As ciências sociais nas fronteiras - teorias e metodologias de pesquisa

261
Eric Gustavo Cardin Silvio Antônio Colognese Organizadores AS CIÊNCIAS SOCIAIS NAS FRONTEIRAS Teorias e metodologias de pesquisa

Transcript of As ciências sociais nas fronteiras - teorias e metodologias de pesquisa

Eric Gustavo CardinSilvio Antônio Colognese

Organizadores

AS CIÊNCIAS SOCIAIS NAS FRONTEIRASTeorias e metodologias de pesquisa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

As Ciências Sociais nas fronteiras: teorias e metodologias de pesquisa/

[organização] Silvio Antonio Colognese, Eric Gustavo Cardin. --

1. ed. -- Cascavel, PR: JB, 2014

Vários autores.

Bibliografia.

ISBN 978-85-67182-04-9

1. Ciências sociais - Metodologia 2. Ciências sociais - Pesquisa 3.

Pesquisa - Metodologia

I. Colognese, Silvio Antônio. II. Cardin, Eric Gustavo

14-01768 CDD-300.72

Índice para catálogo sistemático:

1. Ciências sociais: Metodologia 300.72

2. Ciências sociais: Pesquisa 300.72

Todos os textos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.São permitidsas cópias desse material, para fins educativos, desde que citadas as fontes

EDITORA GRÁFICA JBRua Erechim, 1495Fone (45) 32232214CEP 85812-260 - Cascavel - Paraná[email protected]

Revisão:

Ana Paula Fernandes Abreu e autores

Produção Gráfica e impressão:

Gráfica JB

Conselho Editorial:

Juan Carlos Arriaga-Rodríguez - Miguel Ângelo Lazzaretti

Antonio Higuera Bonfil - Paulo Roberto Azevedo

Tania Camal-Cheluja - Osmir Dombrowski

Paulo Henrique Barbosa Dias - Gustavo Biasoli Alves

Geraldo Magella Neres

Organização:

Eric Gustavo Cardin

Silvio Antônio Colognese

Copyright © 2014 dos autores

SUMÁRIO

1. LA CONCEPCIÓN DE LAS FRONTERAS Y LOS LÍMITESTERRITORIALES EN EL PENSAMIENTO GEOGRÁFICO DE JEANGOTTMANN....................................................................13Juan Carlos Arriaga-Rodríguez

2. TEORIA DAS FRONTEIRAS E TOTALIDADE ..........................43Eric Gustavo Cardin

3. FRONTEIRAS: ENTRE OS CAMINHOS DA OBSERVAÇÃO E OSLABIRINTOS DA INTERPRETAÇÃO..............................................61José Lindomar C. Albuquerque

4. A INFUSÃO ETNOGRÁFICA EM COMUNIDADES NAFRONTEIRA..........................................................................................81Rodrigo KummerSilvio Antônio Colognese

5. ETNOGRAFIA NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA, EMCORUMBÁ-MS: POR UMA ANTROPOLOGIA “NAS”FRONTEIRAS...................................................................................107Gustavo Villela Lima da Costa

6. TEXTUALIZANDO CONDIÇÕES FRONTEIRIÇAS: ACONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA FICCIONAL PARA O ESTUDODO CONTRABANDO......................................................................125Adriana Dorfman

APRESENTAÇÃO ...............................................................................5

7. ANDAR EL CAMINO, ENCONTRAR EL PROPIO HOGAR: RELATOVITAL DE UN MIGRANTE A LA FRONTERA MÉXICO-BELICE..............................................................................................147Antonio Higuera Bonfil

8. FRONTEIRAS MÚLTIPLAS: NARRATIVAS SOBRE OS SERTÕESDO PARANÁ......................................................................................183Valdir Gregory

9. RUPTURA HISTORICA E (DES)CONTINUIDADESCULTURAIS NA FRONTEIRA: OS DESAFIOS DOPESQUISADOR.................................................................................215Erneldo Schallenberger

10. APUNTES SOBRE LOS MÁRGENES: FRONTERAS,FRONTERIZACIONES, ÓRDENES SOCIOTERRITORIALES.......239María Lois

5

AS CIÊNCIAS SOCIAIS NAS FRONTEIRAS(a título de introdução)

As ciências sociais e os estudos das fronteiras possuem caminhosde proximidade e distanciamento. Não seria errado afirmar que os limitesterritoriais nunca corresponderam a um objeto central em suas obrasfundamentais. A fronteira aparece como um problema periférico ou nomáximo dependente nos estudos realizados entre os séculos XIX e XX.Diferente do que ocorre com a Geografia, que possui em Ratzel um pontode referência inicial, os clássicos da Sociologia, da Antropologia e daCiência Política pouco falaram sobre as fronteiras.

No entanto, isso não quer dizer que eles não contribuem nasinvestigações realizadas na contemporaneidade. Embora não coloquemas fronteiras como um problema central, os clássicos das ciências sociaisfornecem fundamentos teóricos e metodológicos que se fazem presentesna maioria dos estudos realizados na atualidade. Sem querer fazer ummapeamento exaustivo destas contribuições ou fazer uma espécie debalanço sobre aquilo que já foi escrito, temos o objetivo de indicarbrevemente o processo de amadurecimento do diálago entre as ciênciassociais e as fronteiras.

É possível observar que o inicio das discussões parta de três pontosdistintos. Em um primeiro momento, destaca-se um conjunto de estudosde caráter político que visa explorar questões vinculadas a constituiçãodo estado moderno, problematizando sua formação, manutenção eexpansão. As fronteiras, mesmo não correspondendo a principalpreocupação dos contratualistas, dos liberais ou dos marxistas leninistas,ela se faz presente de forma indireta quando as reflexões buscam explorarquestões vinculadas à soberania ou as relações internacionais.

Em segundo lugar, constata-se a vasta produção antropológica sobreas comunidades rurais, urbanas e nativas. Os diferentes exercícios de

6

investigação realizados contribuem de inúmeras formas para odesenvolvimento dos estudos empíricos fronteiriços, porém destacaremosapenas duas: a prática de observar as relações entre as diferentesdimensões que compreendem a realidade social e as técnicas delevantamento de dados - principalmente a etnografía - que pode seentendida aqui como uma ferramenta de pesquisa, uma sistematizaçãoda análise e uma forma de elaboração textual.

Por fim, a Sociologia Clássica, ao se focar no estudo dodesenvolvimento socioeconomico e no seu impacto na organização sociale na formação humana, também oferece elementos que podem nosauxiliar no entendimento das fronteiras. Os fenômenos migratórios e aocupação territorial configuram-se como problemas secundários ou nomáximo como argumentos para o desenvolvimento de análises sobre oprocesso de expansão do capitalismo e da racionalização,individualização e socialização do mundo contemporâneo.

A reorganização da economia e da política mundial após a SegundaGuerra Mundial atribuiu importância as discussões territoriais efronteiriças no âmbito acadêmico. A guerra fria, a geopolíticabipolarizada, a descolonização de muitos países africanos, a revoluçãoda social-democracia europeia, a queda do mundo soviético, a crise do“fordismo” e da social-democracia, o fortalecimento do neoliberalismo,dos blocos econômicos, da globalização e o constante questionamentodo papel do Estado instigaram direta e indiretamente a produção deinúmeros estudos preocupados com o mundo em que vivemos e com assuas fronteiras físicas e simbólicas.

A partir de então, começam a surgir investigações e publicaçõesabordando-as em diferentes escalas. Em síntese, constata-se a existênciade três grandes tendências, nitidamente vinculadas aos modos de atuaçãodifundidos pelos clássicos. Destacam-se, em um primeiro momento, aspesquisas interessadas em compreender o funcionamento e a ação doEstado em uma conjuntura internacional de relativa abertura de fronteirase de estabelecimento de acordos econômicos e políticos bilaterais. Aqui,o surgimento das fronteiras nacionais está relacionado ao esforço demaximizar os recursos naturais e produtivos existentes nos territórios.

Neste sentido, a flexibilização das fronteiras - garantindo umaporosidade para a passagem de capitais e trabalhadores - estabelece

7

inovações na forma em que os governos nacionais observam seus limites,o que vem alimentando um conjunto significativo de estudos.Aproximando-se a estas observações, encontra-se uma segunda tendênciade pesquisas que possuem como eixo central a análise do processo deexpansão do capital. Neste grupo, constata-se a existência de doismovimentos: o primeiro preocupado em vincular o sistemasociometabólico a organização e a intervenção estatal nas fronteiras,enquanto o segundo concentra suas energias em relacionar o sistemasociometabólico com o cotidiano, as experiências, as estratégias, enfim,as práticas dos sujeitos transfronteiriços.

A terceira e última tendência corresponde as pesquisasmicrossociológicas. Aqui predominam os estudos de comunidade, aanálise do cotidiano de instituições sociais bem delimitadas, a observaçãodas relações culturais e de seus hibridismos, como também leituras daspráticas, trajetórias e experiências de maneira desvinculada de suasrelações mais amplas e estruturais. Embora também possam aparecernas outras tendências, aqui predomina a utilização de histórias de vida eda etnografia, sendo comum a realização de observação participante ede descrições minuciosas.

A coletânea de textos que aqui apresentamos transita por estastendências e aprofunda aspectos teóricos e metodológicos observados eproduzidos na relação direta com as fronteiras. São estudos queconvergem com as ciências sociais e produzem um rico diálogo sobre aabrangência de nossos interesses e sobre a capacidade e potencialidadede nossos referenciais no esforço de produzir um entendimento relevantenas e das realidades fronteiriças. São dez capítulos, escritos porexperientes professores e pesquisadores, que garantem simultaneamentea ampliação do nosso olhar e o aprofundamento de questões essenciais.

No primeiro capítulo encontramos as contribuições de Juan CarlosArriaga-Rodríguez para o entendimento da teoria da participação dosespaços humanos produzida por Jean Gottmann. Segundo este autor, osestudos dos fenômenos geográficos, incluindo os processos de instalaçãode limites e fronteiras, deve obedecer à dualidade do espaço. Estadualidade se manifesta em um entorno humano e outro externo. O entornoexterno está vinculado ao meio ambiente, enquanto o humano estárelacionado a um sistema complexo de elementos históricos, étnicos,

8

sociais, religiosos, culturais e econômicos que condicionam a vida deuma comunidade.

No segundo capítulo, observamos a continuação do esforço deelaboração de um entendimento mais amplo e abrangente das fronteiras.Escrito por Eric Gustavo Cardin,”Teoria das Fronteiras e Totalidade”corresponde a uma proposta teórica e metodológica para o estudo dasregiões fronteiriças que valorize simultaneamente suas múltiplasdimensões sociais e também sua organicidade. Neste sentido, éproblematizada a assimilação do conceito de cultura de contrabando edefendido um projeto mais amplo, onde o contrabando também possaestar inserido no que, de maneira ainda inicial, está sendo definido comocultura de fronteira.

O terceiro capítulo, “Fronteiras: entre os caminhos da observaçãoe os labirintos da interpretação”, escrito por José Lindomar CoelhoAlbuquerque, representa o esforço em construir um diálogo entre asconclusões e experiências obtidas por meio de pesquisas realizadas entreos “brasiguaios” (adotando aqui o termo utilizado pelo próprio autor) ea produção de outros investigadores que, ao longo dos últimos anos,buscam o aprofundamento da compreensão que possuímos das fronteiras.Destaca-se aqui, o objetivo de estabelecer uma leitura mais ampla detais realidades por meio do encontro de abordagens muitas vezessustentadas por leituras teóricas e metodológicas particulares.

Rodrigo Kummer e Silvio Antônio Colognese escrevem o quartocapítulo, “A infusão etnográfica em comunidades na fronteira”. O textoproblematiza dilemas metodológicos à pesquisa em comunidades situadasem ambientes fronteiriços e reflete as incertezas dos pesquisadores emsituações de campo, onde são levados a lançar mão de um misto deabordagens e técnicas, muitas vezes não possíveis de serem seguidasconforme previstas. Em um primeiro momento os autores realizam umaanálise dos estudos de comunidade produzidos no Brasil e destacamsuas contribições para o estudo das realidades fronteiriças.

Partindo disso, destacam que a feitura desses estudos precisa seguira aferição de que não se estudam lugares, mas fenômenos. Para tanto, aetnografia torna-se imprescindível para problematizar o sentido dado àsações dos sujeitos que se movem em comunidades nas fronteiras. Paraperceber os processos de representação e os aspectos identitários que

9

aqueles indivíduos manifestam, intencionalmente ou não. Para desvendaras estratégias destes sujeitos no cotidiano nas fronteiras. Enfim, segundoos autores, na análise dos fenômenos em comunidades localizadas nasfronteiras é preciso considerar a importância e os sentidos conferidospelos sujeitos às suas ações, tanto em termos manifestos quanto velados.

Dividindo alguns destes pressupostos, o capítulo seguinte,“Etnografia na fronteira Brasil-Bolívia, em Corumbá-MS: por umaantropologia ‘nas’ fronteiras”, apresenta alguns dos desafios no processode produção de análises sobre as regiões fronteiriças. Gustavo VillelaLima da Costa destaca que os estudos das fronteiras partem de umapecularidade - o fluxo do pesquisador em uma realidade nacional diferenteda sua -, acrescido do reconhecimento da existência de um processo declassificação social do pesquisador por parte dos próprios entrevistados.O antropólogo fica sempre situado entre duas culturas, sem fazer parteintegral de nenhuma delas. Segundo o autor, esta é uma das característicasda etnografia: a de colocar o pesquisador em uma posição de “fronteira”,que a configura como um método filosófico que possibilita conhecer etransformar a si mesmo, ao conhecer o “outro”.

Em um segundo momento do texto, destacam-se algumasobservações de caráter mais teórico. Nas fronteiras existem múltiplasdimensões e cada uma delas possibilita um processo particular deconstrução de identidades. Neste contexto, existe uma situação de“espelhos múltiplos”, em que os indivíduos e grupos de ambos os ladosnão apenas representam os “outros”, mas são também representados pelo“outro”, pelo estrangeiro do outro lado da fronteira. A fronteira é umespaço dinâmico, movendo-se além das visões das fronteiras baseadasapenas no dogma da soberania dos Estados nacionais, que trabalhamnecessariamente com a ideia de limite estático e estatal.

No sexto capítulo, encontramos uma experiência diferente. AdrianaDorfman nos ajuda a pensar as fronteiras utilizando a literatura comofonte documental. No intuito de interpretar a fronteira em uma escalalocal, a autora utilizou de diferentes fontes documentais e constatou que“a presença de deslizamentos discursivos entre a ficção e a realidade, eentre as muitas realidades dos contrabandistas na fronteira”. Nestesentido, ela destaca que a literatura de fronteira pode ser reconhecidacomo um gênero: ao se considerar a origem geográfica dos autores; a

10

tematização da fronteira; e a interpolação de idiomas, como do português,com o espanhol e outros termos locais.

A literatura se apresenta como um recurso estratégico para aapreensão do contrabando formiga como prática, destacando os aspectosmorais e éticos existentes nas comunidades fronteiriças e estabelecendomeios para a observação das relações entre legal/ilegal, legitimo/ilegitimo,moral/imoral e viável/inviável. Desta forma, Dorfman traz para auniversidade um recurso ainda pouco utilizado, mas que é carregado depontencialidade. Por meio da literatura é possível um mapeamento dasrepresentações dos modos de viver dos sujeitos fronteiriços, assim comoa visualização de práticas, nem sempre públicas.

O sétimo capitulo foi escrito por Antônio Higuera Bonfil. “Andarel camino, encontrar el proprio hogar: relato vital de un migrante a lafrontera México-Belice” apresenta e discute a trajetória de um migrantemixteco. O capítulo mostra as condições de vida em Oaxaca e odeslocamento de Luis López Rojas para a fronteira do México com Beliceno final da década de 1970. Neste preâmbulo, destaca-se a estreita relaçãodo migrante com o trabalho agrícola e com o capital cultural acumuladopor suas relações familiares e religiososas, problematizando, a partir dosrelatos e experiências coletadas, o início e o fim dos limites fronteiriçosmexicanos.

Bonfil, por meio de sua investigação, enfatiza a importância dahistória oral como método de trabalho, ou seja, como um mecanismo deapreensão da realidade vivida por atores sociais inseridos em meiosculturais específicos. As trajetórias individuais, os modos de viver, asexperiências cotidianas, aparesentam-se como elementos fundamentaispara o entendimento das dinâmicas de fronteiras, pois comportamaspectos diretamente vinculados as relações entre as idiossincrasias davida particular e os elementos estruturais que formatam os limites dasações.

O oitavo capítulo, “Fronteiras múltiplas: narativas sobre os sertõesdo Paraná” - de autoria do Professor Valdir Gregory -, em um misto dehistoriografia e memórias pessoais, destaca algumas narrativas sobre ooeste paranaense da primeira metade do Século XX. No geral, o autorrelaciona dados e informações originais, abordando questões teóricas emetodológicas que emergem da relação direta com as fontes documentais.

11

O texto contempla discussões em torno da ideia de múltiplas fronteirasna fronteira, ou seja, destaca a concepção de que fronteiras são construídaspelas nas narrativas e por seus leitores.

Erneldo Schallenberger é autor do nono capítulo, “Ruptura históricae (des) continuidades culturais na fronteira: os desafios do pesquisador”.O intuito do texto é iluminar o terreno investigado, salientando os limitese as possibilidades das pesquisas realizadas em regiões de fronteira. Nestesentido, Schallenberger destaca que “a multiplicação de interesses pelapesquisa acerca da temática das fronteiras tem levado muitos estudiososa enveredar por campos de significação que conferiram ao conceitofronteira um sentido polissêmico. A fronteira, ao mesmo tempo em queaponta para o horizonte do novo e do indefinido, sugere um limite eestabelece uma relação entre estes dois indicadores que são sempreexpressão do alcance humano a partir das condições socioculturaishistórica e espacialmente construídas”.

Partindo disso, o autor apresenta um belo ensaio sobre os processosde aproximação e estranhamento, encontros e desencontros durante oprocesso de colonização da América, destacando não somente as relaçõesentre os sujeitos envolvidos nas diputas territorias, culturais

e políticas que marcam o desenvolvimento histórico, mas tambéma recepção e a leitura destes processos pelas ciências sociais, com destaqueespecial ao trabalho cuidadoso e necessário com as fontes cartográficas.

Fechando o livro, encontramos a contribuição de Maria Lois,“Apuntes sobre los márgenes: fronteras, fronterizaciones, órdenes,socioterritoriales”. O texto apresenta um conjunto de apontamentos sobreas fronteiras européias, refletindo, ao mesmo tempo, a multiplicidadedos espaços fronteiriços e a sua vocação provinciana. Neste contexto,Lois destaca a necessária abertura conceitual para o entendimento dasituação européia, incorporando as políticas de representação,espacialização e socialização, com destaque para as experiênciasinstituicionais de cooperação e regionalização transfronteiriças. Oscruzamentos ou as passagens pelas fronteiras são práticas que transgridema definição de limite, exigindo a ampliação conceitual para o seuentendimento.

“As Ciências Sociais nas Fronteiras” é um livro importante. Ele seapresenta e se coloca entre as poucas publicações brasileiras preocupadas

12

mais diretamente em pensar e propor teorias e métodos para o estudo emrealidades fronteiriças. É possível a visualização de um vasto conjuntode pesquisas empíricas produzidas no Brasil durante as últimas décadas.Agora é preciso sintetizá-las, compará-las e avançar no que diz respeitoao desenvolvimento de nossas ferramentas de trabalho. Neste sentido,acreditamos que a presente obra possa contribuir, ao menos um pouco,nesta tarefa que nos cabe atualmente.

Eric Gustavo CardinOrganizador

13

LA CONCEPCIÓN DE LAS FRONTERAS Y LOSLÍMITES TERRITORIALES EN EL PENSAMIENTO

GEOGRÁFICO DE JEAN GOTTMANN

Juan Carlos Arriaga-Rodríguez1

INTRODUCCIÓN

Una de las contribuciones para el estudio de las fronteras y loslímites territoriales más interesantes fue elaborada por Jean Gottmann(1915-1994). Frecuentemente citado por los estudiosos del tema, sinembargo, la obra de este geógrafo francés de origen húngaro ha despertadocuriosidad sólo hasta años recientes.

Jean Gottmann fue un intelectual prolijo2. Su impresionante obraescrita aborda una amplia variedad de temas, en diferentes campos de laGeografía Humana. Su pasión fue la Geografía Urbana, y a él se debe elconcepto de megalópolis, desarrollado en su obra clásica Megalopolis:The Urbanizad Northeastern Seabord of the United States, publicada en1961. Como se sabe, este trabajo es un estudio de un área regional y sugente, pero no desde el método descriptivo tradicional de la escuela re-gional francesa, sino como un análisis de la dinámica de transformaciónde un espacio urbano y de la concentración de personas y actividadeseconómicas en una amplia región urbana.

La teoría de las fronteras de Gottmann, desarrollada a finales delos cuarenta y principio de los cincuenta, ha permanecido inexploradaen su totalidad por los estudiosos del tema. Ello se debe, en gran medida,a que esta teoría no fue sistematizada en un solo libro, como sí ocurriócon los trabajos sintéticos de otros autores. Si bien la base de la

14

argumentación de Gottmann sobre las fronteras se encuentra desarrolladaen Le Politique des États et leur Géographie (1952) y en The Signifi-cance of Territory (1973), aspectos particulares de su teoría fueronprofundizados en diferentes artículos. Autores como Paul Claval, GeorgePrevelakis, Luca Muscarà3, Peter Taylor, John O’Lhoglin, entre otros,han dedicado sus esfuerzos para darle un cuerpo coherente y sintético atodo ese conjunto de trabajos en los que Gottmann proporcionó unenfoque novedoso de las fronteras.

En este artículo presentamos el enfoque propuesto por JeanGottmann para el estudio de las fronteras y los límites territorialescontemporáneos, al cual denominamos “teoría de la partición de losespacios humanos”. Por sus características teóricas y metodológicas,consideramos que esta teoría es distinta a otras que han dominado losestudios en la materia, pues centra su atención en el análisis de lasrelaciones espacio-sociedad que influyen en el establecimiento yconfiguración de las fronteras y límites.

