As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

24
1 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558 III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558 1 Succession Letters in the Portuguese State of India Ana Cláudia dos Santos Joaquim Mestranda em História Moderna e dos Descobrimentos Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Short Abstract Propõe-se como tema de comunicação “As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia de 1524-1558”. Isto é, procura-se esclarecer o que são as “vias de sucessão” e a sua importância no funcionamento do Estado Português da Índia. 2 Explicando que as mesmas só começaram a ser utilizadas em 1524 pelo que, grosso modo, nos restringiremos ao reinado de D. João III (1521-1557). Entre outras, procura-se responder a perguntas como: “O que terá mudado para que as vias de sucessão começassem a ser prática corrente só a partir de 1524, quando tínhamos um representante directo e permanente da Coroa Portuguesa na Índia desde 1505?”, “Quais os Governadores/Vice-Reis, desta época, que chegaram ao poder vindos de Lisboa e quais os que chegaram por via de sucessão? E, de entre estes, quais os títulos que receberam e quanto tempo ficaram no poder? Foram os três anos regulamentares ou menos tempo?”. Em suma, procura-se concluir de que modo este mecanismo criado por D. João III se revelou, ou não, eficaz para controlar uma periferia do seu Império. E se mesmo com a criação desta solução continuaram a existir conflitos (inerentes a dúvidas sobre a sua aplicação) resultantes da mesma, ou não. 1 Originalmente realizado como trabalho final do Seminário, O Império Português: Centros e Periferias (séc. XV-XVIII), no âmbito do Mestrado em História Moderna e dos Descobrimentos, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. Seminário leccionado pela Professora Doutora Alexandra Pelúcia, a quem se agradece todo o acompanhamento e auxílio prestado. 2 Segundo Luís Filipe Thomaz, a expressão “Estado da Índia” só se generalizou na segunda metade no século XVI. No entanto, no âmbito deste trabalho, iremos utilizar a mesma, ainda assim, para o período anterior, por uma questão de comodidade. Esta expressão designava, no período em análise, um conjunto de territórios, pessoas, bens e interesses oficialmente tutelados pela Coroa portuguesa, desde o cabo da Boa Esperança até ao Japão. Não designando, portanto, um espaço geograficamente bem definido. Cf. Luís Filipe Thomaz, «Estrutura Política e Administrativa do Estado da Índia no Século XVI» in De Ceuta a Timor, s.l., Difel, 1994, p. 207.

Transcript of As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

1 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia

1524-15581 Succession Letters in the Portuguese State of India

Ana Cláudia dos Santos Joaquim Mestranda em História Moderna e dos Descobrimentos

Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

Short Abstract

Propõe-se como tema de comunicação “As Vias de Sucessão no Estado

Português da Índia de 1524-1558”. Isto é, procura-se esclarecer o que são as “vias de

sucessão” e a sua importância no funcionamento do Estado Português da Índia.2

Explicando que as mesmas só começaram a ser utilizadas em 1524 pelo que, grosso

modo, nos restringiremos ao reinado de D. João III (1521-1557).

Entre outras, procura-se responder a perguntas como: “O que terá mudado para

que as vias de sucessão começassem a ser prática corrente só a partir de 1524, quando

tínhamos um representante directo e permanente da Coroa Portuguesa na Índia desde

1505?”, “Quais os Governadores/Vice-Reis, desta época, que chegaram ao poder

vindos de Lisboa e quais os que chegaram por via de sucessão? E, de entre estes, quais

os títulos que receberam e quanto tempo ficaram no poder? Foram os três anos

regulamentares ou menos tempo?”.

Em suma, procura-se concluir de que modo este mecanismo criado por D. João III

se revelou, ou não, eficaz para controlar uma periferia do seu Império. E se mesmo

com a criação desta solução continuaram a existir conflitos (inerentes a dúvidas sobre

a sua aplicação) resultantes da mesma, ou não.

1 Originalmente realizado como trabalho final do Seminário, O Império Português: Centros e Periferias

(séc. XV-XVIII), no âmbito do Mestrado em História Moderna e dos Descobrimentos, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. Seminário leccionado pela Professora Doutora Alexandra Pelúcia, a quem se agradece todo o acompanhamento e auxílio prestado. 2 Segundo Luís Filipe Thomaz, a expressão “Estado da Índia” só se generalizou na segunda metade no

século XVI. No entanto, no âmbito deste trabalho, iremos utilizar a mesma, ainda assim, para o período anterior, por uma questão de comodidade. Esta expressão designava, no período em análise, um conjunto de territórios, pessoas, bens e interesses oficialmente tutelados pela Coroa portuguesa, desde o cabo da Boa Esperança até ao Japão. Não designando, portanto, um espaço geograficamente bem definido. Cf. Luís Filipe Thomaz, «Estrutura Política e Administrativa do Estado da Índia no Século XVI» in De Ceuta a Timor, s.l., Difel, 1994, p. 207.

2 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

Paper

A Origem das Vias de Sucessão

Aquando da partida do Vice-Rei D. Vasco da Gama para a Índia, em 1524, João

de Barros diz-nos que: “Quanto á entrega que o Governador faz na India a quem o

succede, as mais vezes costuma ser feita em alguma Igreja das que temos fundadas

naquelle Oriente (...) e quando algum Governador lá falece, tem-se estoutro modo. Em

poder do Veador da fazenda da India, que he a segunda pessoa no governo da fazenda

depois do Governador, está hum cofre com tres, ou quatro Patentes d’El Rey, fechadas,

e asselladas, as quaes chamam sucessões, e tem per cima esta escritura: Sucessão de

foão, e isto nomeado ao que então governa, que nos outros por se não saber quaes são

os que estam por vir, chamam ás taes, segunda, terceira, quarta sucessão, e aqui

assigna El Rey. E na escritura que tem dentro declara El Rey haver por bem que elle

succeda a foão quando falecer (...) Este he o modo que se tem no prover dos

Governadores da India, e damos esta noticia (...) porque daqui em diante veremos huns

aos outros succeder per obito, o que té ora não vimos, e o perigo em que a India esteve

por se não guardar este modo de abrir as successões.3”

Isto é, segundo este cronista, o único que nos apresenta uma explicação genérica

sobre o funcionamento deste sistema, as vias de sucessão eram, portanto, alvarás

régios, dados pelo Monarca ao Vice-Rei (ou governador) antes de este partir de Lisboa.

Em caso da sua morte, deveria ser aberto o primeiro alvará e o nome que lá se

encontrasse deveria assumir o governo do Estado Português da Índia. Todavia, caso

essa pessoa já tivesse regressado ao Reino ou se já tivesse falecido, dever-se-ia abrir o

segundo alvará e assim sucessivamente.

Como já foi referido, João de Barros afirma que o sistema das vias de sucessão

foi criado em 1524, aquando da nomeação de D. Vasco da Gama para Vice-Rei do

Estado Português da Índia e, de facto, todos os cronistas parecem concordar com este

facto.

Francisco de Andrada, por exemplo, diz-nos que “E porque atê aquelle tempo

[altura de nomeação de D. Vasco da Gama para Vice-Rei] se não custumaua prouerse

nas socessoẽs da gouernança da India como agora se costuma, entendendo sua alteza

camanho inconueniente era para aquelle estado morrendo algum gouernador delle no

tempo de sua gouernança ficar a eleyçaõ de quem o gouernasse aos mesmos que nelle

estauão, de que alguns o deuiaõ pretender, pollos bandos differenças & dissensoẽs que

3 Cf. João de Barros, Da Ásia: dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento dos mares e terras

do Oriente, década III, livro ix, capítulo 1.

