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Copyright © do autor Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos do autor. Lisandro Braga
Classe em Farrapos. Acumulação integral e expansão do lumpemproletariado. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. 222p. ISBN 978‐85‐7993‐???‐?
1. Lumpemproletariado. 2. Acumulação de capital. 3. Desemprego. I. Título.
CDD – 410 Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito Conselho Científico da Pedro & João Editores:
Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Rogério Drago (UFES/Brasil).
Pedro & João Editores www.pedroejoaoeditores.com.br
13568‐878 ‐ São Carlos – SP 2013
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SUMÁRIO (CORRIGIR)
Prefácio Introdução
Acumulação capitalista e lumpemproletariado A dinâmica da produção capitalista de mercadorias
A produção de mais-valor e classes fundamentaisO processo de lumpemproletarização
Formação e desenvolvimento do lumpemproletariadoA expansão do lumpemproletariado no regime de
acumulação integral A teoria do regime de acumulação integral
Expansão e criminalização do lumpemproletariado nos EUA
Lumpemproletarização e luta de classes na Argentina Lumpemproletarização na era da acumulação integral
no Brasil Mudanças nas relações de trabalho e toyotismoNeoimperalialismo e capitalismo subordinado
Desemprego e intensificação da lumpemproletarização Conclusões Referências
A classe em farrapos: elementos para uma teoria do lumpemproletariado
Lucas Maia∗
A discussão sobre as classes sociais é algo recorrente no conjunto
das ciências humanas. De diferentes maneiras, a partir de diversos métodos de abordagem, discute‐se esse fenômeno óbvio, que em não raras oportunidades é tão mal compreendido. Desde as diversas ideologias da estratificação social, até as mais diversas leituras a partir da teoria marxista, bem como das derivadas da deformação do marxismo (bolchevismo, socialdemocracia etc.), que as classes sociais vem sendo interpretadas e reinterpretadas.
Fazer aqui uma antologia de tais interpretações é algo completamente contraproducente. Contudo, para situar, tanto no campo teórico metodológico, quanto no campo político a presente obra de Lisandro Braga, faz‐se necessária uma breve digressão acerca das principais linhas de abordagem das classes sociais.
Uma primeira linha de interpretação, ligada à ideologia da estratificação social, apresenta a leitura das classes sociais, do ponto de vista metodológico, como algo completamente arbitrário. Uma vertente é a que divide a sociedade em classe alta, média e baixa. Esta maneira de compreender a questão apresenta vários inconvenientes. Em primeiro lugar, homogeneíza classes e grupos que, de per si, apresentam pouca semelhança. Nesta maneira de conceber a questão, entraria na classe alta, por exemplo, altos executivos de empresas, grandes burocratas estatais, grandes capitalistas (industriais, banqueiros etc.). Nas classes médias, poderia‐se colocar: intelectuais (médicos, advogados etc.), burocratas de grandes partidos políticos, professores universitários etc. Nas classes baixas, por exemplo, poderia ser colocado num mesmo bloco desempregados, operários, trabalhadores domésticos, camponeses etc. Ou seja, o primeiro inconveniente desta interpretação acerca das classes sociais é o de se precisar com exatidão a
∗ Professor do Instituto Federal de Goiás, campus Anápolis. Autor das obras Comunismo de conselhos e autogestão social. Pará de Minas, MG: Virtual Books, 2010 e As classes sociais em O capital. Pará de Minas, MG: Virtual Books, 2011.
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colocação de um ou outro grupo ou classe social na mesma classificação.
Desta primeira dificuldade, surge outra: como definir os limites que separam uma classe da outra? Qual o limite ou quais os critérios para se definir o que é classe baixa, média e alta? Cada pesquisador, neste particular, pode inventar o seu: status, modo de vida, renda etc. Pode‐se ainda acrescentar mais um elemento a este conjunto de dificuldades metodológicas: como se relaciona ou qual a natureza do relacionamento entre estes estratos sociais? Como é possível compreender a relação da classe alta, com a média e com a baixa? Se esta concepção homogeneíza o que é heterogêneo, se não consegue definir com precisão os limites que separam um estrato do outro, muito menos terá condições de estabelecer a plêiade complexa de relações que as classes estabelecem entre si.
Deste modo, esta maneira de compreender a divisão da sociedade em classes é bastante limitada. Estes três estratos não são capazes de abarcar o conjunto de classes, frações de classes e grupos sociais que compõem a teia de relações sociais que constitui as sociedades de classe.
Uma outra técnica ou metodologia, fundada na ideologia da estratificação social, é que tenta, a partir da análise da renda, definir as classes sociais. Geralmente, quando se utiliza desta concepção, divide‐se a sociedade em classes A, B, C, D, E e assim por diante. Dependendo do critério, dos objetivos do pesquisador, pode‐se identificar quantas classes for necessário. Esta forma de analisar a questão padece das mesmas dificuldades da anterior: coloca em uma mesma classe social grupos, classes e frações de classe distintos, a delimitação de uma classe para outra é algo completamente arbitrário, pois reduz‐se a situação de classe ao rendimento. Assim, por exemplo, num mesmo estrato (A, B, C etc.) pode‐se ter indivíduos com mesmo rendimento, mas com atividades, modo de vida etc. completamente distintos. Da mesma forma que a postura anterior, também esta não consegue compreender a natureza do relacionamento entre as classes, pois ao estratificar, a partir de critérios arbitrários, as classes sociais, não se consegue incluir na análise a relação entre um estrato e outro. Como o estrato A se relaciona com o C, o B com o D etc.? Impossível definir isto a partir deste procedimento.
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Duas constatações são graves com relação à ideologia da estratificação social: a) as classes não são algo real, mas sim resultado de criação arbitrária, variando as classes de acordo com os critérios, objetivos de cada pesquisador; b) não há história, nem historicidade nestas interpretações, ou seja, as classes são naturalizadas. Resta ao pesquisador, de forma neutra, somente identificá‐las. Vê‐se, deste modo, a natureza conservadora desta abordagem.
Esta abordagem, embora faça parte da vulgata sobre as classes sociais, povoando o imaginário da população, não é, em hipótese alguma, a única maneira de conceber a questão. Uma outra, também muito disseminada, é a feita a partir da interpretação leninista da obra de Marx. Lênin, um dos principais ideólogos da burocracia do Partido Comunista Russo, bem como um dos principais responsáveis pela deformação do pensamento original de Marx, tem também sua ideologia das classes sociais. O interesse em resgatar este ideólogo deve‐se à sua importância na difusão de uma caricatura da obra de Marx. Lênin, ao tentar analisar as classes sociais, afirma aprofundar as teses de Marx. Contudo, analisando‐se os dois pensadores percebe‐se grandes diferenças: em primeiro lugar, a interpretação de Lênin é fundada num economicismo que não se verifica em Marx. Lênin define as classes sociais a partir de sua posição frente às relações de produção e aos meios de produção. Portanto, de acordo com Lênin, as classes se definem somente a partir do modo de produção, ficando o conjunto da população, que não está diretamente vinculado ao processo produtivo fora das classes sociais. Nesta maneira pobre de compreender as classes, define‐se a burguesia, o proletariado, o campesinato etc. Mas é difícil encontrar um lugar nesta definição para, por exemplo, os trabalhadores domésticos, intelectuais, burocratas etc. Por isto é comum na literatura leninista as expressões: camadas sociais, pequena burguesia, classes médias etc.
O uso da expressão camada social é algo recorrente na literatura leninista, geralmente utilizada para qualificar os intelectuais e os burocratas, que segundo Lênin e os leninistas não são classes, mas sim, camadas sociais. Com este artifício ideológico, consegue‐se de uma tacada só eliminar a posição privilegiada e de dominação que estas classes exercem sobre as classes exploradas e oprimidas da sociedade. A grande questão, do ponto de vista leninista, é justamente isentar a
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burocracia e a intelectualidade de sua posição de classe, transformando‐a em camada social. Muda‐se a palavra, mas o conteúdo que ambas expressam é o mesmo, ou seja, de que a burocracia é uma classe que exerce atividade de controle e domínio dentro das instituições típicas da sociedade burguesa. Ao fazer isto, Lênin e os demais leninistas buscavam camuflar o fato de o Partido Comunista Russo ter‐se tornado uma instituição dominante dentro da Rússia e posteriormente na União Soviética.
Várias outras interpretações, oriundas de concepções claramente burguesas, sobre as classes sociais poderiam aqui ser elencadas: Raimond Aron, Georges Gurvich, Antony Giddens etc., mas tornariam este texto por demais extenso. Só retomamos as duas leituras anteriores, dada sua importância na divulgação de concepções errôneas sobre as classes, bem como sua influência sobre as demais interpretações. Ademais, a existência de todas estas ideologias só demonstra uma coisa, o debate em torno das classes sociais é algo premente e necessita sistematização. Uma grande contribuição a este propósito foi dada recentemente pela excelente obra de Nildo Viana, publicada em 2012: A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx. Diferentemente das interpretações anteriores, Viana faz uma reconstituição fidedigna e complexa acerca da leitura de Marx das classes sociais. Marx não partia, em sua análise das classes, como fazem os ideólogos da estratificação social, ou seja, de critérios arbitrários para definir e identificar as classes sociais. Nem muito menos reduzia sua leitura a um economicismo empobrecedor, tal como Lênin. E, de forma alguma, reduziu a sociedade capitalista a duas classes, tal como interpretaram Marx os sociólogos e economistas de matriz ideológica burguesa.
Sua interpretação buscava expressar, no campo do pensamento, as classes existentes concretamente. Este procedimento metodológico permite, analisando‐se a divisão social do trabalho, identificar uma quantidade razoável de classes, portanto, completamente antagônica às interpretações burguesas de Marx (Aron, Gurvich etc.) que viam na obra de Marx somente duas classes. Qualquer leitura séria da obra de Marx resultará em conclusão oposta. Também, qualquer leitura rigorosa perceberá o equívoco de Lênin e os leninistas em geral em restringir a definição de classes em Marx ao processo produtivo e à propriedade dos meios de produção.
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A leitura de Marx, como demonstra Viana, é bem mais complexa e parte da divisão social do trabalho, da oposição de interesses, da luta de classes, do modo de vida, modo de atividade, valores, concepções etc. Assim, uma classe social não se define por sua posição diante dos meios de produção. Este procedimento define somente as classes fundamentais do capitalismo, ou seja, burguesia e proletariado. A estas classes fundamentais relaciona‐se um conjunto de outras, denominadas por Viana de classes subsidiárias, ou seja, que se apropriam de uma ou outra maneira do mais‐valor produzido a partir da relação entre as classes fundamentais. Entre as classes subsidiárias, pode‐se citar: burocracia, intelectualidade, lumpemproletariado, trabalhadores domésticos etc.
Cada uma destas classes comporta também um conjunto de frações de classes. A burguesia, por exemplo, fraciona‐se em burguesia comercial, financeira, industrial, agrária. O proletariado em industrial, agrário, de minas, da construção civil. A burocracia em partidária, eclesial, empresarial, sindical etc. A intelectualidade em artistas, cientistas etc. Cada uma destas classes e frações define‐se por um determinado modo de atividade, por sua posição na divisão social do trabalho, por determinado modo de vida e rendimentos, por determinados valores e interesses. O que, por definição, coloca uma em relação com as outras e, por consequência, as coloca em situação de conflito ou de aliança.
Vê‐se, deste modo, que a concepção de Marx é bem mais complexa do que se apresenta à primeira vista. É a partir desta abordagem que Lisandro Braga trás sua contribuição ao discutir como o lumpemproletariado se constitui e evolui ao longo da história do capitalismo. O título da obra é bastante expressivo de seu conteúdo. A Classe em Farrapos é uma alusão ao significado etimológico da palavra lumpemproletariado, ou seja, proletariado em farrapos.
A pesquisa histórica e teórica desenvolvida por Braga é uma grande contribuição à teoria marxista das classes sociais. Sua análise da obra de Marx no que concerne ao lumpemproletariado é uma marca importante do presente livro. Demonstra como este “proletariado” esfarrapado pertence ao capitalismo tanto quanto a burguesia e o proletariado. Contudo, o grande elemento definidor do lumpemproletariado, diferentemente das demais classes subsidiárias, é
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o fato de estar fora da divisão social do trabalho. Assim, como destaca o autor, não existe exclusão social, o que implicaria em dizer que o lumpemproletariado está fora da sociedade, algo impossível. Esta classe está, na verdade, excluída da divisão social do trabalho. O que Braga demonstra, a partir das obras de Marx e Engels é que a constituição da relação‐capital, ou seja, da burguesia e do proletariado implica, ontologicamente, na criação do lumpemproletariado.
O livro está dividido em três capítulos. No Capítulo 1: Acumulação Capitalista e Lumpemproletariado, o autor demonstra a relação inextrincável entre modo de produção capitalista e formação do lumpemproletariado. A partir da análise de Marx acerca da “Lei Geral da Acumulação Capitalista”, Braga demonstra como a produção da riqueza enquanto capital implica necessariamente no crescimento do lumpemproletariado. Segundo Marx, o aumento da composição orgânica do capital implica necessariamente num crescimento absoluto da população trabalhadora, bem como em seu decréscimo relativo em relação ao conjunto do capital investido. Assim, o desenvolvimento do capital reside num crescente aumento do investimento em capital constante em oposição ao capital variável. Ambos crescem em fatores absolutos, mas o capital constante cresce relativamente mais que o capital variável. Esta relação “natural” do capital cria aquilo que Marx denominou exército industrial de reserva ou superpopulação relativa. Em O Capital, Marx refere‐se aos estratos mais inferiores desta superpopulação relativa como sendo o lumpemproletariado (prostitutas, incapacitados para o trabalho, desempregados crônicos etc.). Braga propõe uma “ressignificação” do termo lumpemproletariado, passando a compor esta classe todo o conjunto do exército industrial de reserva. Após demonstrar a essência do Lumpemproletariado, discute seu processo de formação histórica, seu modo de vida, condições de existência etc. desde a origem do modo de produção capitalista até finais do século XIX, período analisado por Marx.
A segunda grande contribuição de Braga para uma teoria do lumpemproletariado está presente no Capítulo 2: Expansão do Lumpemproletariado no Regime de Acumulação Integral. Sua pesquisa, portanto, não se restringe a afirmar o que Marx disse, o que demonstra o caráter não‐dogmático do autor e de sua obra. Marx desenvolveu os
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elementos essenciais da análise do modo de produção capitalista e das classes sociais, mas não fez tudo e nem poderia fazê‐lo. Também, o capitalismo contemporâneo não é mais o do século XIX. É com base nesta premissa, que Braga se apropria da teoria dos regimes de acumulação tal como desenvolvida por Nildo Viana nas obras Estado, Democracia e Cidadania e O Capitalismo na Era da Acumulação Integral e discute o desenvolvimento do lumpemproletariado a partir do desenvolvimento mesmo do modo de produção capitalista. A sociedade moderna passou por cinco regimes de acumulação: extensivo (da revolução industrial até finais do século XIX); intensivo (de finais do século XIX até a Segunda Guerra Mundial); conjugado (da Segunda Guerra Mundial até a década de 1980); e integral (da década de 1980 até os dias atuais). Braga analisa dois regimes de acumulação e demonstra como o lumpemproletariado se comporta, como classe em cada um deles. Analisa o regime de acumulação extensivo, o discutido por Marx, debate realizado no primeiro capítulo. No segundo capítulo, discute o lumpemproletariado na contemporaneidade, ou seja, no regime de acumulação integral. A conclusão a que chega o autor é que a tendência à lumpemproletarização cada vez mais radical da sociedade se afirma na etapa atual do capitalismo. E isto ocorre tanto nos países imperialistas (Estado Unidos, Europa Central etc.) quanto nos de capitalismo subordinado (América Latina, África etc.). Para os países imperialistas, cunha o termo “lumpemproletarização expansiva”, para os países subordinados “lumpemproletarização intensificada”.
A grande contribuição desta parte da obra é demonstrar: a) o lumpemproletariado, ou seja, miséria, desemprego etc. são uma realidade no mundo inteiro, inclusive no centro do capitalismo mundial, os EUA; b) o lumpemproletariado não é necessariamente uma classe reacionária, contrariando com esta tese várias abordagens, como a de Alberto Passos Guimarães em seu livro As Classes Perigosas. Continuando a reflexão que já havia feito no capítulo 1, quando demonstrou que o lumpemproletariado foi ativo em vários processos de luta durante o regime de acumulação extensivo, durante o regime de acumulação integral, suas lutas levaram a uma radicalização beirando as raias do processo revolucionário na Argentina. Analisa, neste ponto, a ação política do Movimento Piqueteiro na Argentina e demonstra que o lumpemproletariado não é essencialmente contra‐revolucionário. A
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experiência na Argentina, durante a década de 1990 e os primeiros anos da década de 2000 o demonstram.
Finaliza o livro com o Capítulo 3: Lumpemproletarização na Era da Acumulação Integral no Brasil. Demonstra, como rigor analítico, o processo de estabelecimento da acumulação integral no Brasil, ou seja, da reestruturação produtiva fundada no toyotismo, no estabelecimento do Estado neoliberal iniciado com o governo Collor em 1990, processo continuado até os dias atuais e na relação subordinada do Brasil com os países imperialistas, onde os ajustes estruturais propostos pelo Fundo Monetário Internacional – FMI, Banco Mundial etc. arrebentaram as poucas políticas sociais e garantias trabalhistas que existiam no país. Este conjunto de processos agravou uma situação que já era por demais crônica. Tal como no caso argentino, a lumpemproletarização no Brasil foi drástica ou como define e autor, “intensificada” durante os anos de 1990 e 2000. Isto, contudo, não implicou na criação de um movimento social radical como na Argentina.
Assim, a presente obra, que agora o leitor tem em mãos, é uma preciosa contribuição à teoria marxista das classes sociais. Seu enfoque está centrado em uma classe social específica, o lumpemproletariado, sendo outras classes marginalmente analisadas no livro. Esta obra tem, portanto, vários méritos: a) interpretar de maneira correta a teoria de Marx das classes sociais em geral e especificamente sua concepção de lumpemproletariado; b) refundir e ressignificar alguns elementos da teoria de Marx acerca do lumpemproletariado; c) analisar o desenvolvimento do lumpemproletariado a partir da teoria dos regimes de acumulação; d) analisar o desenvolvimento do lumpemproletariado no capitalismo contemporâneo, ou seja, no regime de acumulação integral; e) analisar o significado da luta política desenvolvida pelo lumpemproletariado, demonstrando que esta classe, devido suas condições de vida e existência, pode se aliar ao proletariado e protagonizar processos radicais de luta. É, portanto, obra indispensável para quem quer compreender a dinâmica das classes sociais no capitalismo contemporâneo, além de ser, do ponto de vista metodológico, um importante indicativo do estudo do lumpemproletariado.
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INTRODUÇÃO
Os estudos que versam sobre o modo de produção capitalista e suas classes sociais tendem, geralmente, a priorizar em suas análises apenas as classes fundamentais do capitalismo, isto é, a burguesia e o proletariado, a luta de classes derivada da relação estabelecida entre essas classes na produção, suas organizações, modos de vida etc.. A partir da década de 1940 começaram a surgir estudos interessados em compreender outras classes sociais no capitalismo, tal como os estudos sobre a burocracia (RIZZI, 1983; DJILLAS, 1971) ou, como prefere alguns teóricos, os gestores (BERNARDO, 2009). No entanto, outras classes sociais permaneceram marginalizadas não só na realidade material concreta, mas também nas análises teóricas. Possivelmente a classe social que mais nitidamente se encontra nessa situação seja o lumpemproletariado.
O foco central desse trabalho consiste em analisar o processo de lumpemproletarização no Brasil no período de vigência do regime de acumulação integral (de 1990 aos dias atuais). Nossa motivação nasce da necessidade intelectual de compreender as determinações que envolvem o crescimento espantoso no Brasil de indivíduos desempregados e empobrecidos, vivendo em situação de rua (sem‐tetos), subempregados, prostitutas, mendigos etc. Trataremos esse conjunto de grupos sociais que compõe a totalidade do “exército industrial de reserva” como uma classe social: o lumpemproletariado.
O lumpemproletariado insurge das ruínas do modo de produção feudal e das próprias necessidades do modo de produção capitalista nascente, pois com o processo de ruptura com a tradição feudal da propriedade comum da terra e o surgimento de propriedades privadas, fruto dos cercamentos, destinadas a funcionarem segundo a lógica mercantil incipiente, milhares de camponeses foram expulsos de suas terras e obrigados a migrarem para os recentes centros urbanos industriais. Porém, tais centros urbanos não se encontravam habilitados a incorporar na nova divisão social do trabalho toda essa gigantesca massa popular. Pelo contrário, parcela significativa dessa massa se encontrará
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marginalizada da divisão social do trabalho e formará o lumpemproletariado.
Posteriormente, o próprio desenvolvimento da produção capitalista de mercadorias e toda a sua dinâmica alimentarão o desenvolvimento de um lumpemproletariado que tende a crescer assustadoramente na sociedade capitalista. No fundo, essa classe social, após a consolidação do capitalismo, deriva da luta de classes estabelecida entre burguesia e proletariado na produção e formará aquilo que Marx denominou de “exército industrial de reserva” e cumprirá duas funções essenciais no capitalismo que consiste em pressionar os salários para baixo e manter a classe trabalhadora dividida e enfraquecida na disputa por espaço no mercado de trabalho. A totalidade desse exército industrial compõe a classe social aqui denominada de lumpemproletariado e a mesma passa a ser parte integrante da lógica reprodutora do modo de produção capitalista, tendendo a crescer assustadoramente em períodos de crise econômica.
A importância de se compreender o lumpemproletariado à luz de uma teoria marxista das classes sociais se justifica pela necessidade de apreendê‐lo enquanto uma classe social formada pela totalidade do exército industrial de reserva, isto é, toda gama de desempregados, subempregados, mendigos, sem‐tetos etc. que se encontram marginalizados da divisão social do trabalho e que na atual configuração do capitalismo tende a se encontrar cada vez mais, e em maior número, nessa situação. O capitalismo ao longo de seu desenvolvimento conviveu com a lumpemproletarização e dela dependeu, porém a condição de lumpemproleatariado em diversos momentos históricos era acompanhada pela possibilidade de retorno à condição de classe operária e/ou trabalhadora em geral. Na contemporaneidade, a possibilidade dessa massa enorme de indivíduos se proletarizarem novamente é cada vez mais difícil, apesar de ainda ocorrer, pois aquilo que anteriormente representava uma fase de transição ‐ lumpemproletariado↔proletariado – tem se tornado, durante a vigência do regime de acumulação integral, num “modo de vida” de milhares de indivíduos em todo o mundo (MARTINS, 1997). Conseqüentemente, o enfrentamento à condição de lumpemproletariado, assim como a condição de proletariado, depende
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intimamente da destruição da sociedade que lhes possibilita a existência e delas depende para existir, isto é, o capitalismo.
Além disso, torna‐se de fundamental importância discutir o que há por de trás dos constructos ideológicos inclusão/exclusão social que, desde aproximadamente a década de 80 e 90 na Europa, especificamente na França, se tornaram dominantes nos discursos acadêmico‐científicos e governamentais, pois tentar compreender a totalidade das relações sociais no capitalismo a partir de uma visão dualista abstrata que mais obscurece tais relações do que a esclarece, acaba por revelar a tentativa das classes dominantes de ocultar um processo que acompanha o desenvolvimento histórico do modo de produção capitalista: a lumpemproletarização expansiva (capitalismo imperialista) e intensificada (capitalismo subordinado).
Ao falar de exclusão social deve se questionar de onde se está excluído, pois ninguém está excluído socialmente uma vez que não existem indivíduos excluídos da pertença de classe social. Todo indivíduo pertence a uma ou outra classe social. O que acontece é que o lumpemproletariado, uma classe social inerente ao capitalismo tal como a burguesia e o proletariado, encontra‐se marginalizado da divisão social do trabalho e não da sociedade como um todo, pois isso é impossível. Além disso, a ideologia da inclusão social não explica em que condições e para onde se pretende incluir os tais indivíduos “excluídos”, ou seja, não demonstra que se houvesse a possibilidade da inclusão, algo bastante contestável e duvidável, essa se daria no reino do trabalho alienado, precarizado e intensificado que nega a multiplicidade da potencialidade física e espiritual do ser humano e, consequentemente, a positividade da inclusão estaria ameaçada.
Em escala mundial é possível perceber que o processo de lumpemproletarização passa por uma fase de expansão na Europa, EUA e Ásia, a partir da década de 1980, com a consolidação do regime de acumulação integral. Nosso problema de pesquisa incide em saber se no Brasil, país de capitalismo subordinado, que convive, desde o final do século XIX, com um alto índice de indivíduos lumpemproletarizados houve uma intensificação desse processo? Se houve, quais são suas especificidades, ou seja, qual a relação entre o regime de acumulação integral no Brasil e a intensificação da lumpemproletarização nesse país?
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Responder a esse problema central e a outros dele derivados, possui importância acadêmica e social fundamental, pois pode contribuir com a reconstrução de uma teoria das classes sociais no Brasil que ofereça ferramentas mais eficazes para a compreensão da dinâmica social brasileira e possibilite, também, um combate à ideologia dominante que, a partir dos seus constructos ideológicos (marginalidade social, inclusão e exclusão social, ações afirmativas, igualdade de oportunidades etc.), camuflam a realidade social e, conseqüentemente, reproduz o status quo, dificultando a construção de uma concreta alternativa social, fundada na autogestão da sociedade, que sirva ao enfrentamento incisivo contra a manutenção e reprodução da barbárie capitalista.
Com o intuito de compreender a Acumulação integral e expansão do lumpemproletariado, nosso trabalho será dividido em três capítulos. O primeiro capítulo intitulado Acumulação capitalista e lumpemproletariado trará uma discussão teórica acerca da acumulação capitalista, suas classes fundamentais, a relação entre a acumulação e o lumpemproletariado e a formação e desenvolvimento dessa classe social no regime de acumulação extensivo. Nesse capítulo buscamos compreender o lumpemproletariado como uma classe social inerente ao modo de produção capitalista e que tende, assim como no regime de acumulação extensivo, a se ampliar e se intensificar no regime de acumulação integral.
Para dialogar com a hipótese de que no regime de acumulação integral a lumpemproletarização sofre um processo de expansão, discutiremos no segundo capítulo A expansão do lumpemproletariado no regime de acumulação integral com o intuito de demonstrar que mesmo em países de capitalismo imperialista, como o norte‐americano, é possível visualizar um amplo processo de lumpemproletarização e de criminalização do lumpemproletariado. Nesse capítulo, discutiremos, também, o processo de lumpemproletarização e luta de classes na Argentina. Para isso, discutiremos a situação argentina que, nos últimos anos da década de 1990 até os dias atuais, vem experimentando um intenso processo de lumpemproletarização derivado das conseqüências do regime de acumulação integral e da adoção irrestrita à cartilha neoliberal. O propósito de discutir a situação argentina se justifica pelo fato de que a intensificação da lumpemproletarização nesse país
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provocou uma radicalização da luta de classes, demonstrando que, no regime de acumulação integral, a postura política do lumpemproletariado pode ser marcada por um caráter fortemente contestador que ameaça a permanência da ordem capitalista. Dessa forma, a tese segundo a qual a postura política do lumpemproletariado na contemporaneidade apresenta‐se como uma possibilidade real de uma aliança revolucionária com o proletariado se confirma e o mito segundo o qual a postura política do lumpemproletariado é sempre passível de ser cooptada e utilizada a serviço de tramóias reacionárias é desmentida.
No terceiro e último capítulo, discutiremos o processo de lumpemproletarização no Brasil. Nosso objetivo é demonstrar a singularidade desse processo em um país de capitalismo subordinado. Para isso, discutiremos as principais mudanças ocorridas nas relações de trabalho e o toyotismo no Brasil, a relação entre neoimperialismo, capitalismo e neoliberalismo subordinado. Por fim, realizaremos uma discussão sobre desemprego e intensificação da lumpemproletarização com o intuito de evidenciar que no capitalismo subordinado o processo de lumpemproletarização tende a ser intensificado. Para demonstrar essa intensificação, iremos analisar as condições de existência de uma das frações de classe do lumpemproletariado mais degradadas no capitalismo: os sem‐tetos ou população em situação de rua (PSR). Para essa análise, contaremos com as informações fornecidas pelos estudos realizados por Maria Lucia Silva e que resultaram na obra Trabalho e população em situação de rua no Brasil (2009).
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ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E LUMPEMPROLETARIADO A proposta central desse trabalho é compreender o
lumpemproletariado à luz de uma teoria das classes sociais, analisando‐o como uma classe social composta pela totalidade do exército industrial de reserva (desempregados, sem‐teto, mendigos, subempregados, prostitutas etc.). Constata‐se que o processo de lumpemproletarização, que emerge concomitantemente ao processo de proletarização, no período de consolidação do capitalismo, vem se expandindo no regime de acumulação integral, tanto nos países imperialistas quanto nos países subordinados, de uma forma jamais vista em outros períodos do capitalismo, exceto no período de emergência desse modo de produção. Com o propósito de elucidar tal constatação analisaremos o processo de lumpemproletarização no regime de acumulação extensivo (da Revolução industrial até aproximadamente 1871) e, posteriormente, no regime de acumulação integral para, a partir daí, buscar constatar que esse processo vem sofrendo uma expansão na contemporaneidade semelhante à épocado primeiro regime de acumulação capitalista, dominante em quase todo o século XIX1.
Para melhor compreender a dinâmica da acumulação capitalista, suas leis, tendências e contra tendências, assim como a formação do lumpemproletariado e seu papel no processo de acumulação de capital, realizaremos, nesse capítulo, uma discussão acerca das múltiplas determinações que envolvem o modo de produção capitalista, a produção e extração de mais‐valor (sua determinação fundamental), a lei geral da acumulação capitalista e o processo de lumpemproletarização derivado dela. Visando, também, compreender as mudanças históricas pelas quais o capitalismo sofre em suas formas (processo de valorização, formas estatais e relações internacionais), a história do capitalismo será apresentada aqui enquanto uma sucessão de regimes de acumulação, demonstrando as especificidades do regime
1 Para uma análise pormenorizada do regime de acumulação extensivo, passando pelo intensivo e intensivo‐extensivo, até chegar ao regime de acumulação integral, cf. VIANA (2009).
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de acumulação integral e suas implicações no processo de ampliação do lumpemproletariado na contemporaneidade (VIANA, 2009). A dinâmica da produção capitalista de mercadorias
A sociedade capitalista, como já afirmara Marx, se caracteriza por
uma “imensa coleção de mercadorias”, porém não haveria nenhuma novidade histórica nessa sociedade se a forma como se produz tais mercadorias não fosse absolutamente inédita na história da humanidade, pois é verdade que a análise da mercadoria por ela mesma não revela o segredo da exploração capitalista. Por conseguinte, poderíamos, então, questionar sobre as razões que levaram Marx a iniciar sua obra sobre o modo de produção capitalista (O capital, vol. 1, 1867) com a análise sobre a mercadoria e porque, ainda hoje, vários autores, críticos da economia política, continuam a iniciar suas análises sobre tal modo de produção, também, pela mercadoria, ao invés de irem direto ao processo de produção e exploração dos trabalhadores pelo capital?
O essencial no modo de produção capitalista não se encontra simplesmente no fato desse modo de produção se caracterizar como uma “imensa coleção de mercadorias”, mas sim no fato de tal produção de mercadorias se equivaler à produção e extração de mais‐valor. No entanto,
este essencial não poderia ser estudado se não tivesse previamente mostrado que a mercadoria é a forma social que tem de revestir qualquer bem na economia capitalista. A mercadoria é o fenômeno concreto da produção capitalista; enquanto fenômeno, ela não basta para caracterizar o capitalismo, mas impõe a sua forma particular a todos os fatores e produtos do trabalho efetuado nas condições capitalistas. A primeira condição da compreensão do capital (e, como se verá, do seu devir) é ver bem, nos elementos do processo econômico capitalista, não apenas objetos, bens de produção e de consumo, forças de trabalho, produtos materiais desempenhando uma função técnica determinada, mas mercadorias que possuem valor (BARROT, 1977, p. 54).
É exatamente por conta dessa novidade que Marx inicia sua obra O
Capital (1967) com a análise sobre a mercadoria. Ele foi o primeiro teórico a elaborar uma teoria sistematizada do modo de produção capitalista, por isso é a partir dele que buscaremos compreender as
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determinações desse modo de produção. O propósito de Karl Marx na sua obra O Capital (1967) consiste em revelar a exploração da sociedade capitalista que possui seu fundamento na extração de mais‐valor no processo de produção de mercadorias. Visando compreender a essência (no sentido ontológico) da mercadoria, Marx, a partir do “método da abstração”, procura descobrir suas múltiplas determinações e sua determinação fundamental.
No capítulo A mercadoria do volume I de O capital, o autor inicia questionando o que determina o valor da mesma. Para responder a essa questão, primeiramente, torna‐se necessário, segundo Marx, saber o que há de comum em todas as mercadorias. Ele acaba afirmando que o que há de comum é que as mesmas são produtos do trabalho humano e que o tempo de trabalho socialmente necessário gasto em sua produção está diretamente relacionado com a determinação do seu valor.
No entanto, cabe indagar: como Marx chega a tal conclusão? A mercadoria é ao mesmo tempo valor de uso e valor de troca. Enquanto valor de uso a mercadoria deve possuir utilidade para, enfim, ser consumida. Tais valores de uso são portadores materiais do valor de troca, ou seja, são mercadorias. Tomemos os seguintes exemplos para melhor compreender a questão dos valores. Se 01 determinado caminhão equivale a 03 determinados automóveis ou 02 determinados tratores, logo 03 desses automóveis valem o mesmo que 02 desses tratores ou 01 desse caminhão. Por conseguinte, possuem a mesma expressão do seu conteúdo. Sendo assim, pode‐se concluir que 03 automóveis e 02 tratores, assim como 01 caminhão,possuem algo de comum e da mesma grandeza, mesmo sendo, enquanto valores de uso, coisas distintas. Percebe‐se, então, que há uma “terceira coisa” além dos valores de uso e de troca nas quais eles se reduzem. Em que consiste essa “terceira coisa”?
As mercadorias enquanto valores de uso possuem diferenças qualitativas e enquanto valores de troca possuem apenas diferenças quantitativas. Enquanto valores de troca, as mercadorias possuem apenas uma “propriedade comum”: são produtos do trabalho humano.Assim, Marx descobre em que consiste a “terceira coisa” e afirma:
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deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a ela apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. Entretanto, o produto do trabalho também já se transformou em nossas mãos. Se abstraímos o seu valor de uso, abstraímos também os componentes e formas corpóreas que fazem dele valor de uso. Deixa já de ser mesa ou casa ou fio ou qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades sensoriais se apagaram. Também já não é o produto do trabalho do marceneiro ou do pedreiro ou do fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados, e desaparecem também, portanto, as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar‐se um do outro para reduzir‐se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato (1985, p. 47).
Dessa forma, o que se pode perceber é que as mercadorias possuem
como “propriedade comum” o fato de serem produtos do trabalho humano, “uma simples gelatina de trabalho humano indiferenciado”, trabalho humano abstrato. Conclui‐se, então, que é o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir uma mercadoria que determina seu valor. Vale destacar que o autor está tratando do tempo médio social de trabalho e não do tempo de trabalho efetivo, e trata‐se do valor da mercadoria e não do seu preço. A diferença de um valor em relação a outro é meramente quantitativa. A grandeza quantitativa do valor é medida através do tempo de trabalho gasto na sua produção que, por sua vez, é medido pela sua duração (horas, dias etc.). Porém, esse trabalho é “trabalho abstrato”, ou seja, trabalho social médio e não “trabalho concreto”. Sendo assim,
é portanto, apenas o quantum de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário para produção de um valor de uso o que determina a grandeza de seu valor. A mercadoria individual vale aqui apenas como exemplar médio de sua espécie. Mercadorias que contêm as mesmas quantidades de trabalho ou que podem ser produzidas no mesmo tempo de trabalho, têm, portanto, a mesma grandeza de valor. O valor de uma mercadoria está para o valor de cada uma das outras mercadorias assim como o tempo de trabalho necessário para a produção de uma está para o tempo de trabalho necessário para a produção de outra (MARX, 1985, p. 48).
O trabalho humano utilizado na produção de uma mercadoria
possui duplo caráter: trabalho concreto e trabalho abstrato. Primeiramente, o trabalho é produtor de valor de uso, produz para ser
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útil a determinadas necessidades. Por outro lado, tal trabalho é abstrato, produz mais valor, acrescenta valor à mercadoria. Tal duplicidade do trabalho se reproduz na mercadoria como valor de uso e valor de troca. A mercadoria enquanto coisa de valor é imperceptível. Somente representa valor quando expressa trabalho social e, consequentemente, o seu valor só pode ser expresso numa relação sócio mercantil de mercadorias para mercadorias.
Marx compreende o concreto (real) como sendo “síntese de múltiplas determinações”, mas que possui uma determinação fundamental. De acordo com o “método da abstração” desenvolvido por ele, o concreto‐dado é ponto de partida, visto que antes da pesquisa ele se encontra no nível das “representações cotidianas”, “senso comum” e não se apresenta de imediato em sua “essência”, mas a partir das abstrações atingimos o concreto‐determinado, pensado. Isto é,no início, temos o concreto‐dado, a representação cotidiana do fenômeno a ser estudado, ou seja, a aparência. Depois de pesquisar, através da abstração chegamos ao concreto‐pensado, determinado. Por conseguinte, o concreto‐dado é transpassado para o concreto‐pensado, possibilitando expressá‐lo, teoricamente, em sua totalidade(VIANA, 2006).
Dessa maneira, é que podemos afirmar que o preço da mercadoria é o concreto‐determinado, e o processo de abstração possibilitou chegar ao valor, sua determinação fundamental. Portanto, o que Marx busca fazer no capítulo A mercadoria é superar o concreto‐dado, a aparência, através da abstração, chegando à essência – determinação fundamental ‐ para assim chegar ao concreto‐determinado, que é a mercadoria em suas múltiplas determinações.
Resta, agora, sabermos que relações sociais concretas existem entre a produção de mercadorias e a definição do valor das mesmas, ou seja, de que forma se define o valor de uma mercadoria na sociedade capitalista?
2.1.1 – A produção de mais-valor e classes fundamentais
Creio não ser necessário realizar grandes análises para concluirmos
que a produção capitalista só ocorre se a mesma for geradora de lucro, ou seja, se a classe capitalista detentora dos meios de produção
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necessita, ao produzir mercadorias, vendê‐las no mercado por um valor superior aos custos da sua produção, consequentemente o valor final da comercialização deve ser maior do que os gastos com maquinaria, matérias‐primas e salários. Desse modo, todo capitalista
quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi‐la, os meios de produção e a força de trabalho, para as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais‐valia (MARX, 1985, p. 155).
Tanto as máquinas quanto as matérias‐primas apenas repassam
seus valores no processo produtivo, por conseguinte o trabalho deve ser processo de valorização, pois “como a própria mercadoria é unidade de valor de uso e valor de troca, seu processo de produção tem de ser unidade de processo de trabalho e processo de formação de valor” (MARX, 1985, p. 155). Então, devemos questionar de onde e de que maneira vem o acréscimo de valor?
Anteriormente já foi adiantado que o valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi‐la, portanto é a força de trabalho (capital variável) o único elemento que acrescenta valor à mercadoria. Dessa maneira,
a força de trabalho é uma mercadoria particular, completamente diferente dos meios de trabalho. Enquanto que estes últimos fornecem ao produto o seu valor, a força de trabalho não só fornece o seu próprio valor como também acrescenta o valor do trabalho que ela realiza. É criadora de trabalho; e, portanto, de valor. O seu consumo é produtivo: dá mais do que custou (BARROT, 1977, p. 58).
O processo de constituição do valor de determinado produto é
composto por diferentes determinações envolvidas na produção. De um lado temos aquilo que Marx denominou de capital constante, ou seja, “a parte do capital que se converte em meios de produção” – matérias‐primas, maquinaria e meios de trabalho em geral. Do outro lado encontra‐se o capital variável, isto é, a força de trabalho que além de reproduzir seus custos adiciona mais‐valor, gera excedente (MARX, 1985). Neste sentido, percebe‐se que o capital constante apenas repassa seus custos durante o processo de produção enquanto o capital variável,
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além de repassar seus custos, consiste no único elemento presente no processo produtivo capaz de agregar mais‐valor à mercadoria. Marx chama esse conjunto (capital constante + capital variável) de composição orgânica do capital (MARX, 1985a).
A composição orgânica do capital expressa, consequentemente, a tendência declinante da taxa de lucro médio, pois com o intuito de garantir a reprodução ampliada do capital, a classe capitalista investe cada vez mais em meios de produção (trabalho morto), que apenas repassa seus custos, e cada vez menos em força de trabalho (trabalho vivo) que é o único elemento gerador de mais‐valor. Portanto, se o elemento que apenas repassa custos amplia em detrimento do elemento que gera mais‐valor, desenvolve‐se a tendência declinante da taxa de lucro médio2. Tal tendência é de extrema importância para a compreensão da dinâmica do capitalismo e de suas transformações históricas, pois revela uma das potencialidades fundamentais causadora da crise capitalista.
A relação que se estabelece entre as duas classes fundamentais do capitalismo, ou seja, entre a burguesia e o proletariado, é uma relação de compra e venda, pois a burguesia compra no mercado tanto matérias‐primas, maquinaria e outros meios de trabalho, assim como a força de trabalho. Porém, essa última, ao contrário dos meios de trabalho, não apenas é consumida durante a produção, mas também é geradora, pois o acréscimo de valor que a força de trabalho realiza possibilita ao capitalista acumular capitais uma vez que a reposição dos custos e o dispêndio com força de trabalho – salários ‐ equivalem apenas a uma parcela do mais‐valor produzido. Já, “o valor do capital constante reaparece no valor do produto, mas não entra no novo produto‐valor criado” (MARX, 1985, p. 241).
Esse é o segredo da exploração capitalista: a existência do mais‐valor só é possível quando o proletariado se encontra completamente separado do resultado do seu trabalho, que passa a ser substituído por um salário equivalente apenas a uma parcela infinitamente menor do que o realmente produzido. Desta forma, percebe‐se que a relação entre
2 “Esta tendência é constituída devido ao desenvolvimento das forças produtivas, pois quanto mais desenvolvida é a tecnologia e quanto mais esta entra no processo de produção, menos se utiliza a força de trabalho, que é a fonte geradora de mais‐valor” (VIANA, 2009, p. 93).
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capitalista e proletariado é fundada na exploração de uma classe não produtora, mas que apropria do resultado de trabalho alheio não pago, sobre a classe produtora. Nesse sentido,
a chave do aumento do lucro é o aumento da parte não‐paga do dia de trabalho em relação à parte paga, aumento do produto excedente em relação ao produto necessário para fornecer os meios de subsistência do trabalhador, ou aumento da taxa de mais‐valia (EATON, 1965, p. 99).
Portanto, a produção capitalista de mercadorias corresponde à
produção de mais‐valor e esse pode ser obtido de duas formas. A primeira forma, denominada de mais‐valor absoluto, é produzida pelo prolongamento das jornadas de trabalho. A segunda forma, denominada de mais‐valor relativo, decorre da ampliação da produção no mesmo período de tempo ou até mesmo em jornadas de trabalho reduzidas. Cabe, por conseguinte, indagar: Como isso é possível? Como os operários podem produzir mais no mesmo período de tempo?