CONTEXTO EPISTEMOLÓGICO Y METODOLÓGICOEN EL QUE APARECE EL PENSAMIENTO GEOGRÁFICO DEJEAN GOTTMANN

El contexto teórico en el que surgieron las principales tesisgeográficas de Jean Gottmann estuvo marcado por el debate entre lasescuelas geográficas francesa y alemana, la renovación teórica de lageografía regional y el despegue de la geografía teorética4. El debateentre el regionalismo francés y la geopolítica alemana estuvo centradoen el carácter determinante del espacio sobre las instituciones sociales(determinismo geográfico). Para la escuela alemana, el espacio esdeterminante para la creación del Estado, las formas de gobierno, lacultura y el carácter de las naciones; para la escuela francesa, lapersonalidad de la nación y el surgimiento del Estado y sus institucionesde gobierno es producto de la organización social5.

En cuanto a la renovación del pensamiento geográfico de la escuelafrancesa, al finalizar la Segunda Guerra Mundial aparecieron diferentesde trabajos de geógrafos franceses que rompieron con lo que Gottmann

15

llamó: “la costumbre largamente establecida de separar los problemasfísicos y humanos en los tratados de Geografía general”.6 Efectivamente,una nueva generación de geógrafos de la escuela regional emprendió latarea de formular con la mayor precisión posible la relación del hombrecon su entorno espacial. A esta generación perteneció Jean Gottmann.

A pesar de los intentos de la escuela francesa por renovarse en elplano metodológico, la Geografía Humana pasaba por un período decrisis en la década de los cincuenta. El paradigma clásico de la geografíaregional, tanto la francesa como la anglo-estadunidense, tuvo cada vezmayores problemas para interpretar la geografía social del mundo. Elsistema económico mundial surgido de la Segunda Guerra Mundialimpulsó la rápida urbanización, la explotación intensiva de materiasprimas y un acelerado desarrollo industrial y tecnológico, entre otrosfenómenos espaciales. Las regiones anteriormente identificadas setransformaron o se combinaron con otras, lo cual desveló las carenciasde la geografía regional para explicar la naturaleza de esos cambios.

El mismo problema se presentaba en el campo de GeografíaPolítica. Con la derrota de Alemania en la Segunda Guerra Mundial, laGeopolítica cayó en una situación de descrédito –ser llamado geopolíticoera considerado una ofensa, señala Gottmann7. Junto a ello, la GeografíaPolítica mostraba avances teóricos poco significativos.

De esta manera, en la década de 1950 existía la necesidad urgentede renovar la teoría en la Geografía Humana, situación que estimuló eldespegue de los estudios cuantitativos, o Geografía teorética, de granauge a partir de entonces. Sin embargo, la expansión del enfoque teoréticotuvo como resultado la declinación y el desprestigio de la Geografía entodo el mundo; poco a poco en las Ciencias Sociales se la consideró,injustamente, una disciplina lejana o definitivamente inútil.

La geografía cuantitativa se especializó en los microanálisis,abandonando su objetivo principal que es el estudio global de la geografíadel planeta. Sus seguidores pensaban que el uso de categorías generalesen la investigación de problemas geográficos locales convertía a ladisciplina en una actividad “no-científica”. Para darle el caráctercientífico, recuperaron el método lógico deductivo y la relación causalentre la geografía física y los fenómenos sociales propuestos por elpositivismo lógico. Su fundamento teórico es que las localidades forman

16

parte de un todo funcional y están regidas por un orden; el objetivo de laGeografía, por lo tanto, es descubrir las leyes que rigen el orden de lasrelaciones en el sistema mediante modelos matemáticos, normativos oprobabilísticos8.

Fue en ese contexto de reinvención de la Geografía Humana queJean Gottmann desarrolló su trabajo intelectual. Muchas de sus ideastuvieron buena acogida en la disciplina, especialmente en el campo de laGeografía Urbana, pues supo integrar de manera armónica todos losprocesos espaciales generados por la acción humana. A pesar de lo ante-rior, en lo que respecta a sus reflexiones sobre las fronteras y los límitesterritoriales, sus conceptos fueron muy avanzados y sofisticados para suépoca, sobre todo porque entonces el mundo era pensado exclusivamenteen la división de dos sistema económicos y sociales: el comunismo y elcapitalismo.

Para Gottmann, el estudio fenómenos geográficos, incluidos losprocesos de instalación de límites territoriales y fronteras, debe observarla dualidad del espacio geográfico, una perspectiva planteadaoriginalmente por el biólogo teórico Claude Bernard (1813-1878). Estadualidad se manifiesta en un entorno humano externo y otro interno. Elentorno humano externo refiere al medioambiente natural que rodea ycon el cual interactúa, en términos físico-químicos, el hombre. Por otraparte, el entorno humano interno —no bien definido a mediados delsiglo XX, reconocía Gottmann— es el sistema complejo integrado porelementos históricos, étnicos, sociales, religiosos, culturales y económicosque condicionan la vida de una comunidad.9

En este sentido, según Gottmann, el primer paso para estudiar losfenómenos geográficos es definir el ambiente humano interno e identificarsus elementos permanentes, su fluidez (fluctuaciones políticas, socialesy culturales que la historia registra) y las fuerzas que lo mueven. Ensegundo lugar, este ambiente humano se materializa en espaciosgeográficos específicos, los cuales son dinámicos y mantienen unainterrelación permanente. Por último, si bien el objetivo de la GeografíaHumana es explicar la interrelación entre la geografía del planeta y losgrupos humanos, el punto de partida es identificar las diferencias entretales espacios a partir del ambiente humano interno en el cual se basa laorganización del espacio y el uso social de los recursos10.

17

Los tres postulados anteriores forman la base epistemológica delenfoque propuesto por Gottmann para el estudio de las fronteras, al cualdenominamos “teoría de la partición de los espacios humanos”. Por suscaracterísticas teóricas y metodológicas, la propuesta de Gottmann esun enfoque teórico y metodológico de tipo holístico y dialéctico: esholístico porque interpreta a la realidad como una totalidad compleja; ydialéctico porque no intenta explicar fenómenos particulares a partirrazonamientos deductivos o inductivos, sino los interpreta a partir de lasfuerzas y procesos internos que los guían, los que a su vez siguen afuerzas y procesos generales11.

En el estudio de las fronteras, ciertos enfoques se concentran en elanálisis de los factores causales que influyen en la fragmentación ydivisión de los espacios humanos (poder, recursos naturales, riqueza delas naciones, etcétera), mientras que otros se especializan en describirlos efectos espaciales de tales factores (conquista, zona de influencia,Hinterland, vordeland, enclaves, zonas de interpenetración, etcétera)12.En muy pocos estudios se presta atención a las relaciones espacio-sociedad que influyen en el establecimiento y organización de lasfronteras13. El enfoque de Gottmann sobre las fronteras parte de en estaconsideración, y el primer concepto que se define es el de partición delos espacios humanos.

El concepto espacio humano hace referencia al espacio geográficoocupado y transformado por las comunidades humanas. Este espacio eslimitado, en el sentido de que sólo es accesible en función de la tecnologíade que disponen los grupos sociales. El espacio humano extiende suslímites con el desarrollo constante de las capacidades técnicas. El espaciogeográfico que no está accesible a los grupos humanos no genera ningunadisputa, pero cuando las sociedades adquieren la tecnología necesariapara llegar a ese espacio, empiezan a dividirlo, dando origen a las disputasy reclamos territoriales que conocemos. Esto explica por qué el conceptode espacio humano está estrechamente relacionado al concepto “espaciopolítico”; ambos son espacios humanos complejos y sintéticos (todoslos aspectos de la vida humana están integrados en ellos) en lo físico ycultural, económico y social, militar y diplomático14.

El espacio humano está subdividido en territorios ocupados,organizados, diferenciados y dominados por grupos sociales distintos,

18

los cuales dan forma a las comunidades políticas que a su vez presentanformas de organización económica y política diferentes. El procesohistórico de fragmentación, organización y diferenciación de territorioses la partición política del mundo. Se trata de un proceso persistente enlas sociedades modernas, y al mismo tiempo es una de lasrepresentaciones simbólicas de la humanidad expresada en los mapas.Para Gottmann, el mapa es la representación imaginada de lafragmentación de los espacios humanos.

PARTICIÓN

La categoría central en la concepción de las fronteras de Gottmannes el concepto de partición del espacio geográfico. Gottmann lo definecomo un proceso que consiste en dividir, organizar y diferenciar el espaciogeográfico que es accesible a los grupos sociales.15 La partición ocurrecuando las áreas del planeta son ocupadas y transformadas por unacomunidad humana, lo cual a su vez sólo es posible cuando esacomunidad posee cierta capacidad técnica y material.

Por ejemplo, hasta 1947, la partición de los espacios marinos(mares, lecho y subsuelo marino) no estaba a discusión internacional;pero una vez que ciertas sociedades desarrollaron la tecnología paraexplotar recursos minerales submarinos, los mares fueron sometidos aun proceso intenso de división y diferenciación (mar territorial, marpatrimonial, mar internacional, etcétera). En 1982, una vez establecidaslas reglas jurídicas y geográficas internacionales para fijar los límitesmarítimos, el proceso de partición se aceleró, transformando a los maresy océanos en una red compleja de compartimentos bajo dominio yjurisdicción exclusiva de los Estados16. El Mar Caribe es un claro ejemplode ello.

Al dividir un espacio, este adquiere singularidad, es único. Talsingularidad viene de los rasgos físicos del espacio dividido(compartimento), su ubicación, el sistema de relaciones que establececon otros compartimentos, y por sus zonas de frontera y áreas limítrofes.El sistema de relaciones entre compartimentos es producto de procesoshistóricos, por lo tanto las dimensiones de los compartimentos son

19

cambiantes, lo mismo que sus fronteras y límites17.Fragmentar el espacio geográfico no es suficiente para que un grupo

social pueda apropiárselo, además se le debe organizar. La organizacióndel espacio se expresa en normas de propiedad y posesión, individual ocolectiva, de áreas del territorio. El espacio geográfico se le organizapor sus usos productivos, administrativos, sociales, culturales, recreativos,ambientales, religiosos, habitacionales, militares, etcétera18. Laorganización del espacio exige la creación instituciones que aseguren launidad e indivisibilidad de cada compartimento mediante la reproduccióny protección de las estructuras sociales dominantes.

Un fragmento del planeta ya dividido y organizado se diferenciade otros circundantes por numerosos factores, en parte geográfico-natu-ral (ambiente humano externo) y en parte sociales (ambiente humanointerno). El espacio geográfico ha sido diferenciado, primero, por factoresfísicos (clima, suelo, hidrografía) y naturales (plantas y animales) delplaneta y por el reparto desigual de recursos; segundo, por la división yorganización del espacio que le es accesible a los grupos sociales; tercero,por la división y organización política que desarrollan los Estadosmodernos. El fragmento del planeta que ha sido dividido, organizado ydiferenciado por los Estados es el territorio. En palabras de Gottmann,el territorio es “un compartimento del espacio políticamente diferenciadode aquellos que lo rodean”19.

Existen otros tipos de compartimentos—creados en otras épocasde la historia y por diferentes grupos sociales— lo mismo que definicionesy concepciones de fronteras para cada uno de esos compartimentos.También es posible encontrar diversas categorías de compartimentos:locales, territoriales, regionales (interiores e internacionales) ycontinentales. Todos los tipos de compartimentos y sus categoríasexistentes confirman que el mundo ha sido compartimentado y circundadopor límites y fronteras20.

La diferenciación de los espacios humanos se establece, en primerlugar, mediante una serie de componentes distintivos que un grupo so-cial dice poseer y que no pertenecen a otros. Esos componentes son,según Gottmann: “el pasado histórico y su interpretación común a losmiembros de una comunidad cultural, pero ajena para aquellos más alláde la frontera”; el ambiente humano externo local y, sobre todo, lo que la

20

gente piensa que ve en el medio físico y las condiciones sociales en lasque vive; las creencias basadas en la religión, valores sociales o algunospatrones de memorias políticas, o en la combinación de estas tresideologías. Gottmann denomina “iconografías” a estos componentes, yafirma que en estos se fundamenta la diferenciación de los espacioshumanos21. En este marco, el límite es el área que marca el inicio y el finde la diferencia y la identidad de una comunidad nacional; en tanto quela frontera es un espacio de interacción cultural intensa.

Por todo lo anterior, la partición de los espacios humanos es unconcepto geográfico-social a la vez que político —aunque en CienciaPolítica es prácticamente desconocido. La partición política es una formade acción sobre la geografía del mundo, un medio de control y dominiode espacios humanos, y una fuerza de unificación de regiones paraconformar territorios. La delimitación territorial y la identificación delos límites territoriales sólo son posibles por la partición política delplaneta22.

Asimismo, la partición no sólo define las divisiones entre territoriosnacionales, sino que además influye en las relaciones internacionalesentre los Estados. Cambiar límites internacionales tiene consecuenciaspolíticas nacionales e internacionales de gran trascendencia. Por ejemplo,en un proceso de partición, puede ocurrir que comunidades culturalesmayoritarias pueden ser convertidas en minoría, y viceversa; o tambiénque el balance de poder internacional sea alterado. Es por esta razón quemucha sangre ha corrido a causa de la modificación de los límitesterritoriales.

La guerra de los Balkanes de la década de los noventa ha ratificadola importancia política de la partición del mundo. El caso de Kosovosirve como ejemplo. La comunidad de origen albanés fue minoría en laprovincia de Kosovo, pero al quedar separada la provincia del de Serbia,los albaneses se convirtieron en mayoría y los serbios en minoría. Entérminos geopolíticos, la creación del Estado de Kosovo ha incrementadola preocupación de otros Estados europeos de que otros movimientossecesionistas locales tomen fuerza y decidan imitar el ejemplo kosovar.

Así pues, si la partición del planeta es un tema de gran importanciapara la Geografía Humana, cabe preguntar entonces ¿Por qué lahumanidad tiene necesidad de dividir, organizar y diferenciar el pedazo

21

del mundo que habita?¿Cuáles son los factores que conducen a los grupossociales a fragmentar territorios mediante líneas de separación y aidentificar las fronteras?

Estas son preguntas fundamentales en el contexto de laglobalización, pues existe la idea generalizada de que el mundo vive lahomogenización y unificación de sociedades humanas y los territorios y,en consecuencia, los límites y las fronteras están en proceso dedesaparición23. Parecería que las fuerzas de la globalización estaríanimpulsando la creación de una “gran aldea global”, a contra corriente dela partición del mundo. Sin embargo, la teoría de la partición de losespacios humanos sostiene que la geografía del planeta no ha dejado deser heterogénea, y que las comunidades humanas continúan dividiendo,organizando y diferenciando el espacio que habitan. En consecuencia,las fronteras y los límites territoriales, antes que desaparecer, vanadquiriendo nuevos usos con forme cambia la sociedad capitalista.

CIRCULACIÓN

El espacio geográfico está caracterizado por la heterogeneidad yla diferenciación. En términos sociales, los espacios son representadossegún las diferentes culturas, tradiciones y prácticas sociales que ahíocurren; términos geográficos, se caracterizan por la distribución desigualde recursos naturales, variedad de factores físicos, climas y vida animaly vegetal. Esta variedad de espacios humanos y geográficos se traduceen una amplia diversidad de regiones, todas diferenciadas einterconectadas24.

Para Gottmann, el estudio de los fenómenos sociales debe partirde una concepción de la geografía como un sistema de espaciosdiferenciados e interconectados. Afirma que disciplinas como lasRelaciones Internacionales, la Historia Política y la Geografía Políticadeben tener presente que la evolución de los espacios humanosdiferenciados es el fundamento de cualquier investigación en sus cam-pos de estudio respectivos25.

Ahora bien, el sistema de espacios diferenciados no significaaislamiento ni separación permanente de grupos humanos, por el

22

contrario, es el terreno en el que se mueve y avanzan las fuerzas decirculación (en el sentido que Vidal de la Blache y Fernand Braudel ledan al concepto). La heterogeneidad espacial hace referencia a la desigualdistribución geográfica de factores como recursos naturales, mano deobra, capital y tecnología; la mano de obra y el capital se concentran enciertas localidades del planeta, igual como ocurre con la concentraciónde recursos minerales y energéticos. La heterogeneidad espacial es unacondición que crea diferencias de potencial humano, lo que a su vezpuede generar el flujo de los recursos antes mencionados. Es obvio quelas sociedades demandan una gran variedad de productos y materiasprimas, muchos de los cuales no produce o posee. Esta demanda generacomplementariedad de recursos a diferentes niveles, que van de lo locala lo global.

Así pues, grandes poblaciones concentradas en pequeñas porcionesde territorio, o la ausencia de mano de obra en otros lugares, constituyeuna diferencia de potencial humano que posteriormente puede dar origena migraciones. Si todas las diferencias de potencial que existen en elmundo fueran sumadas, el resultado podría ser un gran capital deoportunidades económicas. Sin embargo, estas oportunidades no puedentraer resultados en tanto existan obstáculos, naturales o creados por elhombre, al flujo de recursos. Por lo tanto, para que exista ese flujo, serequieren conexiones.

A lo largo de la historia la humanidad ha creado conexiones entrelugares con potencialidades diferentes. Los medios de comunicación ytransporte han sido los instrumentos que las comunidades han utilizadopara ampliar su campo de movimiento. A mayor movimiento, mayoresbeneficios económicos y culturales son cosechados, aunque en esteproceso muchos grupos sociales han sido despojados de los beneficios.El resultado positivo de la expansión de movimiento y del intercambio aescala global ha creado una fuerza enorme que empuja hacia lavinculación económica regional del mundo. Esa fuerza es denominadacirculación por Jean Gottmann26.

Gottmann señala que el concepto circulación fue formulado porVidal de la Blache, aunque no de una manera acabada en el marco deuna teoría geográfica general. Agrega que el concepto condujo a Vidalde la Blache a remarcar la importancia de las ciudades como nodos en la

23

relación entre países y como lugares que organizan la vida en sus regiones.De esta manera, el uso del suelo aparece determinado por el sistema derelaciones exteriores que la circulación materializa y no por suscaracterísticas geológicas, climáticas o biológicas. Gottmann va un pocomás adelante y afirma: “El valor del espacio está determinado por sususos sociales, no por los factores físicos que lo caracterizan”27.

A diferencia de Braudel, Gottmann divide la circulación en dosórdenes: uno político, representado por el desplazamiento de personas,ejércitos, trabajadores y el flujo de ideas; el otro, materializado en elintercambio de mercancías, técnicas, capitales y materias primas28.

La circulación de hombres, ideas y productos es la gran fuerzadinámica que transforma a los espacios humanos, pues permiteorganizarlos para producir bienes y recursos, al mismo tiempo que losdiferencia de otros circundantes (regiones agrícolas, industriales, mineras,forestales, ganaderas, etcétera). Por ejemplo, las villas españolas enAmérica que prosperaron, fueron sólo aquellas instaladas para cumplirla función de nodos para la circulación de personas y riquezas entre lascolonias y la metrópoli. Otros poblados crecieron o “vegetaron” segúnfueron más o menos favorecidas por las corrientes de circulación que lasatravesaban. Se puede señalar, por lo tanto, que las ciudades colonialesen la América española, y por extensión las regiones que dominaban, sedesarrollaron o declinaron dependiendo de la apertura o cerrazón quetuvieron a la circulación29.

Por otra parte, la circulación es una de las fuerzas que mueve lapartición económico-social del mundo, lo cual es más evidente en elámbito local. El triunfo de la circulación está asociado a la abolición decualquier forma de obstáculo técnico, geográfico o cultural al libre flujode factores económicos. Es por eso que en el pensamiento económico,las fronteras y los límites internacionales son el primer obstáculo quedebe desaparecer.

Gottmann observa que la generalización mundial de la circulación,si llegara a ocurrir algún día, conduciría a la abolición gradual de laheterogeneidad económica y social, pero no suspendería el proceso departición del planeta. Se trata específicamente, agrega, de la aboliciónde “la injusticia geográfica y humana” y, con esta, de la mayoría de lascausas de la guerra, el conflicto y las desigualdades sociales; la

24

apropiación, explotación y ejercicio del poder sobre los espacios seguiríamanifestándose en formas insospechadas.

Ahora bien, si las supuestas ventajas deque trae consigo lacirculación son evidentes, entonces ¿Por qué ocurre la partición delmundo? Para Gottmann, la respuesta se encuentra en la existencia deuna segunda fuerza, paralela a la circulación y la define como“iconografía”30. Circulación e iconografía son las dos fuerzas que muevenla geopolítica del mundo. Cuando la circulación triunfa, un espacio re-gional se unifica; por el contrario, el fortalecimiento de las iconografíaslocales conduce a la partición de regiones o al reforzamiento delasfragmentaciones ya existentes.

ICONOGRAFÍAS

El ideal de la unificación de la humanidad no es nuevo en la historia,afirma Gottmann. En ciertos momentos de la historia han surgido intentosde unificación regional, especialmente bajo la conducción de un gobiernoimperial (Roma antigua, Imperio Británico, Imperio Mongol, ImperioEspañol, el imperialismo estadounidense, etcétera). Sin embargo,reconoce que las fuerzas de la circulación no son suficientes para alcanzarla unificación del mundo, pues existe otra aún más poderosa quepromueve la partición del mundo, a la cual denomina iconografía.

Para ejemplificar el proceso anterior podemos tomar el proceso deunificación-partición del imperio español en América. La mayor partecontinente americano estuvo bajo dominio del imperio español. Dada lamagnitud del territorio colonial, España lo dividió en diferentes unidadesadministrativas para poder defenderlo y explotarlo. Al colapsar el impe-rio español, la mayoría de esas unidades se convirtieron en repúblicasque a su vez lucharon entre sí por ganar o conservar un territoriosupuestamente heredado. Cada antigua unidad administrativa reclamabaderechos territoriales, los cuales fueron satisfechos, en parte, a lo largodel siglo XIX mediante guerras y negociaciones diplomáticas, definiendoen gran medida el actual mapa político del continente31.

Podemos observar que a los deseos de unificación del imperioespañol se impuso la fragmentación de la colonia en una realidad

25

heterogénea y compleja de territorios provinciales (distribución de lapoblación, fragmentación y diversidad del medio físico, culturas,tradiciones, ideologías, instituciones políticas y económicas, etcétera).En cada uno de esos territorios, las élites criollas inventaron, recuperaron,desarrollaron y reprodujeron ideas, imágenes, percepciones ydescripciones de sus respectivos territorios, las mezclaron con interesese ideologías políticas y con ello construyeron su propio discurso dediferenciación e identidad territorial.

El concepto iconografía en Gottmann debe ser entendido comouna fuerza paralela —no necesariamente contraria— a la circulación,que estimula la fragmentación del mundo en diferentes formas decompartimentos, una de las cuales es el territorio. También es una fuerzaque mantiene unidos a los sujetos que conforman comunidades culturaleso políticas.