3 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

podia auer sobre isso, ordenou que fossem este anno tres vias assinadas por elle,

cerrada & sellada cada huma dellas com tres sellos das armas reais, repartidas logo de

cá com titulo de primeyra, segunda, & terceyra, em cada huma das quais hia nomeado

o homem que sua Alteza auia por seu seruiço que socedesse ao Visso Rey, sendo caso

que fallecesse, das quais ninhuma se auia de abrir em quanto elle fosse viuo. E esta

ordem mandou que se guardasse daly por diante, & se guarda inda oje todas as vezes

que se proue de nouo a gouernança da India.4” Mais à frente, quando Andrada nos

enumera todos os autos que são feitos em 1526, aquando da sucessão de D. Henrique

de Meneses, este afirma “Deligencias todas, que num negocio novo, & de tanta

importancia parecião devidas & necessarias.5”

Mas também Diogo do Couto atribui a criação deste sistema de sucessão a D.

João III. Aquando da morte de D. Henrique de Meneses é nos dito que: “ E presentes

todos [os nobres], abrio o Veador da fazenda hum cofre, em que estavam guardadas

as sucessões da governança da India, que eram tres, que trouxe comsigo o Conde

Almirante D. Vasco da Gama quando veio por Viso-Rey, que foram as primeiras que á

India vieram; porque antes delle não havia esta ordem, nem nós pudemos saber a que

El Rey D. Manoel tinha dado, sendo caso que falecesse o Governador da India; porque

nem João de Barros, nem Damião de Goes o declaram.6”

E por este motivo a dúvida impõe-se. Por que razão este sistema só apareceu 19

anos depois de termos uma presença permanente na Índia, com a nomeação de D.

Francisco de Almeida?

A criação deste sistema poder-se-ia, simplesmente, explicar pelo facto de ser

uma ideia nova de um novo Rei, recém-chegado ao poder. Mas no decurso da nossa

pesquisa procurou-se formular outras hipóteses que não apenas esta. E a primeira que

considerámos foi o factor “idade”.

De facto, por comparação com todos os Vice-Reis/governadores nomeados por

D. Manuel I, D. Vasco da Gama era o mais velho Vice-Rei nomeado até então. Este teria

cerca de 58 anos aquando da sua nomeação. Mas, ainda assim, esta não nos parece

ser a justificação mais plausível. Este factor pode, sem dúvida, ter influenciado esta

tomada de decisão do Rei, mas a diferença de idades entre D. Vasco da Gama e os seus

4 Cf. Francisco de Andrada, Chronica do Muyto Alto e Muyto Poderoso Rey destes Reynos de Portugal

Dom João o III deste nome, parte I, capítulo lviii. 5 Cf. Idem, Ibidem, parte II, capítulo ii.

6 Cf. Diogo do Couto, Da Ásia: dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento dos mares e

terras do Oriente, década IV, livro i, capítulo 1.

4 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

antecessores, nomeadamente Lopo Soares de Albergaria ou Diogo Lopes de Sequeira

não é assim tão grande. Estes, à data das suas nomeações, teriam cerca de 55 e 52

anos, respectivamente.7

Por outro lado, temos a justificação adiantada por Francisco de Andrada e a que

já se aludiu. Segundo este cronista, D. João III terá criado o sistema das vias de

sucessão para evitar que, em caso de morte do Vice-Rei, a eleição de um novo

governador ficasse a cargo dos nobres presentes na Índia. Uma vez que estes, pelo

interesse próprio de ocuparem o lugar ou que alguém da sua família ou circuito

familiar o fizesse, se dividiriam e dificilmente chegariam a um acordo.8

No entanto, era impossível esta nova nomeação ficar a cargo do Rei, presente

em Portugal. Pelo menos num curto espaço de tempo. Tomemos o caso de D. Vasco da

Gama como exemplo. Este faleceu a 24 de Dezembro de 1524 e, tendo em conta o

sistema de monções, o Rei só conseguiria fazer chegar um novo governador à Índia por

volta de Setembro de 1526. Isto é, um ano e 9 meses depois da morte de D. Vasco da

Gama. E é óbvio que o Estado Português da Índia não poderia ficar desprovido de um

governador durante tanto tempo. Assim, e como o Rei não quereria que a eleição

ficasse a cargo dos nobres presentes no território, terá criado este sistema.9

No entanto, a verdade é que consideramos que podemos encontrar três

antecedentes, durante o reinado de D. Manuel I, à criação das vias de sucessão por D.

João III.

O primeiro prende-se com a questão da nomeação de Lopo Soares de Albergaria,

em 1515. Pelo facto do Rei se ter arrependido da sua decisão de nomeá-lo, entre

outras disposições, previa que caso Albergaria falecesse durante a viagem para a Índia

que deveria ser substituído por Afonso de Albuquerque.10 Claro que neste caso não

estamos a falar da existência de uma via de sucessão propriamente dita e claro que o

Rei prevê isto mais pelo facto de desejar que seja Albuquerque a continuar no poder

do que pelo facto de estar preocupado com uma possível sucessão.

No entanto, ao estipular isto, percebemos que D. Manuel I tinha a consciência

que poderia existir qualquer fatalidade a um homem por si designado para ocupar o

7 Vide, em anexo, a tabela n.º1: Governadores/Vice-Reis anteriores a 1524, p.20.

8 Cf. Francisco de Andrada, Op. Cit., parte I, capítulo lviii.

9 Sobre o funcionamento do sistema de monções veja-se Felipe Fernández-Armesto, «A Expansão

Portuguesa num Contexto Global» em A Expansão Marítima Portuguesa, 1400-1800, Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto (dir.), Lisboa, Edições 70, 2010, pp. 508-509. 10

Cf. Alexandra Pelúcia, Martim Afonso de Sousa e a sua Linhagem: Trajectórias de uma elite no Império de D. João III e D. Sebastião, Lisboa, Centro de História de Além-Mar, 2009, pp. 217-218.

5 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

poder na Índia. Poderia falecer durante a viagem para a Índia, mas também poderia

falecer já no exercício das suas funções.

Mas ainda que não se considere esta estipulação de D. Manuel I como um

antecedente à criação das vias de sucessão, em 1524, a verdade é que existem outros

dois elementos que consideramos como claros antecedentes.

Datado possivelmente de 1502,11 encontrámos um alvará de D. Manuel I em que

este estipula que por morte de D. Vasco da Gama, durante a viagem para a Índia,

Vicente Sodré o substitua com os mesmos poderes. Isto é, como capitão-mor da

armada.12

Para além deste, ao consultar os documentos do Corpo Cronológico, do Arquivo

Nacional da Torre do Tombo (ANTT), encontramos um outro alvará em que D. Manuel I

dá ordem para que, em caso de morte de D. António, seu sobrinho e escrivão da

puridade, D. Nuno de Mascarenhas o substitua como capitão-mor da armada. Este

alvará data de 1515 e é referente à expedição levada a cabo na Mamora, onde se

procurava construir uma nova fortaleza.13

Portanto, seria de esperar que D. Manuel I tivesse pensado numa possível

sucessão para a viagem da Carreira da Índia e para Marrocos, um território muito mais

perto do Reino e de, portanto, mais fácil substituição do responsável governativo, e

não se tivesse lembrado de algo semelhante para a Índia?

O Rei tinha consciência, como já vimos, que o governador por si designado podia

falecer no exercício das suas funções. Provam-no a disposição de uma possível

sucessão de Albergaria por Albuquerque, mas também a própria nomeação, em 1505,

de D. Francisco de Almeida.

Segundo Damião de Góis, D. Francisco de Almeida não seria a primeira escolha

de D. Manuel I para Vice-Rei do Estado Português da Índia. Seria, sim, Tristão da

Cunha. Porém, ainda em Portugal, este tem um ataque de cegueira temporário, sendo

substituído por Almeida.14 Assim, ainda em Lisboa, D. Manuel I tem a primeira prova

da fragilidade do Estado Português da Índia, assente na vida e na saúde dos seus

representantes.