Historicamente a burguesia vem utilizando duas principais formas de ampliação da produtividade. Uma forma é a organização racionalizada do processo de produção a qual os operários passam a ser minuciosamente controlados, fiscalizados, rigidamente disciplinados, cronometrados e vigiados pelos especialistas nessa função, espécies de “agentes carcerários da produção” (BRAGA, 2009). Os horários para utilização do banheiro, realização de refeições e para saída de fumantes do local da produção vem sofrendo uma significativa diminuição.
Além dessas formas, ainda existe o sistema de multas por atraso, por destruição de ferramentas, por descuido com as máquinas, etc. Com isso, a classe capitalista objetiva evitar o desperdício de tempo necessário para a produção de mais‐valor, pois “o capital personificado, o capitalista, cuida de que o trabalhador execute seu trabalho ordenadamente e com o grau adequado de intensidade” (MARX, 1985, p. 244).Outra forma consiste no constante aperfeiçoamento tecnológico utilizado para o desenvolvimento de máquinas cada vez mais eficientes e produtivas. Dessa forma, os capitalistas garantem a ampliação da produtividade operária.
John Eaton, em sua obra Manual de economia política (1965), ainda nos apresenta outra estratégia capitalista que consiste na forma de pagamento de salários. Segundo ele,
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as formas de pagamento de salários constituem uma batalha entre o empregador e os sindicatos. Salário‐tarefa, ou seja, salário pago de acordo com a produção proporciona ao capitalista um meio de obrigar o trabalhador a fazer mais durante o dia de trabalho, já que disso depende quanto o trabalhador leva para casa. À primeira vista, pode parecer que o pagamento de salários‐tarefa contradiz o que dissemos anteriormente sobre os salários e o valor da força de trabalho, como correspondendo aproximadamente ao valor dos meios de subsistência do trabalhador. O pagamento “por peça”, ou seja, de acordo com a produção, sugere que quando esta se eleva, os salários se elevarão de forma correspondente. Isso só ocorre a prazo muito curto. A experiência de muitas décadas mostrou aos trabalhadores que os salários‐tarefa são, no final, fixados em preços baseados em salário‐tempo, e na soma de artigos que o trabalhador deve comprar para viver. Se a produção aumenta acentuadamente, então o preço pago unitariamente é logo reduzido. O salário‐tarefa de todo um dia de trabalho pode, é certo, ser um pouco mais do que o salário‐tempo do dia, mas a isso se contrapõe o fato de que a maior intensidade de trabalho aumenta as necessidades do trabalhador. Para o capitalista, porém, é compensador pagar pelo trabalho executado, já que essa produção extra aumenta o volume de mais‐valia numa proporção que excede consideravelmente qualquer extra pago em salários (EATON, 1965, p. 101).
A pedra angular da luta de classes no capitalismo, conforme já dizia
Marx, gira em torno da disputa pelo controle do tempo de trabalho, pois se de um lado a burguesia visa ampliar a extração de mais‐valor sobre o tempo de trabalho do proletariado, esse visa diminuí‐lo e devido aos interesses antagônicos dessas classes, o processo de valorização acaba por ser marcado pelo conflito. Por isso, a burguesia se vê coagida a desenvolver formas cada vez mais eficazes de controle sobre o trabalho operário, enquanto esse se vê também coagido a desenvolver formas de lutas que avancem em direção à diminuição do tempo de trabalho para extração de mais‐valor. Consequentemente,
isto ocorre devido ao fato de que é no próprio processo de trabalho, simultaneamente processo de valorização, que se dá a produção de mais‐valor. Desta forma, o trabalhador, ao resistir em utilizar toda a sua capacidade de trabalho, tende a diminuir a extração de mais‐valor. É por isso que surge uma luta nas unidades de produção, em que o capitalista busca controlar a força de trabalho para que ela nãodesperdice tempo e, por conseguinte, faça decair o seu lucro (VIANA, 2009, p. 49).
A determinação fundamental da organização do trabalho na
sociedade capitalista é a luta de classes entre burguesia e proletariado,
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porém é necessário compreender, de forma pormenorizada, como se relaciona burguesia e proletariado no processo de produção, como se dá a luta de classes e como a mesma interfere na organização do trabalho e na alteração dos regimes de acumulação.
O ser humano se humaniza ao realizar atividades essencialmente humanas, interferindo na natureza a partir do trabalho em cooperação com outros seres humanos, objetivando, dessa maneira, reproduzir as condições materiais da sua existência. Essa é a essência do trabalho autônomo, ou seja, a garantia da reprodução do próprio ser e sua auto realização total.Já o trabalho alienado é a negação da essência humana existente no trabalho, pois, com a divisão social do trabalho e a instauração do controle do processo de produção pelo não trabalhador, se institui a total separação entre o produtor e o produto e com isso o homem não produz mais as garantias das necessidades humanas, mas sim mercadorias que não lhe pertence (MARX, 2004).
A afirmação do capital realiza‐se na negação do proletariado uma vez que este, no processo de produção, desempenha atividades alheias às suas necessidades, não atinge através de suas potencialidades sua auto realização total, encontra‐se completamente separado dos produtos do seu trabalho e, dessa forma, aliena‐se. Segundo Marx,
otrabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar junto a si fora do trabalho e fora de si no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é, portanto, voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza evidencia‐se aqui tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge‐se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto sacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade do trabalho aparece para o trabalhador como se não fosse seu próprio, mas de outro, como se não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a outro (2004, p. 83).
Por conta desse caráter alienado do trabalho, o proletariado procura
incessantemente encontrar formas que garantam o mínimo da sua integridade física no trabalho e isso se evidencia nas inúmeras possibilidades e maneiras de resistência e luta contra a exploração do capital. Essas atitudes de resistência ocorrem de diversas formas, tais
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como as mais pacíficas e camufladas como a “operação tartaruga”, o absenteísmo, o atraso nos locais de trabalho, a destruição de peças e ferramentas que emperram o desenrolar da produção, as constantes idas ao banheiro e sua demora etc.
Vale lembrar que a luta operária pelo controle e diminuição do tempo de trabalho destinado à produção de mais‐valor representa apenas o primeiro momento da luta operária, ou seja, essa luta equivale ao momento imediato da luta de classes. Contudo, o interesse histórico do proletariado se funda na tendência em eliminar a existência do mais‐valor na sua totalidade3. Além dessas formas imediatas, as lutas contra a exploração do trabalho tendem a adquirir em momentos de crise e de radicalidade, uma postura mais nitidamente política4, tal como é perceptível nos processos de realização de greves que atingem caráter geral, com a ocupação de fábricas e auto‐organização da produção, no qual o proletariado deixa de ser uma “classe em si” para se tornar uma “classe para si”. Essa dinâmica acompanha o desenvolvimento capitalista desde o seu nascimento até os dias atuais e inúmeros exemplos históricos poderiam ser citados: As revoluções de 1848 na Europa, a Comuna de Paris em 1871, as experiências russas a partir dos sovietes em 1905 e 1917, a revolução alemã nas décadas de 1920, a ocupação de fábricas na Argentina do final da década de 1990 até
3 “Quais são os interesses históricos do proletariado? Abolir a relação‐capital, ou seja, as relações de produção capitalistas, o que significa abolir a classe capitalista, a si mesmo enquanto classe e a todas as demais classes. Mas os interesses históricos do proletariado não se limitam a esse trabalho destrutivo, pois, ao mesmo tempo em que deve abolir o modo de produção capitalista, ele deve construir um novo modo de produção. O processo de destruição é, aqui, ao mesmo tempo, um processo de construção. E como podemos apreender esse processo de construção, ou seja, a formação de um novo modo de produção. Isto só pode ser descoberto através da experiência histórica do movimento operário. Portanto, a compreensão do modo de produção capitalista em sua historicidade e a prática histórica da classe operária é o que nos permite descobrir quais são os interesses históricos desta classe. São destes interesses históricos que derivam os interesses imediatos” (VIANA, 2008, p. 87).
4O termo política empregado aqui é derivado da idéia de luta de classes em sentido amplo e não no sentido comumente adotado que resume a luta política às lutas parlamentares, eleitorais ou através de golpe armado visando à conquista do Estado. Uma vez que, para Marx, o fundamental para a compreensão de uma sociedade são suas relações de produção, logo este é por essência o local privilegiado da luta de classes e todas as demais lutas políticas derivam daí.
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aproximadamente 2004 e assim por diante. Essa é uma tendência intrínseca ao modo de produção capitalista.
Um amplo debate sociológico já existe em torno dessa mudança de postura do proletariado, porém não é nosso interesse resgatar tal debate, mas tão somente apresentá‐lo segundo a perspectiva do proletariado, ou seja, procurando compreender quem é essa classe social, como se relaciona com a sociedade capitalista e como enxerga tal sociedade a partir da experiência que mantém com a mesma. Em síntese, “essa perspectiva, segundo Marx, marcaria a unidade entre o que é visto e a forma como se vê” (Viana, 2007, p. 75).
A análise que Marx realiza sobre o proletariado consiste em uma análise sobre a ontologia do proletariado, sobre sua essência e não sua aparência. Sendo assim, é possível encontrar na teoria de Marx uma análise sobre o ser‐do‐proletariado, conforme explicitado na seguinte passagem: “não se trata de saber que objetivo este ou aquele proletário, ou até o proletariado inteiro, tem momentaneamente. Trata‐se de saber o que é o proletariado e o que ele será historicamente obrigado a fazer de acordo com este ser” (Marx & Engels, 1979, p. 55).
Nesse sentido, a resistência implementada pelo proletariado não visa apenas adquirir, de imediato, melhores condições de trabalho e vida, mas, também, a abolição do trabalho alienado e da extração de mais‐valor que é seu fundamento. Nesse processo histórico de enfrentamento o proletariado forma sua consciência de classe ao negar o trabalho alienado e a consciência heterodeterminada derivada dele, e busca afirmar na prática (trabalho autônomo) e, consequentemente, na consciência, sua autodeterminação. Portanto, constrói suas estratégias de lutas, abandona estratégias ultrapassadas e forja novos mecanismos de resistência e avanço da luta em direção à construção daquilo que Marx denominou de “livre associação de produtores”.
A luta de classes entre burguesia e proletariado, assim como a produção de mais‐valor, representa dois dos principais fundamentos do modo de produção capitalista. O processo de trabalho na sociedade capitalista é marcado por duas características centrais que consistem no fato do proletariado trabalhar sobre o controle da burguesia (trabalho heterogerido) que comprou sua força de trabalho e o fato do produto do trabalho ser apropriado pela burguesia, via extração de mais‐valor.
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Percebe‐se então que o trabalho é processo de valorização (MARX, 1985).
A luta de classes no processo de produção é mediada por um conjunto de relações que existem tanto dentro quanto fora do processo diretamente produtivo. Tal luta em torno do processo de produção de mais‐valor é a determinação fundamental do enfrentamento entre a classe capitalista e a classe operária no processo de produção de mercadorias (VIANA, 2009). No entanto, esse enfrentamento se expande para outras esferas das relações sociais. Basta percebermos que o conflito que se inicia no século XIX entre capitalistas e operários em torno da diminuição da jornada de trabalho operária (aproximadamente de 16 horas diárias) resulta numa alteração jurídico‐institucional que possibilita sua redução para 10 horas diárias e, posteriormente, 08 horas diárias. É nesse contexto que se inicia a reação burguesa para evitar a redução da taxa de mais‐valor, respondendo com a “organização científica do trabalho” elaborada por Friedrich Taylor em sua obra Princípios da Administração Científica (1987).
É importante destacar que burguesia e proletariado compõem as classes sociais fundamentais do modo de produção capitalista, mas que, no entanto, coexistem outras classes sociais que, inclusive, derivam da complexa relação que se estabelece entre essas classes fundamentais e da luta de classes no processo de produção. Uma dessas classes sociais, e que é objeto central desse estudo, é o lumpemproletariado. Conclui‐se que o modo de produção capitalista engendra tanto um processo de proletarização quanto um processo de lumpemproletarização, ou, como prefere Offe, uma proletarização ativa e uma proletarização passiva (OFFE, 1984). É sobre a dinâmica formadora do lumpemproletariado que, a partir de agora, prestaremos nossa análise.
2.1.2 O processo de lumpemproletarização
Para compreender a formação do lumpemproletariado no regime de
acumulação extensivo5, recorreremos, fundamentalmente, à análise de
5 “Predominante desde a revolução industrial até o final do século XIX, caracterizava‐se pelo predomínio da extração de mais‐valor absoluto, pelo Estado liberal e pelo neocolonialismo” (VIANA, 2009, p. 95).
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Marx contida na sua obra O Capital, vol. 2 (1985a). No capítulo XXIII do volume 2 de O Capital ‐ A lei geral da acumulação capitalista ‐ Marx procurou demonstrar que no processo capitalista de produção de mercadorias há uma tendência em promover uma acumulação ampliada de capital por um lado e por outro lado, há, também, uma tendência simultânea em promover o crescimento ampliado da miséria da classe trabalhadora. Segundo ele,
a acumulação de riqueza num pólo é, portanto, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância, brutalização e degradação moral no pólo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital (MARX, 1985a, p. 210).
A discussão teórica que Karl Marx realiza nesse capítulo, busca
compreender a lei geral da acumulação capitalista, suas tendências e contra tendências. Aqui ela será utilizada para pensar o processo histórico de formação do lumpemproletariado e sua dinâmica no regime de acumulação extensivo. Para isso, analisaremos o lumpemproletariado à luz de uma teoria das classes sociais, considerando‐o uma classe social composta pela totalidade do exército industrial de reserva. Desse modo, o conceito de lumpemproletariado equivale à classe social formada pelos indivíduos que se encontram marginalizados na divisão social do trabalho e alijados do mercado de consumo, e que compõem os setores mais empobrecidos de desempregados, mendigos, sem‐teto, prostitutas, delinquentes, subempregados etc. da sociedade capitalista.
Sendo assim, nossa análise se distancia de algumas análises dominantes e presentes nos discursos acadêmicos e científicos que busca compreender a sociedade a partir de uma dualidade abstrata que afirma a existência dos incluídos/excluídos sociais e que, no fundo, não consegue explicar muita coisa, pelo contrário, obscurece a totalidade das relações sociais ao ocultar toda a complexidade envolta no processo de lumpemproletarização que acompanha o desenvolvimento histórico de produção e reprodução do capitalismo e de suas classes sociais.
Nesse primeiro momento, o objetivo é resgatar a discussão realizada por Karl Marx sobre o processo de acumulação de capital e sua dinâmica geradora de uma superpopulação relativa ou do lumpemproletariado. Na primeira parte deste capítulo intitulada
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Demanda crescente da força de trabalho com a acumulação, com composição constante do capital, o autor já apresenta o assunto geral da sua discussão, ou seja, da influência que o crescimento do capital exerce sobre o destino da classe trabalhadora. Marx considera que a composição do capital e suas modificações constituem os fatores mais importantes nessa investigação.
Intentando melhor compreender essa análise, trilharemos o mesmo caminho do autor, reconstituindo seu pensamento. De acordo com ele, a composição do capital deve ser entendida a partir de uma dupla perspectiva: primeiramente ele faz uma análise da perspectiva do valor na qual afirma que a composição orgânica do capital é determinada pela proporção em que ele se reparte em capital constante (valor dos meios de produção) e capital variável (valor da força de trabalho), soma global dos salários. Posteriormente, ele apresenta a perspectiva da matéria, ou seja, como ela funciona no processo de produção. Nessa análise Marx afirma que cada capital se reparte em meios de produção (composição valor) e força de trabalho viva (composição técnica)(MARX, 1985a).
A produção de capital é formada por dois componentes existentes no processo de produção denominado de trabalho morto (matéria‐prima, maquinaria e tecnologia em geral) e trabalho vivo que consiste na força de trabalho operária. Como vimos anteriormente, o primeiro não tem capacidade de gerar valor e apenas repassa seus custos durante o processo produtivo, já o segundo é a única força geradora de capital, ou seja, acrescenta à mercadoria mais do que o valor gasto na sua produção. Por isso esse capital extra é denominado mais‐valor. Sendo assim, após um ciclo gerador de mais‐valor, a burguesia tende a aplicar parte desse na expansão da produção o que implica necessidade de ampliação do mercado consumidor e maior demanda por força de trabalho.
Nesse sentido, o
crescimento do capital implica crescimento de sua parcela variável convertida em força de trabalho. Uma parcela da mais‐valia transformada em capital adicional precisa ser sempre retransformada em capital variável ou fundo adicional de trabalho (MARX, 1985a, p. 187).
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No século XIX, com o passar dos anos o número de trabalhadores ocupados cresceu em relação aos anos anteriores e com isso chegou‐se ao ponto das necessidades da acumulação crescer além da costumeira oferta de trabalho e assim tendeu a ocorrer um aumento salarial. Porém, independentemente, do aumento salarial e da geração de condições mais favoráveis para a classe operária e sua multiplicação, isso em nada modificou o caráter básico da produção capitalista. Em outras palavras, a exploração do proletariado em sua totalidade mantém‐se a mesma, visto que essa exploração revela‐se na extração de mais‐valor (sua lei absoluta) e não no preço do salário, seja ele qual for. É válido ressaltar que o aumento salarial implica apenas na diminuição quantitativa de trabalho não pago (mais‐valor) que o trabalhador “concede” ao capitalista, no entanto, “essa diminuição nunca pode ir até o ponto em
que ela ameace o próprio sistema” (MARX, 1985a, p. 192). A acumulação capitalista promove na mesma escala a ampliação da classe trabalhadora, visto que
a reprodução da força de trabalho, que incessantemente precisa incorporar‐se ao capital como meio de valorização, não podendo livrar‐se dele e cuja subordinação ao capital só é velada pela mudança dos capitalistas individuais a que se vende constitui de fato um momento da própria reprodução do capital. Acumulação do capital é, portanto, multiplicação do proletariado (MARX, 1985a, p. 188).
Marx demonstra que esse processo, no entanto, tende a promover
um decréscimo na acumulação. Isso significa que a partir do momento em que ocorre uma diminuição na acumulação, ocorre, do mesmo modo, uma diminuição da necessidade por força de trabalho, ou seja, a desproporção que existia entre capital e força de trabalho ‐ razão do aumento salarial ‐ desaparece (momentaneamente) e assim o processo de acumulação capitalista elimina seus próprios obstáculos. Logo, o salário volta a decrescer. Adverte‐se, no entanto, que até aqui Marx analisava somente uma fase particular desse processo, ou seja, “aquela em que o crescimento adicional de capital ocorre com composição técnica do capital constante. Mas o processo ultrapassa essa fase” (MARX, 1985a, 193).
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O crescimento absoluto do capital durante seu transcurso histórico é reflexo da sua capacidade de ampliar o desenvolvimento da produtividade do trabalho social tornando‐a sua principal alavanca de acumulação. A principal expressão desse crescente desenvolvimento da produtividade do trabalho advém do volume crescente dos meios de produção em comparação com a força de trabalho, ou seja, “no decréscimo da grandeza do fator subjetivo do processo de trabalho, em comparação com seus fatores objetivos” (MARX, 1985a, p. 194). Nesse momento Marx já está tratando da mudança que a composição técnica do capital (força de trabalho viva) sofre no decurso do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Se na primeira fase de acumulação a multiplicação do capital representava multiplicação do proletariado, agora essa relação tende a se inverter, pois
essa mudança na composição técnica do capital, o crescimento da massa dos meios de produção, comparada à massa da força de trabalho que os vivifica, reflete‐se em sua composição em valor, no acréscimo da componente constante do valor do capital à custa de sua componente variável (MARX, 1985, p. 194).
Aqui já é possível perceber que no processo de desenvolvimento
capitalista, a parte do mais‐valor reconvertida na ampliação da produção via aumento do trabalho morto (maquinaria e tecnologia em geral) tende a ultrapassar significativamente o trabalho vivo ou o componente variável do capital orgânico (força de trabalho) e, consequentemente, diminui a demanda por força de trabalho aumentando o desemprego. Portanto,
esse movimento no sentido de acrescer a parte das máquinas em relação à força‐de‐trabalho, a aumentar a produtividade do trabalho, tende a diminuir a intensidade da demanda de força‐de‐trabalho pelos capitalistas, tende, por conseguinte, a criar desemprego, no caso em que oferta de força‐de‐trabalho pelos trabalhadores diminua também. O progresso técnico, realizado em condições capitalista de produção, é assim um fator de expulsão de empregos pelo capital (SALAMA & VALIER, 1975, p. 86).
Com essa mudança o capitalismo contrai uma tendência a tornar
supérflua ou subsidiária uma parcela populacional significativa da classe trabalhadora que passa a ampliar o lumpemproletariado. Vejamos melhor esse processo.
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Inicialmente a acumulação de capital aparece apenas como uma ampliação quantitativa, porém, percebe‐se que ela realiza‐se também numa alteração qualitativa ininterrupta de sua composição com ampliação crescente dos meios de produção, tais como maquinaria e tecnologia em geral, em detrimento da força de trabalho empregada numa velocidade infinitamente maior do que a anteriormente existente. O resultado dessa alteração qualitativa apresenta‐se da seguinte forma:
a acumulação capitalista produz constantemente – e isso em proporção à sua energia e às suas dimensões ‐ uma população trabalhadora adicional relativamente supérflua ou subsidiária, ao menos concernentes às necessidades de aproveitamento por parte do capital (...) A população trabalhadora produz, portanto, em volume crescente, os meios de sua própria redundância relativa. Essa é uma lei populacional peculiar ao modo de produção capitalista, assim como, de fato, cada modo de produção histórico tem suas leis populacionais particulares, historicamente válidas (MARX, 1985, p. 199‐200).
Marx denominou essa população trabalhadora supérflua de
“superpopulação relativa” e a compreendeu como parte imprescindível do funcionamento do modo de produção capitalista, pois
ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta, como se ele o tivesse criado à sua própria custa. Ela proporciona às suas mutáveis necessidades de valorização o material humano sempre pronto para ser explorado, independente dos limites do verdadeiro acréscimo populacional (MARX, 1985, p. 200).
Além da função de mão‐de‐obra disponível para as necessidades do
capital, porém nem sempre utilizada, e em grande quantidade na reserva, o exército industrial de reserva cumpre outra função essencial no capitalismo que é a de pressionar os salários para baixo. Ele transforma‐se, assim, numa das principais alavancas da acumulação capitalista uma vez que a oscilação dos salários passa a ser regulada pelo movimento de expansão e contração desse contingente populacional formado pelo exército industrial de reserva. Ao contrário da ideologia populacional malthusiana6 que possui uma concepção
6“A lei da população de Malthus se fundamenta na relação entre ‘meios de subsistência’ e ‘aumento populacional’ (e isto gera sua explicação sobre as causas da fome e da miséria). Segundo Malthus, a população cresce em progressão geométrica (2, 4, 8,
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abstrata e ligada aos interesses de classe da burguesia, a teoria da população em Marx busca analisar a dinâmica populacional no interior do modo de produção capitalista, pois
a dinâmica populacional não pode ser compreendida se extraída, arrancada para fora, do conjunto das relações sociais nas quais emerge. Este pressuposto metodológico será seguido por Marx na sua teoria da população, que é, na verdade, uma teoria da dinâmica populacional sob o capitalismo (VIANA, 2006, p.1011).
Segundo Marx, o exército industrial de reserva existe em diversas
ocasiões possíveis e todo trabalhador o compõe durante todo o tempo em que está desempregado parcial ou inteiramente. Esse exército de reserva ou superpopulação relativa possui três formas: líquida, latente e estagnada. Nos grandes centros industriais modernos do século XIX os trabalhadores constantemente eram ora repelidos, ora atraídos em maior proporção. Isso ocorre de tal forma que, mesmo em proporção decrescente em relação à ampliação da produção, o número de trabalhadores ocupados crescia. Nesse caso a superpopulação existe em forma líquida (fluente).
É certo que a acumulação capitalista exige um número crescente de força de trabalho, porém em proporção cada vez menor em relação ao capital constante. Por isso a indústria necessita de trabalhadores até sua idade adulta, todavia atingida tal idade o trabalhador se encontrava de tal forma exaurido que somente uma pequena parcela continuava sendo empregada enquanto maior parte é demitida, pois “está constitui um elemento da superpopulação fluente, que cresce com o tamanho da indústria. Parte emigra e, de fato, apenas segue atrás o capital emigrante” (Marx, 1985, p. 207). Portanto, o capital necessita de massas maiores de trabalhadores em idade jovem e massas menores em idade adulta. Por conta dessa realidade é que mesmo existindo uma grande parcela da população desocupada havia milhares de queixas reclamando a necessidade de braços para o trabalho. É preciso lembrar que além da baixa expectativa de vida entre os trabalhadores, o
16...) e a produção de alimentos (meios de subsistência) em progressão aritmética (1,2,3,4...), o que geraria a escassez, a fome. Marx é um severo crítico dessa concepção, opondo‐lhe tanto a questão metodológica quanto os seus equívocos teóricos derivados de sua concepção metafísica, ligada a determinados interesses de classe” (VIANA, 2006, p. 1011).
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desgaste da força de trabalho era tão grande que mal o trabalhador atinge a idade mediana “ele cai nas fileiras dos excedentes ou passa de um escalão mais alto para um mais baixo”. A solução encontrada pelo capital para esse problema era a promoção de casamentos precoces entre a classe trabalhadora e a premiação para as famílias que oferecessem seus filhos para a exploração.
A segunda forma de superpopulação relativa ‐ latente ‐ apontada por Marx é proveniente da consolidação do capitalismo na agricultura e que tende a promover uma demanda decrescente absoluta de força de trabalho. Deste modo, a população trabalhadora rural sofre uma repulsão não acompanhada de maior atração e, consequentemente,
parte da população rural encontra‐se, por isso, continuamente na iminência de transferir‐se para o proletariado urbano ou manufatureiro e à espreita de circunstâncias favoráveis a essa transferência. Essa fonte da superpopulação flui, portanto, continuamente. Mas seu fluxo constante para as cidades pressupõe uma contínua superpopulação latente no próprio campo, cujo volume só se torna visível assim que os canais de escoamento se abalam excepcionalmente de modo amplo. O trabalhador rural é, por isso, rebaixado para o mínimo do salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo (MARX, 1985, p. 207‐208).
A terceira forma de superpopulação relativa denominada de
estagnada é composta por parcela do exército ativo de trabalhadores, no entanto ocupada de forma bastante irregular. Essa categoria fornece ao capital fonte inesgotável de força de trabalho “disposta” a ser explorada uma vez que sua condição de vida encontra‐se muito abaixo do nível normal médio da classe trabalhadora e que, portanto, faz dessa população uma “[...] base ampla para certos ramos de exploração do capital. É caracterizada pelo máximo do tempo de serviço e mínimo de salário [...] Seu volume se expande na medida em que, com o volume e a energia da acumulação, avança a ‘produção da redundância’” (MARX, 1985, p. 208).
Finalmente a camada mais miserável da superpopulação relativa e que reside na desgraça do pauperismo. Conforme afirma Bellon,
o último resíduo da superpopulação relativa habita o inferno do pauperismo. Abstraindo dos vagabundos, dos criminosos, das prostitutas, dos mendigos e de todo esse mundo a que se chama as classes perigosas, esta camada social
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compõe‐se de três categorias: os desempregados capazes de trabalhar; os filhos dos órfãos; enfim as vítimas da indústria: doentes estropiados, viúvas, trabalhadores idosos e trabalhadores desqualificados (1975, p. 44).
Portanto, aqui reside a lei geral da acumulação capitalista: quanto
maior a riqueza social e a grandeza absoluta do proletariado e sua força produtiva, tanto maior o exército industrial de reserva ou, conforme definido por nós, o lumpemproletariado. Nesse sentido, portanto,
quanto maior, finalmente, a camada lazarenta da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior o pauperismo oficial. “Essa é a lei absoluta geral da acumulação capitalista. Como todas as outras leis, é modificada em sua realização por variadas circunstâncias” (MARX, 1985, p. 209).
Ao encerrar o resgate da análise de Marx sobre A lei geral da
acumulação capitalista concluímos que essa análise corrobora a afirmação e percepção que esse autor possuía desde o início dos seus trabalhos germinais, escritos em Paris em 1844, e que em determinado momento assim protestava:
o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral (MARX, 2004, p. 80).
O conceito de lei a que se refere Karl Marx no XXIII capítulo do
volume 2 de O Capital deve ser entendido aqui como equivalente a tendência. Nesse sentido, sua reflexão aponta para uma tendência existente no capitalismo de gerar tanto riqueza, quanto miséria em proporções diretas ao avanço das potencialidades produtivas. Isto significa que o lumpemproletariado é resultado da própria dinâmica do modo de produção capitalista e que, portanto, essa classe social, assim como suas classes fundamentais ‐ a burguesia e o proletariado ‐ são intrínsecas a esse modo de produção.
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Antes de iniciarmos a discussão do próximo subtítulo gostaríamos de melhor explicitar nosso debate acerca do lumpemproletariado enquanto classe social. Apesar de Marx não ter promovido uma análise pormenorizada do lumpemproletariado, do mesmo modo como ele não elaborou de forma sistematizada uma teoria das classes sociais, ainda sim é possível encontrar ao longo de sua vasta obra elementos que nos possibilitem recuperar alguns pontos essenciais para a reconstrução de uma teoria das classes sociais em Karl Marx. O próprio lumpemproletariado em diversos momentos e obras discutidas por Marx7 aparece como compondo uma classe social. No entanto tal aparecimento não ocorre de forma aprofundada e teorizada sistematicamente (VIANA, 2011).
Aliado à falta de uma teoria explícita das classes sociais na obra de Marx, outro problema nos impossibilita de recorrer completamente a esse autor para compreender o lumpemproletariado no capitalismo contemporâneo. O principal problema, nesse caso, seria o que Viana denomina de senectudes, ou seja, “os aspectos inatuais devido às mudanças históricas, nas quais as mudanças nas relações de produção e desenvolvimento capitalista promoveram emergência e alteração na divisão de classes e no interior delas [...]” (VIANA, 2011, p. 08).
Sendo assim, não é possível analisar o lumpemproletariado somente a partir do que Marx escreveu, pois devido a tais senectudes e limites das próprias análises realizadas por ele sobre essa classe social, torna‐se de extrema importância ressignificar o conceito de lumpemproletariado para que esse dê conta da realidade concreta na contemporaneidade. Nossos esforços caminham nesse sentido e seguem as contribuições realizadas por Viana na sua obra A teoria das classes sociais em Karl Marx (2011).
Em nossa análise, o lumpemproletariado é ressignificado na contemporaneidade a partir de uma teoria marxista das classes sociais.
7 Para constatar o que aqui está sendo afirmado, basta recorrer às análises realizadas por Marx sobre o lumpemproletariado e perceber que as mesmas estão inseridas em uma discussão mais ampla sobre as classes sociais e suas lutas. Logo, é possível perceber que o lumpemproletariado entra nessa discussão enquanto uma dessas classes sociais envolvida na dinâmica da luta de classes. Para isso ver as seguintes obras de Marx: O Manifesto comunista (1998); O dezoito brumário (1997); As lutas de classes na França – de 1848 a 1850 (2008).
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No entanto, não ficamos presos à análise que Karl Marx realiza sobre o lumpemproletariado, o que não significa que abandonamos as contribuições desse autor para pensar tal classe social, mas tão somente que procuramos ir além dele sem necessariamente abandoná‐lo. Em outras palavras, utilizamos as contribuições existentes ao longo de sua vasta obra para pensar o conceito de classes sociais. Dessa forma, afirmamos que o lumpemproletariado é composto pela totalidade do exército industrial de reserva (desempregados, subempregados, mendigos, sem‐teto, prostitutas etc.) uma vez que os indivíduos que compõem essa totalidade possuem características em comum e que possibilitam sua definição como classe, da mesma forma divisões apontadas pelo conceito de frações de classe. Assim como as demais classes sociais do capitalismo, é o seu modo de vida que possibilita sua unificação como classe. No entanto, ao contrário das demais classes sociais que são unificadas a partir da sua posição na divisão social do trabalho capitalista, o lumpemproletariado se unifica pela condição de marginalidade na divisão social do trabalho e tal condição o torna uma classe social (VIANA, 2012).
Como já foi dito, nenhum indivíduo encontra‐se fora da divisão das classes sociais, isto é, todos os indivíduos pertencem à determinada classe social. Sendo assim, resta então responder as seguintes questões: A que classe social pertencem aqueles que se encontram marginalizados da divisão social do trabalho, ou seja, a que classe social pertencem desempregados, subempregados, sem‐tetos, mendigos, prostitutas etc.? Uma vez que os termos exército industrial de reserva e superpopulação relativa não expressam nenhuma classe social, torna‐se necessário encontrar a classe social na qual a totalidade desse exército e dessa superpopulação pertence. Segundo nossa análise, tal classe social é o lumpemproletariado e o que nos possibilita essa afirmação é o fato de que toda essa gama heterogênea de frações de classe que compõe o lumpemproletariado pode ser unificada em torno de um elemento comum a todas elas: a condição de marginalidade na divisão social do trabalho.
Trata‐se de um grande equívoco considerar os desempregados como pertencentes à classe trabalhadora conforme fazem diversos
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teóricos8. Esse é o caso da autora Maria Lucia Lopes da Silva que em sua obra Trabalho e população em situação de rua no Brasil considera que
os desempregados de longa duração e a população em situação de ruanão constituem uma classe isoladamente. Mas é certo também que têm uma vinculação de classe. A não propriedade de meios de produção e a subsistência pela venda de sua força de trabalho são condições que os caracterizam como parcelas da classe trabalhadora, embora, na situação em que se encontram, não estejam conseguindo realizar nem a venda da sua força de trabalho (2009, p. 129‐130).
Ora, como alguém pode pertencer à classe trabalhadora ou ao
proletariado, como nós preferimos denominar os trabalhadores que produzem mais‐valor, sem estar empregada em alguma atividade laboral, sem produzir mais‐valor? Para nós, os indivíduos antes pertencentes à classe trabalhadora em geral ou ao proletariado compõem o lumpemproletariado durante todo o tempo em que estão desempregados parcial ou inteiramente, independente do período em que se encontram nessa condição, seja uma semana, um mês, um ano ou o tempo que for.
Formação e desenvolvimento do lumpemproletariado
Com o propósito de responder a um dos problemas centrais desse
trabalho, ou seja, as determinações da expansão do lumpemproletariado na contemporaneidade, analisaremos, primeiramente, a formação e desenvolvimento dessa classe social no regime de acumulação extensivo para, no próximo capítulo, analisar as multiplicidades de determinações que envolvem a expansão dessa classe no regime de acumulação integral e suas consequências, tanto no
8 Alguns casos são ilustrativos dessa interpretação. Recentemente em uma mesa‐redonda ocorrida durante o I Simpósio Trabalhadores e a Produção Social, promovido pelo Centro de Memória Operária (CEMOP), entre os dias 19 a 21 de outubro de 2011, na cidade de Sumaré/SP, todos os palestrantes (Andréia Galvão/UNICAMP, Jair Pinheiro/UNESP, Maria Orlanda/UNESP, Marcelo Badarós/UFF) deram a mesma resposta à minha pergunta que questionava se os desempregados argentinos que compunham o movimento piquetero eram membros da classe trabalhadora ou do lumpemproletariado? A resposta foi que tais desempregados pertenciam à classe trabalhadora.
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capitalismo imperialista quanto no capitalismo subordinado (especificamente na Argentina e no último capítulo no Brasil).
Dessa forma, objetivamos apreender as mudanças e permanências, tanto formais, quanto essenciais, das tendências histórico‐sociais que o lumpemproletariado possui na contemporaneidade. Para isso, analisaremos o lumpemproletariado enquanto uma classe social que é determinada historicamente e que, portanto, seu comportamento social e político tende a ser determinado de forma diferenciada em contextos históricos distintos. Por conseguinte, o lumpemproletariado e suas tendências não serão tratados aqui de forma estanque, como se possuísse uma essência no seu ser‐de‐classe que sempre o coagisse a adotar posturas políticas conservadoras e reacionárias, estando passivo de ser frequentemente cooptado como sugere diversos teóricos que o analisaram (GUIMARÃES, 2008; FREITAS, 2010).
A transformação de dinheiro, mercadorias, meios de produção e de subsistência em capital só pode ocorrer em determinadas circunstâncias que se apresenta da seguinte maneira. A existência no mercado de duas espécies de possuidores de mercadorias é essencial, pois de um lado estão os possuidores de dinheiro, meios de produção e subsistência e que tem como finalidade valorizar o montante de dinheiro que possui através da compra de força de trabalho alheia, do outro lado “trabalhadores livres” dispostos a venderem sua única mercadoria, a força de trabalho (MARX, 1985a). “Com essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista” (MARX, 1985a, p. 262).
Para os nossos intentos cabe indagar: qual é a origem desses indivíduos possuidores unicamente da mercadoria força de trabalho na sociedade capitalista? Na sociedade capitalista que emerge a partir daí, todos os indivíduos “dispostos” a venderem sua força‐de‐trabalho terão a venda da sua mercadoria garantida nesse mercado? Ou uma parcela significativa desses indivíduos irá compor outra classe social e contribuirão com o processo de produção capitalista de outras maneiras, assim como podem, enquanto classe, contribuir com sua destruição? E dessa forma podemos, então, acreditar que tal classe pertence à modernidade e, consequentemente, só poderá ser abolida com a abolição do capitalismo?
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A partir do final da segunda metade do século XIV a servidão se encontra praticamente abolida na Inglaterra. O grosso da população rural inglesa era constituído nessa época, e principalmente no século XV, de camponeses livres e economicamente autônomos, que nos seus momentos livres trocavam sua força de trabalho por um assalariamento nas grandes propriedades fundiárias. Além dos salários esses camponeses recebiam um terreno arável de aproximadamente quatro acres e possuíam o direito de usufruir das propriedades comunais, nas quais criavam seu gado e extraíam os elementos necessários para aquecer seus lares e preparar seus alimentos, tais como a lenha e a turfa.
O desenvolvimento dos grandes centros industriais ingleses, juntamente com o crescimento paulatino da sua população, está diretamente relacionado com as grandes transformações que veio ocorrendo, desde aproximadamente o século XIV até o século XVIII, na propriedade da terra. De forma geral, esse processo ficou denominado de cercamentos (enclosures)9 e foi caracterizado por uma intensa e violenta onda de desapropriação camponesa de suas propriedades e das terras comunais, acompanhada da expulsão de milhares de camponeses para as nascentes cidades.
Em diversos momentos em toda a história inglesa desse período, a população camponesa foi violentamente desapropriada e obrigada a migrar para os grandes centros urbanos industriais. Dessa forma era fornecido à indústria capitalista aquilo que ela necessitava para transformar dinheiro, maquinaria e matérias‐primas em capital, ou seja, a indústria necessitou de indivíduos completamente despojados dos meios materiais garantidores da sua existência e sobrevivência para que assim pudessem “livremente” vender sua força de trabalho aos capitalistas. Aqui reside, sinteticamente, portanto, a fórmula encontrada pela nascente burguesia inglesa para dar início à produção capitalista de mercadorias.
9 O cercamento consistiu na prática adotada pelos grandes latifundiários de cercar os campos, acompanhado da expulsão dos camponeses que ali residiam e trabalhavam, com o intuito de utilizar a terra visando à obtenção de maiores lucros. A prática mais comum era a de cercar os campos para a criação de ovelhas, que passava a representar uma possibilidade de maiores lucros na venda da sua lã para as nascentes indústrias têxteis. Essa prática se inicia ainda no final do século XV, mas adquire fôlego e intensidade a partir do século XVI.
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O resultado direto dessa expropriação/expulsão cruel e violenta consiste no processo de proletarização da mão‐de‐obra camponesa migrada para as cidades e a formação de um mercado urbano interno. Porém, a capacidade de absorção dessa mão‐de‐obra pelas nascentes indústrias possuía uma velocidade infinitamente menor do que o crescimento do número de camponeses expulsos do campo. Isso acabou por promover, também, um processo de lumpemproletarização que está na origem do capitalismo e, como veremos adiante, possui a tendência de acompanhar seu desenvolvimento histórico. E assim, as cidades inglesas passaram a conviver com um grande número de operários empregados na indústria, mas também com um número crescente e assustador de lumpemproletários que “se converteram em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição e na maioria dos casos por força das circunstâncias” (MARX, 1985a, p. 275).
Uma passagem extraída do subtítulo Gênese do capitalista industrial do capítulo XXIV do volume II de O Capital sintetiza muito bem todo esse processo:
Tanto esforço fazia‐se necessário para desatar as “eternas leis naturais” do modo de produção capitalista, para completar o processo de separação entre trabalhadores e condições de trabalho, para converter, em um dos pólos, os meios sociais de produção e subsistência em capital e, no pólo oposto, a massa do povo em trabalhadores assalariados, em “pobres laboriosos” livres, essa obra de arte da história moderna. Se o dinheiro, segundo Augier, “vem ao mundo com manchas naturais de sangue sobre uma de suas faces”, então o capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e sujeira da cabeça aos pés (MARX, 1985a, p. 292).
Durante a segunda metade do século XIX a Europa experimenta um
fenômeno fascinante e ao mesmo tempo amedrontador, o extraordinário crescimento das cidades industriais e de sua população. As indústrias recrutavam cada vez mais operários fabris e com isso ocorria um desenfreado crescimento das cidades. Na passagem do século XVIII para o século XIX, a Inglaterra tem seus campos despovoados e um grande afluxo de migrantes corre para as cidades:
Londres, que em 1750 contava com 676 mil habitantes, já em 1820 chegava a contar quase o dobro, ou 1.274 milhão. Mais de uma terça parte da população da Inglaterra residia em cidades de mais de 5 mil habitantes à altura da metade
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do século XIX, quando no meio do século XVIII não passava de uma quinta parte. Na década 1821‐1831, o crescimento de cidades como Liverpool, Manchester, Birmingham e Leeds ultrapassou quarenta por cento (GUIMARÃES, 2008, p. 48).
Além de indivíduos prestes a se proletarizar, as cidades atraíam
uma infinidade de pessoas que não encontrariam condições materiais garantidoras da sua sobrevivência e, consequentemente, o processo de lumpemproletarização crescia vertiginosamente e tais cidades passavam a serem habitadas por um grande número de mendigos, prostitutas, jovens desempregados, ladrões, desabrigados, subempregados, e todo tipo de desempregados etc. A constituição das primeiras cidades industriais do século XIX revela um dos processos migratórios mais brutais que a história ocidental já conheceu. Milhares e milhares de pessoas perderam todo o vínculo com um modo de vida secular, costumes, tradições, solidariedades, enfim toda uma habitual forma de se viver foi quase que completamente destruída e suas principais vítimas foram relegadas a um mundo sombrio e desconhecido marcado pelo frio, pela fome, por todo tipo de doença, imundice, criminalidade, pela violência cotidiana, tanto na esfera do trabalho, quando se tem um, quanto na esfera da vida privada. Indubitavelmente a sociedade capitalista nasce e se reproduz sob a marca da completa desumanização de milhões de seres humanos.
A rotina do proletariado inglês era marcada por uma jornada de trabalho de aproximadamente 16 horas diárias, nas quais toda a sua família, desde as crianças de 04 anos de idade até os idosos ainda com condições físicas, era obrigada pelas circunstâncias a trabalhar. Essa era uma condição imposta pelos miseráveis salários para que uma família operária pudesse ter o mínimo suficiente para garantir sua sobrevivência e, consequentemente, sua força de trabalho para valorizar o capital.