El uso de iconografías para el análisis de los fenómenos geográficosno es de ninguna manera un método de interpretación de los símbolossociales, sino que sirve para identificar a los símbolos que tienen unsignificado y un sentido territorial. Gottmann recurre a la siguientemetáfora para ejemplificar su definición del concepto. Se trata, dice, deun ícono que es el símbolo de una comunidad humana ligeramentediferente de los que caracterizan a otras comunidades; se trata de “unsímbolo adornado con cualquier joya o riquezas que la comunidad pudieraabastecer y que se vuelve el orgullo de todos los miembros de esacomunidad”.

Esas joyas y riquezas son ideas, objetos, emblemas y muchas otrascosas quetienen un alto valor simbólico para una comunidad. No se tratanecesariamente de elementos identificados con la civilización o la cultura,pues para Gottmann estos conceptos tienen una definición muy generaly, por lo tanto, son imprecisos para identificar identidades sociales. Porel contrario, el concepto iconografía tiene un contenido específico, nocomo una mera suma de símbolos, sino como elementos histórico-socialesque tienen una gran influencia en la percepción y concepción de losespacios humanos.

En Gottmann, el concepto iconografía está presente en la raíz de ladiversidad cultural del mundo. En este contexto, el concepto iconografíade Gottmann se opone al concepto “patrón cultural” de Franz Boas —

26

sobre el cual se apoya la definición de fronteras culturales en los estudiosantropológicos de las fronteras— y al concepto histórico “civilización”de Arnold Toynbee —según el cual, el territorio y sus fronteras dependendel grado de desarrollo civilizatorio de las sociedades.

Los conceptos patrón cultural y civilización han sido consideradospor sus creadores como la base sobre la cual fueron construidos losterritorios y, en consecuencia, sirven para definir la característica princi-pal de las fronteras: son espacios de transición entre culturas ocivilizaciones. Para Gottmann, las fronteras sólo pueden ser explicadasen el marco de una geografía del poder, entre otras cosas porque loselementos simbólicos incluidos en una civilización y una cultura sondefinidos, reproducidos y defendidos por las instituciones de poder deuna comunidad.

Por su parte, el concepto iconografía, como bien lo explica elgeógrafo brasileño, Marcio Antonio Cataia, es una acción de autodefensa,una política de valor simbólico establecida en cada lugar, que juega elpapel de cimiento entre miembros de una comunidad atada a unterritorio32. Las iconografías estimulan la circulación al interior de unterritorio, pero la obstaculizan hacia el exterior. Cuando una comunidadlocal considera que los beneficios obtenidos por la circulación no le sonfavorables, entonces reclama la secesión del territorio que habita. Esteejemplo nos permite comprender el concepto iconografía introduce lavariable cultural en el análisis de las fronteras desde una perspectiva dela geografía del poder.

La relación entre iconografías y partición de los espacios humanosse manifiesta de tres formas. Primero las iconografías hacen posible larelación triangular entre individuos, Estado y espacio humano; relaciónque conduce a la emergencia del territorio. El territorio refuerza losvínculos entre los individuos miembros de una sociedad política y sevuelve parte de sus iconografías. George Prevelakis precisa que “lasiconografías no están hechas solamente de representaciones territoriales,aunque la mayoría de sus elementos tienen una relación con laterritorialidad, real, imaginada o soñada”33. Religión, lenguaje, historia,tabúes, etcétera, son las iconografías integradas y movilizadas en laconstrucción de un discurso socio-territorial.

Segundo, las iconografías son un elemento muy importante para

27

la identificación de los territorios por parte de las comunidades nacionalesque los habitan. La identificación de los territorios nacionales ha sidorealizada mediante mapas. Efectivamente, en los últimos dos siglos, lacartografía política ha utilizado la iconografía de la nación para reforzarla idea del territorio como el “cuerpo de la patria”, una práctica muycomún en el proceso de partición de América durante los siglos XIX yXX. En los siglos previos al XIX, independientemente del atraso técnicoen la cartografía, los mapas coloniales no describían con exactitud lasdivisiones de las unidades geográfico-administrativas, sino que eransimplemente la representación imaginada del espacio bajo dominioefectivo del monarca. El mapa, explica Alan K. Henrikson, posee unalto valor iconográfico, ya que representa simbólicamente las jerarquíasde poder en los espacios geográficos34.

Tercero, en las iconografías descansa la interpretación, en términosculturales, de la situación geopolítica del mundo en los diferentes períodosde la historia35. Los sistemas geopolíticos están fundados en iconografías,sin las cuales podrían derrumbarse ante las fuerza de circulación. Lasecesión y fragmentación territorial se explica precisamente por laconfrontación y divorcio entre iconografías locales y la debilidad de laiconografía nacional. Así pues, es a través de este concepto que puedendescubrirse las fallas de la circulación en la unificación del mundo, ypermite explicar por qué las comunidades locales se encuentran atadasal territorio y desarrollan diferentes estrategias contra las fuerzas decirculación que afectan sus identidades, incluidas la identidad con elespacio en donde viven.

Además de esas tres formas que las vinculan con la partición delos espacios humanos, las iconografías se expresan geográficamente endiferentes niveles: parten de lo local y van subiendo a lo regional,nacional, regional internacional y global. En esta dimensión, lasiconografías se observan más dinámicas y cambian al ritmo de lastransformaciones sociales.

En lo local, las iconografías son una especie de “pegamento” quemantiene unidos a los miembros de una comunidad cultural con el fin demoldear ideológicamente a una comunidad política. Además del pasadohistórico, el medio ambiente local y creencias sociales y cosmogonía,las iconografías están integradas de cosas materiales e inmateriales, y su

28

importancia depende del valor simbólico que les otorguen los grupossociales. Las cosas materiales se refieren a los paisajes sociales, losobjetos para ritos religiosos, la comida, los utensilios de trabajo, lavestimenta, entre otros; en tanto que las inmateriales tienen que ver conlas ideas, ideologías, costumbres, mitos, valores sociales, etcétera. Lacombinación infinita de estos elementos produce no una, sino muchasiconografías, aunque es sólo una es la que enraíza en cada grupo socialespecífico y la reclama como parte de su identidad. La categoría de análisisidentidad es fundamental para entender el concepto iconografía, puessirve para explicar cómo son transformadas las mentalidades de lossujetos para convertirlos en ciudadanos de determinada entidad política.

En el ámbito nacional, las iconografías se manifiestan en la esferadel poder del Estado. En este caso se conforman de símbolos de tresclases diferentes: valores sociales, acontecimientos históricos que fuerondefinitivos en la construcción de cada Estado, y la idea de organizaciónsocial. Los Estados modernos, señala Gottmann, se declaran modelospuros, casi perfectos, de identidad nacional; procuran la estabilidad enel juego de las iconografías locales evitando que alguna de estas rompacon cualquiera de los tres símbolos nacionales mencionados.36

Finalmente, las iconografías globales estarían expresadas poraquellos símbolos que se expresan en términos de cosmografías, segúnel concepto de Johan Galtung.37 La más poderosa de estas iconografíasglobales es la llamada “civilización occidental”, la cual no sólo tieneque ver con simples expresiones culturales y de concepción del universo(ciencia), sino también cómo se divide el mundo en términos geopolíticosy geoeconómicos, y el reparto los espacios humanos entre las élites delpoder mundial.38 En el caso de América Latina lo podemos ejemplificarcon la Doctrina Monroe, que más allá de una simple proclama de políticainternacional de Estados Unidos, es la identificación de un espacio delplaneta (hemisferio occidental) bajo el dominio económico y político deuna potencia y en donde debe imperar la forma de organización socialdel modelo liberal (liberalismo político y liberalismo económico).

La manifestación de esas tres dimensiones geográficas no significaque las iconografías sean estables y duraderas, por el contrario, paraGottmann la estabilidad de las identidades no es permanente, comotampoco es homogénea la actitud social hacia el cambio. Asimismo,

29

iconografías de distintas dimensiones pueden coexistir localmente y otrasveces chocar entre sí. También puede ocurrir que una iconografía localentre en contradicción con otra exterior, denominada iconografía impe-rial.

Todas las combinaciones posibles coexistencia de iconografías danpor resultado un sistema amplio y diverso de interacción de iconografías,expresado en diferentes dimensiones espaciales. Conflictos o alianzasde iconografías han guiado la historia de amplias regiones del mundo –el Caribe es un excelente ejemplo de ello. En los dos últimos siglos, sinembargo, en Occidente toda esa interacción entre iconografías ha sidosintetizada en una sola, e impuesta sobre todos los individuos que habitanel territorio bajo dominio de un Estado: la iconografía de la nación.

Para ejemplificar un sistema de interacción de iconografías endimensiones geográficas distintas podemos utilizar a la Comunidad deAmérica del Norte. En este caso se observa la manipulación de losgobiernos de Canadá, Estados Unidos y México en favor de la iconografíadenominada “América del Norte”, materializada en la Alianza para laProsperidad de América del Norte. Con esta manipulación a través delos medios de comunicación se persigue reforzar las identidades de ciertosgrupos sociales (empresarios), los cuales eventualmente serán lospromotores del proceso de integración económica y política regional.La estrategia de los tres gobiernos y sus grupos de apoyo es desvinculardel proceso de integración a los grupos inconformes; particularmente delos movimientos y organizaciones sociales que protestan por los efectosnegativos en la reorganización de sus territorios, y adoptan una posicióncrítica desde la identidad local. Por lo tanto, el éxito de la iconografía“América del Norte” depende del control de los grupos disidentes, ydel grado de aceptación y adhesión del resto de los miembros de lascomunidades locales a las ideologías y valores políticos inherentes a laiconografía de la “comunidad” regional.

De regreso al eje del tema, las iconografías son muy importantespara las sociedades modernas por diferentes motivos. Sin embargo, noestá muy clara su efectividad para alcanzar objetivos políticos, ni tampocosu “razón de ser” para determinadas políticas de gobierno. Se podríasuponer que las iconografías son muy útiles para garantizar la estabilidadpolítica de los gobiernos, pues aparentemente los ciudadanos estarían

30

listos y dispuestos al sacrificio para “defender a la patria” o a lasinstituciones ante los ataques de enemigos internos o externos. La realidades distinta, pues existen casos en la historia, particularmente en AméricaLatina, en los que se confirma que el uso de iconografías con finespolítico-militares ha traído consecuencias inesperadas, inclusocontraproducentes; recordemos la guerra de las Malvinas.

Otra forma de utilizar a las iconografías con fines políticos es elaislamiento de una comunidad nacional. Esta práctica ha sido realizadapor sociedades antiguas como Japón (siglos XVII al XIX) y China, yrecientemente países como Albania y Afganistán; en América Latina elcaso más representativo ocurrió en el Paraguay a mediados del sigloXIX. En todos estos casos, el aislamiento endureció las iconografíascreadas y reproducidas desde el Estado.

Asimismo, los gobiernos tienden a recurrir a símbolos negativospara explicar ciertos fenómenos sociales y justificar acciones políticas.Las sociedades, al igual que los individuos, tienen diferentes capacidadespara adaptarse a los cambios, aunque algunas estén más amenazadasque otras. Sin embargo, ninguna sociedad puede adaptarse a la circulaciónplena, en la misma medida en que ninguna persona es capaz de reinventarconstantemente su estilo de vida. Por ejemplo, aún hoy las sociedadesconsideradas más “abiertas” de Occidente sufren el estrés de lainmigración y tienden a restringir el movimiento de personas a través desus fronteras, generando diferentes tipos de discursos para justificarlo,desde posturas económicas hasta de extremismo racial.

Así pues, los gobiernos tienden a fortalecer simultáneamente lasiconografías locales y determinadas iconografías regionales. Esta políticatiene un impacto profundo en el territorio y en la territorialidad, lo cualse manifiesta en el endurecimiento de la partición política y elestablecimiento de fronteras vigiladas y permanentemente protegidas.

LA RELACIÓN CIRCULACIÓN-ICONOGRAFÍAS

De acuerdo con Jean Gottmann, las iconografías sonpermanentemente reemplazadas o reinventadas a causa de los retos queles impone la circulación de personas, bienes e ideas. Por otra parte, sonun mecanismo ideológico de defensa utilizado para evitar o reducir los

31

costos generados por los impactos negativos de la circulación sobre elEstado y sus instituciones. La circulación produce cambios en los espacioshumanos. El comercio modifica los términos de la competencia en unaeconomía regional cuando productos nuevos y baratos son introducidosal mercado nacional, afectando la economía de los productores locales.Nuevas ideas penetran en las sociedades a través de la circulación yproduce cambios en los comportamientos de las poblaciones. De estamanera, para las mentes conservadoras, el cambio es equivalente acorrupción. Para evitar lo anterior, lo conveniente es minimizar lacirculación recurriendo a las iconografías.

Así pues, la circulación es regulada por las iconografías. Lapartición es un evento político, producto de la interacción entreiconografías, locales y regionales, y la fuerza de circulación entrelocalidades específicas. Es por esta razón que la partición es dinámica.Los límites territoriales cambian a pesar de los esfuerzos por reduciresos cambios al mínimo y de los deseos por preservar el status quo.Aunque la figura de los territorios permanece inmóvil durante algúntiempo y los gobiernos expresan posturas favorables a la circulación, lapartición del mundo continúa desarrollándose de la manera más sutil.Aún en Europa, en donde las fronteras de los países de la Unión parecendebilitarse y dirigirsea su desaparición, las fronteras exteriores existenen lo que se conoce como en “centro europeo” y la “periferia europea”.En las fronteras externas (límites y zonas de frontera) de la Unión Europeaaún existen mecanismos de control y vigilancia rigurosa a la circulación,especialmente con Rusia y África. En este sentido, utilizando palabrasde Gottmann: la intangibilidad de las fronteras no limita ni frena lapartición de los espacios humanos.

Esas dos fuerzas, la circulación y las iconografías, no siemprefuncionan de manera coordinada en una misma dirección, fragmentar ounificarun espacio geográfico. En ocasiones la circulación es capturadapor alguna iconografía y sirve a los propósitos de cierto grupo social.Otras veces, la circulación inventa sus propias iconografías. De estamanera, por ejemplo, el discurso de la integración latinoamericana estábasado en el reconocimiento a las diferencias e identidades subregionalesy el respeto a la autodeterminación. Reconoce también, la integracióneconómica y la separación política; la creación de áreas comercio

32

subregionales, separadas de las economías de otras subregiones. Laidentidad latinoamericana ha creado su propia iconografía, el idealbolivariano, sin embargo no tan efectivo ni tan fuerte como la iconografíaimperial, la unión hemisférica (panamericanismo) liderada por EstadosUnidos.

La iconografía de la integración latinoamericana dio lugar a nuevasregiones como el Mercosur. Esto confirma que la fuerza de lasiconografías no siempre obstruye a la fuerza de circulación, por elcontrario, la redistribuye y la regula. La relación dialéctica entre lasfuerzas de circulación y las fuerzas de las iconografías facilita interpretarla evolución de la geopolítica del mundo en diferentes lugares ymomentos. También nos permite observar la historia dinámica de lasfronteras, los cambios constantes en el mapa político del mundo. El papelde la circulación es tan importante en la partición política del mundo,como es el de las iconografías.

LAS FRONTERAS Y LOS LÍMITES TERRITORIALES ENEL PARADIGMA DE LA PARTICIÓN DEL MUNDO

El fin del sistema mundial bipolar llevó consigo la crisis de losparadigmas de análisis de las regiones humanas. Los enfoqueseconomicistas, tanto marxista como liberal, probaron su ineficacia paraexplicar las guerras y conflictos políticos por reclamos territoriales. Lasinterpretaciones más extendidas fueron desarrolladas por los enfoquespolítico-jurídicos, en los que la diplomacia, el Derecho Internacional yla política internacional determinaron la delimitación territorial delmundo.

A diferencia de los enfoques anteriores, lateoría de la partición delos espacios humanos ofrece una propuesta de interpretación de lasfronteras y los límites territoriales más amplia, pues no sólo incluye vari-ables políticas y económicas, sino que además agrega la variable cul-tural. Asimismo, se distingue de los enfoque culturalistas y antropológicosen que evita usar conceptos ambiguos como cultura y civilización, loscuales reducen la percepción las fronteras a meras zonas contacto.Lasobre-dimensión cultural de las fronteras cae frecuentemente en el

33

exceso de negar o augurar su futura desaparición como lo sostienen lasinterpretaciones economistas.

Por lo tanto, la teoría de la partición de los espacios humanos esuna visión holística de las fronteras, pues observa el proceso deconstrucción de estos espacios desde las perspectivas económica,jurídico-política y cultural. En este sentido coincide con la interpretaciónde la historia total de Annales.

Para Gottmann, el límite territorial es jurídicamente una línea-límite, y la frontera es una zona de interacción humana39. Sin embargo,ambos son espacios periféricos, cuyo origen es resultado de la particiónde la geografía del planeta y su primera función es la diferenciación delos compartimentos en los que ha sido dividido el mundo, incluidos losterritorios. En el proceso de partición, la frontera y el límite son losinstrumentos utilizados por los Estados para dividir, marcar y diferenciarsus territorios. Las distintas sociedades históricas han definido lasfunciones de sus frontera, desde los limes romanos, los pagus de losturcos, la muralla de los chinos, etcétera, hasta las actuales fronterasgeopolíticas. Cada una de estas concepciones de la frontera estárelacionada, invariablemente, al equilibrio de fuerzas entre la circulacióny las iconografías.40

Las distintas concepciones de frontera que han existido en la historiase derivan de los “sistemas de compartimentos”. Como mencionamosanteriormente, un sistema de compartimentos es la división del territorioen circunscripciones —no necesariamente coincidentes con el territorioestatal— que cumplen fines específicos (áreas administrativas,económicas, judiciales, militares, religiosas, etcétera). La definición yextensión de esos compartimentos han variado con el tiempo en lasdistintas sociedades. En consecuencia, los límites y fronteras han sidoreubicados, borrados o redibujados de acuerdo con los cambios definidospor el grupo en el poder en el sistema de compartimentos.

Poner atención en el sistema de compartimentos nos permiteanalizar el enramado de límites y fronteras existentes en un territorio,además de que facilita distinguir a las fronteras en su distintasdimensiones: “fronteras de grandes “bloques de países”, fronteras deimperios, de los Estado nacionales, en regiones al interior de los Estados,de en aglomeraciones urbanas y distritos rurales, etcétera. Como bien

34

observa Gottmann, nuestro mundo está infinitamente “compartimentado”y marcado por límites y fronteras.41

Concentrémonos en el sistema de compartimento de los territoriosnacionales. Al respecto, Gottmann señala que la partición de los espacioshumanos en territorios ha fluido a lo largo de la historia. En este proceso,la política del Estado ha sido necesaria para mantener la unidad delterritorio, especialmente a través de medidas que refuerzan ladiferenciación respecto de los otros territorios que lo rodean. El principiode diferenciación del territorio es uno de los elementos que permitecomprender las relaciones entre los espacios humanos y la organizaciónque estos soportan; es claramente observable en el campo del DerechoInternacional, donde la historia de la reglamentación internacional sobreusos y soberanía y apropiación de los espacios terrestres, marítimos,submarinos y aéreos se ha realizado con base en la diferenciación.42

Ahora bien, las fronteras y los límites sirven para marcar ladiferenciación de los territorios, no sólo mediante medidas políticas, sinosobre todo en las iconografías de las comunidades nacionales. ParaGottmann, las formas más importantes de fronteras están en las mentesde las comunidades nacionales y no en el territorio mismo.43 En estesentido, la idea de fronteras seguras, porosas, peligrosas, móviles,cerradas, abiertas, etcétera, no son atributos inherentes a las fronteras,sino cualidades asignadas por las comunidades culturales que ahí viven.

El proceso de partición del planeta en compartimentos territorialeses el que explica el origen permanencia y cambio de los límites y lasfronteras.44 Los límites y las fronteras no sólo sirven para que un territoriosea diferenciado de otros circundantes, también para marcar la divisióny organización de este. En sentido estricto, las fronteras y los límites noaparecen por la búsqueda de la diferenciación del territorio, sino comoconsecuencia de la partición espacial. Esta concepción nos permitecomprender por qué la delimitación territorial es un problema políticoentre Estados vecinos.

En cuanto a las fronteras en su dimensión política, Gottmannexplica este asunto con base en el modelo centro periferia. Este modeloestá basado en la división territorial establecida por los Estados nacionalescentralistas, para los cuales la ciudad capital es el corazón político-económico-administrativo del país. El Estado centralista fue impuesto

35

en la división territorial de América Latina durante el siglo XIX.45

Según dicho el modelo, las zonas de frontera están subordinadasal centro, en términos políticos y económicos. Las fronteras recibendeterminadas cualidades estratégicas y de seguridad, tanto militar comocomercial, por el gobierno central. En ciertos casos, estos espacios llegana dominar la estructura de poder nacional, en el sentido de que en ellasdescansan supuestas situaciones que amenazan al conjunto del Estado,principalmente a su elemento territorial.46

En Gottmann, el modelo centro periferia es utilizado de dos maneraspara estudiar a las fronteras. La primera, para explicar la relación entreespacios simbólicos diferenciados, aunque interdependientes. En esarelación, la frontera es representada como zona periférica en donde ocurreel conflicto, los desencuentros sociales, la aventura, la descarga deagresividad. La frontera circunda al territorio nacional, el cual a su vezrepresenta la seguridad, el reposo, un ambiente propicio para laproducción económica, la continuidad de valores, es un espacio sagrado.47

La segunda manera en que Gottmann utiliza el modelo es paradescubrir el patrón de relación sistémica entre el centro nacional y lasfronteras. En este caso, el centro nacional y la frontera son dos espaciosdiferenciados en términos políticos, y la relación que mantienen es dedominio (centro) y subordinación (periferia).48

Cabe observar la similitud que guarda el modelo centro-periferiade Gottmann con el modelo de la polaridad centro-periferia en el sistemamundo capitalista de Immanuel Wallerstein. En los estudios de ésteúltimo, se explican la emergencia del sistema mundo modernocontrastando las ventajas relativas de los imperios políticos (un sistemade control centralizado del sistema, la propensión del Estado a cerrar ydefender sus fronteras, una burocracia jerárquica y un aparato de controlde las fronteras) con el sistema económico capitalista (diferenciación delos espacios económicos del planeta en centro, semi-periferia, periferia).

En todo caso, el modelo centro-periferia que utiliza Gottmannconsidera a estos espacios como un sistema funcional a la vez que unsistema simbólico. El modelo esquematiza la relación entre el centro-núcleo del poder nacional (capital) y la periferia fronteriza, resaltando lainestabilidad en dicha relación. No se trata de una relación geométrica,expresada en distancias y ubicación, sino en las políticas de organización

36

y reorganización del espacio geográfico, cuyo fin es conservar la relaciónde domino-subordinación y corregir los factores que provocan lainestabilidad social en la periferia.

