerca  do  lumpemproletariado;  c)  analisar  o desenvolvimento do lumpemproletariado a partir da teoria dos regimes de acumulação; d) analisar o desenvolvimento do lumpemproletariado no  capitalismo  contemporâneo,  ou  seja,  no  regime  de  acumulação integral;  e)  analisar  o  significado  da  luta  política  desenvolvida  pelo lumpemproletariado,  demonstrando  que  esta  classe,  devido  suas condições  de  vida  e  existência,  pode  se  aliar  ao  proletariado  e protagonizar processos radicais de luta. É, portanto, obra indispensável para  quem  quer  compreender  a  dinâmica  das  classes  sociais  no capitalismo  contemporâneo,  além  de  ser,  do  ponto  de  vista metodológico,  um  importante  indicativo  do  estudo  do lumpemproletariado. 

  

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 INTRODUÇÃO 

  

Os estudos que versam sobre o modo de produção capitalista e suas classes sociais tendem, geralmente, a priorizar em suas análises apenas as  classes  fundamentais  do  capitalismo,  isto  é,  a  burguesia  e  o proletariado,  a  luta  de  classes  derivada  da  relação  estabelecida  entre essas  classes  na  produção,  suas  organizações, modos  de  vida  etc.. A partir da década de 1940 começaram a surgir estudos  interessados em compreender outras classes sociais no capitalismo, tal como os estudos sobre  a  burocracia  (RIZZI,  1983;  DJILLAS,  1971)  ou,  como  prefere alguns  teóricos,  os  gestores  (BERNARDO,  2009).  No  entanto,  outras classes  sociais  permaneceram  marginalizadas  não  só  na  realidade material  concreta, mas  também nas  análises  teóricas. Possivelmente  a classe  social  que mais  nitidamente  se  encontra  nessa  situação  seja  o lumpemproletariado.  

O  foco  central  desse  trabalho  consiste  em  analisar  o  processo  de lumpemproletarização no Brasil no período de vigência do  regime de acumulação  integral  (de 1990 aos dias atuais). Nossa motivação nasce da  necessidade  intelectual  de  compreender  as  determinações  que envolvem  o  crescimento  espantoso  no  Brasil  de  indivíduos desempregados  e  empobrecidos,  vivendo  em  situação  de  rua  (sem‐tetos),  subempregados,  prostitutas,  mendigos  etc.  Trataremos  esse conjunto  de  grupos  sociais  que  compõe  a  totalidade  do  “exército industrial de reserva” como uma classe social: o lumpemproletariado. 

O  lumpemproletariado  insurge  das  ruínas  do  modo  de  produção feudal  e  das  próprias  necessidades  do  modo  de  produção  capitalista nascente,  pois  com  o  processo  de  ruptura  com  a  tradição  feudal  da propriedade  comum da  terra  e o  surgimento de propriedades privadas, fruto  dos  cercamentos,  destinadas  a  funcionarem  segundo  a  lógica mercantil  incipiente,  milhares  de  camponeses  foram  expulsos  de  suas terras e obrigados a migrarem para os recentes centros urbanos industriais. Porém, tais centros urbanos não se encontravam habilitados a  incorporar na nova divisão  social do  trabalho  toda  essa  gigantesca massa popular. Pelo  contrário,  parcela  significativa  dessa  massa  se  encontrará 

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marginalizada  da  divisão  social  do  trabalho  e  formará  o lumpemproletariado.  

Posteriormente, o próprio desenvolvimento da produção  capitalista de mercadorias e toda a sua dinâmica alimentarão o desenvolvimento de um  lumpemproletariado  que  tende  a  crescer  assustadoramente  na sociedade capitalista. No fundo, essa classe social, após a consolidação do capitalismo,  deriva  da  luta  de  classes  estabelecida  entre  burguesia  e proletariado  na  produção  e  formará  aquilo  que Marx  denominou  de “exército  industrial de  reserva”  e  cumprirá duas  funções  essenciais  no capitalismo que consiste em pressionar os salários para baixo e manter a classe  trabalhadora  dividida  e  enfraquecida  na  disputa  por  espaço  no mercado  de  trabalho. A  totalidade  desse  exército  industrial  compõe  a classe social aqui denominada de lumpemproletariado e a mesma passa a ser  parte  integrante  da  lógica  reprodutora  do  modo  de  produção capitalista,  tendendo  a  crescer  assustadoramente  em  períodos  de  crise econômica.  

A  importância de  se  compreender o  lumpemproletariado à  luz de uma  teoria marxista das classes sociais se  justifica pela necessidade de apreendê‐lo  enquanto  uma  classe  social  formada  pela  totalidade  do exército  industrial  de  reserva,  isto  é,  toda  gama  de  desempregados, subempregados,  mendigos,  sem‐tetos  etc.  que  se  encontram marginalizados  da  divisão  social  do  trabalho  e  que  na  atual configuração do capitalismo  tende a se encontrar cada vez mais, e em maior  número,  nessa  situação.  O  capitalismo  ao  longo  de  seu desenvolvimento  conviveu  com  a  lumpemproletarização  e  dela dependeu,  porém  a  condição  de  lumpemproleatariado  em  diversos momentos históricos era acompanhada pela possibilidade de retorno à condição  de  classe  operária  e/ou  trabalhadora  em  geral.  Na contemporaneidade, a possibilidade dessa massa enorme de indivíduos se proletarizarem novamente  é  cada vez mais difícil,  apesar de  ainda ocorrer,  pois  aquilo  que  anteriormente  representava  uma  fase  de transição  ‐  lumpemproletariado↔proletariado  –  tem  se  tornado, durante a vigência do  regime de acumulação  integral, num “modo de vida” de milhares de  indivíduos em  todo o mundo  (MARTINS, 1997). Conseqüentemente,  o  enfrentamento  à  condição  de lumpemproletariado, assim como a condição de proletariado, depende 

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intimamente da destruição da sociedade que lhes possibilita a existência e delas depende para existir, isto é, o capitalismo. 

Além disso, torna‐se de fundamental importância discutir o que há por  de  trás  dos  constructos  ideológicos  inclusão/exclusão  social  que, desde  aproximadamente  a  década  de  80  e  90  na  Europa, especificamente  na  França,  se  tornaram  dominantes  nos  discursos acadêmico‐científicos  e  governamentais,  pois  tentar  compreender  a totalidade  das  relações  sociais  no  capitalismo  a  partir  de  uma  visão dualista  abstrata  que mais  obscurece  tais  relações do  que  a  esclarece, acaba  por  revelar  a  tentativa  das  classes  dominantes  de  ocultar  um processo  que  acompanha  o  desenvolvimento  histórico  do  modo  de produção  capitalista:  a  lumpemproletarização  expansiva  (capitalismo imperialista) e intensificada (capitalismo subordinado).  

Ao  falar  de  exclusão  social  deve  se  questionar  de  onde  se  está excluído,  pois  ninguém  está  excluído  socialmente  uma  vez  que  não existem  indivíduos  excluídos  da  pertença  de  classe  social.  Todo indivíduo pertence a uma ou outra classe social. O que acontece é que o lumpemproletariado, uma classe social inerente ao capitalismo tal como a burguesia e o proletariado, encontra‐se marginalizado da divisão social do  trabalho  e não da  sociedade  como um  todo, pois  isso  é  impossível. Além disso, a ideologia da inclusão social não explica em que condições e para onde se pretende incluir os tais indivíduos “excluídos”, ou seja, não demonstra  que  se  houvesse  a  possibilidade  da  inclusão,  algo  bastante contestável  e  duvidável,  essa  se  daria  no  reino  do  trabalho  alienado, precarizado e intensificado que nega a multiplicidade da potencialidade física e espiritual do ser humano e, consequentemente, a positividade da inclusão estaria ameaçada. 

Em  escala  mundial  é  possível  perceber  que  o  processo  de lumpemproletarização passa por uma fase de expansão na Europa, EUA e Ásia,  a  partir  da  década  de  1980,  com  a  consolidação  do  regime  de acumulação integral. Nosso problema de pesquisa incide em saber se no Brasil, país de  capitalismo  subordinado,  que  convive, desde  o  final do século  XIX,  com  um  alto  índice  de  indivíduos  lumpemproletarizados houve  uma  intensificação  desse  processo?  Se  houve,  quais  são  suas especificidades,  ou  seja,  qual  a  relação  entre  o  regime  de  acumulação integral no Brasil e a intensificação da lumpemproletarização nesse país?  

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Responder a esse problema central e a outros dele derivados, possui importância acadêmica e social fundamental, pois pode contribuir com a  reconstrução de uma  teoria das  classes  sociais no Brasil que ofereça ferramentas  mais  eficazes  para  a  compreensão  da  dinâmica  social brasileira  e  possibilite,  também,  um  combate  à  ideologia  dominante que,  a  partir  dos  seus  constructos  ideológicos  (marginalidade  social, inclusão  e  exclusão  social,  ações  afirmativas,  igualdade  de oportunidades etc.), camuflam a realidade social e, conseqüentemente, reproduz  o  status  quo,  dificultando  a  construção  de  uma  concreta alternativa  social,  fundada  na  autogestão  da  sociedade,  que  sirva  ao enfrentamento  incisivo contra a manutenção e reprodução da barbárie capitalista.  

Com o  intuito de  compreender a Acumulação  integral  e  expansão do lumpemproletariado,  nosso  trabalho  será  dividido  em  três  capítulos. O primeiro  capítulo  intitulado Acumulação  capitalista  e  lumpemproletariado trará  uma  discussão  teórica  acerca  da  acumulação  capitalista,  suas classes  fundamentais,  a  relação  entre  a  acumulação  e  o lumpemproletariado  e  a  formação  e  desenvolvimento  dessa  classe social  no  regime  de  acumulação  extensivo. Nesse  capítulo  buscamos compreender o lumpemproletariado como uma classe social inerente ao modo de produção  capitalista  e que  tende,  assim  como no  regime de acumulação  extensivo,  a  se  ampliar  e  se  intensificar  no  regime  de acumulação integral.  

Para  dialogar  com  a  hipótese  de  que  no  regime  de  acumulação integral  a  lumpemproletarização  sofre  um  processo  de  expansão, discutiremos  no  segundo  capítulo  A  expansão  do  lumpemproletariado  no regime de acumulação integral com o intuito de demonstrar que mesmo em países  de  capitalismo  imperialista,  como  o  norte‐americano,  é  possível visualizar  um  amplo  processo  de  lumpemproletarização  e  de criminalização  do  lumpemproletariado.  Nesse  capítulo,  discutiremos, também,  o  processo  de  lumpemproletarização  e  luta  de  classes  na Argentina. Para isso, discutiremos a situação argentina que, nos últimos anos  da  década  de  1990  até  os  dias  atuais,  vem  experimentando  um intenso processo de  lumpemproletarização derivado das  conseqüências do  regime  de  acumulação  integral  e  da  adoção  irrestrita  à  cartilha neoliberal. O propósito de discutir a situação argentina se  justifica pelo fato  de  que  a  intensificação  da  lumpemproletarização  nesse  país 

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provocou uma  radicalização da  luta de  classes, demonstrando  que, no regime  de  acumulação  integral,  a  postura  política  do lumpemproletariado  pode  ser  marcada  por  um  caráter  fortemente contestador  que  ameaça  a  permanência  da  ordem  capitalista.  Dessa forma, a  tese segundo a qual a postura política do  lumpemproletariado na contemporaneidade apresenta‐se como uma possibilidade real de uma aliança revolucionária com o proletariado se confirma e o mito segundo o qual a postura política do lumpemproletariado é sempre passível de ser cooptada e utilizada a serviço de tramóias reacionárias é desmentida. 

No  terceiro  e  último  capítulo,  discutiremos  o  processo  de lumpemproletarização  no  Brasil.  Nosso  objetivo  é  demonstrar  a singularidade desse processo  em um país de  capitalismo  subordinado. Para isso, discutiremos as principais mudanças ocorridas nas relações de trabalho  e  o  toyotismo  no  Brasil,  a  relação  entre  neoimperialismo, capitalismo  e  neoliberalismo  subordinado.  Por  fim,  realizaremos  uma discussão  sobre  desemprego  e  intensificação  da  lumpemproletarização com o  intuito de evidenciar que no capitalismo subordinado o processo de lumpemproletarização tende a ser intensificado. Para demonstrar essa intensificação,  iremos  analisar  as  condições  de  existência  de  uma  das frações  de  classe  do  lumpemproletariado  mais  degradadas  no capitalismo: os  sem‐tetos ou população em  situação de  rua  (PSR). Para essa  análise,  contaremos  com  as  informações  fornecidas  pelos  estudos realizados  por Maria  Lucia  Silva  e  que  resultaram  na  obra  Trabalho  e população em situação de rua no Brasil (2009). 

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ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E LUMPEMPROLETARIADO   A  proposta  central  desse  trabalho  é  compreender  o 

lumpemproletariado à luz de uma teoria das classes sociais, analisando‐o  como  uma  classe  social  composta  pela  totalidade  do  exército industrial  de  reserva  (desempregados,  sem‐teto,  mendigos, subempregados,  prostitutas  etc.).  Constata‐se  que  o  processo  de lumpemproletarização, que emerge concomitantemente ao processo de proletarização,  no  período  de  consolidação  do  capitalismo,  vem  se expandindo  no  regime  de  acumulação  integral,  tanto  nos  países imperialistas  quanto  nos  países  subordinados,  de  uma  forma  jamais vista  em  outros  períodos  do  capitalismo,  exceto  no  período  de emergência desse modo de produção. Com o propósito de elucidar  tal constatação  analisaremos  o  processo  de  lumpemproletarização  no regime  de  acumulação  extensivo  (da  Revolução  industrial  até aproximadamente  1871)  e,  posteriormente,  no  regime  de  acumulação integral  para,  a  partir  daí,  buscar  constatar  que  esse  processo  vem sofrendo uma expansão na  contemporaneidade  semelhante à épocado primeiro regime de acumulação capitalista, dominante em quase todo o século XIX1.  

Para melhor  compreender  a  dinâmica  da  acumulação  capitalista, suas  leis,  tendências  e  contra  tendências,  assim  como  a  formação  do lumpemproletariado e seu papel no processo de acumulação de capital, realizaremos,  nesse  capítulo,  uma  discussão  acerca  das  múltiplas determinações  que  envolvem  o  modo  de  produção  capitalista,  a produção e extração de mais‐valor  (sua determinação  fundamental), a lei  geral  da  acumulação  capitalista  e  o  processo  de lumpemproletarização derivado dela.   Visando,  também, compreender as mudanças históricas pelas quais o capitalismo sofre em suas formas (processo  de  valorização,  formas  estatais  e  relações  internacionais),  a história do  capitalismo  será apresentada aqui  enquanto uma  sucessão de regimes de acumulação, demonstrando as especificidades do regime 

1 Para uma análise pormenorizada do regime de acumulação extensivo, passando pelo intensivo  e  intensivo‐extensivo,  até  chegar  ao  regime  de  acumulação  integral,  cf. VIANA (2009). 

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de acumulação integral e suas implicações no processo de ampliação do lumpemproletariado na contemporaneidade (VIANA, 2009).  A dinâmica da produção capitalista de mercadorias

 A  sociedade  capitalista,  como  já  afirmara Marx,  se  caracteriza por 

uma  “imensa  coleção  de mercadorias”,  porém  não  haveria  nenhuma novidade  histórica  nessa  sociedade  se  a  forma  como  se  produz  tais mercadorias  não  fosse  absolutamente  inédita  na  história  da humanidade,  pois  é  verdade  que  a  análise  da  mercadoria  por  ela mesma não revela o segredo da exploração capitalista. Por conseguinte, poderíamos,  então,  questionar  sobre  as  razões  que  levaram Marx  a iniciar sua obra sobre o modo de produção capitalista (O capital, vol. 1, 1867)  com  a  análise  sobre  a mercadoria  e  porque,  ainda  hoje,  vários autores, críticos da economia política, continuam a iniciar suas análises sobre  tal modo  de  produção,  também,  pela mercadoria,  ao  invés  de irem  direto  ao  processo  de  produção  e  exploração  dos  trabalhadores pelo capital?  

O  essencial  no  modo  de  produção  capitalista  não  se  encontra simplesmente  no  fato  desse modo  de  produção  se  caracterizar  como uma “imensa coleção de mercadorias”, mas sim no fato de tal produção de mercadorias  se  equivaler à produção  e  extração de mais‐valor. No entanto, 

 este essencial não poderia ser estudado se não  tivesse previamente mostrado que  a  mercadoria  é  a  forma  social  que  tem  de  revestir  qualquer  bem  na economia  capitalista.  A  mercadoria  é  o  fenômeno  concreto  da  produção capitalista; enquanto  fenômeno, ela não basta para caracterizar o capitalismo, mas  impõe a  sua  forma particular a  todos os  fatores e produtos do  trabalho efetuado nas condições capitalistas. A primeira condição da compreensão do capital  (e, como se verá, do seu devir) é ver bem, nos elementos do processo econômico  capitalista,  não  apenas  objetos,  bens de produção  e de  consumo, forças  de  trabalho,  produtos materiais  desempenhando  uma  função  técnica determinada, mas mercadorias que possuem valor (BARROT, 1977, p. 54). 

 É exatamente por conta dessa novidade que Marx inicia sua obra O 

Capital  (1967)  com  a  análise  sobre  a  mercadoria.  Ele  foi  o  primeiro teórico  a  elaborar  uma  teoria  sistematizada  do  modo  de  produção capitalista,  por  isso  é  a  partir  dele  que  buscaremos  compreender  as 

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determinações desse modo de produção. O propósito de Karl Marx na sua obra O Capital (1967) consiste em revelar a exploração da sociedade capitalista  que  possui  seu  fundamento  na  extração  de mais‐valor  no processo de produção de mercadorias. Visando compreender a essência (no  sentido ontológico) da mercadoria, Marx,  a partir do  “método da abstração”,  procura  descobrir  suas  múltiplas  determinações  e  sua determinação fundamental.  

No  capítulo A mercadoria do  volume  I de O  capital,  o  autor  inicia questionando o que determina o valor da mesma. Para responder a essa questão, primeiramente, torna‐se necessário, segundo Marx, saber o que há de comum em todas as mercadorias. Ele acaba afirmando que o que há de comum é que as mesmas são produtos do trabalho humano e que o tempo de trabalho socialmente necessário gasto em sua produção está diretamente relacionado com a determinação do seu valor.  

No  entanto,  cabe  indagar:  como Marx  chega  a  tal  conclusão?  A mercadoria é ao mesmo tempo valor de uso e valor de troca. Enquanto valor  de  uso  a  mercadoria  deve  possuir  utilidade  para,  enfim,  ser consumida. Tais  valores de uso  são portadores materiais do  valor de troca, ou  seja,  são mercadorias. Tomemos os  seguintes exemplos para melhor  compreender  a  questão  dos  valores.  Se  01  determinado caminhão equivale a 03 determinados automóveis ou 02 determinados tratores,  logo  03  desses  automóveis  valem  o  mesmo  que  02  desses tratores  ou  01  desse  caminhão.  Por  conseguinte,  possuem  a  mesma expressão  do  seu  conteúdo.  Sendo  assim,  pode‐se  concluir  que  03 automóveis  e  02  tratores,  assim  como  01  caminhão,possuem  algo  de comum e da mesma grandeza, mesmo sendo, enquanto valores de uso, coisas distintas. Percebe‐se, então, que há uma “terceira coisa” além dos valores de uso e de  troca nas quais eles  se  reduzem. Em que  consiste essa “terceira coisa”? 

As  mercadorias  enquanto  valores  de  uso  possuem  diferenças qualitativas  e  enquanto  valores  de  troca  possuem  apenas  diferenças quantitativas.  Enquanto  valores  de  troca,  as  mercadorias  possuem apenas  uma  “propriedade  comum”:  são  produtos  do  trabalho humano.Assim, Marx  descobre  em  que  consiste  a  “terceira  coisa”  e afirma: 

 

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deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a ela apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. Entretanto, o produto do trabalho também já se transformou em nossas mãos. Se abstraímos o  seu valor de uso,  abstraímos  também os  componentes  e  formas  corpóreas que fazem dele valor de uso. Deixa  já de ser mesa ou casa ou fio ou qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades sensoriais se apagaram. Também  já não é o produto do trabalho do marceneiro ou do pedreiro ou do fiandeiro ou de qualquer outro  trabalho produtivo determinado. Ao desaparecer o caráter útil  dos  produtos  do  trabalho,  desaparece  o  caráter  útil  dos  trabalhos  neles representados,  e  desaparecem  também,  portanto,  as  diferentes  formas concretas  desses  trabalhos,  que  deixam  de  diferenciar‐se  um  do  outro  para reduzir‐se  em  sua  totalidade  a  igual  trabalho  humano,  a  trabalho  humano abstrato (1985, p. 47). 

 Dessa forma, o que se pode perceber é que as mercadorias possuem 

como  “propriedade  comum”  o  fato  de  serem  produtos  do  trabalho humano,  “uma  simples  gelatina de  trabalho humano  indiferenciado”, trabalho humano abstrato. Conclui‐se, então, que é o tempo de trabalho socialmente  necessário para produzir uma mercadoria  que determina seu  valor.  Vale  destacar  que  o  autor  está  tratando  do  tempo médio social de trabalho e não do tempo de trabalho efetivo, e trata‐se do valor da mercadoria e não do seu preço. A diferença de um valor em relação a outro  é meramente  quantitativa. A  grandeza  quantitativa  do  valor  é medida através do  tempo de  trabalho gasto na sua produção que, por sua  vez,  é  medido  pela  sua  duração  (horas,  dias  etc.).  Porém,  esse trabalho  é  “trabalho  abstrato”,  ou  seja,  trabalho  social médio  e  não “trabalho concreto”. Sendo assim, 

 é portanto, apenas o quantum de trabalho socialmente necessário ou o tempo de  trabalho socialmente necessário para produção de um valor de uso o que determina a grandeza de seu valor. A mercadoria individual vale aqui apenas como  exemplar médio  de  sua  espécie. Mercadorias  que  contêm  as mesmas quantidades de  trabalho ou que podem  ser produzidas no mesmo  tempo de trabalho,  têm,  portanto,  a  mesma  grandeza  de  valor.  O  valor  de  uma mercadoria está para o valor de cada uma das outras mercadorias assim como o tempo de trabalho necessário para a produção de uma está para o tempo de trabalho necessário para a produção de outra (MARX, 1985, p. 48). 

 O  trabalho  humano  utilizado  na  produção  de  uma  mercadoria 

possui  duplo  caráter:  trabalho  concreto  e  trabalho  abstrato. Primeiramente, o trabalho é produtor de valor de uso, produz para ser 

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útil a determinadas necessidades. Por outro lado, tal trabalho é abstrato, produz mais valor, acrescenta valor à mercadoria.   Tal duplicidade do trabalho se reproduz na mercadoria como valor de uso e valor de troca. A  mercadoria  enquanto  coisa  de  valor  é  imperceptível.  Somente representa valor quando expressa trabalho social e, consequentemente, o  seu  valor  só  pode  ser  expresso  numa  relação  sócio  mercantil  de mercadorias para mercadorias. 

Marx  compreende  o  concreto  (real)  como  sendo  “síntese  de múltiplas  determinações”,  mas  que  possui  uma  determinação fundamental. De  acordo  com  o  “método  da  abstração”  desenvolvido por ele, o concreto‐dado é ponto de partida, visto que antes da pesquisa ele  se  encontra  no  nível  das  “representações  cotidianas”,  “senso comum” e não se apresenta de imediato em sua “essência”, mas a partir das  abstrações  atingimos  o  concreto‐determinado,  pensado.  Isto  é,no início, temos o concreto‐dado, a representação cotidiana do fenômeno a ser  estudado,  ou  seja,  a  aparência.  Depois  de  pesquisar,  através  da abstração  chegamos  ao  concreto‐pensado,  determinado.  Por conseguinte, o concreto‐dado é  transpassado para o concreto‐pensado, possibilitando  expressá‐lo,  teoricamente,  em  sua  totalidade(VIANA, 2006).  

Dessa maneira, é que podemos afirmar que o preço da mercadoria é o concreto‐determinado, e o processo de abstração possibilitou  chegar ao valor,  sua determinação  fundamental. Portanto,  o que Marx busca fazer no capítulo A mercadoria é superar o concreto‐dado, a aparência, através da abstração, chegando à essência – determinação fundamental ‐ para  assim  chegar  ao  concreto‐determinado, que  é  a mercadoria  em suas múltiplas determinações. 

Resta, agora, sabermos que relações sociais concretas existem entre a produção de mercadorias e a definição do valor das mesmas, ou seja, de que  forma  se  define  o  valor  de  uma  mercadoria  na  sociedade capitalista?  

 2.1.1 – A produção de mais-valor e classes fundamentais

 Creio não ser necessário realizar grandes análises para concluirmos 

que a produção capitalista só ocorre se a mesma for geradora de lucro, ou  seja,  se  a  classe  capitalista  detentora  dos  meios  de  produção 

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necessita, ao produzir mercadorias, vendê‐las no mercado por um valor superior aos custos da sua produção, consequentemente o valor final da comercialização  deve  ser  maior  do  que  os  gastos  com  maquinaria, matérias‐primas e salários. Desse modo, todo capitalista 

 quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi‐la, os meios de produção e a  força de trabalho, para as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais‐valia (MARX, 1985, p. 155). 

 Tanto  as  máquinas  quanto  as  matérias‐primas  apenas  repassam 

seus valores no processo produtivo, por conseguinte o trabalho deve ser processo de valorização, pois “como a própria mercadoria é unidade de valor  de  uso  e  valor  de  troca,  seu  processo  de  produção  tem  de  ser unidade  de  processo  de  trabalho  e  processo  de  formação  de  valor” (MARX,  1985,  p.  155).  Então,  devemos  questionar  de  onde  e  de  que maneira vem o acréscimo de valor? 

Anteriormente  já  foi  adiantado  que  o  valor de  uma mercadoria  é determinado  pelo  tempo  de  trabalho  socialmente  necessário  para produzi‐la,  portanto  é  a  força  de  trabalho  (capital  variável)  o  único elemento que acrescenta valor à mercadoria. Dessa maneira, 

 a força de trabalho é uma mercadoria particular, completamente diferente dos meios  de  trabalho.  Enquanto  que  estes  últimos  fornecem  ao  produto  o  seu valor,  a  força de  trabalho não  só  fornece o  seu próprio valor  como  também acrescenta  o  valor  do  trabalho  que  ela  realiza.  É  criadora  de  trabalho;  e, portanto,  de  valor.  O  seu  consumo  é  produtivo:  dá  mais  do  que  custou (BARROT, 1977, p. 58). 

 O  processo  de  constituição  do  valor  de  determinado  produto  é 

composto por diferentes determinações envolvidas na produção. De um lado temos aquilo que Marx denominou de capital constante, ou seja, “a parte do  capital  que  se  converte  em meios de  produção”  – matérias‐primas,  maquinaria  e  meios  de  trabalho  em  geral.  Do  outro  lado encontra‐se  o  capital  variável,  isto  é,  a  força  de  trabalho  que  além  de reproduzir  seus  custos  adiciona  mais‐valor,  gera  excedente  (MARX, 1985). Neste sentido, percebe‐se que o capital constante apenas repassa seus custos durante o processo de produção enquanto o capital variável, 

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além de  repassar  seus  custos,  consiste no único  elemento presente no processo  produtivo  capaz  de  agregar mais‐valor  à mercadoria. Marx chama esse conjunto (capital constante + capital variável) de composição orgânica do capital (MARX, 1985a).  

A  composição  orgânica  do  capital  expressa,  consequentemente,  a tendência  declinante  da  taxa  de  lucro médio,  pois  com  o  intuito  de garantir a  reprodução ampliada do  capital, a  classe  capitalista  investe cada  vez mais  em meios  de  produção  (trabalho morto),  que  apenas repassa  seus  custos, e  cada vez menos em  força de  trabalho  (trabalho vivo)  que  é  o  único  elemento  gerador  de mais‐valor.  Portanto,  se  o elemento que apenas repassa custos amplia em detrimento do elemento que gera mais‐valor, desenvolve‐se a tendência declinante da taxa de lucro médio2. Tal tendência é de extrema importância para a compreensão da dinâmica do capitalismo e de suas transformações históricas, pois revela uma das potencialidades fundamentais causadora da crise capitalista.  

A  relação que  se estabelece entre as duas classes  fundamentais do capitalismo, ou seja, entre a burguesia e o proletariado, é uma relação de  compra  e  venda,  pois  a  burguesia  compra  no  mercado  tanto matérias‐primas, maquinaria e outros meios de trabalho, assim como a força  de  trabalho.  Porém,  essa  última,  ao  contrário  dos  meios  de trabalho, não apenas é consumida durante a produção, mas  também é geradora,  pois  o  acréscimo  de  valor  que  a  força  de  trabalho  realiza possibilita ao capitalista acumular capitais uma vez que a reposição dos custos  e  o  dispêndio  com  força  de  trabalho  –  salários  ‐  equivalem apenas a uma parcela do mais‐valor produzido. Já, “o valor do capital constante  reaparece  no  valor  do  produto,  mas  não  entra  no  novo produto‐valor criado” (MARX, 1985, p. 241). 

Esse  é  o  segredo  da  exploração  capitalista:  a  existência  do mais‐valor  só  é possível quando o proletariado  se  encontra  completamente separado do resultado do seu trabalho, que passa a ser substituído por um  salário  equivalente apenas a uma parcela  infinitamente menor do que o realmente produzido. Desta forma, percebe‐se que a relação entre 

2 “Esta tendência é constituída devido ao desenvolvimento das forças produtivas, pois quanto mais desenvolvida  é  a  tecnologia  e  quanto mais  esta  entra  no  processo de produção, menos se utiliza a força de trabalho, que é a fonte geradora de mais‐valor” (VIANA, 2009, p. 93). 

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capitalista  e proletariado  é  fundada na  exploração de uma  classe não produtora, mas que apropria do resultado de trabalho alheio não pago, sobre a classe produtora. Nesse sentido,  

 a  chave  do  aumento  do  lucro  é  o  aumento  da  parte  não‐paga  do  dia  de trabalho em relação à parte paga, aumento do produto excedente em relação ao produto necessário para  fornecer os meios de subsistência do  trabalhador, ou aumento da taxa de mais‐valia (EATON, 1965, p. 99). 

 Portanto,  a  produção  capitalista  de  mercadorias  corresponde  à 

produção  de  mais‐valor  e  esse  pode  ser  obtido  de  duas  formas.  A primeira forma, denominada de mais‐valor absoluto, é produzida pelo prolongamento  das  jornadas  de  trabalho.  A  segunda  forma, denominada de mais‐valor relativo, decorre da ampliação da produção no mesmo período de  tempo  ou  até mesmo  em  jornadas de  trabalho reduzidas. Cabe, por conseguinte, indagar: Como isso é possível? Como os operários podem produzir mais no mesmo período de tempo?  

Historicamente a burguesia vem utilizando duas principais  formas de  ampliação  da  produtividade.  Uma  forma  é  a  organização racionalizada do processo de produção a qual os operários passam a ser minuciosamente  controlados,  fiscalizados,  rigidamente  disciplinados, cronometrados e vigiados pelos especialistas nessa  função, espécies de “agentes  carcerários  da  produção”  (BRAGA,  2009). Os  horários  para utilização do banheiro, realização de refeições e para saída de fumantes do local da produção vem sofrendo uma significativa diminuição. 

Além dessas  formas,  ainda  existe  o  sistema de multas por  atraso, por destruição de ferramentas, por descuido com as máquinas, etc. Com isso,  a  classe  capitalista  objetiva  evitar  o  desperdício  de  tempo necessário para a produção de mais‐valor, pois “o capital personificado, o  capitalista,  cuida  de  que  o  trabalhador  execute  seu  trabalho ordenadamente e com o grau adequado de intensidade” (MARX, 1985, p. 244).Outra  forma consiste no constante aperfeiçoamento  tecnológico utilizado para o desenvolvimento de máquinas cada vez mais eficientes e  produtivas.  Dessa  forma,  os  capitalistas  garantem  a  ampliação  da produtividade operária. 

John Eaton, em sua obra Manual de economia política (1965), ainda nos apresenta  outra  estratégia  capitalista  que  consiste  na  forma  de pagamento de salários. Segundo ele,  

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as  formas  de  pagamento  de  salários  constituem  uma  batalha  entre  o empregador e os sindicatos. Salário‐tarefa, ou seja, salário pago de acordo com a  produção  proporciona  ao  capitalista  um meio  de  obrigar  o  trabalhador  a fazer  mais  durante  o  dia  de  trabalho,  já  que  disso  depende  quanto  o trabalhador leva para casa. À primeira vista, pode parecer que o pagamento de salários‐tarefa  contradiz  o  que dissemos  anteriormente  sobre  os  salários  e  o valor da  força de  trabalho, como correspondendo aproximadamente ao valor dos meios de subsistência do trabalhador. O pagamento “por peça”, ou seja, de acordo  com  a  produção,  sugere  que  quando  esta  se  eleva,  os  salários  se elevarão  de  forma  correspondente.  Isso  só  ocorre  a  prazo  muito  curto.  A experiência  de  muitas  décadas  mostrou  aos  trabalhadores  que  os  salários‐tarefa são, no  final,  fixados em preços baseados em salário‐tempo, e na soma de artigos que o trabalhador deve comprar para viver. Se a produção aumenta acentuadamente, então o preço pago unitariamente é logo reduzido. O salário‐tarefa de todo um dia de trabalho pode, é certo, ser um pouco mais do que o salário‐tempo do dia, mas a isso se contrapõe o fato de que a maior intensidade de trabalho aumenta as necessidades do trabalhador. Para o capitalista, porém, é  compensador  pagar  pelo  trabalho  executado,  já  que  essa  produção  extra aumenta  o  volume  de  mais‐valia  numa  proporção  que  excede consideravelmente qualquer extra pago em salários (EATON, 1965, p. 101). 

 A pedra angular da luta de classes no capitalismo, conforme já dizia 

Marx,  gira  em  torno  da  disputa  pelo  controle  do  tempo  de  trabalho, pois se de um  lado a burguesia visa ampliar a extração de mais‐valor sobre  o  tempo  de  trabalho  do  proletariado,  esse  visa  diminuí‐lo  e devido  aos  interesses  antagônicos  dessas  classes,  o  processo  de valorização acaba por ser marcado pelo conflito. Por isso, a burguesia se vê  coagida  a  desenvolver  formas  cada  vez mais  eficazes  de  controle sobre  o  trabalho  operário,  enquanto  esse  se  vê  também  coagido  a desenvolver formas de lutas que avancem em direção à diminuição do tempo de trabalho para extração de mais‐valor. Consequentemente, 

 isto  ocorre  devido  ao  fato  de  que  é  no  próprio  processo  de  trabalho, simultaneamente processo de valorização, que se dá a produção de mais‐valor. Desta  forma, o  trabalhador,  ao  resistir  em utilizar  toda  a  sua  capacidade de trabalho, tende a diminuir a extração de mais‐valor. É por isso que surge uma luta nas unidades de produção, em que o capitalista busca controlar a força de trabalho para que ela nãodesperdice  tempo e, por  conseguinte,  faça decair o seu lucro (VIANA, 2009, p. 49). 

 A  determinação  fundamental  da  organização  do  trabalho  na 

sociedade capitalista é a  luta de classes entre burguesia e proletariado, 

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porém  é  necessário  compreender,  de  forma  pormenorizada,  como  se relaciona burguesia e proletariado no processo de produção, como se dá a luta de classes e como a mesma interfere na organização do trabalho e na alteração dos regimes de acumulação.  

O  ser  humano  se  humaniza  ao  realizar  atividades  essencialmente humanas,  interferindo na natureza a partir do  trabalho em cooperação com outros  seres humanos, objetivando, dessa maneira,  reproduzir as condições materiais  da  sua  existência.  Essa  é  a  essência  do  trabalho autônomo, ou seja, a garantia da reprodução do próprio ser e sua auto realização total.Já o trabalho alienado é a negação da essência humana existente  no  trabalho,  pois,  com  a  divisão  social  do  trabalho  e  a instauração do controle do processo de produção pelo não trabalhador, se  institui a  total separação entre o produtor e o produto e com  isso o homem não produz mais as garantias das necessidades humanas, mas sim mercadorias que não lhe pertence (MARX, 2004).  

A afirmação do  capital  realiza‐se na negação do proletariado uma vez que este, no processo de produção, desempenha atividades alheias às  suas  necessidades,  não  atinge  através  de  suas  potencialidades  sua auto  realização  total,  encontra‐se  completamente  separado  dos produtos do seu trabalho e, dessa forma, aliena‐se. Segundo Marx,  

 otrabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar junto a si fora do trabalho e fora de si no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha,  não  está  em  casa. O  seu  trabalho  não  é,  portanto,  voluntário, mas forçado,  trabalho obrigatório. O  trabalho não é, por  isso, a satisfação de uma carência, mas  somente  um meio  para  satisfazer  necessidades  fora  dele.  Sua estranheza evidencia‐se aqui  tão pura que,  tão  logo  inexista coerção  física ou outra qualquer, foge‐se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto sacrifício, de mortificação.  Finalmente,  a  externalidade  do  trabalho  aparece  para  o trabalhador  como  se  não  fosse  seu  próprio, mas  de  outro,  como  se  não  lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a outro (2004, p. 83).  

 Por conta desse caráter alienado do trabalho, o proletariado procura 

incessantemente  encontrar  formas  que  garantam  o  mínimo  da  sua integridade  física  no  trabalho  e  isso  se  evidencia  nas  inúmeras possibilidades e maneiras de  resistência e  luta  contra a exploração do capital. Essas  atitudes de  resistência  ocorrem de diversas  formas,  tais 

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como  as mais  pacíficas  e  camufladas  como  a  “operação  tartaruga”,  o absenteísmo,  o  atraso  nos  locais de  trabalho,  a destruição  de  peças  e ferramentas  que  emperram  o  desenrolar  da  produção,  as  constantes idas ao banheiro e sua demora etc. 

Vale  lembrar  que  a  luta  operária  pelo  controle  e  diminuição  do tempo  de  trabalho  destinado  à  produção  de  mais‐valor  representa apenas o primeiro momento da luta operária, ou seja, essa luta equivale ao momento imediato da luta de classes. Contudo, o interesse histórico do proletariado se funda na tendência em eliminar a existência do mais‐valor na sua totalidade3. Além dessas formas imediatas, as lutas contra a exploração do trabalho tendem a adquirir em momentos de crise e de radicalidade,  uma  postura  mais  nitidamente  política4,  tal  como  é perceptível nos processos de  realização de greves que atingem caráter geral, com a ocupação de fábricas e auto‐organização da produção, no qual o proletariado deixa de ser uma “classe em si” para se tornar uma “classe  para  si”.  Essa  dinâmica  acompanha  o  desenvolvimento capitalista  desde  o  seu  nascimento  até  os  dias  atuais  e  inúmeros exemplos  históricos  poderiam  ser  citados: As  revoluções  de  1848  na Europa, a Comuna de Paris em 1871, as experiências russas a partir dos sovietes  em  1905  e  1917,  a  revolução  alemã  nas  décadas  de  1920,  a ocupação  de  fábricas  na  Argentina  do  final  da  década  de  1990  até 

3 “Quais são os interesses históricos do proletariado? Abolir a relação‐capital, ou seja, as relações de produção capitalistas, o que significa abolir a classe capitalista, a si mesmo enquanto  classe  e  a  todas  as  demais  classes.  Mas  os  interesses  históricos  do proletariado não se limitam a esse trabalho destrutivo, pois, ao mesmo tempo em que deve  abolir o modo de produção  capitalista,  ele deve  construir um novo modo de produção.  O  processo  de  destruição  é,  aqui,  ao  mesmo  tempo,  um  processo  de construção.  E  como  podemos  apreender  esse  processo  de  construção,  ou  seja,  a formação  de  um  novo modo  de  produção.  Isto  só  pode  ser  descoberto  através  da experiência histórica do movimento operário. Portanto, a compreensão do modo de produção capitalista em sua historicidade e a prática histórica da classe operária é o que nos permite descobrir quais são os  interesses históricos desta classe. São destes interesses históricos que derivam os interesses imediatos” (VIANA, 2008, p. 87). 

4O  termo política  empregado  aqui  é derivado da  idéia de  luta de  classes  em  sentido amplo  e  não  no  sentido  comumente  adotado  que  resume  a  luta  política  às  lutas parlamentares, eleitorais ou através de golpe armado visando à conquista do Estado. Uma vez que, para Marx, o fundamental para a compreensão de uma sociedade são suas  relações de produção,  logo  este  é por  essência o  local privilegiado da  luta de classes e todas as demais lutas políticas derivam daí. 

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aproximadamente  2004  e  assim  por  diante.  Essa  é  uma  tendência intrínseca ao modo de produção capitalista.  

Um amplo debate sociológico  já existe em torno dessa mudança de postura  do  proletariado,  porém  não  é  nosso  interesse  resgatar  tal debate,  mas  tão  somente  apresentá‐lo  segundo  a  perspectiva  do proletariado,  ou  seja,  procurando  compreender  quem  é  essa  classe social, como se relaciona com a sociedade capitalista e como enxerga tal sociedade  a  partir  da  experiência  que  mantém  com  a  mesma.  Em síntese,  “essa perspectiva,  segundo Marx, marcaria  a unidade  entre  o que é visto e a forma como se vê” (Viana, 2007, p. 75).  

A  análise  que Marx  realiza  sobre  o proletariado  consiste  em uma análise sobre a ontologia do proletariado, sobre sua essência e não sua aparência.  Sendo  assim,  é  possível  encontrar  na  teoria  de Marx  uma análise  sobre  o  ser‐do‐proletariado,  conforme  explicitado  na  seguinte passagem: “não se trata de saber que objetivo este ou aquele proletário, ou até o proletariado inteiro, tem momentaneamente. Trata‐se de saber o que é o proletariado e o que ele será historicamente obrigado a fazer de acordo com este ser” (Marx & Engels, 1979, p. 55). 

Nesse  sentido,  a  resistência  implementada  pelo  proletariado  não visa  apenas  adquirir,  de  imediato, melhores  condições  de  trabalho  e vida, mas,  também,  a  abolição do  trabalho  alienado  e da  extração de mais‐valor  que  é  seu  fundamento.  Nesse  processo  histórico  de enfrentamento o proletariado forma sua consciência de classe ao negar o trabalho alienado e a consciência heterodeterminada derivada dele, e busca afirmar na prática (trabalho autônomo) e, consequentemente, na consciência,  sua  autodeterminação.  Portanto,  constrói  suas  estratégias de  lutas, abandona estratégias ultrapassadas e forja novos mecanismos de  resistência  e  avanço  da  luta  em  direção  à  construção  daquilo  que Marx denominou de “livre associação de produtores”.   

A  luta  de  classes  entre  burguesia  e  proletariado,  assim  como  a produção de mais‐valor, representa dois dos principais fundamentos do modo  de  produção  capitalista.  O  processo  de  trabalho  na  sociedade capitalista é marcado por duas características centrais que consistem no fato do proletariado  trabalhar  sobre o  controle da burguesia  (trabalho heterogerido) que comprou sua força de trabalho e o fato do produto do trabalho  ser  apropriado  pela  burguesia,  via  extração  de  mais‐valor. 

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Percebe‐se  então  que  o  trabalho  é  processo  de  valorização  (MARX, 1985).  

A  luta  de  classes  no  processo  de  produção  é  mediada  por  um conjunto de relações que existem tanto dentro quanto fora do processo diretamente produtivo. Tal  luta em  torno do processo de produção de mais‐valor  é  a  determinação  fundamental  do  enfrentamento  entre  a classe  capitalista  e  a  classe  operária  no  processo  de  produção  de mercadorias  (VIANA,  2009).  No  entanto,  esse  enfrentamento  se expande para outras esferas das relações sociais. Basta percebermos que o conflito que se  inicia no século XIX entre capitalistas e operários em torno da diminuição da jornada de trabalho operária (aproximadamente de  16  horas  diárias)  resulta  numa  alteração  jurídico‐institucional  que possibilita sua redução para 10 horas diárias e, posteriormente, 08 horas diárias. É nesse contexto que se  inicia a  reação burguesa para evitar a redução  da  taxa  de  mais‐valor,  respondendo  com  a  “organização científica  do  trabalho”  elaborada  por  Friedrich  Taylor  em  sua  obra Princípios da Administração Científica (1987). 

É  importante  destacar  que  burguesia  e  proletariado  compõem  as classes sociais fundamentais do modo de produção capitalista, mas que, no entanto, coexistem outras classes sociais que,  inclusive, derivam da complexa  relação que  se estabelece entre essas classes  fundamentais e da luta de classes no processo de produção. Uma dessas classes sociais, e que é objeto central desse estudo, é o lumpemproletariado. Conclui‐se que  o modo  de  produção  capitalista  engendra  tanto  um  processo  de proletarização quanto um processo de lumpemproletarização, ou, como prefere  Offe,  uma  proletarização  ativa  e  uma  proletarização  passiva (OFFE,  1984).  É  sobre  a  dinâmica  formadora  do  lumpemproletariado que, a partir de agora, prestaremos nossa análise. 

 2.1.2 O processo de lumpemproletarização

 Para compreender a formação do lumpemproletariado no regime de 

acumulação  extensivo5,  recorreremos,  fundamentalmente,  à  análise de 

5 “Predominante desde a revolução industrial até o final do século XIX, caracterizava‐se pelo  predomínio  da  extração  de  mais‐valor  absoluto,  pelo  Estado  liberal  e  pelo neocolonialismo” (VIANA, 2009, p. 95). 

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Marx contida na sua obra O Capital, vol. 2 (1985a). No capítulo XXIII do volume  2  de  O  Capital  ‐  A  lei  geral  da  acumulação  capitalista  ‐ Marx procurou  demonstrar  que  no  processo  capitalista  de  produção  de mercadorias  há  uma  tendência  em  promover  uma  acumulação ampliada de  capital por um  lado  e por outro  lado, há,  também, uma tendência simultânea em promover o crescimento ampliado da miséria da classe trabalhadora. Segundo ele,  

 a  acumulação  de  riqueza  num  pólo  é,  portanto,  ao  mesmo  tempo,  a acumulação  de  miséria,  tormento  de  trabalho,  escravidão,  ignorância, brutalização e degradação moral no pólo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital (MARX, 1985a, p. 210). 

 A  discussão  teórica  que  Karl Marx  realiza  nesse  capítulo,  busca 

compreender a lei geral da acumulação capitalista, suas tendências e contra tendências. Aqui ela será utilizada para pensar o processo histórico de formação  do  lumpemproletariado  e  sua  dinâmica  no  regime  de acumulação extensivo. Para isso, analisaremos o lumpemproletariado à luz de uma teoria das classes sociais, considerando‐o uma classe social composta pela totalidade do exército industrial de reserva. Desse modo, o  conceito  de  lumpemproletariado  equivale  à  classe  social  formada pelos indivíduos que se encontram marginalizados na divisão social do trabalho e alijados do mercado de consumo, e que compõem os setores mais empobrecidos de desempregados, mendigos, sem‐teto, prostitutas, delinquentes, subempregados etc. da sociedade capitalista. 

Sendo  assim,  nossa  análise  se  distancia  de  algumas  análises dominantes  e  presentes  nos  discursos  acadêmicos  e  científicos  que busca compreender a sociedade a partir de uma dualidade abstrata que afirma a existência dos incluídos/excluídos sociais e que, no fundo, não consegue  explicar muita  coisa,  pelo  contrário,  obscurece  a  totalidade das relações sociais ao ocultar toda a complexidade envolta no processo de lumpemproletarização que acompanha o desenvolvimento histórico de produção e reprodução do capitalismo e de suas classes sociais.  

Nesse primeiro momento, o objetivo é resgatar a discussão realizada por  Karl  Marx  sobre  o  processo  de  acumulação  de  capital  e  sua dinâmica  geradora  de  uma  superpopulação  relativa  ou  do lumpemproletariado.  Na  primeira  parte  deste  capítulo  intitulada 

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Demanda  crescente  da  força  de  trabalho  com  a  acumulação,  com  composição constante  do  capital,  o  autor  já  apresenta  o  assunto  geral  da  sua discussão,  ou  seja,  da  influência  que  o  crescimento  do  capital  exerce sobre  o  destino  da  classe  trabalhadora.  Marx  considera  que  a composição do capital e  suas modificações constituem os  fatores mais importantes nessa investigação.  