Além das extensas jornadas de trabalho, da exploração do trabalho infantil, do trabalho idoso e feminino (esses recebiam salários inferiores), as condições de trabalho eram as piores possíveis, pois as fábricas não possuíam condições mínimas de higiene. Caracterizadas por serem lugares pouco arejados, com ar poluído, sem nenhuma preocupação com a saúde operária, sem nenhum sistema de proteção
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no trabalho, o proletariado se via constantemente ameaçado pelo desemprego e pela fome, pois a inexistência de legislação trabalhista fazia com que qualquer acidente ou doença que o impossibilitasse a trabalhar resultasse em demissão sumária. E os acidentes de trabalho ou até mesmo a morte de milhares de operários, principalmente as crianças, eram elevadíssimos10.
Nesse aspecto o lumpemproletariado crescente, derivado do processo de cercamento de terras, cumpre um papel importantíssimo na acumulação de capital, isto é, quanto maior for o contingente lumpemproletário, maior será a pressão sobre o proletariado para aceitar suas condições de trabalho e salários miseráveis. Portanto, é possível perceber que o proletariado do século XIX se via muito facilmente ameaçado pela lumpemproletarização. O proletariado vivia constantemente a ponto de lumpemproletarizar‐se. E assim a existência de um grande contingente lumpemproletário cumpria uma das suas principais funções no capitalismo: promover uma alavanca de acumulação via pressionamento dos salários e divisão da classe trabalhadora na disputa por emprego.
Não só as condições de trabalho possibilitavam uma vida degradante para o proletariado, mas sim todas as esferas da sua vida representavam um profundo contato com a degradação física e moral. Sua condição de moradia é, nesse sentido, reveladora de tal deterioração. É preciso compreender que em uma sociedade marcada pela completa mercantilização da vida, o acesso da classe operária a determinados bens primários, tais como, moradia, alimentação, vestuário, saúde, etc. passa pelo valor do seu salário e das possibilidades derivada dele. E uma vez que o salário operário é
10 “As estatísticas da mortalidade revelam níveis altíssimos, principalmente por causa da morte entre as crianças pequenas da classe operária. O delicado organismo de uma criança é o que oferece a menor resistência aos efeitos deletérios de um modo de vida miserável; o abandono a que frequentemente se vê expostas quando os pais trabalham, ou quando um deles morre, logo faz sentir seu impacto – e, portanto, não pode ser sem razão de espanto se, por exemplo, em Manchester, conforme um relatório que já citamos, mais de 57% dos filhos de operários morrem antes de completar 5 anos, ao passo que essa taxa é de 20% para os filhos das classes mais altas e, nas zonas rurais, a média é de 32%” (ENGELS, 2008, p. 147).
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miserável, consequentemente, o acesso a tais bens se dá de forma bastante precária.
Toda grande cidade industrial no século XIX, assim como hoje, revela na arquitetura diferenciada dos seus bairros, nas condições de suas ruas, na sua limpeza, no seu odor, etc. a divisão entre classes sociais. Em outras palavras, a divisão entre exploradores e explorados. Na Inglaterra desse período os bairros operários eram chamados de “bairros de má fama” (ENGELS, 2008). De acordo com Engels,
na Inglaterra, esses “bairros de má fama” se estruturam mais ou menos da mesma forma que em todas as cidades: as piores casas na parte mais feia da cidade; quase sempre, uma longa fila de construções de tijolos, de um ou dois andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de maneira irregular. Essas pequenas casas de três ou quatro cômodos e cozinha chamam‐se cottages e normalmente constituem em toda Inglaterra, exceto em alguns bairros de Londres, a habitação operária. Habitualmente, as ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos. A ventilação na área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do ar que se respira nessas zonas operárias – onde, ademais, quando faz bom tempo, as ruas servem aos varais que, estendidos de uma casa a outra, são usados para secar roupa (2008, p. 70).
Os bairros operários, no geral, possuem as mesmas características
em todo o território inglês. São marcados pela existência de ruas estreitas, geralmente imundas, tanto por conta do ineficaz sistema de limpeza urbana quanto, pela inexistência de rede de saneamento e esgoto, fazendo com que os dejetos das “residências” sejam lançados ao ar livre nas ruas. Nesses bairros era comum encontrar em suas ruas a instalação de um mercado aberto que vendia legumes e frutas, todos de péssimas qualidades e de cheiro horripilante. Juntamente com essas frutas e legumes, a carne que era vendida e consumida pelos operários quase sempre se encontrava em estado putrefato.
A alimentação operária era extremamente minguada e isso, é claro, se deve aos péssimos salários recebidos e, consequentemente, da limitada possibilidade de se consumir bons alimentos. Com frequência o proletariado “optava” por consumir nas feiras e mercados os produtos que durante todo o dia as “classes médias” se recusaram a
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comprar devido a sua má qualidade. Portanto, o grosso da alimentação operária era formado por alimentos de escassa qualidade, muitas vezes já em estado de decomposição. Assim se encontrava, também, a carne consumida. Os açougues dos bairros operários eram lotados de carne de todo tipo de animal (ganso, boi, porco, presunto etc.), mas geralmente em estado impróprio para o consumo. O jornal Manchester Guardian, fundado em Manchester por J. E. Taylor em 1821, constantemente trazia denúncias sobre processos e condenações de diversos açougueiros que, abusando da miséria operária, ofertava diariamente carnes putrefatas (ENGELS, 2008).
O periódico inglês The Artizan (outubro de 1843), nos possibilita visualizar, de forma geral, as condições sanitárias dos bairros operários:
Essas ruas são em geral tão estreitas que se pode saltar de uma janela para outra da casa em frente e as edificações têm tantos andares que a luz mal pode penetrar nos pátios ou becos que as separam. Nessa parte da cidade não há esgotos, banheiros públicos ou latrinas nas casas; por isso, imundice, detritos e excrementos de pelo menos 50 mil pessoas são jogados todas as noites nas valetas, de sorte que, apesar do trabalho de limpeza das ruas, formam‐se massas de esterco seco das quais emanam miasmas que, além de horríveis à vista e ao olfato, representam um enorme perigo para a saúde dos moradores. É de espantar que não se encontre aqui nenhum cuidado com a saúde, com os bons costumes e até com as regras elementares da decência? Pelo contrário, todos os que conhecem bem a situação dos habitantes podem testemunhar o ponto atingido pelas doenças, pela miséria e pela degradação moral. Nesses bairros, a sociedade chegou a um nível de pobreza e de aviltamento realmente indescritível. As habitações dos pobres são em geral muito sujas e aparentemente nunca são limpas; a maior parte das casas compõe‐se de um só cômodo que, embora mal ventilado, está quase sempre muito frio, por causa da janela ou da porta quebrada; quando fica no subsolo, o cômodo é úmido; frequentemente, a casa é mal mobiliada e privada do mínimo que a torne habitável: em geral, um monte de palha serve de cama a uma família inteira; ali deitando‐se, numa promiscuidade revoltante, homens, mulheres, velhos e crianças. Só há água nas fontes públicas e a dificuldade para buscá‐la favorece naturalmente a imundice (Apud ENGELS, 2008, p. 79).
Em suma, a condição material do proletariado inglês o condenava a viver na miséria, em condições habitacionais horripilantes, tendo uma dieta alimentar muito carente, vestindo‐se de poucos trapos, possuindo restritas condições de se higienizar, perseguido pelo frio e por diversos
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tipos de doenças11. Essas últimas se apresentam como uma das portas de entrada para uma vida lumpemproletária, pois, devido à dura rotina de trabalho nas indústrias aliada a uma alimentação precária e uma moradia insalubre, o operário chefe da família corria o risco constante de ter seus músculos e órgãos falidos e de adoecer seriamente, ficando impossibilitado para o trabalho. “E é então que se manifesta, agora de forma mais aguda, a brutalidade com a qual a sociedade abandona seus membros justamente quando mais precisam de sua ajuda” (MARX, 2008, p. 115).
Desde pelo menos a segunda metade do século XVIII e de todo o século XIX, predomina no imaginário coletivo europeu, especificamente
11 “Testemunhos provindos de fontes as mais diversas confirmam que as habitações operárias nos piores bairros urbanos, somadas às condições gerais de vida dessa classe, provocam numerosas doenças (...) as doenças pulmonares são a conseqüência inevitável desta condição habitacional e, por isso, são particularmente freqüente entre os operários. A aparência de tísicos de tantas pessoas que se encontram pelas ruas é claro indicativo de que a péssima atmosfera de Londres, em especial nos bairros operários, favorece ao extremo o desenvolvimento da tuberculose (...) Além de outras doenças respiratórias e da escarlatina, o grande rival da tuberculose, causador de devastações entre os operários, é o tifo. Segundo relatórios oficiais sobre as condições sanitárias da classe operária, esse flagelo universal é provocado pelo péssimo estado das habitações operárias, a má ventilação, a umidade e a sujeira. Nessas informações, preparadas – é bom recordá‐lo – pelos melhores médicos da Inglaterra, com base em relatos de outros médicos, afirma‐se que um único pátio mal arejado, um único beco sem rede de esgoto, sobretudo quando os operários vivem amontoados e nas proximidades existem matérias orgânicas em decomposição, pode provocar a febre, e quase sempre a provoca” (ENGELS, 2008, p. 138). De acordo com Dejours, as condições de existência e saúde do lumpemproletariado, ou subproletariado como ele denomina, também são as piores possíveis e, devido a suas condições de existência, não poderia ser diferente: “A título de exemplo significativo, podemos citar a incidência importante de doenças infecciosas, particularmente nas crianças, e da tuberculose, que continua a ser ainda um flagelo na população adulta. Pode‐se notar também a importância das seqüelas de acidentes e doenças: elas são testemunhas de tratamentos mal conduzidos ou incompletos e, no conjunto, de uma menor eficácia das técnicas médico‐cirúrgicas sobre uma população que não pode aproveitar delas como o resto da população, por razões de ordem não só socioeconômica e cultural, mas por razões de ordem material (impossibilidade de acesso às convalescenças, aos cuidados pós‐operatórios e à reeducação fisioterápica, à assistência médica subseqüente a uma doença grave ou um acidente (DEJOURS, 1992, p. 28).
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na Inglaterra e França, o crescente temor e pânico das classes dominantes diante das inúmeras possibilidades de sublevações das classes miseráveis, quer dizer, do lumpemproletariado em geral. Tal estado de pânico coletivo não é gratuito, basta perceber em que condições viviam a maioria da população pobre das principais cidades industriais européias, Londres e Paris por exemplo, para constatarmos que as condições materiais degradantes e desumanas eram mais do que suficientes para alimentar protestos, sublevações, saques, roubos e todo tipo de motins populares violentos.
Não é à toa que diversos questionamentos da época apontavam para esse risco. Dentre eles, e o mais citado, encontra‐se o realizado por Friedrich Engels no prefácio à edição inglesa de O Capital, que assim indagava: “Entrementes, em cada inverno, renova‐se a pergunta: O que fazer com os desempregados? Enquanto se avoluma, cada ano, o número deles, não há ninguém para responder a essa pergunta; e quase podemos prever o momento em que os desempregados perderão a paciência e encarregar‐se‐ão de decidir seus destinos com suas próprias forças”. Assim como Engels, diversos outros teóricos e romancistas da época já alertavam para o perigo do crescimento absoluto dessa massa faminta. Balzac colocava a questão da seguinte forma:
Há necessidades invencíveis, porque, enfim a sociedade não dá o pão a todos os que têm fome; e quando estes não tem nenhum meio de ganhar a vida, que quereis que eles façam? A política terá previsto que no dia em que a massa dos infelizes for mais forte que a dos ricos, o estado social estará estabelecido de outra maneira? No presente momento, a Inglaterra está ameaçada por uma revolução desse gênero. O imposto para os pobres tornou‐se exorbitante na Inglaterra; e no dia em que sobre 30 milhões de pessoas houver 20 milhões que morrem de fome, a infantaria, os canhões e a cavalaria nada poderão fazer (Apud GUIMARÃES, 2008, p. 88).
Além dessa postura temerosa diante das possíveis e previsíveis ações
que o lumpemproletariado se via coagido a realizar, as classes capitalistas e suas classes auxiliares, inspiradas nos seus valores e perspectivas que lhes são próprios, construíram diversas representações pejorativas dos míseros proletários e, principalmente, lumpemproletários e das sensações e sentimentos que a existência, comportamentos e hábitos dessas classes vos geravam. Dentre os principais termos alguns se destacam pela
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repulsa que os mesmos provocavam e que nos possibilita apreender a forma como tal classe era expressa pelos valores aristocrático‐burgueses da época. Dentre vários podemos citar: vagabundos, mendigos, vadios, maltrapilhos, esfarrapados, escória, ralés, desajustados sociais etc.
Se essas eram as condições nas quais se encontravam o proletariado, em que condições viviam então o proletariado em farrapos12, isto é o lumpemproletariado? Se vendendo sua força de trabalho por salário o proletariado vivia na miséria absoluta, como diferenciar as condições de vida dos que se encontram à margem da divisão social do trabalho? É possível que exista uma classe social vivendo em condições abaixo da miséria? Como viviam o lumpemproletariado das principais cidades industriais europeias e como reagiam diante dessa realidade a ponto de gerar tanto temor? A busca por respostas a essas questões nortearam todo o desenvolvimento da discussão em torno da formação e desenvolvimento do lumpemproletariado no período de vigência do regime de acumulação extensivo.
De início gostaríamos de enfatizar que o lumpemproletariado é considerado por nós uma classe social composta pela totalidade do exército industrial de reserva (superpopulução relativa) e não apenas pelos extratos mais baixos dessa superpopulação relativa, conforme exposto por Marx no capítulo XXIII do volume 2 de O Capital – A lei geral da acumulação capitalista. Concordamos com Viana (2011) quando o mesmo destaca a importância de ressignificar o lumpemproletariado para melhor compreendê‐lo no interior da dinâmica do modo de produção capitalista. De acordo com ele,
o primeiro ponto é ressignificar o lumpemproletariado, que não pode ser considerado apenas os extratos mais baixos da superpopulação relativa e sim ela em sua totalidade. Assim, o lumpemproletariado abarca o conjunto do exército industrial de reserva. É composto, portanto, pelos trabalhadores potenciais do capitalismo, com suas subdivisões, e pelos subempregados e em trabalhos precários, não produtores direto de mais‐valor. Ou seja, inclui tanto aqueles que estão na fronteira com o proletariado (desempregados temporários, subempregados, etc.) quanto os que sobrevivem sob outras formas (prostituição, mendicância, etc.) (VIANA, 2011).
12 Tradução ao pé da letra do termo lumpemproletariado.
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É válido ressaltar que devido à nossa compreensão do que seja o lumpemproletariado, consideraremos, nas análises de diversos outros autores, como frações do lumpemproletariado ou o lumpemproletariado em sua totalidade, as análises referentes aos marginais, à multidão, às classes perigosas, aos miseráveis, excluídos sociais, novos pobres etc. Consideramos que nessas análises, apesar da denominação diferenciada da nossa, os indivíduos que a compõe são os mesmos que compõe o exército industrial de reserva, logo, de acordo com nossa definição, equivale ao lumpemproletariado. Mais adiante entraremos em detalhes sobre o lumpemproletariado nos escritos de Marx.
A existência de um proletariado miserável nos países industrializados da Europa do século XIX subentende a existência de um vasto contingente lumpemproletário que possibilite a manutenção de baixos salários, disputa por empregos, divisão e enfraquecimento da classe trabalhadora. Portanto, no capitalismo um não existe sem o outro. Se no modo de produção capitalista existe de um lado riqueza e do outro pobreza, abaixo da pobreza existe um miséria extrema que tende a crescer concomitante ao crescimento de produção da riqueza. Aliás, não é essa a lei geral da acumulação capitalista?
Nesse sentido, podemos adiantar desde já que os bairros operários europeus estavam abarrotados de indivíduos que compunha o lumpemproletariado e que boa parte dessa classe, na Inglaterra, é composta por imigrantes irlandeses.
Aqui vivem os mais pobres entre os pobres, os trabalhadores mais mal pagos, todos misturados com ladrões, escroques e vítimas da prostituição. A maior parte deles são irlandeses, ou seus descendentes, e aqueles que ainda não submergiram completamente do turbilhão da degradação moral que os rodeia a cada dia mais se aproximam dela, perdendo a força para resistir aos influxos aviltantes da miséria, da sujeira e do ambiente malsão (ENGELS, 2008, p. 71).
Em diversas passagens de jornais e periódicos da época, assim como na excelente pesquisa realizada por Engels e que resulta em 1845 na extraordinária obra sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, é possível identificar uma grande quantidade de lumpemproletários sobrevivendo nas ruas das principais cidades industriais inglesas.
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Segundo o Times – principal diário inglês de cunho conservador – de 12 de outubro de 1843:
Nossa seção policial publicada ontem indica que dormem nos jardins, todas as noites, cerca de cinquenta pessoas, sem outra proteção contra as intempéries que árvores e tocas escavadas em muros. Em sua maioria, são moças que, seduzidas por soldados, vieram do campo e, abandonadas neste vasto mundo à degradação de uma miséria sem esperança, tornaram‐se vítimas inconscientes e precoces do vício. Na realidade, isso é assustador. Os pobres estão em toda parte. Por toda parte, a indigência avança e insere‐se, com toda a sua monstruosidade, no coração de uma grande e florescente cidade. Nos milhares de becos e vielas de uma populosa metrópole sempre haverá – dói dizê‐lo – muita miséria que fere o olhar e muita que não será vista. Mas é assustador que, no próprio recinto da riqueza, da alegria e da elegância, junto à grandeza real de St. James, nas proximidades do esplêndido palácio de Bayswater, onde se encontra o velho e os novos bairros aristocráticos, numa área da cidade onde o requinte da arquitetura moderna prudentemente impediu que se construísse qualquer moradia para a pobreza, numa área que parece consagrada ao desfrute da riqueza, é assustador que exatamente aí venham instalar‐se a fome e a miséria, a doença e o vício, com todo o seu cortejo de horrores, destruindo um corpo atrás de outro, uma alma atrás de outra! É uma situação verdadeiramente monstruosa. O máximo prazer proporcionado pela saúde física, a atividade intelectual, as mais inocentes alegrias dos sentidos lado a lado com a miséria mais cruel! A riqueza que, do alto dos seus salões luxuosos, gargalha indiferente diante das obscuras feridas da indigência! A alegria que inconsciente, mas cruelmente, zomba do sentimento que geme ali embaixo! Todos os contrastes em luta, tudo em oposição, exceto o vício que conduz à tentação e aqueles que se deixam tentar... Que todos reflitam: na área mais luxosa da cidade mais rica do mundo, noite a noite, inverno a inverno, vivem mulheres, jovens em idade e envelhecidas pelos pecados e pelo sofrimento, expulsas da sociedade, atoladas na fome, na doença e na sujeira (...) (Apud ENGELS, 2008, p. 75‐76).
Como qualquer outra mercadoria, a força‐de‐trabalho está inserida na lógica da oferta e da procura no mercado. Portanto, quanto maior for a oferta de mão‐de‐obra disponível para ser empregada, tanto maior será o rebaixamento dos salários e tanto maior será o número da população “supérflua” – o lumpemproletariado. Além disso, é importante destacar que o capitalismo do século XIX, assim como o atual, é caracterizado pela existência de crises constantes e a cada crise a situação tende a esmagar, ainda mais, os setores frágeis da sociedade e,
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nesses períodos, o proletariado tende a ter seus salários rebaixados profundamente, uma vez que o lumpemproletariado tende a ampliar‐se e, consequentemente, a ampliar, também, a pressão sobre os operários empregados. Assim, o proletariado ainda empregado, mas que se vê ameaçado constantemente pelo desemprego, tende a se submeter, a não ser em períodos de radicalização da sua luta, a condições ainda mais precárias de trabalho e vida, pois,
no pior dos casos, o operário, para subsistir, preferirá renunciar ao grau de civilidade a que estava habituado: preferirá morar numa pocilga a não ter teto, aceitará farrapos para não andar desnudo, comerá batatas para não morrer de fome. Preferirá, na esperança de dias melhores, aceitar metade do salário a sentar‐se silenciosamente numa rua e morrer na frente de todo mundo, como já aconteceu com tantos desempregados. É esse pouco, quase nada, que constitui o mínimo salário. E se há mais operários que aqueles que à burguesia interessa empregar, se, ao término da luta concorrencial entre eles, ainda resta um contingente sem trabalho, esse contingente deverá morrer de fome, porque o burguês só lhe oferecerá emprego se puder vender com lucro o produto de seu trabalho (ENGELS, 2008, p. 119).
Tarefa difícil é a de precisar a linha que separa o proletariado do
lumpemproletariado em relação à habitação, vestimenta, alimentação, saúde, hábitos etc. em todo o século XIX, pois o que percebemos é que, nesse período, a exploração e miséria são generalizadas e que tanto o proletariado quanto o lumpemproletariado são suas maiores vítimas. O lumpemproletariado assim como qualquer outra classe social no capitalismo, precisa acessar, mesmo que em condições extremamente desiguais, alguns bens básicos para sobreviver. Para isso ele se vê coagido a obter dinheiro, seja de qual forma for: mendigando, prostituindo‐se, roubando, varrendo ruas e recolhendo imundices, transportando esterco e pequenos objetos, realizando comércio ambulante ou biscates, cometendo crimes diversos etc.13
13 “São espantosos os expedientes a que esses indivíduos recorrem para ganhar qualquer coisa. Os varredores de rua (crosssweeps) de Londres são conhecidos em todo o mundo; mas até pouco tempo atrás, também as ruas e calçadas de outras grandes cidades eram limpas por desempregados, contratados para esse fim pelas repartições encarregadas da assistência ou pelas autoridades responsáveis pela conservação das ruas; hoje existe uma máquina que, diária e ruidosamente, limpa as ruas, tirando daqueles desempregados até mesmo esse meio de sobrevivência. Nas
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É impressionante a grande quantidade de lumpemproletários que ocupam as ruas, principalmente, dos bairros operários ingleses. É exatamente nesses locais que o lumpemproletariado encontra alguma solidariedade e consegue a partir de algumas esmolas, concedidas pelos próprios operários, garantir a sua existência paupérrima. Por isso milhares de famílias se instalam nessas ruas nos horários de maior circulação dos operários, pois geralmente “só contam com a solidariedade dos operários, que sabem, por experiência, o que é a fome e que a todo momento podem encontrar‐se na mesma situação” (ENGELS, 2008, p. 128).
De acordo com os relatórios de inspetores para a lei sobre os pobres, na Inglaterra e no País de Gales, o número de lumpemproletários (os ditos “supérfluos”) representa em média 1,5 milhões. Porém esse número poderia ser bem maior visto que nesse 1,5 milhões só estão compreendidos aqueles indivíduos que oficialmente recebem alguma assistência pública, estando excluídos desse número os milhares de lumpemproletários que sobrevivem sem essa assistência.
Em períodos de crise econômica, a miséria atinge graus alarmantes e acirra o descontentamento e o ódio das classes miseráveis que declaram guerra a toda sociedade civil, obrigando‐o a sobreviver do banditismo. Os anos de 1842 e 1847 são reveladores do peso que sobrecai no proletariado e em alguns setores das “classes médias” e que os vitimizam com a lumpemproletarização (desgraça ainda maior que a proletarização) em períodos de crise:
Um relatório sobre a situação das áreas industriais em 1842, baseado em dados fornecidos pelos industriais e preparado em janeiro de 1843 pelo Comitê da Liga contra a Lei dos Cereais, informa que o imposto para os pobres era então duas vezes maior que em 1839, mas que, no mesmo período de tempo, o número de necessitados havia triplicado ou até quintuplicado; que agora muitos postulantes à assistência pública pertenciam a classes sociais que antes jamais haviam solicitado ajuda; que os meios de subsistência de que a classe operária podia dispor eram no mínimo dois terços a menos em relação aos que
grandes vias que ligam as cidades e nas quais há muito movimento, encontra‐se uma quantidade de indivíduos empurrando carrinhos de mão que, sob o risco de atropelamento, circulam entre carroças e outros veículos de tração animal, recolhendo o esterco fresco dos cavalos para vendê‐lo depois – para o que ainda pagam semanalmente alguns shillings à administração das estradas” (ENGELS, 2008, p. 126).
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dispunha em 1834‐1836; que o consumo de carne havia caído muito, 20% em alguns locais, 60% em outros; que artesãos, ferreiros, pedreiros etc., que até então, mesmo nos períodos de crise mais grave, encontravam trabalho, agora também sofriam muito com a falta de trabalho e com os baixos salários; e que, ainda em janeiro de 1843, os salários continuavam caindo. E essas são informações dos industriais! (ENGELS, 2008, p. 129).
Promovendo essas condições de subexistência para milhares de
seres humanos, a sociedade inglesa favorecia a eclosão de uma verdadeira guerra social, pois boa parte dos operários pobres e do lumpemproletariado passam a promover diversos motins e rebeliões, além de buscar a sobrevivência a partir da pilhagem, do roubo e, até mesmo, do assassinato. As últimas décadas do século XIX experimentaram o crescente temor de ver renascido o velho espectro da multidão amotinada (a mob), disposta a ver seus interesses e necessidades garantidos através da ação direta, provocada pelos motins e de todo tipo de movimentos promovidos pelos desempregados enfurecidos, e que tanto risco à propriedade e à vida eles representam. Elementos típicos de uma sociedade que se afirma na utilização do trabalho social para produzir riquezas de forma ampliada, mas que são negadas para seus próprios produtores que são relegados e forçados a viver no “pântano do pauperismo”. No entanto, ninguém acreditava de fato que tal multidão desempregada e faminta aguardaria de braços cruzados que algum auxílio caísse do céu, ou que algum messias as socorresse, pelo contrário, em períodos de crise e miséria social, as ideologias (religiosas) costumam cair por terra e o lumpemproletariado, por diversos momentos, partiu para a ação. Segundo Bresciani,
coincidentemente, os homens que agitam Londres em fevereiro de 1866 e tentam de início resolver o problema do desemprego num inverno rigoroso através das vias legais, pedindo trabalho‐público e auxílio‐desemprego, são trabalhadores. Em Trafagal Square, a assembléia que dá início ao movimento compõe‐se de 20 000 homens desempregados das docas e da construção. Contudo, bastaram algumas provocações para que a marcha pacífica em direção ao Hyde Park se transformasse num ataque a todas as formas de propriedade, riqueza e privilégio: janelas e vitrinas foram quebradas, carruagens foram quebradas e seus ocupantes assaltados; em suma na observação do Times, “o West End (bairro rico de Londres) esteve por algumas horas nas mãos da multidão”. O pânico tomou conta da cidade; notícias desencontradas sobre multidões avançando em direção à City ou ao West End
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e destruindo tudo no seu avanço mantêm os proprietários, o governo e as tropas em prontidão durante mais dois dias que, nas palavras do historiador S. Jones se assemelharam ao Grande Medo (“Grande Peur”) da Revolução Francesa (1990, p. 47).
O que esperar dessa classe social que durante toda a sua existência convive com todo tipo de infortúnio? É possível aguardar de seres desumanizados e famintos atitudes que prezem pela vida e propriedade alheia? O século XIX inaugura o século do banditismo social generalizado. As ruas que, durante o dia, eram infestadas de mendigos, subempregados e todo tipo de desempregados procurando alguma forma de garantir sua sobrevivência, pela noite, se encontrava repleta de todo tipo de ladrão e criminoso. Nascia, assim, um dos termos pejorativos mais utilizados para classificar o lumpemproletariado: Classes perigosas.
Na introdução da sua obra As classes perigosas – banditismo urbano e rural (2008), Alberto Passos Guimarães afirma o seguinte em relação à origem da palavra classes perigosas (dangerous classes):
O dicionário mais importante da língua inglesa, o Oxford EnglishDictionary, registrou o uso da expressão em 1859, mas dez anos antes ela já figurava no título de uma obra (Reformatoryscholls for thechildrenoftheperishinganddangerous classes, and for juvenileoffenders) de autoria de Mary Carpenter, escritora bem conhecida por seus trabalhos sobre matéria criminal. Na conceituação de Mary Carpenter, as classes perigosas eram formadas pelas pessoas que houvessem passado pela prisão ou as que, por ela não tendo passado, já vivessem notoriamente da pilhagem e que se tivessem convencido de que poderiam, para o seu sustento e o de sua família, ganhar mais praticando furtos do que trabalhando (2008, p. 21).
É visível que o termo classes perigosas é criado e, posteriormente, desenvolvido por vários intelectuais do século XIX e expressa, nitidamente, um preconceito em relação às classes pobres e miseráveis formadas tanto pelo proletariado, quanto pelo lumpemproletariado, pois, no entender de alguns desses intelectuais, a prática do roubo e do crime em geral era fruto da escolha individual e não resultado das míseras condições sociais em que se encontrava uma multidão de indivíduos.
Dessa forma, empregar o termo classes perigosas, assim como vários outros termos preconceituosos, ao invés de lumpemproletariado
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‐ o que na época exigia uma ampla análise teórica sobre as classes sociais e a dinâmica de sua constituição e desenvolvimento no capitalismo – possibilitou a expansão de olhares pejorativos e preconceituosos sobre o lumpemproletariado e que, ainda hoje, é comumente praticado por alguns intelectuais ditos marxistas. Tanto Karl Marx quanto Friedrich Engels acabam sendo influenciados por esse preconceito dominante na época e, em alguns escritos, também, adotaram termos preconceituosos para classificar o lumpemproletariado. Mais adiante entraremos em detalhes sobre tais escritos.
Nesse momento de nossa análise já é possível visualizar que a expansão do lumpemproletariado e da criminalidade em diversas regiões industrializadas, principalmente, da Inglaterra e da França, são resultados da própria dinâmica da produção e reprodução do capitalismo (conforme expresso no item 1.1.2 desse capítulo) e que tendem a se intensificar em períodos de carestia, fome e crise, ou seja, em períodos com fortes tendências ao crescimento generalizado do desemprego. A prática do roubo como forma garantidora da sobrevivência de uma multidão urbana ganha o século XIX:
O roubo reina sozinho em meados do século, atingindo seu máximo correcional entre 1851‐1855 (24.000 casos, 42.000 indiciados). Enquanto diminuem os roubos nas igrejas e nas grandes estradas, estes, apanágios de jovens que ainda sonham com Mandrin, crescem todas as formas de roubos urbanos: roubos domésticos, severamente reprimidos, fantasma dos burgueses de Balzac ou de Pot‐Bonille, rivalizados a partir de 1850 pelo roubo do balcão, que recrudesce com o fascínio exercido pelos Grandes Magazines sobre o público feminino; miúdos furtos de objetos – a vitrine cobiçada inaugura muitas carreiras delinquentes – mas, cada vez mais, roubos de dinheiro, pequenas somas surrupiadas, as únicas que estejam ao alcance da mão [...] Entretanto, a “gatunice de alimentos”, na origem de tantas inculpações decrianças ou vagabundos, esboça o horizonte medíocre de uma sociedade de penúria, a existência de uma fome marginal, mas persistente (PERROT, 1988, p. 250‐251).
Constata‐se que nesses períodos a expansão do lumpemproletariado
e de suas práticas ameaçadoras da ordem social (rebeliões, atos de violência generalizada etc.) e dos bens das classes privilegiadas (roubos, saques etc.) veio acompanhada da expansão de diversas instituições nascidas para amenizar as crescentes perturbações sociais promovidas
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por essa massa imensa formada por diversas frações que compunham o lumpemproletariado (mendigos, assaltantes, prostitutas, subempregados, ex‐operários desempregados etc.) da época. Dentre essas instituições destacam‐se: os asilos, os hospitais e as prisões.
Para toda essa gama de problemas sociais inaugurada, já de forma intensificada, pelo modo de produção capitalista, não há resolução concreta nos limites das fronteiras do capital. Pelo contrário, a manutenção do capitalismo depende, e ao mesmo tempo representa sua ameaça, da conservação de sua essência produtora de toda essa problemática. Aqui me refiro, principalmente, ao processo de lumpemproletarização e de criminalização do lumpemproletariado, existente desde a origem do capitalismo e que remonta ao processo de cercamento de terras:
Os expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela intermitente e violenta expropriação da base fundiária, esse proletariado livre como pássaros não podia ser absorvido pela manufatura nascente com a mesma velocidade com que foi posto no mundo. Por outro lado, os que foram bruscamente arrancados de seu modo costumeiro de vida não conseguiam enquadrar‐se de maneira igualmente súbita na disciplina da nova condição. Eles se converteram em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição e na maioria dos casos por força das circunstâncias. Daí ter surgido em toda Europa Ocidental, no final do século XV e durante todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os ancestrais da atual classe trabalhadora foram imediatamente punidos pela transformação, que lhes foi imposta, em vagabundos epaupers. A legislação os tratava como criminosos “voluntários” e supunha que dependia de sua boa vontade seguir trabalhando nas antigas condições, que já não existiam (MARX, 1985a, p. 275)14.
O próprio processo de criminalização do lumpemproletariado
revela, tanto no século XIX, quanto na contemporaneidade, a impossibilidade da construção de uma solução eficaz para essa ampla marginalização de milhares de indivíduos da divisão social do trabalho. Afinal, a raiz da expansão da criminalidade se encontra na própria dinâmica da produção capitalista de mercadorias que para promover a reprodução ampliada do capital depende da existência de um
14 Nos primeiros parágrafos após essa citação, na obra de Karl Marx (1985a) encontra‐se as diversas leis que foram criadas com o intuito de criminalizar o lumpemproletariado e castigá‐lo pela sua condição social e mendicância. Parafraseando Marx: “Que cruel ironia!”.
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contingente, cada vez maior, de indivíduos marginalizados na divisão social do trabalho. A criminalização via aprisionamento do lumpemproletariado tende a reproduzir, ainda de forma mais extensa, sua condição de marginalizado do trabalho, pois sua vida após o cumprimento da pena carrega a “marca da detenção” e essa gera uma enorme repulsa social que facilita ainda mais sua condição de lumpem. Nesse sentido,
todos os testemunhos concordam: há extrema dificuldade em se conseguir trabalho. “A partir do momento em que o véu que encobria sua condição de liberto é rompido, todos os evitam ou fogem dele; se trabalha numa oficina, os que um momento antes tratavam‐no como camarada não toleram mais sua presença em meio a eles a não ser com impaciência e aflição; não só não é mais seu companheiro de trabalho, como também não é mais seu igual, seu semelhante. Não haverá ordem e harmonia na oficina, enquanto não tiver sido expulso”, escreve Frégier. E mais: “Como se sabe, existe na França uma repulsa inveterada em todas as classes da população em relação aos ex‐detentos” (PERROT, 1988, p. 270).
Antes mesmo do século XIX, ainda nas décadas finais do século
XVIII, o lumpemproletariado já era um dos alvos principais do sistema carcerário. Na França, em diversos momentos de crise econômica e crescimento acelerado do desemprego, a criminalização do lumpemproletariado foi a principal arma utilizada pelas classes dominantes para conter a desordem social derivada da pobreza generalizada que atingia essa classe:
as manufaturas a que estávamos tão apegados caem de todos os lados; as de Lyon vieram abaixo: há mais de 12 000 operários mendigando em Rouen, outro tanto em Tours, etc. Contam‐se mais de 20 000 desses operários que abandonaram o reino desde três meses atrás para ir para o exterior, Espanha, Alemanha, etc., onde são acolhidos e onde o governo é econômico (ARGENSON apud FOUCAULT, 1997, p. 401).
Na tentativa de combater esse movimento expansivo de lumpemproletarização, decreta‐se o aprisionamento de todos os mendigos: “Foi dada a ordem de prender todos os mendigos do reino; os marechais atuam nesse sentido no interior, enquanto a mesma coisa é feita em Paris, para onde se tem certeza que eles não refluirão, estando cercado por todos os lados” (ANGERSON apud FOUCAULT, 1997, p. 402). Na segunda
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metade do século XVIII na França esse processo de criminalização do lumpemproletariado é permanente:
De um lado e do outro, responde‐se à crise com o internamento. Cooper publica em 1765 um projeto de reforma das instituições de caridade; propõe que se criem, em cada hundred, sob a dupla vigilância da nobreza e do clero, casas que teriam uma enfermaria para os doentes pobres, oficinas para os indigentes válidos e centros de correção para os que se recusassem a trabalhar. Inúmeras casas são fundadas no interior a partir desse modelo, inspirado por sua vez na workhouse de Carlford. Na França, um édito real de 1764 prevê a abertura de depósitos para mendigos, mas a decisão só começará a ser aplicada após uma deliberação do conselho de 21.09.1767: “Que se preparem e estabeleçam, nas diferentes generalidades do reino, casas suficientemente fechadas para nelas receber pessoas vagabundas ... Os que forem detidos nas ditas casas serão alimentados e mantidos às custas de Sua Majestade [...]”. No ano seguinte abrem‐se 80 depósitos de mendigos em toda a França. Têm quase a mesma estrutura e o mesmo destino que os hospitais gerais; o regulamento do depósito de Lyon, por exemplo, prevê que ali serão recebidos vagabundos e mendigos condenados ao internamento por decisão do preboste, “as mulheres de má vida detidas pelas tropas”, “os particulares mandados por ordem do rei”, “os insensatos, pobres e abandonados, bem como aqueles pelos quais se paga pensão” (Art. 1 do título do regulamento do depósito de Lyon 1783, cit. In LALLEMAND, IV, p. 278). Mercier dá uma descrição desses depósitos que mostram como eles diferem pouco das velhas casas do Hospital Geral: a mesma miséria, a mesma mistura, a mesma ociosidade (FOUCAULT, 1997, p. 403).
O século XIX, conforme afirma Perrot, inaugura a era do
aprisionamento permanente. Depois do asilo, a prisão, “gêmea sua, torna‐se o objeto de uma história cada vez mais assombrada pelo lado sombrio das sociedades: doença, loucura, delinqüência [...]” (PERROT, 1988, p. 235). Como era de se esperar o lumpemproletariado passa a ser a visita prioritária desse novo e assustador estabelecimento, ou melhor, depósito de infelizes seres humanos.
Para finalizar esse capítulo, passaremos a discutir o lumpemproletariado nos escritos de Marx. O termo lumpemproletariado tem origem nos escritos de Karl Marx, porém esse autor não chegou a desenvolvê‐lo de forma sistematizada e em várias obras (O Manifesto Comunista, A luta de classes na França, O 18 Brumário e O capital) o termo é mencionadocom diferenças de significado. Na obra
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O manifesto do partido comunista (1998), Marx e Engels assim comenta sobre o lumpemproletariado:
O lumpemproletariado, essa putrefação passiva dos estratos mais baixos da velha sociedade, pode, aqui e ali, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária; no entanto, suas condições de existência o predispõe bem mais a se deixar comprar por tramas reacionárias (1988, p. 76).
Nessa passagem é possível perceber alguns aspectos que
consideramos limitados e ao mesmo tempo um pouco taxativo na análise de Marx e Engels, pois quando ele afirma que o lumpemproletariado representa essa “putrefação passiva dos setores mais baixos da velha sociedade” ele acaba por exagerar na postura passiva dessa classe, pois não é bem isso que a história do século XIX mostra. Em diversos momentos o lumpemproletariado reagiu à sua condição material de existência através de ações contra a propriedade, contra a vida aristocrática e burguesa, assim como participou de diversos motins e rebeliões. É claro que essas ações não vinham acompanhadas de nenhum projeto político, nem tão pouco possuía nenhuma radicalidade que ameaçasse a sociedade vigente, todavia, sua postura não era exatamente passiva.
Por outro lado, há um aspecto importante nessa citação sobre a postura política do lumpemproletariado e de suas possibilidades. Trata‐se do seguinte trecho: “pode, aqui e ali, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária”. Ora, essa passagem nos possibilita perceber que, ao contrário do que afirma alguns teóricos, Marx e Engels, pelo menos nessa obra, mostravam que, apesar das condições materiais de existência dessa classe social que tendia a predispô‐la “bem mais a se deixar comprar por tramas reacionárias”, como ocorreu na luta de classes na França (um episódio histórico concreto), o lumpemproletariado poderia ‐ e pode ‐ contribuir com a revolução proletária. Esse detalhe é importante, pois demonstra que a postura política do lumpemproletariado não resulta de uma espécie de essência do seu ser‐de‐classe que sempre o arrasta para um papel conservador e reacionário na luta de classes, pelo contrário, apresenta que essa classe, também, possui outras possibilidades e que tudo depende da dinâmica da luta de classes e de sua correlação de forças em determinados contextos históricos.
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Além dessa passagem presente na obra O manifesto do partido comunista, outras passagens são importantes para compreendermos a visão de Marx sobre essa classe social e a influência que a mesma exerceu em teóricos posteriores que discutiram o lumpemproletariado. Nas suas duas principais obras históricas, O 18 Brumário (1997) e As lutas de classes na França – de 1848 a 1850 (2008), Marx analisa os interesses de classes envolvidos nas lutas que se desenvolveram nesse contexto histórico francês e as estratégias que as classes sociais em luta utilizaram para garantir tais interesses. Para compreendermos um pouco esse processo, utilizaremos de algumas extensas citações. Em A luta de Classes na França, Marx assim descrevia:
A revolução de fevereiro tinha atirado o exército para fora de Paris. A Guarda Nacional, isto é, a burguesia nas suas diferentes gradações, constituía a única força. Contudo, não se sentia suficientemente forte para enfrentar o proletariado. Além disso, fora obrigada, ainda que opondo a mais tenaz das resistências e levantando inúmeros obstáculos, a abrir, pouco a pouco, e em pequena escala, as suas fileiras e a deixar que nelas entrassem proletários armados. Restava, portanto, apenas uma saída: opor uma parte do proletariado à outra. Para esse fim, o governo provisório formou 24 batalhões de guarda móveis, cada um deles com mil homens, cuja idades iam de 15 aos 20 anos. Na sua maioria pertenciam ao lumpemproletariado, que em todas as grandes cidades constituiu uma massa rigorosamente distinta do proletariado industrial, um centro de recrutamento de ladrões e criminosos de toda a espécie que vivem da escória da sociedade, gente sem ocupação definida, vagabundos, gente sem pátria e sem lar, variando segundo o grau de cultura da nação a que pertencem, não negando nunca o seu caráter de Lazzaroni capazes, na idade juvenil em que o governo provisório os recrutava, uma idade totalmente influenciável, dos maiores heroísmos e dos sacrifícios mais exaltados como do banditismo mais repugnante e da corrupção mais abjeta. O governo provisório pagava‐lhes 1 franco e 50 centavos por dia, isto é, comprava‐os. Dava‐lhes um uniforme próprio, isto é, distinguia‐os exteriormente dos homens de blusa de operário. Para seus chefes eram‐lhe impostos, em parte, oficiais do exército permanente, em parte, eram eles próprios que elegiam jovens filhos da burguesia que os cativavam com suas fanfarronadas sobre a morte pela Pátria e a dedicação à república (p. 84‐85).
Em O 18 Brumário podemos ler:
Nessas excursões, que o grande Moniteur oficial e os pequenosMoniteurs privados de Bonaparte tinham naturalmente que celebrar como triunfais, o
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presidente era constantemente acompanhado por elementos filiados à Sociedade de 10 de Dezembro. Essa sociedade originou‐se em 1849. A pretexto de fundar uma sociedade beneficente o lumpemproletariadode Paris fora organizado em facções secretas, dirigidas por agentes bonapartistas e sob a chefia geral de um general bonapartista. Lado a lado com roués decadentes, de fortuna duvidosa e de origem duvidosa, lado a lado com arruinados e aventureiros rebentos da burguesia, havia vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos, lazzarani, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus, donos de bordéis, carregadores, soldadores, mendigos – em suma, toda essa massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em Meca, que os franceses chamam La bohème; com esses elementos afins Bonaparte formou o núcleo da Sociedade de 10 de Dezembro. “Sociedade beneficente” no sentido de que todos os seus membros, como Bonaparte, sentiam necessidade de se beneficiar às expensas da nação laboriosa; esse Bonaparte, que se erige em chefe do lumpemproletariado, que só aqui reencontra, em massa, os interesses que ele pessoalmente persegue, que reconhece nessa escória, nesse refugo, nesse rebotalho de todas as classes a única classe em que pode apoiar‐se incondicionalmente, é o verdadeiro Bonaparte, o Bonaparte sansphrase(MARX, p. 78‐79).