Al respecto, Owen Lattimore señala que cuando una regiónperiférica protesta al centro su situación de subordinación, estaríabuscando compartir las funciones de centralidad o reemplazar laestructura existente para convertirse, a su vez, en centro con su propiaperiferia;49 esto último es una secesión territorial, en la que ocurre unaruptura entre élites de poder local. Lattimore explica este fenómeno conevidencia empírica para Asia Central, aunque también puede hacersecon los ejemplos de las independencias de las colonias españolas enAmérica y posterior fragmentación en territorios nacionales.

En algunos estudios de frontera (Friedrich Ratzel) se acepta comoun hecho dado que el surgimiento de las sociedades políticas ocurrió enun área central y posteriormente fue irradiada hacia las periferias, espaciosen donde el desarrollo cultural estaba más retardado. En otros estudiosse establece que en la periferia fue donde se cultivaron aquellos elementosdistintivos de ciertas sociedades nacionales (Frederick Turner yseguidores).

La concepción espacial que se observa en estas interpretacionesde la frontera es de una relación geométrica simple entre el centro y laperiferia, pues se presupone una situación de equilibrio en la distribucióngeográfica de factores de circulación y de estabilidad en el proceso deconstrucción de la identidad nacional. Asimismo, en esa relacióngeométrica, la frontera es un espacio de avanzada de los factoresnacionales de circulación y de la identidad nacional.50

A diferencia de las interpretaciones anteriores, en Gottmann, asícomo en Owen Lattimore, el punto de partida para el análisis de lasfronteras debe ser el proceso de organización y reorganización del centroy la periferia, y los cambios que ese proceso genera en las relaciones dedominio subordinación entre tales polos espaciales. Sólo mediante unanálisis de este tipo es posible descubrir cómo determinada organizaciónsocial permitió o impidió el desarrollo de innovaciones en la periferiafronteriza.

Los grupos sociales construyen fronteras (lingüísticas, religiosas,étnicas, etcétera) entre ellos y con el exterior a partir de imágenes, ideas,

37

valores, actitudes, percepciones y expectativas.51 En este esquema, elcentro es el lugar sagrado que define la identidad y la seguridad de unacomunidad, mientras que la frontera representa al límite exterior de laperiferia, es un lugar que marca el inicio de la diferencia del grupo so-cial, a la vez que representa lo desconocido, lo peligroso y salvaje; es unlugar frecuentemente deshabitado. Esta percepción de la frontera estábasada en elementos psicológicos y socioculturales, los mismos que hantrascendido en nuevos enfoques de las fronteras.

Precisamente el debate sobre las percepciones psicológicas ysocioculturales de las fronteras podemos encontrarlo en GeografíaPolítica, donde ciertos autores consideran a la frontera como una líneade separación entre comunidades políticas hostiles (Ratzel, RobertHoldich) (función negativa), y los que la definen como zona de encuentro,e intercambio (interpenetración) entre comunidades vecinas (funciónpositiva) (Camille Vallaux, L. W. Lyde).

La aproximación que propone Gottmann no considera las funcionesde las fronteras en negativas o positiva. Para él, fronteras forman partede un sistema espacial complejo, el cual abarca todos los niveles delsistema social.52 El carácter funcional de las fronteras tiene que ver conlos atributos que las instituciones de poder y las comunidades culturalesle asignan a estaos espacios periféricos. Es debido a estos atributossimbólicos que las instituciones conciben y justifican su comportamientoy actitudes respecto a determinados fenómenos que ocurren en los límitesde la periferia. La frontera está caracterizada por la representaciónsimbólica de la diferenciación; es un espacio geográfico que corta, di-vide, separa y diferencia grupos sociales.

Para finalizar, el modelo centro-periferia permite expresar dos ideasfundamentales sobre las fronteras. Primero, la frontera se convierte ensímbolo de la organización del espacio alrededor del centro-núcleo y delconjunto del espacio habitado por la nación (el territorio). Segundo, eneste simbolismo de organización del espacio, el Estado intenta establecerun orden entre la oposición entre capital central y frontera (periferiasubordinada), lo cual sugiere que probabilidad de confrontación entreambos espacios. Es en esta confrontación en donde, eventualmente,germinaría un nuevo proceso de partición de los espacios humanos.53

38

CONCLUSIONES

La teoría de las particiones de los espacios humanos es un enfoquea las relaciones espacio sociedad que influyen en el establecimiento yorganización de los límites territoriales y las fronteras. En este puntoradica la principal diferencia de otras teorías de fronteras, especialmentede las visiones deterministas (histórico-diplomáticas, geopolíticas,culturalistas) que han dominado en este campo.

El espacio humano es el espacio geográfico ocupado y transformadopor las comunidades humanas. Está subdividido en diferentescompartimentos, uno de los cuales es el territorio.Todos esoscompartimentos han sido organizados, diferenciados y dominados porgrupos sociales distintos. Tales grupos crean comunidades políticas, lasque a su vez presentan modelos de organización política y económicadiferentes. Son precisamente las comunidades políticas las encargadasde dirigir el proceso de partición del mundo.

El concepto “partición” se entiende como el proceso de división,organización y diferenciación de los espacios geográficos accesibles alos grupos sociales. La partición ocurre cuando las áreas del planeta sonocupadas y transformadas por una comunidad humana, lo cual a su vezsólo es posible si esa comunidad posee cierta capacidad técnica y mate-rial.

El fragmento del planeta que ha sido dividido, organizado ydiferenciado por los Estados es el territorio, aunque existen otros tiposde compartimentos definidos por los diferentes grupos sociales. Paracada uno de esos compartimentos existen definiciones precisas para lafrontera y los límites que los circundan. El proceso histórico de particióndel mundo es la clave para entender las transformaciones en la concepciónde las fronteras, y también para explicar porque aparecen, cambian y sedesvanecen.

La partición es de los espacios humanos es económica, social, cul-tural y política. Una de sus formas, la partición política, es la que con-duce a la instalación de límites territoriales, e influye en las relacionesinternacionales entre los Estados. En este sentido, la partición política

39

es un concepto geopolítico de gran trascendencia en las relaciones depoder mundial.

La partición de los espacios humanos es conducida por dos fuerzas,a veces complementarias, aunque casi siempre antagónicas. Por ejemplo,cuando la circulación triunfa y un nuevo espacio regional se unifica, losgrupos de poder inventan un discurso de contenido geográfico basadoen iconografías. Ese discurso debe ser de tal fuerza simbólica que impidao nulifiqueal reforzamiento de las iconografías que se oponen a launificación. .

La relación entre circulación e iconografías siempre está presenteen el proceso de partición de los espacios humanos. La circulación generacambios en las comunidades locales expuestas al flujo de ideas,mercancías y personas. Ante el temor de los efectos desconocido de esoscambios, los gobiernos recurren a las iconografías para regular o redirigira la circulación.

La relación dialéctica entre las fuerzas de circulación y las fuerzasde las iconografías facilita el estudio de la partición del mundo, en diferenteslugares y momentos. También permite analizar la historia dinámica de lasfronteras y los cambios constantes en el mapa político del mundo definidopor los límites territoriales. El papel de la circulación es tan importante en lapartición política del mundo, como es el de las iconografías.

La teoría de la partición de los espacios humanos es una propuesta deinterpretación de las fronteras y los límites territoriales holística, pues no sóloincluye variables políticas y económicas, sino que además agrega la variablesocio-cultural con el concepto de iconografía.

NOTAS EXPLICATIVAS

1Dr. en Historia Moderna. Profesor del Departamento de Estudios Internacionales de la Universidad deQuintana Roo, México. E-mail: [email protected]ún datos de Luca Muscará (“Complete”, 2003), Jean Gottmann escribió cerca de 400 títulos, entreartículos, capítulos de libro y libros completos.3Luca Muscarà es el traductor de Gottmann al italiano. Véase de este autor: “Gottmann”, 2005;”Complete”,2003; Strada, 2005.4Gottmann, “French”, 1946, p.80.5Gottmann, “Background”, 1942, p. 202.6Gottmann, “French”, 1946, p.86.

40

7Gottmann, “Background”, 1942, p. 206.8Gottmann, “Geography”, 1951, p. 171; Chicarro, 1987, p. 47.9Gottmann, “French”, 1946, p.87; Gottmann, “Méthode”, 1947, p. 8.10Gottmann, “French”, 1946, p.87.11Galtung, Investigaciones, 1995, p. 3412Sobre el método causal en el análisis de la geografía humana véase, Gottmann, “Méthode”, 1947.13Gottmann, “Geography”, 1951, p. 154; Gottmann, “Political”, 1952, p. 153.14Gottmann, Politique, 1952, p. 4; Gottmann, “Political”, 1952, p. 154.15Gottmann, “Political”, 1952, p. 153.16Gottmann, “Political”, 1952, p. 512-13.17Gottmann, “Political”, 1952, p. 514.18Gottmann, Politique, 1952, p. 5.19Gottmann, Politique, 1952, p. 70.20Gottmann, Politique, 1952, p. 5.21Gottmann, “Geography”, 1951, p. 163.22Gottman In, “Doctrines”, 1947, pp. 17-18.23Strange, Retirada, 2002.24Gottmann, Politique, 1952, p. 4-5.25Gottmann, “Geography”, 1951, p. 156.26Gottmann, Politique, 1952, p. 215.27Gottmann, Politique , 1952, p. 49;

Gottmann, “Méthode”, 1947, p. 6-7.28Gottmann, Politique, 1952, p. 215.29Gottmann, Politique, 1952, p. 215.30El concepto iconografía proviene de historia del arte, donde tiene dos acepciones: como símbolos,su significado y su sentido histórico social; y como la búsqueda y análisis de ideas implícitas en untrabajo de arte, colocando éste en su contexto histórico

– para esta definición se utiliza también el término iconología. El concepto fue acuñado hacia finalesdel siglo XVI por Cesare Ripa en Iconología; un manual que ha servido de guía para interpretar lossímbolos y alegorías de la cristiandad, y de las culturas griega, romana y renacentista. Fue recuperadopor el historiador del arte Abraham Moritz Warburg (conocido también como Aby Warburg, 1866-1929) en su tesis sobre “transmisión de la iconografía antigua a la cultura europea moderna”. La ideade las iconografías de Gottmann está influenciada, sin duda, por las teorías de Warburg. Sobre el origendel concepto. Véase Cosgrove y Daniels, Iconography, 1989.31García, “Estudio”, 2003, p. 73.32Cataia, “Geopolitica”, 2006, p. 50.33Prevelakis, “Jean”, 2002, p. 7.34Henrikson, “America’s”, 1980, p. 75.35Muscarà, “On Gottmann”, 2005, p. 1.36Muscará, “From Gottmann”, 2003, p. 61.37Galtung, Peace, 1996; Galtung, Investigaciones, 1995.38Muscará, “From Gottmann”, 2003, p. 61.39Gottmann, Politique, 1952, p. 12240Gottmann, Politique Social Sciences, realizado en el Institute for the Advancement of the Social

41

Sciences, Universidad de Boston - diciembre 6-7, 2002.STRASSOLDO, Raimondo. Centre-Peripheryand System-Boundary: Culturologycal Perspectives, In Jean Gottmann (editor) Centre andPeriphery.Spatial variations in politics, Beverly Hills.: Cal, Sage Publications, 1980, 1952, p. 5.41Gottmann, Politique, 1952, p. 5.42Gottmann, Politique, 1952, p. 6.43Gottmann, Politique, 1952, p. 224.44Gottmann, “Geography”, 1951, p. 158-59.45Jean-Claude Thoening distingue dos modelos de división político administrativa del territorio: elcentralista, influenciado por el derecho romano; y el federalista, en el que las relaciones espaciales sonde carácter intergubernamental.

Véase, Thoening, “Territorial”, 2006, p. 281.46Gottmann, “Centre”, 1980, p. 16.47Audrey, Territorial, 1969. Galtung, Investigaciones, 1995.48Strassoldo, “Centre”, 1980, p. 27-28.49Lattimore, “Periphery”, 1980.50Gottmann, “Organizing”, 1980, p. 217.51Strassoldo, “Centre”, 1980, p. 45.52Strassoldo, “Centre”, 1980, p. 44-45.53Gottmann, “Centre”, 1980, p. 17, 20.

REFERÊNCIAS

AUDREY, Robert. The Territorial Imperative.A Personal Inquiry into the Animal Origins ofProperty and nations, New York: Kodansha America Inc, 1969.

CHICHARRO Fernández, E. Notas sobre la evolución del pensamiento geográfico, In: Analesde Geografía de la Universidad Complutense, 1987, num. 7.

COMPAGNA, Francesco; MUSCARA, Calogero. Regionalism and Social Change in Italy. In:Jean Gottmann (editor) Centre and Periphery.Spatial variations in politics, Beverly Hills, Cal,Sage Publications, 1980.

COSGROVE, Denis; DANIELS, Stephen. The Iconography of Landscape: Essays on theSymbolic Representations, design and Use of Past Environments, Cambridge, Mass., CambridgeUniversity Press, 1989.

GALTUNG, Johan. Investigaciones Teóricas. Sociedad y cultura contemporáneas, Madrid:Tecnos, 1995.

________________. Peace by Peaceful Means: Peace and Conflict, Development andCivilization, London: Sage, 1996.

GOTTMANN, Jean. The Background of Geopolitics, In Military Affaires, Vol. 6. Nº. 4, Societyfor Military History (Invierno), 1942.

_________________. French Geography in Wartime, In Geographical Review, Vol. 36, No. 1(enero), 1946.

_________________. De la méthode d’analyse en Géographie Humaine, en Annales de

42

Géographie, Vol. 56, Núm.301, 1947.

_________________. Doctrines géographiques en politique, In Mirkine-Guetzévitch, B. (editor)Les doctrine politiques modernes, New York, Brentano’s Inc, 1947.

_________________. Geography and International Relations, In World Politics, Vol. 3, No. 2(enero), 1951.

_________________. The Political Partitioning of Our World: An Attempt at Analysis, In WorldPolitics, Vol. 4, No. 4 (Julio), 1952.

_________________. La politique des États et leur géographie, Paris : Librairie Armand Colin,1952.

_________________. Megalopolis: The Urbanization of the Northeastern Seabord of the UnitedStates, New York: Twentieth Century Fund, 1961.

_________________. The significance of territory, Charlottesville, The University Press ofVirginia, 1973.

_________________. “Confronting Centre and Perifery”, In Jean Gottmann (editor) Centreand Periphery. Spatial variations in politics, Beverly Hills: Cal, Sage Publications, 1980.

_________________. Les frontièrs et les marches cloisonnement et dynamique du monde, InKishimoto, H. La Géographie et ses frontièrs. Une publication en mémoire de Prof. Dr. HansBoesch, Berne, Kümmerly-Frey, 1980.

_________________. Organizing and reorganizing the space, In Jean Gottmann (editor), Centreand Periphery.Spatial variations in politics, Beverly Hills: Cal, Sage Publications, 1980.

HENRIKSON, Alan K., America’s Changing Place in the World: From Periphery to Centre?,In Jean Gottmann (editor) Centre and Periphery. Spatial variations in politics, Beverly Hills,:Cal, Sage Publications, 1980.

HOFFMAN, George W. Variations in Centre-Periphery Relations in Southeast Europe, In JeanGottmann (editor) Centre and Periphery. Spatial variations in politics, Beverly Hills.: Cal, SagePublications, 1980.

MUSCARÁ, Calogero. From Gottmann to Gottmann: Testing a Geographical Theory, In Ekistics,Vol. 70, No. 418/419, enero-abril -2003.

MUSCARÀ, Luca, The complete bibliography of Jean Gottmann, In Ekistics, Vol. 70, Núms,418/419, enero-abril -2003.

_______________. A Gottmann Approach, ponenciapresentada en el Taller Internacional Culturesand Civilization for Human Development, Roma, Home of Geography Villa Celimontana,diciembre 12-14 - 2005.

_______________. La Strada di Gottmann. Trauniversalismi Della storia e perticolarismi Dellageografia, Roma: Nexa, 2005.

PREVELAKIS, George. Jean Gottmann’s relevance in today world, artículopresentado en TheEarhart Foundation Conference on the State of the

43

TEORIA DAS FRONTEIRAS E TOTALIDADE1

Eric Gustavo Cardin2

Existem múltiplas formas de viver a fronteira, a grande maioriadelas ocorre de maneira despercebida pelos próprios moradores dasregiões limítrofes. Habituados a cruzar as pontes, os rios e as ruas queseparam os diferentes países vizinhos do território brasileiro, a populaçãofronteiriça possui uma relação muito particular com a situação no qualse encontra. Diferente dos visitantes e turistas que pensam e guardam noimaginário o simbolismo de estarem em uma nação diferente da sua, osmoradores locais, das “raias” brasileiras, tem tais sensações maisnaturalizadas, inserindo as possibilidades fronteiriças cotidianamente emsuas experiências e, consequentemente, na organização das estratégiasnecessárias para o desenvolvimento de suas práticas sociais.

Isso não quer dizer que eles não sabem, não percebem ou nãoconsideram à existência de distinções políticas e jurídicas derivadas dasrespectivas configurações nacionais durante suas trajetórias de vidas enos seus modos de viver. Para o observador externo ou para o “nativo”,“a fronteira está lá” e “estando lá” ela se faz presente no estoque deconhecimento construído historicamente pelos habitantes das regiõesfronteiriças. Em outras palavras, ela é uma variável que se soma as demaisdimensões sociais que constituem o ser social. O resultado disso seapresenta de maneira aparentemente muito simples. A fronteiracorresponde a um elemento presente e constante na vida e nas estratégiasde sobrevivência desenvolvidas pelos sujeitos que vivem na e da fronteira.

Indo além de sacoleiros, laranjas, kileros, paseros, mulas e chiveros,colocando em um campo de espera os grupos criminosos que criamcomplexas redes no intuito de explorar e se beneficiar de maneira

44

sistemática dos antagonismos da fronteira, observa-se que esta éimportante, para não dizer determinante, para uma população que escolhee planeja todos os dias suas ações futuras no interior de um universocaracterizado por possibilidades fornecidas pelas diferenças existentesentre os países (GRIMSON, 2005). Pobres ou ricos, membros dediferentes grupos étnicos e religiosos, torcedores de diferentes times defutebol, sujeitos inseridos nas mais diferentes ocupações, mas, pormorarem em regiões fronteiriças, visualizam e utilizam a fronteira comoum elemento enriquecedor.

Esta afirmação não é restrita aos aspectos econômicos. Os ganhosem “atravessar a fronteira” não possuem apenas este aspecto, emboraestes possam ser determinantes. As vantagens econômicas de trabalharno Paraguai e com as mercadorias disponibilizadas em sua zona livre deimpostos são atrativas, como é abastecer o carro na Venezuela ou naArgentina. No entanto, também são significativas as experiênciasculturais, o lazer, a alimentação e as compras de bens ou de viveres parao consumo diário da casa. Para um morador das fronteiras com aArgentina ou o Uruguai, comprar roupas, cosméticos ou ir aosupermercado no país vizinho não é uma postura popularmentecriminalizada e, muito menos, de cunho exclusivamente econômico,embora juridicamente possam ser condenáveis.

O que dizer dos inúmeros interlocutores que trabalhavam nocircuito sacoleiro e narravam suas experiências de modo a valorizar aliberdade de estarem inseridas em um universo mais frouxo, sem horáriose com uma moral extremamente plástica ou de uma família detrabalhadores que mudam de atividade dentro do próprio circuito sacoleiropor motivos religiosos? Indo além, não foram uma ou duas conversasrealizadas onde os trabalhadores destacavam a alegria de estar notumultuado microcentro de Ciudad del Este, com todo caos aparente,mas, ao mesmo tempo, com um sentimento de pertencimento eintimidade. Os laranjas e sacoleiros sustentam e formatam a zona delivre comercio paraguaia, mas, ao mesmo tempo, são moldados pelasrelações estabelecidas em sua cotidianidade (CARDIN, 2011b).

Mais recentemente, em entrevistas realizadas com trabalhadoresenvolvidos com o contrabando de cigarros na proximidade de Terra Roxa/PR, esta situação descrita também foi observada. Entre as características

45

mais marcantes destacadas ao longo dos depoimentos encontram-se umconjunto de elementos vinculados à adrenalina de estar realizando taisatividades, que são constantemente vinculadas ao dinamismo e aoscilação do mercado, a relação com “as autoridades”, enfim, a umconjunto de situações que não são possíveis em ocupações comuns, comhorários pré-estabelecidos e rotinas bem definidas. Outra vez, comodestacamos em outro momento (CARDIN, 2011b), constata-se que otrabalho nas atividades oriundas das relações comerciais com o Paraguaiexige adaptação e flexibilidade a um conjunto de situações fluidas e,para os observadores externos, de aparência caótica.

No geral, são práticas sociais que vão lentamente se tornandotradicionais, enquadradas no interior de tantas outras que são feitas muitoantes das fronteiras serem demarcadas legalmente pelos EstadosNacionais. Embora os limites jurídicos entre os países se configuremcomo obstáculos para as normatizações econômicas e políticas de umpaís, que restringe sua intervenção ao seu território pré-determinado, acirculação de pessoas e capitais simplesmente tende a desconsiderar taisrestrições. Em um universo de pouco controle estatal, a fiscalização e arepressão das práticas populares fronteiriças tende a se fortalecer e a senaturalizar em tais ambientes, produzindo gradativamente uma supostacultura do contrabando (GODINHO, 2009).

Godinho (2009, p. 31) destaca que “em toda etnografia acerca defronteiras se encontram referências ao contrabando, já que as fronteirasdelimitadas como linhas a partir do século XIX, se destinam a obstar àpassagem de mercadorias duma entidade política para outra”. Nestesentido, são comuns as descrições dos roteiros, dos conflitos entrelegalidade e ilegalidade e também das experiências dos sujeitos inseridosnestes circuitos. “O contrabando integra um conjunto de atividadesquotidianas que geram solidariedade de grupo e cumplicidade colectivasque protegem face às ameaças exteriores (...). Mantendo um nível micro-social das relações localizadas, os habitantes da fronteira dispuseram deum recurso acrescido para conseguir vantagens na relação com os estadoscentrais” (GODINHO, 2009, p. 32).