11

Uma vez que esta parece ser a data da ida de Vicente Sodré à Índia, pelo menos com Vasco da Gama. Não encontrámos qualquer referência ao facto de este ter ido com Vasco da Gama em 1497. Cf. Luís de Albuquerque S. V. «SODRÉ, Vicente» em Dicionário dos Descobrimentos Portugueses, vol. II, s.l., Círculo de leitores, 1994, p. 997. 12

Cf. ANTT, Colecção de Cartas, Núcleo Antigo 876, n.º 50. 13

Cf. ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 18, n.º 3. 14

Cf. Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei Dom Emanuel, livro II, capítulo i.

6 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

Deste modo, e tendo já criado o sistema das vias de sucessão para a Carreira da

Índia e para a expedição a Marrocos, pelo menos, como é que D. Manuel I não sente a

necessidade de criar o mesmo para a Índia?

Como a Carreira da Índia funcionava anualmente, talvez o Rei tivesse pensado

numa substituição pelo capitão-mor da armada que chegasse a cada ano. O que

também não nos parece muito seguro porque pegando, uma vez mais, no exemplo de

D. Vasco da Gama, ter-se-ia que esperar cerca de 9 meses, até Setembro do ano

seguinte, para que chegasse a nova armada do Reino e o Vice-Rei fosse substituído.

Neste caso, quem governaria durante este espaço de tempo?

Por outro lado, talvez os governadores do tempo de D. Manuel I já levassem vias

de sucessão aquando da sua partida de Lisboa, mas como só em 1524 foi preciso se

socorrer a uma só então aí é que as crónicas as referiram. Talvez, os governadores as

levassem mas como estas nunca foram utilizadas, acabaram por ser enviadas de volta

para o Reino e destruídas.

O certo é que todas as crónicas nos apontam para 1524 como o ano da criação

deste sistema. Se juntarmos a justificação avançada por Andrada mais o factor idade

de D. Vasco da Gama, talvez tenhamos encontrado os factores decisivos que levaram

D. João III a implementar este sistema.

Porém, julgamos também que há um inegável antecedente de D. Manuel I.

Mesmo que este não tivesse implementado o sistema das sucessões em Marrocos

como mais tarde D. João III criou para a Índia, em que cada Vice-Rei levava vários

alvarás, o certo é que é que este sistema já existia. Ou, pelo menos, já existia em certas

alturas especiais, como foi o caso da expedição à Mamora, em 1515. 15

Aliás, a fórmula das vias encontradas para o reinado de D. Manuel I é bastante

parecida à das vias encontradas para D. João III. Em ambos os casos, os Reis começam

por enumerar todos os nobres que têm presentes nos seus territórios ultramarinos,

dizendo-lhes que no caso da morte do capitão-mor da armada, no caso de D. Manuel I,

ou do governador, no caso de João III, este deve ser substituído pela pessoa tal, na

qual têm muita confiança e afirmam saber que esta os irá servir bem. No entanto, diz-

se sempre que a morte dessa pessoa deve ser algo que Deus deve defender, mas,

ainda assim, mesmo que aconteça, todos os vassalos do Rei de Portugal devem

15

Na realidade, esta é uma questão a tentar perceber posteriormente. Se, por exemplo, o sistema das vias de sucessão para Marrocos já havia sido criado por D. Manuel I ou, até mesmo, por algum Rei antecedente deste.

7 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

obedecer à pessoa cujo nome aparece nomeado naquele alvará. Pessoa, essa, que terá

sempre os mesmos poderes e alçada que aquela que irá substituir.

Pelo exposto, se depreende que esta não é, apenas, uma nova ideia de um novo

Rei, como afirmámos inicialmente. D. João III absorveu, claramente, alguma da

experiência desenvolvida pelo seu pai. Assim, consideramos que, quanto muito, se

pode falar numa nova prática mas para um espaço concreto, para a Índia, visto que

este sistema já existia, para outros espaços e outros contextos, ainda que com

possíveis diferenças.16

Problemáticas analisadas

Todavia, outras dúvidas se levantaram no desenrolar no trabalho, que não

apenas esta relacionada com a origem das vias de sucessão.

Averiguadas as idades de cada um dos governadores do reinado de D. João III,

procurámos perceber quais os que tinham chegado à Índia vindos directamente de

Lisboa e quais os que haviam chegado por via de sucessão, através da leitura das

crónicas. E concluímos que, em 34 anos, houve 14 governadores na Índia17, dos quais

exactamente metade chegou vinda directamente de Lisboa e outra metade por via de

sucessão.18

De seguida, tivemos a preocupação de saber qual o cargo ocupado por cada um

destes homens no exercício das suas funções. Se o cargo de Vice-Rei se o de

governador.19 Tendo chegado às seguintes conclusões: Todos os nomeados por via de

sucessão adquiriram o título de governador. E nenhum viu o seu tempo de governo

renovado, tendo, no máximo, governado durante 3 anos. O que nos leva a concluir que

era menos prestigiante se chegar ao governo do Estado Português da Índia por via de

sucessão do que se sendo directamente nomeado pelo Rei para o cargo. No fundo, não

se era a primeira opção do Rei, pelo que muito dificilmente uma pessoa que chegasse

ao poder através de via de sucessão poderia aspirar a tornar-se Vice-Rei.

Em relação aos sete homens que partiram de Lisboa com o governo da Índia,

temos três situações possíveis: ou levaram logo o título de Vice-Rei20, ou adquiriram

esse título em exercício de funções21 ou, pelo menos, viram o seu triénio renovado.22

16

Os capitães de armada podiam só levar um alvará, por exemplo. 17

Já contando com o Pêro Mascarenhas, apesar de este nunca ter chegado a governar efectivamente. 18

Cf. Em anexo tabela nº2: Governadores/Vice-Reis posteriores a 1524, pp. 21-24. 19

Questão meramente nominal, uma vez que a alçada do poder era exactamente a mesma. 20

Caso de D. Vasco da Gama, D. Garcia de Noronha, D. Afonso de Noronha e D. Pedro de Mascarenhas.

8 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

No entanto, temos uma excepção a estas três situações. Referimo-nos a Martim

Afonso de Sousa, o único enviado de D. João III que não foi nem reconduzido nem

recebeu o título de Vice-Rei. Porém, a verdade é que o próprio Martim Afonso de

Sousa pediu ao Rei que este lhe enviasse sucessor, não querendo ser reconduzido.

Em 1543, Diogo da Silveira chegou à Índia e, segundo Diogo do Couto, este iria

com a especial missão de suceder a Martim Afonso de Sousa. Tendo Martim Afonso de

Sousa invernado em Moçambique em 1541, D. Francisco de Lima quando ia a caminho

do Reino, em Dezembro desse ano, encontrou-o bastante doente e, chegado ao Reino,

informou o Rei desta situação, dizendo que Martim Afonso de Sousa, naquela altura, já

estaria morto.23 Desta forma, em 1543, Diogo da Silveira chega à Índia, onde “Diziam,

que trazia Diogo da Silveira huma carta, ou Alvará d’ El Rey em segredo, pera que se

achasse Martim Affonso de Sousa morto, e ou morresse estando elle na India, se

abrisse, em que se affirmava, que succederia o mesmo Diogo da Silveira na

governança, sendo porém (...) que mandava, que estando D. Estevão na India, ficasse

governando; e sendo ido pera o Reyno, se entregasse a Inda a Diogo da Silveira (...).24”

E se Diogo da Silveira serviria, hipoteticamente, para suceder a Martim Afonso de

Sousa na governança da Índia, também serviu para levar um recado ao Rei: “(...)

estando [Martim Afonso de Sousa] hum dia ouvindo Missa na Sé, levantando-se o

Divino Sacramento, dissera a Diogo da Silveira, que estava com elle, esta palavras:

«Dizei, Senhor, a El Rei, que me mande nestas náos successor, porque me não atrevo a

governar a India, pela mudança que nella achei nos homens, na verdade, e no primor;

senão que juro por aquella Hostia consagrada, e pelo verdadeiro Corpo de Christo, que

nella está, que hei de abrir as successões, e entregar este Estado á pessoa de quem S.