O que Marx nos apresenta com tais passagens? O que é possível
apreender dessas passagens e o que pode ser interpretado como exagero dogmático nas releituras de outros autores sobre o lumpemproletariado? Nessas passagens, extraídas de duas obras de caráter histórico, isto é, obras que analisaram determinados acontecimentos em contextos históricos específicos, Marx descreve como o lumpemproletariado – reenfatizando: naquele contexto – foi cooptado pelo Estado francês, sob comando de Luís Bonaparte, e utilizado na luta contra o avanço das lutas proletárias. Ou seja, nesse episódio a possibilidade do lumpemproletariado ser cooptado e utilizado como “ferramenta subornada da intriga reacionária” se confirmou.
A obra As classes perigosas – banditismo urbano e rural (2008) de Alberto Passos Guimarães se apresenta como uma interpretação tipicamente dogmática da análise que Marx e Engels realizaram sobre o lumpemproletariado. Nessa obra, seu autor transforma as afirmações de Marx e Engels sobre o lumpemproletariado, do século XIX, em “leis naturais e universais” e que podem ser aplicadas a qualquer situação e contexto histórico, pois para esse autor:
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Tanto Marx quanto Engels sempre tiveram essa posição contrária à utilização de elementos do lumpemproletariado na ação revolucionária, por considerá‐lo instrumentos mobilizáveis pela reação, em todos os tempos, como havia mostrado a experiência histórica (2008, p. 24).
E, posteriormente, ele continua com suas ênfases dogmáticas:
Mas em nenhum momento Marx e Engels deixaram de considerar as peculiaridades de cada uma das formas e categorias da superpopulação relativa, de seu papel e de suas funções na economia e na sociedade. Nunca deixaram de salientar o antagonismo entre o caráter revolucionário da classe operária e a tendência contrarrevolucionária do lumpemproletariado (GUIMARÃES, 2008, p. 28).
Porém, é necessário compreender que a postura política do
lumpemproletariado não é uma “lei natural e universal” que pode ser aplicada para qualquer situação, em qualquer contexto histórico. No entanto, foi isso que diversos autores ditos “marxistas” fizeram: interpretaram essas passagens de Marx sob o lumpemproletariado de forma dogmática, tornando‐as espécies de “verdades reveladas” (assim disse o Senhor Marx no capítulo x, versículo y, amém). Postura essa que não possui nada de marxista, pois trata a ação de uma classe social de forma estanque, desconsidera as especificidades das condições materiais de existência, o desenvolvimento da correlação de forças e as tendências próprias da dinâmica da acumulação capitalista fundamentalmente constituída pela luta de classes em contextos históricos distintos. Nesse sentido,
a vulgarização e deformação da teoria de Marx promoveram uma simplificação e, aliado com determinados interesses e situações, transformou o lumpemproletariado em puramente reacionário (e deixando de lado o que Marx denominou “condições de existência”, como numa espécie de maniqueísmo que transforma essa parte da sociedade em “representante do mal”. Porém, além de resgatar o que Marx realmente disse, é necessário perceber a evolução do lumpemproletariado e sua relação com o desenvolvimento capitalista e, assim, compreender melhor seu papel político contemporaneamente (VIANA, 2011).
Em nossa análise o lumpemproletariado é considerado uma classe
social intrínseca ao modo de produção capitalista e que, conseqüentemente, vem se desenvolvendo e se ampliando
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quantitativamente com o desenvolvimento desse modo de produção. No entanto, não acreditamos que o lumpemproletariado seja, em sua essência, contrarrevolucionário, assim como o proletariado é revolucionário na sua essência, pois acreditamos ser possível constatar que na contemporaneidade, especificamente no período de vigência da acumulação integral, o lumpemproletariado tende a se aliar ao proletariado, em momentos de crise e enfrentamento, contra o capital econsequentementeauxiliar o avanço da luta pela transformação social.
Percebe‐se, então, que ao contrário dos teóricos que analisaram o lumpemproletariado de forma estanque e dogmática, aqui buscaremos analisar o lumpemproletariado na sua evolução histórica, intentando buscar respostas que confirmem a tendência dessa classe em adquirir um caráter cada vez mais contestador e uma aliança revolucionária com o proletariado. Esse é o objetivo do próximo capítulo: analisar a expansão do lumpemproletariado no regime de acumulação integral e toda a complexa dinâmica que envolve esse processo.
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A Expansão do Lumpemproletariado no Regime de Acumulação Integral
Ao invés de realizarmos um amplo e profundo debate sobre os
diversos teóricos que se dedicaram a analisar os regimes de acumulação (BENAKOUCHE, 1980; LIPIETZ, 1991; BRAGA, 1996, HARVEY, 2008 etc.) e o desenvolvimento capitalista (ROSTOW, 1974; SWEEZY, 1982 etc.) optamos por adotar a concepção e definição de regime de acumulação desenvolvida pelo sociólogo Nildo Viana em sua obra O capitalismo na era da acumulação integral (2009) e analisarmos nosso objeto de estudo a partir desse referencial teórico. Isto, no entanto, não nos impossibilita de ora ou outra, de acordo com as necessidades de nossa análise, recorrer a esse ou aquele teórico com o intuito de enriquecer nosso trabalho a partir das suas diversas contribuições, assim como debater e discordar, quando necessário, dos mesmos.
Karl Marx ao analisar a história da humanidade com o intuito de compreender o capitalismo constatou que a mesma é marcada pela sucessão dos modos de produção. A superação de um modo de produção significa uma ruptura histórica profunda e o surgimento de sociedades radicalmente diferentes, oriundas de um processo revolucionário. Essa constatação e sua teorização foram realizadas por Marx e está contida no “Prefácio à Crítica da Economia Política”, que assim afirma:
(...) Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então tinham se movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas essas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez [...] (1983, p. 24‐25).
Ao contrário do que ocorre em um contexto de revolução social, a
mudança de um regime de acumulação para outro não representa uma transformação, mas tão somente mudanças no interior de um mesmo modo de produção, portanto o que ocorre é
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uma mudança no interior de uma permanência, o que significa que, em sentido amplo, não há ruptura e nem radicalidade no processo de mudança. A sucessão de regimes de acumulação explicita a manutenção do modo de produção capitalista e de seus elementos característicos fundamentais, e a substituição de um regime por outro é marcada, no fundo, pela realização do objetivo de manter as relações de produção capitalistas e pelo aprofundamento de tendências já existentes no regime anterior, seguindo a dinâmica da acumulação de capital (VIANA, 2009, p. 15).
O termo “regime de acumulação” não é um termo antigo e muito menos consensual entre os diversos teóricos que o utilizaram em suas análises sobre o desenvolvimento do capitalismo. No entanto, para os propósitos desse trabalho, utilizaremos a definição e sequência de regimes de acumulação teorizada por Viana (2003; 2009). Para ele,
um regime de acumulação é um determinado estágio do desenvolvimento capitalista, marcado por determinada forma de organização do trabalho (processo de valorização), determinada forma estatal e determinada forma de exploração internacional (2009, p. 30).
Em linhas gerais essa é a compreensão que o autor tem de um regime
de acumulação. Segundo ele, o que é fundamental na compreensão de um regime de acumulação é a existência da luta de classes nas suas três formas constituintes. A luta de classes permanece “relativamente estável”, pois apesar da vitória parcial da burguesia, a luta histórica do proletariado, nos diversos regimes de acumulação,
não permite a intensificação da exploração e mantêm avanços e recuos dentro de uma relação relativamente estável e estabelecida [...] Se não houvesse a resistência operária e de outras classes sociais, a exploração seria intensificada continuamente (VIANA, 2009, p. 30).
A resistência operária, portanto, impossibilita que a exploração
adquira um caráter mais violento do que o já existente, pois, do contrário, a intensificação e precarização do trabalho atingiria níveis ainda mais insuportáveis para a integridade física e psíquica do proletariado.
Deste modo, o regime de acumulação é a forma que o capitalismo adquire, em momentos históricos específicos, para promover sua meta essencial: a produção de mais‐valor. A maior parte do mais‐valor convertido em capital é utilizado pela burguesia para expansão
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ampliada dos seus lucros e isso desdobra‐se em acumulação, concentração e centralização de capital. Na busca permanente pela ampliação da acumulação, os capitalistas expandem seus capitais mundialmente e isso os leva a programarem uma forma de exploração internacional. Nesse processo o estado age visando a garantir a satisfação de tais necessidades a partir de sua regularização. Aqui se encontram os três elementos constituintes de um regime de acumulação.
É importante destacar que além dos desdobramentos acima citados, o processo de acumulação gera outros desdobramentos importantes e essenciais para a sua compreensão. A acumulação capitalista, como já foi mencionada, é realizada através de uma relação entre burguesia e proletariado e essa relação é fundamentalmente marcada pelo conflito de classes.
A burguesia devido aos seus interesses de classe deve, necessariamente, desenvolver formas cada vez mais eficazes para a extração de mais‐valor, ou seja, para a exploração do trabalho. Por outro lado, o proletariado se vê coagido a lutar contra o capital uma vez que seu ser‐de‐classe, como já dizia Marx, é essencialmente aquele que quanto mais eficaz torna seu trabalho, quanto mais riqueza é capaz de produzir, mais miserável se encontra e, por conta disso, se vê obrigado a desenvolver formas de luta que se afirmem na busca pela destruição do capitalismo.
É na luta de classes que o proletariado acaba por criar dificuldades para a acumulação de capital e, em determinados momentos, sua luta radicaliza e tende a apontar para a superação da sociedade capitalista. Por mais que a ideologia burguesa e de suas classes auxiliares tente desacreditar essa possibilidade histórica, não há como negar essa tendência na luta de classes. Tanto assim que a burguesia e o estado estão sempre procurando meios de atenuar os efeitos das crises que ameaçam a continuidade do processo de reprodução do capital em escala ampliada. Nesses períodos de enfraquecimento é que um novo regime de acumulação tende a aparecer em substituição ao antigo. Porém, isso não é uma lei natural e o que se pode perceber é que a dificuldade em acumular capital, a cada novo regime, é crescente.
É certo que a tese aqui defendida aponta para a constatação de que a “história do capitalismo é a história da sucessão dos regimes de
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acumulação”, porém tal tese não coisifica o capitalismo e sua capacidade de se recuperar das crises, pelo contrário, ela contribui para pensar na existência de “limites humanos e naturais que tornam o capitalismo um período transitório na história da humanidade. A própria dinâmica do capitalismo, revelada na produção de mais‐valor, expressa sua finitude” (VIANA, 2009, p. 32).
De acordo com Viana, a sucessão dos regimes de acumulação e suas características centrais existentes na Europa ocidental e nos demais países imperialistas (após o regime de acumulação primitiva de capital) são: a) regime de acumulação extensivo – da revolução industrial até o final do século XIX ‐, marcado pela extração de mais‐valor absoluto, pelo domínio do Estado liberal e do neocolonialismo; b) regime de acumulação intensivo – do final do século XIX até a segunda guerra mundial ‐, caracterizava‐se pela busca de aumento da extração de mais‐valor relativo, através do taylorismo, pelo Estado liberal‐democrático e pelo imperialismo financeiro; c) regime de acumulação intensivo‐extensivo ‐ do pós‐segunda guerra mundial até aproximadamente 1980 ‐, através da organização fordista do trabalho procurou ampliar a extração de mais‐valor nos países imperialistas e a extração de mais‐valor absoluto dos países subordinados, sendo complementado pelo “Estado do Bem‐Estar Social” e pela expansão oligopolista transnacional e c) o regime de acumulação integral ‐ do final do século XX até os dias atuais – que busca ampliar concomitantemente a extração de mais‐valor relativo e mais‐valor absoluto via “reestruturação produtiva”, tendo o Estado neoliberal como agente garantidor desse processo e o neoimperialismo. A teoria do regime de acumulação integral
O regime de acumulação integral é fruto da resposta capitalista à
crise do final da década de 1960 e início da década de 1970, provocada pela tendência declinante da taxa de lucro e marcada pela radicalização das lutas estudantis e operárias na França, Alemanha e Itália, bem como pelo movimento de contracultura e pelo movimento pacifista nos EUA que foram responsáveis por promover a primeira rachadura no regime de acumulação intensivo‐extensivo que, já no início da década de 80, entra em colapso (VIANA, 2003, 2009; HARVEY, 2008).
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Com a contínua queda na taxa de lucro entre as décadas de 1960 e 1970, o capitalismo precisou encontrar soluções para a crise e isso levou ao engendramento de um novo regime de acumulação marcado pelo aumento da exploração interna nos países imperialistas e, também, nos países subordinados, tanto no aumento da extração de mais‐valor relativo (avanço tecnológico na produção, reestruturação produtiva etc.), assim como na extração de mais‐valor absoluto (expansão das jornadas de trabalho via hora‐extras). Ou seja, tal regime se afirmará em um processo de acumulação de capital integral.
O regime de acumulação extensivo que prevaleceu desde a revolução industrial até fins do século XIX foi marcado pelo predomínio da extração de mais‐valor absoluto15, presente nas prolongadas jornadas de trabalho, na exploração de trabalho infantil e feminino, nas péssimas condições de trabalho e moradia e nos míseros salários. Em resposta a essas péssimas condições de trabalho e vida, o proletariado radicaliza suas lutas multisseculares e pressiona a burguesia a fazer algumas concessões. Tais concessões resultam, principalmente, em uma drástica redução das jornadas de trabalho (MARX, 1985).
O resultado negativo disso para o processo de acumulação é visível, pois a redução da jornada de trabalho significa a redução da extração de mais‐valor absoluto e, consequentemente, a burguesia se vê obrigada a reagir. A partir desse momento é que a classe capitalista sente necessidade de elaborar de forma consciente e racionalizada uma forma de se combater a tendência declinante da taxa de lucro. Destarte,
a obra de Friedrich Taylor representa a tentativa de realizar um aumento da produtividade, ou seja, de extração de mais‐valor, através da organização do
15 “A mais‐valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais‐valia absoluta; a mais‐valia que, ao contrário, decorre da redução do tempo de trabalho e da correspondente mudança da proporção entre os dois componentes da jornada de trabalho chamo de mais‐valia relativa” (MARX, 1985, p. 251); “O desenvolvimento da força produtiva do trabalho, no seio da produção capitalista, tem por finalidade encurtar a parte da jornada de trabalho durante a qual o trabalhador tem de trabalhar para si mesmo, justamente para prolongar a outra parte da jornada de trabalho durante a qual pode trabalhar gratuitamente para o capitalista. Até que ponto pode‐se alcançar ainda esse resultado sem baratear as mercadorias, mostrar‐se‐á nos métodos particulares de produção da mais‐valia relativa (...)” (MARX, 1985, p. 255).
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trabalho. A chamada ‘organização científica do trabalho’, ou simplesmente taylorismo, é o primeiro passo para se conseguir combater a tendência da queda da taxa de lucro médio (VIANA, 2009, p. 65).
A proposta de Taylor visa aumentar a produtividade do trabalho mesmo com a redução das jornadas e para isso foi necessário uma intensificação do controle e vigilância sobre os operários a partir de diversas artimanhas, entre as quais podemos destacar: produção rigidamente cronometrada, divisão entre elaboração e execução de tarefas, premiação individual por produtividade, formação de especialistas para a gerência etc. (TAYLOR, 1987).
Como todo processo de produção de mercadorias é marcado pelo confronto entre as classes antagônicas, é claro que a ação de uma gera a reação da outra, assim, o proletariado tendeu a reagir ao taylorismo. O próprio Taylor afirma em sua obra que por diversas vezes recebeu ameaça de morte. Desse modo, constata‐se que o taylorismo representou a tentativa da burguesia ampliar a extração de mais‐valor relativo, recorrendo à racionalização do processo produtivo num período histórico em que o desenvolvimento tecnológico é incipiente. Assim como Viana, reconhecemos que o taylorismo fornecerá a base para as demais formas de organização do trabalho em períodos posteriores e não visualizamos nenhuma mudança significativa nessas demais formas, pois
as alterações implantadas pelo fordismo, por exemplo, referem‐se a questões superficiais e são provocadas pelo desenvolvimento histórico do capitalismo. O contexto histórico do fordismo remete ao aceleramento de desenvolvimento tecnológico em relação ao período anterior (VIANA, 2009, p. 67).
Mesmo entre o toyotismo e as formas de organização do trabalho que o antecederam não há nenhuma ruptura, pois o toyotismo segue a mesma lógica dos anteriores e as diferenças existentes são meramente secundárias. A organização do trabalho arquitetada por Taylor pode ser concebida da seguinte forma:
caracteriza‐se por um processo de controle da força de trabalho realizado segundo uma forma “racionalizada”, ou seja, calculada, medida, normatizada, objetivando o aumento da produtividade, isto é, de extração de mais‐valor relativo, e isto pressupõe a “gerência científica”, o que significa não só a
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aplicação do conhecimento técnico‐científico ao processo de produção, conhecimento este extraído em parte do próprio saber operário, como também a existência dos gerentes, ou seja, conjunto de especialistas encarregados em planejar a execução das tarefas. Em outras palavras, o taylorismo pressupõe uma camada de burocratas: a burocracia empresarial. O fordismo e as demais formas de organização do trabalho também possuem a mesma razão de ser e por isso não são nada mais do que extensões e adaptações do sistema Taylor às necessidades históricas de determinado estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista (VIANA, 2009, p. 68).
A diferença essencial entre fordismo e toyotismo consiste no fato de que o primeiro era marcado pela rigidez enquanto o segundo funda‐se na sua capacidade flexível. Mas isto não é suficiente para contradizer as características fundamentais que estão presentes no fordismo. No fundo, a grande mudança apresentada pelo toyotismo está no fato da sua produção se encontrar submetida à demanda do mercado, enquanto no fordismo a produção era uma produção em massa.
Na verdade o que ocorre é que a produção estandardizada do fordismo se vê substituída por uma produção personalizada , ou seja, a produção em massa ou em série de um mesmo produto é substituída por uma produção variada. Isso não impede a produção em massa, pois apenas personaliza os produtos por cotas, ou seja, a produção em massa deixa de ser de apenas um produto para ser de vários produtos (VIANA, 2009, p. 68‐69).
Uma reflexão importante levantada por Viana na sua obra O capitalismo na era da acumulação integral (2009) trata da sua crítica à expressão “flexível” e/ou “flexibilização”. Para ele, o conceito “flexível” não expressa a realidade concreta a qual ele propõe expressar. Primeiramente, tal conceito possui inúmeros significados nos dicionários (“aptidão para variadas coisas ou aplicação” ou “submissão e docilidade”, por exemplo). Esse duplo sentido da palavra é suficiente para percebermos que sua utilização também revela ambiguidades tais como falar em “especialização flexível”, “acumulação flexível” e “flexibilização dos trabalhadores”. O termo flexibilização “se refere na maioria dos casos, a aptidão múltipla” (VIANA, 2009, p. 70).
Não seria o caso de questionarmos se ao contrário do que é comumente afirmado e aceito, ou seja, da existência de uma “flexibilização” do aparato produtivo e dos trabalhadores, na verdade o que existe não seria uma inflexibilidade, pois tanto o aparato produtivo
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quanto os trabalhadores são submetidos “inexoravelmente” e “implacavelmente” ao objetivo de aumentar a extração de mais‐valor relativo? (VIANA, 2009).
Segundo Viana, várias podem ser as razões que explicam esta confusão na linguagem e uma das principais apontam para a carência de uma teoria sobre a atual fase do capitalismo mundial e das formas de organização do trabalho assumidas na contemporaneidade. Mas, em outros casos essa confusão revela um discurso ideológico que através da suavização com as palavras acaba por facilitar que um véu nebuloso desça e ofusque a possibilidade de uma consciência correta da realidade. Nesse sentido, portanto, percebe o quanto o discurso da “flexibilização” serve aos interesses das classes capitalistas uma vez que a existência de trabalhadores moldáveis e mercados flexíveis contribuem para essas novas exigências da acumulação integral. Já para o proletariado tal “flexibilização” representa exatamente uma exploração integral.
Para quem conhece o rigor teórico‐metodológico presente no pensamento desse autor, e que pode ser compreendido de forma aprofundada nas suas principais obras que levantam preocupações desse cunho (A consciência da História – ensaios sobre o materialismo histórico‐dialético, 2007; Escritos metodológicos de Marx, 2007a), logo perceberá que essa crítica ao termo “flexibilização” não é secundária, pois se existe apenas uma realidade (nesse caso a acumulação capitalista na contemporaneidade), o conceito que busca expressá‐la não deveria ser equivalente a ela? Para Viana, assim como para nós, a resposta é só uma: sim, todo conceito deve ser expressão da realidade, pois “a expressão mais adequada a qualquer relação ou fenômeno social deve ser compatível com seu ‘ser’ que expressa” (VIANA, 2009, p. 70). Aqui, portanto, reside o fundamento da sua teoria do regime de acumulação integral, isto é, o regime de acumulação dominante a partir da década de 1980 se baseia numa acumulação capitalista integral. Mas, deixemos que o próprio autor apresente sua tese:
no caso da acumulação, o que se busca é concretizar uma acumulação integral, simultaneamente intensiva e extensiva através da extensão do processo de mercantilização das relações sociais e da busca de ampliação do mercado consumidor, mesmo que esta busca se caracterize, em parte, pela produção personalizada, e também pelo aumento da intensificação da exploração da
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força de trabalho através do aumento de extração de mais‐valor relativo e absoluto. No caso da especialização ou do que alguns chamam de pluri‐especialização(Coriat), trata‐se de uma especialização ampliada, onde ao invés do trabalhador se dedicar a apenas uma atividade passa a se dedicar a várias, embora se mantenha afastado do controle do processo de trabalho, o que significa especialização no processo de execução, e continue não executando certas funções práticas que ficam a cargo de outros trabalhadores. No caso dos trabalhadores, o que ocorre é uma intensificação da exploração com a retirada de seus direitos já conquistados e da formação de um mercado de trabalho inflexível, onde os trabalhadores se submetem a subcontratação, ao desemprego, etc. No caso da subcontratação (bem como no caso das horas extras), o que se vê é um aumento disfarçado da jornada de trabalho, o que significa aumento de extração de mais‐valor absoluto. Aliás, mais‐valor relativo e mais‐valor absoluto andam juntos no período de acumulação integral, embora isto seja constante no capitalismo, mas agora assume proporções intensas, tal como não ocorria há muito tempo na história do capitalismo (VIANA, 2009, p. 70‐71).
Como já foi dito, não visualizamos nenhuma diferença significativa
entre taylorismo e toyotismo, pois a suposta “flexibilização” da empresa com o objetivo de subordinar‐se à demanda do mercado “se revela numa mudança no quanto se produzir, e não no que e como se produzir. Pensar o contrário só seria possível imaginando que o consumidor iria idealizar um produto ainda inexistente e depois iria solicitá‐lo à empresa” (VIANA, 2009, p. 72).A produção personalizada representa a forma que as empresas encontraram para ampliar e conquistar o mercado consumidor através de suas agendas de publicidade e marketing, pois “para manter a reprodução ampliada do capital é preciso garantir a reprodução ampliada do mercado consumidor, e isto implica produzir necessidades fabricadas, já que estas realizam esta ampliação” (VIANA, 2009, p. 72).
Em síntese o toyotismo representa uma adaptação do taylorismo à nova fase do capitalismo, no período de vigência do regime de acumulação integral, expressando uma ofensiva do capital contra a tendência declinante da taxa de lucro, e isto tem representado para a classe trabalhadora um processo de exploração integral visto que, no processo de produção, e derivado da sua condição atual, tem promovido uma extensão das jornadas de trabalho, uma intensificação alucinante do ritmo de trabalho, ampliação da psicopatologia do trabalho etc. Isso para mencionarmos apenas as consequências diretas
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da produção de mais‐valor, fora as demais consequências, tais como, o crescente processo de lumpemproletarização (comprovado com o crescimento generalizado do desemprego em escala global e de um empobrecimento de parcela crescente da população mundial) e a criminalização de suas vítimas pelo Estado Penal etc. (WACQUANT, 2001; BRAGA, 2010; 2013).
Todavia, a acumulação integral não soluciona os problemas do capitalismo, pois se por um lado ela combate a tendência declinante da taxa de lucro, por outro lado, aumenta a exploração e promove um amplo processo de lumpemproletarização. Assim, tal regime de acumulação tende a possibilitar o crescimento da radicalização das lutas sociais que acaba colaborando para o enfraquecimento da hegemonia burguesa na sociedade civil. “Nesse sentido, a acumulação integral é contraditória e só se mantém enquanto perdurar a hegemonia burguesa, com toda a sua fragilidade em períodos como este” (VIANA, 2009, p. 76).
Antes de iniciarmos a discussão sobre a emergência do Estado neoliberal e sua dinâmica, gostaríamos de apresentar brevemente a singularidade da análise de Viana sobre o papel do Estado como agente regularizador das relações sociais na sociedade capitalista. Para Viana, é emergencial a construção de um conceito adequado que dê conta de expressar teoricamente a complexa relação que existe entre modo de produção e Estado. Tradicionalmente, a corrente “marxista” adota a metáfora do “edifício social” – infra‐estrutura e superestrutura – para analisar essa relação, no entanto, tal metáfora não é satisfatória, pois segundo a perspectiva do materialismo histórico‐dialético tanto o termo infraestrutura quanto o termo superestrutura não consistem em conceitos, ou seja, não expressam nenhuma realidade16.
16 Karl Marx “utilizou o par conceitual infra‐estrutura e superestrutura, ao que tudo indica, apenas uma vez, num prefácio que ele mesmo qualificou de ‘resumo geral’ que serviu de ‘fio condutor’ para suas pesquisas. Toda uma tradição posterior, auto‐intitulada ‘marxista’, transformou este par conceitual em ‘esquema básico’ do ‘materialismo histórico’. Coube a Karl Korsch, uma rara exceção, o mérito de romper com esse esquematismo. Ele afirmou que o materialismo histórico é um ‘instrumento heurístico’ e, assim, superou, implicitamente, a tese da relação esquemática entre ‘base’ e ‘superestrutura’ (VIANA, 2007, p. 69); “Essa tendência de transformação da metáfora ilustrativa em metáfora normativa é reforçada pela não elaboração de um
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Em nossa análise adotamos o conceito de formas de regularização das relações sociais17que engloba, assim como na concepção de Marx, o estado, as instituições estatais e privadas, as normas legais, a sociabilidade, as ideologias e a cultura em geral etc. que procuram tornar regular, além da produção, as relações sociais oriundas do modo de produção capitalista. Nesse sentido, afirmamos que todo regime de acumulação vem acompanhado de determinadas formas de regularização das relações sociais e da produção que lhe são próprias. É a partir dessa compreensão que analisaremos a principal forma de regularização das relações sociais do regime de acumulação integral que, nesse caso, consiste no Estado neoliberal.
Um equívoco comumente cometido por vários autores que discutem o neoliberalismo consiste em confundir a emergência da ideologia neoliberal com a emergência do próprio Estado neoliberal. Em 1944 surge a ideologia neoliberal com a obra Os caminhos da Servidão de F. Hayek, no entanto a forma estatal dominante nesse período até aproximadamente a década de 1980 é o Estado do “bem‐estar social”, portanto, ao contrário do que acreditam determinados autores (ANDERSON, 2000), não seria possível que o neoliberalismo enquanto forma estatal pudesse ter surgido com tal obra, nem sequer pode‐se afirmar que o neoliberalismo consistiu meramente na aplicação de tal ideologia na prática.
O Estado neoliberal, que emerge a partir da década de 1980, é resultado de um “conjunto de transformações no modo de produção capitalista, expressando uma alteração no seu regime de acumulação” (VIANA, 2009). Para compreender o neoliberalismo além de suas características aparentes é preciso inseri‐lo na totalidade das relações
conceito que expresse o referente material da noção de superestrutura. A construção do texto de Marx deixa claro as relações existentes entre as duas noções: elevação, constituição, correspondência, condicionamento, determinação, contradição, alteração etc., e outras no interior delas: correspondência, desenvolvimento, contradição, transformação etc. Isto comprova a existência de uma relação concreta entre as duas noções, mas estas não podem possuir uma relação verdadeiramente concreta, porquanto não são conceitos e sim noções ou constructos que não manifestam nenhuma realidade, apenas ilustram uma relação entre elementos desta” (VIANA, 2007, p. 71).
17 Sobre a teoria das formas de regularização das relações sociais Cf. (VIANA, 2007).
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sociais, analisar sua determinação fundamental no atual momento histórico, o desenvolvimento capitalista e a luta de classes que vêm se desenvolvendo nas últimas décadas. Vale ressaltar que a luta de classes é a determinação fundamental das mudanças ocorridas nos regimes de acumulação e que a mesma está presente nas três partes constituintes de tais regimes.
A emergência do neoliberalismo só pode ser compreendida se inserida nas transformações ocorridas a partir da década de 1960/70 nos países capitalistas imperialistas (EUA e algumas nações europeias). Na década de 1950 surge no Japão o sistema Toyota18, isto é, a forma de organização do trabalho necessária para combater a tendência declinante da taxa de lucro e promover uma nova fase de valorização do capital. O processo baseado nessa forma de organização foi chamado de “reestruturação produtiva” e se generalizou mundialmente nos países capitalistas imperialistas. Com isso é engendrado um novo regime de acumulação que exige outra formação estatal que regularize as novas necessidades do capital. Assim nasce o neoliberalismo.
Uma questão nos parece instigante, pois para que um novo regime de acumulação possa emergir é necessário que o anterior entre em crise, portanto em que consiste essa crise, ou seja, qual o significado da crise do regime de acumulação intensivo‐extensivo para a emergência do regime de acumulação integral e, consequentemente, do Estado neoliberal? As décadas de 60 e 70 do século XX são marcadas por uma crise do regime de acumulação intensivo‐extensivo derivada da tendência declinante da taxa de lucro médio. Tal tendência foi expressa em diversas dificuldades encontradas para a reprodução capitalista, pois
o sucesso deste regime de acumulação dependia do alto grau de exploração dos trabalhadores do capitalismo subordinado, da constante reprodução
18 “O sistema Toyota teve sua origem na necessidade particular em que se encontrava o Japão de produzir pequenas quantidades de numerosos modelos de produtos; em seguida evoluiu para tornar‐se um verdadeiro sistema de produção. Dada sua origem, este sistema é particularmente bom na diversificação. Enquanto, o sistema clássico de produção de massa planificado é relativamente refratário à mudança, o sistema Toyota, ao contrário, revela‐se muito plástico; ele adapta‐se bem às condições de diversificação mais difíceis. É porque ele foi concebido para isso” (OHNO apud CORIAT, 1995, p. 30).
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ampliada do mercado consumidor e da integração da classe operária no capitalismo oligopolista transnacional, elemento que dependia dos dois anteriores. A partir do final da década de 60, estes três elementos encontraram dificuldades crescentes em se reproduzir (VIANA, 2003, p. 92).
Juntamente com essas dificuldades passavam a crescer as ondas de
greves operárias, destaque para as francesas e italianas que atingiram grau elevadíssimo de radicalidade, e várias tensões sociais derivadas da organização e manifestação de diversos grupos, tais como o movimento de contracultura, o movimento hippie, o pacifismo, o movimento negro norte‐americano, o movimento feminista, o movimento estudantil etc., além dos conflitos ocorridos nos países de capitalismo subordinado. Esse quadro de tensões sociais contribuiu para o agravamento da crise de acumulação do regime de acumulação intensivo‐extensivo que desde a década de 60 se encontrava com sérias dificuldades.
Outras abordagens acrescentam a esse quadro a contribuição que outros fatores deram para o agravamento da crise, entre eles destacam‐se
os efeitos da decisão da OPEP de aumentar os preços do petróleo e da decisão árabe de embargar as exportações de petróleo para o Ocidente durante a guerra árabe‐israelense de 1973. Isso mudou o custo relativo dos insumos de energia de maneira dramática, levando todos os segmentos da economia a buscarem modos de economizar energia através da mudança tecnológica e organizacional [...] (HARVEY, 2008, p. 136).
A necessidade da burguesia em engendrar um novo regime de
acumulação vem acompanhada da necessidade de uma nova forma estatal que o torne regular. É nesse sentido, portanto, que o Estado neoliberal emerge, ou seja, como um complemento que atenda as novas necessidades do capital, pois o combate à tendência declinante da taxa de lucro passa pela criação de condições para o aumento da extração de mais‐valor e isto só seria possível ampliando a extração tanto em escala nacional quanto em escala internacional, ou seja, ampliando a exploração de forma integral. Desse modo, o Estado neoliberal complementa o processo de “reestruturação produtiva” criando as condições institucionais indispensáveis para o aumento da acumulação capitalista.
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A partir da década de 1980 diversos governos neoliberais chegaram ao poder. A eleição de Margareth Tatcher em 1979 na Inglaterra, Ronald Reagan em 1980 nos EUA e Helmuth Kohl em 1982 na Alemanha. Daí por diante, paulatinamente, diversos outros países adotaram políticas neoliberais e, por conseguinte, surge um período de expansão das privatizações, de desregulamentação dos mercados e das relações de trabalho, ajustes fiscais e monetários, precarização e intensificação do trabalho, expansão do lumpemproletariado e da repressão etc.
Em suma, o Estado neoliberal chega para varrer os direitos trabalhistas, precarizar as condições de trabalho possibilitando contratos temporários, terceirização, subcontratação, aumento do desemprego, exploração do trabalho infantil, cortes drásticos nas políticas sociais, aumento da insegurança social com a expansão da criminalidade e da repressão pelo “Estado Penal” e um amplo processo de empobrecimento em escala global via processo de lumpemproletarização. Por conseguinte, o Estado neoliberal cria as condições “legais” para a construção de um mundo de “exploração sem limites” (BOURDIEU, 1998), uma vez que substitui o Estado do Bem‐Estar Social pelo Estado do Bem‐Estar Corporativo (HARVEY, 1998a). Neste sentido,
podemos dizer que o Estado neoliberal está atingindo seus propósitos, pois vem contribuindo para o aumento da exploração e recuperação da acumulação capitalista, tanto a nível nacional quanto a nível internacional. Podemos dizer, resumidamente, que o neoliberalismo é uma nova forma estatal que surge nos anos 80, sendo produto do regime de acumulação integral, e que busca diminuir os gastos estatais, desregulamentar o mercado, subsidiar o capital oligopolista e aumentar a política repressiva, facilitando assim o desenvolvimento da reestruturação produtiva e da instauração de novas relações internacionais. As consequências do neoliberalismo são o aumento da pobreza e miséria, da desigualdade, da criminalidade e dos conflitos sociais. O mundo neoliberal é um mundo marcado por contradições crescentes (VIANA, 2009, p. 91).
Todo processo de valorização expressa uma correlação de forças entre a burguesia e o proletariado em determinado momento histórico, isto é, expressa certo estágio da luta de classes. É claro que tal luta de classes tem apontado, até então, para a preeminência da dominação da burguesia, pois caso contrário, as relações de produção capitalistas
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estariam abolidas ou prestes a serem abolidas. Todavia, tal preeminência não é absoluta, pois a luta cotidiana e espontânea do proletariado tende a criar obstáculos e recuos para o desenvolvimento de uma exploração cada vez maior no processo de acumulação. Dessa forma, a luta de classes no capitalismo se apresenta relativamente estável já que a ofensiva operária, apesar de vários momentos de radicalidade na história, não conseguiu, até então, abolir as relações de produção capitalistas.
As formas estatais que a sociedade capitalista conheceu também expressa uma correlação de forças entre as duas classes fundamentais do capitalismo, assim como de outras classes sociais, em períodos históricos específicos. Isso pode ser percebido, por exemplo, nas conquistas operárias e camponesas que possibilitaram alterações nas legislações capitalistas, criação de leis trabalhistas, indenizações etc. Mas nesse caso a luta de classes também se expressa de forma relativamente estável. Do mesmo modo, a exploração internacional se apresenta como expressão da luta de classes mediada pelos Estados Nacionais. Ela aponta, em cada estado‐nação, a correlação de forças entre as classes sociais internas que influenciam as relações internacionais e define determinadas características de uma nação nessas relações (VIANA, 2009).
O regime de acumulação, portanto, é a forma que o capitalismo assume durante o seu desenvolvimento. O desenvolvimento capitalista, no entanto, possui uma tendência, determinada em sua própria essência: a produção de mais‐valor. O desdobramento da produção de mais‐valor é a acumulação de capital e este, por sua vez, gera a reprodução ampliada e a centralização e concentração do capital, gerando a expansão mundial do capitalismo e a exploração internacional, ao lado da ação estatal no sentido de garantir todo este processo (VIANA, 2009, p. 31).
Antes de tecermos nossos últimos comentários sobre a teoria do regime de acumulação integral, gostaríamos de mencionar que sua forma composta pela exploração internacional, ou seja, o neoimperialismo, será analisada no próximo capítulo quando destacaremos a condição brasileira de capitalismo subordinado aos interesses das potências neoimperialistas.
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As tensões sociais derivadas da exploração capitalista promovem a eclosão de diversas lutas e resistências das classes operárias e de outras classes sociais que ameaçam a existência do modo de produção capitalista e contribui para o agravamento da crise social, pois diante desse perigo as classes capitalistas e suas classes auxiliares (burocracia estatal e partidária, por exemplo) são coagidas a recuarem e realizarem diversas concessões que acabam por emperrar o desenvolvimento do capital em busca de sua meta essencial que é a extração, cada vez maior, de mais‐valor. Além disso, existe a tendência geral e espontânea da acumulação capitalista de gerar o declínio da taxa de lucro médio, que, por sua vez, obriga a classe capitalista a ampliar a exploração com o intuito de combater essa queda.
As crises capitalistas são resultados da radicalidade desses dois desdobramentos que se reforçam mutuamente, pois
as conquistas do proletariado interferem na extração de mais‐valor, reforçando a tendência de queda da taxa de lucro e esta tendência, realizando‐se e provocando a ação reativa da classe burguesa no sentido de aumentar a exploração para compensar tal queda, reforça o descontentamento e a luta do proletariado. Assim, um tende a reforçar o outro e proporcionar uma crise. Esta crise ou gera um processo revolucionário e abolição do capitalismo ou então proporciona um mudança no interior do capitalismo, isto é, uma mudança no regime de acumulação (VIANA, 2009, p. 31‐32).
Os regimes de acumulação, portanto, são formas assumidas pelo desenvolvimento capitalista e que expressam as configurações derivadas da luta de classes em determinado contexto histórico e que se configuram em formas específicas de processo de valorização do capital, formas estatais e determinadas relações internacionais. Esses são seus principais elementos definidores. No entanto, a expressão da luta de classes não se resume nessas formas, uma vez que outras esferas como a cultural, ideológica, científica, cotidiana etc., também caracterizam relações, valores e perspectivas de classes antagônicas que são próprias dessa atual configuração do capitalismo na era da acumulação integral.
É importante destacar que apesar da história do capitalismo ser marcada pela sucessão dos regimes de acumulação, isto não deve nos levar a crer que o modo de produção capitalista tende a solucionar
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infinitamente os problemas derivados de sua própria dinâmica, pois o que se percebe é que a cada novo regime de acumulação a dificuldade em promover a extração de mais‐valor, combater a tendência declinante da taxa de lucro e reprimir as crescentes lutas sociais e sua disposição cada vez maior em se radicalizar se torna mais difícil. A cada crise de um regime de acumulação a possibilidade de uma transformação social se abre e mesmo essa não ocorrendo e um novo regime de acumulação surgindo, o processo de exploração e as dificuldades de reprodução do capitalismo se tornam mais complicadas (VIANA, 2009). Expansão e criminalização do lumpemproletariado nos EUA.
Como já vimos toda forma estatal expressa determinada correlação
de forças na luta de classes. O neoliberalismo é expressão de uma violenta ofensiva do capital contra o proletariado e outras classes exploradas e suas conquistas sociais históricas, visando proporcionar a retomada da acumulação capitalista. Dessa maneira, o Estado neoliberal se apresenta como um complemento de toda essa mudança estrutural, necessária para a emergência do novo regime de acumulação, atuando no campo da regularização das novas relações sociais imprescindíveis à efetivação da acumulação integral de capital e, consequentemente, da restauração do poder de classe da burguesia.
Com a vitória de Ronald Reagan à presidência dos Estados Unidos em 1980, inicia‐se a era da liberalização econômica, da nova regulamentação dos mercados e das relações trabalhistas, dos cortes de impostos para as corporações capitalistas, cortes orçamentários públicos e dos ataques à classe operária e a outras classes exploradas em geral. Um caso exemplar dessa nova ofensiva do capital sobre o trabalho nos Estados Unidos pode ser percebida no duro golpe aplicado contra os sindicatos dos controladores de vôo (PATCO) no ano de 1981 e do impacto negativo que os salários sofreriam a partir desse ano. De acordo com Harvey, a derrota desse sindicato para Reagan, na greve de 1981, marcou
um ataque generalizado aos poderes do trabalho organizado no próprio momento em que a recessão inspirada em Volcker produzia altas taxas de desemprego (de ao menos 10%) [...] O efeito global sobre a condição do trabalho foi dramático – talvez melhor captado pelo fato de o salário mínimo
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federal, que era paritário ao nível de pobreza em 1980, ter caído para 30% abaixo desse nível por volta de 1990. Iniciou‐se assim, com vigor, o longo declínio sobre os níveis dos salários reais (2008a, p. 34).
Para melhor compreendermos as lutas de classes como o motor
propulsor das mudanças nas formas estatais e nas tentativas de reconstrução do poder de classe da burguesia e de suas classes auxiliares nos Estados Unidos, resgataremos as batalhas urbanas dos anos de 1960 na cidade de Nova York e seus principais desdobramentos. Segundo Harvey (2008a), há décadas a reestruturação capitalista e o processo de deslocamento industrial vinha corroendo a base econômica de Nova York e promovendo um amplo processo de suburbanização e empobrecimento da população residente no centro da cidade. Em resposta a esse empobrecimento, uma onda explosiva de revoltas sociais dominou a cidade dando origem ao episódio que ficou conhecido como “crise urbana”. No primeiro momento, o governo federal procurou resolver a crise com a promoção da expansão do emprego e serviços públicos, no entanto diante das crises fiscais federais, o presidente Nixon se vê obrigado a abandonar essa prática sob a alegação de que o problema da “crise urbana” não mais existia. No fundo isso significaria que os recursos federais não mais chegariam à Nova York.