Dentro de uma perspectiva semelhante, mas em outro contextoespacial e temporal, lembramos que o processo de povoamento do oesteparanaense foi promovido durante o século XIX por meio de empresas

46

argentinas que, aproveitando-se da falta de fiscalização e controle dogoverno paraguaio, brasileiro e também argentino, exploravam osrecursos naturais abundantes em toda região de fronteira, independentede sua margem e da nacionalidade da força de trabalho empregada(CATTA, 2002). Tais práticas, embora tenham sido interrompidas duranteo Estado Novo, deixou de herança caminhos e práticas mantidas até osdias atuais. Ao longo de parte significativa do século XX, as “picadas” eos portos construídos para o transporte de madeira e erva mate começarama ser utilizados para a passagem do café (LEMES, 2012) e maisrecentemente uma estrutura similar é utilizada no contrabando de drogas,armas e mercadorias compradas no Paraguai (BATTISTI, 2009;CARDIN, 2011a).

Em resumo, aquilo que entendemos por contrabando constitui-secomo um elemento histórico e determinante na formação de uma amplaregião, estando presente e arraigado nos hábitos locais e nos modos deviver, permitindo o nascimento de inúmeras investigações sobre a possívelexistência de uma cultura de contrabando na faixa de fronteira do Brasilcom os demais países da América do Sul. Contudo, acreditamos que oproblema seja um pouco mais amplo e complexo, exigindo odesenvolvimento de um olhar teórico e metodológico especifico sobretais conjunturas. Neste sentido, o objetivo deste texto é propor umaabordagem ou uma leitura para as regiões de fronteira que considere suahistoricidade e totalidade, contribuindo para a construção de uma matrizcapaz de iluminar a realidade e as suas especificidades regionais.

As discussões que aqui apresentamos não são conclusões de umestudo empírico em específico, mas reflexões oriundas de uma relaçãoprodutiva com o campo de pesquisa, mais especificamente com a fronteirado Brasil com o Paraguai. O intuito é lançar algumas ideias iniciais, queainda encontra-se em processo de amadurecimento em espaços deconstrução coletiva, para fundamentar conceitos e abordagens que sejammais próximos da realidade social que investigamos há quase uma década.Durante todo este período, uma conclusão é possível de ser feita, aspráticas sociais dos moradores das regiões fronteiriças são sustentadaspelo sentido atribuído ao outro lado da fronteira e isso, por mais simplesque pareça, tem um significado que é mais abrangente do que as restriçõesjurídicas das ações e dos limites em tais regiões.

47

Sem embargo, considero que o uso do termo cultura de contrabandopode ser inadequado ou incompleto dependendo do olhar atribuído àfronteira ou as fronteiras. Como afirmamos brevemente, o fluxotransfronteiriço ocorria antes da existência do controle legal dos limitese também durante o período em que a lei não é devidamente aplicada,configurando-se como uma prática tradicional. Sendo o termocontrabando de origem essencialmente jurídica, ele sobrepõe práticasanteriormente realizadas e, muitas vezes, as criminaliza. Neste ponto,caberia aqui todo um debate referente aos processos de normatizaçãodos modos de viver durante o processo de construção do Estado Nacional,mas, que devido os objetivos deste texto, não podem ser desenvolvidosadequadamente e com a profundidade que merecem.

Autores como Kowarick (1994), Chalhoub (1999) e Carvalho(1998), em seus estudos sobre a formação da força de trabalho assalariadano país, assim como da construção de uma cultura republicana no Brasil,problematizam os conflitos entre os projetos societários das frações declasse dominante e as práticas sociais ou os modos de viver da populaçãonacional durante as tentativas de normatização de condutas e a criaçãode hábitos supostamente correspondentes a uma nação capitalista. Atentativa de controle dos fluxos transfronteiriços pode ser entendidadentro desta perspectiva, ou seja, como um esforço de disciplinar asposturas socialmente aceitas em um contexto de fronteira. Semelhanteàs situações descritas pelos autores indicados anteriormente, nas regiõesde fronteira visualizam-se o choque entre as práticas tradicionais dascomunidades fronteiriças e as regulamentações impostas pelos governosdos respectivos países limítrofes.

Deste modo, considero que a cultura do contrabando encontra-seno interior de uma cultura de fronteira, mas sem corresponderimediatamente a ela ou ser diretamente um sinônimo dela, pois esta tendea ser muito mais ampla e envolvente. A cultura de fronteira pode serentendida como um universo cosmológico produzido pela intersecçãode diferentes dimensões sociais existentes e plasmada durante os diversosprocessos históricos que formatam as conjunturas das fronteiras. Nestesentido, o contrabando ou o descaminho seriam apenas alguns doselementos resultantes do encontro de um conjunto de variáveis quedeterminariam as configurações destes espaços. Segundo Godinho:

48

O reconhecimento do contrabando como uma ocupação centraldos habitantes raianos permite compreender a forma fluida danoção de espaço econômico nacional que opera nos limitesterritoriais entre dois Estados. Assim se explica a dupla percepçãodo contrabando, para os que o fazem e para os que têm por missãocontrola-lo. Para ser entendido em sua plenitude, o contrabandoexige um enquadramento nos modos de vida das povoações daraia e, a um nível microscópico, nas estratégias de sobrevivênciados núcleos domésticos. Compreender o fenômeno é entender asrazões que, para os indivíduos inseridos num modo de vida local,explicam o envolvimento numa tão perigosa e desgastanteatividade, exigindo uma abordagem das formas econômicas, dasrelações sociais e das construções culturais aldeãs (Godinho, 2009,p. 44).

Paula Godinho chama atenção para um fator fundamental. Emborao contrabando faça parte da história fronteiriça, estando amarrado astradições e a própria cultura da fronteira, ele não é suficiente para oentendimento de todo o universo composto pela confluência dos limitesinternacionais entre os países. Como a autora explicita, para o seuentendimento é preciso inseri-lo no interior dos modos de vida dacomunidade estudada e investigar as razões que encorajam os diferentessujeitos sociais a desenvolvem tais práticas, mesmo carregadas deinúmeras adversidades. Neste sentido, ela salienta a importância deobservamos como o contrabando perpassa pelas dimensões da vida socialexpressas nas relações econômicas, sociais e culturais manifestadas nouniverso pesquisado.

Assim, torna-se importante que a definição das dimensões sociaistenha como intuito dar conta simultaneamente dos dinamismos dasfronteiras e dos próprios obstáculos existentes para o desenvolvimentodas práticas sociais. De maneira geral, estas são definidas pelas relaçõesdialéticas e constantes entre as experiências acumuladas pelos sujeitossociais e as diferentes conjunturas onde eles atuam. Deste modo, oentendimento dos contornos que a fronteira vai desenvolvendo duranteos processos de expansão do modo de produção é um exercíciofundamental quando se tem o objetivo de entender o funcionamento, a

49

estrutura ou o cotidiano de tais realidades, pois são eles que configurame delimitam o espaço onde as relações sociais são efetivadas.

A dimensão social está sendo entendida aqui como uma categoriasociológica construída pelo exercício de suspensão da cotidianidade porparte do pesquisador, visando garantir um afastamento metodológicopara uma posterior análise das diversas camadas ou esferas da vida socialque compõem a realidade, fomentando a elaboração posterior detipologias. Em outras palavras, quando observamos os movimentos e asparticularidades das fronteiras estamos visualizando de uma maneiraamorfa a cultura de fronteira ou, como definiria Kosik (2002), apseudoconcreticidade. Esta cultura é composta por inúmeras dimensõessociais que não são visualizadas de maneira pura imediatamente, mascontaminadas por suas diversas possibilidades de existência.

Segundo Kosik (2002, p. 15), o mundo da pseudoconcreticidade écomposto: 1) pelos fenômenos externos que ocorrem na superfície dosprocessos realmente essenciais; 2) pelo mundo do tráfico e damanipulação, ou seja, da práxis fetichizada dos homens; 3) pelo mundodas representações comuns, que são projeções dos fenômenos externosna consciência dos homens e, por fim; 4) pelo mundo dos objetos fixados,que dão a impressão de serem condições naturais e não são imediatamentereconhecíveis como resultados da atividade social dos homens. Emsíntese, aquilo que é imediatamente observável corresponde amanifestações de fenômenos sociais, econômicos e políticos maisprofundos, que precisam ser apreendidos por uma noção mais aguda detotalidade.

Neste sentido, Vázquez (2007) chama a atenção para os cuidadosnecessários no processo de compreensão da realidade social. Ao longodo desenvolvimento histórico das Ciências Sociais visualiza-se ummovimento pendular. Em um primeiro momento existe a tentativa deentender o mundo pela valorização da pseudoconcreticidade, do mundovivido pelos trabalhadores. Nesta abordagem, a ciência assume o papelde divulgadora das posições de classe. Por outro lado, visando superaresta abordagem empirista, surgem autores idealistas, fundados nospressupostos de autores como Kant e Hegel. Assim, observa-se aradicalização das discussões para outra situação, estabelecendo oantagonismo entre empiristas e idealistas. O que precisamos fazer é a

50

superação destas duas abordagens por meio do estudo da práxis social.No esforço de desconstruir a realidade social observada de maneira

imediata para, em um segundo momento, reconstruí-la mediada porconceitos sociológicos (KOSIK, 2002), o pesquisador precisa promoveraquilo que Heller (1991) recomenda como suspensão do cotidiano, oque corresponde ao esforço de se afastar do aparente caos e alienação darealidade vivida na cotidianidade para problematizar de forma maisaprofundada os diferentes elementos ou dimensões, como estamos aquidefinindo, que formatam a vida social. Afastados, dentro dos limitessociais e ontológicos existentes, o pesquisador separa, elabora e defineas diversas dimensões sociais presentes em uma mesma totalidade, semnegar ou desconsiderar o impacto que suas articulações promovem nadefinição das fronteiras.

Para tanto, este constructo intelectual guarda em si as característicasde ser: 1) esponjoso ao absorver de modo incontrolável as experiênciase os movimentos sociais; 2) sociometabólico por se modificarhistoricamente e responder aos diferentes elementos que vão sendoenglobados durante o seu próprio dinamismo e; 3) flexível, se esticando,alargando e se aproximando das outras dimensões, conforme a conjunturafronteiriça vai sendo construída historicamente. Tal característicafuncional e estética tem o intuito de demonstrar que as aparentescontradições existentes entre pontos supostamente antagônicos, porestarem dentro de uma mesma dimensão fazem parte de uma mesmatotalidade. A situação de oposição é espacial e temporal, portanto,histórica.

Se fosse possível representar de outra maneira as dimensões sociaisdo modo que estamos apresentando, poderíamos pensar que elas possuemo formado de “elipses”, tendo, desta forma, pontos extremos que sãomais distantes do que outros, estando aparente e momentaneamente emsituação de oposição (pontos B e D, por exemplo). Ainda dentro de umaperspectiva metafórica, pensamos que estas “elipses” são constituídaspor uma substancia gelatinosa, que pode ser esticada, puxada, entortada,ao mesmo tempo em que ela vai crescendo ao absorver tudo aquilo queestá ao seu redor. Este aspecto referente à sua textura e consistênciabusca expressar a ideia de que ela não é sólida, cristalizada, imutável,mas altamente flexível e com grande capacidade de adaptação e

51

readaptação às transformações sócio históricas que ocorrem no seuentorno.

DIMENSÃO SOCIAL

O desenho da “elipse” exposto acima possui quatro letras queidentificam os polos da figura geométrica. Os polos A e C estão maispróximos quando comparados ao B e D, desta forma, estes últimospoderiam sinalizar uma oposição maior quando comparados aosanteriores ou, em outras palavras, eles permitiram denunciar um supostoantagonismo entre elementos existentes dentro de uma mesma dimensãosocial. Todavia, esta formatação é temporal, se modificando por meiodos conflitos e articulações ocorridos na cultura da fronteira. Em ummomento, a distância entre B e D pode ser ampliada, aproximando aindamais A e C, mas em outro, pode ocorrer o inverso, a aproximação de B eD e o afastamento de A e C. Estas modificações vão ocorrendo durante oprocesso histórico, conforme a substância que compõem a “elipse” vaiabsorvendo ou se alimentando das experiências sociais e modificando,flexibilizando seus limites, permitindo, por exemplo, que mesmomantendo a ordem das letras expostas anteriormente, a “elipse” fiqueesticada ao ponto de criar um “abismo” entre B e D, mas permitindo queD faça uma curva tão acentuada que o aproxime externamente ao pontoA.

Em outro momento, centrados na dimensão econômica tributáriada fronteira do Brasil com o Paraguai, observamos que a aduana brasileirafuncionava como uma válvula de controle dos fluxos de mercadorias e

52

capitais que entravam no território brasileiro durante a década de 1990 ecomeço dos anos 2000 (Cardin, 2011b). Neste contexto, as açõesorquestradas pela Receita e pela Polícia Federal dependiam diretamenteda aproximação do Estado Brasileiro em relação aos outros sujeitossociais envolvidos com a questão e, consequentemente, do afastamentoem relação aos interesses de outros sujeitos. Assim, podemos pensar oEstado como o ponto A, os trabalhadores do circuito sacoleiro como oponto B, as indústrias brasileiras como o ponto C e o mercado de Ciudaddel Este como o ponto D.

A aproximação do ponto A (Estado) a outro sujeito inserido nadimensão econômica tributária analisada, afasta os demais polos docontrole da questão ao dificultar a articulação entre os mesmos. Nestesentido, quando o governo brasileiro atende os interesses da indústrianacional aumentando o controle na ponte que liga o Brasil ao Paraguai,a elipse aproxima o ponto A do ponto C e afasta na mesma proporção osinteresses dos trabalhadores e do mercado paraguaio. Tal movimento écomum próximo às datas festivas (dia dos pais, mães, crianças e natal),quando aumenta de forma significativa as compras em Ciudad del Este.Por outro lado, quando o governo brasileiro não age de maneira ostensivana fronteira, o ponto A se distância do ponto C, ocorrendo umaaproximação de B e D. Neste contexto, o esforço na construção depolíticas públicas é fazer com que a “elipse” adquira o máximo possívelo aspecto “circular”, onde a distância entre os pontos se torna equivalente.

No entanto, a cultura de fronteira é composta simultaneamentepor inúmeras dimensões sociais com este formato elíptico, como “anéis”em movimento que envolve uma única “esfera” ou uma mesma realidade.Cada um dos “anéis” representa uma dimensão da vida social que, parafins analíticos, é separado, suspendido da cotidianidade, e definido comouma tipologia. Porém, não nos atrevemos a defini-lo como um tipo idealpuro no sentido weberiano, pois acreditamos que as dimensões ou os“anéis” só podem ser compreendidos de maneira conjunta e processual.Embora o esforço seja no sentido de separar as diversas dimensões sociaisesta tarefa apenas reforça a ideia que a “elipse” se contorce de inúmerasformas, criando infinitos pontos de intersecção entre as diversasdimensões.

Embora possamos ter um objeto de pesquisa isolado e

53

metodologicamente bem definido, as pesquisas empíricas, principalmenteaquelas de maior caráter antropológico, vêm demonstrando aimpossibilidade de se pensar e enxergar as realidades de fronteiras demaneira linear e harmônica. Albuquerque (2010), por exemplo, ao tentarse concentrar no estudo da construção da identidade dos supostos“brasiguaios”, vai lentamente apresentando e discutindo o fato de talprocesso histórico não ser exclusivamente cultural ou psicológico, masum fenômeno que envolve um conjunto de jogos que ocorrem no interiordas dimensões políticas e econômicas, dando um caráter vivo às fronteiras(sociometabólico), que ele define como fronteiras em movimento.

O estudo realizado por Albuquerque (2010, p. 18) concentra-se“nas disputas de identidades e nas representações nacionais que sãoconstruídas pelos imigrantes e pelos paraguaios no contexto dos atuaisconflitos pela propriedade da terra, pela defesa do meio ambiente e doterritório nacional” do Paraguai. Para tanto, ele parte do pressuposto que“as fronteiras são fenômenos sociais, plurais e dinâmicos” e,especificamente no caso da imigração brasileira no Paraguai, “produzuma pluralidade de fronteiras (políticas, jurídicas, econômicas, culturaise simbólicas) em relação à sociedade paraguaia. Essas fronteiras não sãoestáticas, mas estão em constante movimento de redefinição enegociação” (ALBUQUERQUE, 2010, p. 42).

A prática investigativa revela um conjunto de dimensões sociaisque precisam ser mais bem definidas e compreendidas, exigindo amelhoria qualitativa e quantitativa das pesquisas de campo nos universosde interesse de modo constante e interrupto. Os estudos já desenvolvidospelos pesquisadores que hoje se encontram espalhados por todo territórionacional permitem constatarmos a presença das dimensões: a) histórica,onde se encontra as disputas na definição e na preservação da memória;b) política, com os conflitos e articulações para o exercício do poder; c)econômica tributária, com o impacto do mercado e das leis que o regemna definição da vida social; d) jurídica, no esforço de normatização eregulamentação das práticas sociais; e) cultural, envolvendo um amplouniverso de tradições e manifestações artísticas; f) religioso, observandoo papel dos hibridismos, dos processos de conversão, expansão einstitucionalização de novas religiões; g) por fim, a humana, englobandoos debates sobre direitos humanos, violência e segurança pública nas

54

regiões de fronteira.Embora possam parecer envolventes e amplas de maneira suficiente

a atender as mais diferentes possibilidades investigativas, é evidentementeque estas dimensões não correspondem a todo universo existente. Asdimensões são construídas pelo pesquisador atendendo exigências doseu problema de pesquisa e alimentado pelas informações recolhidasdurante os estudos de campo. Logo, as dimensões, como a sua própriaestrutura elíptica, também podem ser ampliadas e esticadas para atenderrealidades mais amplas ou mais específicas, conforme as necessidadesque a investigação apresenta. O que não podemos deixar de observar éque todas estas dimensões coexistem, girando ao redor de uma mesmarealidade, como anéis que envolvem uma esfera, compondo umatotalidade, que seria a cultura de fronteira.

Ainda que esta pressuponha a noção de totalidade, pois ela nadamais é que um arranjo das diversas dimensões sociais possíveis em umcontexto determinado, os sujeitos sociais não a vivenciam de forma plenaou integral. Eles agem por meio de práticas sociais, que aqui sãoentendidas ou definidas como pontos ou ações fundamentadas pelaintersecção das experiências particulares e a conjuntura social do localonde eles estão inseridos. Sendo as práticas sustentadas por experiências,visualiza-se o predomínio de dimensões sociais especificas que, pordiferentes motivos, foram mais determinantes nas trajetórias de vida dosujeito. Contudo, isso não quer dizer que o sujeito ao agir isola as demaisdimensões que interferem em suas práticas, ele não as reconhece e asvivenciam de forma desorganizada e obscura, ou, como afirma Heller(1991), de forma alienada.

Assim, a cultura de fronteira não se manifesta de forma plena emuma mesma unidade temporal e espacial, mas de maneira confusa eamorfa. Logo, observando as regiões de fronteira, visualiza-se um imensodegrade tingido pelas variações na determinação das cores/trajetórias oupela falta de hegemonia em determinada dimensão social elíptica. É istoque fornece em alguns contextos de fronteira um aspecto caótico. Nestesentido, a hegemonia, o predomínio ou o domínio de uma dimensãoespecifica em uma determinada cultura de fronteira pode transmitir umasensação de ordem, de uniformidade. Neste ponto estamos indo aoencontro das abordagens de Gramsci (2007) e do próprio Bourdieu (2001),

55

principalmente naquilo que se refere à disputa de posições no processode construção da hegemonia e a importância da acumulação de capitalna organização dos campos simbólicos respectivamente.

Os pontos de intersecção ou de fronteiras entre as diferentesdimensões sociais correspondem a locais de negociação, de conflito ede acordos. É o momento ou o ponto do choque de interesses e/ou deprojetos societários, que é resolvido ou decidido temporariamente pelocapital acumulado pelos sujeitos envolvidos ou, na definição de Bourdieu(2001), dos agentes sociais que disputam posição no interior de ummesmo campo. É neste momento que a hegemonia é definida e osaparelhos estatais e instituições sociais se colocam de forma determinante,garantindo ou tentando garantir a vitória dos projetos defendidos pelasfrações da classe dominante. Os grupos sociais possuidores da maiorquantia de capital acumulado (econômico, político ou cultural) tendema estabelecer as melhores e as maiores articulações garantindo opredomínio de suas posições no interior das dimensões sociais que seencontram em disputa.

A cultura do contrabando seria um ponto de encontro e conflito dediferentes dimensões sociais, onde a econômica tributária predomina.Como discutimos anteriormente, o fluxo de pessoas e mercadorias nasregiões de fronteira são anteriores ao processo de normatização eregulamentação das práticas de contrabando, por isso elas podem serconsideradas tradicionais e, até mesmo culturais. No entanto, uma práticaque poderia ser entendida por meio de um estudo aprofundado dadimensão cultural, fica esfumaçada se desconsiderarmos que a dimensãohistórica, ao concentrar as disputas para guardar uma memória oficialsobre as práticas, e a dimensão econômica tributária, presente no esforçoestatal em controlar a fuga de divisas e proteger a industrial nacional,são fundamentais no entendimento do fenômeno na contemporaneidade.

É notório o processo de criminalização dos processos de circulaçãode mercadorias na fronteira do Brasil com o Paraguai no começo doSéculo XXI. Durante muitos anos a economia de toda região deconfluência dos limites do Brasil, Argentina e Paraguai dependiadiretamente do mercado existente no microcentro de Ciudad del Este.Em outro momento (Cardin, 2011b), destacamos as transformações docircuito sacoleiro de 1970 até os dias atuais e salientamos que parte

56

significativa das mudanças foi derivada das mudanças nos setoresprodutivos e nas demandas de bens materiais específicos, mas tambémdas configurações adquiridas pelos modelos politico e econômicoadotados pelos países, que respingava diretamente na forma que osaparelhos estatais intervinham nas fronteiras.

Neste sentido, é possível visualizar a intervenção diferenciada dogoverno brasileiro durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso emrelação às políticas adotadas por Luís Inácio Lula da Silva. A gestão doPSDB, de forte caráter neoliberal, não exercia muito controle aduaneiro,permitindo uma grande circulação de pessoas e mercadorias na Ponte daAmizade durante toda década de 1990 – momento de maiormovimentação financeira na região. Por outro lado, a gestão do PT,marcada por uma presença mais intensa do Estado nas diferentesdimensões da vida social, estabeleceu uma politica de controle efiscalização muito mais rigorosa do que aquela que era adotada até então.No entanto, tal política petista não correspondia a uma única ação, masa um conjunto de medidas integradas.