Intentando melhor compreender essa análise, trilharemos o mesmo caminho do autor, reconstituindo seu pensamento. De acordo com ele, a composição  do  capital  deve  ser  entendida  a  partir  de  uma  dupla perspectiva: primeiramente ele faz uma análise da perspectiva do valor na  qual  afirma  que  a  composição  orgânica  do  capital  é  determinada pela proporção  em que  ele  se  reparte  em  capital  constante  (valor dos meios de produção) e capital variável (valor da força de trabalho), soma global  dos  salários.  Posteriormente,  ele  apresenta  a  perspectiva  da matéria,  ou  seja,  como  ela  funciona  no  processo  de  produção. Nessa análise Marx afirma que cada capital se reparte em meios de produção (composição  valor)  e  força  de  trabalho  viva  (composição técnica)(MARX, 1985a). 

A produção de capital é  formada por dois componentes existentes no  processo  de  produção  denominado  de  trabalho  morto  (matéria‐prima, maquinaria e  tecnologia em geral) e  trabalho vivo que consiste na  força de  trabalho operária. Como vimos anteriormente, o primeiro não tem capacidade de gerar valor e apenas repassa seus custos durante o processo produtivo,  já o segundo é a única força geradora de capital, ou  seja,  acrescenta  à mercadoria mais  do  que  o  valor  gasto  na  sua produção. Por  isso esse capital extra é denominado mais‐valor. Sendo assim, após um ciclo gerador de mais‐valor, a burguesia tende a aplicar parte  desse  na  expansão  da  produção  o  que  implica  necessidade  de ampliação  do  mercado  consumidor  e  maior  demanda  por  força  de trabalho.  

Nesse sentido, o  

crescimento do capital implica crescimento de sua parcela variável convertida em  força  de  trabalho.  Uma  parcela  da mais‐valia  transformada  em  capital adicional  precisa  ser  sempre  retransformada  em  capital  variável  ou  fundo adicional de trabalho (MARX, 1985a, p. 187).  

 

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No século XIX, com o passar dos anos o número de  trabalhadores ocupados cresceu em relação aos anos anteriores e com  isso chegou‐se ao ponto das necessidades da acumulação crescer além da costumeira oferta de trabalho e assim tendeu a ocorrer um aumento salarial. Porém, independentemente,  do  aumento  salarial  e  da  geração  de  condições mais favoráveis para a classe operária e sua multiplicação, isso em nada modificou o caráter básico da produção capitalista. Em outras palavras, a  exploração do proletariado  em  sua  totalidade mantém‐se  a mesma, visto que  essa  exploração  revela‐se na  extração de mais‐valor  (sua  lei absoluta) e não no preço do salário, seja ele qual for. É válido ressaltar que o  aumento  salarial  implica  apenas na diminuição quantitativa de trabalho  não  pago  (mais‐valor)  que  o  trabalhador  “concede”  ao capitalista, no entanto, “essa diminuição nunca pode ir até o ponto em 

que  ela  ameace  o  próprio  sistema”  (MARX,  1985a,  p.  192).  A acumulação capitalista promove na mesma escala a ampliação da classe trabalhadora, visto que 

 a reprodução da força de trabalho, que  incessantemente precisa  incorporar‐se ao  capital  como  meio  de  valorização,  não  podendo  livrar‐se  dele  e  cuja subordinação ao capital só é velada pela mudança dos capitalistas individuais a  que  se  vende  constitui  de  fato  um  momento  da  própria  reprodução  do capital.  Acumulação  do  capital  é,  portanto,  multiplicação  do  proletariado (MARX, 1985a, p. 188).  

 Marx demonstra que esse processo, no entanto,  tende a promover 

um decréscimo na acumulação. Isso significa que a partir do momento em  que  ocorre  uma  diminuição  na  acumulação,  ocorre,  do  mesmo modo, uma diminuição da necessidade por força de trabalho, ou seja, a desproporção  que  existia  entre  capital  e  força de  trabalho  ‐  razão  do aumento salarial  ‐ desaparece  (momentaneamente) e assim o processo de  acumulação  capitalista  elimina  seus  próprios  obstáculos.  Logo,  o salário  volta  a  decrescer. Adverte‐se,  no  entanto,  que  até  aqui Marx analisava somente uma fase particular desse processo, ou seja, “aquela em  que  o  crescimento  adicional  de  capital  ocorre  com  composição técnica  do  capital  constante.  Mas  o  processo  ultrapassa  essa  fase” (MARX, 1985a, 193).  

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O crescimento absoluto do capital durante seu transcurso histórico é reflexo  da  sua  capacidade  de  ampliar  o  desenvolvimento  da produtividade do trabalho social tornando‐a sua principal alavanca de acumulação. A principal expressão desse crescente desenvolvimento da produtividade do  trabalho  advém do  volume  crescente dos meios de produção  em  comparação  com  a  força  de  trabalho,  ou  seja,  “no decréscimo da grandeza do fator subjetivo do processo de trabalho, em comparação com seus  fatores objetivos”  (MARX, 1985a, p. 194). Nesse momento Marx  já está tratando da mudança que a composição técnica do capital (força de trabalho viva) sofre no decurso do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Se na primeira fase de acumulação a multiplicação  do  capital  representava  multiplicação  do  proletariado, agora essa relação tende a se inverter, pois 

 essa mudança na composição  técnica do capital, o crescimento da massa dos meios de produção, comparada à massa da  força de  trabalho que os vivifica, reflete‐se em sua composição em valor, no acréscimo da componente constante do valor do capital à custa de sua componente variável (MARX, 1985, p. 194). 

 Aqui  já  é  possível  perceber  que  no  processo  de  desenvolvimento 

capitalista,  a  parte  do  mais‐valor  reconvertida  na  ampliação  da produção via aumento do trabalho morto (maquinaria e tecnologia em geral)  tende  a  ultrapassar  significativamente  o  trabalho  vivo  ou  o componente  variável  do  capital  orgânico  (força  de  trabalho)  e, consequentemente,  diminui  a  demanda  por  força  de  trabalho aumentando o desemprego. Portanto,  

 esse movimento  no  sentido  de  acrescer  a  parte  das máquinas  em  relação  à força‐de‐trabalho, a aumentar a produtividade do trabalho, tende a diminuir a intensidade  da  demanda  de  força‐de‐trabalho  pelos  capitalistas,  tende,  por conseguinte, a  criar desemprego, no  caso em que oferta de  força‐de‐trabalho pelos  trabalhadores  diminua  também.  O  progresso  técnico,  realizado  em condições capitalista de produção, é assim um fator de expulsão de empregos pelo capital (SALAMA & VALIER, 1975, p. 86).  

 Com  essa mudança  o  capitalismo  contrai  uma  tendência  a  tornar 

supérflua  ou  subsidiária  uma  parcela  populacional  significativa  da classe  trabalhadora  que  passa  a  ampliar  o  lumpemproletariado. Vejamos melhor esse processo.  

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 Inicialmente  a  acumulação  de  capital  aparece  apenas  como  uma ampliação  quantitativa,  porém,  percebe‐se  que  ela  realiza‐se  também numa  alteração  qualitativa  ininterrupta  de  sua  composição  com ampliação  crescente  dos meios  de  produção,  tais  como maquinaria  e tecnologia  em  geral,  em  detrimento  da  força  de  trabalho  empregada numa velocidade infinitamente maior do que a anteriormente existente. O resultado dessa alteração qualitativa apresenta‐se da seguinte forma:  

 a acumulação capitalista produz constantemente – e  isso em proporção à sua energia  e  às  suas  dimensões  ‐  uma  população  trabalhadora  adicional relativamente supérflua ou subsidiária, ao menos concernentes às necessidades de aproveitamento por parte do capital (...) A população trabalhadora produz, portanto, em volume crescente, os meios de sua própria redundância relativa. Essa é uma  lei populacional peculiar ao modo de produção capitalista, assim como, de  fato, cada modo de produção histórico  tem  suas  leis populacionais particulares, historicamente válidas (MARX, 1985, p. 199‐200).  

 Marx  denominou  essa  população  trabalhadora  supérflua  de 

“superpopulação relativa” e a compreendeu como parte imprescindível do funcionamento do modo de produção capitalista, pois 

 ela  constitui  um  exército  industrial  de  reserva  disponível,  que  pertence  ao capital  de maneira  tão  absoluta,  como  se  ele  o  tivesse  criado  à  sua  própria custa. Ela proporciona às suas mutáveis necessidades de valorização o material humano  sempre  pronto  para  ser  explorado,  independente  dos  limites  do verdadeiro acréscimo populacional (MARX, 1985, p. 200).  

 Além da função de mão‐de‐obra disponível para as necessidades do 

capital,  porém  nem  sempre  utilizada,  e  em  grande  quantidade  na reserva, o exército  industrial de reserva cumpre outra função essencial no  capitalismo  que  é  a  de  pressionar  os  salários  para  baixo.  Ele transforma‐se,  assim,  numa  das  principais  alavancas  da  acumulação capitalista uma  vez  que  a  oscilação dos  salários passa  a  ser  regulada pelo  movimento  de  expansão  e  contração  desse  contingente populacional formado pelo exército  industrial de reserva. Ao contrário da  ideologia  populacional  malthusiana6  que  possui  uma  concepção 

6“A lei da população de Malthus se fundamenta na relação entre ‘meios de subsistência’ e  ‘aumento populacional’  (e  isto gera  sua  explicação  sobre  as  causas da  fome  e da miséria).  Segundo Malthus,  a  população  cresce  em  progressão  geométrica  (2,  4,  8, 

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abstrata  e  ligada  aos  interesses  de  classe  da  burguesia,  a  teoria  da população em Marx busca analisar a dinâmica populacional no interior do modo de produção capitalista, pois 

 a dinâmica  populacional  não  pode  ser  compreendida  se  extraída,  arrancada para fora, do conjunto das relações sociais nas quais emerge. Este pressuposto metodológico  será  seguido  por Marx  na  sua  teoria da  população,  que  é,  na verdade,  uma  teoria  da  dinâmica  populacional  sob  o  capitalismo  (VIANA, 2006, p.1011).  

 Segundo Marx,  o  exército  industrial  de  reserva  existe  em  diversas 

ocasiões possíveis e todo trabalhador o compõe durante todo o tempo em que está desempregado parcial ou  inteiramente. Esse exército de  reserva ou superpopulação relativa possui três formas: líquida, latente e estagnada. Nos grandes centros industriais modernos do século XIX os trabalhadores constantemente eram ora repelidos, ora atraídos em maior proporção. Isso ocorre de  tal  forma que, mesmo em proporção decrescente em  relação à ampliação  da  produção,  o  número  de  trabalhadores  ocupados  crescia. Nesse caso a superpopulação existe em forma líquida (fluente).  

É certo que a acumulação capitalista exige um número crescente de força de  trabalho, porém em proporção cada vez menor em relação ao capital constante. Por isso a indústria necessita de trabalhadores até sua idade adulta, todavia atingida tal idade o trabalhador se encontrava de tal forma exaurido que somente uma pequena parcela continuava sendo empregada  enquanto maior parte  é demitida, pois  “está  constitui um elemento  da  superpopulação  fluente,  que  cresce  com  o  tamanho  da indústria.  Parte  emigra  e,  de  fato,  apenas  segue  atrás  o  capital emigrante” (Marx, 1985, p. 207). Portanto, o capital necessita de massas maiores de trabalhadores em  idade  jovem e massas menores em  idade adulta. Por conta dessa  realidade é que mesmo existindo uma grande parcela  da  população  desocupada  havia  milhares  de  queixas reclamando a necessidade de braços para o trabalho. É preciso lembrar que  além  da  baixa  expectativa  de  vida  entre  os  trabalhadores,  o 

16...)  e  a  produção  de  alimentos  (meios  de  subsistência)  em  progressão  aritmética (1,2,3,4...), o que geraria a escassez, a fome. Marx é um severo crítico dessa concepção, opondo‐lhe  tanto  a  questão  metodológica  quanto  os  seus  equívocos  teóricos derivados de  sua  concepção metafísica,  ligada a determinados  interesses de  classe” (VIANA, 2006, p. 1011).  

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desgaste  da  força  de  trabalho  era  tão  grande  que mal  o  trabalhador atinge a idade mediana “ele cai nas fileiras dos excedentes ou passa de um escalão mais alto para um mais baixo”. A solução encontrada pelo capital  para  esse  problema  era  a  promoção  de  casamentos  precoces entre  a  classe  trabalhadora  e  a  premiação  para  as  famílias  que oferecessem seus filhos para a exploração.  

A  segunda  forma de  superpopulação  relativa  ‐  latente  ‐  apontada por Marx é proveniente da consolidação do capitalismo na agricultura e que  tende a promover uma demanda decrescente absoluta de força de trabalho.  Deste  modo,  a  população  trabalhadora  rural  sofre  uma repulsão não acompanhada de maior atração e, consequentemente,  

 parte da população rural encontra‐se, por isso, continuamente na iminência de transferir‐se  para  o  proletariado  urbano  ou  manufatureiro  e  à  espreita  de circunstâncias  favoráveis  a  essa  transferência. Essa  fonte da  superpopulação flui,  portanto,  continuamente.  Mas  seu  fluxo  constante  para  as  cidades pressupõe  uma  contínua  superpopulação  latente  no  próprio  campo,  cujo volume  só  se  torna  visível  assim  que  os  canais  de  escoamento  se  abalam excepcionalmente de modo amplo. O  trabalhador rural é, por  isso, rebaixado para o mínimo do salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo (MARX, 1985, p. 207‐208).  

 A  terceira  forma  de  superpopulação  relativa  denominada  de 

estagnada é composta por parcela do exército ativo de trabalhadores, no entanto ocupada de forma bastante irregular. Essa categoria fornece ao capital fonte inesgotável de força de trabalho “disposta” a ser explorada uma vez que  sua condição de vida encontra‐se muito abaixo do nível normal  médio  da  classe  trabalhadora  e  que,  portanto,  faz  dessa população  uma  “[...]  base  ampla para  certos  ramos de  exploração do capital. É caracterizada pelo máximo do tempo de serviço e mínimo de salário [...] Seu volume se expande na medida em que, com o volume e a energia da acumulação, avança a ‘produção da redundância’” (MARX, 1985, p. 208).  

Finalmente a camada mais miserável da superpopulação  relativa e que reside na desgraça do pauperismo. Conforme afirma Bellon,  

 o último resíduo da superpopulação relativa habita o  inferno do pauperismo. Abstraindo dos vagabundos, dos criminosos, das prostitutas, dos mendigos e de  todo esse mundo a que  se chama as classes perigosas, esta camada  social 

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compõe‐se de três categorias: os desempregados capazes de trabalhar; os filhos dos  órfãos;  enfim  as  vítimas  da  indústria:  doentes  estropiados,  viúvas, trabalhadores idosos e trabalhadores desqualificados (1975, p. 44).  

 Portanto, aqui  reside a  lei geral da acumulação  capitalista: quanto 

maior a riqueza social e a grandeza absoluta do proletariado e sua força produtiva,  tanto maior  o  exército  industrial  de  reserva  ou,  conforme definido por nós, o lumpemproletariado. Nesse sentido, portanto,  

 quanto  maior,  finalmente,  a  camada  lazarenta  da  classe  trabalhadora  e  o exército  industrial de  reserva,  tanto maior o pauperismo oficial. “Essa é a  lei absoluta  geral  da  acumulação  capitalista.  Como  todas  as  outras  leis,  é modificada em sua realização por variadas circunstâncias”  (MARX, 1985, p. 209).  

 Ao  encerrar  o  resgate  da  análise  de  Marx  sobre  A  lei  geral  da 

acumulação capitalista concluímos que essa análise corrobora a afirmação e percepção que  esse  autor possuía desde  o  início dos  seus  trabalhos germinais, escritos em Paris em 1844, e que em determinado momento assim protestava:  

 o  trabalhador se  torna  tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais  a  sua produção  aumenta  em poder  e  extensão. O  trabalhador  se  torna uma  mercadoria  tão  mais  barata  quanto  mais  mercadorias  cria.  Com  a valorização  do  mundo  das  coisas  aumenta  em  proporção  direta  a desvalorização  do  mundo  dos  homens.  O  trabalho  não  produz  somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral (MARX, 2004, p. 80).  

 O  conceito  de  lei  a  que  se  refere Karl Marx  no XXIII  capítulo  do 

volume  2  de  O  Capital  deve  ser  entendido  aqui  como  equivalente  a tendência.  Nesse  sentido,  sua  reflexão  aponta  para  uma  tendência existente  no  capitalismo  de  gerar  tanto  riqueza,  quanto  miséria  em proporções  diretas  ao  avanço  das  potencialidades  produtivas.  Isto significa que o lumpemproletariado é resultado da própria dinâmica do modo de produção capitalista e que, portanto, essa classe social, assim como  suas  classes  fundamentais  ‐  a  burguesia  e  o  proletariado  ‐  são intrínsecas a esse modo de produção. 

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Antes de  iniciarmos a discussão do próximo subtítulo gostaríamos de  melhor  explicitar  nosso  debate  acerca  do  lumpemproletariado enquanto classe social. Apesar de Marx não ter promovido uma análise pormenorizada do lumpemproletariado, do mesmo modo como ele não elaborou de  forma  sistematizada uma  teoria das  classes  sociais, ainda sim é possível encontrar ao longo de sua vasta obra elementos que nos possibilitem recuperar alguns pontos essenciais para a reconstrução de uma  teoria  das  classes  sociais  em  Karl  Marx.  O  próprio lumpemproletariado  em  diversos  momentos  e  obras  discutidas  por Marx7  aparece  como  compondo  uma  classe  social.  No  entanto  tal aparecimento  não  ocorre  de  forma  aprofundada  e  teorizada sistematicamente (VIANA, 2011).  

Aliado à falta de uma teoria explícita das classes sociais na obra de Marx,  outro  problema  nos  impossibilita  de  recorrer  completamente  a esse  autor  para  compreender  o  lumpemproletariado  no  capitalismo contemporâneo. O  principal  problema,  nesse  caso,  seria  o  que Viana denomina  de  senectudes,  ou  seja,  “os  aspectos  inatuais  devido  às mudanças históricas, nas quais as mudanças nas relações de produção e desenvolvimento  capitalista  promoveram  emergência  e  alteração  na divisão de classes e no interior delas [...]” (VIANA, 2011, p. 08).  

Sendo assim, não é possível analisar o lumpemproletariado somente a partir do que Marx escreveu, pois devido a tais senectudes e limites das próprias análises  realizadas por ele  sobre essa  classe  social,  torna‐se de extrema  importância  ressignificar  o  conceito  de  lumpemproletariado para  que  esse  dê  conta  da  realidade  concreta  na  contemporaneidade. Nossos  esforços  caminham  nesse  sentido  e  seguem  as  contribuições realizadas por Viana na sua obra A teoria das classes sociais em Karl Marx (2011).  

Em  nossa  análise,  o  lumpemproletariado  é  ressignificado  na contemporaneidade a partir de uma teoria marxista das classes sociais. 

7 Para constatar o que aqui está sendo afirmado, basta recorrer às análises realizadas por Marx sobre o lumpemproletariado e perceber que as mesmas estão inseridas em uma discussão mais ampla sobre as classes sociais e suas  lutas. Logo, é possível perceber que o lumpemproletariado entra nessa discussão enquanto uma dessas classes sociais envolvida na dinâmica da luta de classes. Para isso ver as seguintes obras de Marx: O Manifesto comunista (1998); O dezoito brumário (1997); As lutas de classes na França – de 1848 a 1850 (2008). 

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No entanto, não ficamos presos à análise que Karl Marx realiza sobre o lumpemproletariado,  o  que  não  significa  que  abandonamos  as contribuições desse autor para pensar tal classe social, mas tão somente que  procuramos  ir  além  dele  sem  necessariamente  abandoná‐lo.  Em outras palavras, utilizamos as contribuições existentes ao  longo de sua vasta  obra  para  pensar  o  conceito  de  classes  sociais.  Dessa  forma, afirmamos  que  o  lumpemproletariado  é  composto  pela  totalidade  do exército  industrial  de  reserva  (desempregados,  subempregados, mendigos,  sem‐teto,  prostitutas  etc.)  uma  vez  que  os  indivíduos  que compõem  essa  totalidade  possuem  características  em  comum  e  que possibilitam  sua  definição  como  classe,  da  mesma  forma  divisões apontadas  pelo  conceito  de  frações  de  classe. Assim  como  as  demais classes sociais do capitalismo, é o seu modo de vida que possibilita sua unificação  como  classe. No  entanto,  ao  contrário  das  demais  classes sociais que são unificadas a partir da sua posição na divisão social do trabalho capitalista, o  lumpemproletariado se unifica pela condição de marginalidade na divisão social do trabalho e tal condição o torna uma classe social (VIANA, 2012). 

Como já foi dito, nenhum indivíduo encontra‐se fora da divisão das classes  sociais,  isto  é,  todos  os  indivíduos  pertencem  à  determinada classe social. Sendo assim, resta então responder as seguintes questões: A que classe social pertencem aqueles que se encontram marginalizados da  divisão  social  do  trabalho,  ou  seja,  a  que  classe  social  pertencem desempregados, subempregados, sem‐tetos, mendigos, prostitutas etc.? Uma vez que os termos exército industrial de reserva e superpopulação relativa  não  expressam  nenhuma  classe  social,  torna‐se  necessário encontrar  a  classe  social  na  qual  a  totalidade  desse  exército  e  dessa superpopulação  pertence.  Segundo  nossa  análise,  tal  classe  social  é  o lumpemproletariado e o que nos possibilita essa afirmação é o  fato de que  toda  essa  gama  heterogênea  de  frações  de  classe  que  compõe  o lumpemproletariado  pode  ser  unificada  em  torno  de  um  elemento comum a todas elas: a condição de marginalidade na divisão social do trabalho.  

Trata‐se  de  um  grande  equívoco  considerar  os  desempregados como  pertencentes  à  classe  trabalhadora  conforme  fazem  diversos 

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teóricos8. Esse é o caso da autora Maria Lucia Lopes da Silva que em sua obra Trabalho e população em situação de rua no Brasil considera que  

 os  desempregados  de  longa  duração  e  a  população  em  situação  de  ruanão constituem  uma  classe  isoladamente.  Mas  é  certo  também  que  têm  uma vinculação de classe. A não propriedade de meios de produção e a subsistência pela venda de sua  força de  trabalho são condições que os caracterizam como parcelas da classe trabalhadora, embora, na situação em que se encontram, não estejam conseguindo  realizar nem a venda da sua  força de  trabalho  (2009, p. 129‐130). 

 Ora,  como  alguém  pode  pertencer  à  classe  trabalhadora  ou  ao 

proletariado,  como  nós  preferimos  denominar  os  trabalhadores  que produzem  mais‐valor,  sem  estar  empregada  em  alguma  atividade laboral,  sem  produzir  mais‐valor?  Para  nós,  os  indivíduos  antes pertencentes  à  classe  trabalhadora  em  geral  ou  ao  proletariado compõem o  lumpemproletariado durante  todo o  tempo  em que  estão desempregados parcial ou  inteiramente,  independente do período  em que se encontram nessa condição, seja uma semana, um mês, um ano ou o tempo que for.  

 Formação e desenvolvimento do lumpemproletariado

 Com o propósito de responder a um dos problemas centrais desse 

trabalho,  ou  seja,  as  determinações  da  expansão  do lumpemproletariado  na  contemporaneidade,  analisaremos, primeiramente,  a  formação  e  desenvolvimento  dessa  classe  social  no regime de acumulação extensivo para, no próximo capítulo, analisar as multiplicidades  de  determinações  que  envolvem  a  expansão  dessa classe no regime de acumulação integral e suas consequências, tanto no 

8  Alguns  casos  são  ilustrativos  dessa  interpretação.  Recentemente  em  uma  mesa‐redonda  ocorrida durante  o  I  Simpósio Trabalhadores  e  a Produção  Social, promovido pelo Centro de Memória Operária (CEMOP), entre os dias 19 a 21 de outubro de 2011, na  cidade  de  Sumaré/SP,  todos  os  palestrantes  (Andréia  Galvão/UNICAMP,  Jair Pinheiro/UNESP,  Maria  Orlanda/UNESP,  Marcelo  Badarós/UFF)  deram  a  mesma resposta  à minha  pergunta  que  questionava  se  os  desempregados  argentinos  que compunham  o movimento  piquetero  eram membros  da  classe  trabalhadora  ou  do lumpemproletariado?  A  resposta  foi  que  tais  desempregados  pertenciam  à  classe trabalhadora. 

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capitalismo  imperialista  quanto  no  capitalismo  subordinado (especificamente na Argentina e no último capítulo no Brasil).  

Dessa  forma, objetivamos apreender as mudanças e permanências, tanto formais, quanto essenciais, das  tendências histórico‐sociais que o lumpemproletariado  possui  na  contemporaneidade.  Para  isso, analisaremos o  lumpemproletariado enquanto uma classe social que é determinada historicamente e que, portanto, seu comportamento social e político tende a ser determinado de forma diferenciada em contextos históricos  distintos.  Por  conseguinte,  o  lumpemproletariado  e  suas tendências  não  serão  tratados  aqui  de  forma  estanque,  como  se possuísse uma  essência  no  seu  ser‐de‐classe  que  sempre  o  coagisse  a adotar posturas políticas conservadoras e reacionárias, estando passivo de  ser  frequentemente  cooptado  como  sugere diversos  teóricos  que  o analisaram (GUIMARÃES, 2008; FREITAS, 2010). 

A transformação de dinheiro, mercadorias, meios de produção e de subsistência em capital só pode ocorrer em determinadas circunstâncias que se apresenta da seguinte maneira. A existência no mercado de duas espécies de  possuidores de mercadorias  é  essencial,  pois  de  um  lado estão os possuidores de dinheiro, meios de produção  e  subsistência  e que  tem como  finalidade valorizar o montante de dinheiro que possui através  da  compra  de  força  de  trabalho  alheia,  do  outro  lado “trabalhadores  livres”  dispostos  a  venderem  sua  única mercadoria,  a força de  trabalho  (MARX,  1985a). “Com  essa polarização do mercado estão  dadas  as  condições  fundamentais  da  produção  capitalista” (MARX, 1985a, p. 262). 

 Para  os  nossos  intentos  cabe  indagar:  qual  é  a  origem  desses indivíduos possuidores unicamente da mercadoria força de trabalho na sociedade capitalista? Na sociedade capitalista que emerge a partir daí, todos os indivíduos “dispostos” a venderem sua força‐de‐trabalho terão a venda da sua mercadoria garantida nesse mercado? Ou uma parcela significativa  desses  indivíduos  irá  compor  outra  classe  social  e contribuirão  com  o  processo  de  produção  capitalista  de  outras maneiras,  assim  como  podem,  enquanto  classe,  contribuir  com  sua destruição?  E  dessa  forma  podemos,  então,  acreditar  que  tal  classe pertence  à modernidade  e,  consequentemente,  só  poderá  ser  abolida com a abolição do capitalismo? 

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A partir do  final da  segunda metade do  século XIV  a  servidão  se encontra  praticamente  abolida  na  Inglaterra.  O  grosso  da  população rural  inglesa  era  constituído  nessa  época,  e  principalmente  no  século XV, de camponeses  livres e economicamente autônomos, que nos seus momentos livres trocavam sua força de trabalho por um assalariamento nas  grandes  propriedades  fundiárias.  Além  dos  salários  esses camponeses  recebiam  um  terreno  arável  de  aproximadamente  quatro acres e possuíam o direito de usufruir das propriedades comunais, nas quais  criavam  seu  gado  e  extraíam  os  elementos  necessários  para aquecer seus lares e preparar seus alimentos, tais como a lenha e a turfa. 

O  desenvolvimento  dos  grandes  centros  industriais  ingleses, juntamente  com  o  crescimento  paulatino  da  sua  população,  está diretamente  relacionado  com  as  grandes  transformações  que  veio ocorrendo, desde aproximadamente o século XIV até o século XVIII, na propriedade da terra. De forma geral, esse processo ficou denominado de  cercamentos  (enclosures)9  e  foi  caracterizado  por  uma  intensa  e violenta onda de desapropriação camponesa de suas propriedades e das terras comunais, acompanhada da expulsão de milhares de camponeses para as nascentes cidades.  

Em diversos momentos em toda a história  inglesa desse período, a população  camponesa  foi  violentamente  desapropriada  e  obrigada  a migrar  para  os  grandes  centros  urbanos  industriais. Dessa  forma  era fornecido  à  indústria  capitalista  aquilo  que  ela  necessitava  para transformar dinheiro, maquinaria e matérias‐primas em capital, ou seja, a  indústria  necessitou  de  indivíduos  completamente  despojados  dos meios materiais garantidores da sua existência e sobrevivência para que assim  pudessem  “livremente”  vender  sua  força  de  trabalho  aos capitalistas. Aqui reside, sinteticamente, portanto, a fórmula encontrada pela nascente burguesia  inglesa para dar  início à produção  capitalista de mercadorias. 

9 O  cercamento  consistiu na prática adotada pelos grandes  latifundiários de  cercar os campos, acompanhado da expulsão dos camponeses que ali residiam e trabalhavam, com o intuito de utilizar a terra visando à obtenção de maiores lucros. A prática mais comum  era  a  de  cercar  os  campos  para  a  criação  de  ovelhas,  que  passava  a representar uma possibilidade de maiores lucros na venda da sua lã para as nascentes indústrias  têxteis.  Essa  prática  se  inicia  ainda  no  final  do  século XV, mas  adquire fôlego e intensidade a partir do século XVI.  

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O  resultado  direto  dessa  expropriação/expulsão  cruel  e  violenta consiste  no  processo  de  proletarização  da  mão‐de‐obra  camponesa migrada para as cidades e a formação de um mercado urbano  interno. Porém,  a  capacidade  de  absorção  dessa mão‐de‐obra  pelas  nascentes indústrias  possuía  uma  velocidade  infinitamente  menor  do  que  o crescimento do número de camponeses expulsos do campo. Isso acabou por promover, também, um processo de lumpemproletarização que está na origem do capitalismo e, como veremos adiante, possui a tendência de  acompanhar  seu  desenvolvimento  histórico.  E  assim,  as  cidades inglesas  passaram  a  conviver  com  um  grande  número  de  operários empregados  na  indústria, mas  também  com  um  número  crescente  e assustador de  lumpemproletários  que  “se  converteram  em massas de esmoleiros,  assaltantes, vagabundos,  em parte por predisposição  e na maioria dos casos por força das circunstâncias” (MARX, 1985a, p. 275). 

Uma passagem extraída do  subtítulo Gênese do  capitalista  industrial do capítulo XXIV do volume  II de O Capital sintetiza muito bem  todo esse processo: 

 Tanto  esforço  fazia‐se  necessário  para  desatar  as  “eternas  leis  naturais”  do modo de produção capitalista, para completar o processo de  separação entre trabalhadores  e  condições de  trabalho, para  converter,  em um dos pólos, os meios sociais de produção e subsistência em capital e, no pólo oposto, a massa do  povo  em  trabalhadores  assalariados,  em  “pobres  laboriosos”  livres,  essa obra  de  arte  da  história moderna.  Se  o  dinheiro,  segundo Augier,  “vem  ao mundo  com manchas naturais de  sangue  sobre uma de  suas  faces”,  então o capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e sujeira da cabeça aos pés (MARX, 1985a, p. 292). 

 Durante a segunda metade do século XIX a Europa experimenta um 

fenômeno  fascinante  e  ao  mesmo  tempo  amedrontador,  o extraordinário crescimento das cidades industriais e de sua população. As  indústrias  recrutavam  cada  vez mais  operários  fabris  e  com  isso ocorria  um  desenfreado  crescimento  das  cidades.  Na  passagem  do século  XVIII  para  o  século  XIX,  a  Inglaterra  tem  seus  campos despovoados e um grande afluxo de migrantes corre para as cidades: 

 Londres, que em 1750 contava com 676 mil habitantes,  já em 1820 chegava a contar quase o dobro, ou 1.274 milhão. Mais de uma terça parte da população da Inglaterra residia em cidades de mais de 5 mil habitantes à altura da metade 

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do  século XIX, quando no meio do  século XVIII não passava de uma quinta parte.  Na  década  1821‐1831,  o  crescimento  de  cidades  como  Liverpool, Manchester,  Birmingham  e  Leeds  ultrapassou  quarenta  por  cento (GUIMARÃES, 2008, p. 48). 

 Além  de  indivíduos  prestes  a  se  proletarizar,  as  cidades  atraíam 

uma  infinidade de pessoas que não  encontrariam  condições materiais garantidoras da sua sobrevivência e, consequentemente, o processo de lumpemproletarização  crescia  vertiginosamente  e  tais  cidades passavam  a  serem  habitadas  por  um  grande  número  de  mendigos, prostitutas,  jovens  desempregados,  ladrões,  desabrigados, subempregados, e  todo  tipo de desempregados etc. A constituição das primeiras  cidades  industriais  do  século XIX  revela  um  dos  processos migratórios mais brutais que a história ocidental já conheceu. Milhares e milhares de pessoas perderam  todo o vínculo  com um modo de vida secular,  costumes,  tradições,  solidariedades,  enfim  toda  uma  habitual forma  de  se  viver  foi  quase  que  completamente  destruída  e  suas principais  vítimas  foram  relegadas  a  um  mundo  sombrio  e desconhecido marcado pelo  frio, pela  fome, por  todo  tipo de doença, imundice,  criminalidade,  pela  violência  cotidiana,  tanto  na  esfera  do trabalho,  quando  se  tem  um,  quanto  na  esfera  da  vida  privada. Indubitavelmente  a  sociedade  capitalista  nasce  e  se  reproduz  sob  a marca da completa desumanização de milhões de seres humanos. 

A  rotina  do  proletariado  inglês  era marcada  por  uma  jornada  de trabalho  de  aproximadamente  16  horas  diárias,  nas  quais  toda  a  sua família, desde as crianças de 04 anos de idade até os idosos ainda com condições físicas, era obrigada pelas circunstâncias a trabalhar. Essa era uma condição  imposta pelos miseráveis salários para que uma  família operária  pudesse  ter  o  mínimo  suficiente  para  garantir  sua sobrevivência e, consequentemente, sua força de trabalho para valorizar o capital.  

Além das extensas  jornadas de trabalho, da exploração do trabalho infantil,  do  trabalho  idoso  e  feminino  (esses  recebiam  salários inferiores),  as  condições de  trabalho  eram  as piores possíveis, pois  as fábricas  não  possuíam  condições mínimas  de  higiene. Caracterizadas por  serem  lugares  pouco  arejados,  com  ar  poluído,  sem  nenhuma preocupação  com a  saúde operária,  sem nenhum  sistema de proteção 

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no  trabalho,  o  proletariado  se  via  constantemente  ameaçado  pelo desemprego  e  pela  fome,  pois  a  inexistência  de  legislação  trabalhista fazia  com  que  qualquer  acidente  ou  doença  que  o  impossibilitasse  a trabalhar resultasse em demissão sumária. E os acidentes de trabalho ou até  mesmo  a  morte  de  milhares  de  operários,  principalmente  as crianças, eram elevadíssimos10.  

Nesse  aspecto  o  lumpemproletariado  crescente,  derivado  do processo de cercamento de terras, cumpre um papel importantíssimo na acumulação  de  capital,  isto  é,  quanto  maior  for  o  contingente lumpemproletário,  maior  será  a  pressão  sobre  o  proletariado  para aceitar  suas  condições  de  trabalho  e  salários miseráveis.  Portanto,  é possível  perceber  que  o  proletariado  do  século  XIX  se  via  muito facilmente ameaçado pela  lumpemproletarização. O proletariado vivia constantemente a ponto de lumpemproletarizar‐se. E assim a existência de  um  grande  contingente  lumpemproletário  cumpria  uma  das  suas principais  funções  no  capitalismo:  promover  uma  alavanca  de acumulação  via  pressionamento  dos  salários  e  divisão  da  classe trabalhadora na disputa por emprego. 

Não  só  as  condições  de  trabalho  possibilitavam  uma  vida degradante para o proletariado, mas  sim  todas as esferas da  sua vida representavam um profundo contato com a degradação  física e moral. Sua  condição  de  moradia  é,  nesse  sentido,  reveladora  de  tal deterioração. É preciso  compreender que  em uma  sociedade marcada pela  completa mercantilização  da  vida,  o  acesso  da  classe  operária  a determinados  bens  primários,  tais  como,  moradia,  alimentação, vestuário,  saúde,  etc.  passa  pelo  valor  do  seu  salário  e  das possibilidades  derivada  dele.  E  uma  vez  que  o  salário  operário  é 

10 “As estatísticas da mortalidade  revelam níveis altíssimos, principalmente por causa da morte entre as crianças pequenas da classe operária. O delicado organismo de uma criança é o que oferece a menor resistência aos efeitos deletérios de um modo de vida miserável;  o  abandono  a  que  frequentemente  se  vê  expostas  quando  os  pais trabalham, ou quando um deles morre, logo faz sentir seu impacto – e, portanto, não pode  ser  sem  razão  de  espanto  se,  por  exemplo,  em  Manchester,  conforme  um relatório  que  já  citamos,  mais  de  57%  dos  filhos  de  operários  morrem  antes  de completar 5 anos, ao passo que essa taxa é de 20% para os filhos das classes mais altas e, nas zonas rurais, a média é de 32%” (ENGELS, 2008, p. 147). 

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miserável,  consequentemente,  o  acesso  a  tais  bens  se  dá  de  forma bastante precária.  

Toda  grande  cidade  industrial  no  século  XIX,  assim  como  hoje, revela  na  arquitetura diferenciada dos  seus  bairros,  nas  condições de suas  ruas,  na  sua  limpeza,  no  seu  odor,  etc.  a  divisão  entre  classes sociais. Em outras palavras, a divisão entre exploradores e explorados. Na  Inglaterra  desse  período  os  bairros  operários  eram  chamados  de “bairros de má fama” (ENGELS, 2008). De acordo com Engels,  

 na  Inglaterra,  esses  “bairros de má  fama”  se  estruturam mais  ou menos da mesma  forma que em  todas as cidades: as piores casas na parte mais  feia da cidade; quase sempre, uma longa fila de construções de tijolos, de um ou dois andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de maneira irregular. Essas pequenas casas de três ou quatro cômodos e cozinha chamam‐se  cottages  e  normalmente  constituem  em  toda  Inglaterra,  exceto  em  alguns bairros  de  Londres,  a  habitação  operária.  Habitualmente,  as  ruas  não  são planas nem calçadas, são sujas,  tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos  ou  canais de  escoamento,  cheias de  charcos  estagnados  e  fétidos. A ventilação  na  área  é  precária,  dada  a  estrutura  irregular  do  bairro  e,  como nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do ar  que  se  respira  nessas  zonas  operárias  –  onde,  ademais,  quando  faz  bom tempo,  as  ruas  servem  aos  varais  que,  estendidos de uma  casa  a  outra,  são usados para secar roupa (2008, p. 70). 

 Os bairros  operários, no geral, possuem  as mesmas  características 

em  todo  o  território  inglês.  São  marcados  pela  existência  de  ruas estreitas, geralmente  imundas,  tanto por  conta do  ineficaz  sistema de limpeza  urbana  quanto,  pela  inexistência  de  rede  de  saneamento  e esgoto, fazendo com que os dejetos das “residências” sejam lançados ao ar  livre nas  ruas. Nesses bairros era comum encontrar em suas  ruas a instalação de um mercado aberto que vendia legumes e frutas, todos de péssimas  qualidades  e  de  cheiro  horripilante.  Juntamente  com  essas frutas e legumes, a carne que era vendida e consumida pelos operários quase sempre se encontrava em estado putrefato.  

A alimentação operária era extremamente minguada e isso, é claro, se  deve  aos  péssimos  salários  recebidos  e,  consequentemente,  da limitada possibilidade de se consumir bons alimentos. Com frequência o  proletariado  “optava”  por  consumir  nas  feiras  e  mercados  os produtos  que durante  todo  o dia  as  “classes médias”  se  recusaram  a 

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comprar devido a sua má qualidade. Portanto, o grosso da alimentação operária era formado por alimentos de escassa qualidade, muitas vezes já em estado de decomposição. Assim se encontrava,  também, a carne consumida. Os açougues dos bairros operários eram lotados de carne de todo  tipo de animal  (ganso, boi, porco, presunto etc.), mas geralmente em  estado  impróprio  para  o  consumo. O  jornal Manchester Guardian, fundado em Manchester por J. E. Taylor em 1821, constantemente trazia denúncias sobre processos e condenações de diversos açougueiros que, abusando da miséria  operária,  ofertava diariamente  carnes  putrefatas (ENGELS, 2008). 

O  periódico  inglês  The  Artizan  (outubro  de  1843),  nos  possibilita visualizar, de forma geral, as condições sanitárias dos bairros operários: 

 Essas  ruas  são  em geral  tão  estreitas que  se pode  saltar de uma  janela para outra da casa em frente e as edificações têm tantos andares que a luz mal pode penetrar nos pátios ou becos que as  separam. Nessa parte da  cidade não há esgotos, banheiros públicos ou latrinas nas casas; por isso, imundice, detritos e excrementos  de  pelo menos  50 mil  pessoas  são  jogados  todas  as  noites  nas valetas,  de  sorte  que,  apesar  do  trabalho  de  limpeza  das  ruas,  formam‐se massas de esterco  seco das quais emanam miasmas que, além de horríveis à vista e ao olfato, representam um enorme perigo para a saúde dos moradores. É de espantar que não se encontre aqui nenhum cuidado com a saúde, com os bons  costumes  e  até  com  as  regras  elementares da decência? Pelo  contrário, todos os que conhecem bem a situação dos habitantes podem  testemunhar o ponto  atingido pelas doenças, pela miséria  e pela degradação moral. Nesses bairros, a sociedade chegou a um nível de pobreza e de aviltamento realmente indescritível.  As  habitações  dos  pobres  são  em  geral  muito  sujas  e aparentemente nunca são limpas; a maior parte das casas compõe‐se de um só cômodo que, embora mal ventilado, está quase sempre muito  frio, por causa da  janela ou da porta quebrada; quando  fica no subsolo, o cômodo é úmido; frequentemente,  a  casa  é mal mobiliada  e  privada  do mínimo  que  a  torne habitável: em geral, um monte de palha serve de cama a uma  família  inteira; ali deitando‐se, numa promiscuidade  revoltante, homens, mulheres, velhos e crianças. Só há água nas fontes públicas e a dificuldade para buscá‐la favorece naturalmente a imundice (Apud ENGELS, 2008, p. 79).  

Em suma, a condição material do proletariado inglês o condenava a viver na miséria, em condições habitacionais horripilantes,  tendo uma dieta alimentar muito carente, vestindo‐se de poucos trapos, possuindo restritas condições de se higienizar, perseguido pelo frio e por diversos 

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tipos de doenças11. Essas últimas se apresentam como uma das portas de entrada para uma vida lumpemproletária, pois, devido à dura rotina de  trabalho  nas  indústrias  aliada  a  uma  alimentação  precária  e  uma moradia  insalubre, o operário chefe da  família corria o risco constante de ter seus músculos e órgãos falidos e de adoecer seriamente, ficando impossibilitado para o  trabalho. “E é então que se manifesta, agora de forma mais aguda, a brutalidade com a qual a sociedade abandona seus membros  justamente  quando  mais  precisam  de  sua  ajuda”  (MARX, 2008, p. 115). 

Desde pelo menos a  segunda metade do  século XVIII e de  todo o século XIX, predomina no imaginário coletivo europeu, especificamente 

11  “Testemunhos  provindos  de  fontes  as mais  diversas  confirmam  que  as  habitações operárias  nos  piores  bairros  urbanos,  somadas  às  condições  gerais  de  vida  dessa classe, provocam numerosas doenças (...) as doenças pulmonares são a conseqüência inevitável desta condição habitacional e, por isso, são particularmente freqüente entre os operários. A aparência de tísicos de tantas pessoas que se encontram pelas ruas é claro  indicativo  de  que  a  péssima  atmosfera  de  Londres,  em  especial  nos  bairros operários, favorece ao extremo o desenvolvimento da tuberculose (...) Além de outras doenças  respiratórias  e  da  escarlatina,  o  grande  rival  da  tuberculose,  causador  de devastações entre os operários, é o tifo. Segundo relatórios oficiais sobre as condições sanitárias da classe operária, esse flagelo universal é provocado pelo péssimo estado das habitações operárias, a má ventilação, a umidade e a sujeira. Nessas informações, preparadas – é bom recordá‐lo – pelos melhores médicos da Inglaterra, com base em relatos de outros médicos, afirma‐se que um único pátio mal arejado, um único beco sem  rede  de  esgoto,  sobretudo  quando  os  operários  vivem  amontoados  e  nas proximidades existem matérias orgânicas em decomposição, pode provocar a febre, e quase sempre a provoca” (ENGELS, 2008, p. 138).  De acordo com Dejours, as condições de existência e saúde do lumpemproletariado, ou subproletariado como ele denomina,  também são as piores possíveis e, devido a suas condições de existência, não poderia ser diferente: “A  título de exemplo significativo, podemos  citar  a  incidência  importante  de  doenças  infecciosas,  particularmente  nas crianças, e da  tuberculose, que continua a  ser ainda um  flagelo na população adulta. Pode‐se  notar  também  a  importância  das  seqüelas  de  acidentes  e  doenças:  elas  são testemunhas de  tratamentos mal  conduzidos ou  incompletos  e, no  conjunto, de uma menor  eficácia  das  técnicas  médico‐cirúrgicas  sobre  uma  população  que  não  pode aproveitar  delas  como  o  resto  da  população,  por  razões  de  ordem  não  só socioeconômica  e  cultural,  mas  por  razões  de  ordem  material  (impossibilidade  de acesso às convalescenças, aos cuidados pós‐operatórios e à reeducação  fisioterápica, à assistência médica subseqüente a uma doença grave ou um acidente (DEJOURS, 1992, p. 28). 

 

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na  Inglaterra  e  França,  o  crescente  temor  e  pânico  das  classes dominantes  diante  das  inúmeras  possibilidades  de  sublevações  das classes miseráveis,  quer  dizer,  do  lumpemproletariado  em  geral.  Tal estado  de  pânico  coletivo  não  é  gratuito,  basta  perceber  em  que condições viviam a maioria da população pobre das principais cidades industriais européias, Londres e Paris por exemplo, para constatarmos que as condições materiais degradantes e desumanas eram mais do que suficientes para alimentar protestos, sublevações, saques, roubos e todo tipo de motins populares violentos.  

Não é à toa que diversos questionamentos da época apontavam para esse  risco.  Dentre  eles,  e  o  mais  citado,  encontra‐se  o  realizado  por Friedrich  Engels  no  prefácio  à  edição  inglesa  de O  Capital,  que  assim indagava: “Entrementes, em cada  inverno, renova‐se a pergunta: O que fazer com os desempregados? Enquanto se avoluma, cada ano, o número deles, não há ninguém para responder a essa pergunta; e quase podemos prever  o momento  em  que  os  desempregados  perderão  a  paciência  e encarregar‐se‐ão  de  decidir  seus  destinos  com  suas  próprias  forças”. Assim  como Engels, diversos outros  teóricos e  romancistas da época  já alertavam para o perigo do  crescimento absoluto dessa massa  faminta. Balzac colocava a questão da seguinte forma:  

 Há necessidades invencíveis, porque, enfim a sociedade não dá o pão a todos os que têm fome; e quando estes não tem nenhum meio de ganhar a vida, que quereis que eles façam? A política terá previsto que no dia em que a massa dos infelizes  for mais  forte que a dos ricos, o estado social estará estabelecido de outra maneira? No  presente momento,  a  Inglaterra  está  ameaçada  por  uma revolução desse gênero.   O  imposto para os pobres  tornou‐se exorbitante na Inglaterra; e no dia em que sobre 30 milhões de pessoas houver 20 milhões que morrem  de  fome,  a  infantaria,  os  canhões  e  a  cavalaria  nada  poderão  fazer (Apud GUIMARÃES, 2008, p. 88). 

 Além dessa postura temerosa diante das possíveis e previsíveis ações 

que o lumpemproletariado se via coagido a realizar, as classes capitalistas e suas classes auxiliares,  inspiradas nos seus valores e perspectivas que lhes  são  próprios,  construíram  diversas  representações  pejorativas  dos míseros proletários e, principalmente, lumpemproletários e das sensações e sentimentos que a existência, comportamentos e hábitos dessas classes vos  geravam.  Dentre  os  principais  termos  alguns  se  destacam  pela 

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repulsa  que  os mesmos provocavam  e que nos possibilita  apreender  a forma como  tal classe era expressa pelos valores aristocrático‐burgueses da época. Dentre vários podemos citar: vagabundos, mendigos, vadios, maltrapilhos, esfarrapados, escória, ralés, desajustados sociais etc. 