Com o avanço da recessão, as distâncias entre a receita e os gastos da cidade se ampliaram e no primeiro momento as instituições financeiras conseguiram contornar a situação, mas a partir de 1975, os principais banqueiros se recusam a rolar a dívida e Nova York foi à bancarrota técnica. Após a bancarrota, diversas novas instituições foram criadas para administrar o orçamento da cidade e a maneira pela qual a mesma passou a ser administrada (congelamento de salários, cortes drásticos no emprego público e na manutenção de serviços sociais – educação, saúde pública, serviços de transporte – etc.) nos oferece um cardápio do receituário neoliberal que se tornaria dominante daí pra frente nos EUA:
a administração da crise fiscal de Nova York abriu pioneiramente o caminho para as práticas neoliberais, tanto domesticamente, sob Reagan, como internacionalmente por meio do FMI na década de 1980. Estabeleceu o princípio de que, no caso de um conflito entre a integridade das instituições
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financeiras e os rendimentos dos detentores de títulos, de um lado, e o bem‐estar dos cidadãos, de outro, os primeiros devem prevalecer. Acentuou que o papel do governo é criar um clima de negócios favorável e não cuidar das necessidades e do bem‐estar da população em geral. A política do governo Reagan nos anos 1980, conclui Tabb, foi “apenas o cenário de Nova York” dos anos 1970 “bastante ampliado” (HARVEY, 2008a, p. 58).
Em poucos anos quase todas as conquistas do proletariado de Nova
York foram destruídas, as infraestruturas sociais e físicas da cidade (o metrô, por exemplo) foram sucateadas e o próprioproletariado foi novamente lançado a uma condição de vida precária, quando não lumpemproletarizada: reflexo da luta de classes marcada por uma contraofensiva do capital.
Em nome dos “negócios favoráveis” a população empobrecida do centro de Nova York foi expulsa pela especulação imobiliária e obrigada a sobreviver da “economia ilegal das ruas” nos subúrbios, que passaram a experimentar um alto índice de lumpemproletarização, mortalidade juvenil, consumo de crack entre jovens lumpemproletários, crescimento da população sem‐teto e da criminalização do lumpemproletariado (HARVEY, 2008a). Dessa maneira,
a redistribuição de renda através da violência criminosa se tornou uma das poucas opções reais para os pobres, e as autoridades reagiram criminalizando comunidades inteiras de pessoas empobrecidas e marginalizadas. As vítimas foram consideradas culpadas e [Rudolf] Giuliani, o então prefeito, ficou famoso pela vingança que promoveu em favor de uma burguesia cada vez mais abastada de Manhattan, cansada de ter de enfrentar na porta de casa os efeitos dessa devastação (HARVEY, 2008a, p. 57‐58).
A partir da década de 1970, e principalmente com a neoliberalização
da economia norte‐americana na década de 1980, as consequências sociais do que ocorreu em Nova York pôde ser percebida em diversas outras cidades do país, que passaram a conviver com altas taxas de desemprego, subemprego, trabalhos precários, salários‐miséria, alto índice de criminalidade, tráfico de drogas e toxicomania juvenil, violência generalizada, crescimento do número de sem‐tetos, mendicância etc. Percebe‐se que sob a vigência do regime de acumulação integral, tais índices (anti)sociais não são mais exclusivos de países de capitalismo subordinado, mas passa a fazer parte também
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da realidade social de países de capitalismo imperialista tal como os Estados Unidos, que vem experimentando um processo de expansão da lumpemproletarização. As análises de Wacquant, assim como de outros autores19, comprovam esse processo:
entre 1978 e 1990, o condado de Los Angeles perdeu cerca de 200 mil postos de trabalho, dos quais a maior parte era de empregos industriais sindicalizados e de salários altos, ao mesmo tempo que recebia um influxo de 1 milhão de imigrantes. Muitos desses postos foram perdidos para vizinhos de minorias na área de South Central e para comunidades de innercities, onde programas e investimentos públicos estavam sendo simultaneamente cortados de forma drástica (Johnson et al.,1992). Como consequência, o desemprego em South Central ultrapassa 60% entre os jovens latinos e negros e a economia ilegal da droga tornou‐se a fonte mais confiável de emprego para muitos deles (WACQUANT, 2005, p. 32).
A obra Cidade de Quartzo (1993), de Mike Davis, fornece um quadro assolador sobre o abandono e miséria em que se encontrava o proletariado, formado majoritariamente por negros, nos subúrbios de Los Angeles a partir da década de 1970. Segundo Davis, entre 1978‐1982 a economia industrializada de Los Angeles entra em colapso, pois não suporta a concorrência gerada pelas importações japonesas. Das doze maiores fábricas do setor espacial existentes na região da Califórnia Meridional dez se tornarão inativas a partir da concorrência asiática. Nas regiões onde as fábricas e depósitos não sucumbiram, foram 19 Já no final da década de 1980 os Estados Unidos inaugura seus refúgios alucinógenos para a população lumpemproletária, espécie de “cracolândia norte‐americana”: “No Condado de Los Angeles, onde a mortalidade infantil está em franca ascensão, e a rede de tratamento de traumas do Condado entrou em colapso, não é de surpreender que a assistência médica para os viciados em crack – que os especialistas concordam que exige um tratamento a longo prazo numa instituição terapêutica – geralmente não esteja em disponibilidade. Assim, a região do submundo, o pesadelo do “Nickle” no Centro, possui a maior concentração unitária de viciados em crack – velhos e novos, mas nem um único posto de tratamento. A rica Pasadena está enfrentando a atividade das gangues com base no crack, localizadas no seu gueto do Noroeste, com sua própria versão do HAMMER, inclusive com revistas humilhantes de desnudamento na rua e uma política de despejo de inquilinos ligados a drogas, sem gastar um só centavo em reabilitação de viciados. Os exemplos poderiam ser depressivamente multiplicados, à medida em que o tratamento para viciados é abandonado na mesma última gaveta que os preceitos liberais esquecidos, como o emprego para os jovens ou o aconselhamento para as gangues” (DAVIS, 1993, p. 278).
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transferidas, em número aproximado de 321 firmas desde 1971, para outros parques industriais com oferta de mão‐de‐obra mais atrativa. O resultado catastrófico para a população local foi apresentado por um comitê de investigação do Legislativo da Califórnia em 1982 que confirma “a destruição econômica resultante nos bairros do Centro‐Sul: o desemprego cresceu em quase cinquenta por cento desde o começo dos anos setenta, enquanto o poder aquisitivo da comunidade caiu em um terço” (DAVIS, 1993, p. 269). Com a chegada da década de 1980 é possível perceber uma escalada surpreendente da lumpemproletarização juvenil da população negra dos guetos de Los Angeles, pois
o desemprego entre os negros jovens do condado de Los Angeles – a despeito do crescimento regional ininterrupto e de uma nova explosão de consumo acelerado – permaneceu num assustador 45 por cento no decorrer dos anos oitenta. Uma pesquisa de 1985 sobre projetos de habitação pública no gueto descobriu que havia apenas 120 trabalhadores empregados em 1060 domicílios em NickersonGardens, setenta em quatrocentos em Pueblo del Rio, e cem em setecentos em Jordan Downs. A escala de demanda reprimida por empego manual decente foi vividamente demonstrada há poucos anos, quando cinqüenta mil jovens, predominantemente negros e chicanos, fizeram uma fila de quilômetros para se candidatar a umas poucas vagas na estiva de San Pedro [...] Correlacionada ao posicionamento periférico dos negros da classe trabalhadora na economia está a dramática juvenilização da pobreza entre todos os grupos étnicos do gueto. Em termos estaduais, a percentagem da pobreza dobrou (de 11 por cento para 23 por cento) em relação à última geração. No Condado de Los Angeles, durante os anos oitenta, tristes quarenta por cento das crianças viviam abaixo ou logo acima do limite de pobreza oficial. As áreas mais pobres do condado, além disso, são invariavelmente as mais jovens: de sessenta e seis domicílios do censo (em 1980) com rendas familiares médias de menos de 10 mil dólares, mais de 70% possuíam uma idade média de apenas 20‐24 anos (o restante, 25‐29). (DAVIS, 1993, p. 270).
Realidade semelhante foi experimentada pelo “hipergueto” da cidade de Chicago nesse mesmo período. Além das razões fundamentais que levaram à transição do regime de acumulação intensivo‐extensivo para o regime de acumulação integral, já mencionadas anteriormente, existem outras determinações específicas da realidade norte‐americana e que explicam a expansão do lumpemproletariado na cidade de Chicago. Dentre elas, merece destaque a saturação dos mercados internos, a partir de meados da
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década de 1960, provocada pela competição internacional, pela busca por uma maior mobilidade do capital visando encontrar condições mais atrativas para o processo de acumulação, pela ampla redução de proteções aos assalariados etc. A partir do momento em que uma economia baseada na produção industrial, no consumo de massa e na existência de sindicatos, que garantiam aos trabalhadores estabilidade no emprego, salários altos etc. foi sendo substituída por uma economia predominantemente apoiada nas ocupações de serviços, fundamentada no capital financeiro e no sucateamento das economias regionais, uma gigantesca transformação atingiu as relações trabalhistas, os mercados de trabalho e os níveis salariais (WACQUANT, 2005).
Por conta dessas mudanças no mercado de trabalho, juntamente com a política de extermínio generalizado de todo e qualquer tipo de assistência pública, as contradições sociais no gueto tem se ampliado rapidamente. O crescimento acentuado do desemprego e do subemprego tem sido acompanhado pelo aumento incrível da criminalidade, do assassinato e do tráfico e consumo de drogas. Isso tem promovido uma crescente fuga das classes auxiliares que levam consigo as redes de comércio e parcela da renda que possibilitava uma movimentação econômica mínima na região. Dessa forma, o gueto tende a se tornar um espaço típico do “salve‐se quem puder e da forma como puder”, pois,
além da economia da droga e do mercado informal – cujo desenvolvimento é visível em outros setores da economia norte‐americana, inclusive os mais avançados – o coração do gueto assistiu a uma proliferação de pequenos ‘negócios’ subproletários [lumpemproletários, LB] típicos das cidades do Terceiro Mundo: comerciantes de rua, vendedores de jornais, cigarros ou refrigerantes por unidade, carregadores, manobristas, diaristas etc. Não existe área do South Side sem táxi clandestinos, mecânicas ilegais, clubes noturnos e meninos que oferecem para carregar sacolas na saída do supermercado local ou encher o tanque do carro no posto de gasolina, em troca de alguns trocados. Tudo pode ser comprado ou vendido nas ruas, desde bolsa Louis Vuitton falsificadas (a 25 dólares cada), até carros roubados, armas (trezentos dólares por uma ‘arma limpa’, em geral, ou a metade por uma ‘suja’), roupas com defeito, comida caseira e bijuterias. A economia dos jogos de azar – bingos, loterias, loto, jogos ilegais de cartas e dados – não conhece recessão” (WACQUANT, 2008, p. 42‐43).
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Com o crescimento vertiginoso do desemprego e do subemprego, a partir da década de 1970, em várias cidades20 dos Estados Unidos, outras frações do lumpemproletariado se expandiram por todo o país. Dentre elas ganha destaque a fração composta por sem‐tetos. Um estudo realizado por Snow e Anderson (1998) nos possibilita apreender a expansão dessa fração do lumpemproletariado após a década de 1980, na cidade de Austin (Texas). A pesquisa demonstra que a partir dessa década, ocorre uma gigantesca proliferação de sem‐tetos em quase todas as cidades norte‐americanas. De acordo com o Exército da Salvação (Entidade cristã‐protestante beneficente) de Austin, o atendimento a moradores de rua cresceu mais de 100% em 1985 se comparado com o ano de 1979 (SNOW & ANDERSON, 1998).
Que multiplicidade de determinações envolve o crescimento acelerado do número de sem‐tetos em diversas cidades norte‐americanas? Antes mesmo do regime de acumulação integral se tornar uma realidade nos EUA, já havia uma quantidade significativa de desempregados que sobreviviam, em grande parte, à custa de algum programa federal de assistência social. Isso possibilitava que essa fração do lumpemproletariado tivesse acesso há alguns bens básicos, tais como alimentação, moradia (de baixa renda) etc. e, consequentemente, isso camuflava e contornava esse problema social. Porém, a partir da década de 1970 essa realidade já não é mais a mesma, pois junto com a 20 Apesar de termos utilizado apenas as cidades de Los Angeles e Chicago para demonstrar a expansão do lumpemproletariado via crescimento generalizado do desemprego, no regime de acumulação integral, outras pesquisas demonstram que o desemprego em massa tornara‐se uma realidade nacional: “Um estudo que descobriu que 30% das fábricas existentes nos EUA em 1969 haviam fechado por volta de 1976, estimou que ‘fugas [transferências de fábricas para outros locais], encerramento de atividades, e cortes físicos permanentes beirando o fechamento podem ter custado ao país algo como 38 milhões de empregos’. Um outro estudo concluiu que mais de 16 milhões de empregos industriais foram perdidos entre 1976 e 1982 devido a fechamento de fábricas, e um exame congressual das conseqüências desse desemprego estrutural relatou que ‘nos últimos anos, milhões de trabalhadores americanos perderam seus empregos devido a mudanças estruturais nas economias norte‐americana e mundiais. Alguns deles ‐ especialmente trabalhadores mais jovens com qualificações em demanda ou com formação educacional certa – têm pouca dificuldade de achar novos empregos. Outros – centenas de milhares por ano – permanecem sem emprego por semanas ou meses, ou até mesmo anos” (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 398).
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expansão do lumpemproletariado, visível através do crescimento do desemprego, o Estado Neoliberal irá promover um corte drástico em diversas políticas de assistência social, inclusive na diminuição da assistência à moradia:
o desaparecimento de quantidade cada vez maiores de unidades habitacionais de baixa renda – 2.5 milhões de unidades desde 1980, de acordo com algumas estimativas – pode ser atribuído essencialmente à conjunção de indiferenças governamental e de forças de mercado tais como o aburguesamento e o abandono. A primeira se refletia claramente na diminuição do apoio governamental a programas habitacionais para os pobres durante a administração Reagan. Quando as iniciativas habitacionais para todos os programas habitacionais de baixa renda do HousingandUrbanDevelopment (HUD) diminuíram de cerca de 183.000 unidades em 1980 para cerca de 28.000 em 1985, um observador argumentou que não apenas a administração Reagan estava declarando guerra contras os programas habitacionais para os pobres, mas estava também procurando reverter “o compromisso de 50 anos do governo federal para com esses programas” (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 381).
Aliado a essa política de diminuição de investimentos federais em programas habitacionais para a população de baixa renda, outros fatores somam‐se como determinantes no aumento da população de sem‐tetos nos EUA. O grande número de desempregados nas principais cidades americanas, juntamente com o crescimento acelerado da pobreza nos EUA e das desigualdades sociais em geral21, provocaram o aumento pela procura de habitações de baixa renda e, consequentemente, a diminuição da oferta desse tipo de habitação22. 21 Segundo “os relatórios publicados pelo U.S. Bureau oftheCensus desde meados da década de 80 mostram um acentuado aumento da pobreza na América (Center ofBudgeandPolicyPriorities, 1985, 1988) e uma onda de ‘desigualdade’ geral (Thurow, 1987)” (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 378).
22 “Os levantamentos sobre habitação do governo federal, os relatórios publicados por grupo de defesa dos moradores de rua e os pesquisadores de habitação independentes, todos, relatam praticamente a mesma conclusão: o estoque de habitação de baixa renda da nação foi liquidado ao longo dos últimos vinte anos. Só entre 1973 e 1979, 91% de quase um milhão de unidades habitacionais que eram alugadas por $ 200 por mês ou menos em toda a nação desapareceram do mercado de aluguel. Estima‐se que, só na cidade de Nova Iorque, mais de 310.000 unidades habitacionais de baixa renda foram perdidas entre 1970 e 1983. Como essa dizimação do mercado de aluguel de baixa renda aumentou progressivamente ao longo da década de 80, a Nacional Coalition for theHomeless estimou que cerca de meio
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Esse conjunto de fatores, aliado ao boom do mercado inflacionário imobiliário de diversas cidades americanas, apertava ainda mais o cerco contra a população lumpemproletarizada, ampliando e muito o número de sem‐tetos que passava a ocupar locais de maior visibilidade pública – parques, pontos de ônibus, porta de lojas, bares e restaurantes, banheiros públicos, bibliotecas etc. (SNOW & ANDERSON, 1998; DAVIS, 1993).
Outra determinação que contribuiu para a expansão do número de sem‐teto é o crescimento elevadíssimo do subemprego nos EUA. Milhares de pessoas que foram atingidos pelo desemprego, geralmente quando retornam ao mercado de trabalho passam a receber salários menores do que os anteriores. Não é pequeno o número de salários abaixo do nível de pobreza oficialmente estabelecido nos país e que, portanto, obriga essa fração do lumpemproletariado a trabalhar em dois ou três subempregos, mas que, ainda assim, não consegue obter renda suficiente para pagar um quarto sequer para morar. Segundo a Coalizão Nacional para os Sem‐Teto23, em 1998 seria necessário um salário de 8,89 dólares por hora para pagar um quarto e sala. Outra entidade não governamental (Centro de Preâmbulo para Políticas Públicas) estima que a possibilidade de um indivíduo assistido pelo seguro‐desemprego encontrar um emprego que pague esse salário era de mais ou menos 01 chance em 97 (EHRENREICH, 2004). Isso sem contar o número de milhão de unidades de baixa renda estavam sendo perdidas anualmente por volta da segunda metade da década” (Ibid, 1998, p. 379).
23 “A Coalizão Nacional para os Sem‐Teto é uma rede nacional de pessoas, que estão experimentando atualmente a falta de moradia ou que já a tenham experimentado, ativistas, advogados e outros prestadores de serviços, baseados na comunidade e na fé, comprometidos com uma única missão. Essa missão, o nosso elo comum, é acabar com a falta de moradia. Estamos empenhados em criar as mudanças sistêmicas e atitudinais necessárias para prevenir e acabar com a condição de sem‐teto. Ao mesmo tempo, trabalhamos para atender às necessidades imediatas das pessoas que estão atualmente na condição de sem‐teto ou que correm esse risco. Tomamos como primeiro princípio da prática que as pessoas que estão experimentando atualmente a condição de sem‐teto ou que já experimentou tal condição devem ser envolvidas em todo o nosso trabalho. Para este fim, a Coalizão Nacional para os Sem‐teto (NCH – sigla em inglês para Nacional CoalitionHomeless) se engaja na educação pública, defesa de políticas, e organizações de base. Focamos nosso trabalho nas seguintes quatro áreas: moradia justa, justiça econômica, saúde e direitos civis” (IN: http://www. nationalhomeless.org/about_us/index.html ‐ tradução nossa).
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pessoas e famílias que moram nos seus próprios automóveis. Em sua obra Miséria à americana – vivendo de subemprego nos Estados Unidos (2004), Ehrenreich constata:
não consegui encontrar estatísticas sobre o número de pessoas empregadas que moram em carros ou vans, mas segundo um relatório de 1997 da NationalCoalition for theHomeless intitulado “MythsandFactsaboutHomeless” (Mitos e fatos sobre a falta de moradia), quase um quinto de todos os sem‐teto, em vinte e nove cidades de todo o país, tem emprego em tempo integral ou meio expediente (2004, p. 36).
Assim como ocorreu nas principais cidades industrializadas do
século XIX, a presença cada vez maior do número de lumpemproletários nos espaços públicos passava a gerar grandes incômodos às classes ricas de diversas cidades americanas, que buscou declarar guerra a tal presença. Diversas foram as armas e estratégias elaboradas pelo poder público e pela iniciativa privada, a serviço da propriedade burguesa e do seu conforto visual. Em Los Angeles, a forma encontrada para conter os sem‐tetos foi confinando‐os no submundo. Ao longo da Rua 50, a leste da Broadway, criaram‐se uma verdadeira “favela a céu aberto” que, na década de 1990, representava um dos dez quarteirões mais perigosos do mundo (DAVIS, 1993):
nesta zona do submundo, todas as noites são sexta‐feira 13, de modo nada surpreendente, muitos dos sem‐teto tentam a todo custo escapar do “Nickle” durante a noite, procurando por malocas mais seguras em outras partes do Centro. A cidade em resposta aperta o laço com crescente intervenção da polícia e com engenhoso design urbano de vocação dissuasiva. Um dos mais comuns, mas embrutecedor, destes estorvos é o banco de ponto de ônibus em forma de barril, que oferece uma superfície mínima para um sentar desconfortável, enquanto torna completamente impossível dormir sobre ele. Tais bancos “à prova de vagabundos” estão sendo amplamente introduzidos na periferia do submundo [...] restaurantes e mercados responderam aos sem‐teto com a construção de ambientes cercados e ornamentados para proteger sua recusa. Embora ninguém em Los Angeles tenha ainda proposto colocar cianeto no lixo, como aconteceu em Phoenix há poucos anos atrás, um popular restaurante de frutos do mar gastou 12 mil dólares para construir uma lata de lixo definitivamente à prova de mendigos: ela é confeccionada com chapas de aço de 2centrímentos de espessura e equipada com cadeados blindados e mórbidas pontas espetadas para fora, de
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modo a salvaguardar cabeças de peixe de preço inestimável em decomposição e batatas fritas bolorentas (p. 213‐214).
Com o objetivo claro de evitar a presença do lumpemproletariado
em algumas regiões da cidade de Los Angeles, os banheiros públicos, assim como as fontes de águas, utilizados por sem‐tetos para tomar banho, foram deliberadamente destruídos. Se comparada com outras cidades importantes de toda a América do Norte, Los Angeles era a cidade que possuía o menor índice de banheiros públicos na década de 1990. Diante de toda essa política repressiva, os lumpemproletários da “cidade dos anjos” foram transformados em espécies de “beduínos urbanos”,
visíveis em todos os lugares do Centro, empurrando seus poucos e patéticos pertences em carrinhos de supermercados roubados, sempre fugitivos e em movimento, espremidos entre a política oficial de conteção e o sadismo progressivo das ruas do Centro (DAVIS, 1993, p. 215).
Uma das consequências sociais diretas e inevitáveis da promoção do
Estado neoliberal é, sem sombra de dúvidas, o aumento das tensões sociais e da criminalidade derivadas dos cortes em políticas de assistência social, da diminuição drástica da oferta de empregos, dos salários‐miséria, da fome, do desabrigo e da opressão em geral, tanto nos países subordinados, quanto nos países imperialistas. Por conta desse quadro é que esse Estado será caracterizado por uns como sendo “mínimo e forte” (Bobbio, 2009) e por outro como sendo uma espécie de “Estado Penal” (Wacquant, 2001), uma vez que o mesmo se vê coagido a dar uma resposta positiva (para os interesses das classes dominantes) ao espetáculo da insegurança social, à imundice visual causada pela presença do lumpemproletariado nos centros comerciais e à criminalidade crescente, através da expansão das práticas repressivas e do encarceramento em massa dessa classe social.
Nesse sentido, o Estado penal apresenta‐se como um complemento nas mudanças das relações de trabalho contemporâneas, pois busca substituir as políticas sociais por medidas de criminalização do lumpemproletariado. Porém, ele deve fazer isto contendo seus próprios gastos e buscando diminuir o crescimento da dívida pública, pois dessa maneira ele garante os interesses do capital oligopolista. Por outro lado,
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a miséria tende a aumentar, assim como o desemprego e a criminalidade, então o estado deve optar por aumentar o aparato repressivo ou ampliar os gastos sociais, mas faz opção pelo primeiro por ser menos dispendioso, ou seja, mesmo investindo em aumento da repressão – que não é tanto assim, já que em parte apenas aumenta o uso do aparato repressivo já existente, ao invés de políticas de assistência social e, ainda permite a ampliação do lumpemproletariado que barateia a força de trabalho em certos setores, diminuindo os gastos do capital.
É nesse contexto que surge em Nova York, e tende a se tornar uma prática mundial via importação, a política da “tolerância zero” e, juntamente com ela,
a retórica militar da ‘guerra’ e da ‘reconquista’ do espaço público, que assimila os delinquentes (reais ou imaginários), sem‐teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros – o que facilita o amálgama com a imigração, sempre rendoso eleitoralmente (WACQUANT, 2001, p. 30).
LoicWacquant apresenta em diversas obras a absurda escalada do
Estado Penal e sua prática de encarceramento em massa dos setores mais pobres da sociedade norte‐americana, demonstrando uma íntima relação entre o neoliberalismo, a ampliação do lumpemproletariado e a expansão das práticas de criminalização dessa classe social no regime de acumulação integral. De acordo com ele,
a reviravolta da demografia carcerária americana depois de 1973 será tão brutal quanto espetacular. Contra qualquer expectativa, a população penitenciária do país começa a aumentar em uma velocidade vertiginosa: fato sem precedentes em uma sociedade democrática, ela “dobra em dez anos e quadruplica em vinte”. Partindo de menos de 380 mil em 1975, o número de pessoas encarceradas beira os 500 mil em 1980. E continua a inchar no ritmo infernal de 9% ao ano em média (ou seja, 2 mil detentos suplementares por semana durante a década de 90, de maneira que em 30 de junho de 1997 a América contava com 1.855.575 prisioneiros, dos quais 637.319 nas casas de detenção dos condados e 1.218.256 nas prisões federais e estaduais. Se estivesse em uma cidade, a população carcerária estadunidense seria a sexta maior metrópole do país (2003, p. 57).
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Expansão da população carcerária nos Estados Unidos (1975‐1995)
1975 1980 1985 1990 1995 Casas de detenção (cidades e condados)
138.800 182.288 256.615 405.320 507.044
Penitenciárias Estaduais e federais
240.593 315.974 480.568 739.980 1.078.357
Total encarcerado
379.393 498.262 737.183 1.145.300 1.585.401
Crescimento em 05 anos
‐ 31,3% 47,9% 55,4% 38,4%
Fonte: Bureau of Justice and Statistics, Correctional Populacion in United States, 1995, Washington, U.S. Government Printing Office, 1996: Jail and jail inmates 1993‐1994, idem, 1994, apud WACQUANT, 2003, p. 57.
A emergência do regime de acumulação integral e de suas
contradições/tensões sociais nos EUA provocou uma verdadeira ruína dos espaços sociais habitados pelo conjunto da população empobrecida24, que foi a maior vítima de todas essas contradições/tensões, em especial o processo expansivo da lumpemproletarização. Para milhares de pessoas a simples garantia da sobrevivência diária tornou‐se uma verdadeira guerra cotidiana, pois marginalizados na divisão social do trabalho, estigmatizados pela cor da pele (o lumpemproletariado norte‐americano é formado majoritariamente pela população negra) e pelo endereço residencial, essa classe social só consegue visualizar duas “opções” (WACQUANT, 2001, 2003, 2005, 2008): ou se submeter ao trabalho precário, temporário e de salários‐miséria ou entrar para a vida bandida do tráfico de drogas
24LoicWacquant denominou esse processo de desertificação organizacional do gueto: “ao mesmo tempo causa e efeito da erosão do espaço público, o declínio das instituições locais (comércio, igrejas, associações de bairro e serviços públicos) chegou a um grau quase equivalente ao de um deserto organizacional. A origem da espantosa degradação do tecido institucional e associativo do gueto é encontrada, mais uma vez, no recuo repentino do Estado do bem‐estar social, o que solapou a infra‐estrutura que permitia às organizações públicas e privadas desenvolver‐se e subsistir nos bairros estigmatizados e marginalizados” (WACQUANT, 2008, p. 39).
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e do roubo a mão armada, que apesar de altamente arriscado, tanto pelo conflito com a polícia quanto pelo conflito entre traficantes rivais, possibilita uma renda infinitamente maior que a do subemprego. A segunda opção tem sido, sem sombra de dúvidas, a principal “escolha” da maior parte da juventude lumpemproletária, habitante dos guetos norte‐americanos, que a partir daí tem se tornado, consequentemente, a clientela favorita do sistema carcerário norte‐americano:
evidencia‐se imediatamente que o meio milhão de reclusos que abarrotam as quase 3.300 casas de detenção do país – e os 10 milhões que passam por seus portões a cada ano – são recrutados prioritariamente nos setores mais deserdados da classe operária, e notadamente entre as famílias do subproletariado de cor nas cidades profundamente abaladas pela transformação, que, reelaborando sua missão histórica, o encarceramento serve bem antes à regulação da miséria, quiçá à sua perpetuação, e ao armazenamento dos refugos do mercado [...] Consequência de sua posição marginal no mercado de emprego desqualificado, dois terços dos detentos viviam com menos de mil dólares por mês (e 45% com menos de 600 dólares), ou seja, uma renda inferior à metade do limiar de pobreza oficial para uma família de três pessoas naquele ano – isto embora dois terços deles declarem ter recebido um salário. É dizer que a grande maioria dos internos dos cárceres municipais provém seguramente das categorias dos “workingpoor”, esta fração da classe operária que não consegue subtrair‐se da miséria embora trabalhe, mas que é mantida à distância da cobertura social porque trabalha em empregos de miséria: apesar de sua penúria pecuniária, apenas 14% recebiam uma ajuda pública (auxílio a pais desamparados, cupons alimentares, programa de assistência nutricional para as crianças) nas vésperas de sua prisão (WACQUANT, 2003, p. 33‐34).
Toda essa bárbara situação em que se encontra a população
lumpemproletária norte‐americana revela no fundo a incapacidade do capitalismo de resolver suas próprias contradições. A própria expansão vertiginosa da população carcerária é expressão dessa incapacidade, pois, ao contrário do que diz a ideologia da exclusão social, essa massa de indivíduos que se encontram marginalizados na divisão social do trabalho não é resultado de uma forma política ineficaz de administração social e que, portanto, a solução para a exclusão social se dá com adoção de políticas públicas e sociais que garantam a inclusão ou com a construção de uma espécie de Estado Social, como sugere
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LoicWacquant25. Pelo contrário, pois de forma geral nem se quer poderíamos afirmar que tal população, formada pelo lumpemproletariado, encontra‐se excluída socialmente (algo impossível de acontecer), pois no fundo o capitalismo não sobrevive sem a totalidade do exército industrial de reserva, formado por essa classe social. Nesse sentido, é mais correto afirmar que o lumpemproletariado é parte integrante da sociedade capitalista, que definitivamente depende da sua existência para sobreviver, pois tal classe representa uma das alavancas fundamentais do processo de acumulação capitalista e, consequentemente, não pode ser abolida sem a abolição do capitalismo.
O que o Estado norte‐americano vem tentando fazer é retardar ao máximo a ameaça gerada pelo crescimento generalizado do lumpemproletariado, criminalizando‐o para não ter que ampliar seus gastos com assistência social e, consequentemente, emperrar o processo de acumulação capitalista. No entanto, com o crescimento vertiginoso dessa população e de sua criminalização, essa prática já não mais atende a expectativa de redução dos gastos públicos, uma vez que o orçamento carcerário vem atingindo cifras alarmantes26. Por isso, outro desafio se
25 Segundo Wacquant, discutindo a possibilidade do Estado Penal não se tornar uma realidade na Europa, tal como vem ocorrendo nos EUA, “para uma verdadeira alternativa que nos afaste da penalização (suave ou dura) da pobreza, é preciso construir um Estado europeu que seja digno desse nome. O melhor meio de diminuir o papel da prisão, é uma vez mais e sempre, fortalecer e expandir os direitos sociais e econômicos” (2008, p. 105). Tal afirmação revela os limites da análise do autor e sua visão fetichista do Estado, pois em momento algum de sua análise Wacquant apresenta a gênese e a determinação fundamental de toda essa complexa realidade contemporânea, ou seja, não analisa as necessidades atuais do regime de acumulação integral (Forma de valorização do capital expressa no toyotismo, forma estatal capaz de regularizar as relações sociais necessárias para tal valorização (neoliberalismo) e forma de exploração internacional ‐ neoimperialismo), nem tão pouco menciona que as contradições sociais que levam ao engendramento do “Estado Penal” resultam do predomínio da ofensiva capitalista sob a classe trabalhadora, localizando todas essas mudanças no campo de correlação de forças no interior da luta de classes na contemporaneidade.
26“Entre 1982 e 1993, os orçamentos das administrações penitenciárias aumentaram em 254%, enquanto as somas destinadas às funções de justiça em seu conjunto cresceram 172% e as despesas globais dos estados em 140%. Em fim de período, a América despende 50% a mais em suas prisões do que em sua administração judiciária (32
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impõe à acumulação capitalista norte‐americana: como combater as tensões sociais via encarceramento generalizado do lumpemproletariado, sem comprometer os cofres públicos? A resposta, ao que tudo indica, vem da privatização do sistema penitenciário e da transferência dos custos carcerários para o próprio preso ou sua família, como já vem ocorrendo em diversos estados e/ou tornando o cárcere uma indústria lucrativa que passa a ser cotada inclusive nas principais bolsas de valores norte‐americanas27. Nesse sentido, Gans está correto ao concluir que o Estado norte‐americano tem optado em combater os pobres e não mais a pobreza (1995).
Lumpemproletarização e luta de classes na Argentina
O processo de lumpemproletarização traduz a principal
consequência social do regime de acumulação integral em todo o mundo, no entanto esse processo possui suas singularidades segundo o modelo de capitalismo vigente em cada nação, isto é, apesar de
bilhões de dólares contra 21 bilhões), enquanto 10 anos antes as dotações das duas administrações eram similares (em torno de 7 bilhões cada uma). A função carcerária absorve hoje em dia um terço do orçamento da justiça contra um quarto na primeira metade da década de 80. As somas engolidas pelo país só para a construção de penitenciárias e cadeias disparam entre 1979 e 1989: mais 612%, ou seja, três vezes o ritmo de crescimento dos gastos militares em nível nacional, os quais, no entanto, gozaram de favores absolutamente excepcionais durante as presidências de Reagan e Bush. A construção de prisões conhece uma explosão tal que vários condados e estados se vêem às voltas com faltas de fundos para contratar o pessoal necessário para a abertura dos estabelecimentos que constroem. Foi assim na Carolina do Sul, em 1996, onde duas penitenciárias de “alta tecnologia” não puderam entrar em operação por falta de créditos necessários para cobrir suas despesas de funcionamento; ou em Los Angeles, onde a “casa de detenção do século XXI” ficou vazia durante um ano depois da construção” (WACQUANT, 203, p. 80‐81).
27 “No ano passado, o dividendo médio das empresas que figuram na lista da Fortune Magazine era de 75%, praticamente o dobro do índice das empresas listadas no Standard andPoor’s. Se recuarmos um pouco mais, as cifras de seu desempenho são decididamente assombrosas: em três anos, as ações de MacAfee Associates (em 15º lugar em nossa lista), que fabrica softwares antivírus, subiu 1.967%; as dos computadores Dell (em 47º lugar) aumentaram em 1.912%; e as da Corrections Corporation ofAmerica (na 67ª posição), que administra prisões privadas, foram valorizadas em 746%. Isso faz um monte enorme de prata” (FORTUNE MAGAZINE apud WACQUANT, 2001, p. 92).
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constatarmos que durante a vigência do regime de acumulação integral o lumpemproletariado tende a crescer, tal crescimento ocorre de forma diferenciada, pois nos países de capitalismo imperialista vem ocorrendo uma expansão do lumpemproletariado enquanto nos países de capitalismo subordinado tal expansão tende a ocorrer de forma intensificada. A lumpemproletarização vem acompanhada da luta de classes que, também, atinge coeficientes diferenciados de uma região para outra. Acreditamos que esse seja o caso argentino e, também, o brasileiro. Vejamos o primeiro.
Seguindo as análises de Maristella Svampa (2010), é possível perceber que durante décadas a Argentina foi dominada por um modelo de integração nacional‐popular cuja máxima expressão foi a primeira fase do peronismo (1946‐1955). Esse modelo se constituía por três grandes características: No plano econômico tal modelo se caracterizava por uma concepção de desenvolvimento inspirada na substituição de importações e por uma estratégia voltada para o desenvolvimento do mercado interno. No plano político o Estado se apresentava como o agente garantidor da coesão social através dos gastos públicos sociais. Essa política se traduzia na ampliação da cidadania burguesa28 através do reconhecimento dos direitos sociais. Em terceiro lugar, havia uma tendência a promover a homogeneidade social visível na incorporação de parcela significativa da classe trabalhadora, assim como na expansão das classes auxiliares da burguesia29. Em linhas gerais, a Argentina se diferenciava dos demais países latino‐americanos por possuir um Estado que, dentro das
28 “O cidadão, enfim, é um indivíduo que cumpre com seus deveres e direitos, ou seja, é aquele que respeita a propriedade privada, a liberdade de imprensa etc., paga os impostos, legitima o estado capitalista reconhecendo o processo eleitoral etc. O cidadão é o indivíduo conservador, o indivíduo que aceita o mundo existente, ou seja, a sociedade burguesa (modo de produção capitalista e formas de regularização não‐estatais) e o estado capitalista. A cidadania, por conseguinte, é a concretização dos direitos do cidadão e, portanto, significa a integração do indivíduo na sociedade burguesa por intermédio do estado” (VIANA, 2003, p. 69).
29 Utilizamos o conceito de classes auxiliares em substituição ao constructo ideológico de “classes médias”. A garantia e manutenção dos interesses dessas classes estão intimamente vinculadas à sociedade capitalista, portanto, “o que se deve ressaltar é que as classes auxiliares, devido às necessidades de sua própria reprodução, bem como sua inserção social, auxiliam a dominação burguesa [...]” (VIANA, 2003, p. 72).
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limitações típicas de um capitalismo subordinado, conseguia promover uma maior distribuição de renda e serviços públicos de qualidade para a maioria da população.
O desmantelamento desse modelo social percorreu diversas etapas, no entanto não ocorreu de forma linear nem tão pouco numa única sequência. A substituição da sociedade fordista para uma sociedade de acumulação integral conheceu diversos momentos.
De maneira esquemática, poderíamos afirmar que as mudanças na ordem econômica se iniciaram durante a década de 70, a partir da instalação de regimes militares no cone sul da América Latina; as transformações operadas na estrutura social começariam a tornar‐se visíveis na década de 80, durante os primeiros anos de retorno à democracia; por último, podemos situar as maiores mudanças no final dos anos 80 e princípio dos anos 90, com a gestão menemista (SVAMPA, 2010, p. 22).
Assim como em vários países da América Latina, a ditadura militar que chegou ao poder na Argentina no dia 24 de março de 1976 tinha como principais objetivos programar uma rígida política de repressão, assim como refundar as bases materiais da sociedade. Por um lado, o terrorismo de Estado promoveu o extermínio e disciplinamento de amplos setores sociais mobilizados e, por outro lado, colocou em prática um programa de reestruturação econômica que produziria profundas repercussões na estrutura social e produtiva do país. Tais mudanças estavam assentadas na importação de bens e capitais e na abertura financeira. Isso implicou uma interrupção na política de substituição de importações e um grande endividamento dos setores públicos e privados, visíveis no extraordinário aumento da dívida externa30 que
30 Já há algumas décadas, diversos estudos vêm sendo realizados sobre a dívida externa dos países da América Latina e vários deles apontam para o seu caráter ilegal. De acordo com estudos realizados por pesquisadores do Observatório da Dívida na Globalização (Catalunha, Espanha), “no caso argentino, durante o mandato de Carlos Ménen (1989‐1999), se ampliou o número de juízes da Corte Suprema de Justiça (o máximo tribunal de justiça), e o executivo designou, com apoio de um senado majoritariamente menemista, cortesias a dependentes do regime. Com isso, o governo de Ménen assegurava a ratificação de todos os seus atos sem que fossem impugnados por via judicial. Na mesma época se revisou a Constituição Nacional (1994). A reforma da Carta Magna não só permitiu a reeleição de Ménen, mas, além disso, facultou o presidente a tomar decisões próprias do Parlamento (delegação do poder
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passou de 13 milhões para 46 milhões de dólares no período de 1976‐1983. Dessa forma, a lógica da acumulação imposta pela valorização financeira sustentou as bases de dominação centradas nos grandes grupos nacionais e nos capitais transnacionais (SVAMPA, 2010; BASUALDO, 2002).
Os efeitos dessa reestruturação econômica podem ser percebidos nas diversas mudanças geradas na estrutura social argentina. Dentre elas se destaca a enorme transferência da mão‐de‐obra empregada na indústria para o setor terciário e autônomo, assim como a formação de uma incipiente mão‐de‐obra marginalizada do mercado de trabalho ‐ o lumpemproletariado. Além disso, houve uma significativa deterioração dos salários reais que aliada com a baixa produtividade causou a contração da demanda interna na qual foi acompanhada por um forte incremento das disparidades intersetoriais. A distribuição de renda também sofreu impactos negativos com a eliminação das negociações coletivas e com a queda salarial. Dessa maneira,
até o final dos anos 80, envolvido em uma série de conflitos econômicos e institucionais, o país se afundava cada vez mais em uma grave crise econômica, refletida na importante queda da inversão interna e estrangeira, na crescente fuga de capitais e no recorde inflacionário, que em 1987 alcançaria 175% e, em 1988, 388% (SVAMPA, 2010, p. 25).
Diante dessa nova realidade, nascia na Argentina da década de 1990 uma sociedade empobrecida e atravessada por um intenso processo de lumpemproletarização. O país experimentava o declínio estrutural do modelo nacional‐popular sem contar com nenhuma chave para reencontrar a integração social de amplos setores populares e médios empobrecidos31 (KESSLER & MINUJÍN, 1995; KESSLER & DI legislativo ao poder executivo) [...] Esse foi o marco político que possibilitou que durante o ‘menemismo’ a dívida externa da Argentina crescera 150% e, em cumprimento as exigência do FMI, se privatizaram todas as empresas de serviços públicos e as que controlavam os recursos estratégicos do país” (RAMOS, 2006, p. 32‐33).
31“Uma das conseqüências de grande peso econômico e sócio‐culturais mais inesperadas que os setores médios têm sofrido na Argentina foi a de dar origem a um tipo de pobreza com traços particulares, uma vez iniciado o intenso processo de empobrecimento sofrido pela sociedade desse país. Basta dizer que entre 1980 e 1990 os trabalhadores em seu conjunto perderam em torno de 40% do valor de suas
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VIRGILIO, 2008). No entanto, as conseqüências mais drásticas estavam por vir, visto que a consolidação da nova ordem neoliberal argentina ocorreria durante os governos de Carlos Menen.
Recém saída de uma ditadura militar, a Argentina se encontrava extremamente endividada e presa a um modelo de governabilidade corporativo, autoritário e corrupto. A partir de 1992, com Carlos Menen no poder, inicia‐se um período de neoliberalização da economia com vistas a obter auxílio dos Estados Unidos, assim como recuperar sua credibilidade perante a comunidade internacional. Para isso, Menen promoveu uma abertura comercial aos fluxos de capital externo, garantiu maior flexibilidade nos mercados de trabalho, reformou a legislação trabalhista, realizou uma ampla reforma tributária, privatizou empresas estatais, equiparou o peso ao dólar com o objetivo de combater a inflação e garantir segurança aos investimentos estrangeiros.
Uma das principais consequências da neoliberalização da economia argentina, sem sombra de dúvidas, foi a geração de milhares de postos de trabalho precarizados, subempregos, empregos temporários e milhões de desempregados. O índice de desemprego que na década de 1980 variava entre 4% e 6%, nos primeiros anos da década de 1990 chegam a 18,4%. Apesar da singela recuperação no final dessa década, tais índices voltam a crescer de forma assustadora a partir de 2001: dependendo da região, o índice de desemprego chegou a atingir a cifra de 50% da população economicamente ativa (VITULLO, 2008; SVAMPA, 2010).
A intensidade com que a pobreza foi atingindo amplos setores da classe trabalhadora foi proporcionalmente acompanhada pela intensidade das tensões sociais derivadas de tal pobreza, pois para amplos setores da classe trabalhadora argentina, o processo de privatização representou o fim de uma estabilidade no emprego e o início de um caminho, muitas vezes sem volta, ao desemprego e à vida rendas, e logo após certa recuperação em 1991 devido à estabilidade, voltaram a perder em torno de 20% entre 1998 e 2001, com importantes oscilações até hoje. A profundidade e persistência da crise iniciada em meados da década de 1970 fizeram com que milhares de famílias de classe média e de pobres de longa data, que no passado conseguiam escapar da miséria, visualizassem suas rendas declinar abaixo da “linha de pobreza” (KESSLER & DI VIRGILIO, 2008, p. 32).