O fortalecimento e o aumento no controle e na fiscalização nasaduanas – inclusive com a construção de novas estruturas – ocorreu deforma simultânea à aplicação de políticas sociais de renda mínima, deescolarização e de qualificação, que visavam diminuir a vulnerabilidadede uma grande parcela da população que encontrava no circuito sacoleiropossibilidades concretas de subsistência. Não suficiente, acompanhandotais políticas públicas, foram desenvolvidas um conjunto de operaçõespoliciais no sentido de desmantelar qualquer tentativa de organização emanutenção da população por meios diferentes daqueles aceitos pelomercado, onde os grupos diretamente vinculados à compra, transporte erevenda de mercadorias disponibilizadas no Paraguai foram tratados damesma maneira que traficantes de drogas e armas, rotulados ecriminalizados indistintamente.

Uma prática tradicional, anterior à presença efetiva do Estadoe dos seus mecanismos de controle, desenvolvida durante muito temposem nenhum tipo de restrição por “laranjas” brasileiros e paserosparaguaios e argentinos, por homens, mulheres e crianças que, comopequenas formigas, carregavam sobre suas costas pequenas quantidadesde mercadorias com intuito de revender e garantir uma renda mínima,

57

foi gradativamente cercada e coibida. Na vida cotidiana a populaçãofronteiriça tenta fugir das rotulações midiáticas e jurídicas ao criarfronteiras para separar aquele que passa contrabando daquele quetransporta pequenos valores ou, como os interlocutores falavam duranteas conversas que estabelecemos, daqueles que transportam “apenasalgumas coisinhas”.

As práticas sociais e experiências presentes nos modos deviver tradicionais da população local ou, como definiria Bourdieu, ocapital social acumulado pelos moradores das fronteiras que fazem parteda dimensão cultural, gradativamente vai perdendo espaço pelo processode legitimação de usos e costumes normatizados pelo Estado Nação.Este processo, visualizado em um conjunto de ações políticas indicadasanteriormente, busca fazer com que a dimensão política e a dimensãoeconômica tributária prevaleçam, moldando as práticas aceitas elimitando as possibilidades de ação dos sujeitos. Em outros termos, oEstado utiliza de seus diversos instrumentos para diminuir os espaços,as brechas, onde os indivíduos poderiam exercer suas individualidadesou reproduzir algumas tradições.

No Brasil o processo de interiorização do capitalismo nopaís ocorre em uma época onde as fronteiras do legal e do ilegal não sãoclaras, da mesma forma que as definições jurídicas de limites. Assim, asdimensões política e humana não são muito consideradas, sendoconstantemente violadas devido ao predomínio da dimensão econômica.Desta forma, o momento de ampliação da acumulação de capital pormeio da exploração intensiva do meio ambiente e dos própriostrabalhadores é marcado pelo descaso com o homem. Tal situaçãodemonstra a correlação entre as dimensões e demonstra a importânciade observarmos os arranjos elaborados no desenvolvimento da culturade fronteira. As observações feitas por Martins (2009) sobre as frentespioneiras e as de expansão são exemplares.

Em um segundo momento, quando o capitalismo já se encontrainserido em todo território e vivencia seu momento de consolidação,outras dimensões são visualizadas com maior força. Agora, as dimensõespolítica e jurídica predominam, normatizando o funcionamento dasdemais dimensões no sentido de garantir a manutenção e a expansão domodelo econômico. Em outras palavras, como destacaria Max Weber

58

(2000), o avanço destas áreas sociais representa à cristalização do domínioburocrático, onde o controle sobre o outro não ocorre pela violência física,mas pela delimitação legal do comportamento, com a consequenteregulamentação das relações sociais.

Para finalizar estas considerações teóricas e metodológicas,no esforço de sistematizar e organizar um olhar que já vem sendoapontando em estudos de caráter mais empírico vale destacar que opredomínio de uma dimensão não exclui a resistência das demais. Épreciso observar sempre que as fronteiras são dinâmicas, fluidas,construídas por conflitos e diferenças, estando sempre se adaptando e seformatando a novas situações. Logo, as hegemonias são frequentementedesafiadas, exigindo respostas diretas e indiretas no intuito de mantersua ordem. Por tudo isso, compreender as fronteiras como um todo nãoé um exercício fácil, mas é aquele que permite a elaboração deconhecimentos mais significativos.

NOTAS EXPLICATIVAS

1 Este capítulo é um aprofundamento das discussões apresentadas no artigo “Para Pensar as Fronteiras:Apontamentos Iniciais para a Construção de Uma Teoria das Fronteiras” apresentado e discutido no IIISeminário Nacional de Geografia Política, ocorrido em Manaus/AM em Maio de 2013.

2 Doutor em Sociologia. Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais

da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Contato: [email protected]

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, José Lindomar C.. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios na fronteiraentre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010.

BATTISTI, César. Trajetórias Ocupacionais na Fronteira Brasil/Paraguai. In: SILVA, Michael(org.). Ensaios Historiográficos: Sociabilidade e Identidade na Fronteira. Foz do Iguaçu:UNIAMÉRICA, 2009. P. 56 – 67.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

CARDIN, Eric Gustavo. Trabalho e Organização dos “Barqueiros” na Fronteira do Brasil com oParaguai. In: BOSI, Antônio de Pádua; VARUSSA, José Rinaldo. Trabalho e Trabalhadores naContemporaneidade: diálogos historiográficos. Cascavel: EDUNIOESTE, 2011a.

59

______. A Expansão do Capital e as Dinâmicas da Fronteira. Tese (Doutorado em Sociologia).Araraquara: UNESP, 2011b.

______. Laranjas e Sacoleiros na Tríplice Fronteira: um estudo daprecarização do trabalho no capitalismo contemporâneo. Cascavel:EDUNIOESTE, 2011b.

CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

CATTA, Luiz Eduardo Pena. O Cotidiano de uma Fronteira: a perversidade da modernidade.Cascavel: EDUNIOESTE, 2002.

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril – cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo:Companhia das Letras, 1999.

GODINHO, Paula. Desde a idade de seis anos, fui muito contrabandista – O concelho de Chavese a Comarca de Verín, entre velhos quotidianos de fronteira e novas modalidades emblematizantes.In: FREIRE, D.; ROVISCO, E.; FONSECA, I. (orgs). Contrabando na Fronteira Luso-Espanhola. Lisboa: Edições Nelson de Matos, 2009.

GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Torino: Einaudi, 2007.

GRIMSON, Alejandro. Cortar puentes, cortar pollos: conflictos económicos y agencias políticasen Uruguayana (Brasil) – Libres (Argentina). In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso; BAINES, Stephen(orgs.). Nacionalidade e Etnicidade em Fronteiras. Brasília: UNB, 2005.

HELLER, Ágnes. Sociología de la Vida Cotidiana. Barcelona: Ediciones Península, 1991.

KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

KOWARICK, Lúcio. Trabalho e Vadiagem – A origem do trabalho livre no Brasil, 2º edição.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

LEMES, Alessandra Sara. O Contrabando nos Autos Criminais na Comarca de Toledo (1954 –1980). In: Anais da X Semana Acadêmica de Ciências Sociais da UNIOESTE. Toledo:UNIOESTE, 2012.

MARTINS. José de Souza. Fronteira: A Degradação do Outro nos Confins do Humano. SãoPaulo: Contexto, 2009.

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da Práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

WEBER, Max. Economia e Sociedade, vol. 01. Brasília: UNB, 2000.

60

61

FRONTEIRAS: ENTRE OS CAMINHOS DAOBSERVAÇÃO E OS LABIRINTOS DA

INTERPRETAÇÃO

José Lindomar C. Albuquerque1

INTRODUÇÃO

As possibilidades de estudos empíricos e os diálogos com diferentesteorias nas zonas fronteiriças são múltiplos. Trata-se de um campo deestudo em formação e que permite uma grande abertura de leituras,pesquisa, imaginação sociológica e criatividade. Gostaria de destacaruma perspectiva de reflexão sobre as fronteiras, um olhar para as pessoasque vivem e transitam entre territórios nacionais e que constroem infínitassituações fronteiriças. Algumas reflexões metodológicas e teóricas, quepretendo desenvolver ao longo do texto, têm como referência os meusestudos específicos sobre os denominados “brasiguaios” (imigrantes edescendentes de brasileiros que vivem ou viveram no Paraguai)(ALBUQUERQUE, 2010a) e o diálogo frutífero com outrospesquisadores que realizaram e realizam trabalhos de campo nas cidadesda tríplice fronteira entre o Brasil, Argentina e Paraguai (Puerto Iguazu,Foz do Iguaçu e Ciudad del Este) (MACAGNO; GIMENEZ BÉLIVEAU;MONTENEGRO, 2011).

Os territórios entre os limites dos Estados nacionais modernosaguçam a nossa imaginação desde o início de nossos trabalhos de camponessa região fronteiriça, especialmente para aqueles pesquisadores que

62

vem de outros lugares. A precisão desses limites políticos inscritos napaisagem por meio de marcos, símbolos e linhas divisórias passa aimpressão de territórios claramente delimitados e demarcados e, muitasvezes, naturalizados. Especialmente nas denominadas “fronteiras secas”entre os países, podemos facilmente colocar um pé em um país e o outrono Estado nacional vizinho. Em um único passo podemos atravessar oslimites entre o cidadão e o estrangeiro ou entre o crime cometido de umlado do limite internacional e a fuga impune do outro lado. O que gostariainicialmente de destacar é a força do poder jurídico, político e simbólicono traçado dos limites territoriais. A capacidade humana de produzirdescontinuidade em um espaço contínuo. Em um texto sobre a fronteiraluso-espanhola, há a descrição, com certa ironia e graça, de uma sentadado pesquisador em um marco que divide o território entre Espanha ePortugal:

A gente pode simultaneamente por um pé na Espanha e outro emPortugal. A gente pode se sentar, como eu tive a oportunidade defazer, no marco 695 (…). Neste marco, nós podemos aposentar erepartir simultânea e respeitosamente a bunda entre dois Estadosnacionais, duas províncias, um distrito e três limites municipais.Excessivas fronteiras, me parece, para uma mesma sentada(Uriarte, 1994 apud Valcuende, 1998, p. 112)2

O território não é algo natural e neutro. Há muitos traçados edivisões políticas sobre um mesmo território. Território é poder e asfronteiras nacionais representam a história e o poder dos Estados e dosgrupos sociais no processo de delimitação dos territórios nacionais. Oslimites internacionais são a história inscrita no espaço geográfico, repletade conflitos, forças, negociações e formas de cooperação (Raffestin, 1986;Foucher, 2009). Dessa forma, todo pesquisador das ciências sociais quese debruça sobre os estudos empíricos nas áreas fronteiriças necessitaestar bem atento para desnaturalizar permanentemente as fronteiras,mostrando suas histórias, suas disputas e rasuras questionando asclassificações estatais e midiáticas.

O que significa, para muitos antropólogos e sociólogos, omovimento permanente e incessante de estranhar o familiar e sefamiliarizar com o estranho (VELHO, 1978; DA MATTA, 1978;1981).

63

Por um lado, estranhar e problematizar, isto é, por em suspensa nação, alíngua nacional, a região, a fronteira, as identidades e todos esses termosfacilmente essencializados em nossos discursos cotidianos. Por outrolado, aproximar-se, tornar familiar tudo aquilo que se apresenta a primeiravista como estranho, esquisito, diferente, repugnante, e geralmentelocalizado do “outro lado da fronteira”: a nação vizinha, suas diferençasregionais, suas línguas nacionais, seus valores e costumes, em suma, aalteridade e o esforço antropológico de abertura hermenêutica para ooutro.

Esse percurso entre estranhamentos e familiaridades em uma áreade fronteira internacional permite construir diálogos com pesquisadoresdos países limítrofes, com pessoas que vivem e ganham a vida na fronteirae com nossas próprias experiências pessoais, advindas de viagens,migrações e de (des)encontros com os “outros”. Tudo isso favorece pensarsobre novos caminhos metodológicos e interpretativos para as movediçasrealidades fronteiriças.

OS CAMINHOS DE OBSERVAÇÃO DA REALIDADEFRONTEIRIÇA

A fronteira nacional não é uma realidade homogênea e no singular.É um fenômeno heterogêneo, plural, paradoxal e dinâmico e que exigerigor e sutileza em seu estudo científico. É relevante, portanto, pensarmosem uma perspectiva de abordagem metodológica capaz de aproximarmossimultaneamente de diferentes fronteiras nacionais, sociais e simbólicas,tendo como foco principal as populações que vivem e transitam nesseslugares fronteiriços. Uma abordagem que seja capaz de apreenderprocessos econômicos, políticos e jurídicos, mas que especialmenteaprofunde a dimensão social, cultural e simbólica.

Nessa perspectiva metodológica, podemos traçar, em forma deesboço, alguns caminhos de observação percorridos e a serem construídospor vários pesquisadores que investigam as fronteiras nacionais entre oBrasil e os países vizinhos. Claro que algumas dessas consideraçõespodem valer também para outras realidades fronteiriças. Esses caminhos,numa perspectiva sociológica, pressupõem algumas aproximações e

64

diálogos metodológicos com a antropologia, a semiótica e a história.Gostaria de destacar primeiramente a importância de um maior

diálogo metodológico e teórico entre a sociologia e a antropologia nosestudos das fronteiras nacionais. No campo da antropologia, já há umarazoável discussão sobre a antropologia das fronteiras (TOLOSANA,2003; DONNAN & WILSON, 1999) e sobre as etnografias realizadasem regiões de fronteiras internacionais (VILA, 2003).

A experiência desses trabalhos de campo, situados especialmentena fronteira Estados Unidos-México e entre países europeus, temdestacado a relevância da observação das interações, práticas sociais,experiências individuais e representações coletivas que ocorrem nocotidiano das populações fronteiriças. Essas interações e representaçõessociais se entrelaçam e entram em tensão com os discursos, ações eimaginários de outros agentes e instituições sociais (empresas nacionaise internacionais, governos centrais, estaduais e municipais, igrejas,imprensa, polícias, sistema educacional, entre outros) que estão situadosnessas zonas fronteiriças ou localizados nos centros do poder do Estadonacional.

O que considero relevante é a prática da pesquisa etnográfica capazde pensar o micro e o macro, o local e o global e as múltiplas teias derelações e intersecções sociais que acontecem na prática social dossujeitos que vivem, cruzam e produzem aproximações, separações edistanciamentos entre os limites das nações.

Na observação dessa realidade heterogênea e múltipla, considerorelevante a prática da pesquisa por meio das etnografias multissituadas(MARCUS, 1995), realizadas de um lado e outro do limite político ecom múltiplos cruzamentos e fluxos de pessoas, coisas, signos e narrativasque possibilitam cruzamentos de dados e de perspectivas de análise. Naspalavras de George Marcus, o etnógrafo pode seguir as pessoas, as coisas,os enredos, as metáforas e os conflitos, priorizando os caminhos,percursos, trajetos, conexões de experiências sociais que acontecem nasregiões fronteiriças. Uma etnografia multissituada pode favorecer acompreensão do entrelaçamento entre as fronteiras visíveis, narradas eexperienciadas pelas pessoas que vivem, cruzam e comercializam nasfronteiras territoriais.

Essas pesquisas podem ser bastante promissoras se realizadas por

65

equipes de pesquisadores dos países envolvidos, investigadores de outroslugares e com experiências em outras situações fronteiriças, bem comoestudiosos dessas regiões fronteiriças, onde aspectos de suas própriasvidas se confundem com essas fronteiras, diluindo distâncias entresujeitos e objetos da pesquisa. Tudo isso permite novas reflexõesmetodológicas das relações fronteiriças entre distante e próximo, nacionale estrangeiro, próprio e alheio, insider/outsider, “nós” e “eles” na própriaprática da pesquisa de campo (VILA, 2003)3 e na condição fronteiriçados próprios investigadores.

Os caminhos de observação etnográfica das regiões de fronteirasabrem também veredas para uma aproximação do universo dos signos esímbolos que permeiam a vida fronteiriça. Dessa forma, acho salutar umdiálogo entre a sociologia, a antropologia e a semiótica. Pensar essarealidade fronteiriça constantemente criada, transformada e transgredidapor meio de sinais, símbolos e códigos, é acionar os próprios sentidos denossa realidade sensorial entrelaçada com nossa imaginação intuitiva eracional. Não se trata de um empirismo ingênuo e de predomínio dosensível sobre o racional, mas de uma mobilização mediadora dossentidos, buscando compreender os significados multifacetados dasfronteiras.

Uma abordagem sociológica das fronteiras pressupõe umasociologia dos sentidos, conforme a digressão feita por Simmel no ensaioO espaço e a sociedade (SIMMEL, 1986). A vista, ouvido, o olfato, opaladar e o tato não são somente sentidos físicos que captam nossaexperiência sensorial no mundo, mas também possibilitam as interaçõessociais, as repulsões e atrações individuais e coletivas e que modificama nossa sensibilidade ao longo do tempo. Uma breve reflexão sobre ospróprios sentidos talvez ajude a compreender as relações entre opesquisador e os entrevistados no momento da realização da pesquisade campo e permite observar como as pessoas utilizam seus sentidospara agir no mundo e com o outro.

Para Simmel, o olhar é a forma de interação mais pura e maisimediata da vida social, um processo instantâneo que se encerra com opróprio fim do cruzamento de olhares. Olhar e ser olhado, traduzindo asexpressões do rosto do outro que guardam marcas de sua experiência devida, traços físicos de um passado histórico e social. A própria palavra

66

entrevista, que adquiriu um sentido mais técnico em seus múltiplos usosem uma sociedade de ampla divisão do trabalho e do conhecimento, éderivada de uma interação básica da vida humana, entre vistas, entreolhares que se cruzam com palavras ou em silêncio. Em uma grandecidade, por exemplo, uma pessoa pode passar horas frente à outra emum meio de transporte (trem, ônibus etc.) cruzando olhares, desviandoos olhos da vista do outro e olhando para outros olhos que se cruzamincessantemente.

Por sua vez, o ouvido é um órgão mais unilateral, está no apêndicedo rosto, geralmente é entre a fala e a escuta que se processa a interação,mas ordinariamente com muitos ruídos, pois são órgãos independentes eque pressupõem intervalos temporais de escuta e fala. Entretanto, oouvido tem uma importância fundamental na tradução da experiênciado ser humano no tempo. O ouvido permite a abertura para a história dooutro, escutar a linguagem do outro e construir uma memória social.Olho e ouvido estão em permanente processo de complementaridade nacaptação das interações sociais e são, portanto, os órgãos dos sentidospor excelência. Olhar, ouvir e escrever já foram descritas como atividadesbásicas do trabalho do etnógrafo (OLIVEIRA, 2006). Entretanto, osoutros órgãos são também mobilizados nos processos de interação e naconstrução de fronteiras simbólicas entre “eu/nós” e “ele/eles”, como nocaso do olfato. Há vários exemplos de repulsões étnicas e sociais quepodem se estabelecer no campo das interações com o outro, tais como“mau cheiro”, “cheiro de negro”, “suor de trabalhador braçal” ou “fedor”de um mendigo (SIMMEL, 1986; WEBER, 1994) e que constroemfronteiras e discriminações sociais. Claro que em muitas situações dosprocessos de repulsões e atrações sociais, o que temos é a mobilizaçãode alguns sentidos no processo de demarcação de fronteiras na interaçãosocial.

Nesse sentido, o que propomos é uma observação etnográfica pormeio da mobilização de nossos sentidos: olhares cruzados, audição atenta,olfato e paladar apurados e tato sensível na interação que o pesquisadorestabelece entre as pessoas pesquisadas e diante dos produtos materiaise simbólicos que estão em trânsito ou fixados na região fronteiriça.

Olhares cruzados para os vários lados de uma fronteira específicae para as pessoas que vivem em uma região fronteiriça. O que significa,

67

por exemplo, uma observação cuidadosa das interações sociais entreparaguaios, brasileiros, argentinos, estrangeiros de outras nacionalidadese outros grupos sociais, assim como dos símbolos visíveis, das moedasque circulam, das imagens televisivas e propagandas sempre renovadasnas fronteiras de intenso comércio, como no caso da fronteira entre Fozdo Iguaçu e Ciudad del Este4. Nesse contexto, podemos observar omovimento das pessoas e dos bens que identificam origens e destinos,como as sacolas paraguaias listradas e pretas. Os produtos eletrônicoschineses aparecem como made in Paraguay, vistos como sinônimos defalsificação, e as feiras brasileiras de intenso comércio dessas mercadoriaspassam a ser nomeadas de feiras paraguaias. O que em outros países sãoreconhecidos como produtos chineses, a rota China-Paraguay-Brasil temo poder simbólico de transformar, no Brasil, os produtos chineses emmercadorias paraguaias de qualidade duvidosa (MACHADO-PINHEIRO, 2008). O lugar de passagem dessas mercadorias se tornaem um espaço de origem e de classificação negativa. Por outro lado, éimportante estar atento para maneira como são acionados os tradicionaissímbolos nacionais, como as cenas de queima da bandeira brasileira nosconflitos de terra no Paraguai ou nos protestos sociais de fechamento dafronteira.

Ouvidos atentos para escutar as línguas das fronteiras, os sons daslínguas no comércio de Ciudad del Este podem traduzir a zona detransição entre o Brasil e o Paraguai na própria geografia do comérciofronteiriço. Entre a Ponte da Amizade e o primeiro trevo de Ciudad delEste, observamos as misturas da língua portuguesa, espanhola, guaranie árabe ou chinesa em diferentes tonalidades conforme as ruas e lojascomerciais. Há vendedores de lojas em Ciudad del Este que falamespanhol ou guarani com os clientes paraguaios e argentinos, portuguêsou “portunhol” com os brasileiros e árabe com os patrões. Os quatrosidiomas podem ser manejados em uma mesma situação de compra evenda de mercadorias. Além da situação linguística no comérciofronteiriço, é importante também pontuar a presença das línguas defronteira nas cidades e colônias de imigração brasileira no Paraguai, naprogramação televisiva e nas rádios e suas ondas sonoras na região defronteiras, além das músicas e festas que atravessam, singularizam,subvertem e reproduzem as relações sociais nessa zona fronteiriça.

68

Olfato e paladar apurados indicam uma atenção etnográfica paraos cheiros e sabores das zonas fronteiriças, que podem ser traduzidosculturalmente por meio das repulsões e atrações em relação às pessoas eaquilo que bebem e comem de um lado e outro da linha de fronteira. Aalimentação fronteiriça pode ser vista como um forte demarcador defronteiras culturais e simbólicas que evoca desejos, gostos e memórias.A comida na região de fronteiras pode traduzir as noções de sujeira elimpeza, as conexões entre sabor, cheiro, saúde, limpeza e preconceito.