A. o confia nellas, e que não queira arriscar hum vassalo como eu a lhe cortar a

cabeça.» Isto lhe disse de todo seu animo; e certo que se lhe El Rey não mandára

successor, que o houvera de fazer, porque era hum Fidalgo muito determinado.25”

Assim, apesar de Martim Afonso de Sousa constituir uma excepção àquelas três

situações anteriormente enumeradas, a verdade é que ele próprio pediu ao Rei que

não o reconduzisse, jurando abrir as vias de sucessão, se o Rei não lhe enviasse

sucessor.

21

Caso de D. João de Castro que, em 1548, vê o seu triénio renovado e recebe o título de Vice-Rei, pelo seu sucesso em Diu. 22

Caso de Nuno da Cunha e D. João de Castro. 23

Cf. Diogo do Couto, Op. Cit., década V, livro viii, capítulo 2. 24

Cf. Idem, Ibidem, década V, livro ix, capítulo 9. 25

Cf. Idem, Ibidem, década V, livro ix, capítulo 9.

9 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

Mas depois de averiguado o facto de que nenhum homem designado por via de

sucessão foi reconduzido, tentámos perceber quanto tempo é que estes ficaram no

poder. Se os mesmos três anos que, à partida, ficavam os que vinham directamente de

Lisboa, ou não.26

Destes governadores, apenas dois o ficaram. São eles Lopo Vaz de Sampaio e

Francisco Barreto. Em relação aos restantes, estes ou morreram no exercício das suas

funções27 ou foram substituídos por outros governadores, enviados do reino, antes do

fim dos 3 anos de governo.

Temos o caso de D. Estevão da Gama e o caso de Jorge Cabral.

Em relação ao primeiro caso, Gama é substituído em 1542 por Martim Afonso de

Sousa, primeira opção28 do Rei em caso de morte de D. Garcia de Noronha, nas vias de

sucessão. Porém, como, em 1540, Martim Afonso de Sousa já tinha regressado ao

reino é aberta a segunda via de sucessão, sendo nomeado D. Estevão da Gama como

governador. No entanto, quando o Rei sabe desta situação, apressa-se a enviar Martim

Afonso de Sousa como novo governador, o que é uma situação altamente

desprestigiante para D. Estevão da Gama.29

Por seu turno, Jorge Cabral acaba por ser substituído por D. Afonso de Noronha,

ao fim de pouco mais de um ano de governo. De facto, o Rei não sabia que era Jorge

Cabral que estava no poder, mas sabia que D. João de Castro havia falecido.30 E

quando sabe da morte deste apressa-se a nomear um novo governador. Mas não seria

de esperar que confiasse nas pessoas que tinha nomeado nas vias de sucessão?

Aliás, segundo Couto, Jorge Cabral não se entusiasma muito quando sabe que é

o novo governador, porque sabe que se as cartas que se enviaram por terra ao Rei a

26

Nesta análise, não considerámos Pêro Mascarenhas, uma vez que este não governou efectivamente. 27

Caso de D. Henrique de Meneses e de Garcia de Sá. Porém, segundo Francisco de Andrada, Meneses iria governar durante três anos, uma vez que o Rei, em 1526, lhe envia uma provisão para que este governe durante três anos. No entanto, quando a armada chega à Índia, D. Henrique de Meneses já havia morrido. Cf. Francisco de Andrada, Op. Cit., parte II, capítulo ix. 28

Segundo as crónicas consultadas. 29

De facto, aquando da sua sucessão, Gama apressa-se a enviar notícia ao Rei do sucedido, bem como ao Conde da Vidigueira, seu irmão, e ao Conde do Vimioso, seu sogro, a fim de estes pressionarem o Rei no sentido de o deixar permanecer como governador. Porém, o certo é que devido à influência do Conde da Castanheira “que então mandava tudo”, segundo Diogo do Couto, o Rei acaba por nomear Martim Afonso de Sousa, seu primo co-irmão, para sucessor de D. Estevão. Pelo que, claramente, Couto afirma que entrou “valia” nesta eleição, apesar de, ainda assim, considerar esta pessoa muito acertada, pelo seu saber e prudência. Cf. Diogo do Couto, Op. Cit., década V, livro viii, capítulo 1. 30

A quem sucede Garcia de Sá que acaba, também, por falecer em 1549.

10 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

informar sobre a morte de D. João de Castro tivessem chegado a Lisboa antes das naus

terem partido para a Índia, viria um novo governador a caminho. Se tal acontecesse,

Cabral seria governador durante um mês ou, no máximo, durante um ano. Que foi,

precisamente, o que sucedeu. Deste modo, Cabral preferia governar mais quatro anos

como capitão de Baçaim, cargo que ocupava, e regressar ao reino com mais dinheiro

do que aquele que teria sendo governador por tão pouco tempo. No entanto, a

verdade é que acaba por aceitar o cargo.31 Mas aqui levanta-se outra questão: Se,

efectivamente, Cabral recusasse o cargo o que aconteceria? Abriam a 5ª sucessão? É

algo a que as crónicas não nos dão uma resposta.

Todavia, depois de tudo isto, começámos a perceber que, por vezes, quando os

governadores já estavam na Índia o Rei enviava novos alvarás. Deste modo, procedeu-

se à criação de um inventário de todos os casos conhecidos para esta situação,

cruzando, para isso, os dados encontrados nas crónicas bem como nos documentos

consultados no ANTT, tentando compreender por que motivo o Rei, por vezes, mudava

de ideias a meio do mandato dos governadores.

Desta forma, encontrámos quatro casos destes.

O primeiro remonta a 1526 e é o caso, na nossa opinião, mais fácil de explicar.

De facto, aquando da chegada ao poder de D. Henrique de Meneses, em 1524, Afonso

Mexia, Vedor da Fazenda, e Pêro Mascarenhas, o segundo nomeado nas vias de

sucessão levadas por D. Vasco da Gama em 1524, tiveram uma quezília. Mascarenhas

era Capitão de Malaca e, como tal, quis levar de Goa para a sua fortaleza um paiol com

arroz. Porém, Afonso Mexia tê-lo-á mandado despejar o mesmo a fim de levar lá

roupas, ao que Mascarenhas lhe pede que não o faça uma vez que o arroz seria para

alimentar as pessoas da fortaleza de Malaca. Afonso Mexia volta a ordenar que ele

retire o arroz, ao que Mascarenhas responde que irá perguntar ao Governador o que

se deve fazer. Posto isto, o vedor terá respondido que para aquela questão “(...) não

era necessario o governador porque na fazenda Del Rey elle o era.”32 Dando,

claramente, a entender que em assuntos de fazenda quem mandava era ele e não D.

Henrique de Meneses. Ainda assim, Mascarenhas desobedece-lhe, pelo que Mexia

acaba por escrever ao Rei o que se passou. Deste modo, o Rei acaba por fazer novas

sucessões, enviando-as, em 1526, a Afonso Mexia e pedindo-lhe que não se usassem

31

Aliás, segundo Diogo do Couto, a mulher de Cabral ter-lhe-á dito que era melhor ser governador “nem que fosse por quinze dias”, uma vez que, desta forma, receberia mais honras e mercês do Rei. Cf. Diogo do Couto, Op. Cit., década VI, livro viii, capítulo 1. 32

Cf. Francisco de Andrada, Op. Cit., parte I, capítulo lxxviii.