Se essas eram as condições nas quais se encontravam o proletariado, em  que  condições  viviam  então  o  proletariado  em  farrapos12,  isto  é  o lumpemproletariado? Se vendendo sua  força de  trabalho por salário o proletariado vivia na miséria absoluta, como diferenciar as condições de vida dos que se encontram à margem da divisão social do  trabalho? É possível que exista uma classe social vivendo em condições abaixo da miséria?   Como  viviam  o  lumpemproletariado das principais  cidades industriais europeias e como reagiam diante dessa realidade a ponto de gerar  tanto  temor? A busca por  respostas  a  essas questões nortearam todo  o  desenvolvimento  da  discussão  em  torno  da  formação  e desenvolvimento  do  lumpemproletariado  no  período  de  vigência  do regime de acumulação extensivo. 

De  início  gostaríamos  de  enfatizar  que  o  lumpemproletariado  é considerado  por  nós  uma  classe  social  composta  pela  totalidade  do exército  industrial de  reserva  (superpopulução  relativa)  e  não  apenas pelos  extratos  mais  baixos  dessa  superpopulação  relativa,  conforme exposto por Marx no capítulo XXIII do volume 2 de O Capital – A  lei geral  da  acumulação  capitalista.  Concordamos  com  Viana  (2011) quando  o  mesmo  destaca  a  importância  de  ressignificar  o lumpemproletariado  para  melhor  compreendê‐lo  no  interior  da dinâmica do modo de produção capitalista. De acordo com ele, 

 o  primeiro  ponto  é  ressignificar  o  lumpemproletariado,  que  não  pode  ser considerado apenas os extratos mais baixos da superpopulação relativa e sim ela  em  sua  totalidade.  Assim,  o  lumpemproletariado  abarca  o  conjunto  do exército  industrial  de  reserva.  É  composto,  portanto,  pelos  trabalhadores potenciais do capitalismo, com suas subdivisões, e pelos subempregados e em trabalhos precários, não produtores direto de mais‐valor. Ou seja, inclui tanto aqueles  que  estão  na  fronteira  com  o  proletariado  (desempregados temporários,  subempregados,  etc.)  quanto  os  que  sobrevivem  sob  outras formas (prostituição, mendicância, etc.) (VIANA, 2011). 

 

12 Tradução ao pé da letra do termo lumpemproletariado. 

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É válido  ressaltar que devido  à nossa  compreensão do que  seja  o lumpemproletariado,  consideraremos,  nas  análises de diversos  outros autores,  como  frações  do  lumpemproletariado  ou  o lumpemproletariado  em  sua  totalidade,  as  análises  referentes  aos marginais,  à multidão,  às  classes perigosas,  aos miseráveis,  excluídos sociais, novos pobres etc. Consideramos que nessas análises, apesar da denominação diferenciada da nossa, os indivíduos que a compõe são os mesmos que  compõe o exército  industrial de  reserva,  logo, de acordo com  nossa  definição,  equivale  ao  lumpemproletariado. Mais  adiante entraremos  em  detalhes  sobre  o  lumpemproletariado  nos  escritos  de Marx. 

A  existência  de  um  proletariado  miserável  nos  países industrializados da Europa do  século XIX  subentende  a  existência de um vasto  contingente  lumpemproletário que possibilite a manutenção de baixos salários, disputa por empregos, divisão e enfraquecimento da classe trabalhadora. Portanto, no capitalismo um não existe sem o outro. Se  no modo  de  produção  capitalista  existe  de  um  lado  riqueza  e  do outro pobreza, abaixo da pobreza existe um miséria extrema que tende a  crescer  concomitante ao  crescimento de produção da  riqueza. Aliás, não é essa a lei geral da acumulação capitalista?  

Nesse sentido, podemos adiantar desde  já que os bairros operários europeus  estavam  abarrotados  de  indivíduos  que  compunha  o lumpemproletariado  e  que  boa  parte  dessa  classe,  na  Inglaterra,  é composta por imigrantes irlandeses. 

 Aqui vivem os mais pobres entre os pobres, os trabalhadores mais mal pagos, todos misturados  com  ladrões,  escroques  e vítimas da prostituição. A maior parte  deles  são  irlandeses,  ou  seus  descendentes,  e  aqueles  que  ainda  não submergiram completamente do turbilhão da degradação moral que os rodeia a cada dia mais se aproximam dela, perdendo a força para resistir aos influxos aviltantes da miséria, da sujeira e do ambiente malsão (ENGELS, 2008, p. 71).  

Em diversas passagens de jornais e periódicos da época, assim como na  excelente  pesquisa  realizada  por  Engels  e  que  resulta  em  1845  na extraordinária obra sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, é possível  identificar  uma  grande  quantidade  de  lumpemproletários sobrevivendo  nas  ruas  das  principais  cidades  industriais  inglesas. 

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Segundo o Times – principal diário inglês de cunho conservador – de 12 de outubro de 1843: 

 Nossa seção policial publicada ontem indica que dormem nos jardins, todas as noites,  cerca de  cinquenta pessoas,  sem outra proteção  contra as  intempéries que  árvores  e  tocas  escavadas  em muros.  Em  sua maioria,  são moças  que, seduzidas por soldados, vieram do campo e, abandonadas neste vasto mundo à  degradação  de  uma  miséria  sem  esperança,  tornaram‐se  vítimas inconscientes e precoces do vício. Na realidade, isso é assustador. Os pobres estão em toda parte. Por toda parte, a indigência avança e insere‐se, com toda a sua monstruosidade, no coração de uma  grande  e  florescente  cidade.  Nos  milhares  de  becos  e  vielas  de  uma populosa metrópole  sempre haverá  – dói dizê‐lo  – muita miséria que  fere o olhar e muita que não será vista. Mas é assustador que, no próprio recinto da riqueza, da alegria e da elegância, junto à grandeza real de St. James, nas proximidades do esplêndido palácio de Bayswater, onde  se encontra o velho e os novos bairros aristocráticos, numa área  da  cidade  onde  o  requinte  da  arquitetura  moderna  prudentemente impediu que se construísse qualquer moradia para a pobreza, numa área que parece  consagrada  ao  desfrute  da  riqueza,  é  assustador  que  exatamente  aí venham  instalar‐se  a  fome  e  a miséria,  a  doença  e  o  vício,  com  todo  o  seu cortejo de horrores, destruindo um  corpo atrás de outro, uma alma atrás de outra!  É  uma  situação  verdadeiramente  monstruosa.  O  máximo  prazer proporcionado  pela  saúde  física,  a  atividade  intelectual,  as  mais  inocentes alegrias dos sentidos lado a lado com a miséria mais cruel! A riqueza que, do alto dos seus salões luxuosos, gargalha indiferente diante das obscuras feridas da  indigência!  A  alegria  que  inconsciente,  mas  cruelmente,  zomba  do sentimento  que  geme  ali  embaixo!  Todos  os  contrastes  em  luta,  tudo  em oposição, exceto o vício que conduz à tentação e aqueles que se deixam tentar... Que todos reflitam: na área mais luxosa da cidade mais rica do mundo, noite a noite,  inverno  a  inverno,  vivem mulheres,  jovens  em  idade  e  envelhecidas pelos pecados e pelo sofrimento, expulsas da sociedade, atoladas na fome, na doença e na sujeira (...) (Apud ENGELS, 2008, p. 75‐76).  

Como qualquer outra mercadoria, a  força‐de‐trabalho está  inserida na lógica da oferta e da procura no mercado. Portanto, quanto maior for a  oferta  de mão‐de‐obra  disponível  para  ser  empregada,  tanto maior será  o  rebaixamento  dos  salários  e  tanto  maior  será  o  número  da população  “supérflua”  –  o  lumpemproletariado.  Além  disso,  é importante  destacar  que  o  capitalismo  do  século  XIX,  assim  como  o atual, é caracterizado pela existência de crises constantes e a cada crise a situação tende a esmagar, ainda mais, os setores frágeis da sociedade e, 

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nesses  períodos,  o  proletariado  tende  a  ter  seus  salários  rebaixados profundamente, uma vez que o lumpemproletariado tende a ampliar‐se e, consequentemente, a ampliar,  também, a pressão sobre os operários empregados. Assim,  o  proletariado  ainda  empregado, mas  que  se  vê ameaçado constantemente pelo desemprego, tende a se submeter, a não ser  em períodos de  radicalização da  sua  luta,  a  condições  ainda mais precárias de trabalho e vida, pois, 

 no  pior  dos  casos,  o  operário,  para  subsistir,  preferirá  renunciar  ao  grau  de civilidade a que estava habituado: preferirá morar numa pocilga a não ter teto, aceitará  farrapos para não andar desnudo, comerá batatas para não morrer de fome.  Preferirá,  na  esperança  de  dias melhores,  aceitar metade  do  salário  a sentar‐se silenciosamente numa rua e morrer na frente de todo mundo, como já aconteceu com tantos desempregados. É esse pouco, quase nada, que constitui o mínimo  salário. E  se há mais operários que aqueles que à burguesia  interessa empregar,  se,  ao  término  da  luta  concorrencial  entre  eles,  ainda  resta  um contingente  sem  trabalho,  esse  contingente  deverá morrer  de  fome,  porque  o burguês só lhe oferecerá emprego se puder vender com lucro o produto de seu trabalho (ENGELS, 2008, p. 119). 

 Tarefa difícil  é  a de precisar  a  linha que  separa o proletariado do 

lumpemproletariado  em  relação  à habitação,  vestimenta,  alimentação, saúde, hábitos etc. em todo o século XIX, pois o que percebemos é que, nesse período, a exploração e miséria  são generalizadas e que  tanto o proletariado quanto o lumpemproletariado são suas maiores vítimas. O lumpemproletariado  assim  como  qualquer  outra  classe  social  no capitalismo,  precisa  acessar, mesmo  que  em  condições  extremamente desiguais,  alguns  bens  básicos  para  sobreviver.  Para  isso  ele  se  vê coagido  a  obter  dinheiro,  seja  de  qual  forma  for:  mendigando, prostituindo‐se,  roubando,  varrendo  ruas  e  recolhendo  imundices, transportando  esterco  e  pequenos  objetos,  realizando  comércio ambulante ou biscates, cometendo crimes diversos etc.13 

13  “São  espantosos  os  expedientes  a  que  esses  indivíduos  recorrem  para  ganhar qualquer  coisa. Os varredores de  rua  (crosssweeps) de Londres  são  conhecidos  em todo  o mundo; mas  até  pouco  tempo  atrás,  também  as  ruas  e  calçadas  de  outras grandes  cidades  eram  limpas  por desempregados,  contratados  para  esse  fim  pelas repartições  encarregadas  da  assistência  ou  pelas  autoridades  responsáveis  pela conservação das ruas; hoje existe uma máquina que, diária e ruidosamente, limpa as ruas,  tirando daqueles desempregados até mesmo esse meio de  sobrevivência. Nas 

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É  impressionante  a  grande  quantidade  de  lumpemproletários  que ocupam  as  ruas,  principalmente,  dos  bairros  operários  ingleses.  É exatamente  nesses  locais  que  o  lumpemproletariado  encontra  alguma solidariedade e consegue a partir de algumas esmolas, concedidas pelos próprios  operários,  garantir  a  sua  existência  paupérrima.  Por  isso milhares  de  famílias  se  instalam  nessas  ruas  nos  horários  de  maior circulação  dos  operários,  pois  geralmente  “só  contam  com  a solidariedade dos operários, que sabem, por experiência, o que é a fome e que a todo momento podem encontrar‐se na mesma situação” (ENGELS, 2008, p. 128). 

De acordo com os relatórios de inspetores para a lei sobre os pobres, na  Inglaterra e no País de Gales, o número de  lumpemproletários  (os ditos  “supérfluos”)  representa  em  média  1,5  milhões.  Porém  esse número  poderia  ser  bem maior  visto  que  nesse  1,5 milhões  só  estão compreendidos  aqueles  indivíduos  que  oficialmente  recebem  alguma assistência  pública,  estando  excluídos  desse  número  os  milhares  de lumpemproletários que sobrevivem sem essa assistência. 

Em períodos de crise econômica, a miséria atinge graus alarmantes e acirra o descontentamento e o ódio das classes miseráveis que declaram guerra a toda sociedade civil, obrigando‐o a sobreviver do banditismo. Os  anos  de  1842  e  1847  são  reveladores  do  peso  que  sobrecai  no proletariado  e  em  alguns  setores  das  “classes  médias”  e  que  os vitimizam  com  a  lumpemproletarização  (desgraça  ainda maior  que  a proletarização) em períodos de crise: 

 Um relatório sobre a situação das áreas industriais em 1842, baseado em dados fornecidos pelos  industriais  e preparado  em  janeiro de  1843 pelo Comitê da Liga contra a Lei dos Cereais, informa que o imposto para os pobres era então duas  vezes maior  que  em  1839, mas  que,  no mesmo  período  de  tempo,  o número  de  necessitados  havia  triplicado  ou  até  quintuplicado;  que  agora muitos postulantes à assistência pública pertenciam a classes sociais que antes jamais haviam solicitado ajuda; que os meios de subsistência de que a classe operária podia dispor eram no mínimo dois terços a menos em relação aos que 

grandes vias que ligam as cidades e nas quais há muito movimento, encontra‐se uma quantidade  de  indivíduos  empurrando  carrinhos  de  mão  que,  sob  o  risco  de atropelamento, circulam entre carroças e outros veículos de tração animal, recolhendo o  esterco  fresco  dos  cavalos  para  vendê‐lo  depois  –  para  o  que  ainda  pagam semanalmente alguns shillings à administração das estradas” (ENGELS, 2008, p. 126). 

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dispunha em 1834‐1836; que o consumo de carne havia caído muito, 20% em alguns  locais,  60%  em  outros;  que  artesãos,  ferreiros, pedreiros  etc.,  que  até então, mesmo nos períodos de crise mais grave, encontravam  trabalho, agora também sofriam muito com a falta de trabalho e com os baixos salários; e que, ainda  em  janeiro  de  1843,  os  salários  continuavam  caindo.  E  essas  são informações dos industriais! (ENGELS, 2008, p. 129). 

 Promovendo  essas  condições  de  subexistência  para  milhares  de 

seres  humanos,  a  sociedade  inglesa  favorecia  a  eclosão  de  uma verdadeira  guerra  social,  pois  boa  parte  dos  operários  pobres  e  do lumpemproletariado  passam  a  promover  diversos motins  e  rebeliões, além de buscar a  sobrevivência a partir da pilhagem, do  roubo  e, até mesmo,  do  assassinato.  As  últimas  décadas  do  século  XIX experimentaram o crescente temor de ver renascido o velho espectro da multidão  amotinada  (a  mob),  disposta  a  ver  seus  interesses  e necessidades garantidos através da ação direta, provocada pelos motins e  de  todo  tipo  de  movimentos  promovidos  pelos  desempregados enfurecidos, e que tanto risco à propriedade e à vida eles representam. Elementos  típicos  de  uma  sociedade  que  se  afirma  na  utilização  do trabalho social para produzir riquezas de forma ampliada, mas que são negadas para seus próprios produtores que são relegados e forçados a viver no “pântano do pauperismo”. No entanto, ninguém acreditava de fato  que  tal multidão  desempregada  e  faminta  aguardaria  de  braços cruzados  que  algum  auxílio  caísse  do  céu,  ou  que  algum messias  as socorresse,  pelo  contrário,  em  períodos  de  crise  e  miséria  social,  as ideologias (religiosas) costumam cair por terra e o lumpemproletariado, por diversos momentos, partiu para a ação. Segundo Bresciani, 

 coincidentemente,  os  homens  que  agitam  Londres  em  fevereiro  de  1866  e tentam de  início  resolver  o problema do desemprego  num  inverno  rigoroso através  das  vias  legais,  pedindo  trabalho‐público  e  auxílio‐desemprego,  são trabalhadores. Em Trafagal Square, a assembléia que dá  início ao movimento compõe‐se  de  20  000  homens  desempregados  das  docas  e  da  construção. Contudo,  bastaram  algumas  provocações  para  que  a  marcha  pacífica  em direção  ao  Hyde  Park  se  transformasse  num  ataque  a  todas  as  formas  de propriedade,  riqueza  e  privilégio:  janelas  e  vitrinas  foram  quebradas, carruagens  foram  quebradas  e  seus  ocupantes  assaltados;  em  suma  na observação do Times, “o West End (bairro rico de Londres) esteve por algumas horas  nas  mãos  da  multidão”.  O  pânico  tomou  conta  da  cidade;  notícias desencontradas sobre multidões avançando em direção à City ou ao West End 

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e  destruindo  tudo  no  seu  avanço mantêm  os  proprietários,  o  governo  e  as tropas em prontidão durante mais dois dias que, nas palavras do historiador S. Jones  se  assemelharam  ao  Grande  Medo  (“Grande  Peur”)  da  Revolução Francesa (1990, p. 47).  

O que esperar dessa classe social que durante toda a sua existência convive  com  todo  tipo  de  infortúnio?  É  possível  aguardar  de  seres desumanizados e famintos atitudes que prezem pela vida e propriedade alheia?  O  século  XIX  inaugura  o  século  do  banditismo  social generalizado. As ruas que, durante o dia, eram infestadas de mendigos, subempregados  e  todo  tipo  de  desempregados  procurando  alguma forma de garantir  sua  sobrevivência, pela noite,  se encontrava  repleta de  todo  tipo  de  ladrão  e  criminoso.  Nascia,  assim,  um  dos  termos pejorativos  mais  utilizados  para  classificar  o  lumpemproletariado: Classes perigosas. 

Na  introdução da sua obra As classes perigosas – banditismo urbano e rural  (2008), Alberto Passos Guimarães afirma o seguinte em relação à origem da palavra classes perigosas (dangerous classes): 

 O  dicionário mais  importante  da  língua  inglesa,  o Oxford  EnglishDictionary, registrou o uso da expressão em 1859, mas dez anos antes ela  já  figurava no título de uma  obra  (Reformatoryscholls  for  thechildrenoftheperishinganddangerous classes,  and  for  juvenileoffenders) de  autoria de Mary Carpenter,  escritora  bem conhecida por seus trabalhos sobre matéria criminal. Na conceituação de Mary Carpenter, as  classes perigosas eram  formadas pelas pessoas que houvessem passado  pela  prisão  ou  as  que,  por  ela  não  tendo  passado,  já  vivessem notoriamente  da  pilhagem  e  que  se  tivessem  convencido  de  que  poderiam, para o seu sustento e o de sua família, ganhar mais praticando furtos do que trabalhando (2008, p. 21).  

É visível que o  termo classes perigosas é criado e, posteriormente, desenvolvido  por  vários  intelectuais  do  século  XIX  e  expressa, nitidamente, um preconceito em relação às classes pobres e miseráveis formadas  tanto  pelo  proletariado,  quanto  pelo  lumpemproletariado, pois, no entender de alguns desses intelectuais, a prática do roubo e do crime  em  geral  era  fruto  da  escolha  individual  e  não  resultado  das míseras  condições  sociais  em  que  se  encontrava  uma  multidão  de indivíduos.  

Dessa  forma,  empregar  o  termo  classes  perigosas,  assim  como vários outros termos preconceituosos, ao invés de lumpemproletariado 

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‐  o  que  na  época  exigia  uma  ampla  análise  teórica  sobre  as  classes sociais  e  a  dinâmica  de  sua  constituição  e  desenvolvimento  no capitalismo  –  possibilitou  a  expansão  de  olhares  pejorativos  e preconceituosos  sobre  o  lumpemproletariado  e  que,  ainda  hoje,  é comumente  praticado  por  alguns  intelectuais  ditos  marxistas.  Tanto Karl Marx  quanto  Friedrich  Engels  acabam  sendo  influenciados  por esse  preconceito  dominante  na  época  e,  em  alguns  escritos,  também, adotaram    termos  preconceituosos  para  classificar  o lumpemproletariado. Mais  adiante  entraremos  em detalhes  sobre  tais escritos. 

Nesse  momento  de  nossa  análise  já  é  possível  visualizar  que  a expansão do lumpemproletariado e da criminalidade em diversas regiões industrializadas,  principalmente,  da  Inglaterra  e  da  França,  são resultados  da  própria  dinâmica  da  produção  e  reprodução  do capitalismo  (conforme  expresso  no  item  1.1.2  desse  capítulo)  e  que tendem a se intensificar em períodos de carestia, fome e crise, ou seja, em períodos  com  fortes  tendências  ao  crescimento  generalizado  do desemprego.  A  prática  do  roubo  como  forma  garantidora  da sobrevivência de uma multidão urbana ganha o século XIX: 

 O roubo reina sozinho em meados do século, atingindo seu máximo correcional entre 1851‐1855 (24.000 casos, 42.000 indiciados). Enquanto diminuem os roubos nas igrejas e nas grandes estradas, estes, apanágios de jovens que ainda sonham com Mandrin, crescem todas as formas de roubos urbanos: roubos domésticos, severamente  reprimidos,  fantasma  dos  burgueses de Balzac  ou de Pot‐Bonille, rivalizados a partir de 1850 pelo roubo do balcão, que recrudesce com o fascínio exercido pelos Grandes Magazines sobre o público  feminino; miúdos  furtos de objetos – a vitrine cobiçada inaugura muitas carreiras delinquentes – mas, cada vez  mais,  roubos  de  dinheiro,  pequenas  somas  surrupiadas,  as  únicas  que estejam ao alcance da mão [...] Entretanto, a “gatunice de alimentos”, na origem de tantas inculpações decrianças ou vagabundos, esboça o horizonte medíocre de uma sociedade de penúria, a existência de uma fome marginal, mas persistente (PERROT, 1988, p. 250‐251). 

 Constata‐se que nesses períodos a expansão do lumpemproletariado 

e  de  suas  práticas  ameaçadoras  da  ordem  social  (rebeliões,  atos  de violência generalizada etc.) e dos bens das classes privilegiadas (roubos, saques  etc.)  veio  acompanhada  da  expansão  de  diversas  instituições nascidas para amenizar as crescentes perturbações sociais promovidas 

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por essa massa imensa formada por diversas frações que compunham o lumpemproletariado  (mendigos,  assaltantes,  prostitutas, subempregados,  ex‐operários  desempregados  etc.)  da  época.  Dentre essas instituições destacam‐se: os asilos, os hospitais e as prisões. 

Para  toda  essa  gama  de  problemas  sociais  inaugurada,  já  de  forma intensificada,  pelo  modo  de  produção  capitalista,  não  há  resolução concreta nos limites das fronteiras do capital. Pelo contrário, a manutenção do  capitalismo depende,  e  ao mesmo  tempo  representa  sua  ameaça, da conservação de sua essência produtora de toda essa problemática. Aqui me refiro,  principalmente,  ao  processo  de  lumpemproletarização  e  de criminalização  do  lumpemproletariado,  existente  desde  a  origem  do capitalismo e que remonta ao processo de cercamento de terras: 

 Os expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela intermitente e violenta expropriação  da  base  fundiária,  esse  proletariado  livre  como  pássaros  não podia ser absorvido pela manufatura nascente com a mesma velocidade com que foi posto no mundo. Por outro lado, os que foram bruscamente arrancados de  seu modo  costumeiro de  vida  não  conseguiam  enquadrar‐se de maneira igualmente  súbita  na  disciplina  da  nova  condição.  Eles  se  converteram  em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição e na maioria  dos  casos  por  força  das  circunstâncias. Daí  ter  surgido  em  toda Europa Ocidental, no  final do  século XV  e durante  todo  o  século XVI, uma legislação  sanguinária  contra  a vagabundagem. Os ancestrais da atual  classe trabalhadora  foram  imediatamente punidos pela  transformação, que  lhes  foi imposta,  em  vagabundos  epaupers. A  legislação  os  tratava  como  criminosos “voluntários” e supunha que dependia de sua boa vontade seguir trabalhando nas antigas condições, que já não existiam (MARX, 1985a, p. 275)14.  

 O  próprio  processo  de  criminalização  do  lumpemproletariado 

revela,  tanto  no  século  XIX,  quanto  na  contemporaneidade,  a impossibilidade da construção de uma solução eficaz para essa ampla marginalização de milhares de indivíduos da divisão social do trabalho. Afinal,  a  raiz  da  expansão  da  criminalidade  se  encontra  na  própria dinâmica da produção capitalista de mercadorias que para promover a reprodução  ampliada  do  capital  depende  da  existência  de  um 

14 Nos primeiros parágrafos após essa citação, na obra de Karl Marx (1985a) encontra‐se as  diversas  leis  que  foram  criadas  com  o  intuito  de  criminalizar  o lumpemproletariado  e  castigá‐lo  pela  sua  condição  social  e  mendicância. Parafraseando Marx: “Que cruel ironia!”. 

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contingente, cada vez maior, de  indivíduos marginalizados na divisão social  do  trabalho.  A  criminalização  via  aprisionamento  do lumpemproletariado  tende a reproduzir, ainda de forma mais extensa, sua  condição  de  marginalizado  do  trabalho,  pois  sua  vida  após  o cumprimento da pena carrega a “marca da detenção” e essa gera uma enorme repulsa social que facilita ainda mais sua condição de lumpem. Nesse sentido, 

 todos  os  testemunhos  concordam:  há  extrema  dificuldade  em  se  conseguir trabalho. “A partir do momento em que o véu que encobria sua condição de liberto é rompido, todos os evitam ou fogem dele; se trabalha numa oficina, os que  um momento  antes  tratavam‐no  como  camarada  não  toleram mais  sua presença em meio a eles a não ser com impaciência e aflição; não só não é mais seu  companheiro  de  trabalho,  como  também  não  é  mais  seu  igual,  seu semelhante. Não haverá ordem e harmonia na oficina, enquanto não tiver sido expulso”, escreve Frégier. E mais: “Como se sabe, existe na França uma repulsa inveterada  em  todas  as  classes  da  população  em  relação  aos  ex‐detentos” (PERROT, 1988, p. 270).  

 Antes mesmo  do  século  XIX,  ainda  nas  décadas  finais  do  século 

XVIII, o lumpemproletariado já era um dos alvos principais do sistema carcerário.  Na  França,  em  diversos  momentos  de  crise  econômica  e crescimento  acelerado  do  desemprego,  a  criminalização  do lumpemproletariado  foi  a  principal  arma  utilizada  pelas  classes dominantes  para  conter  a  desordem  social  derivada  da  pobreza generalizada que atingia essa classe: 

 as manufaturas a que estávamos  tão apegados caem de  todos os  lados; as de Lyon  vieram  abaixo:  há mais  de  12  000  operários mendigando  em  Rouen, outro  tanto  em  Tours,  etc. Contam‐se mais  de  20  000  desses  operários  que abandonaram o reino desde três meses atrás para  ir para o exterior, Espanha, Alemanha,  etc.,  onde  são  acolhidos  e  onde  o  governo  é  econômico (ARGENSON apud FOUCAULT, 1997, p. 401).  

Na  tentativa  de  combater  esse  movimento  expansivo  de lumpemproletarização, decreta‐se o aprisionamento de todos os mendigos: “Foi dada a ordem de prender todos os mendigos do reino; os marechais atuam nesse sentido no interior, enquanto a mesma coisa é feita em Paris, para onde se tem certeza que eles não refluirão, estando cercado por todos os  lados”  (ANGERSON  apud  FOUCAULT,  1997,  p.  402). Na  segunda 

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metade  do  século  XVIII  na  França  esse  processo  de  criminalização  do lumpemproletariado é permanente: 

 De  um  lado  e  do  outro,  responde‐se  à  crise  com  o  internamento.  Cooper publica em 1765 um projeto de  reforma das  instituições de  caridade; propõe que se criem, em cada hundred, sob a dupla vigilância da nobreza e do clero, casas  que  teriam  uma  enfermaria  para  os  doentes  pobres,  oficinas  para  os indigentes válidos e centros de correção para os que se recusassem a trabalhar. Inúmeras casas são fundadas no interior a partir desse modelo, inspirado por sua vez na workhouse de Carlford. Na França, um édito  real de 1764 prevê a abertura de depósitos para mendigos, mas a decisão só começará a ser aplicada após  uma  deliberação  do  conselho  de  21.09.1767:  “Que  se  preparem  e estabeleçam,  nas  diferentes  generalidades  do  reino,  casas  suficientemente fechadas para nelas receber pessoas vagabundas  ... Os que  forem detidos nas ditas casas serão alimentados e mantidos às custas de Sua Majestade [...]”. No ano seguinte abrem‐se 80 depósitos de mendigos em toda a França. Têm quase a mesma estrutura e o mesmo destino que os hospitais gerais; o regulamento do depósito de Lyon, por exemplo, prevê que ali serão recebidos vagabundos e mendigos condenados ao internamento por decisão do preboste, “as mulheres de má vida detidas pelas  tropas”,  “os particulares mandados por ordem do rei”, “os  insensatos, pobres e abandonados, bem como aqueles pelos quais se paga pensão” (Art. 1 do título do regulamento do depósito de Lyon 1783, cit. In LALLEMAND,  IV,  p.  278). Mercier  dá  uma  descrição  desses  depósitos  que mostram  como  eles  diferem  pouco  das  velhas  casas  do  Hospital  Geral:  a mesma miséria, a mesma mistura, a mesma ociosidade (FOUCAULT, 1997, p. 403). 

 O  século  XIX,  conforme  afirma  Perrot,  inaugura  a  era  do 

aprisionamento  permanente.  Depois  do  asilo,  a  prisão,  “gêmea  sua, torna‐se o objeto de uma história cada vez mais assombrada pelo  lado sombrio das sociedades: doença,  loucura, delinqüência  [...]”  (PERROT, 1988, p. 235). Como era de se esperar o lumpemproletariado passa a ser a visita prioritária desse novo e assustador estabelecimento, ou melhor, depósito de infelizes seres humanos. 

Para  finalizar  esse  capítulo,  passaremos  a  discutir  o lumpemproletariado  nos  escritos  de  Marx.  O  termo lumpemproletariado tem origem nos escritos de Karl Marx, porém esse autor não chegou a desenvolvê‐lo de  forma  sistematizada e em várias obras (O Manifesto Comunista, A luta de classes na França, O 18 Brumário e O capital) o termo é mencionadocom diferenças de significado. Na obra 

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O manifesto  do  partido  comunista  (1998), Marx  e Engels  assim  comenta sobre o lumpemproletariado:  

 O  lumpemproletariado,  essa putrefação  passiva dos  estratos mais  baixos da velha  sociedade,  pode,  aqui  e  ali,  ser  arrastado  ao  movimento  por  uma revolução proletária; no entanto, suas condições de existência o predispõe bem mais a se deixar comprar por tramas reacionárias (1988, p. 76). 

 Nessa  passagem  é  possível  perceber  alguns  aspectos  que 

consideramos  limitados  e  ao  mesmo  tempo  um  pouco  taxativo  na análise  de  Marx  e  Engels,  pois  quando  ele  afirma  que  o lumpemproletariado  representa  essa  “putrefação  passiva  dos  setores mais  baixos  da  velha  sociedade”  ele  acaba  por  exagerar  na  postura passiva dessa classe, pois não é bem  isso que a história do século XIX mostra.  Em  diversos  momentos  o  lumpemproletariado  reagiu  à  sua condição material de existência através de ações contra a propriedade, contra  a  vida  aristocrática  e  burguesa,  assim  como  participou  de diversos  motins  e  rebeliões.  É  claro  que  essas  ações  não  vinham acompanhadas  de  nenhum  projeto  político,  nem  tão  pouco  possuía nenhuma radicalidade que ameaçasse a sociedade vigente, todavia, sua postura não era exatamente passiva.  

Por  outro  lado,  há  um  aspecto  importante  nessa  citação  sobre  a postura política do lumpemproletariado e de suas possibilidades. Trata‐se do seguinte trecho: “pode, aqui e ali, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária”. Ora, essa passagem nos possibilita perceber que,  ao  contrário do  que  afirma  alguns  teóricos, Marx  e Engels, pelo menos nessa obra, mostravam que, apesar das  condições materiais de existência dessa classe social que  tendia a predispô‐la “bem mais a  se deixar  comprar  por  tramas  reacionárias”,  como  ocorreu  na  luta  de classes  na  França  (um  episódio  histórico  concreto),  o lumpemproletariado  poderia  ‐  e  pode  ‐  contribuir  com  a  revolução proletária.  Esse  detalhe  é  importante,  pois  demonstra  que  a  postura política do lumpemproletariado não resulta de uma espécie de essência do seu ser‐de‐classe que sempre o arrasta para um papel conservador e reacionário na luta de classes, pelo contrário, apresenta que essa classe, também, possui outras possibilidades e que tudo depende da dinâmica da  luta  de  classes  e  de  sua  correlação  de  forças  em  determinados contextos históricos.  

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Além  dessa  passagem  presente  na  obra  O  manifesto  do  partido comunista,  outras  passagens  são  importantes  para  compreendermos  a visão  de Marx  sobre  essa  classe  social  e  a  influência  que  a  mesma exerceu em  teóricos posteriores que discutiram o  lumpemproletariado. Nas  suas  duas  principais  obras  históricas, O  18  Brumário  (1997)  e As lutas  de  classes  na  França  –  de  1848  a  1850  (2008),  Marx  analisa  os interesses de classes envolvidos nas  lutas que se desenvolveram nesse contexto histórico francês e as estratégias que as classes sociais em luta utilizaram  para  garantir  tais  interesses.  Para  compreendermos  um pouco esse processo, utilizaremos de algumas extensas citações. Em A luta de Classes na França, Marx assim descrevia: 

 A revolução de fevereiro tinha atirado o exército para fora de Paris. A Guarda Nacional,  isto é, a burguesia nas suas diferentes gradações, constituía a única força.  Contudo,  não  se  sentia  suficientemente  forte  para  enfrentar  o proletariado. Além disso,  fora obrigada, ainda que opondo a mais  tenaz das resistências  e  levantando  inúmeros obstáculos,  a  abrir, pouco  a pouco,  e  em pequena  escala,  as  suas  fileiras  e  a  deixar  que  nelas  entrassem  proletários armados. Restava, portanto, apenas uma saída: opor uma parte do proletariado à outra. Para  esse  fim, o governo provisório  formou  24 batalhões de guarda móveis, cada um deles  com mil homens,  cuja  idades  iam de  15  aos  20  anos. Na  sua maioria pertenciam ao lumpemproletariado, que em todas as grandes cidades constituiu  uma massa  rigorosamente distinta do  proletariado  industrial,  um centro de recrutamento de ladrões e criminosos de toda a espécie que vivem da escória  da  sociedade,  gente  sem  ocupação  definida,  vagabundos,  gente  sem pátria  e  sem  lar,  variando  segundo  o  grau  de  cultura  da  nação  a  que pertencem, não negando nunca o  seu  caráter de Lazzaroni  capazes, na  idade juvenil  em  que  o  governo  provisório  os  recrutava,  uma  idade  totalmente influenciável, dos maiores heroísmos e dos sacrifícios mais exaltados como do banditismo mais repugnante e da corrupção mais abjeta. O governo provisório pagava‐lhes 1 franco e 50 centavos por dia, isto é, comprava‐os. Dava‐lhes um uniforme próprio,  isto é, distinguia‐os exteriormente dos homens de blusa de operário.  Para  seus  chefes  eram‐lhe  impostos,  em  parte,  oficiais  do  exército permanente,  em  parte,  eram  eles  próprios  que  elegiam  jovens  filhos  da burguesia que os cativavam com suas fanfarronadas sobre a morte pela Pátria e a dedicação à república (p. 84‐85). 

 Em O 18 Brumário podemos ler: 

 Nessas  excursões,  que  o  grande  Moniteur  oficial  e  os  pequenosMoniteurs privados  de  Bonaparte  tinham  naturalmente  que  celebrar  como  triunfais,  o 

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presidente  era  constantemente  acompanhado  por  elementos  filiados  à Sociedade de 10 de Dezembro. Essa sociedade originou‐se em 1849. A pretexto de  fundar  uma  sociedade  beneficente  o  lumpemproletariadode  Paris  fora organizado  em  facções  secretas,  dirigidas  por  agentes  bonapartistas  e  sob  a chefia geral de um general bonapartista. Lado a lado com roués decadentes, de fortuna  duvidosa  e  de  origem  duvidosa,  lado  a  lado  com  arruinados  e aventureiros  rebentos  da  burguesia,  havia  vagabundos,  soldados  desligados do  exército,  presidiários  libertos,  forçados  foragidos  das  galés,  chantagistas, saltimbancos, lazzarani, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus, donos de bordéis,  carregadores,  soldadores, mendigos – em  suma,  toda essa massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em Meca, que os franceses chamam La bohème; com esses elementos afins Bonaparte formou o núcleo da Sociedade de 10 de Dezembro. “Sociedade beneficente” no sentido de que todos os seus membros, como Bonaparte, sentiam necessidade de se beneficiar às expensas da  nação  laboriosa;  esse  Bonaparte,  que  se  erige  em  chefe  do lumpemproletariado, que só aqui reencontra, em massa, os  interesses que ele pessoalmente  persegue,  que  reconhece  nessa  escória,  nesse  refugo,  nesse rebotalho  de  todas  as  classes  a  única  classe  em  que  pode  apoiar‐se incondicionalmente, é o verdadeiro Bonaparte, o Bonaparte sansphrase(MARX, p. 78‐79). 

 O  que Marx  nos  apresenta  com  tais  passagens? O  que  é  possível 

apreender dessas passagens e o que pode ser interpretado como exagero dogmático nas releituras de outros autores sobre o lumpemproletariado? Nessas  passagens,  extraídas  de  duas  obras  de  caráter  histórico,  isto  é, obras  que  analisaram  determinados  acontecimentos  em  contextos históricos  específicos,  Marx  descreve  como  o  lumpemproletariado  – reenfatizando: naquele contexto –  foi cooptado pelo Estado  francês, sob comando de Luís Bonaparte, e utilizado na luta contra o avanço das lutas proletárias.  Ou  seja,  nesse  episódio  a  possibilidade  do lumpemproletariado  ser  cooptado  e  utilizado  como  “ferramenta subornada da intriga reacionária” se confirmou.  

A  obra  As  classes  perigosas  –  banditismo  urbano  e  rural  (2008)  de Alberto  Passos  Guimarães  se  apresenta  como  uma  interpretação tipicamente dogmática da análise que Marx e Engels realizaram sobre o lumpemproletariado. Nessa obra, seu autor transforma as afirmações de Marx  e  Engels  sobre  o  lumpemproletariado,  do  século  XIX,  em  “leis naturais e universais” e que podem ser aplicadas a qualquer situação e contexto histórico, pois para esse autor:  

 

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Tanto Marx quanto Engels sempre tiveram essa posição contrária à utilização de elementos do lumpemproletariado na ação revolucionária, por considerá‐lo instrumentos  mobilizáveis  pela  reação,  em  todos  os  tempos,  como  havia mostrado a experiência histórica (2008, p. 24). 

 E, posteriormente, ele continua com suas ênfases dogmáticas: 

 Mas  em  nenhum  momento  Marx  e  Engels  deixaram  de  considerar  as peculiaridades  de  cada  uma  das  formas  e  categorias  da  superpopulação relativa, de  seu papel e de  suas  funções na economia e na  sociedade. Nunca deixaram de salientar o antagonismo entre o caráter  revolucionário da classe operária  e  a  tendência  contrarrevolucionária  do  lumpemproletariado (GUIMARÃES, 2008, p. 28). 

 Porém,  é  necessário  compreender  que  a  postura  política  do 

lumpemproletariado não é uma “lei natural e universal” que pode ser aplicada  para  qualquer  situação,  em  qualquer  contexto  histórico. No entanto,  foi  isso  que  diversos  autores  ditos  “marxistas”  fizeram: interpretaram  essas passagens de Marx  sob o  lumpemproletariado de forma dogmática, tornando‐as espécies de “verdades reveladas” (assim disse o Senhor Marx no capítulo x, versículo y, amém). Postura essa que não possui nada de marxista, pois trata a ação de uma classe social de forma  estanque,  desconsidera  as  especificidades  das  condições materiais de existência, o desenvolvimento da correlação de forças e as tendências  próprias  da  dinâmica  da  acumulação  capitalista fundamentalmente  constituída  pela  luta  de  classes  em  contextos históricos distintos. Nesse sentido, 

 a  vulgarização  e  deformação  da  teoria  de  Marx    promoveram  uma simplificação e, aliado com determinados interesses e situações, transformou o lumpemproletariado  em  puramente  reacionário  (e  deixando  de  lado  o  que Marx  denominou  “condições  de  existência”,  como  numa  espécie  de maniqueísmo  que  transforma  essa parte da  sociedade  em  “representante do mal”.  Porém,  além  de  resgatar  o  que  Marx  realmente  disse,  é  necessário perceber  a  evolução  do  lumpemproletariado  e  sua  relação  com  o desenvolvimento capitalista e, assim, compreender melhor  seu papel político contemporaneamente (VIANA, 2011). 

 Em nossa análise o  lumpemproletariado é considerado uma classe 

social  intrínseca  ao  modo  de  produção  capitalista  e  que, conseqüentemente,  vem  se  desenvolvendo  e  se  ampliando 

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quantitativamente  com  o  desenvolvimento  desse modo  de  produção. No  entanto, não  acreditamos  que  o  lumpemproletariado  seja,  em  sua essência,  contrarrevolucionário,  assim  como  o  proletariado  é revolucionário na sua essência, pois acreditamos ser possível constatar que na contemporaneidade, especificamente no período de vigência da acumulação  integral,  o  lumpemproletariado  tende  a  se  aliar  ao proletariado, em momentos de  crise e enfrentamento,  contra o  capital econsequentementeauxiliar o avanço da luta pela transformação social.  

Percebe‐se,  então,  que  ao  contrário  dos  teóricos  que  analisaram  o lumpemproletariado de forma estanque e dogmática, aqui buscaremos analisar  o  lumpemproletariado  na  sua  evolução  histórica,  intentando buscar  respostas que  confirmem  a  tendência dessa  classe  em  adquirir um caráter cada vez mais contestador e uma aliança revolucionária com o  proletariado.  Esse  é  o  objetivo  do  próximo  capítulo:  analisar  a expansão do  lumpemproletariado no regime de acumulação  integral e toda a complexa dinâmica que envolve esse processo. 

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A Expansão do Lumpemproletariado no Regime de Acumulação Integral 

  Ao  invés  de  realizarmos  um  amplo  e  profundo  debate  sobre  os 

diversos teóricos que se dedicaram a analisar os regimes de acumulação (BENAKOUCHE,  1980; LIPIETZ,  1991; BRAGA,  1996, HARVEY,  2008 etc.)  e  o desenvolvimento  capitalista  (ROSTOW,  1974;  SWEEZY,  1982 etc.)  optamos  por  adotar  a  concepção  e  definição  de  regime  de acumulação desenvolvida pelo  sociólogo Nildo Viana  em  sua  obra O capitalismo na era da acumulação integral (2009) e analisarmos nosso objeto de  estudo  a  partir desse  referencial  teórico.  Isto,  no  entanto,  não  nos impossibilita de ora ou outra, de acordo com as necessidades de nossa análise,  recorrer  a  esse  ou  aquele  teórico  com  o  intuito de  enriquecer nosso  trabalho  a  partir  das  suas  diversas  contribuições,  assim  como debater e discordar, quando necessário, dos mesmos.  

Karl Marx  ao  analisar  a história da humanidade  com o  intuito de compreender  o  capitalismo  constatou  que  a  mesma  é marcada  pela sucessão  dos  modos  de  produção.  A  superação  de  um  modo  de produção  significa uma  ruptura histórica profunda e o  surgimento de sociedades  radicalmente  diferentes,  oriundas  de  um  processo revolucionário. Essa constatação e sua  teorização  foram realizadas por Marx e está contida no “Prefácio à Crítica da Economia Política”, que assim afirma:  

 (...)  Em  uma  certa  etapa  de  seu  desenvolvimento,  as  forças  produtivas materiais da  sociedade  entram  em  contradição  com  as  relações de produção existentes ou, o que nada mais é que a sua expressão jurídica, com as relações de  propriedade  dentro  das  quais  aquelas  até  então  tinham  se movido.  De formas  de  desenvolvimento  das  forças  produtivas  essas  relações  se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com  a  transformação  da  base  econômica,  toda  a  enorme  superestrutura  se transforma com maior ou menor rapidez [...] (1983, p. 24‐25).  

 Ao contrário do que ocorre em um contexto de revolução social, a 

mudança de um regime de acumulação para outro não representa uma transformação, mas  tão  somente mudanças no  interior de um mesmo modo de produção, portanto o que ocorre é 

 

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uma mudança no  interior de uma permanência, o que significa que, em sentido amplo, não há ruptura e nem radicalidade no processo de mudança. A sucessão de regimes de acumulação explicita a manutenção do modo de produção capitalista e de seus elementos característicos fundamentais, e a substituição de um regime por outro é marcada, no  fundo, pela realização do objetivo de manter as relações de produção capitalistas e pelo aprofundamento de tendências já existentes no regime anterior, seguindo a dinâmica da acumulação de capital (VIANA, 2009, p. 15).  

O  termo “regime de acumulação” não é um  termo antigo e muito menos consensual entre os diversos  teóricos que o utilizaram em suas análises  sobre o desenvolvimento do capitalismo. No entanto, para os propósitos  desse  trabalho,  utilizaremos  a  definição  e  sequência  de regimes de acumulação teorizada por Viana (2003; 2009). Para ele,  

 um  regime  de  acumulação  é  um  determinado  estágio  do  desenvolvimento capitalista,  marcado  por  determinada  forma  de  organização  do  trabalho (processo de valorização), determinada forma estatal e determinada forma de exploração internacional (2009, p. 30). 

 Em linhas gerais essa é a compreensão que o autor tem de um regime 

de acumulação. Segundo  ele, o que  é  fundamental na  compreensão de um regime de acumulação é a existência da luta de classes nas suas três formas  constituintes.  A  luta  de  classes  permanece  “relativamente estável”, pois apesar da vitória parcial da burguesia, a  luta histórica do proletariado, nos diversos regimes de acumulação, 

 não permite a intensificação da exploração e mantêm avanços e recuos dentro de  uma  relação  relativamente  estável  e  estabelecida  [...]  Se  não  houvesse  a resistência operária e de outras classes sociais, a exploração seria intensificada continuamente (VIANA, 2009, p. 30). 

 A  resistência  operária,  portanto,  impossibilita  que  a  exploração 

adquira  um  caráter  mais  violento  do  que  o  já  existente,  pois,  do contrário,  a  intensificação  e  precarização  do  trabalho  atingiria  níveis ainda  mais  insuportáveis  para  a  integridade  física  e  psíquica  do proletariado.  

Deste modo, o regime de acumulação é a  forma que o capitalismo adquire, em momentos históricos específicos, para promover sua meta essencial:  a  produção  de  mais‐valor.  A  maior  parte  do  mais‐valor convertido  em  capital  é  utilizado  pela  burguesia  para  expansão 

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ampliada  dos  seus  lucros  e  isso  desdobra‐se  em  acumulação, concentração  e  centralização  de  capital.  Na  busca  permanente  pela ampliação  da  acumulação,  os  capitalistas  expandem  seus  capitais mundialmente e isso os leva a programarem uma forma de exploração internacional.  Nesse  processo  o  estado  age  visando  a  garantir  a satisfação de  tais  necessidades  a partir de  sua  regularização. Aqui  se encontram  os  três  elementos  constituintes  de  um  regime  de acumulação. 

É importante destacar que além dos desdobramentos acima citados, o processo de acumulação gera outros desdobramentos  importantes e essenciais para a  sua  compreensão. A acumulação  capitalista,  como  já foi mencionada,  é  realizada através de uma  relação  entre burguesia  e proletariado e essa  relação é  fundamentalmente marcada pelo conflito de classes.  

A  burguesia  devido  aos  seus  interesses  de  classe  deve, necessariamente,  desenvolver  formas  cada  vez  mais  eficazes  para  a extração de mais‐valor, ou seja, para a exploração do trabalho. Por outro lado, o proletariado se vê coagido a lutar contra o capital uma vez que seu  ser‐de‐classe,  como  já  dizia  Marx,  é  essencialmente  aquele  que quanto mais eficaz torna seu trabalho, quanto mais riqueza é capaz de produzir, mais miserável se encontra e, por conta disso, se vê obrigado a desenvolver formas de  luta que se afirmem na busca pela destruição do capitalismo.  