Tato sensível que permita desenvolver uma íntima percepção dasfronteiras invisíveis dos sujeitos invisibilizados na fronteira (os“marginais”, “desviantes”, “excluídos” nas margens das nações –“meninos e meninas em situação de risco”, prostitutas, drogados,mendigos, situação de pobreza de algumas comunidades indígenas, en-tre outros). A dimensão sensível das experiências individuais econstrangimentos diários daqueles que são parados e ameaçados pelasautoridades policiais, a cadeia de exploração de trabalhadores nocomércio informal constituindo diversas fronteiras sociais (CARDIN,2006).

A mobilização dos sentidos permite perceber com mais clareza aconstrução social dos limites políticos em um território demarcado porfronteiras estatais e por tantas outras divisões sociais e simbólicas,traduzindo em diferentes níveis as configurações sociais que constroempolaridades entre “nós” e “eles”, tais como as noções de limpeza e sujeira,beleza e feiura, ordem e desordem. Os sentidos podem acionar imagens,narrativas, sons, cheiros, sabores valorados por “sacoleiros”, turistas,trabalhadores que manifestam as representações de uma cidade suja edescuidada do “outro lado da fronteira” e que contrasta com a organizaçãoe limpeza do “lado de cá da fronteira”. Essas imagens e narrativas podemser contadas de outra forma desde o ponto de vista daqueles que vivem“do outro lado” das fronteiras nacionais do Brasil.

Além desse diálogo com a antropologia e a semiótica, umaobservação das fronteiras pressupõe uma aproximação profícua entre asociologia e a história. Afinal de contas, as fronteiras geográficas dasnações “são a história inscrita no espaço” (FOUCHER, 2009, p. 27), sãoainda histórias, memórias e narrativas recordadas e esquecidas decontextos anteriores.

69

Desse modo, a sociologia e antropologia têm trabalhado com apesquisa histórica principalmente para a realização: a) dacontextualização histórica dos objetos presentes, geralmente a partir dematerial secundário; b) focando o processo de longa e curta duração emperíodos específicos de definição das fronteiras (fronteirização daspopulações, mercados e Estado) (SAHLINS, 1989; GRIMSON, 2003);c) abordando as temporalidades entrelaçadas nas narrativas presentes deuma determinada fronteira, como no caso das imagens do passado(bandeirantes, Guerra da Tríplice Aliança e Ditadura de Stroessner) nosconflitos do presente na luta pela terra envolvendo imigrantes brasileirose camponeses paraguaios (ALBUQUERQUE, 2010).

Nesses trabalhos que priorizam uma abordagem histórica, osinvestigadores têm pesquisado principalmente em arquivos públicos,eclesiásticos e em jornais - locais, regionais e centrais e têm utilizadofontes referentes a: a) documentos de época, leis, mapas históricos,registros, jornais de época etc.; b) a produção historiográfica ao longoda história sobre um determinado fato histórico da fronteira (guerra,fundação de cidade, acordo de cooperação etc.), ou seja, narrativasproduzidas depois dos acontecimentos por personagens (principais oumarginais) dessa história, por historiadores, escritores e que foramproduzidas e significadas em outros contextos históricos; c) As narrativasatuais sobre o fato histórico específico (livros e históricos atuais, artigos,materiais didáticos, mapas etc.)5.

Os caminhos metodológicos da observação empírica das fronteirasnacionais são inúmeros, alguns já trabalhados com mais detalhes porinvestigadores das ciências sociais vizinhas. Outros precisam ser maisbem construídos pela própria sociologia, utilizando e aprimorando paraesse objeto específico as várias abordagens metodológicas de cunhoqualitativo e quantitativo da tradição sociológica e as técnicas de pesquisados questionários, entrevistas, surveys, observação de campo etc. O queapresentei aqui são mais possibilidades de diálogos metodológicos comoutras áreas do conhecimento, visando algumas travessias de fronteirasdisciplinares e novas formas de avanço do conhecimento nos estudosdas fronteiras nacionais.

70

OS LABIRINTOS DA INTERPRETAÇÃO

Se, por um lado, o objetivo desse ensaio é pensar novos e velhoscaminhos de observação das áreas fronteiriças, por outro lado, pretende-se também, de uma maneira preliminar, levantar e deslocar algunsproblemas teóricos na investigação fronteiriça. Nosso objetivo éproblematizar algumas tipologias que esquematizam e aprisionamsentidos e o caráter concreto, natural, empírico das fronteiras territoriais.O que propomos é um deslocamento de reflexão das tipologias àssituações de fronteiras e das fronteiras territoriais concretas às metáforasfronteiriças.

As fronteiras nacionais já foram bastante trabalhadas por meio douso de tipologias por parte da geografia, história, relações internacionais,direito, ciências sociais. Essas tipologias classificam o mundo social eestabelecem uma ordem de compreensão dessas realidades complexas.Nessa história das classificações tipológicas, podemos recordar a divisãoentre fronteiras artificiais e naturais, terrestres, marítimas e aéreas,fechadas e abertas, quentes e frias, políticas (Estado) e sociais (sociedadecivil), territoriais e metafóricas, além da classificação que separa poresferas sociais: fronteiras econômicas, políticas, jurídicas, religiosas,militares, sociais, culturais, simbólicas etc.

Essas inúmeras classificações fazem parte da história do estudode fronteiras e ajudam a ordenar a discussão inicial dos estudiosos.Entretanto, considero que o avanço do conhecimento teórico das regiõesfronteiriças pressupõe uma atitude crítica diante das tipologias existentes.Muitas dessas classificações tipológicas cristalizam sentidos e dividemo mundo social em polaridades; a rigor não faz sentido uma divisãoentre fronteiras naturais e artificiais. Todas as fronteiras nacionais sãoimaginadas, criadas pelos homens e estes depositam sentidos que umdeterminado rio ou monte será a “fronteira natural” do Estado. Aclassificação também entre fronteiras políticas e sociais tem suasimprecisões. A noção de política pode ser pensada para além do Estadonacional, já que o Estado não detém o monopólio do político na complexasociedade contemporânea. Neste sentido, as fronteiras entre os grupos

71

étnicos podem ser vistas também como fronteiras políticas na interfacecom outros grupos sociais e com o próprio Estado.

A famosa tipologia que divide as fronteiras por esferas sociais(econômicas, políticas, jurídicas, sociais, simbólicas etc.) apresentaimprecisões se entendermos a partir de um realismo sociológico no qualse compreende que, de fato, existem no mundo social essas fronteirasseparadas. As fronteiras nacionais talvez possam ser vistas como “fatossociais totais” (Mauss, 1976), em que as distintas dimensões do socialestão entrelaçadas, bem como os aspectos individuais e coletivos daquelesque produzem fronteiras. A separação por esferas, na perspectiva daconstrução do conhecimento, pode ser pensada a partir de uma abordagemweberiana dos tipos ideais. Para Weber, a realidade social é infinita,inesgotável, caótica e o pesquisador, a partir da relação com os valoresde sua cultura, torna relevante e significativo um fragmento dessarealidade a ser investigada. Nessa perspectiva, o conhecimentosociológico é sempre aproximativo, provisório, pois não há umareprodução da realidade tal qual ela é na construção de um trabalhosociológico. O que o investigador formula são conceitos típicos ideaisque possibilitam destacar, ordenar e acentuar determinadas característicasde uma realidade múltipla e desordenada (Weber, 2001).

Nessa perspectiva de análise, na observação de uma determinadafronteira nacional, como a “fronteira política” entre o Brasil e o Paraguai,o pesquisador pode acentuar em sua pesquisa os fatores econômicos,tais como a fiscalização e apreensão de mercadorias, as propinas, osimpostos pagos, os salários recebidos pelos agentes policiais, fiscais,alfandegários etc. Outra pesquisa sobre essa mesma “fronteira política”pode acentuar os elementos políticos da dominação e obediência, taiscomo os tipos de “abordagem” da polícia federal a ônibus coletivos e aônibus fretados por “sacoleiros”, as hierarquias de poder em um postode alfândega, as relações entre polícia federal brasileira e polícia paraguaiaetc., e assim por diante. O que gostaria de destacar é que na vida socialtoda “fronteira política” é mais do que uma fronteira política, assim comoas fronteiras econômicas (as frentes de expansão), são também fronteirassociais, políticas, culturais e simbólicas. Cabe ao pesquisador acentuarque tipos de fenômenos ele irá estudar em profundidade nessas áreas defronteiras e a partir dos dados empíricos formular novas tipologias de

72

fronteiras.O que considero relevante nesse momento dos estudos de fronteiras

nacionais na área de sociologia é repensar e aprofundar de maneira críticao uso das tipologias de fronteiras e, ao mesmo tempo, pensar em situaçõesde fronteiras que ultrapassam as formas de classificação mais rígidas.Essas situações de fronteiras pressupõem o estudo dos eventos singularesem cada contexto fronteiriço por meio de novas pesquisas de campo. Oque gostaria de enfatizar são algumas características e situações que têmaparecido em muitos estudos fronteiriços e que permitem ampliar nossossentidos sobre uma possível conceituação das fronteiras nacionais. Nessaperspectiva, pontuarei as situações de fronteiras como recurso, ritualsimbólico e liminaridade.

A fronteira política muitas vezes funciona como um recurso esistema de complementaridade para as populações fronteiriças.Viver nafronteira é também viver da fronteira. As diferenças de preços dealimentos, bebidas, roupas, gasolina fazem com que os fluxos seintensifiquem de um lado a outro da fronteira (VALCUENDE, 1998).Há um pêndulo de deslocamentos conforme a variação dos preços emcada país ao longo do tempo e das mudanças econômicas e políticas quese verificam nas nações vizinhas. Dessa forma, a gasolina mais baratana Venezuela aumenta o fluxo de brasileiros nos postos de gasolina nascidades fronteiriças, assim como o peso argentino valendo atualmente ametade do real pode atrair uma clientela brasileira nas cidades de fronteirado país vizinho. O que existe aqui é uma espécie de cálculo e diferencialfronteiriço que possibilita uma poupança por meio do deslocamento decompras mais baratas do “outro lado da fronteira”. As diferenças de preçospodem estar marcadas pela disparidade da cobrança de impostos sobreas mercadorias pelos respectivos Estados nacionais.

Dessa forma, os Estados que cobram menos impostos e têm suaszonas francas de comércio, como no caso do Paraguai, atraem osconsumidores brasileiros. Por sua vez, o Estado paraguaio não consegueter um sistema público de garantias sociais para sua população e muitosparaguaios se deslocam e são atendidos nos sistemas públicos de saúdee educação do “lado brasileiro”. Assim, além de um recurso econômico,a fronteira é um espaço de geração de estratégias e táticas de exercícioda cidadania das populações que vivem entre dois Estados nacionais.

73

Nessas zonas fronteiriças, há geralmente migrações fronteiriças, assimcomo serviços de saúde e educação que são mais presentes de um ladoque do outro do limite internacional e atraem as populações do paísvizinho.

Na fronteira se situa muitos rituais simbólicos, lugar de emblemas,signos de diferenciação e festas que demarcam tanto diferenças comotravessias. Bandeiras, placas, hinos, festas que celebram as datasimportantes de cada nação e as celebrações que conectam as experiênciaslocais transfronteiriças (HERNANDEZ et al, 1999; VALCUENDE;CARDÍA, 2009). Ritos de passagem no território dividido entre naçõesque transformam nossa condição de nacional em estrangeiro e, em uminstante de travessia (de um rio, uma ponte ou de um cartaz em uma“fronteira seca”), muitas vezes muda o horário, a língua, a moeda, acomida, a bebida, o modo de vestir, os dias festivos etc..

As fronteiras apresentam inúmeras situações liminares. Aliminaridade é algo de extraordinário que rompe o sistema social em suaregularidade e aponta para situações limites. Marcam ritos de passagem,de rebelião, de transgressão que transbordam as lógicas nacionais(TURNER, 1974). Os estudos das identidades fronteiriças sãofundamentalmente situações de identificações coletivas liminares.Ninguém é somente brasileiro, paraguaio ou “brasiguaio”. Uma únicapessoa pode acionar várias formas de identificação conforme osinterlocutores e as interseções sociais que estão em jogo no campo daspráticas e interações sociais. Por exemplo, ser homem, imigrantebrasileiro no Paraguai, paraguaio, “brasiguaio”, brasileiro, gaúcho,descendente de alemão, torcedor do grêmio, entre outras. Imigrantesbrasileiros podem se sentirem em casa no Paraguai, mais paraguaiosque brasileiros, ou podem se sentirem estranhos, “fora do lugar” tantode um lado como do outro da linha de fronteira. As situações deidentificações fronteiriças são inúmeras e ajudam a afastar qualquer ideiamais cristalizada e permanente das identidades únicas e fixas.

As inúmeras situações de fronteiras produzem deslocamentos edificultam o estabelecimento de determinadas classificações tipológicasdesses eventos singulares. A fronteira é um campo inusitado de produçãode novos sentidos e de abertura para o uso de várias metáforas.

As fronteiras territoriais dos Estados nacionais muitas vezes são

74

definidas como fronteiras mais concretas e reais, diferentes das fronteirassociais, simbólicas e metafóricas, geralmente reconhecidas como maisdinâmicas, abstratas e presentes em todos os lugares de interação social.A concretude do processo de demarcação dos limites territoriais e todoum conjunto de instituições instaladas nas áreas fronteiriças (alfândegas,polícias de fronteira, receita federal e outras) traduzem a ideia do poderinscrito no território, ou seja, a visibilidade dos limites entre o fim dasoberania de um Estado nacional e o começo de outra soberania nacional.A fronteira estatal produz a sensação e imaginação da existência de umafronteira física, os limites do campo de ação do Estado e suas múltiplasinstituições militares, políticas, jurídicas, sociais, administrativasplasmados no território.

O que gostaria de destacar é que as fronteiras territoriais dos Estadosmodernos são, ao mesmo tempo, concretas e metafóricas, reais esimbólicas. No mundo moderno, os limites territoriais são geralmenteconcretizados por meio do poder visível do Estado e da imaginaçãocompartilhada daqueles que vivenciam a nação, pensada como umacomunidade soberana e delimitada (ANDERSON, 2008). As imagensconcretas dos muros, muralhas, cercas, arames, pontes, rios, maresdividem e atravessam as fronteiras territoriais, mas também simbolizamsentidos metafóricos que captam a dupla face das fronteiras em seusfluxos e controles de pessoas, mercadorias, imagens, tecnologias,transportes, moedas e línguas.

As fronteiras territoriais foram bastante estudadas desde aperspectiva do pensamento analítico, o qual exige análise, classificação,modelos teóricos a serem testados na realidade, subdivisões, tipologiasque permitem entender tipos variados de fronteiras estatais. Mas a análisee os modelos analíticos pode se associar com a abertura analógica epoética das metáforas nos seus múltiplos deslocamentos e criação desentidos. Pensar as fronteiras é vivenciar a experiência de refletir entrediferentes formas de conhecimento. A relação entre pensamento analíticoe metafórico, entre conceito e metáfora pode produzir novas fontes deinspiração e apreensão da experiência social nas zonas de fronteiras.

A metáfora não é alheia ao conhecimento analítico, uma vez que opensamento filosófico e científico ocidental está povoado por inúmerasmetáforas. A palavra deriva do grego antigo metaphorein e indica a noção

75

de além, sobre (meta) e mudança, transposição de um lugar a outro(phorein). No sentido semântico, trata-se de uma figura de linguagemque permite transformar o sentido literal de uma palavra em sentidofigurado por meio de comparações, produções e transbordamentos designificados para outros contextos de enunciação (RODRIGUES, 2007;SALDANHA, 1996; RICOUER, 2000). Nesse sentido, é possível pensarem metáforas fronteiriças nos estudos empíricos localizados em fronteirasterritoriais. Entre os caminhos da observação e os labirintos dainterpretação, os usos de metáforas podem possibilitar a compreensãodas fronteiras visíveis, narradas e vividas por inúmeras pessoas.

Esse caminho interpretativo não é novo e nem seguro. Algunsestudiosos de fronteiras têm recorrido às metáforas do atravessador ereforçador de fronteiras, pontes, portas e muros, a ferida simbólicalembrada em muitas narrativas das mutilações territoriais, como asnarrativas existentes do lado mexicano da fronteira entre o México e osEstados Unidos (VILA, 2000; ANZALDÚA, 1997; VALENZUELA,2003). Nessas construções metafóricas, a fronteira, às vezes, é comparadacom a pele sensível de nosso próprio corpo. O corpo ferido, mutilado,contaminado e poluído pode ser traduzido no corpo territorial da nação.As margens do corpo e da nação são sensíveis e permeáveis pelasimpurezas, perigo de contaminação de algum elemento exterior e sempossibilidades de controle pelos órgãos internos. Assim a prostituiçãofronteiriça, tráfico de armas, drogas e pessoas, contaminação por doenças(animais e pessoas) existentes do outro lado da fronteira reforçam aimagem da fronteira como “terra sem lei”, “terra de ninguém”, cidadesdo vício e da perdição, lugares de transgressão (VILA, 2003).

Nessa perspectiva tenho feito uso da imagem da porta, algo quefecha e abre e que demarca um interior e um exterior, especialmenteinspirados no ensaio de Simmel (2001), A porta e a ponte (ALBUQUER-QUE, 2010b). Outra poderosa imagem usada é a simbologia do DeusJano, deus de duas cabeças apontadas para direções inversas e querepresenta ao mesmo tempo o fim e o começo, o passado e o futuro(ALBUQUERQUE, 2011). Em diálogo com o pensamento ensaístalatino-americano, tenho também recorrido às analogias do espelho dopróspero de Richard Morse (1988), semeador e ladrilhador em SérgioBuarque de Holanda (1995) e do próprio o labirinto da solidão de Octávio

76

Paz (1984) para pensar processos de identificação nas zonas de fronteirase as representações sobre o outro, as noções de ordem e desordem e ospróprios labirintos da interpretação das situações de fronteiras, em queos fios de Ariadne são geralmente rompidos e temos que descobrir outrassaídas.

E entre o concreto e o simbólico, entre o conceito e a metáfora quetransbordam sentidos talvez encontremos as ambiguidades do sagrado –inferno e paraíso - traduzidas no profano mundo da experiênciafronteiriça. E da tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, ajanela pela qual tenho pensado as realidades fronteiriças, posso escutaressas múltiplas narrativas da fronteira a partir das metáforas do inferno edo paraíso. Do lado do inferno, o narcotráfico, o terrorismo, a violência,a prostituição e a marginalidade social. Do lado do paraíso, as mais desetenta etnias convivendo harmoniosamente em Foz do Iguaçu/PR, asbelezas das Cataratas e as várias atrações do turismo internacional, comoaquelas apresentadas em uma propaganda televisiva em 2010. Essa pro-paganda justamente falava das maravilhas de Foz do Iguaçu/PR e todasas atrações que poderiam ser feitas pelo turista durante sete dias e setenoites, mesmo tempo da criação divina do próprio mundo, conforme anarrativa cristã.

Mas, apesar da riqueza de sentidos que podemos imaginar por meiodo uso de novas metáforas em nossas pesquisas fronteiriças, as metáforasproduzem deslocamento de sentidos, são escorredias, vacilantes e podemultrapassar o pensamento científico e penetrar nas areias movediças daexperiência poética. O que temos proposto é uma espécie de sintonia,aproximação entre o necessário rigor metodológico na busca incessantede novos dados e de novos sujeitos para nossas pesquisas de campo e aabertura radical de nossa imaginação, intuição e criação que as metáforaspodem possibilitar. Em suma, trata-se de uma forma de pensar entre oanalítico e o metafórico, entre a ciência e a poesia, entre os conceitossociológicos e toda a riqueza do pensamento de nossos entrevistados,que sempre enriquecem com novos sentidos e novas metáforas as nossaspróprias interpretações fronteiriças.

77

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os nossos estudos fronteiriços estão pautados em fortes crençasem um mundo mais igual e justo, na superação e eliminação de tantasfronteiras físicas e simbólicas. Entretanto, sabemos que nas cinzas e ruínasdas fronteiras derrubadas, outras serão erguidas, dando continuidade aomovimento paradoxal da porta, aberturas e fechamentos que indicam oprocesso permanente da própria condição humana e suas armadilhas,seus labirintos e superações individuais e coletivas.

Em nome da superação de tantas fronteiras que marcam esse mundocontemporâneo, lembro-me da dimensão poética e paradoxal do própriomuro; essa cerca que barra a passagem de milhões de pessoas, mas quepode também salvar vidas, quando a travessia das barreiras nacionaissignifica o jogo entre a vida e a morte, como todos aqueles que escaparamda guerra civil espanhola quando ultrapassaram a fronteira do Estadonacional espanhol, ou aqueles que se exilaram no contexto dos regimesditatoriais da América Latina para além das fronteiras nacionais. Assim,finalizo esse ensaio aproximando-me da simplicidade e delicadeza dapoesia de Manoel de Barros, um enviado do bairro fronteiriço do Pantanalque nos apresenta a bela metáfora de duas andorinhas, essas avesmigratórias que buscam sempre coletivamente novas paisagens:

O MUROO menino contou que o muro da casa dele eraDa altura de duas andorinhas.(Havia um pomar do outro lado do muro)Mas o que intrigava mais a nossa atençãoPrincipalEra a altura do muroQue seria de duas andorinhas.Depois o garoto explicou:Se o muro tivesse dois metros de alturaQualquer ladrão pulavaMas da altura de duas andorinhas nenhum ladrão pulava.Isso era. (Barros, 2004)

78

NOTAS EXPLICATIVAS

1 Professor de Sociologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).2Uno puede tener simultáneamente un pie en España y otro en Portugal. Uno puede sentarse, como yo hetenido oportunidad de hacerlo, en el hito nº 695 (…). En este marco-hito, uno puede aposentar y repartirsimultánea y respetuosamente sus glúteos entre dos Estados-naciones, dos provincias, un distrito y trestérminos municipales. Excesivas fronteras, se me antoja, para unas mismas posaderas“ (Uriarte, 1994apud Valcuende, Cardía, 2009, p 01).3Quando observamos a realidade específica da tríplice fronteira entre Brasil, Argentina, Paraguai, observamosa desproporção dos trabalhos de campo realizados em cada um desses territórios nacionais por investigadoresdos países vizinhos quando comparado com os trabalhos realizados “do lado de cá da fronteira”. Há tambémas limitações de financiamentos de agências nacionais e estaduais que dificultam a organizam de equipesde pesquisa internacionais, bem como os graus de desenvolvimento das próprias ciências sociais nessespaíses e o pouco diálogo entre os diversos pesquisadores argentinos, brasileiros e paraguaios nos estudosespecíficos das fronteiras internacionais. Dentre as experiências já existentes de parcerias de pesquisasenvolvendo investigadores de mais de um país, gostaria de destacar o exemplo do Observatório da TrípliceFronteira www.observatoriotf.com, formado especialmente por investigadores do Brasil e a Argentina.4 Em 2011 e 2012, dois cartazes muitos significativos das novas simbologias da sociedade paraguaia jáestavam presentes no próprio aeroporto de Foz do Iguaçu. De um da esteira das bagagens, o famoso cartazpresente em vários lugares das cidades brasileiras que fazem fronteira com o Paraguai: Visite o Paraguay,compre na Monalisa, do outro, o templo do consumo: Casa China. Aqui percebemos claramente como ossímbolos do universo artístico renascentista e o templo religioso chinês se encontram lado a lado na traduçãodo Paraguai como símbolo do consumo.5 O fortalecimento do diálogo entre a sociologia, a antropologia e a geografia nos estudos de fronteirasterritoriais pode se constituir em um caminho importante de investigação. A geografia no Brasil já tem umaforte tradição nos estudos das fronteiras nacionais e tem contribuído, de maneira significativa, com asreflexões contemporâneas sobre processos de integração supranacionais. Nossa perspectiva é também nosaproximar de uma abordagem humana e crítica da geografia em trabalhos futuros.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, José L. C. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios entre o Brasil e oParaguai. São Paulo: Annablume, 2010a.