11 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

as antigas, enviadas aquando da partida de Gama do reino, que deveriam ser enviadas

ao Rei fechadas e seladas.33

Porém, esta situação levou a que a confusão se instalasse no Estado Português

da Índia, entre 1526 e 1529. Uma vez que D. Henrique de Meneses falece em Fevereiro

de 1526, antes da chegada das novas vias. Deste modo, são abertas as vias levadas por

Gama em 1524, sendo Pêro Mascarenhas o governador designado. No entanto, este

estava em Malaca, de onde só poderia partir em Abril.34 Desta forma, os fidalgos

presentes na cerimónia de abertura das vias de sucessão não sabem o que fazer e

acabam por se dividir. Uns pensam que o melhor será eleger um governador interino

por maioria, enquanto outros, encabeçados por Afonso Mexia,35 pensam que o melhor

será abrir-se a terceira via de sucessão, a fim de se encontrar um governador

provisório. Assim, é aberta a última das vias levadas em 1524, sendo encontrado o

nome de Lopo Vaz de Sampaio, que presta juramento, em que se compromete a

governar bem e de forma justa, apenas até à chegada de Mascarenhas a Goa. Tendo,

nessa altura, que lhe entregar o poder, que lhe pertencia por direito.

Todavia, com a chegada das novas vias, em 1526, o nome de Sampaio surge em

primeiro lugar na sucessão a Meneses, e só em segundo aparece o de Mascarenhas,

pelo que os nobres acabam por se dividir e não saberem a quem devem obedecer.36

Para além deste caso, temos o caso de D. Garcia de Noronha, que também

recebe novas vias. No entanto, até à data, a justificação para o envio destas vias ainda

não foi descortinado, visto as mesmas terem sido enviadas pelo Rei em 1541, altura

em que este já sabia que D. Garcia de Noronha havia falecido37 e altura em que já

havia, inclusivamente, nomeado Martim Afonso de Sousa como Governador. Pelo que

a existência destas vias, com esta datação, não faz qualquer sentido.38

33

Cf. Idem, Ibidem, parte II, capítulo ix. 34

Sendo que só chegava a Goa cerca de 14 meses depois da sua nomeação, por volta de Abril do ano seguinte. Cf. Diogo do Couto, Op. Cit., década IV, livro i, capítulo 1. 35

Este tinha receio que Pêro Mascarenhas, sendo governador, se aproveitasse para se vingar do que se tinha passado entre ambos. Cf. Francisco de Andrada, Op. Cit., parte II, capítulo i. 36

Cf. Idem, Ibidem, parte II, capítulo ix-x. 37

Segundo Diogo do Couto, o Rei recebe a informação da morte de Noronha em Outubro 1540. Cf. Diogo do Couto, Op. Cit., década V, livro viii, capítulo 1. 38

Cf. ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 69, n.º 87. ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 69, n.º 84. E ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 69, n.º 78.

12 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

De seguida, surge-nos o caso de Martim Afonso de Sousa que, tendo levado vias

aquando da sua nomeação, em 1541, também recebe outras em 1544, das quais duas

se encontram no ANTT.39

E, por fim, temos D. João de Castro para quem acontece algo de semelhante. Em

1545, data da sua partida de Lisboa, este leva três vias de sucessão40, mas em 1548,

data da sua recondução como Vice-Rei, o Rei envia-lhe 5 novas vias. No entanto, não

nos foi possível encontrar no ANTT, nem as vias enviadas em 1545 nem as enviadas em

1548.41

Deste modo, e tirando o caso das vias enviadas em 1526, para o qual, à partida, a

justificação parece óbvia, não nos foi possível compreender, em tempo útil, os motivos

que levaram o Rei a mudar de ideias, ao nomear novos nomes nos seus alvarás.

Posteriormente, consideramos importante perceber se, por exemplo, os que estavam

na Índia haviam todos desagradado ao Rei, ou se os novos nomeados tinham feito,

entretanto, algo de particularmente importante, que os levasse a serem agraciados

desta forma, por exemplo.

No entanto, esta não é a única questão que fica em aberto. Existe outra que se

prende com as contradições existentes entre as fontes. Visto uma coisa ser a teoria,

patente nas vias de sucessão encontradas no ANTT, e outra ser a prática, patente nas

crónicas. Assente no que aconteceu, na realidade.

Por exemplo, é sabido que, ao fim de 9 anos de governo, Nuno da Cunha não é

reconduzido e, pelo contrário, é mandado voltar para o Reino sob ordem de prisão.42

No entanto, segundo um alvará de sucessão encontrado no ANTT, datado de 1538, é

estipulado que, em caso de morte de D. Garcia de Noronha na viagem para a Índia,

Nuno da Cunha deveria permanecer no poder, porque, caso contrário, a Índia ficaria

sem uma pessoa no governo com a prática e a experiência necessárias na ocupação do

mesmo. Porém, ainda no mesmo alvará, é dito que Nuno da Cunha deve entregar o

poder a D. Garcia, só podendo continuar governador na condição de este falecer

39

Cf. ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 74, n.º 82. E ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 74, n.º 81. 40

Vias, essas, que o Rei, em 1548, pede que sejam devolvidas. Cf. Francisco de Andrada, Op. Cit., parte IV, capítulo xxix. 41

O que seria importante para se confirmar se alguma das pessoas nomeadas em 1545 se mantém em 1548 e para se perceber, afinal, a ordem das vias datadas de 1548, visto os autores não coincidirem entre eles. De facto, segundo Diogo do Couto, D. Jorge Tello seria o segundo na sucessão a D. João de Castro e Garcia de Sá o terceiro, enquanto que Francisco de Andrada nos diz que a ordem é exactamente a contrária. Cf. Diogo do Couto, Op. Cit., década VI, livro vii, capítulo 1. E Francisco de Andrada, Op. Cit., parte IV, capítulo xxix. 42

Cf. Diogo do Couto, Op. Cit., década V, livro v, capítulo 5.

13 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

durante a viagem. Caso contrário, dever-lhe-ia entregar o poder de imediato, assim

que Noronha chegasse à Índia.43 Como explicar que o Rei queira Nuno da Cunha preso

e, ao mesmo tempo, pense nele como um hipotético sucessor ao Vice-Rei que o vai

substituir?

Para além disto, as sucessões encontradas para 1538, não coincidem com o que

nos é dito nas crónicas. Segundo estas, Martim Afonso de Sousa seria o primeiro na

ordem de sucessão a D. Garcia de Noronha, enquanto que D. Estevão da Gama seria o

segundo. Todavia, segundo as vias encontradas no ANTT, a ordem seria a seguinte: em

1º lugar estaria o nome de Nuno da Cunha, em 3º lugar44 D. João de Castro, em 4º D.

Estevão da Gama e, por fim, D. Pedro de Castelo Branco, cuja via também aparece

numerada com o número quatro, outra questão que queda por resolver.45

Terá o Rei feito estas vias em 1538, se arrependido de imediato e feito as que

nos são apresentadas na crónica? Isto explicar-nos-ia a chegada ao poder de D.

Estevão da Gama, bem como duas vias numeradas com o número “4”. Uma vez que

uma das mesmas podia pertencer às vias feitas inicialmente46, enquanto que a outra

pertenceria às vias que efectivamente foram levadas por D. Garcia de Noronha, e das

quais duas foram abertas em 1540. Ainda assim, esta é uma hipótese que se encontra

por provar, apesar de a considerarmos válida, visto a via encontrada para D. Estevão

da Gama datar de dia 24 de Março de 1538, enquanto que a de D. Pedro de Castelo

Branco data de 28 do mesmo mês.

Por fim, em relação aos três governadores nomeados em Lisboa que não

morreram no exercício das suas funções tentámos descobrir quais as hipotéticas

sucessões que o Rei lhes havia assegurado.