É na  luta de  classes  que  o proletariado  acaba por  criar dificuldades para  a  acumulação  de  capital  e,  em  determinados momentos,  sua  luta radicaliza e tende a apontar para a superação da sociedade capitalista. Por mais  que  a  ideologia  burguesa  e  de  suas  classes  auxiliares  tente desacreditar essa possibilidade histórica, não há como negar essa tendência na  luta de classes. Tanto assim que a burguesia e o estado estão sempre procurando  meios  de  atenuar  os  efeitos  das  crises  que  ameaçam  a continuidade do processo de  reprodução do capital em escala ampliada. Nesses  períodos  de  enfraquecimento  é  que  um  novo  regime  de acumulação tende a aparecer em substituição ao antigo. Porém, isso não é uma lei natural e o que se pode perceber é que a dificuldade em acumular capital, a cada novo regime, é crescente.  

É certo que a tese aqui defendida aponta para a constatação de que a “história  do  capitalismo  é  a  história  da  sucessão  dos  regimes  de 

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acumulação”,  porém  tal  tese  não  coisifica  o  capitalismo  e  sua capacidade de se recuperar das crises, pelo contrário, ela contribui para pensar  na  existência  de  “limites  humanos  e  naturais  que  tornam  o capitalismo  um  período  transitório  na  história  da  humanidade.  A própria dinâmica do capitalismo, revelada na produção de mais‐valor, expressa sua finitude” (VIANA, 2009, p. 32). 

De acordo com Viana, a sucessão dos regimes de acumulação e suas características  centrais  existentes  na  Europa  ocidental  e  nos  demais países imperialistas (após o regime de acumulação primitiva de capital) são: a) regime de acumulação extensivo – da revolução  industrial até o final  do  século XIX  ‐, marcado  pela  extração  de mais‐valor  absoluto, pelo  domínio  do  Estado  liberal  e  do  neocolonialismo;  b)  regime  de acumulação  intensivo  –  do  final  do  século  XIX  até  a  segunda  guerra mundial ‐, caracterizava‐se pela busca de aumento da extração de mais‐valor relativo, através do taylorismo, pelo Estado liberal‐democrático e pelo  imperialismo  financeiro;  c)  regime  de  acumulação  intensivo‐extensivo ‐ do pós‐segunda guerra mundial até aproximadamente 1980 ‐, através  da  organização  fordista  do  trabalho  procurou  ampliar  a extração de mais‐valor  nos países  imperialistas  e  a  extração de mais‐valor  absoluto  dos  países  subordinados,  sendo  complementado  pelo “Estado  do  Bem‐Estar  Social”  e  pela  expansão  oligopolista transnacional e c) o regime de acumulação integral ‐ do final do século XX até os dias atuais – que busca ampliar concomitantemente a extração de mais‐valor  relativo  e  mais‐valor  absoluto  via  “reestruturação produtiva”,  tendo  o  Estado  neoliberal  como  agente  garantidor  desse processo e o neoimperialismo.  A teoria do regime de acumulação integral

 O  regime de  acumulação  integral  é  fruto da  resposta  capitalista  à 

crise do final da década de 1960 e início da década de 1970, provocada pela tendência declinante da taxa de lucro e marcada pela radicalização das lutas estudantis e operárias na França, Alemanha e Itália, bem como pelo movimento de contracultura e pelo movimento pacifista nos EUA que foram responsáveis por promover a primeira rachadura no regime de  acumulação  intensivo‐extensivo que,  já no  início da década de  80, entra em colapso (VIANA, 2003, 2009; HARVEY, 2008).  

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Com a contínua queda na taxa de  lucro entre as décadas de 1960 e 1970, o capitalismo precisou encontrar soluções para a crise e isso levou ao  engendramento de um  novo  regime de  acumulação marcado pelo aumento da exploração interna nos países imperialistas e, também, nos países  subordinados,  tanto  no  aumento  da  extração  de  mais‐valor relativo  (avanço  tecnológico  na  produção,  reestruturação  produtiva etc.),  assim  como  na  extração  de mais‐valor  absoluto  (expansão  das jornadas de trabalho via hora‐extras). Ou seja, tal regime se afirmará em um processo de acumulação de capital integral. 

O regime de acumulação extensivo que prevaleceu desde a revolução industrial  até  fins  do  século  XIX  foi  marcado  pelo  predomínio  da extração de mais‐valor absoluto15, presente nas prolongadas jornadas de trabalho,  na  exploração de  trabalho  infantil  e  feminino,  nas  péssimas condições de  trabalho e moradia e nos míseros salários. Em resposta a essas péssimas  condições de  trabalho e vida, o proletariado  radicaliza suas  lutas  multisseculares  e  pressiona  a  burguesia  a  fazer  algumas concessões. Tais concessões resultam, principalmente, em uma drástica redução das jornadas de trabalho (MARX, 1985).  

O resultado negativo disso para o processo de acumulação é visível, pois a redução da jornada de trabalho significa a redução da extração de mais‐valor absoluto e, consequentemente, a burguesia se vê obrigada a reagir.  A  partir  desse  momento  é  que  a  classe  capitalista  sente necessidade de elaborar de forma consciente e racionalizada uma forma de se combater a tendência declinante da taxa de lucro. Destarte, 

 a obra de Friedrich Taylor  representa a  tentativa de  realizar um aumento da produtividade, ou seja, de extração de mais‐valor, através da organização do 

15 “A mais‐valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais‐valia  absoluta;  a  mais‐valia  que,  ao  contrário,  decorre  da  redução  do  tempo  de trabalho e da correspondente mudança da proporção entre os dois componentes da jornada  de  trabalho  chamo  de  mais‐valia  relativa”  (MARX,  1985,  p.  251);  “O desenvolvimento da força produtiva do trabalho, no seio da produção capitalista, tem por finalidade encurtar a parte da  jornada de trabalho durante a qual o trabalhador tem de trabalhar para si mesmo, justamente para prolongar a outra parte da jornada de  trabalho durante a qual pode  trabalhar gratuitamente para o capitalista. Até que ponto pode‐se alcançar ainda esse resultado sem baratear as mercadorias, mostrar‐se‐á nos métodos particulares de produção da mais‐valia relativa (...)” (MARX, 1985, p. 255). 

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trabalho.  A  chamada  ‘organização  científica  do  trabalho’,  ou  simplesmente taylorismo,  é  o  primeiro  passo  para  se  conseguir  combater  a  tendência  da queda da taxa de lucro médio (VIANA, 2009, p. 65).  

A proposta de Taylor  visa  aumentar  a produtividade do  trabalho mesmo  com  a  redução  das  jornadas  e  para  isso  foi  necessário  uma intensificação  do  controle  e  vigilância  sobre  os  operários  a  partir  de diversas  artimanhas,  entre  as  quais  podemos  destacar:  produção rigidamente  cronometrada,  divisão  entre  elaboração  e  execução  de tarefas,  premiação  individual  por  produtividade,  formação  de especialistas para a gerência etc. (TAYLOR, 1987). 

Como  todo processo de produção de mercadorias  é marcado pelo confronto entre as classes antagônicas, é claro que a ação de uma gera a reação da outra, assim, o proletariado tendeu a reagir ao taylorismo. O próprio  Taylor  afirma  em  sua  obra  que  por  diversas  vezes  recebeu ameaça  de  morte.  Desse  modo,  constata‐se  que  o  taylorismo representou a  tentativa da burguesia ampliar a extração de mais‐valor relativo,  recorrendo  à  racionalização  do  processo  produtivo  num período histórico  em que  o desenvolvimento  tecnológico  é  incipiente. Assim  como Viana,  reconhecemos  que  o  taylorismo  fornecerá  a  base para  as  demais  formas  de  organização  do  trabalho  em  períodos posteriores e não visualizamos nenhuma mudança significativa nessas demais formas, pois 

 as alterações  implantadas pelo  fordismo, por exemplo,  referem‐se a questões superficiais e são provocadas pelo desenvolvimento histórico do capitalismo. O contexto histórico do fordismo remete ao aceleramento de desenvolvimento tecnológico em relação ao período anterior (VIANA, 2009, p. 67).  

Mesmo  entre o  toyotismo  e as  formas de organização do  trabalho que o antecederam não há nenhuma ruptura, pois o toyotismo segue a mesma  lógica dos anteriores e as diferenças existentes  são meramente secundárias. A organização do trabalho arquitetada por Taylor pode ser concebida da seguinte forma: 

 caracteriza‐se  por  um  processo  de  controle  da  força  de  trabalho  realizado segundo uma forma “racionalizada”, ou seja, calculada, medida, normatizada, objetivando  o  aumento  da  produtividade,  isto  é,  de  extração  de mais‐valor relativo,  e  isto  pressupõe  a  “gerência  científica”,  o  que  significa  não  só  a 

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aplicação  do  conhecimento  técnico‐científico  ao  processo  de  produção, conhecimento este extraído em parte do próprio saber operário, como também a  existência dos  gerentes,  ou  seja,  conjunto de  especialistas  encarregados  em planejar  a  execução das  tarefas. Em outras palavras, o  taylorismo pressupõe uma camada de burocratas: a burocracia empresarial. O fordismo e as demais formas de organização do trabalho também possuem a mesma razão de ser e por isso não são nada mais do que extensões e adaptações do sistema Taylor às necessidades históricas de determinado estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista (VIANA, 2009, p. 68).   

A diferença essencial entre fordismo e toyotismo consiste no fato de que o primeiro era marcado pela rigidez enquanto o segundo funda‐se na sua capacidade flexível. Mas isto não é suficiente para contradizer as características  fundamentais  que  estão  presentes  no  fordismo.  No fundo, a grande mudança apresentada pelo  toyotismo está no  fato da sua produção se encontrar submetida à demanda do mercado, enquanto no fordismo a produção era uma produção em massa.  

 Na verdade o que ocorre é que a produção  estandardizada do  fordismo  se vê substituída por uma produção personalizada  , ou seja, a produção em massa ou em série de um mesmo produto é substituída por uma produção variada. Isso não  impede a produção  em massa, pois  apenas personaliza os produtos por cotas, ou seja, a produção em massa deixa de ser de apenas um produto para ser de vários produtos (VIANA, 2009, p. 68‐69).  

Uma  reflexão  importante  levantada  por  Viana  na  sua  obra  O capitalismo  na  era  da  acumulação  integral  (2009)  trata  da  sua  crítica  à expressão “flexível” e/ou “flexibilização”. Para ele, o conceito “flexível” não  expressa  a  realidade  concreta  a  qual  ele  propõe  expressar. Primeiramente,  tal  conceito  possui  inúmeros  significados  nos dicionários (“aptidão para variadas coisas ou aplicação” ou “submissão e docilidade”, por exemplo). Esse duplo sentido da palavra é suficiente para percebermos que sua utilização também revela ambiguidades tais como  falar  em  “especialização  flexível”,  “acumulação  flexível”  e “flexibilização dos  trabalhadores”. O  termo  flexibilização “se refere na maioria dos casos, a aptidão múltipla” (VIANA, 2009, p. 70). 

Não  seria  o  caso  de  questionarmos  se  ao  contrário  do  que  é comumente  afirmado  e  aceito,  ou  seja,  da  existência  de  uma “flexibilização” do aparato produtivo e dos trabalhadores, na verdade o que existe não seria uma inflexibilidade, pois tanto o aparato produtivo 

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quanto  os  trabalhadores  são  submetidos  “inexoravelmente”  e “implacavelmente”  ao  objetivo  de  aumentar  a  extração  de  mais‐valor relativo? (VIANA, 2009). 

Segundo  Viana,  várias  podem  ser  as  razões  que  explicam  esta confusão na  linguagem e uma das principais apontam para a carência de uma teoria sobre a atual fase do capitalismo mundial e das formas de organização  do  trabalho  assumidas  na  contemporaneidade. Mas,  em outros  casos  essa  confusão  revela um discurso  ideológico que  através da suavização com as palavras acaba por facilitar que um véu nebuloso desça  e  ofusque  a  possibilidade  de  uma  consciência  correta  da realidade.  Nesse  sentido,  portanto,  percebe  o  quanto  o  discurso  da “flexibilização” serve aos interesses das classes capitalistas uma vez que a  existência  de  trabalhadores  moldáveis  e  mercados  flexíveis contribuem para essas novas exigências da acumulação integral. Já para o  proletariado  tal  “flexibilização”  representa  exatamente  uma exploração integral. 

Para  quem  conhece  o  rigor  teórico‐metodológico  presente  no pensamento  desse  autor,  e  que  pode  ser  compreendido  de  forma aprofundada  nas  suas  principais  obras  que  levantam  preocupações desse  cunho  (A  consciência  da  História  –  ensaios  sobre  o  materialismo histórico‐dialético,  2007;  Escritos  metodológicos  de  Marx,  2007a),  logo perceberá  que  essa  crítica  ao  termo  “flexibilização” não  é  secundária, pois se existe apenas uma realidade (nesse caso a acumulação capitalista na  contemporaneidade), o  conceito que busca  expressá‐la não deveria ser equivalente a ela? Para Viana, assim como para nós, a resposta é só uma:  sim,  todo  conceito  deve  ser  expressão  da  realidade,  pois  “a expressão mais adequada a qualquer relação ou  fenômeno social deve ser compatível com seu ‘ser’ que expressa” (VIANA, 2009, p. 70). Aqui, portanto,  reside  o  fundamento  da  sua  teoria  do  regime  de  acumulação integral, isto é, o regime de acumulação dominante a partir da década de 1980 se baseia numa acumulação capitalista integral. Mas, deixemos que o próprio autor apresente sua tese: 

 no caso da acumulação, o que se busca é concretizar uma acumulação integral, simultaneamente  intensiva  e  extensiva  através  da  extensão  do  processo  de mercantilização  das  relações  sociais  e  da  busca  de  ampliação  do  mercado consumidor, mesmo  que  esta  busca  se  caracterize,  em  parte,  pela  produção personalizada,  e  também  pelo  aumento  da  intensificação  da  exploração  da 

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força  de  trabalho  através  do  aumento  de  extração  de mais‐valor  relativo  e absoluto.  No  caso  da  especialização  ou  do  que  alguns  chamam  de  pluri‐especialização(Coriat), trata‐se de uma especialização ampliada, onde ao invés do trabalhador  se  dedicar  a  apenas  uma  atividade  passa  a  se  dedicar  a  várias, embora  se mantenha  afastado  do  controle  do  processo  de  trabalho,  o  que significa  especialização no processo de  execução,  e  continue não  executando certas funções práticas que ficam a cargo de outros trabalhadores. No caso dos trabalhadores, o que ocorre é uma  intensificação da exploração com a retirada de  seus direitos  já  conquistados  e da  formação de um mercado de  trabalho inflexível,  onde  os  trabalhadores  se  submetem  a  subcontratação,  ao desemprego,  etc. No  caso  da  subcontratação  (bem  como  no  caso  das  horas extras), o que  se vê é um aumento disfarçado da  jornada de  trabalho, o que significa  aumento  de  extração  de  mais‐valor  absoluto.  Aliás,  mais‐valor relativo  e  mais‐valor  absoluto  andam  juntos  no  período  de  acumulação integral,  embora  isto  seja  constante  no  capitalismo,  mas  agora  assume proporções  intensas,  tal  como  não  ocorria  há  muito  tempo  na  história  do capitalismo (VIANA, 2009, p. 70‐71). 

 Como já foi dito, não visualizamos nenhuma diferença significativa 

entre taylorismo e toyotismo, pois a suposta “flexibilização” da empresa com  o  objetivo  de  subordinar‐se  à  demanda  do mercado  “se  revela numa mudança no quanto se produzir, e não no que e como se produzir. Pensar o contrário só seria possível  imaginando que o consumidor  iria idealizar  um  produto  ainda  inexistente  e  depois  iria  solicitá‐lo  à empresa” (VIANA, 2009, p. 72).A produção personalizada representa a forma  que  as  empresas  encontraram  para  ampliar  e  conquistar  o mercado  consumidor  através  de  suas  agendas  de  publicidade  e marketing,  pois  “para  manter  a  reprodução  ampliada  do  capital  é preciso garantir a reprodução ampliada do mercado consumidor, e isto implica  produzir  necessidades  fabricadas,  já  que  estas  realizam  esta ampliação” (VIANA, 2009, p. 72). 

Em síntese o  toyotismo representa uma adaptação do  taylorismo à nova  fase  do  capitalismo,  no  período  de  vigência  do  regime  de acumulação  integral,  expressando  uma  ofensiva  do  capital  contra  a tendência declinante da  taxa de  lucro,  e  isto  tem  representado para  a classe  trabalhadora um  processo de  exploração  integral  visto  que,  no processo  de  produção,  e  derivado  da  sua  condição  atual,  tem promovido uma extensão das  jornadas de trabalho, uma  intensificação alucinante  do  ritmo  de  trabalho,  ampliação  da  psicopatologia  do trabalho etc.  Isso para mencionarmos apenas as  consequências diretas 

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da produção de mais‐valor, fora as demais consequências, tais como, o crescente  processo  de  lumpemproletarização  (comprovado  com  o crescimento  generalizado  do  desemprego  em  escala  global  e  de  um empobrecimento  de  parcela  crescente  da  população  mundial)  e  a criminalização de  suas  vítimas  pelo Estado Penal  etc.  (WACQUANT, 2001; BRAGA, 2010; 2013).  

Todavia,  a  acumulação  integral  não  soluciona  os  problemas  do capitalismo, pois se por um lado ela combate a tendência declinante da taxa  de  lucro,  por  outro  lado,  aumenta  a  exploração  e  promove  um amplo  processo  de  lumpemproletarização.  Assim,  tal  regime  de acumulação tende a possibilitar o crescimento da radicalização das lutas sociais  que  acaba  colaborando para  o  enfraquecimento da hegemonia burguesa  na  sociedade  civil.  “Nesse  sentido,  a  acumulação  integral  é contraditória e só se mantém enquanto perdurar a hegemonia burguesa, com  toda a  sua  fragilidade em períodos como este”  (VIANA, 2009, p. 76). 

Antes  de  iniciarmos  a  discussão  sobre  a  emergência  do  Estado neoliberal  e  sua  dinâmica,  gostaríamos  de  apresentar  brevemente  a singularidade da análise de Viana sobre o papel do Estado como agente regularizador das relações sociais na sociedade capitalista. Para Viana, é emergencial  a  construção  de  um  conceito  adequado  que  dê  conta  de expressar  teoricamente  a  complexa  relação  que  existe  entre modo  de produção  e  Estado.  Tradicionalmente,  a  corrente  “marxista”  adota  a metáfora do “edifício  social” –  infra‐estrutura e  superestrutura – para analisar  essa  relação,  no  entanto,  tal metáfora  não  é  satisfatória,  pois segundo a perspectiva do materialismo histórico‐dialético tanto o termo infraestrutura  quanto  o  termo  superestrutura  não  consistem  em conceitos, ou seja, não expressam nenhuma realidade16.   

16 Karl Marx  “utilizou  o par  conceitual  infra‐estrutura  e  superestrutura,  ao  que  tudo indica, apenas uma vez, num prefácio que  ele mesmo qualificou de  ‘resumo geral’ que serviu de ‘fio condutor’ para suas pesquisas. Toda uma tradição posterior, auto‐intitulada  ‘marxista’,  transformou  este  par  conceitual  em  ‘esquema  básico’  do ‘materialismo histórico’. Coube a Karl Korsch, uma rara exceção, o mérito de romper com esse esquematismo. Ele afirmou que o materialismo histórico é um ‘instrumento heurístico’  e,  assim,  superou,  implicitamente,  a  tese  da  relação  esquemática  entre ‘base’ e  ‘superestrutura’  (VIANA, 2007, p. 69); “Essa  tendência de  transformação da metáfora  ilustrativa em metáfora normativa é  reforçada pela não elaboração de um 

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Em nossa análise adotamos o conceito de formas de regularização das relações  sociais17que  engloba,  assim  como  na  concepção  de  Marx,  o estado,  as  instituições  estatais  e  privadas,  as  normas  legais,  a sociabilidade,  as  ideologias  e  a  cultura  em  geral  etc.  que  procuram tornar regular, além da produção, as relações sociais oriundas do modo de produção capitalista. Nesse sentido, afirmamos que  todo regime de acumulação vem acompanhado de determinadas formas de regularização das relações sociais e da produção que  lhe são próprias. É a partir dessa compreensão que analisaremos a principal  forma de regularização das relações  sociais  do  regime  de  acumulação  integral  que,  nesse  caso, consiste no Estado neoliberal. 

Um equívoco comumente cometido por vários autores que discutem o  neoliberalismo  consiste  em  confundir  a  emergência  da  ideologia neoliberal  com  a  emergência  do  próprio  Estado  neoliberal.  Em  1944 surge a  ideologia neoliberal  com a obra Os  caminhos da Servidão de F. Hayek,  no  entanto  a  forma  estatal  dominante  nesse  período  até aproximadamente a década de 1980 é o Estado do “bem‐estar  social”, portanto,  ao  contrário  do  que  acreditam  determinados  autores (ANDERSON, 2000), não seria possível que o neoliberalismo enquanto forma  estatal  pudesse  ter  surgido  com  tal  obra,  nem  sequer  pode‐se afirmar que o neoliberalismo  consistiu meramente na aplicação de  tal ideologia na prática. 

O  Estado  neoliberal,  que  emerge  a  partir  da  década  de  1980,  é resultado  de  um  “conjunto  de  transformações  no modo  de  produção capitalista, expressando uma alteração no  seu  regime de acumulação” (VIANA,  2009).  Para  compreender  o  neoliberalismo  além  de  suas características  aparentes  é  preciso  inseri‐lo  na  totalidade  das  relações 

conceito que expresse o referente material da noção de superestrutura. A construção do  texto de Marx deixa  claro as  relações  existentes  entre as duas noções:  elevação, constituição, correspondência, condicionamento, determinação, contradição, alteração etc.,  e  outras  no  interior  delas:  correspondência,  desenvolvimento,  contradição, transformação etc. Isto comprova a existência de uma relação concreta entre as duas noções,  mas  estas  não  podem  possuir  uma  relação  verdadeiramente  concreta, porquanto  não  são  conceitos  e  sim  noções  ou  constructos  que  não  manifestam nenhuma  realidade,  apenas  ilustram  uma  relação  entre  elementos desta”  (VIANA, 2007, p. 71). 

17 Sobre a teoria das formas de regularização das relações sociais Cf. (VIANA, 2007). 

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sociais,  analisar  sua  determinação  fundamental  no  atual  momento histórico, o desenvolvimento capitalista e a  luta de classes que vêm se desenvolvendo nas últimas décadas. Vale ressaltar que a luta de classes é a determinação fundamental das mudanças ocorridas nos regimes de acumulação e que a mesma está presente nas três partes constituintes de tais regimes. 

A  emergência  do  neoliberalismo  só  pode  ser  compreendida  se inserida nas transformações ocorridas a partir da década de 1960/70 nos países capitalistas imperialistas (EUA e algumas nações europeias). Na década de  1950  surge no  Japão o  sistema Toyota18,  isto  é,  a  forma de organização  do  trabalho  necessária  para  combater  a  tendência declinante da  taxa de  lucro e promover uma nova  fase de valorização do capital. O processo baseado nessa forma de organização foi chamado de  “reestruturação  produtiva”  e  se  generalizou  mundialmente  nos países  capitalistas  imperialistas.  Com  isso  é  engendrado  um  novo regime de acumulação que exige outra formação estatal que regularize as novas necessidades do capital. Assim nasce o neoliberalismo. 

Uma questão nos parece  instigante, pois para que um novo regime de acumulação possa emergir é necessário que o anterior entre em crise, portanto em que consiste essa crise, ou seja, qual o significado da crise do  regime  de  acumulação  intensivo‐extensivo  para  a  emergência  do regime  de  acumulação  integral  e,  consequentemente,  do  Estado neoliberal? As décadas de 60 e 70 do século XX são marcadas por uma crise  do  regime  de  acumulação  intensivo‐extensivo  derivada  da tendência declinante da taxa de lucro médio. Tal tendência foi expressa em  diversas  dificuldades  encontradas  para  a  reprodução  capitalista, pois 

 o  sucesso deste  regime de acumulação dependia do alto grau de  exploração dos  trabalhadores  do  capitalismo  subordinado,  da  constante  reprodução 

18 “O sistema Toyota teve sua origem na necessidade particular em que se encontrava o Japão de  produzir  pequenas  quantidades de  numerosos modelos de  produtos;  em seguida  evoluiu  para  tornar‐se  um  verdadeiro  sistema  de  produção.  Dada  sua origem,  este  sistema  é particularmente  bom na diversificação. Enquanto,  o  sistema clássico de produção de massa planificado  é  relativamente  refratário à mudança, o sistema Toyota, ao contrário, revela‐se muito plástico; ele adapta‐se bem às condições de diversificação mais difíceis. É porque ele  foi concebido para  isso”  (OHNO apud CORIAT, 1995, p. 30). 

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ampliada  do  mercado  consumidor  e  da  integração  da  classe  operária  no capitalismo  oligopolista  transnacional,  elemento  que  dependia  dos  dois anteriores. A partir do final da década de 60, estes três elementos encontraram dificuldades crescentes em se reproduzir (VIANA, 2003, p. 92). 

 Juntamente  com  essas  dificuldades  passavam  a  crescer  as  ondas  de 

greves operárias, destaque para as francesas e italianas que atingiram grau elevadíssimo  de  radicalidade,  e  várias  tensões  sociais  derivadas  da organização e manifestação de diversos grupos, tais como o movimento de contracultura, o movimento hippie, o pacifismo, o movimento negro norte‐americano, o movimento feminista, o movimento estudantil etc., além dos conflitos ocorridos nos países de capitalismo subordinado. Esse quadro de tensões sociais contribuiu para o agravamento da crise de acumulação do regime de  acumulação  intensivo‐extensivo que desde  a década de 60  se encontrava com sérias dificuldades.  

Outras  abordagens  acrescentam  a  esse  quadro  a  contribuição  que outros fatores deram para o agravamento da crise, entre eles destacam‐se 

 os efeitos da decisão da OPEP de aumentar os preços do petróleo e da decisão árabe  de  embargar  as  exportações  de  petróleo  para  o  Ocidente  durante  a guerra árabe‐israelense de 1973.  Isso mudou o custo relativo dos  insumos de energia  de maneira  dramática,  levando  todos  os  segmentos  da  economia  a buscarem modos  de  economizar  energia  através  da mudança  tecnológica  e organizacional [...] (HARVEY, 2008, p. 136). 

 A  necessidade  da  burguesia  em  engendrar  um  novo  regime  de 

acumulação  vem  acompanhada  da  necessidade  de  uma  nova  forma estatal  que  o  torne  regular.  É  nesse  sentido,  portanto,  que  o  Estado neoliberal emerge, ou seja, como um complemento que atenda as novas necessidades do capital, pois o combate à tendência declinante da taxa de lucro passa pela criação de condições para o aumento da extração de mais‐valor e isto só seria possível ampliando a extração tanto em escala nacional  quanto  em  escala  internacional,  ou  seja,  ampliando  a exploração  de  forma  integral.  Desse  modo,  o  Estado  neoliberal complementa  o  processo  de  “reestruturação  produtiva”  criando  as condições institucionais indispensáveis para o aumento da acumulação capitalista. 

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A partir da década de 1980 diversos governos neoliberais chegaram ao poder. A eleição de Margareth Tatcher em 1979 na Inglaterra, Ronald Reagan em 1980 nos EUA e Helmuth Kohl em 1982 na Alemanha. Daí por diante, paulatinamente, diversos  outros países  adotaram políticas neoliberais  e,  por  conseguinte,  surge  um  período  de  expansão  das privatizações,  de  desregulamentação  dos mercados  e  das  relações  de trabalho,  ajustes  fiscais  e monetários, precarização  e  intensificação do trabalho, expansão do lumpemproletariado e da repressão etc.  

Em  suma,  o  Estado  neoliberal  chega  para  varrer  os  direitos trabalhistas,  precarizar  as  condições  de  trabalho  possibilitando contratos  temporários,  terceirização,  subcontratação,  aumento  do desemprego,  exploração  do  trabalho  infantil,  cortes  drásticos  nas políticas  sociais,  aumento  da  insegurança  social  com  a  expansão  da criminalidade e da repressão pelo “Estado Penal” e um amplo processo de  empobrecimento  em  escala  global  via  processo  de lumpemproletarização.  Por  conseguinte,  o  Estado  neoliberal  cria  as condições “legais” para a construção de um mundo de “exploração sem limites”  (BOURDIEU, 1998), uma vez que  substitui o Estado do Bem‐Estar Social pelo Estado do Bem‐Estar Corporativo  (HARVEY, 1998a).  Neste sentido, 

 podemos dizer  que  o Estado  neoliberal  está  atingindo  seus  propósitos,  pois vem contribuindo para o aumento da exploração e recuperação da acumulação capitalista, tanto a nível nacional quanto a nível internacional. Podemos dizer, resumidamente, que o neoliberalismo é uma nova forma estatal que surge nos anos  80,  sendo  produto  do  regime  de  acumulação  integral,  e  que  busca diminuir  os  gastos  estatais,  desregulamentar  o mercado,  subsidiar  o  capital oligopolista  e  aumentar  a  política  repressiva,  facilitando  assim  o desenvolvimento  da  reestruturação  produtiva  e  da  instauração  de  novas relações internacionais. As consequências do neoliberalismo são o aumento da pobreza e miséria, da desigualdade, da criminalidade e dos conflitos sociais. O mundo neoliberal é um mundo marcado por contradições crescentes (VIANA, 2009, p. 91).  

Todo  processo  de  valorização  expressa  uma  correlação  de  forças entre a burguesia e o proletariado em determinado momento histórico, isto é, expressa certo estágio da  luta de classes. É claro que  tal  luta de classes tem apontado, até então, para a preeminência da dominação da burguesia,  pois  caso  contrário,  as  relações  de  produção  capitalistas 

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estariam  abolidas  ou  prestes  a  serem  abolidas.  Todavia,  tal preeminência  não  é  absoluta,  pois  a  luta  cotidiana  e  espontânea  do proletariado  tende a criar obstáculos e recuos para o desenvolvimento de uma exploração cada vez maior no processo de acumulação. Dessa forma,  a  luta  de  classes  no  capitalismo  se  apresenta  relativamente estável  já  que  a  ofensiva  operária,  apesar  de  vários  momentos  de radicalidade na história, não conseguiu, até então, abolir as relações de produção capitalistas.  

As  formas  estatais  que  a  sociedade  capitalista  conheceu  também expressa uma correlação de  forças entre as duas classes  fundamentais do  capitalismo,  assim  como  de  outras  classes  sociais,  em  períodos históricos  específicos.  Isso  pode  ser  percebido,  por  exemplo,  nas conquistas  operárias  e  camponesas  que  possibilitaram  alterações  nas legislações  capitalistas,  criação  de  leis  trabalhistas,  indenizações  etc. Mas  nesse  caso  a  luta  de  classes  também  se  expressa  de  forma relativamente estável. Do mesmo modo, a exploração  internacional  se apresenta  como  expressão  da  luta  de  classes mediada  pelos  Estados Nacionais.  Ela  aponta,  em  cada  estado‐nação,  a  correlação  de  forças entre  as  classes  sociais  internas  que  influenciam  as  relações internacionais  e  define  determinadas  características  de  uma  nação nessas relações (VIANA, 2009). 

 O  regime  de  acumulação,  portanto,  é  a  forma  que  o  capitalismo  assume durante  o  seu  desenvolvimento. O  desenvolvimento  capitalista,  no  entanto, possui uma  tendência, determinada  em  sua própria  essência:  a produção de mais‐valor. O desdobramento da produção de mais‐valor é a acumulação de capital  e  este,  por  sua  vez,  gera  a  reprodução  ampliada  e  a  centralização  e concentração  do  capital,  gerando  a  expansão  mundial  do  capitalismo  e  a exploração  internacional, ao  lado da ação estatal no  sentido de garantir  todo este processo (VIANA, 2009, p. 31).  

Antes  de  tecermos  nossos  últimos  comentários  sobre  a  teoria  do regime  de  acumulação  integral,  gostaríamos  de  mencionar  que  sua forma  composta  pela  exploração  internacional,  ou  seja,  o neoimperialismo,  será  analisada  no  próximo  capítulo  quando destacaremos  a  condição  brasileira  de  capitalismo  subordinado  aos interesses das potências neoimperialistas. 

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 As tensões sociais derivadas da exploração capitalista promovem a eclosão de diversas lutas e resistências das classes operárias e de outras classes  sociais  que  ameaçam  a  existência  do  modo  de  produção capitalista  e  contribui para o  agravamento da  crise  social, pois diante desse perigo as classes capitalistas e suas classes auxiliares (burocracia estatal e partidária, por exemplo) são coagidas a recuarem e realizarem diversas  concessões  que  acabam  por  emperrar  o desenvolvimento do capital em busca de sua meta essencial que é a extração, cada vez maior, de mais‐valor. Além  disso,  existe  a  tendência  geral  e  espontânea  da acumulação capitalista de gerar o declínio da taxa de lucro médio, que, por  sua  vez,  obriga  a  classe  capitalista  a  ampliar  a  exploração  com  o intuito de combater essa queda. 

As  crises  capitalistas  são  resultados  da  radicalidade  desses  dois desdobramentos que se reforçam mutuamente, pois 

 as conquistas do proletariado interferem na extração de mais‐valor, reforçando a  tendência  de  queda  da  taxa  de  lucro  e  esta  tendência,  realizando‐se  e provocando  a  ação  reativa  da  classe  burguesa  no  sentido  de  aumentar  a exploração para compensar tal queda, reforça o descontentamento e a luta do proletariado. Assim,  um  tende  a  reforçar  o  outro  e  proporcionar  uma  crise. Esta  crise  ou  gera um processo  revolucionário  e  abolição do  capitalismo  ou então  proporciona  um  mudança  no  interior  do  capitalismo,  isto  é,  uma mudança no regime de acumulação (VIANA, 2009, p. 31‐32).  

Os  regimes  de  acumulação,  portanto,  são  formas  assumidas  pelo desenvolvimento  capitalista  e  que  expressam  as  configurações derivadas da luta de classes em determinado contexto histórico e que se configuram  em  formas  específicas  de  processo  de  valorização  do capital,  formas  estatais  e  determinadas  relações  internacionais.  Esses são  seus principais elementos definidores. No entanto, a expressão da luta de classes não se resume nessas formas, uma vez que outras esferas como  a  cultural,  ideológica,  científica,  cotidiana  etc.,  também caracterizam relações, valores e perspectivas de classes antagônicas que são  próprias  dessa  atual  configuração  do  capitalismo  na  era  da acumulação integral. 

É  importante  destacar  que  apesar  da  história  do  capitalismo  ser marcada pela sucessão dos  regimes de acumulação,  isto não deve nos levar  a  crer  que  o modo  de  produção  capitalista  tende  a  solucionar 

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infinitamente os problemas derivados de sua própria dinâmica, pois o que se percebe é que a cada novo regime de acumulação a dificuldade em promover a extração de mais‐valor, combater a tendência declinante da  taxa de  lucro e reprimir as crescentes  lutas sociais e sua disposição cada vez maior em se radicalizar se  torna mais difícil. A cada crise de um regime de acumulação a possibilidade de uma transformação social se abre e mesmo essa não ocorrendo e um novo regime de acumulação surgindo, o processo de exploração e as dificuldades de reprodução do capitalismo se tornam mais complicadas (VIANA, 2009).   Expansão e criminalização do lumpemproletariado nos EUA.

 Como  já vimos toda forma estatal expressa determinada correlação 

de  forças  na  luta  de  classes.  O  neoliberalismo  é  expressão  de  uma violenta  ofensiva  do  capital  contra  o  proletariado  e  outras  classes exploradas e suas conquistas sociais históricas, visando proporcionar a retomada da acumulação capitalista. Dessa maneira, o Estado neoliberal se apresenta como um complemento de  toda essa mudança estrutural, necessária para a emergência do novo regime de acumulação, atuando no campo da regularização das novas relações sociais imprescindíveis à efetivação da  acumulação  integral de  capital  e,  consequentemente, da restauração do poder de classe da burguesia.  

Com a vitória de Ronald Reagan à presidência dos Estados Unidos em  1980,  inicia‐se  a  era  da  liberalização  econômica,  da  nova regulamentação dos mercados e das relações trabalhistas, dos cortes de impostos para as corporações capitalistas, cortes orçamentários públicos e dos ataques à classe operária e a outras classes exploradas em geral. Um caso exemplar dessa nova ofensiva do capital sobre o trabalho nos Estados Unidos pode  ser percebida no duro golpe  aplicado  contra os sindicatos  dos  controladores  de  vôo  (PATCO)  no  ano  de  1981  e  do impacto  negativo  que  os  salários  sofreriam  a  partir  desse  ano.  De acordo com Harvey, a derrota desse sindicato para Reagan, na greve de 1981, marcou 

 um  ataque  generalizado  aos  poderes  do  trabalho  organizado  no  próprio momento  em  que  a  recessão  inspirada  em  Volcker  produzia  altas  taxas  de desemprego  (de  ao  menos  10%)  [...]  O  efeito  global  sobre  a  condição  do trabalho foi dramático – talvez melhor captado pelo fato de o salário mínimo 

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federal,  que  era  paritário  ao  nível  de  pobreza  em  1980,  ter  caído  para  30% abaixo  desse  nível  por  volta  de  1990.  Iniciou‐se  assim,  com  vigor,  o  longo declínio sobre os níveis dos salários reais (2008a, p. 34). 

 Para melhor  compreendermos  as  lutas  de  classes  como  o motor 

propulsor  das  mudanças  nas  formas  estatais  e  nas  tentativas  de reconstrução  do  poder  de  classe  da  burguesia  e  de  suas  classes auxiliares  nos  Estados Unidos,  resgataremos  as  batalhas  urbanas  dos anos  de  1960  na  cidade  de  Nova  York  e  seus  principais desdobramentos. Segundo Harvey (2008a), há décadas a reestruturação capitalista e o processo de deslocamento  industrial vinha  corroendo a base  econômica de Nova York  e promovendo um  amplo processo de suburbanização e empobrecimento da população residente no centro da cidade.  Em  resposta  a  esse  empobrecimento,  uma  onda  explosiva  de revoltas sociais dominou a cidade dando origem ao episódio que ficou conhecido  como  “crise  urbana”.  No  primeiro  momento,  o  governo federal  procurou  resolver  a  crise  com  a  promoção  da  expansão  do emprego  e  serviços  públicos,  no  entanto  diante  das  crises  fiscais federais, o presidente Nixon  se vê obrigado  a  abandonar  essa prática sob a alegação de que o problema da “crise urbana” não mais existia. No fundo isso significaria que os recursos federais não mais chegariam à Nova York.  

Com o avanço da recessão, as distâncias entre a receita e os gastos da  cidade  se  ampliaram  e  no  primeiro  momento  as  instituições financeiras conseguiram contornar a situação, mas a partir de 1975, os principais  banqueiros  se  recusam  a  rolar  a  dívida  e Nova York  foi  à bancarrota  técnica.    Após  a  bancarrota,  diversas  novas  instituições foram criadas para administrar o orçamento da cidade e a maneira pela qual  a mesma  passou  a  ser  administrada  (congelamento  de  salários, cortes  drásticos  no  emprego  público  e  na  manutenção  de  serviços sociais  –  educação,  saúde  pública,  serviços  de  transporte  –  etc.)  nos oferece  um  cardápio  do  receituário  neoliberal  que  se  tornaria dominante daí pra frente nos EUA: 

 a administração da crise  fiscal de Nova York abriu pioneiramente o caminho para  as  práticas  neoliberais,  tanto  domesticamente,  sob  Reagan,  como internacionalmente  por  meio  do  FMI  na  década  de  1980.  Estabeleceu  o princípio de que, no  caso de um  conflito entre a  integridade das  instituições 

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financeiras e os rendimentos dos detentores de  títulos, de um  lado, e o bem‐estar dos cidadãos, de outro, os primeiros devem prevalecer. Acentuou que o papel  do  governo  é  criar  um  clima  de  negócios  favorável  e  não  cuidar  das necessidades  e  do  bem‐estar  da  população  em  geral. A  política  do  governo Reagan nos anos 1980, conclui Tabb, foi “apenas o cenário de Nova York” dos anos 1970 “bastante ampliado” (HARVEY, 2008a, p. 58). 

 Em poucos anos quase todas as conquistas do proletariado de Nova 

York  foram destruídas, as  infraestruturas sociais e  físicas da cidade  (o metrô,  por  exemplo)  foram  sucateadas  e  o  próprioproletariado  foi novamente  lançado  a  uma  condição  de  vida  precária,  quando  não lumpemproletarizada:  reflexo  da  luta  de  classes  marcada  por  uma contraofensiva do capital. 

 Em nome dos “negócios  favoráveis” a população empobrecida do centro  de  Nova  York  foi  expulsa  pela  especulação  imobiliária  e obrigada a sobreviver da “economia ilegal das ruas” nos subúrbios, que passaram  a  experimentar  um  alto  índice  de  lumpemproletarização, mortalidade juvenil, consumo de crack entre jovens lumpemproletários, crescimento  da  população  sem‐teto  e  da  criminalização  do lumpemproletariado (HARVEY, 2008a). Dessa maneira, 

 a  redistribuição de  renda  através da  violência  criminosa  se  tornou uma das poucas opções reais para os pobres, e as autoridades reagiram criminalizando comunidades  inteiras de pessoas empobrecidas e marginalizadas. As vítimas foram  consideradas  culpadas  e  [Rudolf]  Giuliani,  o  então  prefeito,  ficou famoso  pela  vingança  que  promoveu  em  favor  de  uma  burguesia  cada  vez mais abastada de Manhattan, cansada de ter de enfrentar na porta de casa os efeitos dessa devastação (HARVEY, 2008a, p. 57‐58). 

 A partir da década de 1970, e principalmente com a neoliberalização 

da  economia  norte‐americana  na  década  de  1980,  as  consequências sociais do que ocorreu em Nova York pôde ser percebida em diversas outras  cidades  do  país,  que  passaram  a  conviver  com  altas  taxas  de desemprego,  subemprego,  trabalhos  precários,  salários‐miséria,  alto índice  de  criminalidade,  tráfico  de  drogas  e  toxicomania  juvenil, violência  generalizada,  crescimento  do  número  de  sem‐tetos, mendicância  etc.  Percebe‐se  que  sob  a  vigência  do  regime  de acumulação  integral,  tais  índices  (anti)sociais não  são mais  exclusivos de países de capitalismo subordinado, mas passa a fazer parte também 

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da  realidade  social  de  países  de  capitalismo  imperialista  tal  como  os Estados Unidos, que vem experimentando um processo de expansão da lumpemproletarização. As análises de Wacquant, assim como de outros autores19, comprovam esse processo:  

 entre 1978 e 1990, o condado de Los Angeles perdeu cerca de 200 mil postos de trabalho, dos quais a maior parte era de empregos industriais sindicalizados e de  salários  altos,  ao mesmo  tempo  que  recebia  um  influxo  de  1  milhão  de imigrantes. Muitos desses postos foram perdidos para vizinhos de minorias na área de  South Central  e para  comunidades de  innercities,  onde programas  e investimentos  públicos  estavam  sendo  simultaneamente  cortados  de  forma drástica  (Johnson  et  al.,1992). Como  consequência,  o  desemprego  em  South Central ultrapassa 60% entre os jovens latinos e negros e a economia ilegal da droga  tornou‐se  a  fonte  mais  confiável  de  emprego  para  muitos  deles (WACQUANT, 2005, p. 32).  

A obra Cidade de Quartzo (1993), de Mike Davis, fornece um quadro assolador  sobre  o  abandono  e  miséria  em  que  se  encontrava  o proletariado,  formado majoritariamente por  negros,  nos  subúrbios de Los Angeles a partir da década de 1970. Segundo Davis, entre 1978‐1982 a economia  industrializada de Los Angeles entra em colapso, pois não suporta  a  concorrência gerada pelas  importações  japonesas. Das doze maiores  fábricas  do  setor  espacial  existentes  na  região  da  Califórnia Meridional  dez  se  tornarão  inativas  a  partir  da  concorrência  asiática. Nas  regiões  onde  as  fábricas  e  depósitos  não  sucumbiram,  foram  19 Já no final da década de 1980 os Estados Unidos inaugura seus refúgios alucinógenos para a população  lumpemproletária, espécie de “cracolândia norte‐americana”: “No Condado de Los Angeles, onde a mortalidade  infantil está em  franca ascensão, e a rede de tratamento de traumas do Condado entrou em colapso, não é de surpreender que a assistência médica para os viciados em crack – que os especialistas concordam que  exige um  tratamento  a  longo prazo numa  instituição  terapêutica  –  geralmente não esteja em disponibilidade. Assim, a região do submundo, o pesadelo do “Nickle” no  Centro,  possui  a maior  concentração  unitária  de  viciados  em  crack  –  velhos  e novos, mas nem um único posto de tratamento. A rica Pasadena está enfrentando a atividade das gangues com base no crack, localizadas no seu gueto do Noroeste, com sua  própria  versão  do  HAMMER,  inclusive  com  revistas  humilhantes  de desnudamento na rua e uma política de despejo de inquilinos ligados a drogas, sem gastar  um  só  centavo  em  reabilitação  de  viciados.  Os  exemplos  poderiam  ser depressivamente  multiplicados,  à  medida  em  que  o  tratamento  para  viciados  é abandonado na mesma última gaveta que os preceitos  liberais  esquecidos,  como o emprego para os jovens ou o aconselhamento para as gangues” (DAVIS, 1993, p. 278). 

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transferidas,  em  número  aproximado  de  321  firmas  desde  1971,  para outros parques  industriais com oferta de mão‐de‐obra mais atrativa. O resultado  catastrófico  para  a  população  local  foi  apresentado  por  um comitê  de  investigação  do  Legislativo  da  Califórnia  em  1982  que confirma “a destruição econômica resultante nos bairros do Centro‐Sul: o desemprego  cresceu  em quase  cinquenta por  cento desde o  começo dos anos setenta, enquanto o poder aquisitivo da comunidade caiu em um  terço”  (DAVIS, 1993, p. 269). Com a chegada da década de 1980 é possível  perceber  uma  escalada  surpreendente  da lumpemproletarização  juvenil da população  negra dos  guetos de Los Angeles, pois 

 o desemprego entre os negros jovens do condado de Los Angeles – a despeito do  crescimento  regional  ininterrupto  e  de  uma  nova  explosão  de  consumo acelerado  – permaneceu num  assustador  45 por  cento no decorrer dos  anos oitenta. Uma pesquisa de 1985  sobre projetos de habitação pública no gueto descobriu que havia apenas 120 trabalhadores empregados em 1060 domicílios em NickersonGardens, setenta em quatrocentos em Pueblo del Rio, e cem em setecentos  em  Jordan Downs. A  escala  de  demanda  reprimida  por  empego manual  decente  foi  vividamente  demonstrada  há  poucos  anos,  quando cinqüenta mil  jovens, predominantemente negros e chicanos,  fizeram uma  fila de quilômetros para se candidatar a umas poucas vagas na estiva de San Pedro [...]  Correlacionada  ao  posicionamento  periférico  dos  negros  da  classe trabalhadora na economia está a dramática juvenilização da pobreza entre todos os grupos étnicos do gueto. Em  termos estaduais, a percentagem da pobreza dobrou  (de 11 por cento para 23 por cento) em  relação à última geração. No Condado de Los Angeles, durante os anos oitenta,  tristes quarenta por cento das crianças viviam abaixo ou logo acima do limite de pobreza oficial. As áreas mais pobres do condado, além disso,  são  invariavelmente as mais  jovens: de sessenta e seis domicílios do censo (em 1980) com rendas familiares médias de menos de 10 mil dólares, mais de 70% possuíam uma idade média de apenas 20‐24 anos (o restante, 25‐29). (DAVIS, 1993, p. 270).  

Realidade  semelhante  foi  experimentada  pelo  “hipergueto”  da cidade  de  Chicago  nesse  mesmo  período.  Além  das  razões fundamentais  que  levaram  à  transição  do  regime  de  acumulação intensivo‐extensivo  para  o  regime  de  acumulação  integral,  já mencionadas  anteriormente,  existem  outras  determinações  específicas da  realidade  norte‐americana  e  que  explicam  a  expansão  do lumpemproletariado  na  cidade  de  Chicago.  Dentre  elas,  merece destaque  a  saturação  dos mercados  internos,  a  partir  de meados  da 

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década de  1960, provocada pela  competição  internacional, pela  busca por uma maior mobilidade do capital visando encontrar condições mais atrativas  para  o  processo  de  acumulação,  pela  ampla  redução  de proteções  aos  assalariados  etc.  A  partir  do  momento  em  que  uma economia baseada na produção  industrial, no consumo de massa e na existência de  sindicatos, que garantiam aos  trabalhadores estabilidade no emprego, salários altos etc. foi sendo substituída por uma economia predominantemente apoiada nas ocupações de serviços, fundamentada no capital  financeiro e no sucateamento das economias regionais, uma gigantesca  transformação atingiu as  relações  trabalhistas, os mercados de trabalho e os níveis salariais (WACQUANT, 2005). 