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lumpemproletária. A resposta popular a essa condição não tardou a aparecer, pois a história argentina conheceria novas ondas de protestos sociais e um novo sujeito histórico, formado essencialmente pelo lumpemproletariado: o movimento piqueteiro.
A emergência do movimento piqueteiro está diretamente relacionada com o amplo processo de privatização neoliberal, principalmente com a privatização da empresa estatal petrolífera YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales), localizada nas províncias patagônicas de Neuquén, especificamente em Cutral‐Có e Plaza Huincul, entre os anos de 1991 e 1993. Logo após a privatização dessa empresa, milhares de trabalhadores foram demitidos. No primeiro momento buscaram sobreviver como autônomos e “micro‐empresários” que prestavam pequenos serviços para a petrolífera, no entanto essas tentativas resultaram em verdadeiros fracassos32 e esses ex‐trabalhadores passaram a se encontrar isolados frente á frente com o desemprego aberto e sem nenhuma possibilidade de sustentarem a si mesmo e os seus familiares. Foi a partir daí que em junho de 1997 um grupo de desempregados convocaram seus familiares, vizinhos e vários outros setores sociais locais para bloquear a estrada nacional 22, “artéria chave na economia da região” (VITULLO, 2008; SVAMPA & PEREYRA, 2009; ALVAREZ, 2009).
Daí por diante, várias outras regiões afetadas pelos ajustes neoliberais conheceriam manifestações de desempregados e de diversos grupos de trabalhadores precarizados que passaram a adotar a estratégia dos piquetes e cortes de estradas como forma principal de protestos que se espalharam por diversas regiões da Argentina: General Mosconi e Tartagal (Salta), Libertador General San Martín (Jujuy), Cruz
32 Um conjunto de obstáculos e dificuldades possibilitou que a maior parte dessas experiências resultasse em fracasso. Svampa e Pereyra apresentam alguns desses obstáculos: “Por causa da ausência de uma verdadeira política de recursos humanos, muitas das empresas naufragaram rapidamente, atravessadas por dificuldades ligadas ao reconhecimento da autoridade, à tomada de decisões, a escassa capacidade negociadora, a impossibilidade de obter contratos por causa do não cumprimento com obrigações impositivas, a carência de edifício próprio e a impossibilidade de acesso ao crédito, por falta de garantias de pagamento ou hipoteca; por último, pelos problemas associados ao elevado nível de endividamento” (2009, p. 109).
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Del Eje (Córdoba), Capitan Bermúdez (Santa Fe), Buenos Aires e Conurbano Bonaerense e outras regiões mais.
É no ano de 2000 que a prática piqueteira atinge o Conurbano Bonaerense, alcançando um caráter nacional e permanente, deixando de ser um fenômeno localizado e fragmentado e tornando‐se uma prática de resistência aos ditames neoliberais com caráter nacional.
Em resposta à intensa lumpemproletarização de diversas regiões do conurbano, a prática dos piquetes e cortes de ruas/estradas se generalizam e se prolongam por semanas em vários municípios em torno de Buenos Aires. Com isso o governo De La Rua se vê obrigado a reconhecer esse movimento e iniciar negociações que apontem para a solução do desemprego em massa. Concomitante a esses cortes de ruas locais, se espalham, no mesmo período, cortes de estradas por todo o país. A repressão se intensifica e a reação popular cresce assustadoramente após o assassinato de alguns militantes piqueteiros (o assassinato de Aníbal Verón, Maximiliano Kosteki e Darío Santillán são casos exemplares). De acordo com Vitullo,
segundo um estudo realizado pela consultora Centro de Estudios Nueva Mayoría(2004a) divulgado pelo Jornal La Nacion, os cortes de estradas realizados em todo o território nacional foram 140 em 1997, 51 em 1998, 252 em 1999, 514 em 2000, 1383 em 2001 e 2336 em 2002 (o que representa uma média superior aos 6 bloqueios diários, sendo este o ano recorde em matéria de cortes) e, em 2003, verificaram‐se 1278 interrupções à circulação de veículos e mercadorias” (2008, p. 115).
Nesse período, insurge um ciclo ascendente de lutas sociais e de enfrentamento popular contra as forças policiais que tomará conta da cena política e social argentina até aproximadamente o ano de 2003, período em que as lutas sociais iniciam seu refluxo. Em diversos períodos a tensão social adquire elevado grau de radicalidade e, consequentemente, a repressão do “Estado penal” tendeu a ampliar‐se a ponto de iniciar um verdadeiro processo de criminalização do protesto social (WACQUANT, 2001; KOROL, 2009).
Esse novo ator social, composto majoritariamente pelo lumpemproletariado, denominado de movimento piqueteiro, assim como a dinâmica de suas lutas firmadas na ação coletiva, na organização solidária, com tomadas de decisões pautadas em
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assembleias horizontais e adotando o corte de ruas e estradas como principal ferramenta de luta, possui de acordo com vários autores uma dupla filiação. Portanto, para que se compreenda a emergência e desenvolvimento do movimento piqueteiro torna‐se necessário apresentar essa dupla filiação.
Uma das principais e mais complexa obra sobre o assunto, elaborada por Maristella Svampa e Sebastián Pereyra e denominada Entre la ruta y El barrio – La experiencia de las organizaciones piqueteras (2009) afirma que
não é possível compreender a gênese nem o posterior desenvolvimento do movimento piqueteiro se não estabelecermos sua dupla filiação: por um lado, a vertente que apresenta a brusca separação dos marcos sociais e trabalhistas que configuraram a vida cotidiana de gerações e povos inteiros; separação violenta que, no limite, revela tanto uma relação mais próxima com o mundo do trabalho formal, como reflete a opção por um tipo de ação sindical não‐institucionalizada; ligado a um modelo de ação confrontativo; por outro lado, a vertente que assinala a importância da matriz especificamente territorial da ação coletiva, e que da conta tanto de uma distância maior com o mundo do trabalho formal como, no extremo, da continuidade de uma relação mais pragmática com os poderes públicos, na luta nada fácil pela sobrevivência (p. 20).
A primeira filiação está intimamente relacionada com as
consequências sociais que as reformas e “ajustes” neoliberais provocaram no mundo do trabalho a partir da implementação de um novo projeto econômico orientado para a eliminação de déficits fiscais, nova regulamentação dos mercados e privatização acelerada de empresas públicas. Juntamente com esses ajustes foi aprovado o Plano de Convertibilidade de 1991 que estabelecia a paridade entre o peso e o dólar, reduzindo as tarifas alfandegárias, liberação do comércio exterior e aumentando a pressão fiscal. Os principais mecanismos de controle do Estado foram suprimidos a favor das regras do mercado.
As consequências sociais foram drásticas, pois a queda na qualidade dos serviços públicos foi extrema, milhares de pequenos investimentos se viram falidos, milhares de lumpemproletários que além de perderem seus salários, perderam o seguro‐desemprego e se encontravam extremamente endividados. Nesse novo contexto, as mudanças no mundo do trabalho modificaram‐se bruscamente, pois
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o processo privatizador deixou uma importante quantidade de trabalhadores desempregados com diferentes trajetórias ocupacionais. No caso dos trabalhadores empregados se modificaram as condições de contrato de trabalho, de uma situação de quase garantia de estabilidade no emprego se passa a uma situação de incerteza e precarização das condições de trabalho e possibilidades de associação sindical (BONIFACIO, 2011, p. 73).
Como foi dito anteriormente, o impacto mais extremo dessas
reformas veio em consequência da privatização de uma das empresas públicas mais lucrativas e estratégicas da Argentina, a YPF. Vale lembrar que a YPF consistia em uma das maiores empresas estatais argentina e seus trabalhadores formavam uma espécie de “aristocracia operária” visto que possuíam uma ampla gama de garantias e direitos sociais (saúde, moradia, educação para os filhos, creches, espaços recreativos etc.) oferecidos pelo Estado social argentino, usufruíam de estabilidade no emprego e de excelentes salários. Com a privatização da empresa no ano de 1993‐1995, em pouco tempo todas essas garantias desapareceram e o processo de intensificação da lumpemproletarização insurgiu:
a empresa, que em 1990 contava com 51 mil empregados, logo após um acelerado processo de reestruturação, que inclui demissões voluntárias e arbitrárias, passou a ter 5.600 trabalhadores. As baixas contabilizadas de 1990 e 1997 foram as seguintes: para a região saltenha, 3.400; na região neuquina, 4.246; no vale austral, 1.660; em Comodoro Rivadavia, 4.402 e, finalmente, em Santa Fe (San Lorenzo), 1.177. Enfim, a reorganização do trabalho esteve marcada por uma forte flexibilização que incluiu a descentralização e desregulação dos setores, a redução sistemática de pessoal, a limitação no pagamento das horas‐extras, a intensificação do tempo de trabalho e a incorporação de novas tecnologias (ROFMAN apud SVAMPA & PEREYRA, 2009, p. 107).
É nesse contexto que nasce na Argentina o movimento piqueteiro
que, em resposta aos efeitos desintegradores das políticas neoliberais e seus ajustes estruturais, busco uauto‐organizar e mobilizar o lumpemproletariado composto por desempregados e outros setores empobrecidos da sociedade. O movimento piqueteiro adquiriu um caráter de protagonista nas manifestações contra o neoliberalismo argentino e seus métodos de resistência popular ocuparam um lugar
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destacado na política nacional. Os explosivos cortes de estradas e as enérgicas puebladas de Neuquém, Salta e Jujuy entre 1996 e 1997
representam o ponto inicial no qual uma nova identidade – os piqueteiros – um novo formato de protesto ‐ o corte de estrada ‐, uma nova modalidade organizativa – a assembléia – e um novo tipo de demanda – o trabalho – ficam definitivamente associados, originando uma importante transformação nos repertórios de mobilização da sociedade argentina (SVAMPA & PEREYRA, 2009, p. 25).
A segunda filiação do movimento piqueteiro é marcada por uma
modalidade de ação coletiva de caráter territorial, pois diferentemente das manifestações ocorridas nas longínquas províncias patagônicas que sofreram com as privatizações das empresas estatais, os protestos que ocorreram na região do Conurbano Bonaerense remete a um longo processo econômico e social ligado à redução da produção industrial local e deterioração crescente das condições de vida das classes exploradas e setores das classes auxiliares, iniciados ainda na década de 1970. O processo de redução da produção industrial na região afetou uma parcela importante dos setores assalariados. De acordo com os dados para a região da Grande Buenos Aires, entre 1980 e 1990 o desemprego aumentou de 2,3 a 6%, a subocupação duplicou, passando de 4,5 a 8,1% da população economicamente ativa. O emprego informal que era de 42,1% em 1980 foi para 48,5% em 1991 e terminou por adquirir características próprias de outros países latino‐americanos (SVAMPA & PEREYRA, 2009).
As ocupações ilegais de terra na região do Conurbano Bonaerense são reveladoras do processo de pauperização social que atinge a região desde o período da ditadura militar. Esse processo de ocupação de terras às margens dos grandes centros urbanos argentinos foi, muitas vezes, resultado de uma ampla organização territorial que contaram com o apoio de organizações eclesiásticas de base e organização de direitos humanos. De acordo com as análises de Merklen (2005), os assentamentos de terras demonstram a emergência de uma nova configuração social que manifesta o processo de inscrição territorial das classes populares, relacionada com a luta pela sobrevivência e pelos serviços públicos básicos. Por conseguinte,
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tais ações foram construindo um novo marco e, por sua vez, um emaranhado relacional próprio cada vez mais desvinculado do mundo do trabalho formal. Uma das principais consequências dessa inscrição territorial é que o bairro foi surgindo como espaço natural de ação e organização, e se converteu em um lugar de interação entre diferentes atores sociais reunidos em refeitórios, posto de saúde, organizações de base, formais e informais, comunidades eclesiásticas de base, em alguns casos apoiadas por organizações não‐governamentais. Enfim, o surgimento de novos espaços organizativos dentro do bairro conheceu um novo impulso, ainda que fugaz, durante os dois episódios hiperinflacionários de 1989 e 1990, visíveis na proliferação de refeitórios populares (SVAMPA, 2005, p. 106).
Entre 1990 e 1998 sucessivas ondas de deslocamentos das indústrias
atingiram a região do Conurbano Bonaerense como resultado das privatizações e ajustes neoliberais. Consequentemente, ocorreu um acelerado processo de expulsão do mercado de trabalho acompanhado de uma maior instabilidade no emprego. Vale lembrar que boa parte dos sindicatos argentinos foram cooptados e aceitaram prontamente esse conjunto de reformas e ajustes neoliberais. Dessa maneira, parcela significativa dos trabalhadores do conurbano passou a se sentir completamente desorientados politicamente. No entanto, as consequências políticas e sociais para as instituições burocráticas e clientelistas do Partido Justicialista também foram enormes, assim como o debilitamento do peronismo no mundo popular.
Diante da ausência de respostas efetivas do poder público e das suas instituições para os problemas sociais que afetavam o lumpemproletariado da região, emergiram organizações populares nos bairros que passaram a se organizar por fora das estruturas burocráticas, tais como partidos políticos e sindicatos. É nesse contexto que emerge as organizações de desempregados e um novo modelo de militância territorial na região do conurbano. Portanto, entre 1990 e 1995 alguns bairros começaram a se organizar para reclamar das tarifas dos serviços públicos privatizados. Em 1995 surge a primeira comissão de desempregados no município de La Matanza, porém somente em 1996 inicia as primeiras manifestações exigindo auxílio à alimentação.
Tais manifestações ocorrem em maio de 1996 quando vários vizinhos dos bairros María Elena e Villa Unión realizam uma manifestação na Praça São Justo com uma importante participação feminina. Logo em seguida, no dia 06 de setembro de 1996 se realiza
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uma importante “Marcha contra a fome, a repressão e o desemprego” até a Praça de Maio, que reuniu aproximadamente duas mil pessoas. A marcha foi um pontapé inicial para a emergência de diversas organizações de desempregados em vários municípios do conurbano (SVAMPA & PEREYRA, 2009).
La Matanza é um município vizinho à capital da República, com aproximadamente 1.500.000 habitantes, população que supera de longe à de 18 das 23 províncias argentinas (ISMAN, 2004). Trata‐se de um enorme aglomerado urbano com grande quantidade da população vivendo abaixo da linha da pobreza. Segundo o Jornal Clarin de 22 de outubro de 2001:
La Matanza é um dos maiores e mais difíceis municípios do conurbano bonaerense: calcula‐se que o 50% de seu um milhão e meio de habitantes vive abaixo da linha da pobreza e que o índice de desemprego chega a 30%. Viver, nesse contexto, se torna mais complicado a cada dia. As pessoas não têm dinheiro, não tem teto seguro, não tem comida, não tem roupa, não tem remédios. E não tem esperança (Apud ISMAN, 2004, p. 18).
As condições de deterioração pelas quais vem sofrendo o município
de La Matanza se inicia em 1976 com o golpe militar e vêm se ampliando continuamente até atingir sua fase mais acentuada durante o período menemista (1989‐1999). As ocupações ilegais de terra na região do Conurbano Bonaerense são reveladoras do processo de pauperização social que atinge a região desde o período da ditadura militar.
Durante o período marcado pela substituição de importações, o setor fabril carregava consigo o restante das atividades econômicas em termos de produção e gerava diversos postos de trabalho, porém nos anos noventa o coeficiente de empregabilidade se encontrava na ordem de ‐3,7% e demonstrava que o setor industrial foi o grande responsável pela expulsão da mão‐de‐obra na região (BASUALDO, 2002; BARRERA & LÓPEZ, 2010). Nesse contexto, La Matanza deixou de ser um dos grandes pólos industriais do conurbano para se converter numa região que apresenta altos índices sociais negativos. E essa realidade não era exclusividade desse município, pois diversas outras regiões do país também passaram a experimentar um intenso processo de lumpemproletarização.
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De acordo com uma nota de Ismael Bermudez, contida no jornal Clarin de 19 de setembro de 2001, exemplifica a situação geral do Conurbano Bonaerense:
O desemprego cresceu quatro vezes mais (subiu de 5,7% para 22,9%) e entre os chefes de família se multiplicou por cinco (de 3,3% a 17,2%). Como resultado direto dessa situação, nesses municípios quase 40% das residências é formada por pessoas que recebe apenas 20% da renda da região. Isso explica a razão pela qual a pobreza atinge quase 50% da população, o que significa que seus habitantes ou famílias da região não possuem renda suficiente para custear as compras dos bens e serviços básicos (Apud ISMAN, 2004, p. 17).
Contra essa situação de desemprego, condições de vida precária e inexistência de serviços públicos básicos de qualidade (creches, escolas, postos de saúde, moradia, asfalto, rede de esgotos etc.), ou seja, por conta desse completo quadro de abandono gerado pelo descaso dos poderes públicos (municipal, estadual e federal) é que nascem, na região de La Matanza, diversas organizações de bairros que darão início a uma onda de protestos sociais que resultara em 1995 nas primeiras tentativas de organização do lumpemproletariado na região. É nesse contexto que emerge as organizações lumpemproletárias e um novo modelo de militância territorial na região do conurbano.
O que vem ocorrendo na Argentina da década de 1990 é parte do que já vinha acontecendo em quase toda a sociedade moderna a partir da década de 1980, isto é, a sociedade moderna passa a sofrer importantes transformações nas suas formas de valorização do capital (toyotismo), assim como nas suas formas de regularização das relações sociais garantidoras do mesmo. A principal forma regularizadora dessas relações consiste no Estado Neoliberal. Esse emerge com o objetivo de proporcionar melhores condições para a acumulação capitalista através de novas regulamentações do mercado, do “afastamento” do Estado das obrigações sociais (saúde, educação, segurança, emprego etc.) e de sua transferência para a iniciativa privada via privatização dessas obrigações e de alguns setores estratégicos antes sob o controle estatal (energia, água, gás, petróleo, transportes coletivos, telefonia etc.).
Juntamente com a emergência de um movimento lumpemproletário que passou a construir estratégias de enfrentamento ao processo de lumpemproletarização e empobrecimento generalizado, e que
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dificultaram a expansão das conquistas necessárias à acumulação integral, emergiu também a face mais autoritária e repressiva do Estado Neoliberal que, juntamente com ocapital comunicacional33, transformaram a luta pelos direitos sociais em delitos contra a ordem e os manifestantes como delinqüentes dignos de serem aprisionados ou quando não executados sumariamente pelo Estado Penal, como ocorreu e ainda ocorre nos diversos casos de “gatilho fácil”34.
A análise que Wacquant vem realizando em suas diversas obras sobre o Estado Penal e seu processo de criminalização do lumpemproletariado e de diversos movimentos sociais (tanto nos EUA, quanto na Europa) também serve para compreender a realidade Argentina, pois em todos os rincões em que o neoliberalismo se implantou enquanto forma estatal, se implantaram também suas faces penais da pobreza e do protesto social: criminalização, aprisionamento e extermínio. Segundo ele,
mais do que mera medida repressiva, a criminalização dos que defendem os direitos sociais e econômicos integra uma agenda política mais ampla, que tem levado à criação de um novo regime que pode ser caracterizado como “liberal‐paternalismo”. Ele é liberal no topo, para com o capital e as classes privilegiadas, produzindo o aumento da desigualdade social e da marginalidade; e paternalista e punitivo na base, para com aqueles já desestabilizados seja pela conjunção da reestruturação do emprego com o enfraquecimento da proteção do Estado de bem‐estar social, seja pela reconversão de ambos em instrumentos para vigiar os pobres (WACQUANT, 2008, p. 94).
O processo de criminalização do lumpemproletariado e de outras classes sociais afetadas pelo neoliberalismo inicia aproximadamente no
33 Para maiores informações sobre o conceito de capital comunicacional ver (VIANA, 2007b).
34“Gatilho Fácil é o nome utilizado na Argentina para denominar os episódios de abuso de poder no uso de armas de fogo por parte da polícia. Em geral, as vítimas de gatilho fácil são, sobretudo, jovens militantes dos bairros pobres, vítimas de processos de disciplinamento compulsivo realizados pelas forças policiais. A Correpi (Coordenadoria contra a repressão policial e institucional) tipifica esses métodos como execução sumária aplicada pela polícia e que geralmente são acobertas sob a alegação de mortes oriundas do enfrentamento. Esta pena de morte ‘extralegal’ se distingue por duas etapas: o fuzilamento e o acobertamento (KOROL & LONGO, 2009, p. 106).
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ano de 1993 quando a Argentina foi tomada por distintas manifestações populares contra os ajustes neoliberais, nas principais cidades do país. Em diferentes momentos tais manifestações atingiram níveis de enfrentamento e violência que assustaram os poderes estabelecidos que, em resposta, procuraram ampliar a repressão policial e a criminalização dos militantes dos mais variados movimentos sociais.
Nos dias 16 e 17 de dezembro de 1993 ocorre em Santiago del Estero o que ficou conhecido como “El Santiagazo”. A pueblada, como também ficou conhecida as grandes manifestações populares, foi iniciada por trabalhadores estatais demitidos ou que tiveram seu salários reduzidos e atrasados por vários meses. Seus participantes invadiram e incendiaram simultaneamente inúmeros prédios dos poderes legislativo, judiciário, executivo e vários outros edifícios públicos, assim como algumas residências de políticos e sindicalistas locais. Na noite do dia 16, o governador Juárez foi destituído e o Congresso Nacional realizou uma intervenção nos três poderes provinciais após aprovar um projeto do poder executivo que autorizava o envio de tropas do exército e da Gendarmeria para a província de Santiago del Estero (KOROL & LONGO, 2009). Segundo Vitullo, foi nesse dia que a pueblada experimentou elevado nível de conflitividade, pois
os choques entre as forças repressivas e os manifestantes deixaram um saldo de quatro mortos e mais de cem feridos e uma forte impressão no restante da sociedade argentina, que, através da televisão, assistia azoada a estes fatos. Além deste saldo e como consequência da mobilização popular, o justicialista Fernando Lobo, governador da província em substituição de Carlos Mijuca – quem tinha deixado o cargo escassos 50 dias antes sem sequer alcançar metade do seu mandato devido a uma forte crise política, também viu‐se obrigado a renunciar, o que acabou precipitando o já assinalado processo de intervenção federal à província (VITULLO, 2008, p. 112).
Após o Santiagazo começaram a explodir em diversas localidades
do país vários protestos sociais que passaram a desenvolver formas de mobilização popular pautadas pela ação direta. A somatória dos protestos e tensões sociais que assolavam todo o país desde a sua fase mais aguda entre os anos de 1996 e 1997, explode nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001 na grande rebelião generalizada.
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Por todo o país eclodiam tensões sociais, movimento de desempregados, mulheres agropecuaristas em luta, greves de professores, ocupação de fábricas e vários outros setores sociais em luta contra aquilo que era considerado por eles os responsáveis por toda a gama de dificuldades, lumpemproletarização e empobrecimento e diversas outras humilhações sociais. Dentre os eleitos responsáveis destacam‐se: os governantes, os partidos políticos, o próprio Estado, a burocracia estatal, partidária e sindical, suas hierarquias, o sistema financeiro nacional e internacional, o FMI e o Banco Mundial e, para os setores mais radicalizados, todas as relações sociais pautadas pela obrigatoriedade capitalista da exploração do homem em troca da obtenção de lucros. Por essas razões o lema central dessas jornadas foi expresso na frase “Que se vayan todos, que no quede ni uno solo!” 35.
Cont.O caráter massivo dos protestos sociais promovido pelos diversos movimentos piqueteiros argentinos, juntamente com seus métodos de bloqueios de estradas que impossibilitava a circulação de veículos, pessoas e, principalmente mercadorias, assim como a construção de formas de participação e decisões políticas pautadas por uma espécie de democracia direta, decisões coletivas e horizontais em assembléias etc. consistiram nas principais razões que levaram os poderes governamentais a temerem a expansão dessas formas de organização e da consciência de classe derivada das mesmas.
Por esses motivos é que desde o início dos primeiros levantes de desempregados, o governo argentino procurou criminalizar as lutas sociais. No primeiro momento com a ampliação da repressão policial – o deslocamento da Gendarmería (tropas militares), que originalmente foi criada para defender as fronteiras nacionais, para as províncias patagônicas tomadas pelas puebladas é um sinal demonstrativo da mudança na política repressiva. Com o avanço das lutas e das mobilizações populares o governo inicia um intenso processo de judicialização dos militantes de diversos movimentos sociais, principalmente dos integrantes de movimentos piquteros. Segundo Korol& Longo,
35 “Que todos vão embora, que não fique nenhum sequer” (tradução nossa).
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algumas das formas em que se manifesta a criminalização dos movimentos populares é o avanço do processo de judicialização dos conflitos, visível na multiplicação e no agravamento das figuras penais, na maneira em que estas são aplicadas por juízes e promotores, no número de processos contra militantes populares, na estigmatização de populações e grupos mobilizados, no incremento das forças repressivas e na criação especial de tropas de elite, orientadas para a repressão e militarização das zonas de conflito (2009, p. 84).
Outra estratégia adotada pelo governo argentino para criminalizar o movimento piqueteiro se deu através do uso excessivo do capital comunicacional com o objetivo de criar uma imagem negativa dos militantes. Dessa forma, o capital comunicacional apresentava os manifestos por direitos sociais como delitos contra a ordem e os manifestantes como delinquentes violentos, assim como ocultando as motivações populares e apresentando apenas os episódios de violência popular, com isso gerando o medo, fragmentando a sociedade e impossibilitando o crescimento do apoio às lutas por direitos sociais36.
O regime de acumulação integral é marcado por contradições crescentes, pois se de um lado é necessário, para manter a acumulação capitalista, realizar cortes drásticos em políticas sociais, corroer os direitos trabalhistas, precarizar e intensificar as relações de trabalho, expandir e intensificar a lumpemproletarização para alimentar o exército industrial de reserva e seu papel na manutenção de baixos salários e etc., por outro lado ela se vê obrigada a intensificar a repressão, pois, em consequência de tais práticas, cresce a violência contra a propriedade privada, os protestos sociais se radicalizam e a criminalidade tende a se generalizar. No entanto, o Estado neoliberal não pode ser mantido às custas da não redução da dívida pública e da poupança de recursos, e por isso tal Estado opta por ampliar o aparato repressivo e criminalizar o movimento piqueteiro e diversos outros movimentos sociais. É exatamente isso que vem ocorrendo na Argentina contemporânea e em diversas outras regiões do globo.
36 Para saber mais sobre o processo de criminalização da pobreza e dos movimentos sociais na Argentina Cf. KOROL, Claudia (org.). Criminalización de la pobreza y de La protesta social. Buenos Aires: El coletivo/America libre, 2009); CARDOZO, Fernanda. “Protestar não é delito”. A criminalização dos movimentos sociais na Argentina contemporânea – o caso do movimento piquetero (1997‐2007). 2008. Dissertação (mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. 130 p.
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O movimento piqueteiro nos fornece um excelente exemplo de que a postura política do lumpemproletariado não é a mesma em todos os contextos históricos, pois se na França do século XIX, o lumpemproletariado foi cooptado pelo Estado francês e utilizado na repressão contra o avanço das lutas operárias, na argentina contemporânea, as lutas dessa classe social desenvolveu‐se de forma autônoma, inicialmente desvinculada das instituições burocráticas, tais como sindicatos e partidos políticos, resgatando práticas do movimento operário revolucionário (assembleias coletivas e horizontalizadas, auto‐organização dos bairros e de algumas atividades produtivas etc.) e adquirindo elevados níveis de radicalidade, que o tornou o principal ator em luta contra a intensificação da lumpemproletarização, típica da acumulação integral subordinada.
Portanto, não é possível afirmar que o lumpemproletariado é, e sempre será politicamente reacionário e cooptável, pois sua postura política se altera dependendo do contexto, das singularidades regionais e da correlação das forças sociais, podendo a representar uma importantíssima aliança com o proletariado em torno de um bloco revolucionário. Na contemporaneidade, a postura contestadora do lumpemproletariado tende a crescer e, consequentemente, a se apresentar como uma ameaça cada vez maior à existência da sociedade capitalista.
O processo de lumpemproletarização, respeitando as particularidades nacionais, atinge com maior ou menor intensidade todo o mundo, pois como foi dito nesse trabalho, a lumpemproletarização é um processo inerente à dinâmica de produção capitalista. Constata‐se que esse processo tende a se expandir na contemporaneidade. Apenas para reforçar essa tese, gostaríamos de mencionar o processo de universalização da lumpemproletarização, demonstrando‐o, rapidamente, em outras regiões: México, Suécia e China.
Em linhas gerais, o processo de lumpemproletarização no México se assemelha ao ocorrido em outras nações de capitalismo subordinado, tal como no Brasil e Argentina. O processo de privatização realizou, entre os anos de 1988 e 1994, a demissão de metade dos trabalhadores dos setores públicos. Visando regularizar a estrutura social segundo os interesses da acumulação integral, diversas alterações foram realizadas
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na Constituição promulgada pela Revolução Mexicana de 1917. Dentre elas, a que mais serve aos nossos propósitos, foi a alteração realizada no ano de 1991 que aprovou a lei de reforma que autorizava e estimulava a privatização de terras sob o sistema ejido (terra de uso e posse coletiva). Desprotegidos, milhares de indígenas passaram a perder a base de sua segurança coletiva, antes garantida pelo sistema ejido, e migraram para as principais cidades mexicanas, expandindo, dessa forma, o exército industrial de reserva composto pelo lumpemproletariado (HARVEY, 2008a).
Mesmo a Suécia, país de capitalismo imperialista com uma forte política de “bem‐estar social”, não esteve isenta de sofrer o processo de lumpemproletarização. Com o objetivo de combater a tendência declinante da taxa de juros, a partir da década de 1970, diversas medidas adotadas demonstravam que as preocupações sociais haviam se transferido para as preocupações financeiras. O pleno emprego foi substituído pelo combate à inflação. Segundo Harvey (2008a), “o colapso da bolha especulativa nos preços dos ativos que se seguiu ao aumento dos preços do petróleo de 1991 levou à fuga de capitais e a falências internas que custaram muito ao governo sueco” (p. 124). Seguindo, quase irrestritamente, a cartilha neoliberal, a Suécia sofreu uma forte depressão que resultou no aumento dobrado das taxas de desemprego em apenas dois anos.
Desde o final da década de 1970 e início da década de 1980 a China vem passando por uma série de reformas econômicas que visavam o estabelecimento de forças de mercado em sua economia, bem como estimular a competição entre as empresas estatais a fim de promover a inovação e o crescimento. Além disso, e
para complementar esse esforço, também se promoveu a abertura da China, ainda que sob a estrita supervisão do Estado, ao comércio e ao investimento externos, acabando‐se assim com o isolamento chinês do mercado mundial (HARVEY, 2008a, p. 132).
Diversas medidas internas foram tomadas para assegurar o sucesso
dessas reformas. Dentre elas, destacaremos as mudanças ocorridas nas comunas agrícolas. De acordo com Harvey (2008a), estabeleceu‐se na China uma economia de mercado mais aberta em volta das principais Empresas de Propriedade do Estado (EPEs), através da dissolução das
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comunas agrícolas em favor de um sistema de “responsabilidade social” individualizado, no qual, inicialmente, era permitido aos camponeses vender os excedentes no mercado livre ao invés de serem tabelados pelo Estado. No entanto, no final da década de 1980, todas as comunas haviam sido completamente dissolvidas.
Apesar de não serem proprietários formais das terras, os camponeses podiam arrendá‐las, pagar outros trabalhadores para produzir na terra e vender seus produtos a preço de mercado etc.. Entre 1978 e 1984, as rendas rurais se elevaram e atingiram um espantoso crescimento de 14% ao ano, porém a partir de 1984 esse crescimento começa a cair até atingir uma estagnação completa, principalmente a partir de 1995, em quase todas as áreas de produção. Juntamente com o declínio das rendas rurais, os camponeses perderam diversos direitos sociais.
A disparidade entre rendas rurais e rendas urbanas aumentou acentuadamente. Estas, que eram em média 80 dólares anuais em 1985, dispararam para 1.000 em 2004, ao passo que aquelas passaram de mais ou menos 50 dólares para cerca de 300 nesse mesmo período. Além disso, a perda de direitos sociais coletivos antes estabelecidos no âmbito das comunas – por poucas que pudessem ter sido – implicara para os camponeses o ônus de pagar altas taxas de uso por escolas, assistência médica etc. Não era isso o que acontecia com boa parte dos residentes urbanos permanentes, que também foram favorecidos a partir de 1995, quando uma lei de propriedade imobiliária urbana assegurou o direito de propriedade de imóveis a residentes urbanos, que puderam então especular com os preços daqueles. A diferença entre os ambientes rural e urbano quanto a nível de renda real é hoje, segundo algumas estimativas, maior de que em qualquer outro país do mundo (HARVEY, 2008a, p. 137).
Não é difícil imaginar, devido às proporções gigantescas do
contingente populacional rural chinês, o tamanho do êxodo rural experimentado no país a partir da década de 1990 e, consequentemente, a expansão do processo de lumpemproletarização nas principais cidades do país. No ano de 2005, a China experimentava o maior processo de migração em massa já ocorrido em todo o mundo e que já ultrapassa ilimitadamente as migrações ocorridas para a América e para todo mundo ocidental moderno.
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Segundo estatísticas oficiais, há “114 milhões de trabalhadores migrantes que deixaram áreas rurais, temporariamente, ou para sempre, a fim de trabalhar nas cidades”, e especialistas do governo “prevêem que esse número vai se elevar a 300 milhões até 2020, e até mesmo a 500 milhões. Só Xangai “tem 3 milhões de trabalhadores migrantes; em comparação, considera‐se que toda a migração irlandesa para a América entre 1820 e 1930 envolveu talvez 4,5 milhões de pessoas” (HARVEY, 2008a, p. 138).
Esse processo de migração em massa formou um
lumpemproletariado colossal e, por conseguinte, possibilitou uma superexploração da mão‐de‐obra nas cidades. O maior exemplo dessa relação entre lumpemproletariado colossal e superexploração da mão‐de‐obra se revela nos abundantes casos de trabalho escravo no país37.
37 “Na China, as condições em que trabalham jovens mulheres que migraram das áreas rurais não são menos que horrendas: ‘um número insuportavelmente longo de horas de trabalho, comida bem ruim, dormitórios apertados, gerentes sádicos que as espancam e se aproveitam sexualmente delas e o pagamento que só vem meses depois, quando vem’” (HARVEY, 2008a, p. 182).
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LUMPEMPROLETARIZAÇÃO NA ERA DA ACUMULAÇÃO INTEGRAL NO BRASIL
4.1 MUDANÇAS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO E TOYOTISMO
O processo de “reestruturação produtiva” se inicia no Brasil a partir
da década de 1990, no entanto, para que possamos compreender todas as mudanças ocorridas nas relações de trabalho a partir dessa década, torna‐se necessário, mesmo que brevemente, resgatarmos uma série de políticas de ajuste e de modernização tecnológica pelas quais diversas empresas passaram desde o final da década de 1970, período no qual se inicia o declínio do regime de acumulação sob o qual se estruturou a fase anterior de nosso desenvolvimento econômico.
Ainda na década de 1956, a economia nacional verifica um crescimento intenso da capacidade produtiva do setor de bens de produção e de bens de consumo duráveis. Tal crescimento é derivado da consolidação de um parque industrial de significativas proporções e que adquire níveis importantíssimos de complementaridade entre os diversos setores a partir do “processo de industrialização pesada” (LEITE, 1994, 2003). De acordo com Suzigan (1988),
a estrutura industrial avançou no sentido de incorporar segmentos da indústria pesada, da indústria de bens de consumo duráveis e da indústria de bens de capital, substituindo importações de insumo básicos, máquinas e equipamentos, automóveis, eletrodomésticos etc. Essa estrutura seria a base sobre a qual se apoiaria o rápido crescimento da produção industrial na primeira fase do ciclo expansivo 1968 a 1973, 1974 (Apud LEITE, 1994, p. 126).
Portanto, a década de 1970 é marcada por um processo industrial de
grande expansão, caracterizado tanto pela aceleração da produção e emprego industrial quanto pelo crescimento acelerado da força produtiva dos ramos de bens de produção e de bens de consumo duráveis. Conforme analisam Gitahy, Leite e Rabelo (apud LEITE, 2003), esse processo se dá em um contexto de concorrência direcionada a um mercado interno em expansão e protegido por políticas de proteção e controle de importações, assim como pelo desenvolvimento do setor de bens de capital que visava atender à demanda do setor
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público e à do setor de bens de consumo duráveis, que também se encontrava em expansão.
Com o avanço tecnológico experimentado por inúmeras indústrias a partir de 1956, diversas técnicas e princípios tayloristas/fordistas de organização do trabalho se difundem pelo país. É claro que tais técnicas e princípios foram introduzidos de forma a se adequarem à realidade e possibilidades nacionais, pois não há homogeneidade na aplicação de tais formas de organização do trabalho no mundo. Porém, mesmo contendo diferenças expressivas em relação ao modelo existente nos países imperialistas, é possível perceber a presença de características tipicamente fordistas na produção brasileira do período, tais como uma expressiva mecanização acompanhada de uma expansão dos mercados de bens de consumo duráveis. No geral, as diferenças se mostram em relação à qualidade na fabricação e na tecnologia de engenharia na produção de mercadorias, bem como nas singularidades do mercado brasileiro que é
formado por uma combinação específica entre o consumo das classes médias modernas locais, com o acesso parcial dos operários dos setores de ponta da economia aos bens de consumo popular duráveis, e as exportações destes mesmos produtos manufaturados a baixos preços para os países centrais. O crescimento da demanda não é, dessa forma, regulado numa base nacional, como no caso dos países centrais, mas se encontra, pelo contrário, acoplado ao mercado internacional, ainda que o conceito se restrinja aos países onde o crescimento do mercado interno cumpriu um papel importante no regime de acumulação nacional (LEITE, 1994, p. 128).
Esse regime de acumulação entrou em crise a partir do final da
década de 1970 quando inúmeros fatores promoveram o seu enfraquecimento. Dentre eles poderíamos mencionar as contradições internas derivadas das pressões demográficas, a dificuldade de expansão do mercado interno (devido, principalmente, à política de desvalorização salarial), as lutas operárias que irão promover uma constante resistência e obstáculo ao aumento da exploração capitalista desse período e a crise do regime de acumulação intensivo‐extensivo no capitalismo imperialista (EUA e Europa Ocidental) que a partir da década de 1980 provocará uma retração no mercado mundial.
Antes de avançarmos no desenvolvimento das lutas operárias, principal força enfraquecedora da acumulação capitalista, voltaremos
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um pouco na história, pois para compreendermos as condições de vida e trabalho da classe operária brasileira durante a vigência da ditadura militar é imprescindível apresentarmos a razão de ser de tal ditadura e a dinâmica do processo de acumulação subordinada, característica do Brasil. Sendo assim, que fatores explicam a eclosão do golpe militar de 1964 e que relação os mesmos possuem com a resistência promovida pela classe operária entre os anos de 1964 e 1984?
Já no final da década de 1950 é possível percebermos a mobilização crescente de diversos setores sociais (operariado, campesinato, movimento estudantil etc.) na luta contra o Estado populista. Nesse período o movimento operário começa a dar sinais de grande descontentamento com a política salarial e com a escalada vertiginosa da inflação no país. Os anos seguintes também conviverão com diversas lutas operárias (VIANA, 2005). Segundo Castro,
a escalada inflacionária leva a uma escalada das greves. Anos após anos os recordes de horas perdidas são batidos. Em 1958, destaca‐se a paralisação por 7 dias da marinha mercante em todo o país, com a participação de centenas de milhares de marinheiros. Malgrado a ilegalidade da greve, JK acabou concedendo à maioria das reivindicações. Nos transportes urbanos, a greve dos carris do Rio de Janeiro, apoiada por fortes e violentas manifestações estudantis, também termina vitoriosa [...] Em 1959, não somente as greves se intensificaram, como a desasperação pela contínua erosão dos salários provocou a multiplicação de manifestações de ruas com choques violentos com as forças policiais. Protestos contra a alta dos preços seguiam‐se frequentemente de pilhagens de armazéns. Em vários casos as forças policiais utilizaram armas de fogo ou baionetas para reprimir os manifestantes, provocando ferimentos e a morte de dezenas destes (Apud VIANA, 1980, p. 69‐70).
Os primeiros anos da década de 1960 são marcados pela expansão
do movimento grevista para diversas categorias de trabalhadores. A cidade de Santos atinge a marca de 01 milhão e meio de trabalhadores em greve e a decretação de uma greve geral apresenta‐se como o momento máximo das lutas operárias. Com a expansão da mobilização de diversos setores (ferroviário, marítimo, portuário, aeroviários, estivadores) o governo João Goulart se vê obrigado a realizar concessões e aumentos salariais.
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Em outubro de 1962, 700 mil operários entram em greve em São Paulo e conseguem aumentos salariais. Assim, o movimento operário, bem como o movimento estudantil e dos trabalhadores rurais, realizam uma ascensão em suas lutas que dificultava a concretização dos interesses da classe capitalista que era aumentar a taxa de exploração (VIANA, 2005, p. 24).
De acordo com Viana (2005), esse processo de ascensão e expansão
das lutas dos trabalhadores promovia temor nas forças políticas conservadoras e levavam os populistas a “radicalizarem” seus discursos na tentativa de se aproximarem mais dos setores populares com o intuito de ganharem maior apoio político. Os níveis de pressão dos trabalhadores determinavam, de certa forma, a política salarial do período que, ora apontava para uma maior exploração do trabalho, ora apontava para sua diminuição. No entanto, os primeiros anos da década de 1960 foram marcados por uma maior radicalização e pressão dos trabalhadores sobre a classe capitalista e suas classes auxiliares e isso acabava por gerar obstáculos ao processo de acumulação nacional, por conseguinte dificultando a acumulação nos países imperialistas, por dificultar o aumento da extração de mais‐valor internacional.
Nesse sentido, a lutas dos trabalhadores, sem sombra de dúvidas, foi fundamental para obstaculizar a tentativa de intensificação da exploração do capital sobre o trabalho que, diga‐se de passagem, já era elevadíssima, porém, outra determinação também deve ser levada em conta nesse processo. Trata‐se da condição brasileira de capitalismo subordinado ao capitalismo imperialista (principalmente o norte‐americano).
O contexto no qual estamos tratando equivale, em nível internacional, ao período de crise do regime de acumulação intensivo‐extensivo e que, portanto, levava os países imperialistas a buscar soluções para a crise de acumulação pelas quais passavam. Contudo, as soluções apontavam para a busca pelo aumento da extração de mais‐valor sobre o trabalho ainda no interior desse mesmo regime de acumulação e “isto significava buscar aumentar o processo de exploração sem criar grandes alterações no regime de acumulação” (VIANA, 2005, p. 26). Dessa forma, as lutas operárias se apresentavam como um obstáculo não só para a acumulação nacional, mas, também para a acumulação imperialista norte‐americana no Brasil e, assim sendo, os setores conservadores (capital transnacional, capital nacional
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e suas classes auxiliares) se uniram na tentativa de remover tais obstáculos combatendo a resistência das classes trabalhadoras com o intuito de promover a intensificação da exploração do capital sobre o trabalho, tal como ocorreu no período pós‐golpe de 1964, bem como no contexto internacional que já anunciava a possibilidade de uma transição para outro regime de acumulação.