Deste modo, para Nuno da Cunha, Gaspar Correia fala-nos numa presumível

sucessão de António de Saldanha. Uma vez que, segundo o cronista, este ter afirmado

que tinha esperança de suceder a Nuno da Cunha, em caso de morte do mesmo.47

Já para Martim Afonso de Sousa, por seu turno, temos a possível sucessão de

Diogo da Silveira, bem como o envio de novas vias em 1544, tal como já foi

mencionado. Estas duas situações poderiam levantar a questão de se, efectivamente, 43

Cf. ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 61, n.º 22. 44

A via numerada com o número dois não foi encontrada, pelo que se pode considerar que seria esta que continha o nome de Martim Afonso de Sousa. 45

Cf. ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 61, n.º 19. E ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 61, n.º 10. 46

Provavelmente a de D. Estevão da Gama, uma vez que foi este que acabou por chegar ao poder, pelo segundo lugar na ordem de sucessão. 47

Cf. Gaspar Correia, Lendas da Índia, volume V, pp. 283-284.

14 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

o Rei teria, ou não, dado vias a Martim Afonso de Sousa quando este partiu de

Portugal, em 1541. No entanto, como vimos, o Governador jura abrir as vias caso o Rei

não lhe envie sucessor, no fim do seu triénio, pelo que, à partida, o Rei lhe deu, de

facto, vias em 1541.48

Por fim, para D. Afonso de Noronha, não nos foi possível encontrar qualquer tipo

de referência a possíveis sucessões ao mesmo, nem nas crónicas nem na

documentação consultada no ANTT.

Conclusões

Porém, o certo é que este sistema, institucionalizado por D. João III em 1524,

acabou por se revelar eficaz. Prova disso é o facto de o mesmo continuar a existir

depois da morte do monarca49, bem como o facto de existirem evidências da aplicação

do mesmo noutro contexto que não o governo do Estado Português da Índia,

nomeadamente nas capitanias do mesmo. De facto, a este respeito, Fernão Lopes de

Castanheda diz-nos que Martim Afonso de Sousa enviou Simão Botelho por capitão de

Malaca, dando-lhe “(…) hũ aluara de sucessão na capitania se morresse Ruy Vaz

Pereira, que hia por capitão (…).50”

De igual modo, pelo exposto acima, se depreende que existia um grande nível de

secretismo em torno da questão das sucessões. Aliás, basta lermos apenas um destes

alvarás para compreendermos isto mesmo. Em todos eles o Rei afirma: “E este mando

que se cumpra e guarde como nele se comtem posto que nom seja passado pela

chamcelaria sem enbarguo da ordenança em comtrairo.” Ou seja, à partida, o Rei e o

seu escrivão eram as únicas pessoas que sabiam quais as pessoas que estavam

nomeadas em cada uma das sucessões. E este é um facto que é reforçado através da

leitura da crónica de Gaspar Correia, uma vez que o mesmo, aquando da chegada ao

poder de D. Estevão da Gama, afirma redundantemente: “ninguém sabe o segredo das

sucessões.51”

Para além destes dois factos, há a acrescentar um último e a que já se referiu

brevemente em cima. Referimo-nos ao facto de as vias que não eram utilizadas terem

que ser mandadas de volta para o reino, fechadas e seladas. Isto é visível quando, em

48

Ou as vias a que Martim Afonso de Sousa se estava a referir eram outras que recebeu entretanto? 49

Cf. Francisco de Andrada, Op. Cit., parte I, capítulo lviii. 50

Cf. Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento & Conquista da Índia pelos Portugueses, livro IX, capítulo xxxi. 51

Cf. Gaspar Correia, Op. Cit., volume VII, p. 120.

15 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

1548, D. João III reconduz D. João de Castro e lhe envia novas vias, pedindo-lhe que

devolva as três que tem consigo e que, em caso de necessidade, se abram as cinco

novas vias que acaba de enviar.52 Mas também é visível quando, em 1526, o Rei envia

duas novas vias e pede que as que foram enviadas em 1524, por D. Vasco da Gama,

sejam devolvidas sem serem abertas, o que já tinha acontecido.53

Ainda a este respeito, aquando da abertura de uma via, havia um grande

procedimento cerimonial. A título de exemplo, tomaremos a primeira destas

cerimónias como referência. Na mesma, Lopo Vaz de Sampaio informa os nobres

presentes de que o Rei enviou sucessões.54 E as mesmas passam das mãos do

secretário para as de Sampaio que, de seguida, as mostra a todos os presentes, sendo

que alguns pegam na mesma para confirmar que esta está em perfeitas condições. De

seguida, Sampaio pergunta se alguém tem dúvidas, fazendo-se um auto disse mesmo.

Depois disto, Andrada diz-nos que cada via tinha três selos de armas reais e que as

segunda e terceira vias foram de novo metidas dentro do saco de onde tinham sido

retiradas. Por sua vez, este foi de novo cosido e selado com o selo das armas reais e foi

colocado dentro de um cofre.55 O que nos mostra, efectivamente, o grande cuidado e

secretismo que envolvia esta questão. O Rei não queria que se soubesse, antes do

tempo, qual a pessoa que tinha nomeado para substituir o governador que nesse

momento estava no poder. Nem queria que, no caso de mudar de ideias, se soubesse

quais tinham sido as suas escolhas iniciais. Aliás, de facto, aquando da chegada das

novas vias em 1526, várias são as vozes que se levantam contra a abertura das

mesmas, uma vez que tal significaria a desonra para Pêro Mascarenhas, anterior

escolha do Rei.56 E era exactamente por este tipo de motivos, de honra e desonra, e de

favorecimento de certas redes clientelares, que esta questão das sucessões sempre

foi, o mais possível, secreta. O Rei nunca quis que se soubesse quais os hipotéticos

sucessores, a fim de tentar evitar que isso interferisse em alguma coisa nas acções dos

que estavam designados nas mesmas (ou, até mesmo, dos que não estavam e que

pretendiam estar).

52

Cf. Francisco de Andrada, Op. Cit., parte IV, capítulo xxix. 53

Cf. Francisco de Andrada, Op. Cit., parte II, capítulo ix. 54

O que nos dá a ideia de que as mesmas não eram, de facto, conhecidas pelos nobres. 55

Cf. Francisco de Andrada, Op. Cit., parte I, capítulo lxv. 56

Cf. Diogo do Couto, Op. Cit., década IV, livro i, capítulo 9.

16 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

Ainda assim, o certo é que as crónicas também nos apresentam claros indícios de

fugas de informação a este respeito. Detectam-se, pelo menos, 4 casos que reflectem

esta situação.

O primeiro remonta, tal como já foi referido anteriormente, ao governo de Nuno

da Cunha, em que António de Saldanha tinha a convicção de que, em caso de morte do

mesmo, seria ele o novo governador: “(...) Antonio de Saldanha (...) trazia presunção

que n’estas cartas que trazia vinha prouisão d’ElRey pera que elle gouernasse a India se

Nuno da Cunha nom passasse á India ou falecesse no caminho.57” Não sabemos se esta

convicção tinha, ou não, algum fundo de verdade, uma vez que as vias entregues pelo

Rei a Nuno da Cunha não foram encontradas. Porém, esta afirmação deixa

transparecer a ideia de que António de Saldanha poderia ter alguma informação de

que seria o efectivo sucessor a Nuno da Cunha.

Por outro lado, aquando do governo de D. Garcia de Noronha, o Conde do

Vimioso terá escrito a Estevão da Gama que caso Martim Afonso de Sousa voltasse

para o reino que ele se deveria deixar ficar na Índia. Mas que no caso de este não

voltar que poderia Gama fazê-lo. O que dá claramente a entender que este sabe que é

D. Estevão o seguinte na ordem das sucessões.58

Por seu turno, aquando da abertura da terceira via de sucessão de D. João de

Castro, Jorge Cabral terá dito “Dera alguma cousa agora por saber qual he o rapaz da

quinta sucessão, que a quarta bem sei que sou eu.59” E, de facto, era este o quarto

nomeado, tanto que acabou por se tornar governador, por morte de Garcia de Sá, em

1549.