Por  conta  dessas mudanças  no mercado  de  trabalho,  juntamente com a política de extermínio generalizado de  todo e qualquer  tipo de assistência pública,  as  contradições  sociais  no  gueto  tem  se  ampliado rapidamente.  O  crescimento  acentuado  do  desemprego  e  do subemprego  tem  sido  acompanhado  pelo  aumento  incrível  da criminalidade,  do  assassinato  e  do  tráfico  e  consumo  de  drogas.  Isso tem  promovido  uma  crescente  fuga  das  classes  auxiliares  que  levam consigo as redes de comércio e parcela da renda que possibilitava uma movimentação  econômica  mínima  na  região.  Dessa  forma,  o  gueto tende a se tornar um espaço típico do “salve‐se quem puder e da forma como puder”, pois, 

 além da economia da droga e do mercado informal – cujo desenvolvimento é visível  em  outros  setores  da  economia  norte‐americana,  inclusive  os  mais avançados  –  o  coração  do  gueto  assistiu  a  uma  proliferação  de  pequenos ‘negócios’  subproletários  [lumpemproletários,  LB]  típicos  das  cidades  do Terceiro  Mundo:  comerciantes  de  rua,  vendedores  de  jornais,  cigarros  ou refrigerantes por unidade, carregadores, manobristas, diaristas etc. Não existe área do South Side sem táxi clandestinos, mecânicas ilegais, clubes noturnos e meninos que oferecem para carregar  sacolas na  saída do  supermercado  local ou encher o tanque do carro no posto de gasolina, em troca de alguns trocados. Tudo  pode  ser  comprado  ou  vendido  nas  ruas,  desde  bolsa  Louis  Vuitton falsificadas  (a 25 dólares cada), até carros roubados, armas  (trezentos dólares por  uma  ‘arma  limpa’,  em  geral,  ou  a metade  por  uma  ‘suja’),  roupas  com defeito,  comida  caseira  e bijuterias. A  economia dos  jogos de  azar  – bingos, loterias,  loto,  jogos  ilegais  de  cartas  e  dados  –  não  conhece  recessão” (WACQUANT, 2008, p. 42‐43).  

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 Com o crescimento vertiginoso do desemprego e do subemprego, a partir  da  década  de  1970,  em  várias  cidades20  dos  Estados  Unidos, outras  frações do  lumpemproletariado se expandiram por  todo o país. Dentre  elas  ganha  destaque  a  fração  composta  por  sem‐tetos.  Um estudo realizado por Snow e Anderson (1998) nos possibilita apreender a expansão dessa fração do lumpemproletariado após a década de 1980, na cidade de Austin  (Texas). A pesquisa demonstra que a partir dessa década,  ocorre  uma  gigantesca  proliferação  de  sem‐tetos  em  quase todas  as  cidades  norte‐americanas.  De  acordo  com  o  Exército  da Salvação  (Entidade  cristã‐protestante  beneficente)  de  Austin,  o atendimento  a moradores  de  rua  cresceu mais  de  100%  em  1985  se comparado com o ano de 1979 (SNOW & ANDERSON, 1998). 

Que  multiplicidade  de  determinações  envolve  o  crescimento acelerado  do  número  de  sem‐tetos  em  diversas  cidades  norte‐americanas? Antes mesmo do regime de acumulação integral se tornar uma  realidade  nos  EUA,  já  havia  uma  quantidade  significativa  de desempregados  que  sobreviviam,  em  grande parte,  à  custa de  algum programa federal de assistência social. Isso possibilitava que essa fração do lumpemproletariado tivesse acesso há alguns bens básicos, tais como alimentação, moradia  (de  baixa  renda)  etc.  e,  consequentemente,  isso camuflava  e  contornava  esse  problema  social.    Porém,  a  partir  da década de 1970 essa realidade já não é mais a mesma, pois junto com a  20    Apesar  de  termos  utilizado  apenas  as  cidades  de  Los  Angeles  e  Chicago  para demonstrar  a  expansão  do  lumpemproletariado  via  crescimento  generalizado  do desemprego, no regime de acumulação integral, outras pesquisas demonstram que o desemprego em massa tornara‐se uma realidade nacional: “Um estudo que descobriu que 30% das fábricas existentes nos EUA em 1969 haviam fechado por volta de 1976, estimou que  ‘fugas  [transferências de  fábricas para outros  locais],  encerramento de atividades, e cortes físicos permanentes beirando o fechamento podem ter custado ao país algo como 38 milhões de empregos’. Um outro estudo concluiu que mais de 16 milhões  de  empregos  industriais  foram  perdidos  entre  1976  e  1982  devido  a fechamento  de  fábricas,  e  um  exame  congressual  das  conseqüências  desse desemprego  estrutural  relatou  que  ‘nos  últimos  anos,  milhões  de  trabalhadores americanos perderam seus empregos devido a mudanças estruturais nas economias norte‐americana e mundiais. Alguns deles ‐ especialmente trabalhadores mais jovens com  qualificações  em  demanda  ou  com  formação  educacional  certa  –  têm  pouca dificuldade  de  achar  novos  empregos.  Outros  –  centenas  de  milhares  por  ano  – permanecem  sem emprego por  semanas ou meses, ou até mesmo anos”  (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 398). 

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expansão  do  lumpemproletariado,  visível  através  do  crescimento  do desemprego,  o Estado Neoliberal  irá  promover  um  corte drástico  em diversas  políticas  de  assistência  social,  inclusive  na  diminuição  da assistência à moradia: 

 o desaparecimento de quantidade cada vez maiores de unidades habitacionais de baixa renda – 2.5 milhões de unidades desde 1980, de acordo com algumas estimativas  –  pode  ser  atribuído  essencialmente  à  conjunção  de  indiferenças governamental  e  de  forças  de  mercado  tais  como  o  aburguesamento  e  o abandono.  A  primeira  se  refletia  claramente  na  diminuição  do  apoio governamental  a  programas  habitacionais  para  os  pobres  durante  a administração  Reagan.  Quando  as  iniciativas  habitacionais  para  todos  os programas  habitacionais  de  baixa  renda  do  HousingandUrbanDevelopment (HUD) diminuíram de cerca de 183.000 unidades em 1980 para cerca de 28.000 em 1985, um observador argumentou que não apenas a administração Reagan estava  declarando  guerra  contras  os  programas  habitacionais  para  os  pobres, mas estava também procurando reverter “o compromisso de 50 anos do governo federal para com esses programas” (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 381).  

Aliado a essa política de diminuição de  investimentos  federais em programas  habitacionais  para  a  população  de  baixa  renda,  outros fatores  somam‐se  como  determinantes  no  aumento  da  população  de sem‐tetos nos EUA. O grande número de desempregados nas principais cidades  americanas,  juntamente  com  o  crescimento  acelerado  da pobreza nos EUA e das desigualdades sociais em geral21, provocaram o aumento  pela  procura  de  habitações  de  baixa  renda  e, consequentemente,  a  diminuição  da  oferta  desse  tipo  de  habitação22.  21 Segundo  “os  relatórios publicados pelo U.S. Bureau oftheCensus desde meados da década  de  80  mostram  um  acentuado  aumento  da  pobreza  na  América  (Center ofBudgeandPolicyPriorities, 1985, 1988) e uma onda de ‘desigualdade’ geral (Thurow, 1987)” (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 378). 

22 “Os  levantamentos sobre habitação do governo  federal, os relatórios publicados por grupo  de  defesa  dos  moradores  de  rua  e  os  pesquisadores  de  habitação independentes,  todos,  relatam  praticamente  a  mesma  conclusão:  o  estoque  de habitação de baixa renda da nação foi liquidado ao longo dos últimos vinte anos. Só entre  1973  e  1979,  91%  de  quase  um milhão  de  unidades  habitacionais  que  eram alugadas por $ 200 por mês ou menos em toda a nação desapareceram do mercado de aluguel.  Estima‐se  que,  só  na  cidade  de  Nova  Iorque, mais  de  310.000  unidades habitacionais de baixa renda foram perdidas entre 1970 e 1983. Como essa dizimação do mercado  de  aluguel  de  baixa  renda  aumentou  progressivamente  ao  longo  da década  de  80,  a  Nacional  Coalition  for  theHomeless  estimou  que  cerca  de  meio 

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Esse  conjunto  de  fatores,  aliado  ao  boom  do  mercado  inflacionário imobiliário de diversas cidades americanas, apertava ainda mais o cerco contra a população lumpemproletarizada, ampliando e muito o número de sem‐tetos que passava a ocupar locais de maior visibilidade pública –  parques,  pontos  de  ônibus,  porta  de  lojas,  bares  e  restaurantes, banheiros  públicos,  bibliotecas  etc.  (SNOW  &  ANDERSON,  1998; DAVIS, 1993).  

Outra determinação que contribuiu para a expansão do número de sem‐teto  é  o  crescimento  elevadíssimo  do  subemprego  nos  EUA. Milhares de pessoas que foram atingidos pelo desemprego, geralmente quando  retornam  ao mercado  de  trabalho  passam  a  receber  salários menores  do  que  os  anteriores. Não  é  pequeno  o  número  de  salários abaixo  do  nível  de  pobreza  oficialmente  estabelecido  nos  país  e  que, portanto, obriga essa fração do lumpemproletariado a trabalhar em dois ou três subempregos, mas que, ainda assim, não consegue obter renda suficiente para pagar um quarto sequer para morar. Segundo a Coalizão Nacional  para  os  Sem‐Teto23,  em  1998  seria  necessário  um  salário  de 8,89 dólares por hora para pagar um quarto e sala. Outra entidade não governamental  (Centro  de  Preâmbulo  para  Políticas  Públicas)  estima que a possibilidade de um indivíduo assistido pelo seguro‐desemprego encontrar um emprego que pague esse salário era de mais ou menos 01 chance  em  97  (EHRENREICH,  2004).  Isso  sem  contar  o  número  de  milhão de unidades de baixa renda estavam sendo perdidas anualmente por volta da segunda metade da década” (Ibid, 1998, p. 379). 

23  “A Coalizão Nacional  para  os  Sem‐Teto  é  uma  rede  nacional de  pessoas,  que  estão experimentando  atualmente  a  falta  de moradia  ou  que  já  a  tenham  experimentado, ativistas, advogados e outros prestadores de serviços, baseados na comunidade e na fé, comprometidos com uma única missão. Essa missão, o nosso elo comum, é acabar com a falta de moradia. Estamos empenhados em criar as mudanças sistêmicas e atitudinais necessárias  para  prevenir  e  acabar  com  a  condição  de  sem‐teto. Ao mesmo  tempo, trabalhamos para atender às necessidades imediatas das pessoas que estão atualmente na condição de sem‐teto ou que correm esse risco. Tomamos como primeiro princípio da prática que as pessoas que estão experimentando atualmente a condição de sem‐teto ou que  já experimentou tal condição devem ser envolvidas em todo o nosso trabalho. Para  este  fim,  a  Coalizão Nacional  para  os  Sem‐teto  (NCH  –  sigla  em  inglês  para Nacional  CoalitionHomeless)  se  engaja  na  educação  pública,  defesa  de  políticas,  e organizações  de  base.  Focamos  nosso  trabalho  nas  seguintes  quatro  áreas: moradia justa,  justiça  econômica,  saúde  e  direitos  civis”  (IN:  http://www. nationalhomeless.org/about_us/index.html ‐ tradução nossa). 

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pessoas  e  famílias que moram nos  seus próprios automóveis. Em  sua obra  Miséria  à  americana  –  vivendo  de  subemprego  nos  Estados  Unidos (2004), Ehrenreich constata: 

 não consegui encontrar estatísticas sobre o número de pessoas empregadas que moram  em  carros  ou  vans,  mas  segundo  um  relatório  de  1997  da NationalCoalition for theHomeless intitulado “MythsandFactsaboutHomeless” (Mitos e fatos sobre a falta de moradia), quase um quinto de todos os sem‐teto, em vinte e nove cidades de  todo o país,  tem emprego em  tempo  integral ou meio expediente (2004, p. 36).  

 Assim  como  ocorreu  nas  principais  cidades  industrializadas  do 

século  XIX,  a  presença  cada  vez  maior  do  número  de lumpemproletários  nos  espaços  públicos  passava  a  gerar  grandes incômodos às classes ricas de diversas cidades americanas, que buscou declarar  guerra  a  tal  presença. Diversas  foram  as  armas  e  estratégias elaboradas  pelo  poder  público  e  pela  iniciativa  privada,  a  serviço  da propriedade  burguesa  e  do  seu  conforto  visual.  Em  Los  Angeles,  a forma  encontrada  para  conter  os  sem‐tetos  foi  confinando‐os  no submundo. Ao  longo da Rua 50, a  leste da Broadway, criaram‐se uma verdadeira “favela a céu aberto” que, na década de 1990, representava um dos dez quarteirões mais perigosos do mundo (DAVIS, 1993): 

 nesta  zona  do  submundo,  todas  as  noites  são  sexta‐feira  13,  de modo  nada surpreendente, muitos dos sem‐teto  tentam a  todo custo escapar do “Nickle” durante  a  noite, procurando por malocas mais  seguras  em  outras partes do Centro.  A  cidade  em  resposta  aperta  o  laço  com  crescente  intervenção  da polícia e com engenhoso design urbano de vocação dissuasiva. Um dos mais comuns, mas embrutecedor, destes estorvos é o banco de ponto de  ônibus  em  forma de  barril,  que  oferece uma  superfície mínima para  um sentar desconfortável, enquanto torna completamente impossível dormir sobre ele.  Tais  bancos  “à  prova  de  vagabundos”  estão  sendo  amplamente introduzidos  na  periferia  do  submundo  [...]  restaurantes  e  mercados responderam  aos  sem‐teto  com  a  construção  de  ambientes  cercados  e ornamentados  para  proteger  sua  recusa.  Embora  ninguém  em  Los Angeles tenha ainda proposto colocar cianeto no  lixo, como aconteceu em Phoenix há poucos  anos  atrás,  um  popular  restaurante  de  frutos  do mar  gastou  12 mil dólares para construir uma lata de lixo definitivamente à prova de mendigos: ela  é  confeccionada  com  chapas  de  aço  de  2centrímentos  de  espessura  e equipada com cadeados blindados e mórbidas pontas espetadas para fora, de 

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modo a salvaguardar cabeças de peixe de preço inestimável em decomposição e batatas fritas bolorentas (p. 213‐214). 

 Com o objetivo  claro de evitar a presença do  lumpemproletariado 

em algumas  regiões da cidade de Los Angeles, os banheiros públicos, assim  como  as  fontes  de  águas,  utilizados  por  sem‐tetos  para  tomar banho,  foram  deliberadamente  destruídos.  Se  comparada  com  outras cidades  importantes  de  toda  a América  do Norte,  Los Angeles  era  a cidade que possuía o menor índice de banheiros públicos na década de 1990. Diante de  toda essa política repressiva, os  lumpemproletários da “cidade  dos  anjos”  foram  transformados  em  espécies  de  “beduínos urbanos”,  

 visíveis em  todos os  lugares do Centro, empurrando  seus poucos e patéticos pertences  em  carrinhos  de  supermercados  roubados,  sempre  fugitivos  e  em movimento,  espremidos  entre  a  política  oficial  de  conteção  e  o  sadismo progressivo das ruas do Centro (DAVIS, 1993, p. 215). 

 Uma das consequências sociais diretas e inevitáveis da promoção do 

Estado  neoliberal  é,  sem  sombra  de  dúvidas,  o  aumento  das  tensões sociais  e  da  criminalidade  derivadas  dos  cortes  em  políticas  de assistência  social,  da  diminuição  drástica  da  oferta  de  empregos,  dos salários‐miséria, da  fome, do desabrigo  e da opressão  em geral,  tanto nos  países  subordinados,  quanto  nos  países  imperialistas.  Por  conta desse quadro é que esse Estado será caracterizado por uns como sendo “mínimo e forte” (Bobbio, 2009) e por outro como sendo uma espécie de “Estado Penal” (Wacquant, 2001), uma vez que o mesmo se vê coagido a dar uma resposta positiva (para os interesses das classes dominantes) ao  espetáculo  da  insegurança  social,  à  imundice  visual  causada  pela presença  do  lumpemproletariado  nos  centros  comerciais  e  à criminalidade crescente, através da expansão das práticas repressivas e do encarceramento em massa dessa classe social. 

Nesse sentido, o Estado penal apresenta‐se como um complemento nas mudanças  das  relações  de  trabalho  contemporâneas,  pois  busca substituir  as  políticas  sociais  por  medidas  de  criminalização  do lumpemproletariado. Porém, ele deve fazer isto contendo seus próprios gastos e buscando diminuir o crescimento da dívida pública, pois dessa maneira ele garante os interesses do capital oligopolista. Por outro lado, 

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a  miséria  tende  a  aumentar,  assim  como  o  desemprego  e  a criminalidade,  então  o  estado  deve  optar  por  aumentar  o  aparato repressivo  ou  ampliar  os  gastos  sociais, mas  faz  opção pelo primeiro por ser menos dispendioso, ou seja, mesmo investindo em aumento da repressão – que não é  tanto assim,  já que em parte apenas aumenta o uso  do  aparato  repressivo  já  existente,  ao  invés  de  políticas  de assistência social e, ainda permite a ampliação do lumpemproletariado que barateia a força de trabalho em certos setores, diminuindo os gastos do capital. 

É nesse contexto que surge em Nova York, e tende a se tornar uma prática  mundial  via  importação,  a  política  da  “tolerância  zero”  e, juntamente com ela,  

 a retórica militar da ‘guerra’ e da ‘reconquista’ do espaço público, que assimila os delinquentes (reais ou imaginários), sem‐teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros – o que facilita o amálgama com a imigração, sempre rendoso eleitoralmente (WACQUANT, 2001, p. 30). 

 LoicWacquant apresenta  em diversas obras a absurda  escalada do 

Estado  Penal  e  sua  prática  de  encarceramento  em massa  dos  setores mais pobres da sociedade norte‐americana, demonstrando uma  íntima relação entre o neoliberalismo, a ampliação do lumpemproletariado e a expansão das práticas de  criminalização dessa  classe  social no  regime de acumulação integral. De acordo com ele, 

 a  reviravolta  da  demografia  carcerária  americana  depois  de  1973  será  tão brutal  quanto  espetacular.  Contra  qualquer  expectativa,  a  população penitenciária do país começa a aumentar em uma velocidade vertiginosa: fato sem precedentes  em uma  sociedade democrática,  ela  “dobra  em dez  anos  e quadruplica em vinte”. Partindo de menos de 380 mil em 1975, o número de pessoas encarceradas beira os 500 mil em 1980. E continua a  inchar no  ritmo infernal de  9%  ao  ano  em média  (ou  seja, 2 mil detentos  suplementares por semana durante  a década de  90, de maneira  que  em  30 de  junho de  1997  a América  contava  com  1.855.575  prisioneiros, dos  quais  637.319  nas  casas de detenção dos condados e 1.218.256 nas prisões federais e estaduais. Se estivesse em  uma  cidade,  a  população  carcerária  estadunidense  seria  a  sexta  maior metrópole do país (2003, p. 57). 

   

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Expansão da população carcerária nos Estados Unidos  (1975‐1995) 

      1975      1980      1985      1990      1995 Casas de detenção (cidades e condados) 

138.800  182.288  256.615  405.320  507.044 

Penitenciárias Estaduais e federais 

240.593  315.974  480.568  739.980  1.078.357 

Total encarcerado 

379.393  498.262  737.183  1.145.300  1.585.401 

Crescimento em 05 anos 

    ‐     31,3%    47,9%     55,4%     38,4% 

 

Fonte: Bureau of  Justice and Statistics, Correctional Populacion  in United States, 1995, Washington, U.S. Government  Printing Office,  1996:  Jail  and  jail  inmates  1993‐1994, idem, 1994, apud WACQUANT, 2003, p. 57. 

 A  emergência  do  regime  de  acumulação  integral  e  de  suas 

contradições/tensões  sociais nos EUA provocou uma verdadeira  ruína dos  espaços  sociais  habitados  pelo  conjunto  da  população empobrecida24,  que  foi  a  maior  vítima  de  todas  essas contradições/tensões,  em  especial  o  processo  expansivo  da lumpemproletarização. Para milhares de pessoas a simples garantia da sobrevivência  diária  tornou‐se  uma  verdadeira  guerra  cotidiana,  pois marginalizados na divisão  social do  trabalho,  estigmatizados pela  cor da  pele  (o  lumpemproletariado  norte‐americano  é  formado majoritariamente  pela  população  negra)  e  pelo  endereço  residencial, essa classe social só consegue visualizar duas “opções” (WACQUANT, 2001, 2003, 2005, 2008): ou se submeter ao trabalho precário, temporário e de salários‐miséria ou entrar para a vida bandida do tráfico de drogas 

24LoicWacquant denominou  esse  processo de  desertificação  organizacional  do  gueto:  “ao mesmo tempo causa e efeito da erosão do espaço público, o declínio das instituições locais (comércio, igrejas, associações de bairro e serviços públicos) chegou a um grau quase  equivalente  ao  de  um  deserto  organizacional.  A  origem  da  espantosa degradação do  tecido  institucional  e  associativo do  gueto  é  encontrada, mais  uma vez, no recuo repentino do Estado do bem‐estar social, o que solapou a infra‐estrutura que  permitia  às  organizações  públicas  e  privadas  desenvolver‐se  e  subsistir  nos bairros estigmatizados e marginalizados” (WACQUANT, 2008, p. 39). 

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e do roubo a mão armada, que apesar de altamente arriscado, tanto pelo conflito  com  a  polícia  quanto  pelo  conflito  entre  traficantes  rivais, possibilita  uma  renda  infinitamente maior  que  a  do  subemprego.  A segunda opção tem sido, sem sombra de dúvidas, a principal “escolha” da maior parte da  juventude  lumpemproletária, habitante dos  guetos norte‐americanos, que a partir daí tem se tornado, consequentemente, a clientela favorita do sistema carcerário norte‐americano: 

 evidencia‐se  imediatamente que o meio milhão de reclusos que abarrotam as quase 3.300 casas de detenção do país – e os 10 milhões que passam por seus portões  a  cada  ano  –  são  recrutados  prioritariamente  nos  setores  mais deserdados  da  classe  operária,  e  notadamente  entre  as  famílias  do subproletariado  de  cor  nas  cidades  profundamente  abaladas  pela transformação, que, reelaborando sua missão histórica, o encarceramento serve bem  antes  à  regulação  da  miséria,  quiçá  à  sua  perpetuação,  e  ao armazenamento  dos  refugos do mercado  [...] Consequência  de  sua  posição marginal  no mercado  de  emprego  desqualificado,  dois  terços  dos  detentos viviam com menos de mil dólares por mês (e 45% com menos de 600 dólares), ou  seja, uma  renda  inferior à metade do  limiar de pobreza oficial para uma família de  três pessoas naquele ano –  isto embora dois  terços deles declarem ter recebido um salário. É dizer que a grande maioria dos internos dos cárceres municipais  provém  seguramente  das  categorias  dos  “workingpoor”,  esta fração  da  classe  operária  que  não  consegue  subtrair‐se  da miséria  embora trabalhe, mas que é mantida à distância da cobertura social porque trabalha em empregos de miséria: apesar de sua penúria pecuniária, apenas 14% recebiam uma  ajuda  pública  (auxílio  a  pais  desamparados,  cupons  alimentares, programa  de  assistência  nutricional  para  as  crianças)  nas  vésperas  de  sua prisão (WACQUANT, 2003, p. 33‐34). 

 Toda  essa  bárbara  situação  em  que  se  encontra  a  população 

lumpemproletária norte‐americana  revela no  fundo a  incapacidade do capitalismo de resolver suas próprias contradições. A própria expansão vertiginosa  da  população  carcerária  é  expressão  dessa  incapacidade, pois, ao contrário do que diz a ideologia da exclusão social, essa massa de  indivíduos  que  se  encontram marginalizados  na  divisão  social  do trabalho  não  é  resultado  de  uma  forma  política  ineficaz  de administração social e que, portanto, a solução para a exclusão social se dá com adoção de políticas públicas e sociais que garantam a  inclusão ou  com  a  construção  de  uma  espécie  de  Estado  Social,  como  sugere 

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LoicWacquant25.  Pelo  contrário,  pois  de  forma  geral  nem  se  quer poderíamos  afirmar  que  tal  população,  formada  pelo lumpemproletariado, encontra‐se excluída socialmente (algo impossível de  acontecer),  pois  no  fundo  o  capitalismo  não  sobrevive  sem  a totalidade  do  exército  industrial  de  reserva,  formado  por  essa  classe social. Nesse sentido, é mais correto afirmar que o lumpemproletariado é  parte  integrante  da  sociedade  capitalista,  que  definitivamente depende  da  sua  existência  para  sobreviver,  pois  tal  classe  representa uma das alavancas fundamentais do processo de acumulação capitalista e,  consequentemente,  não  pode  ser  abolida  sem  a  abolição  do capitalismo.  

O que o Estado norte‐americano vem  tentando  fazer é  retardar ao máximo  a  ameaça  gerada  pelo  crescimento  generalizado  do lumpemproletariado,  criminalizando‐o  para  não  ter  que  ampliar  seus gastos com assistência social e, consequentemente, emperrar o processo de acumulação  capitalista. No entanto,  com o  crescimento vertiginoso dessa população e de sua criminalização, essa prática já não mais atende a expectativa de redução dos gastos públicos, uma vez que o orçamento carcerário vem atingindo cifras alarmantes26. Por  isso, outro desafio se 

25 Segundo Wacquant, discutindo a possibilidade do Estado Penal não  se  tornar uma realidade  na  Europa,  tal  como  vem  ocorrendo  nos  EUA,  “para  uma  verdadeira alternativa  que  nos  afaste  da  penalização  (suave  ou  dura)  da  pobreza,  é  preciso construir um Estado europeu que seja digno desse nome. O melhor meio de diminuir o papel da prisão, é uma vez mais e sempre, fortalecer e expandir os direitos sociais e econômicos” (2008, p. 105). Tal afirmação revela os limites da análise do autor e sua visão  fetichista  do  Estado,  pois  em  momento  algum  de  sua  análise  Wacquant apresenta a gênese e a determinação  fundamental de  toda essa complexa  realidade contemporânea, ou seja, não analisa as necessidades atuais do regime de acumulação integral (Forma de valorização do capital expressa no toyotismo, forma estatal capaz de  regularizar as  relações  sociais necessárias para  tal valorização  (neoliberalismo) e forma de exploração internacional ‐ neoimperialismo), nem tão pouco menciona que as contradições sociais que levam ao engendramento do “Estado Penal” resultam do predomínio da ofensiva capitalista sob a classe trabalhadora, localizando todas essas mudanças  no  campo  de  correlação  de  forças  no  interior  da  luta  de  classes  na contemporaneidade. 

26“Entre 1982 e 1993, os orçamentos das administrações penitenciárias aumentaram em 254%, enquanto as somas destinadas às funções de justiça em seu conjunto cresceram 172%  e  as  despesas  globais  dos  estados  em  140%.  Em  fim  de  período,  a América despende  50%  a mais  em  suas prisões do que  em  sua  administração  judiciária  (32 

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impõe  à  acumulação  capitalista  norte‐americana:  como  combater  as tensões  sociais  via  encarceramento  generalizado  do lumpemproletariado, sem comprometer os cofres públicos? A resposta, ao que  tudo  indica, vem da privatização do sistema penitenciário e da transferência dos custos carcerários para o próprio preso ou sua família, como  já  vem  ocorrendo  em diversos  estados  e/ou  tornando  o  cárcere uma indústria lucrativa que passa a ser cotada inclusive nas principais bolsas de valores norte‐americanas27. Nesse  sentido, Gans está  correto ao concluir que o Estado norte‐americano  tem optado em combater os pobres e não mais a pobreza (1995). 

 Lumpemproletarização e luta de classes na Argentina

 O  processo  de  lumpemproletarização  traduz  a  principal 

consequência  social  do  regime  de  acumulação  integral  em  todo  o mundo, no entanto esse processo possui suas singularidades segundo o modelo  de  capitalismo  vigente  em  cada  nação,  isto  é,  apesar  de 

bilhões de dólares  contra 21 bilhões), enquanto 10 anos antes as dotações das duas administrações eram similares (em torno de 7 bilhões cada uma). A função carcerária absorve hoje em dia um terço do orçamento da justiça contra um quarto na primeira metade  da  década  de  80.  As  somas  engolidas  pelo  país  só  para  a  construção  de penitenciárias e cadeias disparam entre 1979 e 1989: mais 612%, ou seja, três vezes o ritmo de  crescimento dos  gastos militares  em  nível  nacional,  os  quais, no  entanto, gozaram de favores absolutamente excepcionais durante as presidências de Reagan e Bush.  A  construção  de  prisões  conhece  uma  explosão  tal  que  vários  condados  e estados  se vêem às voltas  com  faltas de  fundos para  contratar o pessoal necessário para a abertura dos estabelecimentos que constroem. Foi assim na Carolina do Sul, em  1996,  onde  duas  penitenciárias  de  “alta  tecnologia”  não  puderam  entrar  em operação  por  falta  de  créditos  necessários  para  cobrir  suas  despesas  de funcionamento; ou em Los Angeles, onde a “casa de detenção do século XXI”  ficou vazia durante um ano depois da construção” (WACQUANT, 203, p. 80‐81). 

27 “No ano passado, o dividendo médio das empresas que  figuram na  lista da Fortune Magazine  era  de  75%,  praticamente  o  dobro  do  índice  das  empresas  listadas  no Standard  andPoor’s. Se  recuarmos um pouco mais, as  cifras de  seu desempenho  são decididamente assombrosas: em  três anos, as ações de MacAfee Associates  (em 15º lugar  em  nossa  lista),  que  fabrica  softwares  antivírus,  subiu  1.967%;  as  dos computadores  Dell  (em  47º  lugar)  aumentaram  em  1.912%;  e  as  da  Corrections Corporation  ofAmerica  (na  67ª  posição),  que  administra  prisões  privadas,  foram valorizadas em 746%. Isso faz um monte enorme de prata” (FORTUNE MAGAZINE apud WACQUANT, 2001, p. 92). 

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constatarmos que durante a vigência do regime de acumulação integral o lumpemproletariado tende a crescer, tal crescimento ocorre de forma diferenciada, pois nos países de capitalismo imperialista vem ocorrendo uma  expansão  do  lumpemproletariado  enquanto  nos  países  de capitalismo  subordinado  tal  expansão  tende  a  ocorrer  de  forma intensificada. A  lumpemproletarização  vem  acompanhada  da  luta  de classes  que,  também,  atinge  coeficientes  diferenciados  de  uma  região para  outra. Acreditamos  que  esse  seja  o  caso  argentino  e,  também,  o brasileiro. Vejamos o primeiro. 

Seguindo  as  análises  de  Maristella  Svampa  (2010),  é  possível perceber  que  durante  décadas  a  Argentina  foi  dominada  por  um modelo  de  integração  nacional‐popular  cuja máxima  expressão  foi  a primeira fase do peronismo (1946‐1955). Esse modelo se constituía por três  grandes  características:  No  plano  econômico  tal  modelo  se caracterizava  por  uma  concepção  de  desenvolvimento  inspirada  na substituição  de  importações  e  por  uma  estratégia  voltada  para  o desenvolvimento  do mercado  interno. No  plano  político  o  Estado  se apresentava  como  o  agente  garantidor  da  coesão  social  através  dos gastos  públicos  sociais.  Essa  política  se  traduzia  na  ampliação  da cidadania  burguesa28  através  do  reconhecimento  dos  direitos  sociais. Em  terceiro  lugar, havia uma  tendência a promover a homogeneidade social  visível  na  incorporação  de  parcela  significativa  da  classe trabalhadora,  assim  como  na  expansão  das  classes  auxiliares  da burguesia29. Em  linhas gerais, a Argentina  se diferenciava dos demais países  latino‐americanos  por  possuir  um  Estado  que,  dentro  das 

28 “O cidadão, enfim, é um indivíduo que cumpre com seus deveres e direitos, ou seja, é aquele  que  respeita  a  propriedade  privada,  a  liberdade  de  imprensa  etc.,  paga  os impostos,  legitima  o  estado  capitalista  reconhecendo  o  processo  eleitoral  etc.  O cidadão é o indivíduo conservador, o indivíduo que aceita o mundo existente, ou seja, a sociedade burguesa (modo de produção capitalista e formas de regularização não‐estatais)  e o  estado  capitalista. A  cidadania, por  conseguinte,  é a  concretização dos direitos  do  cidadão  e,  portanto,  significa  a  integração  do  indivíduo  na  sociedade burguesa por intermédio do estado” (VIANA, 2003, p. 69). 

29 Utilizamos o conceito de classes auxiliares em substituição ao constructo ideológico de “classes  médias”.  A  garantia  e  manutenção  dos  interesses  dessas  classes  estão intimamente vinculadas à sociedade capitalista, portanto, “o que se deve ressaltar é que as classes auxiliares, devido às necessidades de sua própria reprodução, bem como sua inserção social, auxiliam a dominação burguesa [...]” (VIANA, 2003, p. 72). 

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limitações típicas de um capitalismo subordinado, conseguia promover uma maior distribuição de renda e serviços públicos de qualidade para a maioria da população. 

O desmantelamento desse modelo social percorreu diversas etapas, no  entanto  não  ocorreu  de  forma  linear  nem  tão  pouco  numa  única sequência. A substituição da sociedade fordista para uma sociedade de acumulação integral conheceu diversos momentos.  

 De  maneira  esquemática,  poderíamos  afirmar  que  as  mudanças  na  ordem econômica  se  iniciaram  durante  a  década  de  70,  a  partir  da  instalação  de regimes militares no cone sul da América Latina; as transformações operadas na estrutura social começariam a tornar‐se visíveis na década de 80, durante os primeiros  anos  de  retorno  à  democracia;  por  último,  podemos  situar  as maiores mudanças no final dos anos 80 e princípio dos anos 90, com a gestão menemista (SVAMPA, 2010, p. 22).   

Assim como em vários países da América Latina, a ditadura militar que  chegou ao poder na Argentina no dia 24 de março de 1976  tinha como principais objetivos programar uma rígida política de repressão, assim como  refundar as bases materiais da  sociedade. Por um  lado, o terrorismo  de  Estado  promoveu  o  extermínio  e  disciplinamento  de amplos setores sociais mobilizados e, por outro lado, colocou em prática um programa de  reestruturação  econômica que produziria profundas repercussões  na  estrutura  social  e  produtiva  do  país.  Tais mudanças estavam  assentadas  na  importação  de  bens  e  capitais  e  na  abertura financeira. Isso implicou uma interrupção na política de substituição de importações  e  um  grande  endividamento  dos  setores  públicos  e privados,  visíveis  no  extraordinário  aumento  da  dívida  externa30  que 

30  Já há algumas décadas, diversos estudos vêm sendo realizados sobre a dívida externa dos países da América Latina  e vários deles apontam para o  seu  caráter  ilegal. De acordo  com  estudos  realizados  por  pesquisadores  do  Observatório  da  Dívida  na Globalização (Catalunha, Espanha), “no caso argentino, durante o mandato de Carlos Ménen  (1989‐1999),  se ampliou o número de  juízes da Corte Suprema de  Justiça  (o máximo  tribunal  de  justiça),  e  o  executivo  designou,  com  apoio  de  um  senado majoritariamente menemista, cortesias a dependentes do regime. Com isso, o governo de Ménen assegurava a ratificação de todos os seus atos sem que fossem impugnados por  via  judicial.  Na  mesma  época  se  revisou  a  Constituição  Nacional  (1994).  A reforma  da Carta Magna  não  só  permitiu  a  reeleição  de Ménen, mas,  além  disso, facultou o presidente a tomar decisões próprias do Parlamento (delegação do poder 

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passou de 13 milhões para 46 milhões de dólares no período de 1976‐1983. Dessa  forma,  a  lógica  da  acumulação  imposta  pela  valorização financeira  sustentou  as  bases  de  dominação  centradas  nos  grandes grupos  nacionais  e  nos  capitais  transnacionais  (SVAMPA,  2010; BASUALDO, 2002). 

Os  efeitos  dessa  reestruturação  econômica  podem  ser  percebidos nas  diversas mudanças  geradas  na  estrutura  social  argentina. Dentre elas  se destaca a  enorme  transferência da mão‐de‐obra  empregada na indústria para o setor terciário e autônomo, assim como a formação de uma incipiente mão‐de‐obra marginalizada do mercado de trabalho ‐ o lumpemproletariado. Além disso, houve uma significativa deterioração dos  salários  reais  que  aliada  com  a  baixa  produtividade  causou  a contração da demanda  interna na qual  foi acompanhada por um  forte incremento  das  disparidades  intersetoriais.  A  distribuição  de  renda também  sofreu  impactos negativos  com  a  eliminação das negociações coletivas e com a queda salarial. Dessa maneira, 

 até  o  final  dos  anos  80,  envolvido  em  uma  série  de  conflitos  econômicos  e institucionais,  o  país  se  afundava  cada  vez  mais  em  uma  grave  crise econômica, refletida na importante queda da inversão interna e estrangeira, na crescente  fuga de  capitais e no  recorde  inflacionário, que em 1987 alcançaria 175% e, em 1988, 388% (SVAMPA, 2010, p. 25).  

Diante dessa nova realidade, nascia na Argentina da década de 1990 uma sociedade empobrecida e atravessada por um intenso processo de lumpemproletarização. O país  experimentava o declínio  estrutural do modelo  nacional‐popular  sem  contar  com  nenhuma  chave  para reencontrar  a  integração  social de  amplos  setores populares  e médios empobrecidos31  (KESSLER  &  MINUJÍN,  1995;  KESSLER  &  DI  legislativo  ao  poder  executivo)  [...]  Esse  foi  o marco  político  que  possibilitou  que durante  o  ‘menemismo’  a  dívida  externa  da  Argentina  crescera  150%  e,  em cumprimento  as  exigência  do  FMI,  se  privatizaram  todas  as  empresas  de  serviços públicos e as que controlavam os recursos estratégicos do país” (RAMOS, 2006, p. 32‐33).  

31“Uma das conseqüências de grande peso econômico e sócio‐culturais mais inesperadas que os  setores médios  têm  sofrido na Argentina  foi  a de dar origem  a um  tipo de pobreza  com  traços  particulares,  uma  vez  iniciado  o  intenso  processo  de empobrecimento sofrido pela sociedade desse país. Basta dizer que entre 1980 e 1990 os  trabalhadores  em  seu  conjunto  perderam  em  torno  de  40%  do  valor  de  suas 

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VIRGILIO, 2008). No entanto, as conseqüências mais drásticas estavam por vir, visto que  a  consolidação da nova ordem neoliberal  argentina ocorreria durante os governos de Carlos Menen. 

Recém  saída  de  uma  ditadura militar,  a Argentina  se  encontrava extremamente  endividada  e  presa  a  um modelo  de  governabilidade corporativo, autoritário e corrupto. A partir de 1992, com Carlos Menen no poder,  inicia‐se um período de  neoliberalização da  economia  com vistas  a  obter  auxílio dos Estados Unidos,  assim  como  recuperar  sua credibilidade  perante  a  comunidade  internacional.  Para  isso, Menen promoveu  uma  abertura  comercial  aos  fluxos  de  capital  externo, garantiu  maior  flexibilidade  nos  mercados  de  trabalho,  reformou  a legislação  trabalhista,  realizou  uma  ampla  reforma  tributária, privatizou empresas estatais, equiparou o peso ao dólar com o objetivo de  combater  a  inflação  e  garantir  segurança  aos  investimentos estrangeiros.  

Uma das principais consequências da neoliberalização da economia argentina, sem sombra de dúvidas, foi a geração de milhares de postos de  trabalho  precarizados,  subempregos,  empregos  temporários  e milhões de desempregados. O índice de desemprego que na década de 1980  variava  entre  4%  e  6%,  nos  primeiros  anos  da  década  de  1990 chegam a 18,4%. Apesar da singela recuperação no final dessa década, tais  índices  voltam  a  crescer  de  forma  assustadora  a  partir  de  2001: dependendo da região, o índice de desemprego chegou a atingir a cifra de  50%  da  população  economicamente  ativa  (VITULLO,  2008; SVAMPA, 2010).  

A  intensidade  com que a pobreza  foi atingindo amplos  setores da classe  trabalhadora  foi  proporcionalmente  acompanhada  pela intensidade  das  tensões  sociais  derivadas  de  tal  pobreza,  pois  para amplos  setores  da  classe  trabalhadora  argentina,  o  processo  de privatização  representou  o  fim  de  uma  estabilidade  no  emprego  e  o início de um caminho, muitas vezes sem volta, ao desemprego e à vida  rendas,  e  logo  após  certa  recuperação  em  1991  devido  à  estabilidade,  voltaram  a perder  em  torno de 20%  entre 1998  e 2001,  com  importantes oscilações até hoje. A profundidade e persistência da crise iniciada em meados da década de 1970 fizeram com  que milhares  de  famílias  de  classe média  e de  pobres  de  longa  data,  que  no passado  conseguiam escapar da miséria, visualizassem  suas  rendas declinar abaixo da “linha de pobreza” (KESSLER & DI VIRGILIO, 2008, p. 32). 

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lumpemproletária. A  resposta  popular  a  essa  condição  não  tardou  a aparecer, pois a história argentina conheceria novas ondas de protestos sociais  e  um  novo  sujeito  histórico,  formado  essencialmente  pelo lumpemproletariado: o movimento piqueteiro.  

A  emergência  do  movimento  piqueteiro  está  diretamente relacionada  com  o  amplo  processo  de  privatização  neoliberal, principalmente  com a privatização da  empresa  estatal petrolífera YPF (Yacimientos  Petrolíferos  Fiscales),  localizada  nas  províncias patagônicas  de  Neuquén,  especificamente  em  Cutral‐Có  e  Plaza Huincul, entre os anos de 1991 e 1993. Logo após a privatização dessa empresa,  milhares  de  trabalhadores  foram  demitidos.  No  primeiro momento buscaram sobreviver como autônomos e “micro‐empresários” que prestavam pequenos  serviços para  a petrolífera, no  entanto  essas tentativas  resultaram  em  verdadeiros  fracassos32  e  esses  ex‐trabalhadores passaram  a  se  encontrar  isolados  frente  á  frente  com  o desemprego aberto  e  sem nenhuma possibilidade de  sustentarem a  si mesmo e os seus familiares. Foi a partir daí que em  junho de 1997 um grupo de desempregados convocaram seus familiares, vizinhos e vários outros setores sociais locais para bloquear a estrada nacional 22, “artéria chave na economia da região” (VITULLO, 2008; SVAMPA & PEREYRA, 2009; ALVAREZ, 2009).  

Daí  por  diante,  várias  outras  regiões  afetadas  pelos  ajustes neoliberais conheceriam manifestações de desempregados e de diversos grupos  de  trabalhadores  precarizados  que  passaram  a  adotar  a estratégia dos  piquetes  e  cortes de  estradas  como  forma  principal de protestos que se espalharam por diversas regiões da Argentina: General Mosconi e Tartagal (Salta), Libertador General San Martín (Jujuy), Cruz 

32   Um  conjunto  de  obstáculos  e  dificuldades  possibilitou  que  a maior  parte  dessas experiências  resultasse  em  fracasso.  Svampa  e  Pereyra  apresentam  alguns  desses obstáculos: “Por causa da ausência de uma verdadeira política de recursos humanos, muitas  das  empresas  naufragaram  rapidamente,  atravessadas  por  dificuldades ligadas ao reconhecimento da autoridade, à tomada de decisões, a escassa capacidade negociadora,  a  impossibilidade  de  obter  contratos  por  causa  do  não  cumprimento com  obrigações  impositivas,  a  carência  de  edifício  próprio  e  a  impossibilidade  de acesso ao crédito, por falta de garantias de pagamento ou hipoteca; por último, pelos problemas associados ao elevado nível de endividamento” (2009, p. 109). 

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Del  Eje  (Córdoba),  Capitan  Bermúdez  (Santa  Fe),  Buenos  Aires  e Conurbano Bonaerense e outras regiões mais.  

É  no  ano  de  2000  que  a  prática  piqueteira  atinge  o  Conurbano Bonaerense, alcançando um caráter nacional e permanente, deixando de ser um  fenômeno  localizado e  fragmentado e  tornando‐se uma prática de resistência aos ditames neoliberais com caráter nacional. 

 Em resposta à intensa lumpemproletarização de diversas regiões do conurbano,  a  prática  dos  piquetes  e  cortes  de  ruas/estradas  se generalizam  e  se  prolongam  por  semanas  em  vários municípios  em torno de Buenos Aires. Com isso o governo De La Rua se vê obrigado a reconhecer  esse movimento  e  iniciar negociações que apontem para a solução do desemprego em massa. Concomitante a esses cortes de ruas locais,  se espalham, no mesmo período,  cortes de estradas por  todo o país.  A  repressão  se  intensifica  e  a  reação  popular  cresce assustadoramente após o assassinato de alguns militantes piqueteiros (o assassinato de Aníbal Verón, Maximiliano Kosteki e Darío Santillán são casos exemplares). De acordo com Vitullo, 

 segundo  um  estudo  realizado  pela  consultora  Centro  de  Estudios  Nueva Mayoría(2004a)  divulgado  pelo  Jornal  La  Nacion,  os  cortes  de  estradas realizados em todo o território nacional foram 140 em 1997, 51 em 1998, 252 em 1999, 514 em 2000, 1383 em 2001 e 2336 em 2002 (o que representa uma média superior  aos  6  bloqueios  diários,  sendo  este  o  ano  recorde  em matéria  de cortes) e, em 2003, verificaram‐se 1278  interrupções à circulação de veículos e mercadorias” (2008, p. 115).   

Nesse  período,  insurge  um  ciclo  ascendente  de  lutas  sociais  e  de enfrentamento popular  contra as  forças policiais que  tomará  conta da cena  política  e  social  argentina  até  aproximadamente  o  ano  de  2003, período  em  que  as  lutas  sociais  iniciam  seu  refluxo.  Em  diversos períodos  a  tensão  social  adquire  elevado  grau  de  radicalidade  e, consequentemente, a repressão do “Estado penal” tendeu a ampliar‐se a ponto de iniciar um verdadeiro processo de criminalização do protesto social (WACQUANT, 2001; KOROL, 2009). 

Esse  novo  ator  social,  composto  majoritariamente  pelo lumpemproletariado,  denominado  de  movimento  piqueteiro,  assim como  a  dinâmica  de  suas  lutas  firmadas  na  ação  coletiva,  na organização  solidária,  com  tomadas  de  decisões  pautadas  em 

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assembleias  horizontais  e  adotando  o  corte  de  ruas  e  estradas  como principal ferramenta de luta, possui de acordo com vários autores uma dupla  filiação.  Portanto,  para  que  se  compreenda  a  emergência  e desenvolvimento  do  movimento  piqueteiro  torna‐se  necessário apresentar essa dupla filiação.  

Uma  das  principais  e  mais  complexa  obra  sobre  o  assunto, elaborada  por Maristella  Svampa  e  Sebastián  Pereyra  e  denominada Entre  la  ruta  y  El  barrio  –  La  experiencia  de  las  organizaciones  piqueteras (2009) afirma que 

 não  é  possível  compreender  a  gênese  nem  o  posterior  desenvolvimento  do movimento piqueteiro se não estabelecermos sua dupla filiação: por um lado, a vertente que apresenta a brusca separação dos marcos sociais e trabalhistas que configuraram a vida cotidiana de gerações e povos inteiros; separação violenta que,  no  limite,  revela  tanto  uma  relação  mais  próxima  com  o  mundo  do trabalho  formal,  como  reflete  a  opção  por  um  tipo  de  ação  sindical  não‐institucionalizada; ligado a um modelo de ação confrontativo; por outro lado, a vertente  que  assinala  a  importância  da matriz  especificamente  territorial  da ação coletiva, e que da conta  tanto de uma distância maior com o mundo do trabalho  formal  como,  no  extremo,  da  continuidade  de  uma  relação  mais pragmática com os poderes públicos, na luta nada fácil pela sobrevivência (p. 20). 

 A  primeira  filiação  está  intimamente  relacionada  com  as 

consequências  sociais  que  as  reformas  e  “ajustes”  neoliberais provocaram no mundo do  trabalho a partir da  implementação de um novo projeto econômico orientado para a eliminação de déficits fiscais, nova  regulamentação  dos  mercados  e  privatização  acelerada  de empresas públicas. Juntamente com esses ajustes foi aprovado o Plano de Convertibilidade de 1991 que estabelecia a paridade entre o peso e o dólar, reduzindo as tarifas alfandegárias, liberação do comércio exterior e aumentando a pressão fiscal. Os principais mecanismos de controle do Estado foram suprimidos a favor das regras do mercado. 