O apoio norte‐americano ao golpe de 1964 revela, entretanto, os interesses desse país em garantir em território brasileiro uma saída para a crise na qual se encontrava por meio do aumento da exploração e, consequentemente, de uma maior extração de mais‐valor através de suas empresas transnacionais. Dessa forma,
o golpe de 64 foi produto da ofensiva capitalista realizada pelas potências imperialistas (principalmente os EUA) e, com o apoio da burguesia brasileira e outros setores, consegue produzir um amplo aparato repressivo e ao mesmo tempo desalojar do governo setores populistas e reformistas que tinham dificuldades em atacar diretamente os trabalhadores e aumentar o processo de exploração [...] permitindo aumentar o processo de acumulação capitalista no Brasil para sustentar as necessidades da burguesia brasileira e a transferência de mais‐valor para sustentar as necessidades dos países imperialistas, principalmente dos Estados Unidos. Em síntese, é a ascensão das lutas operárias e de outros setores sociais que promoveu a necessidade de transição da democracia burguesa para a ditadura, pois somente esta possibilitaria a ampliação da taxa de exploração naquele contexto, o que era uma necessidade vital do capital neste período (VIANA, 2005, p. 27).
Destarte, a ditadura militar tinha como objetivo fundamental
garantir aquilo que a “democracia” populista não conseguia realizar naquele momento, isto é, uma dura ofensiva em nome do capital (nacional e transnacional) contra a classe trabalhadora. Foi exatamente essa a política de estado implementada pelos militares no poder. A ditadura militar e o regime de acumulação desenvolvido no país estavam em harmonia com as transformações que vinham ocorrendo na divisão internacional do trabalho, e que gestavam novas formas de valorização do capital por parte dos países imperialistas, nas quais o aumento de extração de mais‐valor fora de suas fronteiras nacionais adquiria importância fundamental. Tais formas de valorização do capital iam ao encontro dos interesses dos setores conservadores que, há tempos se vinculavam ao capital internacional e, por conseguinte,
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viam com bons olhos uma maior abertura da economia ao capital estrangeiro (Costa, 1997).
Nesse sentido, a política de Estado consumada no Brasil buscou construir um regime de acumulação que se afirmava numa intensa extração de mais‐valor absoluto aliada a uma constante depreciação da força de trabalho buscando ampliar a taxa de lucro das grandes empresas e promover um acelerado processo de acumulação de capital. Esse novo regime de acumulação acabou por promover também, uma enorme desigualdade social, uma vez que promoveu uma intensificação da lumpemproletarização ‐ que já era enorme no país –, pois as taxas de desemprego se elevaram e, consequentemente, como é regra no capitalismo, a exploração das classes trabalhadoras e a depreciação do valor da sua força de trabalho. Com o intuito de ilustrar o que acabamos de afirmar, recorremos às análises de Edmilson Costa na sua obra A política salarial no Brasil (1997) que assim diz:
Em termos concretos, em 1984 os trabalhadores da faixa de salário mínimo foram obrigados a trabalhar cerca de 60% de horas a mais para adquirir os mesmos bens da cesta básica de 1963, o que revela, por um lado, uma brutal desvalorização do preço da força de trabalho e, por outro, um grau de exploração perverso, traduzido num aumento da mais‐valia absoluta [...] Como o salário mínimo funciona como um farol para a grande maioria dos salários, estrutura‐se um mercado de trabalho de baixos salários, ou seja, um mercado de trabalho com salários pagos abaixo do valor da força de trabalho (p. 41‐42).
Em relação ao aumento da extração de mais‐valor absoluto, ele
continua afirmando:
Esse panorama torna‐se mais crítico se a essas informações acrescentarmos o fato de que ocorreu, no auge do “milagre”, um prolongamento excessivo da jornada de trabalho. As horas extras se transformaram num fato cotidiano em praticamente todas as categorias operárias e podem ser entendidas como um instrumento compensatório à desvalorização do preço da força de trabalho. Não seria exagero afirmar que a jornada de trabalho no país retroagiu para algo próximo dos patamares da primeira revolução industrial, tanto em setores onde esse fato é tradicional (construção civil), quanto em setores de ponta, situando‐se entre 10‐12 horas de trabalho (p. 43‐44).
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As relações de trabalho dominantes na época da ditadura militar eram marcadas, essencialmente, por práticas autoritárias de cunho paternalista e corporativista que dificultavam qualquer tentativa de representação dos interesses do proletariado. O amplo processo de desenvolvimento industrial que contribuiria para a emergência de um novo regime de acumulação capitalista não veio acompanhado de melhorias nas condições de vida e trabalho da classe operária. Pelo contrário, pois o controle da força de trabalho caracterizou‐se por uma imensa parcelização das tarefas, pelo extenso uso de força de trabalho não‐qualificada, por elevadas taxas de rotatividade, pela adoção de complexas estruturas de cargos e salários que objetivavam promover uma maior divisão e controle sobre a classe operária (LEITE, 2003). Portanto,
no período da ditadura militar, a superexploração do trabalho no Brasil iria assumir sua maior perversidade histórica, articulando uma jornada prolongada de trabalho com uma intensidade extenuante do processo produtivo, e uma tendência persistente à depreciação salarial, à constante subtração do quantum referente à remuneração do trabalho, em benefício do mais‐valor apropriado pelo capital monopólico. Outro aspecto da superexploração do trabalho sob a ditadura militar era o despotismo do capital no local de trabalho e a utilização de operários não qualificados com alto grau de rotatividade na linha de produção (ALVES, 2005, p. 109).
Seguindo a tendência intrínseca ao capitalismo, em todo o período
governado pelos militares, as articulações do capital para ampliar a extração de mais‐valor vieram acompanhadas de diversas tentativas do movimento operário de reduzir o tempo de trabalho utilizado na extração de mais‐valor, através de diversas estratégias (absenteísmo, “operação tartaruga”, paralizações temporárias da produção etc.), porém a principal ferramenta utilizada pelo movimento operário, e por diversas outras categorias profissionais que compunham a classe trabalhadora, e que gerava uma maior consciência política, foi a realização de greves. Entre os anos de 1964 e 1984 eclodiram em diversas regiões do país greves e outras formas de resistência da classe trabalhadora.
Mesmo vivendo sob uma ditadura militar que impunha uma repressão violentíssima a toda e qualquer tentativa de mobilização e organização da classe trabalhadora, ora a resistência avançava e
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acumulava forças para pressionar o capital e seus representantes, ora a resistência entrava em refluxo38.
O que é importante destacar é que a luta de classes que acompanhou toda a ditadura militar no Brasil foi fundamental não apenas para promover uma maior abertura política, mas, também, por dificultar a estratégia do capital (nacional e transnacional) em garantir uma maior extração de mais‐valor. Aliado a isso temos em nível internacional a crise do regime de acumulação intensivo‐extensivo que irá coagir a burguesia dos países imperialistas a pressionar os países subordinados com vistas a promoverem melhores condições para um novo ciclo de acumulação dos seus capitais.
Consequentemente, um novo regime de acumulação se torna necessário e a procura pelo mesmo voltou a ser o objetivo da burguesia internacional que reinicia uma nova ofensiva capitalista, tanto internamente, a partir da década de 1980, quanto fora das suas fronteiras. No caso do Brasil, esse novo regime de acumulação passa a ser engendrado ainda na década de 1980, porém de forma embrionária, representando uma fase de transição para o regime de acumulação integral, que só se tornaria uma realidade na década de 1990, quando novas formas organizacionais das relações de trabalho, inspiradas no “modelo Toyota”, começaram a ser implementadas aqui, assim como seu braço direito regularizador, a política neoliberal.
Aproximadamente a partir de 1973, o “milagre brasileiro” começa a dar sinais de esgotamento do seu regime de acumulação, que dentre suas várias determinações, destaca‐se pela sua condição de dependência “à lógica do capital internacional, de acesso aos circuitos do capital financeiro internacional” (ALVES, 2005, p. 110), pois tal regime gerou seus próprios limites de crescimento ao desenvolver de forma desproporcional a produção de bens de consumo duráveis e a produção de bens de produção, uma vez que nesse período há um enorme crescimento das importações de bens de produção não acompanhado pela produção interna que ocasionou uma crise na balança de pagamentos. Da mesma forma e na mesma proporção, houve um incremento da remessa de lucros, dividendos, direitos de assistência
38Sobre o cotidiano das greves no período da ditadura militar (1964‐1984) Cf. (COSTA, 1997).
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técnica, juros de empréstimos que proporcionou uma crise na conta de serviços. A solução para esse quadro deficiente era, mais uma vez, recorrer ao capital financeiro internacional com o intuito de suprir o crescente déficit da balança comercial (ALVES, 2005).
De acordo com Alves (2005), os anos 80 foram marcados por um cenário de maior deterioração da economia brasileira, caracterizado pela instabilidade macroeconômica – hiperinflação, recessão, ciranda financeira. A reprodução interna de capital se encontrava completamente comprometida uma vez que somado à crise da dívida externa existia uma crise estrutural do balanço de pagamentos e o estrangulamento das contas externas. Diante desse conjunto foi colocado à economia brasileira a necessidade imediata e desesperada de adquirir novos saldos na balança comercial com o objetivo de contrair meios de pagamentos internacionais para cumprir o serviço da dívida externa. É essa relação de dependência ao capital financeiro internacional e, consequentemente, o proveito que esse tira de tal dependência que irá caracterizar o Brasil, desde o início do seu processo de industrialização, como um modelo de capitalismo subordinado aos ditames e interesses das potências imperialistas.
É diante desse quadro de crise do regime de acumulação no Brasil, aliado aos interesses imperialistas em ampliar a produção e extração de mais‐valor através de suas empresas transnacionais, que se inicia um surto de “reestruturação produtiva” que caracterizará o regime de acumulação integral no país, pois
a deterioração das contas externas do país debilitou ainda mais as condições de reprodução do capitalismo industrial no Brasil. Sob inspiração do Fundo Monetário Internacional (FMI), adotou‐se uma política recessiva, que contraiu, de modo brutal, o mercado externo (e as importações de bens e serviços) e incentivou as exportações para o mercado internacional. É a partir daí que surgiu um primeiro “choque de competitividade”, que obrigou as grandes empresas, principalmente a indústria automobilística, a adotarem, ainda que de modo incipiente (e restrito), novos padrões organizacionais‐tecnológicos (ALVES, 2005, p. 120).
A retração do mercado interno, juntamente com o incentivo às
exportações, conduziram, cada vez mais, as indústrias de ponta, principalmente a automobilística, a adotarem novas tecnologias microeletrônicas na produção, assim como, novas formas
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organizacionais de relações de trabalho e valorização do capital inspirada no “modelo toyota”. Era de extrema importância para a produção nacional, garantir maior competividade no mercado externo atingindo novos padrões de competitividade internacionais.
A necessidade de ampliar as exportações devido à retração do mercado interno, bem como as necessidades de incrementar o superávit da balança comercial para pagamento das dívidas externas, alteraram completamente os patamares de competitividade industrial, exigindo, dessa forma, novos padrões de qualidade. De acordo com Leite (2003), tais necessidades é que foram responsáveis
ao mesmo tempo pela busca de inovações tecnológicas que visavam aumentar a eficiência das empresas e pela substituição de políticas repressivas de gestão do trabalho por formas menos conflituosas que permitissem às empresas contar com a colaboração dos trabalhadores na busca de qualidade e produtividade (LEITE, p. 69).
É nesse contexto que diversas empresas passam a adotar algumas
técnicas japonesas de produção, como os Círculos de Controle de Qualidade (CCQ), assim como novos equipamentos de base microeletrônica, que dentre eles podemos mencionar: os Controladores Lógico Programáveis (CLPs), robôs, Máquinas‐Ferramenta a Comando Numérico (MFCNs), acompanhados de inovações nos produtos e processos (utilização de sistemas CAD/CAM, just in time, celularização da produção, tecnologia de grupo, sistemas de qualidade total com utilização de CEP39.
39 “Os sistemas CAD/CAM (Computer Aided Design/Computer Aided Manufacturing) permitem a elaboração de desenhos por computador, bem como o monitoramento computadorizado do processo de manufatura; O just in time é um instrumento de controle da produção que busca atender à demanda da maneira mais rápida possível e minimizar os vários tipos de estoque da empresa (intermediários, finais e de matéria‐prima). O sistema pode abarcar tanto a relação da empresa com seus fornecedores e consumidores (Just in time externo) como apenas os vários departamentos e setores que compõem uma mesma empresa (justi in time interno); As células de fabricação consistem na organização das máquinas a partir do fluxo da produção, permitindo uma sensível diminuição do lead time (tempo total de fabricação de uma peça) e dos estoques intermediários (tendo em vista que a integração entre as várias máquinas de cada célula elimina o tempo em que as peças
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Conforme mencionam diversas pesquisas sobre o assunto, não há homegeneidade na implementação desse processo em diversos setores e regiões do país, no entanto, é possível levantarmos alguns traços comuns e determinadas tendências existentes nele. Leite (2003) destaca duas características importantes presentes a partir dessa análise: Primeiramente, ela destaca que apesar das estratégias utilizadas por diversas empresas se diferenciarem, existe um elemento comum a todas elas, trata‐se do seu caráter limitado e reativo, ainda que alguns setores mais competitivos, tal como o automobilístico, venha se destacando com uma maior sistematização desse processo. Em segundo, vale destacar que, ao contrário dos estudos iniciais sobre o assunto, quanto mais esse processo se consolida, mais nocivos se mostram suas consequências sociais. Dentre elas destacaremos, fundamentalmente, a intensificação da lumpemproletarização via crescimento acelerado do desemprego.
Os primeiros sinais de aplicação de técnicas japonesas de valorização do capital, maior controle e disciplinamento da prática operária são vistos entre o final da década de 1970 e início de 1980, quando algumas empresas passam a adotar os Círculos de Controle de Qualidade (CQCs) sem, necessariamente, modificar as formas de organização do trabalho ou investir mais sistematicamente em novos equipamentos microeletrônicos. “O caráter parcial e reativo dessa estratégia foi detectado por vários estudos” (LEITE, 2003, p. 71).
Em sua obra Trabalho e sociedade em transformação – mudanças produtivas e atores sociais (2003), Márcia Leite comenta alguns dos principais estudos realizados sobre as mudanças nas relações de trabalho no Brasil desse período e comenta algumas de suas conclusões. Em 1983, Hirata já chamava a atenção para as adaptações da experiência japonesa no Brasil. Ela ressaltava que aqui existia uma grande
tem normalmente que aguardar nas prateleiras antes de serem usinadas por cada máquina); a tecnologia de grupo consiste no agrupamento das peças a partir de sua similaridade geométrica e sequência de operações e na destinação do mesmo grupo de peças ás mesmas máquinas, permitindo uma significativa diminuição no tempo de preparação das máquinas; O Controle Estatístico de Processo (CEP) caracteriza‐se pela integração do controle de qualidade à produção, por meio da utilização de conceitos básicos de estatística na inspeção das peças, que passa a ser feita pelos próprios operadores de máquina” (LEITE, 2003, p. 70).
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resistência por parte da gerência empresarial em delegar decisões aos operários.
A autora sublinhava que a maior parte dos círculos se restringia aos trabalhadores mais qualificados, técnicos e supervisores, e enfatizava a possibilidade de que os objetivos primeiros dos CQCs estivessem sendo deformados nas empresas brasileiras (HIRATA apud LEITE, 2003, p. 71).
Salerno (Apud Leite, 2003) destacava a pequena abrangência das
questões tratadas pelos círculos, destacando a predominância de assuntos tratados a respeito dos custos da produção, assim como alertou para a utilização dos círculos como forma de disciplinar a iniciativa operária, destacando a resistência dos engenheiros em aceitar as propostas de alteração no método de trabalho proposto pelos próprios trabalhadores.
Vale relembrar que toda alteração nas formas organizacionais das relações de trabalho derivam da luta de classes, ou seja, estão inseridas na clássica disputa entre burguesia e proletariado pelo controle do tempo de produção de mais‐valor. Dessa forma, a adoção de estratégias japonesas de formas organizacionais das relações de trabalho, tal como os CQCs, são, também, uma resposta à luta operária do final da década de 1970 e sua tentativa de, a partir das comissões de fábricas, definirem a forma de organização da força de trabalho no interior das fábricas40. “Nesse sentido, os CQCs foram introduzidos em muitas empresas a partir da preocupação gerencial em desviar o ímpeto participativo dos trabalhadores para formas alternativas de organização que contasse com maior controle gerencial” (LEITE, 2003, p. 72).
Outra forma organizacional que passa a ser difundida no Brasil é o just in time, no entanto até 1985 tal forma organizacional possui um caráter bastante restrito, e isso se dava, sobretudo, em razão dos problemas que se estabelecia entre as empresas consumidoras e os fornecedores. Já o just in time interno se propagou rapidamente em diversas empresas brasileiras que “passaram a integrar as várias etapas da produção a partir das necessidades colocadas pelas vendas, diminuindo consideravelmente os estoques” (LEITE, 2003, p. 73).
40 Sobre o desenvolvimento da luta operária no Brasil na década de 1978 e as comissões de fábricas Cf. MARONI, 1982; ANTUNES, 1988.
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Inúmeros autores vão destacar a grande diferença existente na aplicação das formas organizacionais de inspiração Toyota no Japão e em diversos outros países e a maneira como tais formas organizacionais eram aplicadas no Brasil. Salerno (1985) irá sublinhar que a aplicação do just in time no Brasil, longe de promover a especialização ampla do trabalhador estaria promovendo uma padronização do trabalho:
O operário faz durante sua jornada uma sequência limitada de operações padronizadas e repetitivas; a polivalência significa a capacidade de alimentar mais de um tipo de máquina, antes de ser o operário especializado em cada uma delas; o grupismo se refere a um grupo de máquinas e não a um grupo de trabalhadores (Apud LEITE, p. 74).
O que se pode perceber é que no Brasil algumas formas
organizacionais do trabalho, inspiradas no toyotismo, se mesclavam ou, até mesmo, eram inibidas por tradicionais formas de organização de cariz taylorista e fordista, o que acabava por demonstrar as condições materiais e sua singularidade no Brasil. Tal constatação permite enfatizar nossa interpretação, segundo a qual, não há grandes rupturas e diferenças entre taylorismo, fordismo e toyotismo, mas sim aprofundamento e melhoramento que seguem os avanços tecnológicos ou não, quando inexiste os mesmos, e o aprendizado de experiências históricas com a gestão das relações de trabalho.
Carvalho e Schmitz (Apud LEITE, 2003), por exemplo, enfatizaram o aprofundamento de princípios fordistas no processo de modernização das empresas automobilísticas brasileiras que optavam por uma automação restrita e seletiva, direcionada para a integração e sincronização das operações de manufatura. Seguindo essa estratégia ‘“as tarefas tornaram‐se mais ritmadas pela máquina do que antes” e o fordismo, em vez de ser superado, foi intensificado’. Já para Humphrey, os processos de modernização e reestruturação pelos quais passavam as empresas brasileiras poderiam ser denominados de uma espécie de “just in time taylorizado” no qual a gerência tenderia a administrar a fábrica como se fosse uma máquina, utilizando uma estratégia que “careceria de envolvimento e compromisso, dependendo mais da coerção e da pressão sobre os trabalhadores” (Apud LEITE, 2003, p. 76).
A década de 1990 assiste uma maior sistematização do processo de “reestruturação produtiva” em diversas empresas brasileiras e tal fato se
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deve, ao aprofundamento da crise econômica do início dessa década, a retração do mercado interno, a uma maior abertura dos mercados nacionais e à necessidade das empresas locais fazerem frente à concorrência internacional (LEITE, 2003; OLIVEIRA, 2004).
A principal consequência desse conjunto de mudanças implantadas nas principais empresas brasileiras, principalmente na automobilística, é uma ampla precarização do trabalho acompanhada daquilo que denominaremos de mais‐violência para o proletariado, pois aqui, assim como em todas as regiões do globo em que o toyotismo foi implantado, o operário se vê obrigado a trabalhar de forma pluriespecializada, dedicando‐se a várias funções no interior da fábrica, manobrando, simultaneamente, várias máquinas em ritmo alucinante. Funções que antes eram executadas por mais de dois ou três operários, hoje é exercida intensamente por apenas um operário. O resultado mais drástico dessa mais‐violência no trabalho foi denominado no Japão de Karoshi, ou seja, morte por overdose de trabalho. Nesse país, fundador do modelo Toyota de organização do trabalho, milhares de operários morrem ao ano vitimados pelo excesso de trabalho, por jornadas que vão de 15 a 16 horas diárias, pela ausência de férias, pelas moradias minúsculas etc. Essa realidade nasce no Japão, se expande para outros países imperialistas e chega ao Brasil, principalmente, nas montadoras de automóveis. De acordo com Antunes,
o processo de produção de tipo toyotista, por meio dos teamwork, supõe, portanto uma intensificação da exploração do trabalho, quer pelo fato de os operários trabalharem simultaneamente com várias máquinas diversificadas, quer pelo ritmo e a velocidade da cadeia produtiva dada pelos sistemas de luzes. Ou seja, presencia‐se uma intensificação do ritmo produtivo dentro do mesmo tempo de trabalho ou até mesmo quando este se reduz. Na fábrica Toyota, quando a luz está verde, o funcionamento é normal; com a indicação da cor laranja, atinge‐se uma intensidade máxima, e quando a luz vermelha aparece, é porque houve problemas, devendo‐se diminuir o ritmo produtivo. A apropriação das atividades intelectuais do trabalho, que advém da introdução de maquinaria automatizada e informatizada, aliada à intensificação do ritmo do processo de trabalho, configura um quadro extremamente positivo para o capital, na retomada do ciclo de acumulação e na recuperação da sua rentabilidade (2005, p. 56).
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A acumulação integral objetivada pelo modelo toyotista busca extrair mais‐valor de forma intensiva e extensiva e para isso promove uma intensificação do processo de trabalho e um controle rigoroso sobre todo o tempo de trabalho, gerando mais‐violência para o trabalhador. No entanto, resta explicar o que se entende por mais‐violência no trabalho. O caráter central do trabalho na contemporaneidade é a superexploração marcada pela intensificação do trabalho, pelo assédio moral, pela pressão psicológica, pelo desenvolvimento da síndrome da culpa, síndrome do pânico, pelo estresse, depressão, medo e várias outras formas de (mais) violência derivadas do trabalho (BERNARDO, 2009; DAL ROSSO, 2008). Nesse sentido, o que denominamos aqui de mais‐violência caracteriza‐se por uma sobre‐violência intensificada no trabalho e que atinge o operário tanto física quanto psiquicamente, podendo levá‐lo à morte. Segundo o psiquiatra e psicanalista especialista em medicina do trabalho Christophe Dejours,
ao lado do medo dos ritmos de trabalho, os trabalhadores falam sem disfarces dos riscos à sua integridade física que estão implicados nas condições físicas, químicas e biológicas de seu trabalho. Sabem que apresentam um nível de morbidade superior ao resto da população [...] A grande maioria tem a impressão de ser consumida interiormente, desmanchada, degradada, corroída, usada ou intoxicada. Este medo patente é expresso desta maneira direta pela maioria dos trabalhadores das indústrias (1992, p. 74).
De acordo com alguns dicionários, o medo pode ser entendido como
uma perturbação resultante da ideia de um perigo real ou aparente e no caso concreto dos operários de indústrias que funcionam segundo o modelo japonês (Toyota) ele apresenta‐se como uma constante no cotidiano tanto interno quanto externo à fábrica. Os trabalhadores, devido ao acúmulo de funções e ao ritmo exorbitante da produção, temem errar no processo de trabalho e serem constrangidos publicamente pelos seus gerentes (espécies de agentes carcerários na produção), temem adoecer e serem humilhados por executarem, mesmo doentes, trabalhos mal‐vistos tal como promover a coleta do lixo da fábrica, temem as ameaças de desemprego e o próprio desemprego, temem falir fisicamente e não mais conseguirem executar todo o trabalho que sobre‐pesa seus músculos e cérebro.
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Em sua obra Trabalho duro, discurso flexível – uma análise das contradições do toyotismo a partir da vivência de trabalhadores (2009), Bernardo fornece vários depoimentos de trabalhadores de duas montadoras de automóveis no Brasil41 que funcionam segundo o modelo Toyota de produção e que nos permite constatar, de acordo com nossa definição, a mais‐violência a que estão submetidos os trabalhadores dessas montadoras e que nos possibilita, também, generalizar para outras indústrias que funcionam sob a égide do toyotismo:
Rogério (trabalhador da Tamaru) – Assédio moral lá (na Tamaru) acontece praticamente com 100% dos funcionários, porque, quando um erra, no dia seguinte, na reunião [...] [o chefe] vai chamar atenção de todo mundo. Todo mundo se sente humilhado, entendeu? O cara vai trabalhar cedo. O cara já vai com pique de trabalhar e ele já começa ouvir essas coisas logo cedo, o cara desanima, entendeu? E você pode ver que quando acontece isso aí lá [...] aí que é o dia mais ruim para trabalhar. Faz serviço errado. Fica naquele medo “não posso errar, não posso errar, não posso errar” (2009, p. 140). Fabiano (dirigente sindical na Assan) – Então, é um negócio [...] uma loucura [...] é um desespero. É nego correndo pra tomar água. O outro deu problema na peça lá, tem que correr pra trocar o bico da pontiadera. Corre lá porque não pode perder tempo! [...] é um ritmo totalmente [...] desesperador. Tanto que [...] na hora de almoçar, eles querem que o pessoal vá andando, não pode correr, mas os caras falam: “trabalhei correndo o dia inteiro porque para almoçar tenho que ir andando?!”. É uma loucura (2009, p. 144). Silvio (trabalhador da Assan) – [...] é desumano o que você faz. Na sexta‐feira, nós fizemos 122 carros. Era para ser 120 e foi 122. Passou do horário e você é obrigado a ficar depois do horário e foi 122 carros sem hora extra. Com mais meia hora, a gente fez 129 carros! E você, naquela pressão! Putz é muita correria! E os caras passam do horário ainda, sabe? Horário de refeição, eles não respeitam, eles passam do horário. Horário de café [...] (2009, p. 147). Vitor (trabalhador da Assan) – O problema (da pressão) não é só [...] só o seu corpo [...] é sua mente também: A hora que você vai ver, você tá ficando meio lélé! [...] Se você for levar tudo ao pé da letra, tudo certinho assim, que eles
41 Com o intuito de impossibilitar a identificação dos trabalhadores que contribuíram com a pesquisa que possibilitou a produção de sua obra – Trabalho e população em situação de rua (2009) – Bernardo optou por utilizar nomes fictícios tanto para os trabalhadores entrevistados quanto para as montadoras de automóveis nas quais os mesmos trabalhavam: Tamaru e Assan.
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falam tem que ser assim e assim, se você seguir a pressão bate mesmo [...] você fica lélé (2009, p. 151). Cristiano (trabalhador da Tamaru) – Tem um fato também que é do estresse. Eu chegava a sonhar a noite que estava montando carro. Sonhava! Tinha vez que eu ia dormir, sonhava que tava montando carro. Quando eu acordava pra ir trabalhar, parecia que eu não tinha dormido nada, entendeu? Parecia que eu tinha trabalhado. Saía cansado já! Psicologicamente eu saía cansado pra trabalhar. [...] a gente fica muito estressado! Vai estressando, vai estressando e aí dá os problemas (2009, p. 152).
Aliado a esse conjunto de transformações nas relações de trabalho
no Brasil, a partir do final da década de 1970 e início da década de 1980, fase de transição para o regime de acumulação integral, que se consolida na década de 1990, existem outras determinações que nos auxiliarão na compreensão do processo de intensificação da lumpemproletarização que atinge o país desde esse período até os dias atuais. Dentre essas determinações, destacaremos a condição de capitalismo subordinado brasileiro que, sobre os ditames do neoimperialismo, aliado ao neoliberalismo promoverá, para milhares de trabalhadores, uma intensa marginalização no mercado de trabalho. É sobre isso que discorreremos no próximo item. 4.2. Neoimperalismo e capitalismo subordinado
Nesse item discutiremos a terceira e última parte constituinte do
regime de acumulação integral, isto é, o neoimperialismo, sua relação com o Brasil que compõe o bloco subordinado, o Estado neoliberal subordinado e uma de suas principais consequências sociais para esse país, a intensificação da lumpemproletarização.
O capitalismo só existe em expansão, pois vimos que a sobrevivência dos capitalistas individuais depende da capacidade desses de concorrer no mercado e essa depende da habilidade de desenvolver as forças produtivas, de combater a tendência à queda da taxa de lucro, da concentração e centralização de capitais que possibilita a formação dos verdadeiros oligopólios, que passam a dominar os mercados mundiais. Aqui reside a “marcha global do capitalismo” (VIANA, 2009). Contudo, como já foi mencionado, esse processo é marcado pela luta de classes em sua totalidade e pela tendência
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declinante da taxa de lucro, que historicamente tem obrigado a classe capitalista a encontrar novas estratégias de combater esses dois impasses para o desenvolvimento dessa marcha. Isso tem gerado o desenvolvimento e sucessão dos regimes de acumulação que há cada novo regime encontra dificuldades cada vez maiores para reproduzir o capitalismo. É nesse sentido, que Viana afirma que o regime de acumulação integral necessita, como seu próprio nome diz, da ampliação da exploração em escala cada vez mais intensa.
O regime de acumulação intensivo‐extensivo que antecedeu ao regime de acumulação integral garantia uma relativa estabilidade no bloco dos países imperialistas graças à superexploração existente no bloco dos países subordinados, através de uma acumulação extensiva, transferência de mais‐valor para os países imperialistas, endividamento externo, da “troca desigual” etc. Porém, a situação já não é mais a mesma, visto que para garantir a reprodução do capitalismo no regime de acumulação integral, que entra em vigor a partir da década de 1980, não basta aumentar a já intensa exploração no capitalismo subordinado, até mesmo porque as resistências provavelmente atingiriam níveis de radicalidade não desejado pelas classes capitalistas. Portanto, para se manter, o novo regime de acumulação necessita aumentar a exploração no bloco subordinado, que a partir da queda do capitalismo estatal russo se amplia com os países do leste europeu, mas também no bloco imperialista como demonstramos anteriormente no caso norte‐americano.
É neste contexto, que emerge o neoimperialismo, ou seja, o imperialismo do regime de acumulação integral que tem como função promover de forma generalizada a acumulação integral de capital em todo o mundo. Dessa forma, o neoimperialismo busca reproduzir o processo de exploração integral através das relações internacionais, visando aumentar a exploração que, consequentemente, representa maior quantidade de mais‐valor produzido e maiores transferências de valor dos países subordinados para os países imperialistas.
Deste modo, há uma tendência em aumentar a já elevada taxa de exploração nos países subordinados. Nesse sentido, a política neoliberal cumpre seu papel ao promover uma corrosão dos direitos trabalhistas e estabelecimento de estratégias para promover o aumento da extração de mais‐valor relativo (maior controle do trabalho, novas tecnologias etc.),
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uma vez que a extração de mais‐valor absoluto já existe e tende a ampliar. Por conseguinte,
o neoimperialismo produz um Estado neoliberal subordinado, que executa o papel de aumentar a exploração interna e, ao mesmo tempo, permitir o aumento da exploração externa. A proeminência de organismos internacionais na elaboração das políticas nacionais dos estados subordinados (FMI, Banco Mundial etc.) apenas revela esta subordinação e alguns dos mecanismos utilizados pelo bloco imperialista (e pelo capital oligopolista transnacional por detrás dele). O bloco subordinado realiza uma política neoliberal que revela a debilidade do capital nacional e, por conseguinte, das burguesias nacionais, subordinadas ao mesmo tempo associadas ao capital oligopolista transnacional (a reprodução subordinada dos capitalismos nacionais permite sua reprodução. O fato de o nível da exploração dos trabalhadores locais ser maior não lhes interessa) (VIANA, 2009, p. 105).
Uma das principais características do capitalismo subordinado é ter seu capital nacional e o Estado submetido ao domínio do capital transnacional, já nos Estados imperialistas o capital nacional exerce proeminência sobre o capital transnacional. No capitalismo subordinado seus capitais são limitados, exercendo de forma bastante tímida qualquer domínio fora de suas fronteiras nacionais. Já nos países de capitalismo imperialista o capital nacional é transnacional e sobrepuja o mundo inteiro (VIANA, 2009).
É importante destacar que os organismos internacionais compõem o processo de regularização da exploração internacional e que com a mudança para o regime de acumulação integral suas estratégias sofrem alterações. O Banco Mundial nos fornece um exemplo claro de tais alterações, pois enquanto no regime de acumulação anterior ele cumpria o papel de providenciar investimentos, no regime de acumulação integral ele passa a exercer o papel de “‘guardião dos interesses dos grandes credores internacionais, responsável por assegurar o pagamento da dívida externa e por empreender a reestruturação e abertura’ do capitalismo subordinado” (SOARES apud VIANA, 2009, p. 111). No fundo, o que as organizações internacionais têm promovido é a coação dos países subordinados no sentido dos mesmos aprofundarem seu neoliberalismo, sua reestruturação produtiva e suas políticas internacionais em direção à construção de um “livre comércio”, para o capital transnacional, é claro. Assim sendo,
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o neoimperialismo é, tal como o regime de acumulação que lhe gerou, integral, buscando aumentar a transferência de mais‐valor do capitalismo subordinado através de várias formas, além das tradicionais. E desloca investimentos para locais onde a força de trabalho é mais barata e busca criar nichos exclusivos de mercado consumidor (veja, no caso dos EUA, a NAFTA, o projeto ALCA etc.), o que faz acirrar a competição interimperialista. Também há o aprofundamento da estratégia de emperrar o desenvolvimento das forças produtivas, desviando os investimentos para bens de consumo, indústria bélica etc. Assim, a dinâmica do neoimperialismo é marcada por uma busca desenfreada de aumentar a exploração imperialista, buscando combater a tendência declinante da taxa de lucro (VIANA, 2009, p. 111).
O capitalismo brasileiro, desde o início do seu processo de industrialização, sempre esteve subordinado e dependente dos investimentos estrangeiros, no entanto, ao que tudo indica, sob a vigência do regime de acumulação integral tal subordinação tem se tornado, como afirma Biondi (2000), “um negócio escandalosamente escandaloso” (p. 33). Tal constatação se observa, principalmente, nas posturas que os principais agentes governamentais, pós‐década de 1990, tem adotado diante dos interesses neoimperialistas de grandes corporações oligopólicas transnacionais (empresas, instituições financeiras, bancos etc.) que vem sendo marcada por uma entrega irrestrita do patrimônio estatal via processo de privatização, por um crescimento alucinante da dívida pública, tanto interna quanto externa, e por uma descontrolada política de remessa de lucros, jamais vista na história do país, praticada pelas grandes empresas transnacionais aqui instaladas.
Além dessas questões, tal processo de desmonte do Estado vem acompanhado por uma intensa precarização dos serviços públicos fornecidos pelas empresas privatizadas e por uma escalada vertiginosa dos preços cobrados pelos serviços oferecidos. Grosso modo, toda essa complexa questão que envolve uma maior abertura comercial para os capitais transnacionais, aliada a uma política de venda das principais empresas públicas a “preço de banana” e a utilização de dinheiro público para o financiamento de iniciativas realizadas pelo capital transnacional etc. é o que nos possibilita caracterizar o Estado brasileiro, da década de 1990 até os dias atuais, como um típico Estado neoliberal subordinado.
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Apesar de o Brasil se apresentar como o país que mais resistência ofereceu às políticas de desregulamentação financeira e abertura comercial na década de 1980, na década seguinte toda essa resistência ofertada fora recompensada com grande intensidade e num período muito curto pela adoção irrestrita de um modelo neoliberal absolutamente subordinado aos interesses neoimperialistas expresso pelo “Consenso de Washington”:
Em 1990, o economista John Williamson sistematizou uma série de “recomendações” feitas aos países periféricos pelas instituições financeiras internacionais (sobretudo o FMI e o Banco Mundial) a partir da crise da dívida externa. Essas “recomendações” estavam centradas em dois eixos: na estabilização macroeconômica, mediante a adoção de políticas monetárias restritivas, e no incentivo à iniciativa privada, mediante a adoção de reformas estruturais, “orientadas para o mercado”. A denominação “Consenso” se explica: esse conjunto de medidas adquiriu status de pensamento único, ao qual não haveria alternativa (GALVÃO, 2007, p. 39).
Nos anos oitenta, o esgotamento do regime de acumulação
brasileiro se expressou, também, na crise financeira do Estado devido ao processo crescente de endividamento externo e interno. Esse processo resultou na perda do controle da moeda e das finanças por parte do Estado, assim como da sua capacidade estruturacional, visto que o mesmo sofreu não apenas com uma forte redução dos gastos e investimentos públicos, mas também pela ausência quase completa de políticas de desenvolvimento. Nesse contexto, portanto, o Brasil se encontrava extremamente fragilizado econômica e politicamente a ponto de não contar com os recursos necessários para implementar os ajustes neoliberais que se impunham naquele período (SOARES, 2009). Segundo Fiori (Apud SOARES, 2009), o país enfrenta
um processo circular e crônico de instabilização macroeconômica e política: instabilidade da moeda; instabilidade do crescimento; instabilidade na condução das políticas públicas etc. A política econômica terminou por submeter‐se à própria volatilidade do processo econômico e político, ambos movendo‐se em direção opostas. Foram contabilizados nesse período oito planos de estabilização monetária, quatro diferentes moedas (uma a cada trinta meses), onze índices de cálculo inflacionário, cinco congelamentos de preços e salários, catorze políticas salariais, dezoito modificações nas regras de câmbio, cinquenta e quatro alterações nas regras de controle de preços, vinte e uma propostas de negociação da dívida externa e dezenove decretos sobre a autoridade fiscal (p. 36).
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Após anos de ditadura militar, a transição política para um governo
“democrático” no Brasil foi realizada sob o controle direto dos credores e das instituições financeiras sediadas em Washington. Aproveitando‐se do escândalo que envolvia diretamente o presidente Fernando Collor de Melo a um processo milionário de extorsão de dinheiro público e da ampla campanha midiática em torno do seu pedido de impeachment, em 1992 foi negociada uma transação multibilionária entre o ministro da economia de Collor, Marcílio Marques Moreira, e os credores internacionais do Brasil. A partir daí o capitalismo brasileiro intensificaria sua condição de subordinado aos interesses neoimperialistas, pois a “agenda oculta” do FMI
consistia em apoiar os credores e, ao mesmo tempo, enfraquecer o governo central. Já haviam sido pagos US$ 90 bilhões referentes aos juros da dívida durante os anos 80, um valor bastante próximo ao do total do principal (US$ 120 bilhões). Cobrar a dívida, todavia, não era o principal objetivo. Os credores internacionais do Brasil queriam se assegurar de que o país permaneceria endividado por muito tempo e de que a economia nacional e o Estado seriam reestruturados em benefício deles (credores) por meio da contínua pilhagem dos recursos naturais e do meio ambiente, da consolidação da economia de exportação baseada na mão‐de‐obra barata e da aquisição de empresas estatais mais lucrativas pelo capital estrangeiro (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 171).
Iniciado em 1990, o plano Collor previa a promoção de uma política monetária intervencionista, uma ampla privatização de acordo com os planos do FMI, demissão de milhares de funcionários públicos, além de diversos outros cortes nos gastos públicos e salários. Tudo isso visando a liberação de dinheiro destinado ao pagamento da dívida interna e externa. No entanto, mesmo seguindo todas as determinações de Washington o governo brasileiro continuava na lista negra do Fundo Monetário Internacional. A nova política adotada pelos organismos internacionais no regime de acumulação integral era marcada por uma maior rigidez visando a garantia do cumprimento dos acordos realizado com os credores e “qualquer falha no cumprimento das exigências dos credores podia se tornar facilmente um pretexto para represálias ulteriores e a inclusão do país na lista negra” (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 173).
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De acordo com Galvão (2007), durante o governo Collor a tese da crise fiscal do Estado foi amplamente utilizada como justificativa para atacar o funcionalismo público e privatizar as principais empresas estatais (lucrativas, claramente), responsáveis diretos, segundo essa tese, pela crise fiscal. O governo Collor, poderíamos dizer, deu o pontapé inicial para que as reformas neoliberais ganhassem volume nos próximos governos de FHC. Nesse sentido,
embora tenha promovido a abertura do mercado interno, dado início ao processo de privatização, realizando uma reforma ministerial e colocado servidores públicos em disponibilidade, Collor não avançou nas reformas tributária, administrativa, previdenciária e trabalhista, frustrando a expectativa das classes dominantes em relação à adoção das reformas “orientadas para o mercado”. Assim, se Collor inaugurou a década de governos neoliberais no Brasil, foi no governo FHC que o neoliberalismo se consolidou, pois a estabilidade monetária lhe proporcionou as condições necessárias para aprovar várias das reformas almejadas (GALVÃO, 2007, p. 65).
O projeto neoliberal brasileiro, colocado em prática após a eleição de
Fernando Henrique Cardoso para presidente, tem como receituário fundamental o combate à inflação, através do plano de estabilização, considerado pré‐requisito para o retorno da acumulação de capital, principalmente dos capitais transnacionais, vale ressaltar. A desregulamentação da economia torna‐se palavra de ordem, pois a defesa da abolição da regulação do Estado sobre a economia e sobre a relação capital‐trabalho passa a ser defendida como a responsável por todo tipo de distorções e, portanto, deve ser substituída pelo “livre jogo do mercado”, garantindo, dessa forma, uma distribuição de recursos e investimentos mais racionais.
Portanto, a retirada do Estado como agente econômico e empresarial assume papel importantíssimo no engendramento dessa nova ofensiva do capital a partir de um “Estado mínimo”, ou seja, de um estado que minimamente cumpra algumas funções sociais básicas, tais como garantia apenas de educação pública básica, saúde pública – se é que hoje podemos falar da existência de tal “garantia” ‐, construção e manutenção de infraestrutura para a reprodução do capital etc. A ideia central dessa ideologia neoliberal, para não dizer dessa mentira descarada, é que com a privatização e a redução do Estado de forma geral, estaria garantida a redução dos gastos públicos e,
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consequentemente, do déficit público, principal responsável pela elevação da inflação no país (SOARES, 2009).
A maneira pela qual se conduziu o processo de privatização de empresas públicas nesse período nos fornece a principal característica do capitalismo subordinado, qual seja a de proporcionar excelentes condições para uma maior produção e extração de mais‐valor para os grandes complexos empresarias transnacionais, em detrimento dos interesses e das necessidades populares.
A obra O Brasil privatizado – um balanço do desmonte do Estado (2000), de Aloysio Biondi, consiste numa excelente denúncia da gigantesca entrega de “mãos beijadas” de todo o patrimônio público, isto é, patrimônio construído com o mais‐valor extraído dos trabalhadores via pagamento de impostos e tributos, para milhares de empresas transnacionais que passaram a acumular cifras bilionárias de capital. Antes mesmo de realizar a venda de diversas empresas estatais (telefonia, energia, bancos, redes ferroviárias, estradas, siderúrgicas etc.) o governo de FHC investiu bilhões na reestruturação das mesmas, promoveu o aumento exorbitante das tarifas cobradas ao público, assumiu o ônus de milhares de indenizações e aposentadorias, ao realizar demissão em massa de trabalhadores, tornando ainda mais atrativa a “venda” dessas ao capital transnacional. Somado a isso, o governo ainda concedeu milhares de empréstimos com juros privilegiados às empresas privatizadas e, ainda, entregou várias empresas com altas cifras em dinheiro no caixa. Para exemplificar podemos utilizar o caso da Vale do Rio Doce que ao ser entregue a Benjamim Steinbruch, contava com aproximadamente 700 milhões em caixa. O mesmo ocorreu na venda da Telesp à transnacional espanhola Telefônica (BIONDI, 2000).