Por fim, D. Pedro de Mascarenhas, antes da sua partida para a Índia, terá pedido

a D. João III que lhe dissesse quem estava nomeado nas suas vias, ao que o Rei terá

respondido que ele tivesse muito em conta Francisco Barreto, dando-lhe a entender

claramente que seria este o nomeado.60

Pelo exposto, se conclui que as vias de sucessão foram um mecanismo criado

pelo centro para controlar uma periferia, devido à impossibilidade de fazer chegar, em

tempo útil, um novo governador. E que apesar de o Rei, a acreditar-se no que diz

Andrada, advogar para si a responsabilidade de assegurar a sucessão do governo do

Estado Português da Índia, pelo facto de não querer que esta ficasse a cargo da

57

Cf. Gaspar Correia, Op. Cit., volume V, pp. 283-284. 58

Cf. Diogo do Couto, Op. Cit., década V, livro vi, capítulo 7. 59

Cf. Idem, Ibidem, década VI, livro i, capítulo 1. 60

Cf. Idem, Ibidem, década VII, livro i, capítulo 3.

17 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

nobreza presente na Índia, a fim de evitar divisões entre a mesma, a criação deste

sistema não implicou, necessariamente, o fim deste problema. Pelo menos, não numa

fase inicial.

E a provar-nos isso mesmo está o problema criado em 1526, uma vez que, por

falta de indicações precisas do Rei, sobre o que se deve fazer no caso de D. Henrique

de Meneses já ter falecido e já se terem aberto as vias enviadas em 1524, a nobreza

presente no local se acaba por dividir e não saber, exactamente, a que governador

deve obedecer. Porém, devido exactamente a esta questão, a partir de então, o Rei

começa a criar salvaguardas nas vias, declarando que “E nam semdo o dito dom pedro

de castel branco/ presente por ser fora em alguma armada ou em outra parte ey por

bem/ que gouerne o capitam moor do mar e o veedor da fazenda e o capi/tam de guoa

todos juntamente (...) e nom podendo ser/ gouerne hum soo segundo estaa declarado,

os quaes seram loguo mandados/ chamar pera gouernarem e gouernaram atee vir o

dito dom pedro de castelbranco/ que loguo isso mesmo sera chamado,e estando o dito

veedor da fazenda/ soo na dita gouernanca ou com alguum dos sobre ditos ou todos

lha/ entreguaram loguo tanto que vier pera gouuernar segundo forma desta/

prouisam.61” Ou seja, o Rei tenta evitar que se abram as vias seguintes, como

aconteceu em 1526, e que se espere pelo governador nomeado até este chegar a

Goa.62 O que nos mostra, claramente, que o Rei queria, ao máximo, evitar novos

problemas e novas divisões no seio da nobreza presente na Índia.

Pois, de facto, é inegável que esta influenciava, de certo modo, o funcionamento

do sistema das vias de sucessão. Pelos seus feitos, ou pelos feitos dos que lhe eram

mais próximos, os fidalgos exerciam uma certa pressão sobre o Rei para que este os

agraciasse. E, no século XVI, não haveria recompensa melhor do que se ser nomeado

Vice-Rei ou Governador do Estado Português da Índia, nem que fosse nas vias de

sucessão. O que, aliás, nos prova a suposta fala da mulher de Jorge Cabral, que lhe terá

dito para este aceitar o cargo de governador “nem que fosse por quinze dias”, uma vez

que sê-lo constituía uma imensa honra para o indivíduo. Bem como ser destituído do

cargo, como foi D. Estevão da Gama, era, pelo contrário, extremamente desonroso.

61

Cf. ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 61, n.º 19. Este exemplo foi retirado da via de sucessão de D. Pedro de Castelo Branco a D. Garcia de Noronha, mas a cláusula é igual em todas as vias encontradas, mudando apenas o nome do eventual sucessor. 62

Claro que este caso não se aplicava às pessoas que já tinham voltado para o Reino, daí que, em 1540, não se espere por Martim Afonso de Sousa, por exemplo.

18 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

Mas a fidalguia portuguesa presente na Índia também influenciava este sistema

de outro modo, precisamente oposto. Pelas queixas que os nobres faziam uns dos

outros ao Rei, o mesmo poderia ser pressionado a mudar de ideias e,

consequentemente, a enviar novas vias com novos nomes ou com novas ordens para

os mesmos. Que foi, precisamente, o que sucedeu em 1526. Pela quezília entre Afonso

Mexia e Pêro Mascarenhas, o Rei mudou a ordem das vias de sucessão, o que veio

lançar o Estado Português da Índia numa profunda confusão. O que acabou por levar a

que, em 1529, Lopo Vaz de Sampaio fosse preso e considerado um usurpador do poder

que, legalmente, pertenceria a Pêro Mascarenhas.

No entanto, na altura da sua prisão, Sampaio terá dito ao enviado de Nuno da

Cunha: “Dizei ao Governador, que eu prendi, e elle me prende, lá virá quem o prenda a

ele.63”

O que, de facto, aconteceu. E o que, de facto, aconteceu a muitos dos

governadores que não morreram em exercícios de funções, não só no governo de D.

João III. O que nos prova que apesar de os governadores do Estado Português da Índia

terem uma ampla área de decisão, nem sempre o Rei, à posteriori, concordava com a

mesma, levando muitos homens a caírem na desgraça depois de chegados ao reino.

E por receio de não concordar, também, com as escolhas dos nobres presentes

na Índia, o Rei cria este sistema, a fim de garantir a sucessão do governo da Índia nas

mãos de uma pessoa da sua confiança. Ao confiar na pessoa, e ao honrá-la dando-lhe

tal cargo, espera que a mesma, à partida, o sirva bem.

De facto, se analisarmos as escolhas do Rei, compreendemos que o mesmo

sempre procurou exercer a sua política rodeado de pessoas da sua absoluta confiança.

Por um lado, apoiava-se em veteranos como António de Saldanha, D. Garcia de

Noronha ou D. Pedro de Mascarenhas, por exemplo. E, por outro lado, mantinha,

também, junto de si os indivíduos da sua geração e que tinham crescido consigo,

nomeadamente Martim Afonso de Sousa, D. Pedro de Castelo Branco, Diogo da

Silveira ou D. Henrique de Meneses.

Aliás, logo as primeiras escolhas do Monarca deixam transparecer esta sua dupla

política. Se, por um lado, dava mostras de respeitar uma geração mais velha, enviando

D. Vasco da Gama por Vice-Rei em 1524, por outro lado, no segredo das vias

sucessórias, apostava, em primeiro lugar, num jovem que seria da sua estrita

63

Cf. Diogo do Couto, Op. Cit., década IV, livro vi, capítulo 6.

19 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

confiança. E só em alternativa a este indivíduo inexperiente é que o Rei voltou a

indicar veteranos da Índia, nomeadamente Pêro Mascarenhas e Lopo Vaz de Sampaio.

Desta forma, e pelas imensas teias familiares e clientelares que se tecem em

torno das várias personagens que alcançaram o poder no Estado Português da Índia ou

que estiveram, pelo menos, na linha de sucessão do mesmo, esta é uma questão que

também necessitará de maior desenvolvimento no futuro. Por tudo o que foi exposto,

consideramos que se compreende que as relações familiares de cada um destes

indivíduos determinaram as suas nomeações. Bem como, nalguns casos, as amizades

pessoais com o Rei o fizeram. Mas uma análise mais detalhada queda por realizar,

nomeadamente no caso dos hipotéticos sucessores. Tal como já referimos, há que

tentar compreender por que motivo, por vezes, o Rei mudava de ideias e elaborava

novos alvarás de sucessão. Todavia, esta é uma questão que, por enquanto, ficará por

responder.