As consequências sociais foram drásticas, pois a queda na qualidade dos serviços públicos foi extrema, milhares de pequenos investimentos se viram falidos, milhares de lumpemproletários que além de perderem seus  salários,  perderam  o  seguro‐desemprego  e  se  encontravam extremamente  endividados.  Nesse  novo  contexto,  as  mudanças  no mundo do trabalho modificaram‐se bruscamente, pois 

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o processo privatizador deixou uma  importante quantidade de  trabalhadores desempregados  com  diferentes  trajetórias  ocupacionais.  No  caso  dos trabalhadores  empregados  se  modificaram  as  condições  de  contrato  de trabalho, de uma  situação de  quase  garantia de  estabilidade  no  emprego  se passa a uma situação de  incerteza e precarização das condições de trabalho e possibilidades de associação sindical (BONIFACIO, 2011, p. 73). 

 Como  foi  dito  anteriormente,  o  impacto  mais  extremo  dessas 

reformas veio em consequência da privatização de uma das empresas públicas  mais  lucrativas  e  estratégicas  da  Argentina,  a  YPF.  Vale lembrar  que  a  YPF  consistia  em  uma  das maiores  empresas  estatais argentina e seus  trabalhadores formavam uma espécie de “aristocracia operária” visto que possuíam uma ampla gama de garantias e direitos sociais  (saúde,  moradia,  educação  para  os  filhos,  creches,  espaços recreativos etc.) oferecidos pelo Estado  social argentino, usufruíam de estabilidade no emprego e de excelentes salários. Com a privatização da empresa no  ano de  1993‐1995,  em pouco  tempo  todas  essas garantias desapareceram e o processo de intensificação da lumpemproletarização insurgiu: 

 a  empresa,  que  em  1990  contava  com  51  mil  empregados,  logo  após  um acelerado  processo  de  reestruturação,  que  inclui  demissões  voluntárias  e arbitrárias, passou a ter 5.600 trabalhadores. As baixas contabilizadas de 1990 e 1997  foram  as  seguintes:  para  a  região  saltenha,  3.400;  na  região  neuquina, 4.246; no vale austral, 1.660; em Comodoro Rivadavia, 4.402 e, finalmente, em Santa  Fe  (San  Lorenzo),  1.177.  Enfim,  a  reorganização  do  trabalho  esteve marcada  por  uma  forte  flexibilização  que  incluiu  a  descentralização  e desregulação  dos  setores,  a  redução  sistemática  de  pessoal,  a  limitação  no pagamento  das  horas‐extras,  a  intensificação  do  tempo  de  trabalho  e  a incorporação de novas  tecnologias  (ROFMAN  apud  SVAMPA & PEREYRA, 2009, p. 107). 

 É nesse  contexto que nasce na Argentina o movimento piqueteiro 

que, em resposta aos efeitos desintegradores das políticas neoliberais e seus  ajustes  estruturais,  busco  uauto‐organizar  e  mobilizar  o lumpemproletariado  composto  por  desempregados  e  outros  setores empobrecidos  da  sociedade.  O  movimento  piqueteiro  adquiriu  um caráter  de  protagonista  nas  manifestações  contra  o  neoliberalismo argentino  e  seus métodos  de  resistência  popular  ocuparam  um  lugar 

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destacado  na  política  nacional. Os  explosivos  cortes  de  estradas  e  as enérgicas puebladas de Neuquém, Salta e Jujuy entre 1996 e 1997 

 representam o ponto  inicial no qual uma nova  identidade – os piqueteiros – um  novo  formato de  protesto  ‐  o  corte de  estrada  ‐,  uma  nova modalidade organizativa – a assembléia – e um novo tipo de demanda – o trabalho – ficam definitivamente  associados,  originando  uma  importante  transformação  nos repertórios de mobilização da  sociedade  argentina    (SVAMPA & PEREYRA, 2009, p. 25). 

 A  segunda  filiação  do movimento  piqueteiro  é marcada  por  uma 

modalidade de ação coletiva de caráter  territorial, pois diferentemente das manifestações ocorridas nas longínquas províncias patagônicas que sofreram com as privatizações das empresas estatais, os protestos que ocorreram  na  região  do  Conurbano  Bonaerense  remete  a  um  longo processo  econômico  e  social  ligado  à  redução da produção  industrial local  e  deterioração  crescente  das  condições  de  vida  das  classes exploradas e setores das classes auxiliares, iniciados ainda na década de 1970. O processo de  redução da produção  industrial na  região  afetou uma  parcela  importante  dos  setores  assalariados.  De  acordo  com  os dados  para  a  região  da  Grande  Buenos  Aires,  entre  1980  e  1990  o desemprego aumentou de 2,3 a 6%, a subocupação duplicou, passando de 4,5 a 8,1% da população economicamente ativa. O emprego informal que  era  de  42,1%  em  1980  foi  para  48,5%  em  1991  e  terminou  por adquirir  características  próprias  de  outros  países  latino‐americanos (SVAMPA & PEREYRA, 2009). 

As ocupações  ilegais de  terra na  região do Conurbano Bonaerense são reveladoras do processo de pauperização social que atinge a região desde  o  período  da  ditadura militar.  Esse  processo  de  ocupação  de terras  às margens dos grandes  centros urbanos  argentinos  foi, muitas vezes,  resultado  de  uma  ampla  organização  territorial  que  contaram com  o  apoio  de  organizações  eclesiásticas  de  base  e  organização  de direitos  humanos.  De  acordo  com  as  análises  de Merklen  (2005),  os assentamentos  de  terras  demonstram  a  emergência  de  uma  nova configuração social que manifesta o processo de inscrição territorial das classes  populares,  relacionada  com  a  luta  pela  sobrevivência  e  pelos serviços públicos básicos. Por conseguinte, 

 

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tais ações foram construindo um novo marco e, por sua vez, um emaranhado relacional próprio cada vez mais desvinculado do mundo do trabalho formal. Uma das principais consequências dessa inscrição territorial é que o bairro foi surgindo  como espaço natural de ação e organização, e  se  converteu em um lugar de interação entre diferentes atores sociais reunidos em refeitórios, posto de saúde, organizações de base, formais e informais, comunidades eclesiásticas de  base,  em  alguns  casos  apoiadas  por  organizações  não‐governamentais. Enfim,  o  surgimento  de  novos  espaços  organizativos  dentro  do  bairro conheceu  um  novo  impulso,  ainda  que  fugaz,  durante  os  dois  episódios hiperinflacionários  de  1989  e  1990,  visíveis  na  proliferação  de  refeitórios populares (SVAMPA, 2005, p. 106). 

 Entre 1990 e 1998 sucessivas ondas de deslocamentos das indústrias 

atingiram  a  região  do  Conurbano  Bonaerense  como  resultado  das privatizações  e  ajustes  neoliberais.  Consequentemente,  ocorreu  um acelerado processo de expulsão do mercado de trabalho acompanhado de uma maior  instabilidade no  emprego. Vale  lembrar  que boa parte dos  sindicatos  argentinos  foram  cooptados  e  aceitaram  prontamente esse conjunto de reformas e ajustes neoliberais. Dessa maneira, parcela significativa  dos  trabalhadores  do  conurbano  passou  a  se  sentir completamente  desorientados  politicamente.  No  entanto,  as consequências  políticas  e  sociais  para  as  instituições  burocráticas  e clientelistas do Partido Justicialista também foram enormes, assim como o debilitamento do peronismo no mundo popular. 

 Diante  da  ausência  de  respostas  efetivas  do  poder  público  e  das suas  instituições  para  os  problemas  sociais  que  afetavam  o lumpemproletariado da região, emergiram organizações populares nos bairros  que  passaram  a  se  organizar  por  fora  das  estruturas burocráticas, tais como partidos políticos e sindicatos. É nesse contexto que emerge as organizações de desempregados e um novo modelo de militância  territorial  na  região  do  conurbano.  Portanto,  entre  1990  e 1995 alguns bairros começaram a se organizar para reclamar das tarifas dos serviços públicos privatizados. Em 1995 surge a primeira comissão de  desempregados  no município  de  La Matanza,  porém  somente  em 1996 inicia as primeiras manifestações exigindo auxílio à alimentação.  

Tais  manifestações  ocorrem  em  maio  de  1996  quando  vários vizinhos  dos  bairros  María  Elena  e  Villa  Unión  realizam  uma manifestação  na  Praça  São  Justo  com  uma  importante  participação feminina. Logo  em  seguida, no dia 06 de  setembro de 1996  se  realiza 

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uma  importante “Marcha contra a  fome, a repressão e o desemprego” até a Praça de Maio, que reuniu aproximadamente duas mil pessoas. A marcha  foi  um  pontapé  inicial  para  a  emergência  de  diversas organizações  de  desempregados  em  vários municípios  do  conurbano (SVAMPA & PEREYRA, 2009). 

La Matanza  é  um município  vizinho  à  capital  da República,  com aproximadamente 1.500.000 habitantes, população que supera de longe à  de  18  das  23  províncias  argentinas  (ISMAN,  2004).  Trata‐se  de  um enorme  aglomerado  urbano  com  grande  quantidade  da  população vivendo abaixo da  linha da pobreza. Segundo o  Jornal Clarin de 22 de outubro de 2001: 

 La  Matanza  é  um  dos  maiores  e  mais  difíceis  municípios  do  conurbano bonaerense: calcula‐se que o 50% de seu um milhão e meio de habitantes vive abaixo da linha da pobreza e que o índice de desemprego chega a 30%. Viver, nesse  contexto,  se  torna mais  complicado  a  cada  dia.  As  pessoas  não  têm dinheiro,  não  tem  teto  seguro,  não  tem  comida,  não  tem  roupa,  não  tem remédios. E não tem esperança (Apud ISMAN, 2004, p. 18). 

 As condições de deterioração pelas quais vem sofrendo o município 

de  La  Matanza  se  inicia  em  1976  com  o  golpe  militar  e  vêm  se ampliando continuamente até atingir sua fase mais acentuada durante o período menemista (1989‐1999). As ocupações ilegais de terra na região do  Conurbano  Bonaerense  são  reveladoras  do  processo  de pauperização  social  que  atinge  a  região desde  o  período da ditadura militar.  

Durante  o  período  marcado  pela  substituição  de  importações,  o setor fabril carregava consigo o restante das atividades econômicas em termos de produção  e gerava diversos postos de  trabalho, porém nos anos noventa o coeficiente de empregabilidade se encontrava na ordem de ‐3,7% e demonstrava que o setor industrial foi o grande responsável pela expulsão da mão‐de‐obra na região (BASUALDO, 2002; BARRERA &  LÓPEZ,  2010). Nesse  contexto,  La Matanza  deixou  de  ser  um  dos grandes pólos industriais do conurbano para se converter numa região que apresenta altos  índices sociais negativos. E essa  realidade não era exclusividade  desse  município,  pois  diversas  outras  regiões  do  país também  passaram  a  experimentar  um  intenso  processo  de lumpemproletarização. 

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De  acordo  com  uma  nota  de  Ismael  Bermudez,  contida  no  jornal Clarin  de  19  de  setembro  de  2001,  exemplifica  a  situação  geral  do Conurbano Bonaerense: 

 O desemprego cresceu quatro vezes mais (subiu de 5,7% para 22,9%) e entre os chefes de família se multiplicou por cinco (de 3,3% a 17,2%). Como resultado direto dessa situação, nesses municípios quase 40% das residências é formada por pessoas que  recebe apenas 20% da  renda da  região.  Isso explica a  razão pela qual a pobreza atinge quase 50% da população, o que significa que seus habitantes ou famílias da região não possuem renda suficiente para custear as compras dos bens e serviços básicos (Apud ISMAN, 2004, p. 17).  

Contra essa  situação de desemprego,  condições de vida precária e inexistência de serviços públicos básicos de qualidade (creches, escolas, postos  de  saúde, moradia,  asfalto,  rede  de  esgotos  etc.),  ou  seja,  por conta  desse  completo  quadro  de  abandono  gerado  pelo  descaso  dos poderes  públicos  (municipal,  estadual  e  federal)  é  que  nascem,  na região de La Matanza, diversas organizações de bairros que darão início a uma onda de protestos  sociais que  resultara  em  1995 nas primeiras tentativas  de  organização  do  lumpemproletariado  na  região.  É  nesse contexto  que  emerge  as  organizações  lumpemproletárias  e  um  novo modelo de militância territorial na região do conurbano.  

O que vem ocorrendo na Argentina da década de 1990 é parte do que  já vinha acontecendo em quase toda a sociedade moderna a partir da  década  de  1980,  isto  é,  a  sociedade  moderna  passa  a  sofrer importantes  transformações nas suas  formas de valorização do capital (toyotismo), assim como nas suas formas de regularização das relações sociais  garantidoras  do  mesmo.  A  principal  forma  regularizadora dessas  relações  consiste  no  Estado  Neoliberal.  Esse  emerge  com  o objetivo  de  proporcionar  melhores  condições  para  a  acumulação capitalista  através  de  novas  regulamentações  do  mercado,  do “afastamento”  do  Estado  das  obrigações  sociais  (saúde,  educação, segurança, emprego etc.) e de sua transferência para a iniciativa privada via privatização dessas obrigações e de alguns setores estratégicos antes sob o controle estatal (energia, água, gás, petróleo, transportes coletivos, telefonia etc.).  

Juntamente com a emergência de um movimento lumpemproletário que  passou  a  construir  estratégias  de  enfrentamento  ao  processo  de lumpemproletarização  e  empobrecimento  generalizado,  e  que 

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dificultaram  a  expansão  das  conquistas  necessárias  à  acumulação integral, emergiu também a face mais autoritária e repressiva do Estado Neoliberal  que,  juntamente  com  ocapital  comunicacional33, transformaram a luta pelos direitos sociais em delitos contra a ordem e os manifestantes  como delinqüentes dignos de  serem aprisionados ou quando não executados sumariamente pelo Estado Penal, como ocorreu e ainda ocorre nos diversos casos de “gatilho fácil”34.  

A  análise  que Wacquant  vem  realizando  em  suas  diversas  obras sobre  o  Estado  Penal  e  seu  processo  de  criminalização  do lumpemproletariado e de diversos movimentos sociais (tanto nos EUA, quanto  na  Europa)  também  serve  para  compreender  a  realidade Argentina,  pois  em  todos  os  rincões  em  que  o  neoliberalismo  se implantou enquanto  forma estatal, se  implantaram  também suas  faces penais da pobreza e do protesto social: criminalização, aprisionamento e extermínio. Segundo ele, 

 mais do que mera medida  repressiva, a criminalização dos que defendem os direitos sociais e econômicos integra uma agenda política mais ampla, que tem levado à criação de um novo regime que pode ser caracterizado como “liberal‐paternalismo”.  Ele  é  liberal  no  topo,  para  com  o  capital  e  as  classes privilegiadas,  produzindo  o  aumento  da  desigualdade  social  e  da marginalidade;  e  paternalista  e  punitivo  na  base,  para  com  aqueles  já desestabilizados  seja  pela  conjunção  da  reestruturação  do  emprego  com  o enfraquecimento  da  proteção  do  Estado  de  bem‐estar  social,  seja  pela reconversão de ambos em  instrumentos para vigiar os pobres (WACQUANT, 2008, p. 94).  

O processo de  criminalização do  lumpemproletariado  e de  outras classes sociais afetadas pelo neoliberalismo inicia aproximadamente no 

33 Para maiores  informações  sobre o  conceito de  capital  comunicacional ver  (VIANA, 2007b).  

34“Gatilho Fácil é o nome utilizado na Argentina para denominar os episódios de abuso de poder no uso de armas de fogo por parte da polícia. Em geral, as vítimas de gatilho fácil  são,  sobretudo,  jovens militantes  dos  bairros  pobres,  vítimas  de  processos  de disciplinamento  compulsivo  realizados  pelas  forças  policiais.  A  Correpi (Coordenadoria  contra  a  repressão  policial  e  institucional)  tipifica  esses  métodos como execução  sumária aplicada pela polícia e que geralmente  são acobertas  sob a alegação de mortes  oriundas do  enfrentamento. Esta pena de morte  ‘extralegal’  se distingue  por  duas  etapas:  o  fuzilamento  e  o  acobertamento  (KOROL &  LONGO, 2009, p. 106). 

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ano de 1993 quando a Argentina foi tomada por distintas manifestações populares contra os ajustes neoliberais, nas principais cidades do país. Em  diferentes  momentos  tais  manifestações  atingiram  níveis  de enfrentamento e violência que assustaram os poderes estabelecidos que, em resposta, procuraram ampliar a repressão policial e a criminalização dos militantes dos mais variados movimentos sociais.  

Nos dias 16 e 17 de dezembro de 1993 ocorre em Santiago del Estero o  que  ficou  conhecido  como  “El  Santiagazo”.  A  pueblada,  como também  ficou  conhecida  as  grandes  manifestações  populares,  foi iniciada  por  trabalhadores  estatais  demitidos  ou  que  tiveram  seu salários  reduzidos  e  atrasados  por  vários  meses.  Seus  participantes invadiram  e  incendiaram  simultaneamente  inúmeros  prédios  dos poderes  legislativo,  judiciário,  executivo  e  vários  outros  edifícios públicos,  assim  como  algumas  residências  de  políticos  e  sindicalistas locais.  Na  noite  do  dia  16,  o  governador  Juárez  foi  destituído  e  o Congresso  Nacional  realizou  uma  intervenção  nos  três  poderes provinciais após aprovar um projeto do poder executivo que autorizava o  envio de  tropas do  exército  e da Gendarmeria  para  a  província de Santiago  del  Estero  (KOROL &  LONGO,  2009).  Segundo  Vitullo,  foi nesse dia que a pueblada experimentou elevado nível de conflitividade, pois 

 os choques entre as  forças repressivas e os manifestantes deixaram um saldo de quatro mortos e mais de cem feridos e uma forte impressão no restante da sociedade  argentina,  que,  através  da  televisão,  assistia  azoada  a  estes  fatos. Além deste saldo e como consequência da mobilização popular, o  justicialista Fernando Lobo, governador da província em substituição de Carlos Mijuca – quem tinha deixado o cargo escassos 50 dias antes sem sequer alcançar metade do seu mandato devido a uma  forte crise política,  também viu‐se obrigado a renunciar, o que acabou precipitando o  já assinalado processo de  intervenção federal à província (VITULLO, 2008, p. 112).  

 Após o  Santiagazo  começaram  a  explodir  em diversas  localidades 

do país vários protestos sociais que passaram a desenvolver formas de mobilização  popular  pautadas  pela  ação  direta.  A  somatória  dos protestos e  tensões sociais que assolavam  todo o país desde a sua fase mais aguda entre os anos de 1996 e 1997, explode nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001 na grande rebelião generalizada.  

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Por  todo  o  país  eclodiam  tensões  sociais,  movimento  de desempregados,  mulheres  agropecuaristas  em  luta,  greves  de professores, ocupação de fábricas e vários outros setores sociais em luta contra aquilo que era considerado por eles os responsáveis por  toda a gama  de  dificuldades,  lumpemproletarização  e  empobrecimento  e diversas  outras  humilhações  sociais.  Dentre  os  eleitos  responsáveis destacam‐se: os governantes, os partidos políticos, o próprio Estado, a burocracia  estatal,  partidária  e  sindical,  suas  hierarquias,  o  sistema financeiro nacional e internacional, o FMI e o Banco Mundial e, para os setores  mais  radicalizados,  todas  as  relações  sociais  pautadas  pela obrigatoriedade  capitalista  da  exploração  do  homem  em  troca  da obtenção de  lucros. Por essas razões o  lema central dessas  jornadas foi expresso na frase “Que se vayan todos, que no quede ni uno solo!” 35. 

Cont.O  caráter  massivo  dos  protestos  sociais  promovido  pelos diversos  movimentos  piqueteiros  argentinos,  juntamente  com  seus métodos de bloqueios de estradas que  impossibilitava a  circulação de veículos,  pessoas  e,  principalmente  mercadorias,  assim  como  a construção de formas de participação e decisões políticas pautadas por uma espécie de democracia direta, decisões coletivas e horizontais em assembléias  etc.  consistiram  nas  principais  razões  que  levaram  os poderes  governamentais  a  temerem  a  expansão  dessas  formas  de organização e da consciência de classe derivada das mesmas.  

Por  esses motivos  é  que  desde  o  início  dos  primeiros  levantes  de desempregados,  o  governo  argentino  procurou  criminalizar  as  lutas sociais. No primeiro momento com a ampliação da repressão policial – o deslocamento da Gendarmería  (tropas militares), que originalmente  foi criada  para  defender  as  fronteiras  nacionais,  para  as  províncias patagônicas  tomadas  pelas  puebladas  é  um  sinal  demonstrativo  da mudança  na  política  repressiva.  Com  o  avanço  das  lutas  e  das mobilizações  populares  o  governo  inicia  um  intenso  processo  de judicialização  dos  militantes  de  diversos  movimentos  sociais, principalmente  dos  integrantes  de  movimentos  piquteros.  Segundo Korol& Longo, 

 

35 “Que todos vão embora, que não fique nenhum sequer” (tradução nossa). 

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algumas  das  formas  em  que  se manifesta  a  criminalização  dos movimentos populares  é  o  avanço do processo de  judicialização dos  conflitos,  visível  na multiplicação e no agravamento das  figuras penais, na maneira em que estas são  aplicadas  por  juízes  e  promotores,  no  número  de  processos  contra militantes populares, na estigmatização de populações e grupos mobilizados, no  incremento das  forças  repressivas e na criação especial de  tropas de elite, orientadas para a repressão e militarização das zonas de conflito (2009, p. 84).  

Outra estratégia adotada pelo governo argentino para criminalizar o movimento  piqueteiro  se  deu  através  do  uso  excessivo  do  capital comunicacional  com  o  objetivo  de  criar  uma  imagem  negativa  dos militantes.  Dessa  forma,  o  capital  comunicacional  apresentava  os manifestos  por  direitos  sociais  como  delitos  contra  a  ordem  e  os manifestantes  como  delinquentes  violentos,  assim  como  ocultando  as motivações populares e apresentando apenas os episódios de violência popular,  com  isso  gerando  o  medo,  fragmentando  a  sociedade  e impossibilitando o crescimento do apoio às lutas por direitos sociais36. 

O  regime  de  acumulação  integral  é  marcado  por  contradições crescentes, pois se de um lado é necessário, para manter a acumulação capitalista,  realizar  cortes  drásticos  em  políticas  sociais,  corroer  os direitos  trabalhistas,  precarizar  e  intensificar  as  relações  de  trabalho, expandir  e  intensificar  a  lumpemproletarização  para  alimentar  o exército  industrial  de  reserva  e  seu  papel  na manutenção  de  baixos salários  e  etc.,  por  outro  lado  ela  se  vê  obrigada  a  intensificar  a repressão,  pois,  em  consequência  de  tais  práticas,  cresce  a  violência contra  a  propriedade  privada,  os  protestos  sociais  se  radicalizam  e  a criminalidade  tende  a  se generalizar. No  entanto,  o Estado neoliberal não pode ser mantido às custas da não redução da dívida pública e da poupança de recursos, e por isso tal Estado opta por ampliar o aparato repressivo  e  criminalizar  o  movimento  piqueteiro  e  diversos  outros movimentos  sociais.  É  exatamente  isso  que  vem  ocorrendo  na Argentina contemporânea e em diversas outras regiões do globo. 

36 Para  saber mais  sobre o processo de  criminalização da pobreza  e dos movimentos sociais na Argentina Cf. KOROL, Claudia  (org.). Criminalización de  la pobreza y de La protesta social. Buenos Aires: El coletivo/America  libre, 2009); CARDOZO, Fernanda. “Protestar  não  é  delito”.  A  criminalização  dos  movimentos  sociais  na  Argentina contemporânea – o caso do movimento piquetero (1997‐2007). 2008. Dissertação (mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. 130 p. 

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O movimento piqueteiro nos fornece um excelente exemplo de que a postura política do  lumpemproletariado não é a mesma em  todos os contextos  históricos,  pois  se  na  França  do  século  XIX,  o lumpemproletariado  foi  cooptado  pelo  Estado  francês  e  utilizado  na repressão  contra  o  avanço  das  lutas  operárias,  na  argentina contemporânea,  as  lutas  dessa  classe  social  desenvolveu‐se  de  forma autônoma,  inicialmente desvinculada das  instituições burocráticas,  tais como sindicatos e partidos políticos, resgatando práticas do movimento operário revolucionário (assembleias coletivas e horizontalizadas, auto‐organização  dos  bairros  e  de  algumas  atividades  produtivas  etc.)  e adquirindo  elevados  níveis de  radicalidade,  que  o  tornou  o principal ator em luta contra a intensificação da lumpemproletarização, típica da acumulação integral subordinada.  

Portanto,  não  é  possível  afirmar  que  o  lumpemproletariado  é,  e sempre  será  politicamente  reacionário  e  cooptável,  pois  sua  postura política se altera dependendo do contexto, das singularidades regionais e  da  correlação  das  forças  sociais,  podendo  a  representar  uma importantíssima  aliança  com  o  proletariado  em  torno  de  um  bloco revolucionário.  Na  contemporaneidade,  a  postura  contestadora  do lumpemproletariado  tende  a  crescer  e,  consequentemente,  a  se apresentar como uma ameaça cada vez maior à existência da sociedade capitalista. 

O  processo  de  lumpemproletarização,  respeitando  as particularidades  nacionais,  atinge  com  maior  ou  menor  intensidade todo  o  mundo,  pois  como  foi  dito  nesse  trabalho,  a lumpemproletarização é um processo inerente à dinâmica de produção capitalista.  Constata‐se  que  esse  processo  tende  a  se  expandir  na contemporaneidade.  Apenas  para  reforçar  essa  tese,  gostaríamos  de mencionar  o  processo  de  universalização  da  lumpemproletarização, demonstrando‐o,  rapidamente,  em  outras  regiões:  México,  Suécia  e China. 

Em linhas gerais, o processo de lumpemproletarização no México se assemelha  ao  ocorrido  em  outras nações de  capitalismo  subordinado, tal  como  no  Brasil  e Argentina. O  processo  de  privatização  realizou, entre os anos de 1988 e 1994, a demissão de metade dos trabalhadores dos setores públicos. Visando regularizar a estrutura social segundo os interesses da acumulação integral, diversas alterações foram realizadas 

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na Constituição promulgada pela Revolução Mexicana de 1917. Dentre elas, a que mais serve aos nossos propósitos, foi a alteração realizada no ano de 1991 que aprovou a lei de reforma que autorizava e  estimulava a  privatização  de  terras  sob  o  sistema  ejido  (terra  de  uso  e  posse coletiva). Desprotegidos, milhares  de  indígenas  passaram  a  perder  a base  de  sua  segurança  coletiva,  antes  garantida  pelo  sistema  ejido,  e migraram  para  as  principais  cidades  mexicanas,  expandindo,  dessa forma,  o  exército  industrial  de  reserva  composto  pelo lumpemproletariado (HARVEY, 2008a). 

Mesmo  a  Suécia,  país  de  capitalismo  imperialista  com  uma  forte política de “bem‐estar social”, não esteve isenta de sofrer o processo de lumpemproletarização.  Com  o  objetivo  de  combater  a  tendência declinante  da  taxa  de  juros,  a  partir  da  década  de  1970,  diversas medidas adotadas demonstravam que as preocupações sociais haviam se  transferido para  as preocupações  financeiras. O pleno  emprego  foi substituído  pelo  combate  à  inflação.  Segundo  Harvey  (2008a),  “o colapso da bolha especulativa nos preços dos ativos que  se  seguiu ao aumento dos preços do petróleo de  1991  levou  à  fuga de  capitais  e  a falências  internas  que  custaram  muito  ao  governo  sueco”  (p.  124). Seguindo,  quase  irrestritamente,  a  cartilha  neoliberal,  a  Suécia  sofreu uma  forte  depressão  que  resultou  no  aumento  dobrado  das  taxas  de desemprego em apenas dois anos. 

Desde o final da década de 1970 e início da década de 1980 a China vem passando por uma  série de  reformas  econômicas que  visavam  o estabelecimento  de  forças  de mercado  em  sua  economia,  bem  como estimular a competição entre as empresas estatais a fim de promover a inovação e o crescimento. Além disso, e 

 para  complementar  esse  esforço,  também  se promoveu a  abertura da China, ainda que  sob a estrita supervisão do Estado, ao comércio e ao  investimento externos,  acabando‐se  assim  com  o  isolamento  chinês  do mercado mundial (HARVEY, 2008a, p. 132). 

 Diversas medidas internas foram tomadas para assegurar o sucesso 

dessas reformas. Dentre elas, destacaremos as mudanças ocorridas nas comunas  agrícolas. De  acordo  com Harvey  (2008a),  estabeleceu‐se  na China uma economia de mercado mais aberta em volta das principais Empresas de Propriedade do Estado  (EPEs), através da dissolução das 

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comunas agrícolas em favor de um sistema de “responsabilidade social” individualizado,  no  qual,  inicialmente,  era permitido  aos  camponeses vender os excedentes no mercado livre ao invés de serem tabelados pelo Estado.  No  entanto,  no  final  da  década  de  1980,  todas  as  comunas haviam sido completamente dissolvidas. 

Apesar  de  não  serem  proprietários  formais  das  terras,  os camponeses  podiam  arrendá‐las,  pagar  outros  trabalhadores  para produzir na terra e vender seus produtos a preço de mercado etc.. Entre 1978  e  1984,  as  rendas  rurais  se  elevaram  e  atingiram  um  espantoso crescimento de  14%  ao  ano, porém  a partir de  1984  esse  crescimento começa  a  cair  até  atingir  uma  estagnação  completa,  principalmente  a partir de 1995, em quase todas as áreas de produção. Juntamente com o declínio das  rendas  rurais, os  camponeses perderam diversos direitos sociais. 

 A  disparidade  entre  rendas  rurais  e  rendas  urbanas  aumentou acentuadamente.  Estas,  que  eram  em  média  80  dólares  anuais  em  1985, dispararam para  1.000  em  2004,  ao passo que  aquelas passaram de mais ou menos 50 dólares para cerca de 300 nesse mesmo período. Além disso, a perda de direitos sociais coletivos antes estabelecidos no âmbito das comunas – por poucas que pudessem ter sido – implicara para os camponeses o ônus de pagar altas  taxas  de  uso  por  escolas,  assistência médica  etc.  Não  era  isso  o  que acontecia  com  boa  parte  dos  residentes  urbanos  permanentes,  que  também foram favorecidos a partir de 1995, quando uma lei de propriedade imobiliária urbana assegurou o direito de propriedade de  imóveis a  residentes urbanos, que puderam  então  especular  com  os preços daqueles. A diferença  entre  os ambientes rural e urbano quanto a nível de renda real é hoje, segundo algumas estimativas, maior de que em qualquer outro país do mundo (HARVEY, 2008a, p. 137). 

 Não  é  difícil  imaginar,  devido  às  proporções  gigantescas  do 

contingente  populacional  rural  chinês,  o  tamanho  do  êxodo  rural experimentado no país a partir da década de 1990 e, consequentemente, a  expansão  do  processo  de  lumpemproletarização  nas  principais cidades  do  país.  No  ano  de  2005,  a  China  experimentava  o  maior processo de migração em massa  já ocorrido em todo o mundo e que  já ultrapassa ilimitadamente as migrações ocorridas para a América e para todo mundo ocidental moderno.  

 

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Segundo estatísticas oficiais, há “114 milhões de  trabalhadores migrantes que deixaram áreas  rurais,  temporariamente, ou para  sempre, a  fim de  trabalhar nas  cidades”,  e  especialistas  do  governo  “prevêem  que  esse  número  vai  se elevar a 300 milhões até 2020, e até mesmo a 500 milhões. Só Xangai “tem 3 milhões de trabalhadores migrantes; em comparação, considera‐se que toda a migração  irlandesa  para  a  América  entre  1820  e  1930  envolveu  talvez  4,5 milhões de pessoas” (HARVEY, 2008a, p. 138). 

 Esse  processo  de  migração  em  massa  formou  um 

lumpemproletariado  colossal  e,  por  conseguinte,  possibilitou  uma superexploração da mão‐de‐obra nas  cidades. O maior exemplo dessa relação entre  lumpemproletariado  colossal e  superexploração da mão‐de‐obra se revela nos abundantes casos de trabalho escravo no país37.   

37 “Na China, as condições em que trabalham jovens mulheres que migraram das áreas rurais não são menos que horrendas: ‘um número insuportavelmente longo de horas de  trabalho,  comida  bem  ruim,  dormitórios  apertados,  gerentes  sádicos  que  as espancam  e  se  aproveitam  sexualmente  delas  e  o  pagamento  que  só  vem meses depois, quando vem’” (HARVEY, 2008a, p. 182). 

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LUMPEMPROLETARIZAÇÃO NA ERA DA ACUMULAÇÃO INTEGRAL NO BRASIL 

4.1 MUDANÇAS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO E TOYOTISMO 

 O processo de “reestruturação produtiva” se inicia no Brasil a partir 

da década de 1990, no entanto, para que possamos compreender todas as mudanças ocorridas nas relações de  trabalho a partir dessa década, torna‐se necessário, mesmo que brevemente, resgatarmos uma série de políticas de ajuste e de modernização  tecnológica pelas quais diversas empresas passaram desde o final da década de 1970, período no qual se inicia o declínio do  regime de acumulação  sob o qual  se estruturou a fase anterior de nosso desenvolvimento econômico.  

Ainda  na  década  de  1956,  a  economia  nacional  verifica  um crescimento  intenso  da  capacidade  produtiva  do  setor  de  bens  de produção e de bens de consumo duráveis. Tal crescimento é derivado da consolidação de um parque industrial de significativas proporções e que  adquire  níveis  importantíssimos  de  complementaridade  entre  os diversos  setores  a  partir  do  “processo  de  industrialização  pesada” (LEITE, 1994, 2003). De acordo com Suzigan (1988), 

 a  estrutura  industrial  avançou  no  sentido  de  incorporar  segmentos  da indústria pesada, da indústria de bens de consumo duráveis e da indústria de bens  de  capital,  substituindo  importações  de  insumo  básicos,  máquinas  e equipamentos,  automóveis,  eletrodomésticos  etc.  Essa  estrutura  seria  a  base sobre  a  qual  se  apoiaria  o  rápido  crescimento  da  produção  industrial  na primeira fase do ciclo expansivo 1968 a 1973, 1974 (Apud LEITE, 1994, p. 126). 

 Portanto, a década de 1970 é marcada por um processo industrial de 

grande  expansão,  caracterizado  tanto  pela  aceleração  da  produção  e emprego  industrial  quanto  pelo  crescimento  acelerado  da  força produtiva  dos  ramos  de  bens  de  produção  e  de  bens  de  consumo duráveis.  Conforme  analisam  Gitahy,  Leite  e  Rabelo  (apud  LEITE, 2003), esse processo se dá em um contexto de concorrência direcionada a  um  mercado  interno  em  expansão  e  protegido  por  políticas  de proteção e controle de  importações, assim como pelo desenvolvimento do  setor  de  bens  de  capital  que  visava  atender  à  demanda  do  setor 

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público  e  à  do  setor  de  bens  de  consumo  duráveis,  que  também  se encontrava em expansão.  

Com o avanço tecnológico experimentado por inúmeras indústrias a partir  de  1956,  diversas  técnicas  e  princípios  tayloristas/fordistas  de organização do trabalho se difundem pelo país. É claro que tais técnicas e princípios foram introduzidos de forma a se adequarem à realidade e possibilidades nacionais, pois não há homogeneidade na aplicação de tais  formas  de  organização  do  trabalho  no  mundo.  Porém,  mesmo contendo  diferenças  expressivas  em  relação  ao modelo  existente  nos países  imperialistas,  é  possível  perceber  a  presença  de  características tipicamente fordistas na produção brasileira do período, tais como uma expressiva mecanização acompanhada de uma expansão dos mercados de bens de consumo duráveis. No geral, as diferenças se mostram em relação  à  qualidade  na  fabricação  e  na  tecnologia  de  engenharia  na produção  de mercadorias,  bem  como  nas  singularidades  do mercado brasileiro que é 

 formado por uma combinação específica entre o consumo das classes médias modernas  locais, com o acesso parcial dos operários dos setores de ponta da economia  aos  bens  de  consumo  popular  duráveis,  e  as  exportações  destes mesmos produtos manufaturados  a  baixos preços para  os países  centrais. O crescimento da demanda  não  é, dessa  forma,  regulado  numa  base  nacional, como no caso dos países centrais, mas se encontra, pelo contrário, acoplado ao mercado  internacional,  ainda  que  o  conceito  se  restrinja  aos  países  onde  o crescimento do mercado  interno cumpriu um papel  importante no regime de acumulação nacional (LEITE, 1994, p. 128). 

 Esse  regime  de  acumulação  entrou  em  crise  a  partir  do  final  da 

década  de  1970  quando  inúmeros  fatores  promoveram  o  seu enfraquecimento.  Dentre  eles  poderíamos mencionar  as  contradições internas  derivadas  das  pressões  demográficas,  a  dificuldade  de expansão  do mercado  interno  (devido,  principalmente,  à  política  de desvalorização  salarial),  as  lutas  operárias  que  irão  promover  uma constante  resistência e obstáculo ao aumento da exploração capitalista desse período e a crise do regime de acumulação intensivo‐extensivo no capitalismo  imperialista  (EUA  e  Europa  Ocidental)  que  a  partir  da década de 1980 provocará uma retração no mercado mundial.  

Antes  de  avançarmos  no  desenvolvimento  das  lutas  operárias, principal  força  enfraquecedora  da  acumulação  capitalista,  voltaremos 

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um pouco na história, pois para compreendermos as condições de vida e  trabalho da classe operária brasileira durante a vigência da ditadura militar é imprescindível apresentarmos a razão de ser de tal ditadura e a dinâmica do processo de acumulação  subordinada,  característica do Brasil. Sendo assim, que fatores explicam a eclosão do golpe militar de 1964  e que  relação  os mesmos possuem  com  a  resistência promovida pela classe operária entre os anos de 1964 e 1984? 

Já no final da década de 1950 é possível percebermos a mobilização crescente  de  diversos  setores  sociais  (operariado,  campesinato, movimento  estudantil  etc.)  na  luta  contra  o  Estado  populista. Nesse período  o  movimento  operário  começa  a  dar  sinais  de  grande descontentamento com a política  salarial e com a escalada vertiginosa da inflação no país. Os anos seguintes também conviverão com diversas lutas operárias (VIANA, 2005).  Segundo Castro, 

 a  escalada  inflacionária  leva  a uma  escalada das  greves. Anos  após  anos  os recordes de horas perdidas são batidos. Em 1958, destaca‐se a paralisação por 7 dias da marinha mercante em todo o país, com a participação de centenas de milhares  de  marinheiros.  Malgrado  a  ilegalidade  da  greve,  JK  acabou concedendo  à maioria  das  reivindicações. Nos  transportes  urbanos,  a  greve dos  carris  do  Rio  de  Janeiro,  apoiada  por  fortes  e  violentas manifestações estudantis,  também  termina vitoriosa  [...] Em 1959, não somente as greves se intensificaram,  como  a  desasperação  pela  contínua  erosão  dos  salários provocou a multiplicação de manifestações de ruas com choques violentos com as  forças  policiais.  Protestos  contra  a  alta  dos  preços  seguiam‐se frequentemente de pilhagens de armazéns. Em vários casos as forças policiais utilizaram  armas  de  fogo  ou  baionetas  para  reprimir  os  manifestantes, provocando  ferimentos e a morte de dezenas destes  (Apud VIANA, 1980, p. 69‐70). 

 Os primeiros anos da década de 1960 são marcados pela expansão 

do movimento  grevista  para  diversas  categorias  de  trabalhadores. A cidade de Santos atinge a marca de 01 milhão e meio de trabalhadores em  greve  e  a  decretação  de  uma  greve  geral  apresenta‐se  como  o momento máximo das lutas operárias. Com a expansão da mobilização de  diversos  setores  (ferroviário,  marítimo,  portuário,  aeroviários, estivadores)  o  governo  João  Goulart  se  vê  obrigado  a  realizar concessões e aumentos salariais.  

 

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Em  outubro  de  1962,  700 mil  operários  entram  em  greve  em  São  Paulo  e conseguem  aumentos  salariais. Assim,  o movimento  operário,  bem  como  o movimento estudantil e dos  trabalhadores  rurais,  realizam uma ascensão em suas  lutas que dificultava a  concretização dos  interesses da  classe  capitalista que era aumentar a taxa de exploração (VIANA, 2005, p. 24). 

 De acordo com Viana (2005), esse processo de ascensão e expansão 

das  lutas  dos  trabalhadores  promovia  temor  nas  forças  políticas conservadoras e levavam os populistas a “radicalizarem” seus discursos na  tentativa  de  se  aproximarem  mais  dos  setores  populares  com  o intuito  de  ganharem maior  apoio  político.  Os  níveis  de  pressão  dos trabalhadores  determinavam,  de  certa  forma,  a  política  salarial  do período que, ora apontava para uma maior exploração do trabalho, ora apontava  para  sua  diminuição.  No  entanto,  os  primeiros  anos  da década de 1960 foram marcados por uma maior radicalização e pressão dos  trabalhadores  sobre  a  classe  capitalista  e  suas  classes  auxiliares  e isso acabava por gerar obstáculos ao processo de acumulação nacional, por conseguinte dificultando a acumulação nos países imperialistas, por dificultar o aumento da extração de mais‐valor internacional.  

Nesse  sentido, a  lutas dos  trabalhadores,  sem  sombra de dúvidas, foi  fundamental  para  obstaculizar  a  tentativa  de  intensificação  da exploração do capital sobre o trabalho que, diga‐se de passagem, já era elevadíssima, porém, outra determinação  também deve  ser  levada em conta  nesse  processo.  Trata‐se  da  condição  brasileira  de  capitalismo subordinado  ao  capitalismo  imperialista  (principalmente  o  norte‐americano).  

O  contexto  no  qual  estamos  tratando  equivale,  em  nível internacional, ao período de crise do regime de acumulação  intensivo‐extensivo  e  que,  portanto,  levava  os  países  imperialistas  a  buscar soluções para a crise de acumulação pelas quais passavam. Contudo, as soluções apontavam para a busca pelo aumento da  extração de mais‐valor  sobre  o  trabalho  ainda  no  interior  desse  mesmo  regime  de acumulação  e  “isto  significava  buscar  aumentar  o  processo  de exploração  sem  criar  grandes  alterações  no  regime  de  acumulação” (VIANA, 2005, p. 26). Dessa forma, as  lutas operárias se apresentavam como um obstáculo não só para a acumulação nacional, mas,  também para  a  acumulação  imperialista  norte‐americana  no  Brasil  e,  assim sendo, os setores conservadores (capital  transnacional, capital nacional 

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e  suas  classes  auxiliares)  se  uniram  na  tentativa  de  remover  tais obstáculos  combatendo  a  resistência  das  classes  trabalhadoras  com  o intuito de promover a  intensificação da  exploração do  capital  sobre o trabalho, tal como ocorreu no período pós‐golpe de 1964, bem como no contexto  internacional  que  já  anunciava  a  possibilidade  de  uma transição para outro regime de acumulação. 

O  apoio  norte‐americano  ao  golpe  de  1964  revela,  entretanto,  os interesses desse país em garantir em território brasileiro uma saída para a  crise  na  qual  se  encontrava por meio do  aumento da  exploração  e, consequentemente,  de  uma maior  extração  de mais‐valor  através  de suas empresas transnacionais. Dessa forma, 

 o  golpe  de  64  foi  produto  da  ofensiva  capitalista  realizada  pelas  potências imperialistas (principalmente os EUA) e, com o apoio da burguesia brasileira e outros  setores, consegue produzir um amplo aparato  repressivo e ao mesmo tempo  desalojar  do  governo  setores  populistas  e  reformistas  que  tinham dificuldades em atacar diretamente os trabalhadores e aumentar o processo de exploração [...] permitindo aumentar o processo de acumulação capitalista no Brasil para sustentar as necessidades da burguesia brasileira e a transferência de  mais‐valor  para    sustentar  as  necessidades  dos  países  imperialistas, principalmente  dos  Estados  Unidos.  Em  síntese,  é  a  ascensão  das  lutas operárias e de outros setores sociais que promoveu a necessidade de transição da  democracia  burguesa  para  a  ditadura,  pois  somente  esta  possibilitaria  a ampliação da taxa de exploração naquele contexto, o que era uma necessidade vital do capital neste período (VIANA, 2005, p. 27). 

 Destarte,  a  ditadura  militar  tinha  como  objetivo  fundamental 

garantir  aquilo  que  a  “democracia”  populista  não  conseguia  realizar naquele  momento,  isto  é,  uma  dura  ofensiva  em  nome  do  capital (nacional e  transnacional) contra a classe  trabalhadora. Foi exatamente essa  a  política  de  estado  implementada  pelos militares  no  poder.  A ditadura  militar  e  o  regime  de  acumulação  desenvolvido  no  país estavam em harmonia com as transformações que vinham ocorrendo na divisão  internacional  do  trabalho,  e  que  gestavam  novas  formas  de valorização do  capital por parte dos países  imperialistas,  nas  quais  o aumento  de  extração  de mais‐valor  fora  de  suas  fronteiras  nacionais adquiria  importância  fundamental.  Tais  formas  de  valorização  do capital  iam ao  encontro dos  interesses dos  setores  conservadores que, há  tempos  se  vinculavam  ao  capital  internacional  e, por  conseguinte, 

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viam  com  bons  olhos  uma  maior  abertura  da  economia  ao  capital estrangeiro (Costa, 1997). 

Nesse  sentido,  a  política  de  Estado  consumada  no  Brasil  buscou construir  um  regime  de  acumulação  que  se  afirmava  numa  intensa extração de mais‐valor absoluto aliada a uma constante depreciação da força  de  trabalho  buscando  ampliar  a  taxa  de  lucro  das  grandes empresas e promover um acelerado processo de acumulação de capital. Esse novo  regime de acumulação acabou por promover  também, uma enorme desigualdade social, uma vez que promoveu uma intensificação da lumpemproletarização ‐ que já era enorme no país –, pois as taxas de desemprego  se  elevaram  e,  consequentemente,  como  é  regra  no capitalismo, a exploração das classes  trabalhadoras e a depreciação do valor da sua força de trabalho. Com o intuito de ilustrar o que acabamos de  afirmar,  recorremos  às  análises de Edmilson Costa  na  sua  obra A política salarial no Brasil (1997) que assim diz: 

 Em  termos  concretos,  em  1984  os  trabalhadores  da  faixa  de  salário mínimo foram  obrigados  a  trabalhar  cerca de  60% de horas  a mais para  adquirir  os mesmos bens da cesta básica de 1963, o que revela, por um  lado, uma brutal desvalorização  do  preço  da  força  de  trabalho  e,  por  outro,  um  grau  de exploração  perverso,  traduzido  num  aumento  da  mais‐valia  absoluta  [...] Como o  salário mínimo  funciona  como um  farol para  a grande maioria dos salários, estrutura‐se um mercado de  trabalho de baixos salários, ou seja, um mercado de trabalho com salários pagos abaixo do valor da força de trabalho (p. 41‐42). 

 Em  relação  ao  aumento  da  extração  de  mais‐valor  absoluto,  ele 

continua afirmando:  

Esse panorama  torna‐se mais crítico se a essas  informações acrescentarmos o fato de que ocorreu, no auge do “milagre”, um prolongamento excessivo da jornada de trabalho. As horas extras se transformaram num fato cotidiano em praticamente  todas as categorias operárias e podem ser entendidas como um instrumento  compensatório  à  desvalorização  do  preço  da  força  de  trabalho. Não  seria  exagero  afirmar que  a  jornada de  trabalho no país  retroagiu para algo próximo dos patamares da primeira revolução industrial, tanto em setores onde  esse  fato  é  tradicional  (construção  civil),  quanto  em  setores  de  ponta, situando‐se entre 10‐12 horas de trabalho (p. 43‐44). 