Ao contrário do que afirmava o governo ao justificar tamanho desmonte do Estado, a privatização não foi capaz de atrair dólares para os cofres públicos e nem tampouco serviu para diminuir a dívida interna e externa do país, uma vez que
as vendas foram um “negócio da China” e o governo “engoliu” dívidas de todos os tipos das estatais vendidas; isto é, a privatização acabou por aumentar a dívida interna. Ao mesmo tempo, as empresas multinacionais ou brasileiras que “compraram” as estatais não usaram capital próprio, dinheiro delas mesmas, mas, em vez disso, tomaram empréstimos lá fora para fechar os
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negócios. Assim, aumentaram a dívida externa do Brasil. É o que se pode demonstrar, na ponta do lápis, neste “balanço” das privatizações brasileiras, aceleradas a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (BIONDI, 2000, p. 06).
Outra realidade que demonstra muito bem o quanto o capital
brasileiro é submetido ao capital transnacional é o fato de que não houve, além de meros acenos, nenhuma imposição do governo às transnacionais no sentido de coagi‐las a usarem peças e componentes nacionais na fabricação de seus produtos. É verdade que o governo chegou a ensaiar a possibilidade de obrigar tais empresas a usarem pelo menos 35% de peças e componentes nacionais, no entanto, à medida que os leilões se aproximavam o recuo do governo se ampliava e diminuía a porcentagem até o ponto de anular tais obrigações. Tal realidade gerava um rombo enorme visto que promovia uma enorme transferência de capitais para os países neoimperialistas via ampliação bilionária das importações e grandes quantidades de falências de empresas nacionais acompanhadas da elevação do desemprego.
Na prática o processo de privatização não promoveu o que o governo havia prometido, ou seja, não atraiu dólares para o país, pois o que de fato ocorreu e vem ocorrendo é um rombo colossal da balança comercial e um incremento das remessas para o exterior. A maioria dos novos donos das ex‐empresas estatais não as compraram e nem realizaram os investimentos previstos com dinheiro próprio. Na verdade, o que ocorreu foi que nos leilões das estatais as compras eram realizadas com empréstimos realizados no exterior e tais empréstimos, acreditem se quiser, eram transferidos para a dívida externa do país, encorpando os juros que o Brasil deveria pagar aos bancos internacionais. Tal prática ao contrário do que afirma Biondi (2000) não representa uma “contradição total por parte do governo”, mas sim, demonstra o grau de subordinação aos ditames neoimperialistas.
Como era de se esperar, o regime de acumulação integral subordinado trouxe consequências sociais desastrosas para o Brasil, bem como para diversas outras nações que compõe o bloco subordinado na divisão internacional do trabalho. Mas o que se percebe até aqui é que nas regiões que compõem o bloco subordinado as desigualdades sociais e a marginalização de parcela significativa dos
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trabalhadores da divisão social do trabalho tende a intensificar. Isso decorre do fato de que historicamente tais sociedades acumularam por séculos um quadro sombrio de pobreza e desigualdade social oriundas dos modos de produção instalados aqui e de sua correspondente contraface, isto é, do bloco constituído pelos países imperialistas que assim se tornaram devido à exploração nas quais submeteu boa parte da população mundial.
Em outras palavras, o regime de acumulação integral gera níveis de empobrecimento diferenciados entre o bloco imperialista e o bloco subordinado, visto que a condição de país imperialista sempre possibilitou uma maior inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho, melhores acessos a bens e políticas sociais etc. devido à extração de mais‐valor dos países subordinados e da remessa de lucros para os países imperialistas. Portanto, sendo a existência de um pré‐condição para a existência do outro, não seria possível que o bloco subordinado constituísse as mesmas condições sociais em seus territórios, ou seja, só existem países imperialistas porque existem países subordinados e vice‐versa. No entanto, tal constatação não significa como já foi demonstrado anteriormente, que nos países imperialistas a classe trabalhadora esteja isenta do empobrecimento crescente, mas tão somente que nos países subordinados tal empobrecimento ‐ via lumpemproletarização ‐ tende a ocorrer de forma intensificada. É justamente com essa discussão que pretendemos finalizar nosso trabalho. 4.3 Desemprego e intensificação da lumpemproletarização
Assim como em todos os regimes de acumulação que o
antecederam, a porta de entrada para o processo de lumpemproletarização no regime de acumulação integral é o desemprego. Porém, além dessa constatação comum aos regimes de acumulação capitalista, no caso específico do brasileiro esse ainda possui outra característica comum ao primeiro regime de acumulação (extensivo): o crescimento generalizado do desemprego. Por essa razão partiremos da análise do fenômeno do desemprego para compreender, de forma geral, o processo de lumpemproletarização e, posteriormente a intensificação substancial do crescimento de uma de suas frações mais
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degradas: os sem‐tetos ou, como preferem denominar alguns estudiosos, a população em situação de rua (SILVA, 2009; VIEIRA et al, 2004).
Uma das teses centrais desse trabalho e que merece ser mencionada aqui, consiste no seguinte: Tanto no capitalismo imperialista quanto no capitalismo subordinado – especificamente o caso brasileiro – ocorre uma expansão da lumpemproletarização, porém, no capitalismo subordinado, tal expansão ocorre em maior intensidade tanto numérica quanto em relação ao nível de degradação das condições de existência dessa classe social. Ao longo dessa discussão, pretendemos demonstrar essa singularidade do processo de lumpemproletarização no capitalismo subordinado.
Acompanhando as análises de Pochmann (2005), toda nação possui um contingente de pessoas em condições de participar da produção social, tal contingente forma aquilo que ficou conhecido como População Economicamente Ativa (PEA). No entanto, é válido lembrar que a PEA representa apenas expressão da potencialidade da produção social, pois somente parcela dela acaba por ser envolvida diretamente pela produção capitalista.
Na linguagem marxista, tal realidade seria mais bem expressa a partir dos conceitos proletarização e lumpemproletarização, pois não somente a existência de uma classe produtora de mais‐valor é imprescindível ao capitalismo, mas também o lumpemproletariado que exerce a função fundamental de proporcionar quantidades cada vez maiores de extração de mais‐valor, visto que o seu crescimento possibilita incrementar a pressão dos salários para baixo e a fragmentação da classe trabalhadora, que vive uma disputa altamente competitiva no mercado de trabalho, além de ser força de trabalho reserva potencial, na qual o capital pode lançar mão dela quando necessitar. É nesse sentido, portanto, que o lumpemproletariado cumpre seu papel na dinâmica da acumulação capitalista de cada país. A parte mais nítida do lumpemproletariado é identificada pelo desemprego aberto, enquanto a parte menos nítida é expressa pelas diversas formas de subemprego, trabalho extremamente precário e outros meios garantidores da sobrevivência. Para Pochmann,
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[...] o desemprego aberto, que corresponde aos trabalhadores que procuram ativamente por uma ocupação, estando em condições de exercê‐la imediatamente e sem desenvolver qualquer atividade laboral, indica o grau de concorrência no interior do mercado de trabalho em torno do acesso às vagas existentes. O subemprego e outras formas de sobrevivência respondem pela parte menos visível do excedente de mão‐de‐obra porque envolvem os trabalhadores que fazem “bicos” para sobreviver e também procuram por trabalho, assim como aqueles que deixam de buscar uma colocação por força de um mercado de trabalho extremamente desfavorável (desemprego oculto pelo trabalho precário e pelo desalento) (2005, p. 78‐79).
Não há homogeneidade nas formas utilizadas por diversos países
para medir o excedente de mão‐de‐obra existente em cada nação. Pelo contrário, o que há é uma diversidade enorme de formas, conceitos e procedimentos utilizados para tal fim. Na verdade, concorrem entre si as diversas maneiras (locais, nacionais e internacionais) de se medir o excedente de mão‐de‐obra, que vão desde os registros de trabalhadores cadastrados em agências de emprego, beneficiários de seguro desemprego, cadastros patronais e sindicais e diversos outros levantamentos promovidos por agências particulares de investigação (GUIMARÃES, 2002; POCHMANN, 2005). Contudo, em um aspecto essas diversas formas de contabilizar o excedente de mão‐de‐obra possuem concordância: nas últimas décadas tal excedente (composto pelo lumpemproletariado ‐LB)tem se ampliado, mesmo que em proporções e intensidades diferenciadas, dependendo da região, em escala global (DEDECCA, 1999; SILVA, 2009a).
De acordo com Pochmann (2005), é possível identificar pelo menos três tipos de desemprego no mundo: O primeiro encontra‐se nas nações com forte concentração nos setores agropecuários em que boa parte da população é absorvida em atividades realizadas no campo (produção alimentícia para auto‐suficiência e para a exportação). Nesse setor há uma tendência do desemprego aberto ser menor.
O segundo tipo de desemprego concentra‐se nas nações industrializadas, com a maior parte da população envolvida em atividades essencialmente urbanas.
O terceiro e último tipo de desemprego encontra‐se associado às nações que após um forte processo de industrialização, concentram suas atividades em setores mais modernos da economia. Em tais países, há maiores possibilidades de contenção, mesmo que de forma bastante
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tímida, do desemprego através das práticas neoimperialistas que amplia a extração de mais‐valor fora de suas fronteiras nacionais e possibilita a implementação de políticas públicas que garantem a manutenção de parcela da população na inatividade sem que essa constitua nichos de pobreza, através da diminuição da jornada de trabalho, ou, ainda, para o redirecionamento de parcela da população desempregada para outros setores da economia, tais como serviços de saúde, educação, entretenimento etc. Porém, mesmo nesses países o crescimento do desemprego tem se elevado. Aproximadamente 34 milhões de pessoas se encontram desempregadas nos países que compõe a OCDE e para o século XXI não são esperadas taxas de desemprego abaixo dos 10% da PEA (OCDE apud POCHMANN, 1999).
A década de 1990 no Brasil consolida uma ruptura, que veio sendo construída desde a década anterior, com o modelo de estruturação do mercado de trabalho dominante entre as décadas de 1930 e 1970, pois o mercado de trabalho passou a se caracterizar por uma tendência a redução dos empregos com registro e da expansão do desemprego e da informalidade. Em outras palavras, a precarização do trabalho se alavanca a partir dessa década, visto que o número de ocupações não registradas, ou seja, sem nenhuma garantia trabalhista, cresceu significativamente em detrimento da eliminação de diversos postos de trabalhos com registro42 (MATTOSO, 2001). Segundo Pochmann,
em 1989, o total de assalariados representava 64% da PEA e em 1995 havia passado para 58,2 %, refletindo uma taxa negativa de variação média anual do emprego assalariado com registro (‐1,4%). Os empregos assalariados sem registro apresentaram, por sua vez, taxa de crescimento médio anual de 3,12%.
42 “Em 1980, por exemplo, o Brasil possuía cerca de 23 milhões de trabalhadores assalariados com registro formal e, em 1989, havia passado para 25,5 milhões. No ano de 1999, contudo, a quantidade de assalariados com carteira assinada havia caído para 22,3 milhões de trabalhadores, segundo dados do Ministério do Trabalho” (POCHMANN, 2005, p. 98); Segundo as pesquisas do IBGE ou do DIEESE‐SEADE, hoje mais de 50% dos ocupados brasileiros das grandes cidades se encontram em algum tipo de informalidade, grande parte sem registro e garantias mínimas de saúde, aposentadoria, seguro‐desemprego, FGTS. Ou seja, três em cada cinco brasileiros ativos das grandes cidades estão ou desempregados (um em cinco) ou na informalidade (dois em cada cinco), sendo que destes últimos uma grande parcela apresenta evidente degradação das condições de trabalho e de seguridade social” (MATTOSO, 2001, p. 16).
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Em razão disso, ocorreu uma geração média anual de 541,5 mil empregos assalariados sem registro no mesmo período em exame e uma perda total estimada em 350 mil empregos assalariados sem registro (1999, p. 75).
Outro fenômeno que cresceu muito no mercado de trabalho brasileiro é o subemprego ou subutilização da força de trabalho. Em 1989, o subemprego atingia quase 32% da PEA e em 1995 ele avança para um patamar próximo de 38%. Sem sombra de dúvidas, tanto o crescimento vertiginoso do subemprego como do desemprego revelam o processo de intensificação da lumpemproletarização no Brasil, a partir da década de 1990. O crescimento do desemprego, a partir dessa década, é assustador e representa o principal fator de crescimento do subemprego. Nesse mesmo período, o processo de lumpemproletarização atinge a média de 16% ao ano, ou seja, um crescimento de aproximadamente 442 mil pessoas por ano (POCHMANN, 1999).
Não seria exagero de nossa parte caracterizar o Brasil pós‐década de 1990 como um país essencialmente lumpemproletarizado, pois independente das distorções que as metodologias oficiais43 de identificação e medição do desemprego geram é incontestável que nesse período o país sofre uma verdadeira “epidemia de desemprego” (POCHMANN, 2005).
Para termos uma ideia da magnitude de tal epidemia basta percebermos que em 1999, por exemplo,
o Brasil assumiu a terceira posição no ranking mundial do desemprego, pois, possuía, segundo dados da PNAD do IBGE, 7,6 milhões de pessoas sem trabalho. No total do desemprego, o Brasil perdeu apenas para Índia, Indonésia e Rússia (POCHMANN, 2005, p. 101).
Se comparado com os dados da década de 1980, fica nítido que o país experimentou uma intensificação da lumpemproletarização, pois
43 “Como referencial metodológico oficial no Brasil considera‐se desempregado apenas e tão‐somente o trabalhador que, além de ter procurado emprego durante o período de referência da pesquisa, se encontrava apto para o exercício imediato de uma vaga, sem ter trabalhado nem mesmo uma hora durante a semana da pesquisa, há uma subestimação na aferição do volume de desempregados” (POCHMANN, 2005, p. 100). Sendo assim, o número de lumpemproletários no Brasil deve ser significativamente maior do que o oferecido pelas estatísticas oficiais e pesquisas que se baseiam única e exclusivamente em tais estatísticas e dados fornecidos.
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no ano de 1986 ocupávamos a décima terceira posição no ranking do desemprego mundial, quase uma década depois constituíamos os quatro países com o maior índice de lumpemproletariado no mundo. Dessa maneira, nota‐se que o desemprego, que na década de 1980 era relativamente baixo, torna‐se, a partir dos anos 90, um fenômeno de massa, uma vez que não mais atinge apenas setores específicos da população, mas, pelo contrário, se generaliza por quase toda a população economicamente ativa.
A intensificação da lumpemproletarização no Brasil é resultado direto da acumulação integral subordinada e do neoliberalismo, também subordinado, que a torna regular a partir de suas políticas de (des)ajustes sociais. Dentre tais políticas, as privatizações de empresas estatais adquirem importância fundamental para a compreensão da expansão do desemprego em massa. O processo de privatização de empresas estatais na década de 1990 converteu‐se em obrigatoriedade da acumulação integral no país, uma vez que a geração de receitas públicas adicionais imprescindíveis para abater parcela das dívidas originadas por juros elevados tornou‐se fundamental para a estabilidade monetária. Tal processo concentrou‐se inicialmente nos setores produtivos estatais, principalmente naqueles formados pela indústria de transformação, dentre eles o setor petroquímico, siderúrgico, mineração, fertilizantes etc. e foi responsável pela destruição de aproximadamente 246 mil postos de trabalho. Na segunda fase do processo de privatização das estatais, a partir de 1995, diversos outros setores (telecomunicações, transportes, energias, estradas, bancos etc.) experimentaram esse processo de enxugamento de pessoal. Acredita‐se que o mesmo exterminou aproximadamente 300 mil postos de trabalho entre os anos de 1995 a 1999. De acordo com Pochmann (2001),
do saldo total negativo de 3,2 milhões de empregos assalariados formais destruídos na economia brasileira durante a década de 1990, 17,1% foi de responsabilidade direta da reformulação do setor produtivo estatal [...] Em síntese, a implementação de um novo modelo econômico, sustentado no imperativo do enxugamento do papel do Estado e na transferência de atividades produtivas estatais para o setor privado, implicou significativo ajuste do nível de emprego. Os trabalhadores do setor público foram
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transformados na principal variável de ajuste do Estado no Brasil nos anos 90 (p. 29‐30).
No período de uma década (1989‐1999), o desemprego expandiu‐se de 1,8 milhões para 7,6 milhões, proporcionando uma elevação da taxa de desemprego aberto de 3,0% da PEA para 9,6%. Aproximadamente 3,2 milhões de trabalhadores perderam o emprego no mercado formal e desses 2 milhões pertenciam ao setor industrial. Em maio de 1999, a Folha de São Paulo indicava em uma de suas manchetes que o desemprego no país atingia aproximadamente 10 milhões de brasileiros. Dependendo da região metropolitana o desemprego superava 20% da PEA, ou seja, 2,4 vezes maiores ou 140% a mais que o ano de 1989. O tempo de desemprego médio também se expandiu significativamente, pois em 1989 esse tempo era de 15 semanas e passou para 36 semanas em 1998 e atingiu a marca de 40 semanas no início de 1999 (MATTOSO, 2001). Em linhas gerais, a acumulação integral no Brasil promoveu uma intensificação da lumpemproletarização, pois
ao longo dos anos 90 foram queimados cerca de 3,3 milhões de postos de trabalho formais da economia brasileira, sendo que desde que FHC assumiu em 1995 foi contabilizada uma queima de nada menos de 1,98 milhão de empregos formais, segundo os dados do Cadastro Geral de Empregados (CAGED), do Ministério do Trabalho. Até maio de 1999 a indústria de transformação reduziu seus empregos formais na década em cerca de 1,6 milhão (cerca de 73% do que dispunha em 1989) e os subsetores mais atingidos foram os das indústrias têxtil (‐ 364 mil), metalúrgica (‐ 293 mil), mecânica (‐ 214 mil), química e produtos farmacêuticos (‐ 204 mil) e material de transporte (‐92 mil). A construção civil viu desaparecerem cerca de 322 mil empregos formais. O comércio também foi duramente atingido (‐294 mil). O setor financeiro reduziu sua mão‐de‐obra em cerca de 354 mil. Apenas representou um comportamento positivo o heterogêneo subsetor Serviços, compreendido por alojamento, alimentação, reparação e diversos (cerca de 160 mil) (MATTOSO, 2001, p. 18).
Os anos de 2001 e 2002 experimentaram uma pequena redução da
taxa de desemprego de 9,6 para 9,4, todavia é a partir de 2003 que se constata uma inversão da tendência de crescimento do desemprego, resultado do aumento da ocupação total da força de trabalho e da
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redução significativa da taxa de desemprego (SILVA, 2009). De acordo com o Radar Social44 2006,
o mercado de trabalho brasileiro foi marcado, no período entre 1995 e 2003, por um significativo crescimento da taxa de desemprego, mesmo num ambiente onde a proporção de pessoas que participam do mercado de trabalho (empregadas ou à procura de emprego) variou pouco. Entretanto, esta tendência foi revertida entre 2003 e 2004, quando houve redução generalizada do desemprego no país, tanto em regiões metropolitanas como para o total das regiões não‐metropolitanas. Esta queda também foi observada em praticamente todas as faixas etárias e grupos selecionados, como mulheres e os negros (IPEA, apud SILVA, 2009, p. 209).
Vale ressaltar que apesar de várias regiões metropolitanas
brasileiras terem experimentado uma redução significativa do desemprego, isso não significa que todas as unidades da federação tenham vivenciado tal redução igualmente, pois ainda que tal redução tenha ocorrido, os estados com região metropolitana ainda são os que possuem maior taxa de desemprego no país, segundo constatação do Radar Social 2006:
O resultado positivo observado na taxa de desemprego, no entanto, não se reproduziu para todas as unidades da federação [...] Houve aumento do desemprego em alguns estados do Nordeste (Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia), no Distrito Federal e em alguns estados da região norte. Apesar disso, os estados com grandes regiões metropolitanas continuam a ser os que apresentam os maiores percentuais de desemprego, com destaque para São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal (IPEA, apud SILVA, 2009, p. 210).
Com o intuito de melhor apreender o caráter intensificado do
processo de lumpemproletarização no Brasil, pretendemos analisar, a partir de agora, uma das frações do lumpemproletariado historicamente mais degradadas: os sem‐tetos ou população em situação de rua (PSR). Para isso, nos apropriaremos dos resultados apontados pela pesquisa
44 “O Radar Social é um instrumento de vigilância das condições de vida da população brasileira estruturado de forma a oferecer ao leitor um panorama dos principais problemas sociais do País. É elaborado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA. A primeira edição foi impressa em 2005, a segunda, em 2006” (SILVA, 2009, p. 208).
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realizada por Maria Lucia Silva, e que resultou na obra Trabalho e população em situação de rua no Brasil (2009). Os dados e informações utilizados pela autora em sua pesquisa foram adquiridos prioritariamente nos Relatórios de Pesquisas sobre população em situação de rua45, realizadas nas cidades de Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo e Recife. Por conta disso, nosso estudo também focará apenas essas regiões. Vale ressaltar que não há concordância entre nossa interpretação e a da autora em relação a que classe social pertence o grupo estudado, pois enquanto para a autora tal segmento social pertence à classe trabalhadora, para nós trata‐se do lumpemproletariado.
O Estado de Pernambuco e São Paulo são alguns dos estados da federação que, segundo o Radar Social 2006, não sofreu redução na taxa de desemprego, pelo contrário, o desemprego aumentou entre os anos de 2001 e 2004:
Pernambuco teve taxa de desemprego avaliada em 10,8% no ano de 2001; 10,5%, em 2002; 11,5% em 2003 e 11,9% no ano de 2004. São Paulo, por sua vez, em 2001 teve taxa de desemprego avaliada em 11,1%, em 2002, em 11,4% e em 2003 alcançou a mais elevada taxa do período, 12,4%, que se reduziu para 11,2% em 2004 (Apud SILVA, 2009, p. 210).
A região metropolitana de Recife fornece um exemplo claro de
intensificação da lumpemproletarização, fundamentalmente da fração do lumpemproletariado composta pela população em situação de rua,
45 “A noção do sujeito, que constitui o público‐alvo, independentemente das terminologias usadas nas pesquisas (população em situação de rua, população de rua, moradores de rua, pessoas de rua ou outra), tem como núcleo central a idéia de indivíduos ou famílias em situação de pobreza extrema, sem moradia convencional regular, que utilizam os logradouros públicos (ruas, praças, marquises, baixos de viadutos, jardins, cemitérios), áreas degradadas (de prédios ocupados, ruínas, carcaça de carros), como espaço de moradia e sustento, por contingência temporária ou de forma permanente, usando, ocasionalmente, albergues para pernoitar, abrigos, repúblicas e outras formas de moradias provisórias” (SILVA, 2009, p. 145). As condições de existência expressa na caracterização da população em situação de rua reforçam nossa tese, segundo a qual, tal população constitui uma das frações que constitui a classe social que é composta pela totalidade do exército industrial de reserva. Nesse caso, um dos setores mais degradados do lumpemproletariado: os sem‐tetos.
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pois o crescimento dessa classe social sofreu uma grande explosão demográfica, entre os anos de 2004 e 2005, revelada em um crescimento de 84,53%. Tal crescimento ainda pode ser bem maior, uma vez que nas pesquisas censitárias consultadas, apenas foram consideradas “as 1.205 pessoas em situação de rua encontradas em logradouros e não as 1.390 recenseadas, em 2005, incluindo as 185 que se encontravam em instituições de acolhida temporária, por ocasião da pesquisa” (SILVA, 2009, p. 212). Entre os anos de 2000 e 2003, a população em situação de rua passou de 8.706 para 10.394 pessoas na cidade de São Paulo. Tal crescimento revela um aumento de 19,3%. Na capital mineira de Belo Horizonte, o percentual de crescimento da PSR atingiu a média de 27% entre os anos de 1998 (916 pessoas) e 2005 (1.164 pessoas).
De forma geral, diversas conclusões atingidas por essas pesquisas nos possibilitam perceber que durante a vigência do regime de acumulação integral no Brasil houve uma intensificação da lumpemproletarização. Dentre as conclusões que nos respalda a fazer tal afirmação, algumas, dentre várias outras, merecem destaque: o sem‐tetos estão envelhecendo nas ruas, o número de sem‐tetos com maior índice de escolaridade está crescendo, assim como tem aumentado absurdamente o tempo de permanência dessa fração de classe do lumpemproletariado nas ruas (SILVA, 2009).
Pesquisas realizadas no decorrer de uma década revelam uma elevação da faixa etária das pessoas que compõe essa fração de classe do lumpemproletariado brasileiro, tal elevação acompanha a mesma tendência observada na composição do desemprego, que também se revelou crescente nas faixas etárias mais elevadas, isto é, entre 40 e 49 anos de idade. De acordo com essas pesquisas, é possível afirmar que em termos percentuais a PSR “encontra‐se sobretudo na faixa etária entre 25 e 55 anos” (SILVA, 2009, p. 149).
Especificamente em Porto Alegre, no ano de 1995, a PSR se encontrava, majoritariamente, na faixa etária entre 29 e 45 anos (52,25%), já no ano de 1999 a faixa etária majoritária era de 38 a 50 anos. De forma semelhante, em Belo Horizonte, a faixa etária de 18 a 35 anos equivalia a 52,82% da PSR, no ano de 1998, enquanto em 2005 a maior concentração desse público foi registrada na faixa etária de 25 a 40 anos. Em São Paulo, a PSR concentrou‐se em faixas etárias próximas às de Porto Alegre, de tal forma que 30,81% das pessoas identificadas, em
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2000, encontravam‐se na faixa etária de 26 e 40 anos e 33,57%, em 2003, situavam‐se na faixa etária de 41 a 55 anos. A cidade de Recife encontra‐se em situação muito parecida com a de Belo Horizonte, pois no ano de 2004 houve um predomínio da faixa de idade entre 19 a 35 anos, enquanto em 2005 a maior concentração na faixa de 22 a 45 anos, correspondendo a 35,61% (SILVA, 2009).
Outro aspecto observado nas pesquisas e que configura o perfil contemporâneo da PSR é a escolaridade. De acordo com Silva (2009), todas as pesquisas que possuem informações relativas ao público de PSR que sabe ler, com ou sem grau de escolaridade, revelam que, em média, 70,04% sabem ler. Nas cidades de Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte os percentuais dos que não sabem ler ou analfabetos são menores que o percentual de Recife, que só em 2005 equivalia a 31,94% do total da PSR.
Esse percentual, isoladamente, é superior à média geral das quatro cidades (incluindo Recife), cujas pesquisas servem de fontes neste estudo, que equivale a 13,47%. Em todas as cidades e em todas as pesquisas, contudo, a maioria dos recenseados encontra‐se em algum grau de escolaridade entre a 1ª e a 8ª série. Isso corresponde à média de 68,70% entre as cidades (SILVA, 2009, p. 151).
Na cidade de Belo Horizonte, o percentual de pessoas que não sabem ler manteve‐se estável (de 8,73% para 8,76%), já o percentual das que possuem escolaridade entre a 1ª e a 8ª série diminuiu, enquanto o percentual das pessoas com escolaridade no ensino médio sofreu pequena elevação (de 6,66% para 7,73%), assim como as que possuem curso superior (de 1,31% para 1,98%). De certa forma, tais informações nos possibilitam crer que o processo de lumpemproletarização está se expandindo para os indivíduos com maior escolaridade (SILVA, 2009).
O Estudo dos usuários dos albergues conveniados com a prefeitura (2006), promovido pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), reforça a tendência do aumento da escolaridade dessa fração de classe do lumpemproletariado que vive nas ruas de São Paulo, pois, de acordo com a pesquisa realizada em 2005, das 631 pessoas entrevistadas constata‐se que a escolaridade é mais alta entre os jovens de até 30 anos e destes 33% chegaram a ingressar no ensino médio. Tal estudo também demonstrou que 5% dos entrevistados ingressaram no curso superior e somente 2% o completaram. De acordo com os estudos realizados pelo Ministério do
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Trabalho e Emprego – Evolução e taxa de desemprego estrutural no Brasil: Uma análise entre regiões e características dos trabalhadores (2002), é possível perceber um movimento semelhante em relação ao desemprego, ou seja, o mesmo tem se expandido para o grupo de pessoas com maior escolaridade (Apud SILVA, 2009).
Em relação ao tempo de permanência nas ruas, as pesquisas realizadas entre os anos de 1995 e 2000 apontam maior concentração da permanência do lumpemproletariado nas ruas no primeiro ano, até o quinto ano aproximadamente. Já as pesquisas realizadas entre 2000 e 2005 demonstram que houve uma elevação do tempo de permanência nas ruas para além dos cinco primeiros anos:
Os percentuais que revelam esse tempo nas ruas, em Porto Alegre, no ano de 1995, correspondem a 27,47% até um ano e a 27,92% entre um e seis anos, totalizando 55,39% das pessoas em situação de rua, nessa condição, no máximo, há seis anos. Em Belo Horizonte, em 1998, a predominância desse intervalo de tempo é ainda mais acentuada, pois, das 916 pessoas recenseadas, 65,17% estavam nas ruas pelo período de até cinco anos, sendo que 423 (46,17%) estavam até um ano nessa situação. A situação de São Paulo era mais gritante, pois, em 2000, dos 8.706 recenseados, 5.833 (67,00%) tinham até 5 anos de permanência nas ruas, sendo que 3.744 (43,25%) estavam nessa condição entre alguns dias e um ano. Já as pesquisas realizadas na segunda metade do intervalo entre 1995 e 2005 mostram que há uma diminuição do percentual de pessoas em situação de rua, com tempo de permanência nas ruas de até cinco anos e uma ligeira elevação dos percentuais das que se encontram na situação há mais de cinco anos. É o caso das pesquisas realizadas em Recife, em 2004 e 2005, e da pesquisa realizada em Belo Horizonte em 2005. A pesquisa realizada em São Paulo, em 2003, não oferece esse dado. A primeira pesquisa realizada no Recife indicou que 47,32% dos 653 recenseados já estavam na rua por um período de até cinco anos, sendo que apenas 111 pessoas, ou seja, 17,00% se encontravam na situação por até um ano. A segunda pesquisa, realizada em 2005, indicou que 45,56% das 1.205 pessoas em situação de rua, localizadas em ruas e logradouros, estavam nessa condição no intervalo de tempo de até cinco anos, sendo que 19,67% já haviam completado até um ano de permanência nas ruas e 25,89% entre um e cinco anos. Em 2004, o percentual das pessoas com mais de cinco anos em situação de rua no Recife era de 51,00%. Em 2005, esse percentual foi reduzido para 44,48%, observando o crescimento de 1,68% (2004) para 9,96% (2005) dos que não sabem ou não quiseram informar o tempo de rua. No caso de Belo Horizonte, a pesquisa de 2005 apontou acentuada queda no percentual de pessoas que estão na rua por um período de até cinco anos, comparativamente à pesquisa de 1998. O segundo censo (2005) demonstrou que, das 1.164 pessoas recenseadas, 48,03% estavam nas ruas até 5
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anos, sendo que apenas 24,66% tinham trajetória de até um ano nas ruas. O censo de 1998 indicou que 65,17% dos recenseados estavam com até cinco anos de tempo de rua. Enquanto isso, elevou‐se o percentual de pessoas que estão nas ruas há mais de 5 anos. Em 1998, esse percentual era de 27,29%; em 2005, nessa cidade, esse percentual passou a 30,75% (SILVA, 2009, p. 158‐159).
Em suma, o que se pode apreender de todos esses resultados é que, durante a vigência do regime de acumulação integral subordinado no Brasil, a intensificação da lumpemproletarização tem tornado a condição de marginalizado do mercado de trabalho em um modo de vida na sociedade capitalista brasileira contemporânea. Nesse sentido, ao contrário do que afirma a ideologia da exclusão/inclusão social, tal condição não deve ser apreendida enquanto uma anomalia no interior da sociedade do capital e que pode vir a ser eficazmente combatida com políticas sociais garantidoras da inclusão social, mas sim como uma condição inerente ao processo de acumulação de capital na qual revela, essencialmente, a finitude, que se alimenta da barbárie, do modo de produção fundamentado na extração de mais‐valor e que, para se manter deve, portanto, constantemente ampliar o trabalho morto em detrimento do trabalho vivo. Dessa forma, o capitalismo brasileiro promove a intensificação da lumpemproletarização como condição para o rebaixamento salarial, para a intensificação e precarização do trabalho e, consequentemente, ampliação da extração de mais‐valor.
Para finalizar, discutiremos um pouco mais sobre a tentativa de ocultar o processo de intensificação da lumpemproletarização no Brasil que se encontra por detrás do véu ideológico da exclusão social. Pois bem, de acordo com Viana (2009) o construto ideológico46 exclusão social revela, primeiramente, um problema de cunho teórico‐metodológico, pois ao se fundamentar numa concepção dualista da sociedade (incluídos e excluídos socialmente), obscurece‐se a realidade concreta, que é constituída, como temos demonstrado ao longo de todo esse trabalho, pela totalidade das classes sociais que revela sua dinâmica na luta entre classes. Logo, “na concepção dualista da sociedade, só existiriam os incluídos e os excluídos, como se fossem independentes e separados, faltando aqui também a ideia de relação, no interior de uma totalidade” (VIANA, 2009, p. 248).
46 Sobre construto e falso conceito Cf. VIANA, 2007.
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Além disso, continua a análise de Viana, a ideologia da inclusão/exclusão social desenvolve uma homogeneidade fictícia entre incluídos e excluídos, sem, no entanto, demonstrar quem seriam uns e outros. Mas, quem seriam os incluídos e os excluídos? Os primeiros seriam compostos pelos capitalistas, operários, burocratas, camponeses etc. que formariam uma totalidade homogênea: os incluídos. Já os segundos, seriam formados pelos desempregados, mendigos, moradores de rua, índios aculturados e empobrecidos etc., ou seja, “são todos partes de uma totalidade homogênea, oposta e não relacionada com a primeira” (VIANA, 2009, p. 248).
Dividindo a sociedade entre incluídos e excluídos, a ideologia dominante revela seus valores que apontam para a necessidade de incluir os excluídos, pois, nesse discurso, o mundo dos incluídos passa a ser encarado como a única saída para a condição de excluído social. Todavia, essa ideologia não deixa claro que mundo dos incluídos é esse que supostamente se pretende inserir os excluídos. Obviamente, não se pretende incluí‐los entre os privilegiados da sociedade capitalista (capitalistas e suas classes auxiliares), mas sim nas classes exploradas.
É claro que, por mais que a classe trabalhadora esteja submetida à alienação e a toda mais‐violência derivada das relações de trabalho dominantes no regime de acumulação integral, pertencer ao lumpemproletariado, que no mundo fictício da ideologia equivale a estar excluído, representa desgraça ainda maior e, portanto, a inclusão se apresenta como de bom tamanho. No entanto, outro interesse de classes se obscurece diante de tamanho véu ideológico. Trata‐se do interesse em evitar que esse grande contingente de “excluídos”, potencialmente contestador, represente uma ameaça a existência da sociedade capitalista e, assim sendo, garantir a inclusão desses significa, por conseguinte, “que ele deixe de ser uma ameaça para a permanência dessa sociedade. A ideologia da necessidade de inclusão revela, no fundo, essa preocupação com a integração” (VIANA, 2009, p. 249). Como toda ideologia, a da exclusão social não pode revelar sua raison d’être e, dessa forma, ela deve ser meramente descritiva e de forma alguma explicativa, pois revelar o que está por detrás dela alimentaria seu desejo oposto: a luta de classes.
A emergência do movimento piquetero argentino e a radicalização que suas lutas atingiram, demonstram claramente como a intensificação
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da lumpemproletarização representa uma perigosa ameaça à reprodução da sociedade capitalista, pois no regime de acumulação integral há uma tendência do lumpemproletariado em adquirir uma maior potencialidade contestadora. Tal potencialidade, se aliada ao movimento operário revolucionário pode construir um bloco revolucionário que aponte para a superação do capitalismo e construção de uma sociedade verdadeiramente humana, fundada na autogestão social. A forma organizacional do movimento piquetero, baseada nas assembleias populares nos bairros, na horizontalidade das decisões, no caráter autogerido de suas ações etc. resgata experiências organizacionais revolucionárias, desenvolvidas pelos conselhos operários em diversos momentos das tentativas de revoluções operárias, ocorridas ao longo de todo o século XX, em diversas regiões do mundo e contribui para o avanço da consciência de classe. Nesse sentido, é possível afirmar que o lumpemproletariado, no regime de acumulação integral subordinado, tende a adquirir um caráter mais contestador e maior possibilidade de uma aliança revolucionária com o proletariado.
No Brasil, apesar da intensidade do processo de lumpemproletarização no regime de acumulação integral, não se experimentou nenhuma ação radicalizada por parte do lumpemproletariado. No entanto, diversas organizações, majoritariamente compostas por lumpemproletários, começam a emergir e lutar por reformas e mudanças sociais. Dentre tais organizações, poderíamos citar os diversos movimentos de trabalhadores desempregados espalhados (MTDs) por várias regiões do país, assim como os movimentos de trabalhadores sem teto (MTST). Esse último vem promovendo em diversas cidades brasileiras a ocupação de terras urbanas e prédios abandonados e lutando contra a especulação imobiliária nos centros urbanos. Assim como vários outros movimentos sociais, os movimentos sociais compostos majoritariamente pelo lumpemproletariado, como é o caso dos MTDs e MTSTs, também vem sofrendo com a prática de criminalização dos movimentos sociais e da pobreza no Brasil.
Em síntese, a acumulação integral no Brasil, assim como em várias outras regiões, possui uma singularidade que se revela na sua condição de subordinado aos ditames dos países imperialistas. Tal singularidade
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reflete no processo de lumpemproletarização que, por sua vez, tende a se intensificar, visto que as necessidades neoimperialistas geram no bloco subordinado um Estado neoliberal também subordinado que se encarrega, sem cerimônias, de criar as condições mais favoráveis para uma acumulação integral. Dentre tais condições, a lumpemproletarização se destaca por se apresentar, desde sempre, como uma das grandes alavancas dessa acumulação capitalista integral subordinada.
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CONCLUSÕES Apontar as principais determinações do processo de expansão da
lumpemproletarização no regime de acumulação integral e suas particularidades no Brasil foi o principal objetivo da pesquisa que realizamos. A trajetória cursada possibilitou as conclusões a seguir, que confirma a hipótese da qual partimos.
Assim como o proletariado e a burguesia, o lumpemproletariado é uma classe social inseparável do modo de produção capitalista e, portanto, esteve presente ao longo de toda a história desse modo de produção. Contudo, essa classe social sofreu alterações quantitativas e qualitativas na sua composição desde o século XIX aos dias atuais. Se em outros contextos históricos a condição de lumpemproletário era acompanhada pela possibilidade de uma nova proletarização, no regime de acumulação integral tal possibilidade tem se tornado cada vez mais difícil e a condição de marginalizado da divisão social do trabalho tem se tornado um modo de vida de milhares de indivíduos em todo o mundo.
Reconhecer a história do capitalismo e das classes sociais que o compõe como sendo a história da sucessão dos regimes de acumulação, que tem na luta de classes sua força propulsora, representou o fio condutor geral desse trabalho. Nesse sentido, nossa análise procurou compreender a formação e desenvolvimento do lumpemproletariado como consequência fundamental da luta de classes entre burguesia e proletariado pelo controle sobre o tempo de trabalho utilizado para extração de mais‐valor. Percebemos que no regime de acumulação integral, a expansão do processo de lumpemproletarização adquire níveis vistos somente no primeiro regime de acumulação (extensivo) e isso decorre da dinâmica do regime de acumulação integral.
Em resposta à crise capitalista da década de 1960, marcada pela tendência declinante da taxa de lucro e pela radicalização das lutas sociais, é que emerge o regime de acumulação integral como uma contraofensiva da burguesia aos interesses do proletariado. Essa contraofensiva fundamenta‐se nas três partes constituintes do regime de acumulação integral: toyotismo, neoliberalismo e neoimperialismo.
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A execução de um conjunto de medidas denominada de “reestruturação produtiva”, acompanhada do neoliberalismo enquanto forma estatal que a tornasse regular representou as principais causas da expansão da lumpemproletarização na contemporaneidade.
Mesmo em países imperialistas como os EUA a lumpemproletarização tem se expandido significativamente para diversas outras classes sociais e não apenas para o proletariado. Essa expansão tem promovido uma degradação geral nas condições de vida dos principais bairros da periferia de grandes cidades norte‐americanas e vem coagindo a população local, principalmente os jovens, a sobreviverem, essencialmente, de esmolas, do roubo e do tráfico de drogas. Em resposta a essas condições, o governo norte‐americano vem promovendo uma verdadeira guerra contra o lumpemproletariado que tem resultado numa explosão demográfica carcerária jamais vista na história da humanidade.
Na Argentina, o processo de lumpemproletarização que se inicia ainda no início da década de 1980, sofre uma intensificação a partir da década de 1990. Tal intensificação se revela nos elevados índices de desemprego e de pobreza que atingiu aproximadamente metade da população nacional. Devido a essa intensificação ocorrida em um curto prazo de tempo, os conflitos sociais também se intensificaram e o lumpemproletariado organizado (movimento piquetero) tornou‐se um dos principais atores sociais em luta contra as drásticas conseqüências impostas pelo regime de acumulação integral subordinado. O protagonismo e radicalidade adquirida pela luta piquetera comprova nossa tese segundo a qual não se pode afirmar que o lumpemproletariado é, por essência, conservador e reacionário, mas sim que sua postura política sofre alterações segundo o contexto histórico e a correlação de forças sociais existentes. Porém, constata‐se que há uma tendência na contemporaneidade do lumpemproletariado se tornar uma classe social mais contestadora e, por conseguinte, representar uma maior ameaça à manutenção da sociedade capitalista.
O principal objetivo desse trabalho foi buscar respostas ao seguinte problema: O regime de acumulação integral subordinado no Brasil promoveu uma ampliação da lumpemproletarização? Para responder a essa questão central buscamos analisar as especificidades desse regime de acumulação no Brasil e analisar se suas consequências sociais,
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principalmente a lumpemproletarização, foram intensificadas. Constatamos que a condição de subordinação aos interesses neoimperialistas gerou um estado neoliberal também subordinado que promoveu uma devastação do patrimônio público através de um amplo processo de privatização de empresas estatais, da demissão em massa de funcionários e de um aumento colossal do desemprego no Brasil. A intensificação da lumpemproletarização pôde ser mais bem notada na expansão de uma das frações de classes mais degradadas: a população em situação de rua ou sem‐tetos. A situação de rua dessa fração de classe tem se tornado um modo de vida de milhares de pessoas no Brasil. Isso pode ser apreendido no aumento do tempo de permanência nas ruas, no envelhecimento dessa classe social nas ruas e na expansão desse fenômeno para pessoas com capital cultural cada vez mais elevado. Portanto, concluímos que o Brasil, na era da acumulação integral, tornou‐se um país amplamente lumpemproletarizado.
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Sobre o autor Lisandro Braga é doutorando em sociologia pela Universidade Federal de Goiás/UFG, professor de Teoria Política e Movimentos Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e autor de diversos capítulos de livros, assim como organizador das obras A questão da organização em Anton Pannekoek (BRAGA & VIANA, 2011) e Intelectualidade e luta de classes (MARQUES & BRAGA, 2013). Atualmente desenvolve pesquisa sobre a repressão policial e criminalização do movimento de desempregados na Argentina.
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