Tal como outras, aliás, o ficam. De facto, muitas questões foram deixadas em

aberto ao longo deste trabalho, tal como se foi referindo à medida que estas

apareciam, e que só poderão ser desenvolvidas no âmbito de um trabalho de maior

amplitude e investigação sistemática sobre o assunto.

Por agora, cabe-nos deixar estas questões em aberto, avançando apenas

algumas hipóteses para as mesmas, ressaltando que as mesmas apenas existem por os

homens, nem sempre, se preocuparem em deixar para a posteridade todos os factos

bem esclarecidos. Tal como afirma João de Barros, “Muitas cousas leixam de escrever

os Escritores da historia por serem mui sabidas, e notas aos vivos daquelle Reyno, e

tempo, em que elles escrevêram, donde se segue ficarem elles sepultados no decurso

do tempo, cuja memoria he mui fraca, senão he ajudada da escritura. Porém quando

em alguma particular achamos cousa do que elles não fizeram menção, ora seja de

caso aquecido, ora de costume, e governo da nossa propria patria, deleitamo-nos

muito com esta tal novidade, e ás vezes tomamos a mesma cousa passada pera

exemplo do presente governo (…) Porque ainda que estas cousas a nós os presentes

sejam commuas, podem ser conhecimento aos estranhos de como governamos

aquelles estados do Oriente, e os nossos que depois vierem, saibam como se conservou

per bom conselho (…)”.64

64

Cf. João de Barros, Op. Cit., década III, livro ix, capítulo 1.

20 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

Anexos

Tabela n.º 1: Governadores/Vice-Reis anteriores a 152465

Tabela n.º2: Governadores/Vice-Reis posteriores a 152467

65

Informações retiradas de Genealogias dos Vice-Reis e Governadores do Estado Português da índia no Século XVI. Disponível em: http://www.cham.fcsh.unl.pt/GEN/Index.htm [Consultado a 7 de Outubro de 2012]. 66

Apesar de ter governado durante o reinado de D. João III, D. Duarte partiu de Lisboa a 5 de Abril de 1521, pelo que ainda foi nomeado por D. Manuel I. Cf. Damião de Góis, Op. Cit., livro IIII, capítulo lvx. 67

Informações retiradas de Genealogias dos Vice-Reis e Governadores do Estado Português da índia no Século XVI. Disponível em: http://www.cham.fcsh.unl.pt/GEN/Index.htm [Consultado a 7 de Outubro de 2012].

Nome Data de

Nascimento

Anos de

Governo

Idade à

data da

nomeação

Reinado

D. Francisco

de Almeida c. 1457 1505-1509 c. 48 anos D. Manuel I

Afonso de

Albuquerque c. 1462 1510-1515 c. 48 anos D. Manuel I

Lopo Soares

de Albergaria c. 1460 1515-1518 c. 55 anos D. Manuel I

Diogo Lopes

de Sequeira 1466 1518-1521 c. 52 anos D. Manuel I

D. Duarte de

Meneses ? 1521-1524 ? D. Manuel I66

21 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

Nome Data de

Nascimento

Anos de

governo

Idade à

data da

nomeação

Vindo de

Lisboa ou

nomeado

por via de

sucessão?68

Cargo

ocupado

Os que

sucedem

ficam quanto

tempo no

poder?

Quem está nomeado nas vias de

sucessão?

D. Vasco da

Gama

c. 1466 1524 c. 58 anos Vindo de

Lisboa

Vice-rei Vias enviadas em 1524 (não

encontradas):

1ª – D. Henrique de Meneses

2ª – Pêro de Mascarenhas

3ª – Lopo Vaz de Sampaio

D. Henrique

de Meneses

1496 1525-

1526

c. 29 anos Via de

Sucessão

(1º)

Governador Não cumpre

os 3 anos

porque

morre

Vias enviadas em 1526 (não

encontradas):

1ª – Lopo Vaz de Sampaio

2ª – Pêro de Mascarenhas

Pêro

Mascarenhas

Data

incerta

? Via de

Sucessão

(2º)

Governador

Lopo Vaz de

Sampaio

Data

incerta

1526-

1529

? Via de

Sucessão

(3º)

Governador 3 anos

Nuno da

Cunha

1487 1529-

1538

c. 42 anos Vindo de

Lisboa

Governador Hipotética sucessão de

António de Saldanha, segundo

Gaspar Correia.

Vias não encontradas

D. Garcia de

Noronha

Data

incerta

1538-

1540

? Vindo de

Lisboa

Vice-rei Vias enviadas

em 1538:

1ª- Nuno da

Cunha

3ª – D. João de

Castro

4ª – D.

Vias

enviadas em

1541:

2ª – D.

Francisco de

Meneses.

3ª – Diogo

Lopes de

68

A ordem apresentada para as vias de sucessão é a ordem que as crónicas nos apresentam.

22 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

Estevão da

Gama

4ª – D. Pedro

de Castelo

Branco

Sousa

4ª –

Francisco de

Sousa

Tavares

D. Estevão da

Gama

1505 1540-

1542

c. 35 anos Via de

Sucessão

(2º)

Governador Não cumpre

3 anos

porque o Rei

nomeia

Martim

Afonso de

Sousa, que

seria a sua 1ª

opção nas

vias de

sucessão de

D. Garcia de

Noronha.

Martim

Afonso de

Sousa

1500 1542-

1545

c. 42 anos Vindo de

Lisboa

Governador Hipotética sucessão de Diogo

da Silveira.

Vias enviadas em 1542?

Vias enviadas em 1544:

1ª – D. Francisco de Meneses

3ª – D. Garcia de Castro

Restantes vias não

encontradas

D. João de

Castro

27/02/150

0

1545-

1548

45 anos Vindo de

Lisboa

Governador

(mandato

renovado

em 1548

com o título

(vias de 1545 não

encontradas)

23 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

de Vice-Rei) Vias de

154869 (não

encontradas):

1ª – D. João

de

Mascarenhas

2ª – D. Jorge

Tello

3ª – Garcia de

4ª – Jorge

Cabral

5ª - ?

Vias de

154870 (não

encontradas):

1ª – D. João

de

Mascarenhas

2ª – Garcia de

3ª – D. Jorge

Tello

4ª – Jorge

Cabral

5ª - ?

Garcia de Sá c. 1478 1548-

1549

c. 70 anos Via de

Sucessão

(3ª,

segundo

Diogo do

Couto. 2ª,

segundo

Francisco

de

Andrada)

Governador Não cumpre

os 3 anos

porque

morre

Jorge Cabral Data

incerta

1549-

1550

? Via de

Sucessão

(4ª)

Governador Não cumpre

os 3 anos

porque o rei

envia D.

Afonso de

Noronha,

quando sabe

da morte de

D. João de

Castro. Não

seria de

esperar que

confiasse nos

que estavam

69

Cf. Diogo do Couto, Op. Cit., década VI, livro vii, capítulo 1. 70

Cf. Francisco de Andrada, Op. Cit., parte IV, capítulo xxix.

24 |Ana Cláudia Joaquim, As Vias de Sucessão no Estado Português da Índia 1524-1558

III EIJHM 2013 Évora | III Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna III International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

nas vias de

sucessão?

D. Afonso de

Noronha

Data

incerta

1550-

1554

? Vindo de

Lisboa

Vice-rei Vias não encontradas

D. Pedro

Mascarenhas

c. 1484 1554-

1555

c. 70 anos Vindo de

Lisboa

Vice-rei Vias de 1554 (não

encontradas)

1ª – Francisco Barreto

Restantes?

Francisco

Barreto

1520 1555-

1558

c. 35 anos Via de

Sucessão

(1ª)

Governador 3 anos