 

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As  relações  de  trabalho  dominantes  na  época  da  ditadura militar eram  marcadas,  essencialmente,  por  práticas  autoritárias  de  cunho paternalista  e  corporativista  que  dificultavam  qualquer  tentativa  de representação  dos  interesses  do  proletariado.  O  amplo  processo  de desenvolvimento  industrial que contribuiria para a emergência de um novo  regime  de  acumulação  capitalista  não  veio  acompanhado  de melhorias  nas  condições  de  vida  e  trabalho  da  classe  operária.  Pelo contrário, pois o controle da força de trabalho caracterizou‐se por uma imensa parcelização das  tarefas, pelo extenso uso de  força de  trabalho não‐qualificada,  por  elevadas  taxas  de  rotatividade,  pela  adoção  de complexas  estruturas  de  cargos  e  salários  que  objetivavam  promover uma maior  divisão  e  controle  sobre  a  classe  operária  (LEITE,  2003). Portanto, 

 no período da ditadura militar,  a  superexploração do  trabalho no Brasil  iria assumir  sua  maior  perversidade  histórica,  articulando  uma  jornada prolongada  de  trabalho  com  uma  intensidade  extenuante  do  processo produtivo,  e  uma  tendência  persistente  à  depreciação  salarial,  à  constante subtração do  quantum  referente  à  remuneração do  trabalho,  em benefício do mais‐valor  apropriado  pelo  capital  monopólico.  Outro  aspecto  da superexploração do trabalho sob a ditadura militar era o despotismo do capital no local de trabalho e a utilização de operários não qualificados com alto grau de rotatividade na linha de produção (ALVES, 2005, p. 109). 

 Seguindo a  tendência  intrínseca ao capitalismo, em  todo o período 

governado  pelos militares,  as  articulações  do  capital  para  ampliar  a extração de mais‐valor vieram acompanhadas de diversas tentativas do movimento  operário  de  reduzir  o  tempo  de  trabalho  utilizado  na extração  de mais‐valor,  através  de  diversas  estratégias  (absenteísmo, “operação  tartaruga”,  paralizações  temporárias  da  produção  etc.), porém a principal ferramenta utilizada pelo movimento operário, e por diversas  outras  categorias  profissionais  que  compunham  a  classe trabalhadora,  e  que  gerava  uma  maior  consciência  política,  foi  a realização  de  greves.  Entre  os  anos  de  1964  e  1984  eclodiram  em diversas regiões do país greves e outras formas de resistência da classe trabalhadora.  

Mesmo  vivendo  sob  uma  ditadura  militar  que  impunha  uma repressão  violentíssima  a  toda  e  qualquer  tentativa  de mobilização  e organização  da  classe  trabalhadora,  ora  a  resistência  avançava  e 

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acumulava forças para pressionar o capital e seus representantes, ora a resistência entrava em refluxo38.  

O  que  é  importante  destacar  é  que  a  luta  de  classes  que acompanhou  toda  a  ditadura  militar  no  Brasil  foi  fundamental  não apenas para promover uma maior abertura política, mas, também, por dificultar a estratégia do capital  (nacional e  transnacional) em garantir uma  maior  extração  de  mais‐valor.  Aliado  a  isso  temos  em  nível internacional a crise do regime de acumulação  intensivo‐extensivo que irá  coagir  a  burguesia  dos  países  imperialistas  a  pressionar  os  países subordinados  com vistas  a promoverem melhores  condições para um novo ciclo de acumulação dos seus capitais.  

Consequentemente,  um  novo  regime  de  acumulação  se  torna necessário e a procura pelo mesmo voltou a ser o objetivo da burguesia internacional  que  reinicia  uma  nova  ofensiva  capitalista,  tanto internamente,  a  partir  da  década  de  1980,  quanto  fora  das  suas fronteiras. No caso do Brasil, esse novo regime de acumulação passa a ser engendrado ainda na década de 1980, porém de forma embrionária, representando  uma  fase  de  transição  para  o  regime  de  acumulação integral, que só se  tornaria uma  realidade na década de 1990, quando novas  formas  organizacionais das  relações de  trabalho,  inspiradas  no “modelo Toyota”,  começaram  a  ser  implementadas  aqui,  assim  como seu braço direito regularizador, a política neoliberal.  

Aproximadamente a partir de 1973, o “milagre brasileiro” começa a dar  sinais de  esgotamento do  seu  regime de  acumulação,  que dentre suas várias determinações, destaca‐se pela sua condição de dependência “à  lógica  do  capital  internacional,  de  acesso  aos  circuitos  do  capital financeiro  internacional”  (ALVES, 2005, p. 110), pois  tal  regime gerou seus  próprios  limites  de  crescimento  ao  desenvolver  de  forma desproporcional a produção de bens de consumo duráveis e a produção de  bens  de  produção,  uma  vez  que  nesse  período  há  um  enorme crescimento das  importações de bens de produção não  acompanhado pela  produção  interna  que  ocasionou  uma  crise  na  balança  de pagamentos.  Da  mesma  forma  e  na  mesma  proporção,  houve  um incremento  da  remessa  de  lucros,  dividendos,  direitos  de  assistência 

38Sobre o cotidiano das greves no período da ditadura militar (1964‐1984) Cf. (COSTA, 1997). 

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técnica,  juros de empréstimos que proporcionou uma crise na conta de serviços.  A  solução  para  esse  quadro  deficiente  era,  mais  uma  vez, recorrer  ao  capital  financeiro  internacional  com  o  intuito  de  suprir  o crescente déficit da balança comercial (ALVES, 2005). 

De  acordo  com Alves  (2005),  os  anos  80  foram marcados por um cenário  de  maior  deterioração  da  economia  brasileira,  caracterizado pela  instabilidade macroeconômica  –  hiperinflação,  recessão,  ciranda financeira.  A  reprodução  interna  de  capital  se  encontrava completamente comprometida uma vez que  somado à crise da dívida externa  existia  uma  crise  estrutural  do  balanço  de  pagamentos  e  o estrangulamento  das  contas  externas.  Diante  desse  conjunto  foi colocado à economia brasileira a necessidade imediata e desesperada de adquirir novos saldos na balança comercial com o objetivo de contrair meios de pagamentos  internacionais para cumprir o serviço da dívida externa.  É  essa  relação  de  dependência  ao  capital  financeiro internacional  e,  consequentemente,  o  proveito  que  esse  tira  de  tal dependência que irá caracterizar o Brasil, desde o início do seu processo de  industrialização, como um modelo de capitalismo subordinado aos ditames e interesses das potências imperialistas. 

É diante desse quadro de crise do regime de acumulação no Brasil, aliado aos interesses imperialistas em ampliar a produção e extração de mais‐valor  através de  suas  empresas  transnacionais, que  se  inicia um surto  de  “reestruturação  produtiva”  que  caracterizará  o  regime  de acumulação integral no país, pois 

 a deterioração das contas externas do país debilitou ainda mais as condições de reprodução  do  capitalismo  industrial  no  Brasil.  Sob  inspiração  do  Fundo Monetário Internacional (FMI), adotou‐se uma política recessiva, que contraiu, de modo  brutal,  o mercado  externo  (e  as  importações de  bens  e  serviços)  e incentivou  as  exportações  para  o mercado  internacional.  É  a  partir  daí  que surgiu  um  primeiro  “choque  de  competitividade”,  que  obrigou  as  grandes empresas, principalmente a  indústria automobilística, a adotarem, ainda que de modo  incipiente  (e  restrito),  novos  padrões  organizacionais‐tecnológicos (ALVES, 2005, p. 120). 

  A  retração  do  mercado  interno,  juntamente  com  o  incentivo  às 

exportações,  conduziram,  cada  vez  mais,  as  indústrias  de  ponta, principalmente  a  automobilística,  a  adotarem  novas  tecnologias microeletrônicas  na  produção,  assim  como,  novas  formas 

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organizacionais  de  relações  de  trabalho  e  valorização  do  capital inspirada  no  “modelo  toyota”.  Era  de  extrema  importância  para  a produção nacional, garantir maior competividade no mercado externo atingindo novos padrões de competitividade internacionais. 

A  necessidade  de  ampliar  as  exportações  devido  à  retração  do mercado interno, bem como as necessidades de incrementar o superávit da balança  comercial para pagamento das dívidas  externas, alteraram completamente  os patamares de  competitividade  industrial,  exigindo, dessa forma, novos padrões de qualidade. De acordo com Leite (2003), tais necessidades é que foram responsáveis 

 ao mesmo tempo pela busca de inovações tecnológicas que visavam aumentar a eficiência das empresas e pela substituição de políticas repressivas de gestão do  trabalho  por  formas  menos  conflituosas  que  permitissem  às  empresas contar  com  a  colaboração  dos  trabalhadores  na  busca  de  qualidade  e produtividade (LEITE, p. 69). 

 É nesse  contexto que diversas  empresas passam a adotar algumas 

técnicas  japonesas  de  produção,  como  os  Círculos  de  Controle  de Qualidade  (CCQ),  assim  como  novos  equipamentos  de  base microeletrônica, que dentre eles podemos mencionar: os Controladores Lógico Programáveis  (CLPs), robôs, Máquinas‐Ferramenta a Comando Numérico  (MFCNs),  acompanhados  de  inovações  nos  produtos  e processos (utilização de sistemas CAD/CAM,  just  in time, celularização da  produção,  tecnologia  de  grupo,  sistemas  de  qualidade  total  com utilização de CEP39.  

39 “Os sistemas CAD/CAM (Computer Aided Design/Computer Aided Manufacturing) permitem  a  elaboração de desenhos por  computador,  bem  como  o monitoramento computadorizado do processo de manufatura; O  just  in  time  é um  instrumento de controle da produção que busca atender à demanda da maneira mais rápida possível e  minimizar  os  vários  tipos  de  estoque  da  empresa  (intermediários,  finais  e  de matéria‐prima).  O  sistema  pode  abarcar  tanto  a  relação  da  empresa  com  seus fornecedores  e  consumidores  (Just  in  time  externo)  como  apenas  os  vários departamentos e setores que compõem uma mesma empresa (justi in time interno); As células de  fabricação  consistem  na  organização das máquinas  a partir do  fluxo da produção,  permitindo  uma  sensível  diminuição  do  lead  time  (tempo  total  de fabricação  de  uma  peça)  e  dos  estoques  intermediários  (tendo  em  vista  que  a integração entre as várias máquinas de cada célula elimina o tempo em que as peças 

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Conforme mencionam diversas pesquisas  sobre  o  assunto, não há homegeneidade na implementação desse processo em diversos setores e regiões  do  país,  no  entanto,  é  possível  levantarmos  alguns  traços comuns e determinadas tendências existentes nele. Leite (2003) destaca duas  características  importantes  presentes  a  partir  dessa  análise: Primeiramente,  ela  destaca  que  apesar  das  estratégias  utilizadas  por diversas empresas se diferenciarem, existe um elemento comum a todas elas, trata‐se do seu caráter limitado e reativo, ainda que alguns setores mais  competitivos,  tal  como  o  automobilístico,  venha  se  destacando com  uma  maior  sistematização  desse  processo.  Em  segundo,  vale destacar que, ao contrário dos estudos  iniciais sobre o assunto, quanto mais  esse  processo  se  consolida,  mais  nocivos  se  mostram  suas consequências sociais. Dentre elas destacaremos,  fundamentalmente, a intensificação  da  lumpemproletarização  via  crescimento  acelerado  do desemprego. 

Os  primeiros  sinais  de  aplicação  de  técnicas  japonesas  de valorização  do  capital,  maior  controle  e  disciplinamento  da  prática operária  são  vistos  entre  o  final  da  década  de  1970  e  início  de  1980, quando algumas empresas passam a adotar os Círculos de Controle de Qualidade  (CQCs)  sem,  necessariamente,  modificar  as  formas  de organização  do  trabalho  ou  investir mais  sistematicamente  em  novos equipamentos  microeletrônicos.  “O  caráter  parcial  e  reativo  dessa estratégia foi detectado por vários estudos” (LEITE, 2003, p. 71). 

Em  sua  obra  Trabalho  e  sociedade  em  transformação  –  mudanças produtivas  e  atores  sociais  (2003),  Márcia  Leite  comenta  alguns  dos principais  estudos  realizados  sobre  as  mudanças  nas  relações  de trabalho no Brasil desse período e comenta algumas de suas conclusões. Em 1983, Hirata já chamava a atenção para as adaptações da experiência japonesa  no  Brasil.  Ela  ressaltava  que  aqui  existia  uma  grande 

tem   normalmente que  aguardar nas prateleiras  antes de  serem usinadas por  cada máquina); a tecnologia de grupo consiste no agrupamento das peças a partir de sua similaridade geométrica e sequência de operações e na destinação do mesmo grupo de peças ás mesmas máquinas, permitindo uma significativa diminuição no tempo de preparação  das máquinas; O  Controle  Estatístico  de  Processo  (CEP)  caracteriza‐se pela  integração  do  controle  de  qualidade  à  produção,  por meio  da  utilização  de conceitos  básicos  de  estatística  na  inspeção  das  peças,  que  passa  a  ser  feita  pelos próprios operadores de máquina” (LEITE, 2003, p. 70). 

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resistência por parte da gerência  empresarial  em delegar decisões aos operários.  

 A  autora  sublinhava  que  a  maior  parte  dos  círculos  se  restringia  aos trabalhadores  mais  qualificados,  técnicos  e  supervisores,  e  enfatizava  a possibilidade  de  que  os  objetivos  primeiros  dos  CQCs  estivessem  sendo deformados nas empresas brasileiras (HIRATA apud LEITE, 2003, p. 71). 

 Salerno  (Apud  Leite,  2003)  destacava  a  pequena  abrangência  das 

questões  tratadas  pelos  círculos,  destacando  a  predominância  de assuntos  tratados  a  respeito  dos  custos  da  produção,  assim  como alertou  para  a  utilização  dos  círculos  como  forma  de  disciplinar  a iniciativa operária, destacando a resistência dos engenheiros em aceitar as  propostas  de  alteração  no  método  de  trabalho  proposto  pelos próprios trabalhadores. 

Vale  relembrar que  toda  alteração nas  formas organizacionais das relações de trabalho derivam da luta de classes, ou seja, estão inseridas na  clássica  disputa  entre  burguesia  e  proletariado  pelo  controle  do tempo de produção de mais‐valor. Dessa forma, a adoção de estratégias japonesas de formas organizacionais das relações de trabalho, tal como os CQCs, são, também, uma resposta à luta operária do final da década de 1970 e sua tentativa de, a partir das comissões de fábricas, definirem a  forma de organização da  força de  trabalho no  interior das  fábricas40. “Nesse  sentido,  os  CQCs  foram  introduzidos  em muitas  empresas  a partir da preocupação gerencial em desviar o  ímpeto participativo dos trabalhadores  para  formas  alternativas  de  organização  que  contasse com maior controle gerencial” (LEITE, 2003, p. 72). 

Outra forma organizacional que passa a ser difundida no Brasil é o just  in  time,  no  entanto  até  1985  tal  forma  organizacional  possui  um caráter  bastante  restrito,  e  isso  se  dava,  sobretudo,  em  razão  dos problemas  que  se  estabelecia  entre  as  empresas  consumidoras  e  os fornecedores.  Já  o  just  in  time  interno  se  propagou  rapidamente  em diversas empresas brasileiras que “passaram a integrar as várias etapas da  produção  a  partir  das  necessidades  colocadas  pelas  vendas, diminuindo  consideravelmente  os  estoques”  (LEITE,  2003,  p.  73). 

40  Sobre o desenvolvimento da luta operária no Brasil na década de 1978 e as comissões de fábricas Cf. MARONI, 1982; ANTUNES, 1988. 

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Inúmeros autores vão destacar a grande diferença existente na aplicação das  formas  organizacionais  de  inspiração  Toyota  no  Japão  e  em diversos  outros  países  e  a maneira  como  tais  formas  organizacionais eram aplicadas no Brasil. Salerno (1985) irá sublinhar que a aplicação do just  in  time  no  Brasil,  longe  de  promover  a  especialização  ampla  do trabalhador estaria promovendo uma padronização do trabalho: 

 O  operário  faz  durante  sua  jornada  uma  sequência  limitada  de  operações padronizadas e repetitivas; a polivalência significa a capacidade de alimentar mais de um  tipo de máquina, antes de  ser o operário especializado em  cada uma delas; o grupismo se refere a um grupo de máquinas e não a um grupo de trabalhadores (Apud LEITE, p. 74). 

 O  que  se  pode  perceber  é  que  no  Brasil  algumas  formas 

organizacionais do trabalho, inspiradas no toyotismo, se mesclavam ou, até mesmo,  eram  inibidas  por  tradicionais  formas  de  organização  de cariz  taylorista e  fordista, o que acabava por demonstrar as condições materiais  e  sua  singularidade  no  Brasil.  Tal  constatação  permite enfatizar nossa interpretação, segundo a qual, não há grandes rupturas e  diferenças  entre  taylorismo,  fordismo  e  toyotismo,  mas  sim aprofundamento e melhoramento que seguem os avanços tecnológicos ou não, quando  inexiste os mesmos,  e o  aprendizado de  experiências históricas com a gestão das relações de trabalho. 

 Carvalho e Schmitz (Apud LEITE, 2003), por exemplo, enfatizaram o aprofundamento  de  princípios  fordistas  no  processo  de modernização das  empresas  automobilísticas  brasileiras  que  optavam  por  uma automação  restrita  e  seletiva,  direcionada  para  a  integração  e sincronização das operações de manufatura. Seguindo essa estratégia ‘“as tarefas  tornaram‐se  mais  ritmadas  pela  máquina  do  que  antes”  e  o fordismo, em vez de ser superado, foi intensificado’. Já para Humphrey, os processos de modernização e reestruturação pelos quais passavam as empresas brasileiras poderiam ser denominados de uma espécie de “just in  time  taylorizado” no qual a gerência  tenderia a administrar a  fábrica como se fosse uma máquina, utilizando uma estratégia que “careceria de envolvimento e compromisso, dependendo mais da coerção e da pressão sobre os trabalhadores” (Apud LEITE, 2003, p. 76). 

A década de 1990 assiste uma maior sistematização do processo de “reestruturação produtiva” em diversas empresas brasileiras e tal fato se 

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deve, ao aprofundamento da crise econômica do  início dessa década, a retração  do  mercado  interno,  a  uma  maior  abertura  dos  mercados nacionais  e  à  necessidade  das  empresas  locais  fazerem  frente  à concorrência internacional (LEITE, 2003; OLIVEIRA, 2004). 

A principal consequência desse conjunto de mudanças implantadas nas principais empresas brasileiras, principalmente na automobilística, é  uma  ampla  precarização  do  trabalho  acompanhada  daquilo  que denominaremos de mais‐violência para o proletariado, pois aqui, assim como em todas as regiões do globo em que o toyotismo foi implantado, o  operário  se  vê  obrigado  a  trabalhar  de  forma  pluriespecializada, dedicando‐se  a  várias  funções  no  interior  da  fábrica,  manobrando, simultaneamente,  várias máquinas  em  ritmo  alucinante.  Funções  que antes  eram  executadas  por  mais  de  dois  ou  três  operários,  hoje  é exercida  intensamente  por  apenas  um  operário.  O  resultado  mais drástico dessa mais‐violência  no  trabalho  foi denominado  no  Japão de Karoshi, ou seja, morte por overdose de trabalho. Nesse país, fundador do modelo Toyota de organização do  trabalho, milhares de operários morrem  ao  ano vitimados pelo  excesso de  trabalho, por  jornadas que vão de  15  a  16  horas diárias,  pela  ausência de  férias,  pelas moradias minúsculas etc. Essa realidade nasce no Japão, se expande para outros países  imperialistas e chega ao Brasil, principalmente, nas montadoras de automóveis. De acordo com Antunes, 

 o  processo  de  produção  de  tipo  toyotista,  por  meio  dos  teamwork,  supõe, portanto  uma  intensificação  da  exploração  do  trabalho,  quer  pelo  fato  de  os operários  trabalharem  simultaneamente  com  várias  máquinas  diversificadas, quer pelo ritmo e a velocidade da cadeia produtiva dada pelos sistemas de luzes. Ou seja, presencia‐se uma  intensificação do ritmo produtivo dentro do mesmo tempo  de  trabalho  ou  até mesmo  quando  este  se  reduz. Na  fábrica  Toyota, quando  a  luz  está  verde,  o  funcionamento  é  normal;  com  a  indicação da  cor laranja, atinge‐se uma intensidade máxima, e quando a luz vermelha aparece, é porque  houve  problemas,  devendo‐se  diminuir  o  ritmo  produtivo.  A apropriação das atividades intelectuais do trabalho, que advém da introdução de maquinaria  automatizada  e  informatizada,  aliada  à  intensificação do  ritmo do processo  de  trabalho,  configura  um  quadro  extremamente  positivo  para  o capital,  na  retomada  do  ciclo  de  acumulação  e  na  recuperação  da  sua rentabilidade (2005, p. 56).  

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A  acumulação  integral  objetivada  pelo  modelo  toyotista  busca extrair mais‐valor de  forma  intensiva e extensiva e para  isso promove uma  intensificação  do  processo  de  trabalho  e  um  controle  rigoroso sobre  todo  o  tempo  de  trabalho,  gerando  mais‐violência  para  o trabalhador.  No  entanto,  resta  explicar  o  que  se  entende  por  mais‐violência  no  trabalho.  O  caráter  central  do  trabalho  na contemporaneidade é a superexploração marcada pela intensificação do trabalho,  pelo  assédio  moral,  pela  pressão  psicológica,  pelo desenvolvimento  da  síndrome  da  culpa,  síndrome  do  pânico,  pelo estresse,  depressão, medo  e  várias  outras  formas  de  (mais)  violência derivadas do  trabalho  (BERNARDO,  2009; DAL ROSSO,  2008). Nesse sentido,  o  que  denominamos  aqui  de mais‐violência  caracteriza‐se  por uma sobre‐violência intensificada no trabalho e que atinge o operário tanto física  quanto  psiquicamente,  podendo  levá‐lo  à  morte.  Segundo  o psiquiatra  e  psicanalista  especialista  em  medicina  do  trabalho Christophe Dejours, 

 ao lado do medo dos ritmos de trabalho, os trabalhadores falam sem disfarces dos riscos à sua  integridade  física que estão  implicados nas condições  físicas, químicas  e  biológicas  de  seu  trabalho.  Sabem  que  apresentam  um  nível  de morbidade  superior  ao  resto  da  população  [...]  A  grande  maioria  tem  a impressão  de  ser  consumida  interiormente,  desmanchada,  degradada, corroída,  usada  ou  intoxicada.  Este medo  patente  é  expresso  desta maneira direta pela maioria dos trabalhadores das indústrias (1992, p. 74). 

 De acordo com alguns dicionários, o medo pode ser entendido como 

uma perturbação resultante da ideia de um perigo real ou aparente e no caso  concreto  dos  operários  de  indústrias  que  funcionam  segundo  o modelo  japonês  (Toyota)  ele  apresenta‐se  como  uma  constante  no cotidiano  tanto  interno  quanto  externo  à  fábrica.  Os  trabalhadores, devido  ao  acúmulo  de  funções  e  ao  ritmo  exorbitante  da  produção, temem  errar  no  processo  de  trabalho  e  serem  constrangidos publicamente  pelos  seus  gerentes  (espécies  de  agentes  carcerários  na produção), temem adoecer e serem humilhados por executarem, mesmo doentes,  trabalhos mal‐vistos  tal  como  promover  a  coleta  do  lixo  da fábrica,  temem  as  ameaças  de  desemprego  e  o  próprio  desemprego, temem  falir  fisicamente  e  não  mais  conseguirem  executar  todo  o trabalho que sobre‐pesa seus músculos e cérebro.  

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Em  sua  obra  Trabalho  duro,  discurso  flexível  –  uma  análise  das contradições  do  toyotismo  a  partir  da  vivência  de  trabalhadores  (2009), Bernardo  fornece  vários  depoimentos  de  trabalhadores  de  duas montadoras  de  automóveis  no  Brasil41  que  funcionam  segundo  o modelo Toyota de produção e que nos permite constatar, de acordo com nossa  definição,  a  mais‐violência  a  que  estão  submetidos  os trabalhadores  dessas  montadoras  e  que  nos  possibilita,  também, generalizar  para  outras  indústrias  que  funcionam  sob  a  égide  do toyotismo:  

 Rogério  (trabalhador  da  Tamaru)  – Assédio moral  lá  (na  Tamaru)  acontece praticamente  com  100%  dos  funcionários,  porque,  quando  um  erra,  no  dia seguinte, na  reunião  [...]  [o  chefe] vai  chamar atenção de  todo mundo. Todo mundo se sente humilhado, entendeu? O cara vai trabalhar cedo. O cara já vai com pique de  trabalhar  e  ele  já  começa ouvir  essas  coisas  logo  cedo, o  cara desanima, entendeu? E você pode ver que quando acontece isso aí lá [...] aí que é o dia mais ruim para trabalhar. Faz serviço errado. Fica naquele medo “não posso errar, não posso errar, não posso errar” (2009, p. 140).   Fabiano (dirigente sindical na Assan) – Então, é um negócio [...] uma loucura [...] é um desespero. É nego correndo pra tomar água. O outro deu problema na peça lá, tem que correr pra trocar o bico da pontiadera. Corre lá porque não pode perder  tempo!  [...]  é um  ritmo  totalmente  [...] desesperador. Tanto que [...]  na  hora  de  almoçar,  eles  querem  que  o  pessoal  vá  andando,  não  pode correr,  mas  os  caras  falam:  “trabalhei  correndo  o  dia  inteiro  porque  para almoçar tenho que ir andando?!”. É uma loucura (2009, p. 144).  Silvio (trabalhador da Assan) – [...] é desumano o que você faz. Na sexta‐feira, nós fizemos 122 carros. Era para ser 120 e foi 122. Passou do horário e você é obrigado a ficar depois do horário e foi 122 carros sem hora extra. Com mais meia  hora,  a  gente  fez  129  carros!  E  você,  naquela  pressão!  Putz  é  muita correria! E os caras passam do horário ainda,  sabe? Horário de  refeição, eles não respeitam, eles passam do horário. Horário de café [...] (2009, p. 147).  Vitor (trabalhador da Assan) – O problema (da pressão) não é só [...] só o seu corpo [...] é sua mente também: A hora que você vai ver, você tá ficando meio lélé!  [...] Se você  for  levar  tudo ao pé da  letra,  tudo  certinho assim, que eles 

41   Com o  intuito de  impossibilitar a  identificação dos  trabalhadores que contribuíram com  a pesquisa  que possibilitou  a produção de  sua  obra  – Trabalho  e  população  em situação  de  rua  (2009)  –  Bernardo  optou  por  utilizar  nomes  fictícios  tanto  para  os trabalhadores entrevistados quanto para as montadoras de automóveis nas quais os mesmos trabalhavam: Tamaru e Assan. 

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falam tem que ser assim e assim, se você seguir a pressão bate mesmo [...] você fica lélé (2009, p. 151).  Cristiano (trabalhador da Tamaru) – Tem um fato também que é do estresse. Eu chegava a sonhar a noite que estava montando carro. Sonhava! Tinha vez que eu ia dormir, sonhava que tava montando carro. Quando eu acordava pra ir trabalhar, parecia que eu não tinha dormido nada, entendeu? Parecia que eu tinha  trabalhado.  Saía  cansado  já!  Psicologicamente  eu  saía  cansado  pra trabalhar. [...] a gente fica muito estressado! Vai estressando, vai estressando e aí dá os problemas (2009, p. 152). 

 Aliado a esse conjunto de  transformações nas  relações de  trabalho 

no Brasil, a partir do final da década de 1970 e início da década de 1980, fase  de  transição  para  o  regime  de  acumulação  integral,  que  se consolida  na  década  de  1990,  existem  outras  determinações  que  nos auxiliarão  na  compreensão  do  processo  de  intensificação  da lumpemproletarização que atinge o país desde esse período até os dias atuais.  Dentre  essas  determinações,  destacaremos  a  condição  de capitalismo  subordinado  brasileiro  que,  sobre  os  ditames  do neoimperialismo, aliado ao neoliberalismo promoverá, para milhares de trabalhadores, uma  intensa marginalização no mercado de  trabalho. É sobre isso que discorreremos no próximo item.  4.2. Neoimperalismo e capitalismo subordinado

 Nesse  item  discutiremos  a  terceira  e  última  parte  constituinte  do 

regime de acumulação integral, isto é, o neoimperialismo, sua relação com o  Brasil  que  compõe  o  bloco  subordinado,  o  Estado  neoliberal subordinado e uma de suas principais consequências sociais para esse país, a intensificação da lumpemproletarização.  

O  capitalismo  só  existe  em  expansão,  pois  vimos  que  a sobrevivência  dos  capitalistas  individuais  depende  da  capacidade desses  de  concorrer  no  mercado  e  essa  depende  da  habilidade  de desenvolver as forças produtivas, de combater a  tendência à queda da taxa de lucro, da concentração e centralização de capitais que possibilita a  formação  dos  verdadeiros  oligopólios,  que  passam  a  dominar  os mercados  mundiais.  Aqui  reside  a  “marcha  global  do  capitalismo” (VIANA,  2009).  Contudo,  como  já  foi  mencionado,  esse  processo  é marcado  pela  luta  de  classes  em  sua  totalidade  e  pela  tendência 

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declinante da  taxa de  lucro, que historicamente  tem obrigado a  classe capitalista  a  encontrar  novas  estratégias  de  combater  esses  dois impasses  para  o  desenvolvimento  dessa  marcha.  Isso  tem  gerado  o desenvolvimento  e  sucessão dos  regimes de  acumulação que há  cada novo regime encontra dificuldades cada vez maiores para reproduzir o capitalismo.  É  nesse  sentido,  que  Viana  afirma  que  o  regime  de acumulação  integral  necessita,  como  seu  próprio  nome  diz,  da ampliação da exploração em escala cada vez mais intensa. 

O  regime  de  acumulação  intensivo‐extensivo  que  antecedeu  ao regime  de  acumulação  integral  garantia  uma  relativa  estabilidade  no bloco  dos  países  imperialistas  graças  à  superexploração  existente  no bloco dos países subordinados, através de uma acumulação extensiva, transferência de mais‐valor para os países imperialistas, endividamento externo,  da  “troca  desigual”  etc.  Porém,  a  situação  já  não  é mais  a mesma, visto que para garantir a reprodução do capitalismo no regime de acumulação integral, que entra em vigor a partir da década de 1980, não basta aumentar a já intensa exploração no capitalismo subordinado, até mesmo porque  as  resistências provavelmente  atingiriam níveis de radicalidade  não  desejado  pelas  classes  capitalistas.  Portanto,  para  se manter, o novo regime de acumulação necessita aumentar a exploração no  bloco  subordinado,  que  a  partir  da  queda  do  capitalismo  estatal russo se amplia com os países do leste europeu, mas também no bloco imperialista  como  demonstramos  anteriormente  no  caso  norte‐americano. 

É  neste  contexto,  que  emerge  o  neoimperialismo,  ou  seja,  o imperialismo do regime de acumulação  integral que  tem como  função promover de  forma generalizada a acumulação  integral de  capital em todo  o mundo.  Dessa  forma,  o  neoimperialismo  busca  reproduzir  o processo  de  exploração  integral  através  das  relações  internacionais, visando  aumentar  a  exploração  que,  consequentemente,  representa maior quantidade de mais‐valor produzido e maiores transferências de valor dos países subordinados para os países imperialistas. 

Deste modo, há uma  tendência  em  aumentar a  já  elevada  taxa de exploração nos países subordinados. Nesse sentido, a política neoliberal cumpre seu papel ao promover uma corrosão dos direitos trabalhistas e estabelecimento de estratégias para promover o aumento da extração de mais‐valor relativo (maior controle do trabalho, novas tecnologias etc.), 

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uma  vez  que  a  extração  de  mais‐valor  absoluto  já  existe  e  tende  a ampliar. Por conseguinte, 

 o neoimperialismo produz um Estado neoliberal  subordinado, que executa o papel  de  aumentar  a  exploração  interna  e,  ao  mesmo  tempo,  permitir  o aumento da exploração externa. A proeminência de organismos internacionais na  elaboração das políticas nacionais dos  estados  subordinados  (FMI, Banco Mundial  etc.)  apenas  revela  esta  subordinação  e  alguns  dos  mecanismos utilizados pelo bloco imperialista (e pelo capital oligopolista transnacional por detrás dele). O bloco subordinado realiza uma política neoliberal que revela a debilidade do  capital  nacional  e,  por  conseguinte, das  burguesias  nacionais, subordinadas ao mesmo tempo associadas ao capital oligopolista transnacional (a  reprodução  subordinada  dos  capitalismos  nacionais  permite  sua reprodução. O fato de o nível da exploração dos trabalhadores locais ser maior não lhes interessa) (VIANA, 2009, p. 105).  

Uma das principais características do capitalismo subordinado é ter seu  capital  nacional  e  o  Estado  submetido  ao  domínio  do  capital transnacional,  já  nos  Estados  imperialistas  o  capital  nacional  exerce proeminência  sobre  o  capital  transnacional.  No  capitalismo subordinado  seus  capitais  são  limitados, exercendo de  forma bastante tímida qualquer domínio fora de suas fronteiras nacionais. Já nos países de  capitalismo  imperialista  o  capital  nacional  é  transnacional  e sobrepuja o mundo inteiro (VIANA, 2009). 

É importante destacar que os organismos internacionais compõem o processo  de  regularização  da  exploração  internacional  e  que  com  a mudança para o regime de acumulação integral suas estratégias sofrem alterações.  O  Banco Mundial  nos  fornece  um  exemplo  claro  de  tais alterações,  pois  enquanto  no  regime  de  acumulação  anterior  ele cumpria  o  papel  de  providenciar  investimentos,  no  regime  de acumulação  integral  ele  passa  a  exercer  o  papel  de  “‘guardião  dos interesses  dos  grandes  credores  internacionais,  responsável  por assegurar  o  pagamento  da  dívida  externa  e  por  empreender  a reestruturação e abertura’ do capitalismo subordinado” (SOARES apud VIANA, 2009, p. 111). No  fundo, o que as organizações  internacionais têm  promovido  é  a  coação  dos  países  subordinados  no  sentido  dos mesmos  aprofundarem  seu  neoliberalismo,  sua  reestruturação produtiva e suas políticas internacionais em direção à construção de um “livre comércio”, para o capital transnacional, é claro. Assim sendo,  

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 o neoimperialismo é, tal como o regime de acumulação que lhe gerou, integral, buscando aumentar a transferência de mais‐valor do capitalismo subordinado através de várias  formas, além das  tradicionais. E desloca  investimentos para locais onde a força de trabalho é mais barata e busca criar nichos exclusivos de mercado consumidor (veja, no caso dos EUA, a NAFTA, o projeto ALCA etc.), o  que  faz  acirrar  a  competição  interimperialista.  Também  há  o aprofundamento  da  estratégia  de  emperrar  o  desenvolvimento  das  forças produtivas,  desviando  os  investimentos  para  bens  de  consumo,  indústria bélica etc. Assim, a dinâmica do neoimperialismo é marcada por uma busca desenfreada  de  aumentar  a  exploração  imperialista,  buscando  combater  a tendência declinante da taxa de lucro (VIANA, 2009, p. 111).  

O  capitalismo  brasileiro,  desde  o  início  do  seu  processo  de industrialização,  sempre  esteve  subordinado  e  dependente  dos investimentos  estrangeiros,  no  entanto,  ao  que  tudo  indica,  sob  a vigência  do  regime  de  acumulação  integral  tal  subordinação  tem  se tornado,  como  afirma  Biondi  (2000),  “um  negócio  escandalosamente escandaloso”  (p.  33).  Tal  constatação  se  observa,  principalmente,  nas posturas que os principais agentes governamentais, pós‐década de 1990, tem  adotado  diante  dos  interesses  neoimperialistas  de  grandes corporações  oligopólicas  transnacionais  (empresas,  instituições financeiras,  bancos  etc.)  que  vem  sendo  marcada  por  uma  entrega irrestrita  do  patrimônio  estatal  via  processo  de  privatização,  por  um crescimento alucinante da dívida pública, tanto interna quanto externa, e por uma descontrolada política de remessa de lucros,  jamais vista na história do país, praticada pelas grandes empresas  transnacionais aqui instaladas.  

Além  dessas  questões,  tal  processo  de  desmonte  do  Estado  vem acompanhado  por  uma  intensa  precarização  dos  serviços  públicos fornecidos pelas empresas privatizadas e por uma escalada vertiginosa dos preços cobrados pelos serviços oferecidos. Grosso modo, toda essa complexa questão que envolve uma maior abertura  comercial para os capitais  transnacionais,  aliada  a uma política de venda das principais empresas  públicas  a  “preço  de  banana”  e  a  utilização  de  dinheiro público  para  o  financiamento  de  iniciativas  realizadas  pelo  capital transnacional etc. é o que nos possibilita caracterizar o Estado brasileiro, da década de 1990 até os dias atuais, como um típico Estado neoliberal subordinado. 

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Apesar de o Brasil  se apresentar  como o país que mais  resistência ofereceu  às  políticas  de  desregulamentação  financeira  e  abertura comercial na década de 1980, na década seguinte  toda essa  resistência ofertada  fora  recompensada  com  grande  intensidade  e  num  período muito  curto  pela  adoção  irrestrita  de  um  modelo  neoliberal absolutamente  subordinado  aos  interesses  neoimperialistas  expresso pelo “Consenso de Washington”: 

 Em  1990,  o  economista  John  Williamson  sistematizou  uma  série  de “recomendações”  feitas  aos  países  periféricos  pelas  instituições  financeiras internacionais (sobretudo o FMI e o Banco Mundial) a partir da crise da dívida externa.  Essas  “recomendações”  estavam  centradas  em  dois  eixos:  na estabilização  macroeconômica,  mediante  a  adoção  de  políticas  monetárias restritivas, e no incentivo à iniciativa privada, mediante a adoção de reformas estruturais,  “orientadas  para  o  mercado”.  A  denominação  “Consenso”  se explica:  esse  conjunto  de medidas  adquiriu  status  de  pensamento  único,  ao qual não haveria alternativa (GALVÃO, 2007, p. 39). 

 Nos  anos  oitenta,  o  esgotamento  do  regime  de  acumulação 

brasileiro  se expressou,  também, na  crise  financeira do Estado devido ao  processo  crescente  de  endividamento  externo  e  interno.  Esse processo  resultou  na perda do  controle da moeda  e das  finanças por parte do Estado, assim  como da  sua  capacidade  estruturacional, visto que o mesmo  sofreu não apenas  com uma  forte  redução dos gastos e investimentos públicos, mas  também pela ausência quase completa de políticas  de  desenvolvimento.  Nesse  contexto,  portanto,  o  Brasil  se encontrava  extremamente  fragilizado  econômica  e  politicamente  a ponto de não contar com os recursos necessários para  implementar os ajustes neoliberais que se impunham naquele período (SOARES, 2009). Segundo Fiori (Apud SOARES, 2009), o país enfrenta 

 um  processo  circular  e  crônico  de  instabilização  macroeconômica  e  política: instabilidade da moeda; instabilidade do crescimento; instabilidade na condução das  políticas  públicas  etc.  A  política  econômica  terminou  por  submeter‐se  à própria volatilidade do processo  econômico  e político, ambos movendo‐se  em direção opostas. Foram contabilizados nesse período oito planos de estabilização monetária, quatro diferentes moedas (uma a cada trinta meses), onze índices de cálculo inflacionário, cinco congelamentos de preços e salários, catorze políticas salariais,  dezoito  modificações  nas  regras  de  câmbio,  cinquenta  e  quatro alterações nas regras de controle de preços, vinte e uma propostas de negociação da dívida externa e dezenove decretos sobre a autoridade fiscal (p. 36). 

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 Após anos de ditadura militar, a transição política para um governo 

“democrático” no Brasil foi realizada sob o controle direto dos credores e das instituições financeiras sediadas em Washington. Aproveitando‐se do escândalo que envolvia diretamente o presidente Fernando Collor de Melo  a um processo milionário de  extorsão de dinheiro público  e da ampla  campanha midiática em  torno do  seu pedido de  impeachment, em 1992  foi negociada uma  transação multibilionária entre o ministro da  economia  de  Collor,  Marcílio  Marques  Moreira,  e  os  credores internacionais  do  Brasil.  A  partir  daí  o  capitalismo  brasileiro intensificaria  sua  condição  de  subordinado  aos  interesses neoimperialistas, pois a “agenda oculta” do FMI 

 consistia  em  apoiar  os  credores  e,  ao mesmo  tempo,  enfraquecer  o  governo central.  Já  haviam  sido pagos US$  90  bilhões  referentes  aos  juros da dívida durante os anos 80, um valor bastante próximo ao do  total do principal  (US$ 120 bilhões). Cobrar a dívida, todavia, não era o principal objetivo. Os credores internacionais  do  Brasil  queriam  se  assegurar  de  que  o  país  permaneceria endividado por muito tempo e de que a economia nacional e o Estado seriam reestruturados em benefício deles  (credores) por meio da  contínua pilhagem dos  recursos  naturais  e do meio  ambiente, da  consolidação da  economia de exportação baseada na mão‐de‐obra barata e da aquisição de empresas estatais mais lucrativas pelo capital estrangeiro (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 171).  

Iniciado em 1990, o plano Collor previa a promoção de uma política monetária  intervencionista, uma ampla privatização de acordo com os planos do FMI, demissão de milhares de funcionários públicos, além de diversos outros cortes nos gastos públicos e salários. Tudo isso visando a  liberação  de  dinheiro  destinado  ao  pagamento  da  dívida  interna  e externa.  No  entanto,  mesmo  seguindo  todas  as  determinações  de Washington  o  governo  brasileiro  continuava na  lista negra do  Fundo Monetário  Internacional.  A  nova  política  adotada  pelos  organismos internacionais no regime de acumulação integral era marcada por uma maior  rigidez  visando  a  garantia  do  cumprimento  dos  acordos realizado  com  os  credores  e  “qualquer  falha  no  cumprimento  das exigências  dos  credores  podia  se  tornar  facilmente  um  pretexto  para represálias  ulteriores  e  a  inclusão  do  país  na  lista  negra” (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 173).  

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De acordo  com Galvão  (2007), durante o governo Collor a  tese da crise  fiscal do Estado  foi amplamente utilizada como  justificativa para atacar  o  funcionalismo  público  e  privatizar  as  principais  empresas estatais  (lucrativas,  claramente),  responsáveis  diretos,  segundo  essa tese,  pela  crise  fiscal.  O  governo  Collor,  poderíamos  dizer,  deu  o pontapé inicial para que as reformas neoliberais ganhassem volume nos próximos governos de FHC. Nesse sentido, 

 embora  tenha  promovido  a  abertura  do  mercado  interno,  dado  início  ao processo  de  privatização,  realizando  uma  reforma  ministerial  e  colocado servidores  públicos  em  disponibilidade,  Collor  não  avançou  nas  reformas tributária, administrativa, previdenciária e trabalhista, frustrando a expectativa das classes dominantes em relação à adoção das reformas “orientadas para o mercado”. Assim,  se Collor  inaugurou  a década de  governos  neoliberais  no Brasil,  foi  no  governo  FHC  que  o  neoliberalismo  se  consolidou,  pois  a estabilidade monetária lhe proporcionou as condições necessárias para aprovar várias das reformas almejadas (GALVÃO, 2007, p. 65). 

 O projeto neoliberal brasileiro, colocado em prática após a eleição de 

Fernando  Henrique  Cardoso  para  presidente,  tem  como  receituário fundamental  o  combate  à  inflação,  através do  plano de  estabilização, considerado  pré‐requisito  para  o  retorno  da  acumulação  de  capital, principalmente  dos  capitais  transnacionais,  vale  ressaltar.  A desregulamentação  da  economia  torna‐se  palavra  de  ordem,  pois  a defesa da abolição da regulação do Estado sobre a economia e sobre a relação capital‐trabalho passa a ser defendida como a  responsável por todo tipo de distorções e, portanto, deve ser substituída pelo “livre jogo do mercado”, garantindo, dessa  forma, uma distribuição de recursos e investimentos mais racionais. 

Portanto, a retirada do Estado como agente econômico e empresarial assume papel  importantíssimo no engendramento dessa nova ofensiva do capital a partir de um “Estado mínimo”, ou seja, de um estado que minimamente  cumpra  algumas  funções  sociais  básicas,  tais  como garantia apenas de educação pública básica,  saúde pública –  se é que hoje  podemos  falar  da  existência  de  tal  “garantia”  ‐,  construção  e manutenção de infraestrutura para a reprodução do capital etc. A ideia central  dessa  ideologia  neoliberal,  para  não  dizer  dessa  mentira descarada,  é que  com  a privatização  e a  redução do Estado de  forma geral,  estaria  garantida  a  redução  dos  gastos  públicos  e, 

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consequentemente,  do  déficit  público,  principal  responsável  pela elevação da inflação no país (SOARES, 2009).  

A maneira  pela  qual  se  conduziu  o  processo  de  privatização  de empresas públicas nesse período nos  fornece a principal  característica do  capitalismo  subordinado,  qual  seja  a  de  proporcionar  excelentes condições para uma maior produção e extração de mais‐valor para os grandes  complexos  empresarias  transnacionais,  em  detrimento  dos interesses e das necessidades populares.  

A obra O Brasil privatizado – um balanço do desmonte do Estado (2000), de  Aloysio  Biondi,  consiste  numa  excelente  denúncia  da  gigantesca entrega  de  “mãos  beijadas”  de  todo  o  patrimônio  público,  isto  é, patrimônio construído com o mais‐valor extraído dos trabalhadores via pagamento  de  impostos  e  tributos,  para  milhares  de  empresas transnacionais  que  passaram  a  acumular  cifras  bilionárias  de  capital.  Antes  mesmo  de  realizar  a  venda  de  diversas  empresas  estatais (telefonia, energia, bancos, redes ferroviárias, estradas, siderúrgicas etc.) o  governo  de  FHC  investiu  bilhões  na  reestruturação  das  mesmas, promoveu  o  aumento  exorbitante  das  tarifas  cobradas  ao  público, assumiu  o  ônus  de  milhares  de  indenizações  e  aposentadorias,  ao realizar  demissão  em  massa  de  trabalhadores,  tornando  ainda  mais atrativa  a  “venda”  dessas  ao  capital  transnacional.  Somado  a  isso,  o governo  ainda  concedeu  milhares  de  empréstimos  com  juros privilegiados  às  empresas  privatizadas  e,  ainda,  entregou  várias empresas  com  altas  cifras  em  dinheiro  no  caixa.  Para  exemplificar podemos  utilizar  o  caso  da Vale  do Rio Doce  que  ao  ser  entregue  a Benjamim Steinbruch, contava com aproximadamente 700 milhões em caixa. O mesmo ocorreu na venda da Telesp à transnacional espanhola Telefônica (BIONDI, 2000). 

Ao  contrário  do  que  afirmava  o  governo  ao  justificar  tamanho desmonte do Estado, a privatização não foi capaz de atrair dólares para os  cofres  públicos  e  nem  tampouco  serviu  para  diminuir  a  dívida interna e externa do país, uma vez que 

 as  vendas  foram  um  “negócio da China”  e  o  governo  “engoliu” dívidas de todos os tipos das estatais vendidas; isto é, a privatização acabou por aumentar a dívida interna. Ao mesmo tempo, as empresas multinacionais ou brasileiras que  “compraram”  as  estatais  não  usaram  capital  próprio,  dinheiro  delas mesmas, mas,  em  vez  disso,  tomaram  empréstimos  lá  fora  para  fechar  os 

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negócios. Assim,  aumentaram  a  dívida  externa  do  Brasil.  É  o  que  se  pode demonstrar, na ponta do  lápis, neste “balanço” das privatizações brasileiras, aceleradas a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (BIONDI, 2000, p. 06). 

 Outra  realidade  que  demonstra  muito  bem  o  quanto  o  capital 

brasileiro  é  submetido  ao  capital  transnacional  é  o  fato  de  que  não houve,  além  de  meros  acenos,  nenhuma  imposição  do  governo  às transnacionais no  sentido de  coagi‐las a usarem peças  e  componentes nacionais  na  fabricação  de  seus  produtos.  É  verdade  que  o  governo chegou a ensaiar a possibilidade de obrigar tais empresas a usarem pelo menos  35% de  peças  e  componentes  nacionais,  no  entanto,  à medida que  os  leilões  se  aproximavam  o  recuo  do  governo  se  ampliava  e diminuía  a  porcentagem  até  o  ponto  de  anular  tais  obrigações.  Tal realidade gerava um  rombo  enorme visto que promovia uma  enorme transferência de capitais para os países neoimperialistas via ampliação bilionária  das  importações  e  grandes  quantidades  de  falências  de empresas nacionais acompanhadas da elevação do desemprego.  

Na  prática  o  processo  de  privatização  não  promoveu  o  que  o governo havia prometido, ou seja, não atraiu dólares para o país, pois o que de  fato ocorreu e vem ocorrendo é um rombo colossal da balança comercial e um incremento das remessas para o exterior. A maioria dos novos  donos  das  ex‐empresas  estatais  não  as  compraram  e  nem realizaram  os  investimentos  previstos  com  dinheiro  próprio.  Na verdade, o que ocorreu foi que nos leilões das estatais as compras eram realizadas com empréstimos realizados no exterior e tais empréstimos, acreditem  se  quiser,  eram  transferidos para  a dívida  externa do país, encorpando  os  juros  que  o  Brasil  deveria  pagar  aos  bancos internacionais. Tal prática ao contrário do que afirma Biondi (2000) não representa  uma  “contradição  total  por  parte  do  governo”, mas  sim, demonstra o grau de subordinação aos ditames neoimperialistas. 

Como  era  de  se  esperar,  o  regime  de  acumulação  integral subordinado  trouxe  consequências  sociais  desastrosas  para  o  Brasil, bem  como  para  diversas  outras  nações  que  compõe  o  bloco subordinado na divisão internacional do trabalho. Mas o que se percebe até  aqui  é  que  nas  regiões  que  compõem  o  bloco  subordinado  as desigualdades  sociais  e  a marginalização  de  parcela  significativa  dos 

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trabalhadores  da  divisão  social  do  trabalho  tende  a  intensificar.  Isso decorre do fato de que historicamente tais sociedades acumularam por séculos um quadro sombrio de pobreza e desigualdade social oriundas dos  modos  de  produção  instalados  aqui  e  de  sua  correspondente contraface,  isto  é,  do  bloco  constituído  pelos  países  imperialistas  que assim  se  tornaram devido à exploração nas quais  submeteu boa parte da população mundial.  

Em outras palavras, o regime de acumulação integral gera níveis de empobrecimento  diferenciados  entre  o  bloco  imperialista  e  o  bloco subordinado,  visto  que  a  condição  de  país  imperialista  sempre possibilitou  uma  maior  inserção  dos  trabalhadores  no  mercado  de trabalho,  melhores  acessos  a  bens  e  políticas  sociais  etc.  devido  à extração de mais‐valor dos países subordinados e da remessa de lucros para os países  imperialistas.   Portanto,  sendo a  existência de um pré‐condição  para  a  existência  do  outro,  não  seria  possível  que  o  bloco subordinado  constituísse  as  mesmas  condições  sociais  em  seus territórios,  ou  seja,  só  existem  países  imperialistas  porque  existem países  subordinados  e  vice‐versa.  No  entanto,  tal  constatação  não significa  como  já  foi  demonstrado  anteriormente,  que  nos  países imperialistas  a  classe  trabalhadora  esteja  isenta  do  empobrecimento crescente,  mas  tão  somente  que  nos  países  subordinados  tal empobrecimento  ‐  via  lumpemproletarização  ‐    tende  a  ocorrer  de forma intensificada. É justamente com essa discussão que pretendemos finalizar nosso trabalho.  4.3 Desemprego e intensificação da lumpemproletarização

 Assim  como  em  todos  os  regimes  de  acumulação  que  o 

antecederam,  a  porta  de  entrada  para  o  processo  de lumpemproletarização  no  regime  de  acumulação  integral  é  o desemprego.  Porém,  além  dessa  constatação  comum  aos  regimes  de acumulação  capitalista,  no  caso  específico  do  brasileiro  esse  ainda possui outra  característica  comum ao primeiro  regime de acumulação (extensivo): o crescimento generalizado do desemprego. Por essa razão partiremos da análise do fenômeno do desemprego para compreender, de forma geral, o processo de  lumpemproletarização e, posteriormente a intensificação substancial do crescimento de uma de suas frações mais 

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degradas:  os  sem‐tetos  ou,  como  preferem  denominar  alguns estudiosos, a população em situação de rua (SILVA, 2009; VIEIRA et al, 2004). 

Uma das teses centrais desse trabalho e que merece ser mencionada aqui, consiste no seguinte: Tanto no capitalismo imperialista quanto no capitalismo  subordinado  –  especificamente  o  caso  brasileiro  –  ocorre uma  expansão  da  lumpemproletarização,  porém,  no  capitalismo subordinado, tal expansão ocorre em maior intensidade tanto numérica quanto em relação ao nível de degradação das condições de existência dessa classe social. Ao longo dessa discussão, pretendemos demonstrar essa  singularidade  do  processo  de  lumpemproletarização  no capitalismo subordinado. 

Acompanhando as análises de Pochmann (2005), toda nação possui um  contingente  de  pessoas  em  condições  de  participar  da  produção social,  tal  contingente  forma  aquilo  que  ficou  conhecido  como População Economicamente Ativa (PEA). No entanto, é válido lembrar que a PEA representa apenas expressão da potencialidade da produção social, pois  somente parcela dela acaba por  ser envolvida diretamente pela produção capitalista. 

 Na  linguagem marxista,  tal  realidade  seria mais  bem  expressa  a partir  dos  conceitos  proletarização  e  lumpemproletarização,  pois  não somente  a  existência  de  uma  classe  produtora  de  mais‐valor  é imprescindível ao capitalismo, mas também o lumpemproletariado que exerce  a  função  fundamental  de  proporcionar  quantidades  cada  vez maiores  de  extração  de  mais‐valor,  visto  que  o  seu  crescimento possibilita  incrementar  a  pressão  dos  salários  para  baixo  e  a fragmentação da classe  trabalhadora, que vive uma disputa altamente competitiva  no mercado  de  trabalho,  além  de  ser  força  de  trabalho reserva  potencial,  na  qual  o  capital  pode  lançar  mão  dela  quando necessitar.  É  nesse  sentido,  portanto,  que  o  lumpemproletariado cumpre seu papel na dinâmica da acumulação capitalista de cada país. A  parte  mais  nítida  do  lumpemproletariado  é  identificada  pelo desemprego  aberto,  enquanto  a  parte menos  nítida  é  expressa  pelas diversas  formas  de  subemprego,  trabalho  extremamente  precário  e outros meios garantidores da sobrevivência. Para Pochmann, 

 

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[...]  o desemprego  aberto,  que  corresponde  aos  trabalhadores  que procuram ativamente  por  uma  ocupação,  estando  em  condições  de  exercê‐la imediatamente e sem desenvolver qualquer atividade laboral, indica o grau de concorrência no interior do mercado de trabalho em torno do acesso às vagas existentes. O  subemprego  e  outras  formas de  sobrevivência  respondem pela parte  menos  visível  do  excedente  de  mão‐de‐obra  porque  envolvem  os trabalhadores  que  fazem  “bicos”  para  sobreviver  e  também  procuram  por trabalho, assim como aqueles que deixam de buscar uma colocação por  força de um mercado de  trabalho  extremamente desfavorável  (desemprego oculto pelo trabalho precário e pelo desalento) (2005, p. 78‐79). 

 Não há homogeneidade nas  formas utilizadas por diversos países 

para medir o excedente de mão‐de‐obra existente em cada nação. Pelo contrário, o que há é uma diversidade enorme de  formas,  conceitos e procedimentos utilizados para  tal  fim. Na verdade, concorrem entre si as diversas maneiras  (locais, nacionais e  internacionais) de  se medir o excedente de mão‐de‐obra, que vão desde os registros de trabalhadores cadastrados  em  agências  de  emprego,  beneficiários  de  seguro desemprego,  cadastros  patronais  e  sindicais  e  diversos  outros levantamentos  promovidos  por  agências  particulares  de  investigação (GUIMARÃES,  2002;  POCHMANN,  2005).  Contudo,  em  um  aspecto essas  diversas  formas  de  contabilizar  o  excedente  de  mão‐de‐obra possuem  concordância:  nas  últimas  décadas  tal  excedente  (composto pelo  lumpemproletariado  ‐LB)tem  se  ampliado,  mesmo  que  em proporções  e  intensidades  diferenciadas,  dependendo  da  região,  em escala global (DEDECCA, 1999; SILVA, 2009a).  

De acordo com Pochmann (2005), é possível  identificar pelo menos três tipos de desemprego no mundo: O primeiro encontra‐se nas nações com forte concentração nos setores agropecuários em que boa parte da população  é  absorvida  em  atividades  realizadas no  campo  (produção alimentícia para  auto‐suficiência  e para  a  exportação). Nesse  setor há uma tendência do desemprego aberto ser menor.  

O  segundo  tipo  de  desemprego  concentra‐se  nas  nações industrializadas,  com  a  maior  parte  da  população  envolvida  em atividades essencialmente urbanas.  

O  terceiro  e  último  tipo  de  desemprego  encontra‐se  associado  às nações que após um forte processo de industrialização, concentram suas atividades em setores mais modernos da economia. Em  tais países, há maiores  possibilidades  de  contenção, mesmo  que  de  forma  bastante 

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tímida,  do  desemprego  através  das  práticas  neoimperialistas  que amplia  a  extração  de  mais‐valor  fora  de  suas  fronteiras  nacionais  e possibilita  a  implementação  de  políticas  públicas  que  garantem  a manutenção  de  parcela  da  população  na  inatividade  sem  que  essa constitua  nichos  de  pobreza,  através  da  diminuição  da  jornada  de trabalho, ou, ainda, para o  redirecionamento de parcela da população desempregada para outros setores da economia,  tais como serviços de saúde,  educação,  entretenimento  etc.  Porém, mesmo  nesses  países  o crescimento  do  desemprego  tem  se  elevado.  Aproximadamente  34 milhões  de  pessoas  se  encontram  desempregadas  nos  países  que compõe  a  OCDE  e  para  o  século  XXI  não  são  esperadas  taxas  de desemprego abaixo dos 10% da PEA (OCDE apud POCHMANN, 1999). 

A década de 1990 no Brasil consolida uma ruptura, que veio sendo construída desde a década anterior, com o modelo de estruturação do mercado de trabalho dominante entre as décadas de 1930 e 1970, pois o mercado  de  trabalho  passou  a  se  caracterizar  por  uma  tendência  a redução dos empregos com registro e da expansão do desemprego e da informalidade.  Em  outras  palavras,  a  precarização  do  trabalho  se alavanca a partir dessa década, visto que o número de ocupações não registradas,  ou  seja,  sem  nenhuma  garantia  trabalhista,  cresceu significativamente em detrimento da eliminação de diversos postos de trabalhos com registro42 (MATTOSO, 2001). Segundo Pochmann,  

 em  1989,  o  total de  assalariados  representava  64% da PEA  e  em  1995 havia passado para 58,2 %, refletindo uma taxa negativa de variação média anual do emprego  assalariado  com  registro  (‐1,4%).  Os  empregos  assalariados  sem registro apresentaram, por sua vez, taxa de crescimento médio anual de 3,12%. 

42    “Em  1980,  por  exemplo,  o  Brasil  possuía  cerca  de  23 milhões  de  trabalhadores assalariados com registro formal e, em 1989, havia passado para 25,5 milhões. No ano de  1999,  contudo,  a  quantidade  de  assalariados  com  carteira  assinada  havia  caído para  22,3  milhões  de  trabalhadores,  segundo  dados  do  Ministério  do  Trabalho” (POCHMANN, 2005, p. 98); Segundo as pesquisas do  IBGE ou do DIEESE‐SEADE, hoje mais  de  50%  dos  ocupados  brasileiros  das  grandes  cidades  se  encontram  em algum  tipo  de  informalidade,  grande  parte  sem  registro  e  garantias mínimas  de saúde,  aposentadoria,  seguro‐desemprego,  FGTS.  Ou  seja,  três  em  cada  cinco brasileiros ativos das grandes cidades estão ou desempregados (um em cinco) ou na informalidade  (dois  em  cada  cinco),  sendo que destes últimos uma grande parcela apresenta  evidente  degradação  das  condições  de  trabalho  e  de  seguridade  social” (MATTOSO, 2001, p. 16).  

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Em  razão  disso,  ocorreu  uma  geração média  anual  de  541,5 mil  empregos assalariados  sem  registro  no mesmo  período  em  exame  e  uma  perda  total estimada em 350 mil empregos assalariados sem registro (1999, p. 75).  

Outro fenômeno que cresceu muito no mercado de trabalho brasileiro é  o  subemprego  ou  subutilização  da  força  de  trabalho.  Em  1989,  o subemprego atingia quase 32% da PEA e em 1995 ele avança para um patamar próximo de 38%. Sem sombra de dúvidas,  tanto o crescimento vertiginoso do subemprego como do desemprego revelam o processo de intensificação da  lumpemproletarização no Brasil, a partir da década de 1990. O crescimento do desemprego, a partir dessa década, é assustador e representa  o  principal  fator  de  crescimento  do  subemprego.  Nesse mesmo período, o processo de lumpemproletarização atinge a média de 16%  ao  ano,  ou  seja,  um  crescimento  de  aproximadamente  442  mil pessoas por ano (POCHMANN, 1999). 

Não seria exagero de nossa parte caracterizar o Brasil pós‐década de 1990  como  um  país  essencialmente  lumpemproletarizado,  pois independente  das  distorções  que  as  metodologias  oficiais43  de identificação e medição do desemprego geram é incontestável que nesse período  o  país  sofre  uma  verdadeira  “epidemia  de  desemprego” (POCHMANN, 2005).  

Para  termos  uma  ideia  da  magnitude  de  tal  epidemia  basta percebermos que em 1999, por exemplo,  

 o Brasil assumiu a  terceira posição no  ranking mundial do desemprego, pois, possuía,  segundo  dados  da  PNAD  do  IBGE,  7,6  milhões  de  pessoas  sem trabalho.  No  total  do  desemprego,  o  Brasil  perdeu  apenas  para  Índia, Indonésia e Rússia (POCHMANN, 2005, p. 101).   

Se  comparado  com os dados da década de 1980,  fica nítido que o país  experimentou  uma  intensificação  da  lumpemproletarização,  pois 

43 “Como referencial metodológico oficial no Brasil considera‐se desempregado apenas e tão‐somente o trabalhador que, além de ter procurado emprego durante o período de referência da pesquisa,  se  encontrava  apto para o  exercício  imediato de uma vaga, sem  ter  trabalhado nem mesmo uma hora durante  a  semana da pesquisa, há uma subestimação  na  aferição  do  volume  de  desempregados”  (POCHMANN,  2005,  p. 100).  Sendo  assim,  o  número  de  lumpemproletários  no  Brasil  deve  ser significativamente maior do que o oferecido pelas estatísticas oficiais e pesquisas que se baseiam única e exclusivamente em tais estatísticas e dados fornecidos. 

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no  ano de  1986  ocupávamos  a décima  terceira posição  no  ranking do desemprego  mundial,  quase  uma  década  depois  constituíamos  os quatro países  com o maior  índice de  lumpemproletariado no mundo. Dessa maneira, nota‐se que o desemprego, que na década de 1980 era relativamente  baixo,  torna‐se,  a  partir  dos  anos  90,  um  fenômeno  de massa,  uma  vez  que  não  mais  atinge  apenas  setores  específicos  da população,  mas,  pelo  contrário,  se  generaliza  por  quase  toda  a população economicamente ativa.  

A  intensificação  da  lumpemproletarização  no  Brasil  é  resultado direto  da  acumulação  integral  subordinada  e  do  neoliberalismo, também subordinado, que a  torna regular a partir de suas políticas de (des)ajustes sociais. Dentre  tais políticas, as privatizações de empresas estatais  adquirem  importância  fundamental  para  a  compreensão  da expansão  do  desemprego  em massa.  O  processo  de  privatização  de empresas estatais na década de 1990  converteu‐se em obrigatoriedade da  acumulação  integral  no  país,  uma  vez  que  a  geração  de  receitas públicas  adicionais  imprescindíveis  para  abater  parcela  das  dívidas originadas  por  juros  elevados  tornou‐se  fundamental  para  a estabilidade  monetária.  Tal  processo  concentrou‐se  inicialmente  nos setores  produtivos  estatais,  principalmente  naqueles  formados  pela indústria  de  transformação,  dentre  eles  o  setor  petroquímico, siderúrgico,  mineração,  fertilizantes  etc.  e  foi  responsável  pela destruição  de  aproximadamente  246  mil  postos  de  trabalho.  Na segunda fase do processo de privatização das estatais, a partir de 1995, diversos  outros  setores  (telecomunicações,  transportes,  energias, estradas,  bancos  etc.)  experimentaram  esse  processo  de  enxugamento de pessoal. Acredita‐se que o mesmo exterminou aproximadamente 300 mil postos de  trabalho  entre  os  anos de  1995  a  1999. De  acordo  com Pochmann (2001), 

 do  saldo  total  negativo  de  3,2  milhões  de  empregos  assalariados  formais destruídos  na  economia  brasileira  durante  a  década  de  1990,  17,1%  foi  de responsabilidade  direta  da  reformulação  do  setor  produtivo  estatal  [...]  Em síntese,  a  implementação  de  um  novo  modelo  econômico,  sustentado  no imperativo  do  enxugamento  do  papel  do  Estado  e  na  transferência  de atividades  produtivas  estatais  para  o  setor  privado,  implicou  significativo ajuste  do  nível  de  emprego.  Os  trabalhadores  do  setor  público  foram 

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transformados na principal variável de ajuste do Estado no Brasil nos anos 90 (p. 29‐30).  

No período de uma década (1989‐1999), o desemprego expandiu‐se de 1,8 milhões para 7,6 milhões, proporcionando uma elevação da taxa de desemprego  aberto de  3,0% da PEA para  9,6%. Aproximadamente 3,2 milhões de trabalhadores perderam o emprego no mercado formal e desses  2 milhões  pertenciam  ao  setor  industrial.  Em maio  de  1999,  a Folha  de  São  Paulo  indicava  em  uma  de  suas  manchetes  que  o desemprego  no  país  atingia  aproximadamente  10  milhões  de brasileiros.  Dependendo  da  região  metropolitana  o  desemprego superava 20% da PEA, ou seja, 2,4 vezes maiores ou 140% a mais que o ano  de  1989.  O  tempo  de  desemprego  médio  também  se  expandiu significativamente, pois em 1989 esse tempo era de 15 semanas e passou para 36 semanas em 1998 e atingiu a marca de 40 semanas no início de 1999  (MATTOSO,  2001).  Em  linhas  gerais,  a  acumulação  integral  no Brasil promoveu uma intensificação da lumpemproletarização, pois 

 ao  longo  dos  anos  90  foram  queimados  cerca  de  3,3  milhões  de  postos  de trabalho  formais da economia brasileira,  sendo que desde que FHC assumiu em  1995  foi  contabilizada  uma  queima  de  nada  menos  de  1,98  milhão  de empregos  formais,  segundo  os  dados  do  Cadastro  Geral  de  Empregados (CAGED),  do  Ministério  do  Trabalho.  Até  maio  de  1999  a  indústria  de transformação  reduziu  seus  empregos  formais  na  década  em  cerca  de  1,6 milhão (cerca de 73% do que dispunha em 1989) e os subsetores mais atingidos foram os das  indústrias  têxtil  (‐ 364 mil), metalúrgica  (‐ 293 mil), mecânica  (‐ 214 mil), química e produtos farmacêuticos (‐ 204 mil) e material de transporte (‐92 mil). A  construção  civil  viu  desaparecerem  cerca  de  322 mil  empregos formais.  O  comércio  também  foi  duramente  atingido  (‐294  mil).  O  setor financeiro reduziu sua mão‐de‐obra em cerca de 354 mil. Apenas representou um  comportamento positivo o heterogêneo  subsetor Serviços,  compreendido por  alojamento,  alimentação,  reparação  e  diversos  (cerca  de  160  mil) (MATTOSO, 2001, p. 18). 

 Os anos de 2001 e 2002 experimentaram uma pequena  redução da 

taxa de desemprego de 9,6 para 9,4,  todavia é a partir de 2003 que se constata  uma  inversão  da  tendência  de  crescimento  do  desemprego, resultado  do  aumento  da  ocupação  total  da  força  de  trabalho  e  da 

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redução significativa da taxa de desemprego (SILVA, 2009). De acordo com o Radar Social44 2006, 

 o mercado de trabalho brasileiro foi marcado, no período entre 1995 e 2003, por um  significativo  crescimento da  taxa de desemprego, mesmo num  ambiente onde  a  proporção  de  pessoas  que  participam  do  mercado  de  trabalho (empregadas  ou  à  procura  de  emprego)  variou  pouco.  Entretanto,  esta tendência foi revertida entre 2003 e 2004, quando houve redução generalizada do desemprego no país, tanto em regiões metropolitanas como para o total das regiões  não‐metropolitanas.  Esta  queda  também  foi  observada  em praticamente todas as faixas etárias e grupos selecionados, como mulheres e os negros (IPEA, apud SILVA, 2009, p. 209). 

 Vale  ressaltar  que  apesar  de  várias  regiões  metropolitanas 

brasileiras  terem  experimentado  uma  redução  significativa  do desemprego,  isso  não  significa  que  todas  as  unidades  da  federação tenham vivenciado tal redução  igualmente, pois ainda que tal redução tenha ocorrido, os estados com  região metropolitana ainda são os que possuem maior  taxa de desemprego no país,  segundo  constatação do Radar Social 2006: 

 O  resultado  positivo  observado  na  taxa  de  desemprego,  no  entanto,  não  se reproduziu  para  todas  as  unidades  da  federação  [...]  Houve  aumento  do desemprego  em  alguns  estados  do  Nordeste  (Maranhão,  Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia), no Distrito Federal e em alguns estados da  região norte. Apesar disso, os estados com grandes regiões metropolitanas continuam a ser os que apresentam os maiores percentuais de desemprego, com destaque para São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal (IPEA, apud SILVA, 2009, p. 210). 

 Com  o  intuito  de  melhor  apreender  o  caráter  intensificado  do 

processo de  lumpemproletarização  no Brasil,  pretendemos  analisar,  a partir de agora, uma das frações do lumpemproletariado historicamente mais degradadas: os sem‐tetos ou população em situação de rua (PSR). Para  isso, nos  apropriaremos dos  resultados  apontados pela pesquisa 

44 “O Radar Social é um instrumento de vigilância das condições de vida da população brasileira  estruturado  de  forma  a  oferecer  ao  leitor  um  panorama  dos  principais problemas  sociais  do  País.  É  elaborado  pelo  Instituto  de  Pesquisas  Econômicas Aplicadas  –  IPEA. A  primeira  edição  foi  impressa  em  2005,  a  segunda,  em  2006” (SILVA, 2009, p. 208). 

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realizada  por  Maria  Lucia  Silva,  e  que  resultou  na  obra  Trabalho  e população  em  situação  de  rua  no  Brasil  (2009). Os  dados  e  informações utilizados  pela  autora  em  sua  pesquisa  foram  adquiridos prioritariamente  nos  Relatórios  de  Pesquisas  sobre  população  em situação  de  rua45,  realizadas  nas  cidades  de  Porto  Alegre,  Belo Horizonte, São Paulo  e Recife. Por  conta disso, nosso  estudo  também focará  apenas  essas  regiões.  Vale  ressaltar  que  não  há  concordância entre nossa  interpretação e a da autora em  relação a que  classe  social pertence o grupo estudado, pois enquanto para a autora  tal segmento social  pertence  à  classe  trabalhadora,  para  nós  trata‐se  do lumpemproletariado. 

O  Estado  de  Pernambuco  e  São  Paulo  são  alguns  dos  estados  da federação que, segundo o Radar Social 2006, não sofreu redução na taxa de desemprego, pelo contrário, o desemprego aumentou entre os anos de 2001 e 2004:  

 Pernambuco  teve  taxa  de  desemprego  avaliada  em  10,8%  no  ano  de  2001; 10,5%, em 2002; 11,5% em 2003 e 11,9% no ano de 2004. São Paulo, por sua vez, em 2001 teve taxa de desemprego avaliada em 11,1%, em 2002, em 11,4% e em 2003  alcançou  a mais  elevada  taxa  do  período,  12,4%,  que  se  reduziu  para 11,2% em 2004 (Apud SILVA, 2009, p. 210). 

 A  região  metropolitana  de  Recife  fornece  um  exemplo  claro  de 

intensificação  da  lumpemproletarização,  fundamentalmente  da  fração do  lumpemproletariado composta pela população em situação de  rua, 

45  “A  noção  do  sujeito,  que  constitui  o  público‐alvo,  independentemente  das terminologias usadas nas pesquisas (população em situação de rua, população de rua, moradores  de  rua,  pessoas  de  rua  ou  outra),  tem  como  núcleo  central  a  idéia  de indivíduos ou  famílias em situação de pobreza extrema, sem moradia convencional regular,  que  utilizam  os  logradouros  públicos  (ruas,  praças, marquises,  baixos  de viadutos, jardins, cemitérios), áreas degradadas (de prédios ocupados, ruínas, carcaça de  carros),  como espaço de moradia e  sustento, por  contingência  temporária ou de forma  permanente,  usando,  ocasionalmente,  albergues  para  pernoitar,  abrigos, repúblicas  e  outras  formas  de  moradias  provisórias”  (SILVA,  2009,  p.  145).  As condições de existência expressa na caracterização da população em situação de rua reforçam  nossa  tese,  segundo  a  qual,  tal  população  constitui  uma  das  frações  que constitui  a  classe  social  que  é  composta  pela  totalidade  do  exército  industrial  de reserva. Nesse  caso,  um  dos  setores mais  degradados  do  lumpemproletariado:  os sem‐tetos. 

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pois  o  crescimento  dessa  classe  social  sofreu  uma  grande  explosão demográfica, entre os anos de 2004 e 2005, revelada em um crescimento de 84,53%. Tal crescimento ainda pode ser bem maior, uma vez que nas pesquisas censitárias consultadas, apenas foram consideradas “as 1.205 pessoas em situação de rua encontradas em logradouros e não as 1.390 recenseadas,  em  2005,  incluindo  as  185  que  se  encontravam  em instituições de acolhida  temporária, por ocasião da pesquisa”  (SILVA, 2009, p. 212). Entre os anos de 2000 e 2003, a população em situação de rua passou de  8.706 para  10.394 pessoas na  cidade de  São Paulo. Tal crescimento  revela um aumento de 19,3%. Na  capital mineira de Belo Horizonte, o percentual de crescimento da PSR atingiu a média de 27% entre os anos de 1998 (916 pessoas) e 2005 (1.164 pessoas). 

De forma geral, diversas conclusões atingidas por essas pesquisas nos possibilitam perceber que durante a vigência do regime de acumulação integral  no  Brasil  houve  uma  intensificação  da  lumpemproletarização. Dentre  as  conclusões  que  nos  respalda  a  fazer  tal  afirmação,  algumas, dentre várias outras, merecem destaque: o sem‐tetos estão envelhecendo nas ruas, o número de sem‐tetos com maior  índice de escolaridade está crescendo,  assim  como  tem  aumentado  absurdamente  o  tempo  de permanência  dessa  fração  de  classe  do  lumpemproletariado  nas  ruas (SILVA, 2009). 

Pesquisas  realizadas  no  decorrer  de  uma  década  revelam  uma elevação da  faixa etária das pessoas que compõe essa  fração de classe do  lumpemproletariado  brasileiro,  tal  elevação  acompanha  a mesma tendência  observada  na  composição  do  desemprego,  que  também  se revelou crescente nas  faixas etárias mais elevadas,  isto é, entre 40 e 49 anos de  idade. De acordo com essas pesquisas, é possível afirmar que em  termos  percentuais  a  PSR  “encontra‐se  sobretudo  na  faixa  etária entre 25 e 55 anos” (SILVA, 2009, p. 149). 

Especificamente  em  Porto  Alegre,  no  ano  de  1995,  a  PSR  se encontrava,  majoritariamente,  na  faixa  etária  entre  29  e  45  anos (52,25%), já no ano de 1999 a faixa etária majoritária era de 38 a 50 anos. De forma semelhante, em Belo Horizonte, a faixa etária de 18 a 35 anos equivalia a 52,82% da PSR, no ano de 1998, enquanto em 2005 a maior concentração desse público foi registrada na faixa etária de 25 a 40 anos. Em  São Paulo,  a PSR  concentrou‐se  em  faixas  etárias próximas  às de Porto Alegre,  de  tal  forma  que  30,81%  das  pessoas  identificadas,  em 

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2000, encontravam‐se na faixa etária de 26 e 40 anos e 33,57%, em 2003, situavam‐se na faixa etária de 41 a 55 anos. A cidade de Recife encontra‐se em situação muito parecida com a de Belo Horizonte, pois no ano de 2004  houve  um  predomínio  da  faixa  de  idade  entre  19  a  35  anos, enquanto  em  2005  a  maior  concentração  na  faixa  de  22  a  45  anos, correspondendo a 35,61% (SILVA, 2009). 

Outro  aspecto  observado  nas  pesquisas  e  que  configura  o  perfil contemporâneo da PSR  é  a  escolaridade. De  acordo  com  Silva  (2009), todas  as  pesquisas  que  possuem  informações  relativas  ao  público  de PSR que sabe  ler, com ou sem grau de escolaridade,  revelam que, em média, 70,04% sabem ler. Nas cidades de Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte  os  percentuais  dos  que  não  sabem  ler  ou  analfabetos  são menores que o percentual de Recife, que só em 2005 equivalia a 31,94% do total da PSR. 

 Esse  percentual,  isoladamente,  é  superior  à média  geral  das  quatro  cidades (incluindo Recife), cujas pesquisas servem de fontes neste estudo, que equivale a 13,47%. Em todas as cidades e em todas as pesquisas, contudo, a maioria dos recenseados encontra‐se em algum grau de escolaridade entre a 1ª e a 8ª série. Isso corresponde à média de 68,70% entre as cidades (SILVA, 2009, p. 151).  

Na  cidade  de  Belo  Horizonte,  o  percentual  de  pessoas  que  não sabem ler manteve‐se estável (de 8,73% para 8,76%), já o percentual das que possuem escolaridade entre a 1ª e a 8ª série diminuiu, enquanto o percentual  das  pessoas  com  escolaridade  no  ensino  médio  sofreu pequena elevação  (de 6,66% para 7,73%), assim como as que possuem curso superior (de 1,31% para 1,98%). De certa forma, tais informações nos possibilitam crer que o processo de  lumpemproletarização está  se expandindo para os indivíduos com maior escolaridade (SILVA, 2009). 

O Estudo dos usuários dos albergues conveniados com a prefeitura  (2006), promovido  pela  Fundação  Instituto  de  Pesquisas  Econômicas  (FIPE), reforça a tendência do aumento da escolaridade dessa fração de classe do lumpemproletariado que vive nas ruas de São Paulo, pois, de acordo com a pesquisa realizada em 2005, das 631 pessoas entrevistadas constata‐se que a escolaridade é mais alta entre os jovens de até 30 anos e destes 33% chegaram a  ingressar no ensino médio. Tal estudo também demonstrou que 5% dos entrevistados ingressaram no curso superior e somente 2% o completaram. De  acordo  com os  estudos  realizados pelo Ministério do 

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Trabalho  e Emprego  – Evolução  e  taxa  de  desemprego  estrutural no Brasil: Uma análise entre regiões e características dos trabalhadores (2002), é possível perceber um movimento semelhante em relação ao desemprego, ou seja, o  mesmo  tem  se  expandido  para  o  grupo  de  pessoas  com  maior escolaridade (Apud SILVA, 2009). 

Em  relação  ao  tempo  de  permanência  nas  ruas,  as  pesquisas realizadas entre os anos de 1995 e 2000 apontam maior concentração da permanência do  lumpemproletariado nas  ruas no primeiro  ano,  até o quinto  ano  aproximadamente.  Já  as pesquisas  realizadas  entre  2000  e 2005 demonstram que houve uma elevação do  tempo de permanência nas ruas para além dos cinco primeiros anos: 

 Os percentuais que revelam esse tempo nas ruas, em Porto Alegre, no ano de 1995,  correspondem  a  27,47%  até  um  ano  e  a  27,92%  entre  um  e  seis  anos, totalizando  55,39%  das  pessoas  em  situação  de  rua,  nessa  condição,  no máximo,  há  seis  anos. Em Belo Horizonte,  em  1998,  a  predominância desse intervalo de tempo é ainda mais acentuada, pois, das 916 pessoas recenseadas, 65,17%  estavam  nas  ruas  pelo  período  de  até  cinco  anos,  sendo  que  423 (46,17%) estavam até um ano nessa situação. A situação de São Paulo era mais gritante, pois, em 2000, dos 8.706 recenseados, 5.833 (67,00%) tinham até 5 anos de permanência nas  ruas,  sendo  que  3.744  (43,25%)  estavam nessa  condição entre alguns dias e um ano. Já as pesquisas realizadas na segunda metade do intervalo entre 1995 e 2005 mostram que há uma diminuição do percentual de pessoas em situação de rua, com tempo de permanência nas ruas de até cinco anos e uma ligeira elevação dos percentuais das que se encontram na situação há mais de cinco anos. É o caso das pesquisas realizadas em Recife, em 2004 e 2005, e da pesquisa realizada em Belo Horizonte em 2005. A pesquisa realizada em São Paulo, em 2003, não oferece esse dado. A primeira pesquisa realizada no Recife  indicou que 47,32% dos 653 recenseados  já estavam na rua por um período de até  cinco anos,  sendo que apenas 111 pessoas, ou  seja, 17,00%  se encontravam na  situação por até um ano. A  segunda pesquisa,  realizada em 2005, indicou que 45,56% das 1.205 pessoas em situação de rua, localizadas em ruas e logradouros, estavam nessa condição no intervalo de tempo de até cinco anos, sendo que 19,67% já haviam completado até um ano de permanência nas ruas e 25,89% entre um e cinco anos. Em 2004, o percentual das pessoas com mais de cinco anos em situação de rua no Recife era de 51,00%. Em 2005, esse percentual  foi  reduzido  para  44,48%,  observando  o  crescimento  de  1,68% (2004)  para  9,96%  (2005)  dos  que  não  sabem  ou  não  quiseram  informar  o tempo  de  rua.  No  caso  de  Belo  Horizonte,  a  pesquisa  de  2005  apontou acentuada queda no percentual de pessoas que estão na rua por um período de até cinco anos, comparativamente à pesquisa de 1998. O segundo censo (2005) demonstrou que, das 1.164 pessoas recenseadas, 48,03% estavam nas ruas até 5 

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anos,  sendo que apenas 24,66%  tinham  trajetória de até um ano nas  ruas. O censo de 1998 indicou que 65,17% dos recenseados estavam com até cinco anos de tempo de rua. Enquanto  isso, elevou‐se o percentual de pessoas que estão nas ruas há mais de 5 anos. Em 1998, esse percentual era de 27,29%; em 2005, nessa cidade, esse percentual passou a 30,75% (SILVA, 2009, p. 158‐159).  

Em suma, o que se pode apreender de todos esses resultados é que, durante a vigência do  regime de acumulação  integral subordinado no Brasil,  a  intensificação  da  lumpemproletarização  tem  tornado  a condição de marginalizado do mercado de  trabalho  em um modo de vida na sociedade capitalista brasileira contemporânea. Nesse sentido, ao contrário do que afirma a  ideologia da exclusão/inclusão  social,  tal condição não deve ser apreendida enquanto uma anomalia no  interior da sociedade do capital e que pode vir a ser eficazmente combatida com políticas  sociais  garantidoras  da  inclusão  social, mas  sim  como  uma condição inerente ao processo de acumulação de capital na qual revela, essencialmente,  a  finitude,  que  se  alimenta  da  barbárie,  do modo  de produção  fundamentado  na  extração  de  mais‐valor  e  que,  para  se manter  deve,  portanto,  constantemente  ampliar  o  trabalho morto  em detrimento  do  trabalho  vivo.  Dessa  forma,  o  capitalismo  brasileiro promove a intensificação da lumpemproletarização como condição para o rebaixamento salarial, para a intensificação e precarização do trabalho e, consequentemente, ampliação da extração de mais‐valor.  

Para  finalizar,  discutiremos  um  pouco mais  sobre  a  tentativa  de ocultar o processo de intensificação da lumpemproletarização no Brasil que  se  encontra por detrás do véu  ideológico da  exclusão  social. Pois bem,  de  acordo  com  Viana  (2009)  o  construto  ideológico46  exclusão social  revela,  primeiramente,  um  problema  de  cunho  teórico‐metodológico,  pois  ao  se  fundamentar  numa  concepção  dualista  da sociedade (incluídos e excluídos socialmente), obscurece‐se a realidade concreta, que é constituída, como temos demonstrado ao longo de todo esse  trabalho,  pela  totalidade  das  classes  sociais  que  revela  sua dinâmica  na  luta  entre  classes.  Logo,  “na  concepção  dualista  da sociedade,  só  existiriam  os  incluídos  e  os  excluídos,  como  se  fossem independentes e separados, faltando aqui também a ideia de relação, no interior de uma totalidade” (VIANA, 2009, p. 248). 

46 Sobre construto e falso conceito Cf. VIANA, 2007. 

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 Além  disso,  continua  a  análise  de  Viana,  a  ideologia  da inclusão/exclusão  social desenvolve uma homogeneidade  fictícia entre incluídos e excluídos, sem, no entanto, demonstrar quem seriam uns e outros. Mas,  quem  seriam  os  incluídos  e  os  excluídos? Os  primeiros seriam compostos pelos capitalistas, operários, burocratas, camponeses etc.  que  formariam  uma  totalidade  homogênea:  os  incluídos.  Já  os segundos,  seriam  formados  pelos  desempregados,  mendigos, moradores de rua, índios aculturados e empobrecidos etc., ou seja, “são todos partes de uma  totalidade homogênea, oposta  e não  relacionada com a primeira” (VIANA, 2009, p. 248). 

Dividindo  a  sociedade  entre  incluídos  e  excluídos,  a  ideologia dominante  revela  seus  valores  que  apontam  para  a  necessidade  de incluir os excluídos, pois, nesse discurso, o mundo dos incluídos passa a ser  encarado  como  a  única  saída  para  a  condição  de  excluído  social. Todavia, essa ideologia não deixa claro que mundo dos incluídos é esse que supostamente se pretende inserir os excluídos. Obviamente, não se pretende  incluí‐los  entre  os  privilegiados  da  sociedade  capitalista (capitalistas e suas classes auxiliares), mas sim nas classes exploradas.  

É claro que, por mais que a classe  trabalhadora esteja submetida à alienação  e  a  toda mais‐violência  derivada  das  relações  de  trabalho dominantes  no  regime  de  acumulação  integral,  pertencer  ao lumpemproletariado,  que  no mundo  fictício  da  ideologia  equivale  a estar excluído, representa desgraça ainda maior e, portanto, a  inclusão se  apresenta  como  de  bom  tamanho. No  entanto,  outro  interesse  de classes  se  obscurece  diante  de  tamanho  véu  ideológico.  Trata‐se  do interesse  em  evitar  que  esse  grande  contingente  de  “excluídos”, potencialmente  contestador,  represente  uma  ameaça  a  existência  da sociedade capitalista e, assim sendo, garantir a inclusão desses significa, por conseguinte, “que ele deixe de ser uma ameaça para a permanência dessa  sociedade.  A  ideologia  da  necessidade  de  inclusão  revela,  no fundo,  essa  preocupação  com  a  integração”  (VIANA,  2009,  p.  249). Como  toda  ideologia, a da exclusão social não pode revelar sua raison d’être  e,  dessa  forma,  ela  deve  ser meramente  descritiva  e  de  forma alguma explicativa, pois revelar o que está por detrás dela alimentaria seu desejo oposto: a luta de classes. 

A emergência do movimento piquetero argentino e a radicalização que suas lutas atingiram, demonstram claramente como a intensificação 

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da  lumpemproletarização  representa  uma  perigosa  ameaça  à reprodução  da  sociedade  capitalista,  pois  no  regime  de  acumulação integral  há  uma  tendência  do  lumpemproletariado  em  adquirir  uma maior  potencialidade  contestadora.  Tal  potencialidade,  se  aliada  ao movimento  operário  revolucionário  pode  construir  um  bloco revolucionário que aponte para a superação do capitalismo e construção de  uma  sociedade  verdadeiramente  humana,  fundada  na  autogestão social. A  forma  organizacional do movimento piquetero,  baseada  nas assembleias populares nos bairros, na horizontalidade das decisões, no caráter  autogerido  de  suas  ações  etc.  resgata  experiências organizacionais  revolucionárias,  desenvolvidas  pelos  conselhos operários  em  diversos  momentos  das  tentativas  de  revoluções operárias, ocorridas ao longo de todo o século XX, em diversas regiões do mundo  e  contribui  para  o  avanço da  consciência de  classe. Nesse sentido,  é  possível  afirmar  que  o  lumpemproletariado,  no  regime  de acumulação  integral  subordinado,  tende  a  adquirir  um  caráter mais contestador e maior possibilidade de uma aliança revolucionária com o proletariado. 

No  Brasil,  apesar  da  intensidade  do  processo  de lumpemproletarização  no  regime  de  acumulação  integral,  não  se experimentou  nenhuma  ação  radicalizada  por  parte  do lumpemproletariado.  No  entanto,  diversas  organizações, majoritariamente  compostas  por  lumpemproletários,  começam  a emergir  e  lutar  por  reformas  e  mudanças  sociais.  Dentre  tais organizações,  poderíamos  citar  os  diversos  movimentos  de trabalhadores desempregados espalhados (MTDs) por várias regiões do país,  assim  como  os movimentos  de  trabalhadores  sem  teto  (MTST). Esse  último  vem  promovendo  em  diversas  cidades  brasileiras  a ocupação de  terras urbanas e prédios abandonados e  lutando contra a especulação imobiliária nos centros urbanos. Assim como vários outros movimentos  sociais,  os  movimentos  sociais  compostos majoritariamente pelo lumpemproletariado, como é o caso dos MTDs e MTSTs,  também  vem  sofrendo  com  a  prática  de  criminalização  dos movimentos sociais e da pobreza no Brasil. 

Em síntese, a acumulação  integral no Brasil, assim como em várias outras regiões, possui uma singularidade que se revela na sua condição de subordinado aos ditames dos países imperialistas. Tal singularidade 

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reflete no processo de lumpemproletarização que, por sua vez, tende a se  intensificar,  visto  que  as  necessidades  neoimperialistas  geram  no bloco  subordinado um Estado neoliberal  também  subordinado que  se encarrega, sem cerimônias, de criar as condições mais  favoráveis para uma  acumulação  integral.  Dentre  tais  condições,  a lumpemproletarização  se  destaca  por  se  apresentar,  desde  sempre, como uma das grandes alavancas dessa acumulação capitalista integral subordinada. 

 

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CONCLUSÕES   Apontar  as  principais determinações do  processo de  expansão da 

lumpemproletarização  no  regime  de  acumulação  integral  e  suas particularidades  no  Brasil  foi  o  principal  objetivo  da  pesquisa  que realizamos. A trajetória cursada possibilitou as conclusões a seguir, que confirma a hipótese da qual partimos.  

Assim como o proletariado e a burguesia, o  lumpemproletariado é uma  classe  social  inseparável  do  modo  de  produção  capitalista  e, portanto,  esteve  presente  ao  longo de  toda  a  história  desse modo  de produção. Contudo, essa classe social sofreu alterações quantitativas e qualitativas na sua composição desde o século XIX aos dias atuais. Se em  outros  contextos  históricos  a  condição  de  lumpemproletário  era acompanhada  pela  possibilidade  de  uma  nova  proletarização,  no regime de  acumulação  integral  tal possibilidade  tem  se  tornado  cada vez mais  difícil  e  a  condição  de marginalizado  da  divisão  social  do trabalho  tem  se  tornado um modo de vida de milhares de  indivíduos em todo o mundo.  

Reconhecer  a  história  do  capitalismo  e  das  classes  sociais  que  o compõe como sendo a história da sucessão dos regimes de acumulação, que  tem  na  luta  de  classes  sua  força  propulsora,  representou  o  fio condutor  geral  desse  trabalho. Nesse  sentido,  nossa  análise  procurou compreender  a  formação  e  desenvolvimento  do  lumpemproletariado como  consequência  fundamental da  luta de  classes  entre  burguesia  e proletariado  pelo  controle  sobre  o  tempo  de  trabalho  utilizado  para extração  de  mais‐valor.  Percebemos  que  no  regime  de  acumulação integral,  a  expansão  do  processo  de  lumpemproletarização  adquire níveis vistos somente no primeiro regime de acumulação  (extensivo) e isso decorre da dinâmica do regime de acumulação integral.  

Em  resposta  à  crise  capitalista  da  década  de  1960, marcada  pela tendência  declinante  da  taxa  de  lucro  e  pela  radicalização  das  lutas sociais,  é  que  emerge  o  regime  de  acumulação  integral  como  uma contraofensiva  da  burguesia  aos  interesses  do  proletariado.  Essa contraofensiva  fundamenta‐se  nas  três  partes  constituintes  do  regime de acumulação integral: toyotismo, neoliberalismo e neoimperialismo.  

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A  execução  de  um  conjunto  de  medidas  denominada  de “reestruturação produtiva”, acompanhada do neoliberalismo enquanto forma estatal que a tornasse regular representou as principais causas da expansão da lumpemproletarização na contemporaneidade.  

Mesmo  em  países  imperialistas  como  os  EUA  a lumpemproletarização  tem  se  expandido  significativamente  para diversas  outras  classes  sociais  e não  apenas para  o proletariado. Essa expansão tem promovido uma degradação geral nas condições de vida dos principais bairros da periferia de grandes cidades norte‐americanas e  vem  coagindo  a  população  local,  principalmente  os  jovens,  a sobreviverem,  essencialmente,  de  esmolas,  do  roubo  e  do  tráfico  de drogas. Em resposta a essas condições, o governo norte‐americano vem promovendo uma verdadeira guerra contra o lumpemproletariado que tem  resultado  numa  explosão  demográfica  carcerária  jamais  vista  na história da humanidade.  

Na Argentina,  o  processo  de  lumpemproletarização  que  se  inicia ainda no início da década de 1980, sofre uma intensificação a partir da década  de  1990.  Tal  intensificação  se  revela  nos  elevados  índices  de desemprego  e  de  pobreza  que  atingiu  aproximadamente metade  da população nacional. Devido a essa intensificação ocorrida em um curto prazo  de  tempo,  os  conflitos  sociais  também  se  intensificaram  e  o lumpemproletariado organizado  (movimento piquetero)  tornou‐se um dos principais atores sociais em  luta contra as drásticas conseqüências impostas  pelo  regime  de  acumulação  integral  subordinado.  O protagonismo  e  radicalidade  adquirida  pela  luta  piquetera  comprova nossa  tese  segundo  a  qual  não  se  pode  afirmar  que  o lumpemproletariado é, por essência, conservador e reacionário, mas sim que sua postura política sofre alterações segundo o contexto histórico e a correlação de forças sociais existentes. Porém, constata‐se que há uma tendência  na  contemporaneidade  do  lumpemproletariado  se  tornar uma classe social mais contestadora e, por conseguinte, representar uma maior ameaça à manutenção da sociedade capitalista.  

O principal objetivo desse trabalho foi buscar respostas ao seguinte problema:  O  regime  de  acumulação  integral  subordinado  no  Brasil promoveu uma ampliação da lumpemproletarização? Para responder a essa questão central buscamos analisar as especificidades desse regime de  acumulação  no  Brasil  e  analisar  se  suas  consequências  sociais, 

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principalmente  a  lumpemproletarização,  foram  intensificadas. Constatamos  que  a  condição  de  subordinação  aos  interesses neoimperialistas gerou um estado neoliberal também subordinado que promoveu uma devastação do patrimônio público através de um amplo processo de privatização de empresas estatais, da demissão em massa de funcionários e de um aumento colossal do desemprego no Brasil. A intensificação da  lumpemproletarização pôde  ser mais bem notada na expansão de uma das frações de classes mais degradadas: a população em  situação  de  rua  ou  sem‐tetos. A  situação  de  rua  dessa  fração  de classe  tem  se  tornado  um modo  de  vida  de milhares  de  pessoas  no Brasil. Isso pode ser apreendido no aumento do tempo de permanência nas ruas, no envelhecimento dessa classe social nas ruas e na expansão desse  fenômeno  para  pessoas  com  capital  cultural  cada  vez  mais elevado.  Portanto,  concluímos  que  o  Brasil,  na  era  da  acumulação integral, tornou‐se um país amplamente lumpemproletarizado. 

   

  

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Sobre o autor   Lisandro  Braga  é  doutorando  em  sociologia  pela  Universidade  Federal  de Goiás/UFG, professor de Teoria Política e Movimentos Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e autor de diversos capítulos de  livros, assim como  organizador  das  obras  A  questão  da  organização  em  Anton  Pannekoek (BRAGA  &  VIANA,  2011)  e  Intelectualidade  e  luta  de  classes  (MARQUES  & BRAGA,  2013). Atualmente desenvolve pesquisa  sobre  a  repressão policial  e criminalização do movimento de desempregados na Argentina.