_____. As fronteiras ibero-americanas na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Análise Social.Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, vol. XLX, 2º trimestre de2010b.

_____. Pesquisas em zonas de fronteiras: contextos, temas e abordagens interdisciplinares.COSTA, Edgar A.; COSTA, Gustavo Villela; OLIVEIRA, Marco Aurélio (orgs.). Campo Grande:UFMS, 2011.

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão donacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ANZALDÚA, Gloria. The homeland, Aztlán. El otro México. Borderlands/ La frontera: The

79

new Mestiza. 3ª ed. San Francisco, USA: Aunt Lute Books, 2007.

BARROS, Manoel de. Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1998.

CARDIN, Eric Gustavo. Sacoleiros e “Laranjas” na Tríplice Fronteira: Uma Análise daPrecarização do Trabalho no Capitalismo Contemporâneo. Dissertação de Mestrado, UniversidadeEstadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (UNESP), Araraquara, SP, 2006.

DA MATTA, Roberto. O oficio de etnólogo, ou como ter anthropological blues. In: NUNES,Edson de Oliveira (organizador). A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso emétodo na pesquisa social. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. p. 23-35

_____. Relativizando, uma introdução a antropologia social. Rio de Janeiro, Petrópolis, 1981.

DONNAN, Hastings; WILSON, Thomas M. Borders .Frontiers of Identity Nation and State.UK: Oxford, 1999.

FOUCHER, Michel. Obsessão por fronteiras. Tradução de Cecília Lopes. São Paulo: Radicallivros, 2009.

GRIMSON, Alejandro. La nación en sus límites. Contrabandistas y exiliados en la fronteraArgentina-Brasil. Barcelona: Gedisa, 2003.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

HERNANDEZ, Elodía et al. Fiesta y frontera: transformacionaciones de las expresionessimbólicas en la franja fronteriza de Huelva. 1999.

MACAGNO, Lorenzo; GIMENEZ BELIVEAU, Verônica; MONTENEGRO, Silvia (orgs..) ATríplice Fronteira: espaços nacionais e dinâmicas locais. Curitiba: UFPR, 2011.

MACHADO-PINHEIRO, Rossana. China-Paraguay-Brasil: uma rota para pensar a economiainformal. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 23, n. 67, São Paulo, pp. 117-133, jun de2008.

MARCUS, George. Ethnography in/of the World System: The Emergence of Multi-SitedEthnography. Annual Review of Anthropology. Vol. 24: 95-117 (Volume publication date October1995).

MAUSS, Marcel. O ensaio sobre a dádiva – forma e razão dastrocas nas sociedades arcaicas. In.Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974.

MORSE, Richard. O espelho do Próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo. São Paulo: UNESP, 2006.

PAZ, Octávio. O labirinto da solidão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

RAFFESTIN, Claude. Elements pour une théorie de la frontière. Diogène, 1986, vol. 34, 134,p. 3-21.

RODRIGUES, Léo Peixoto. Analogias, modelos e metáforas na produção doconhecimento em Ciências Sociais. Pensamento Plural, Pelotas, 01, p. 11-28,julho/dezembro de 2007.

80

SAHLINS, Peter. Boundaries: The making of France and Spain in the Pyrenees. United States:University of California Press, 1989.

SALDANHA, Nelson. Criatividade e metáforas em Ciências Sociais. Síntese Nova Fase, BeloHorizonte, v. 23, n. 74, p. 387-398, 1996.

SIMMEL, Georg. Estudios sobre las formas de socialización. Madrid: Alianza Editorial, 1986.

____. Puente y puerta. In: El individuo y la libertad. Barcelona: Ediciones península, 2001.

TOLOSANA, Carmelo Lisón. Antropologia de la frontera. Las máscaras de la identidad: clavesantropológicas. Barcelona: Editorial Ariel, 1997.

TURNER, Victor. O processo ritual. Petrópolis: Vozes, 1974.

VALCUENDE, José M. Fronteiras, territorios e identificaciones colectivas. Sevilla: FundaciónBlas Infante, 1998.

VALCUENDE, José M; CARDÍA, Lais. Etnografia das fronteiras políticas e sociais na Amazônialegal: Brasil, Peru e Bolívia. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.Universidad de Barcelona, vol XIII, n. 292, 1 de junio de 2009.

VALENZUELA, José Manuel. Centralidade de las fronteras. Procesos socioculturales em lafrontera México-EE.UU. HERLINGHAUS, Hermann; MORAÑA, Mabel (orgs. ). Fronteras dela modernidad en América Latina. México: Instituto Internacional de literatura iberomaericana,2003.

VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: NUNES, Edson de Oliveira. A AventuraSociológica, Rio deJaneiro, Zahar, 1978.

VILA, Pablo. Crossing borders, reinforcing borders: social categories, metaphors and narrativeidentities on the US-México frontier. United States of América: University of Texas Press, 2000.

_____. Ethnography at the border. London: University of Minnesota Press, 2003.

WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento na ciência social e na ciência política.Metodologia das Ciências Sociais. Vol. 1. São Paulo: Cortez, 2001.

_____. Relações comunitárias étnicas. Economia e Sociedade. Fundamentos de sociologiacompreensiva. Brasília: UnB, vol. 1, p. 267-277, 1994.

81

A INFUSÃO ETNOGRÁFICA EM COMUNIDADESNA FRONTEIRA1

Rodrigo Kummer2

Silvio Antônio Colognese3

As transformações em curso em nível mundial, tanto em termosda globalização quanto da formação de blocos regionais, conferem novacentralidade às questões das fronteiras, particularmente em termos dassuas expressões locais. São processos contraditórios e conflitivos que,ao mesmo tempo, redefinem territórios e flexibilizam fronteiras paraacelerar os fluxos econômicos entre os países, e se fecham e ampliam osempecilhos para os fluxos de pessoas, tanto para retrair as migrações dapopulação pobre para lugares mais ricos, quanto para tentar conter asações de grupos criminosos, ligados ao contrabando, aos tráficos dedrogas, armas e pessoas, e ao terrorismo internacional. São processosintensos, que produzem deslocamentos profundos nos sentidos associadosàs fronteiras. Estes deixam de ser entendidos principalmente como limitesentre territórios e passam a figurar como centros das “oportunidades”,repletos de crescentes conflitos. São exemplares neste sentido as fronteirasBrasil/Paraguai e México/Estados Unidos, embora as expressões locaisdestas dinâmicas possam ser identificadas em nível mundial.

Este trabalho discute dilemas metodológicos para a pesquisa emcontextos locais, notadamente em comunidades situadas em ambientesfronteiriços. Reflete as incertezas dos pesquisadores em situações decampo, onde são levados a lançar mão de um misto de abordagens etécnicas, muitas vezes não possíveis de serem seguidas conformeprevistas. Estes dilemas metodológicos estão referidos maisespecificamente a situações de pesquisa qualitativa enfrentadas em

82

estudos de casos específicos, mais particularmente em procedimentosque implicam a etnografia e o manuseio de dados coletadosempiricamente.

São investigações que mobilizam um misto de procedimentos depesquisa, enquanto uma estratégia para o cercamento e a elucidação deproblemáticas específicas. De maneira geral se referem aos estudos decasos em comunidades fronteiriças ou não, seguindo em alguma medidaa perspectiva dos estudos antropológicos nos quais “o lócus do estudonão é o objeto do estudo. Os antropólogos não estudam as aldeias (tribos,cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias” (GEERTZ, 1989, p.16). Nesta medida, destoam em muitos aspectos da tradição dos chamadosestudos de comunidade, enquanto “estudos fundamentados na observaçãodireta de pequenas cidades ou vilas com as técnicas desenvolvidas pelaEtnologia no estudo das sociedades tribais” (MELATTI, 1983, p. 17).

Da mesma forma, são investigações orientadas porproblemáticas de pesquisa mais heterogêneas nas quais, ao invés daverificação de hipóteses específicas, os resultados dependem dadecifração de intrincadas tramas, que se processam através de interaçõesenvolvendo um conjunto variado de atores sociais no ambiente dasfronteiras. Por isso a sua abordagem é marcadamente qualitativa, nosentido que todos os fenômenos são a priori considerados igualmenteimportantes e preciosos: a constância das manifestações e aocasionalidade, a frequência e a interrupção, a fala e o silêncio(CHIZZOTTI, 2003, p. 84). Nestas tramas os significados manifestos seenredam com os que permanecem ocultos. Todos os sujeitos implicadossão inicialmente dignos de estudo, embora permaneçam únicos: o cultoe o iletrado, o delinquente e o juiz, os que falam e os que se calam, osnormais e os anormais. Não são estabelecidos previamente centros rígidospara as análises e as interpretações de pesquisa.

Estas opções metodológicas heterogêneas para a aproximação dosobjetos empíricos de pesquisa se justificam pela necessidade demanipulação de um conjunto complexo de variáveis implicadas nestastramas sociais. A amplitude e a complexidade dessas variáveis sugerema dificuldade prática de padronização dos procedimentos de pesquisa. Opesquisador precisa aproximar-se ao máximo da realidade empírica, afim de que essas variáveis possam ser mais controladas e dimensionadas,

83

ainda que esta aproximação represente riscos a objetividade e aimparcialidade da análise.

Destas modalidades de pesquisa destacamos neste trabalho aetnografia, que ocupa frequentemente lugar de maior destaque nasincursões a campo. A atividade etnográfica, esta referida á análise docotidiano e das características da vida comunitária dos sujeitos, seuselementos identitários e as suas atividades de sociabilização. É um recursode pesquisa que pode se revelar extremamente producente eminvestigações locais em áreas de fronteira. Porém, antes de tratarespecificamente da etnografia, discutimos alguns percalços nasinvestigações em comunidades locais nas fronteiras.

PESQUISANDO NAS COMUNIDADES

Os chamados Estudos de Comunidade no Brasil se desenvolverama partir da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, criada em1933. A sua influência teórica está referida aos estudos de comunidaderealizados nos Estados Unidos desde o ano de 1920, que tinham o objetivode compreender “comunidades em processo de mudança social”(OLIVEIRA & MAIO, 2011, p. 523). No Brasil estes estudos tiveram umpapel preponderante na efetivação das Ciências Sociais, que dessa formapuderam contribuir efetivamente para o chamado “desenvolvimentismo”,especialmente na década de 1950, quando o país vivia uma conjunturade transformação. Essa transformação seria a passagem de um país“essencial-mente rural e agrário em país urbano e industrial” (OLIVEIRA& MAIO, 2011, p. 522), onde a solução das discrepâncias regionaistambém eram tematizadas.

O papel das Ciências Sociais no processo desenvolvimentista foigarantido, segundo Goldwasser (1974), uma vez que esses estudosserviram para institucionalizar uma consciência científica para acompreensão da realidade brasileira, pautando-se sempre numa intensacarga empírica. Rompiam com as interpretações de discurso longo edemasiadamente abrangentes. Trabalhando com um controle maior dasvariáveis e categorias em grupos restritos, permitiram análises maisaprofundadas e menos especulativas. Como garantem Oliveira & Maio

84

(2011) os estudos de comunidade buscavam ao máximo a objetividade,se configurando em análises detalhadas e minuciosas, uma vez que issoconferia um caráter de “verdade científica”. Entre os sociólogos quedesenvolveram estudos de comunidade no Brasil podem-se destacar:Emílio Willems; Charles Wagley; Kalervo Oberg; Antonio Candido;Maria Isaura Pereira de Queiroz; Albersheim; Oracy Nogueira; DonaldPierson; Doris Meyer; e Ellen Woortman.

A formulação dos estudos de comunidade está vinculada aosestudos clássicos da Antropologia Social, no que tange a análise dassociedades primitivas. A análise de caracteres culturais totais em umasociedade primitiva rendia a interpretação do modo de funcionamentodo grupo. Para os estudos de comunidade ocorreu uma transposiçãometodológica, sendo eles também estudos que pretendiam explicar atotalidade das comunidades (ARENSBERG & KIMBALL, 1973;GOLDWASSER, 1974); (CASTRO, 2001).

De acordo com Oliveira & Maio (2011) nesses estudos havia umainterdependência entre a Antropologia e a Sociologia, ao que chamamde “zona interseccional” dado que a base metodológica era ligada aetnografia – método aproximativo e extenso a várias problemáticas – e ofoco desta problematização eram as mudanças sociais – engendrandonas questões de estrutura, resistência, desenvolvimento. Os critérios deobjetividade e subjetividade foram relativizados e somados as práticasde etnografia. Como descreve Castro (2001, p. 197), “a objetividadecientífica é construída a partir de uma experiência subjetiva e individual(o estar lá), pelo uso de determinados procedimentos e técnicas“científicas” na coleta de material, e legitimada pela autoridadeetnográfica do antropólogo”.

Os chamados “estudos de comunidade” representam uma tentativade apreensão unitária da realidade social. Metodologicamente,refletem uma transposição para o âmbito das sociedadescomplexas, das técnicas de investigação caracteristicamentedesenvolvidas pela Antropologia Clássica no estudo dassociedades ditas primitivas. Do modelo teórico destas sociedades,implícito naquela transferência de abordagem, destacaram-se asdimensões de homogeneidade e isolamento que se assumiam comocondições necessárias à aplicação do método antropológico,

85

produzindo-se os primeiros estudos de comunidadepreferencialmente sobre pequenos aglomerados ruraisrelativamente compartimentalizados em suas ligações com asociedade global. (GOLDWASSER, 1974, p. 69).

Era candente a importância de analisarem-se os espaços emtransformação e aqueles que mantinham um grau de manutenção epreservação cultural. Avaliavam-se categorias de passado – do atrasado– e de modernidade – do novo. Consistia numa verificação do nível dedesenvolvimento e da natureza das relações tecidas relacionando-se aoque era necessário a sua justaposição ao ritmo do resto da sociedadenacional. Para tal os estudos buscavam “a exploração do comportamentohumano em seu aspecto social, cultural e de grupo, in vivo, em seu cenárionatural, mais ou menos à semelhança do emprego dos métodos de histórianatural em biologia e zoologia” (ARENSBERG & KIMBALL, 1973, p.190). O foco tornava-se o comportamento dos indivíduos que compunhamos grupos comunitários.

O estudo de comunidade não é o estudo de culturas inteiras, oude comunidades [...]. É o estudo do comportamento humano emcomunidade; isto é, nos contextos naturais, constituídos da vidacooperativa natural e especificamente humana, dosrelacionamentos intergeração, e intersexo, da comunidade etransmissão cultural familiar em processo. (ARENSBERG &KIMBALL, 1973, p. 190).

Porém, para pensar esse comportamento específico é preciso definiro caráter do que é ou não comunitário, assim como era necessária aespinhosa tarefa de classificar uma comunidade, de caracterizá-la. Comoafirmam Arensberg & Kimball (1973, p. 193), “em nenhuma parte estárealmente claro o que seja comunidade, em tamanho, organização, ououtros caracteres, ou como deve ser tratado o relacionamento entrecomunidade, cultura e a sociedade mais ampla”. Enfatizam ainda que ascomunidades variam em tamanho, em complexidade e na possibilidadede problematizações subjacentes. Como observou Castro (2001), o“local” onde a pesquisa era realizada tinha grande importância nestestrabalhos, e diversos estudos definiam a comunidade a partir do tamanho,

86

lido como número de habitantes. Para tanto a definição de comunidadeera associada ao caráter “rural”, demarcada a partir do “tamanho do local”,“grau de isolamento” e de seu “desenvolvimento” (CASTRO, 2001, p.196).

Goldwaser entende que existe um modelo forjado para a análisedas comunidades, perdulárias das definições de Conrad Arensberg e quese baseiam inicialmente na “ideia de totalidade” e estabelecem umconjunto de pressupostos classificatórios que imprimem uma expectativade verificação empírica (GOLDWASSER, 1974, p. 71).

[...] em qualquer das dimensões consideradas, menciona-se sempreo caráter unitário da comunidade; os demais atributos seintroduzem para caracterizar sua natureza singular em face deoutros fenômenos de constituição unitária: territorialidade (acomunidade é localizada, ocupa um espaço físico próprio que lhefornece a base ecológica), critério demográfico (a comunidadecompreende uma população como um dos seus constituintesprimários), organização social (as relações sociais na comunidadecompõem um sistema integrado cujo padrão pode serempiricamente determinado) e código cultural (um sistemaparticular de significados permeia a comunidade, desenvolvendoentre seus membros o sentido de sua participação comum esinalizando a área de domínio específico da comunidade).(GOLDWASSER, 1974, p. 71).

Grosso modo, os estudos de comunidade podem ser conceituadospela acepção de Comerford (2005, p. 115): “estudo exaustivo de ummunicípio, tomado a princípio como ‘comunidade’”. Arensberg &Kimball (1973, p. 170) definem estes estudos como um “método deobservação e exploração, comparação e verificação”. Como método nãoseria o estudo de uma comunidade, nem de várias comunidades ou dopróprio conceito de comunidade. Como alertam “seu propósito é antes ode usar a comunidade como um contexto para a exploração, a descobertaou a verificação de interconexões entre fatos e processos sociais epsicológicos” (1973, p. 171). Portanto, a comunidade cumpria o papelde um lócus privilegiado para a análise de conjunto particular defenômenos e eventos sociais.

87

Estes estudos, porém, suscitam críticas bastante contundentes,remetendo a um impasse teórico e, por vezes, uma discussão acusatória.Parte-se da definição de estudos de comunidade forjada por Oliveira &Damasceno (2009, p. 253), que expõe a multiplicidade de aspectosabordados por tais estudos, sobrepondo-se aqueles relativos a reconhecera comunidade como um espaço claramente definido, o que pressupôstendências a um entendimento de isolamento4com relação aos processosali vivenciados.

De acordo com ARENSBERG & KIMBALL, muitos estudos decomunidade dão a impressão de que tratam o grupo local como se asociedade mais ampla não existisse, desconsiderando-a (1973, p. 189).Poucos deles mostraram como a sociedade em geral afetava a comunidadeem estudo. Possuiriam um caráter descritivo e abrangente, buscandorelatar ao máximo a “vida social das comunidades, atrelada a elementosque recompu-sessem o seu desenvolvimento histórico” (OLIVEIRA &MAIO, 2011,p. 527).

Os estudos de comunidade tendiam a captar os aspectos demanutenção nos ambientes comunitários rurais. Os fatores de mudançaeram apontados, mas dificilmente problematizados nesses locais. Ascríticas de “ensaísmo” referentes aos estudos de comunidade vinculam-se a dificuldade que tinham de prover um entendimento geral do ambienterural em transformação. Foram considerados “alienados” por nãodefinirem categoricamente sua relação com a estrutura social mais amplae não subsidiarem de maneira enfática o conhecimento do contexto socialnacional (OLIVEIRA & MAIO, 2011). Ponderam ainda Arensberg &Kimball, definindo que este problema é tácito dado à ineficácia decomparação5 e generalização, pois afirmam que “nem os problemas, nemas comunidades são comuns” (1973, p. 193). Ainda neste sentido éimportante considerar que o exercício de generalização dos estudos decomunidade, instituído em caráter microssocial, para a noção de totalidadeda realidade nacional não convergem de maneira assimétrica. Comoadverte Geertz, os ambientes microssociais produzem em primeirainstância respostas para si mesmos e não necessariamente ao conjuntosocial mais amplo.

88

A noção de que se pode encontrar a essência de sociedadesnacionais, civilizações, grandes religiões ou o quer que seja,resumida e simplificada nas assim chamadas pequenas cidades ealdeias “típicas” é um absurdo visível. O que se encontra empequenas cidades e vilas é (por sinal) a vida de pequenas cidadese vilas. Se os estudos localizados, microscópicos, fossemrealmente dependentes de tais premissas para sua maior relevância– se pudessem capturar o mundo amplo no pequeno – eles nãoteriam qualquer relevância. (GEERTZ , 1989, p. 15-16).

Jackson (2009, p. 276) aponta críticas aos estudos de comunidadeavaliando a ausência da dimensão histórica como ponto de deficiência,uma vez que não contemplam os “processos mais amplos” aos quais ascomunidades foram expostas e que passam despercebidos. A comunidadeé entendida como um agregado amorfo e estanque. Da mesma formaafirma Melatti, ao incitar as inconsistências relativas a uma tentativa degeneralização teórica a partir de exemplos muito dispersos e desconexos.

Entre as críticas que se fizeram aos estudos de comunidade está ade que desdenham a documentação histórica [...]. Outra crítica éa do desprezo pelas relações da comunidade estudada com asociedade mais ampla, tratando-a artificialmente como umatotalidade isolada, fazendo o pesquisador perder de vista certasconexões fundamentais. [...] Ao que parece, com os estudos decomunidade pretendia-se chegar a uma visão geral da sociedadebrasileira, através da soma de muitos exemplos distribuídos pelasdiversas regiões do Brasil. Além desse objetivo geral, tais estudosestavam quase sempre voltados para objetivos específicos, comomudança cultural, persistência da vida tradicional, problemas deimigrantes, educação e vários outros. (MELATTI, 1983, p. 18).

Ainda conforme Melatti (1983, p. 30), os estudos não seguiamuma orientação temática, elegendo como problemática de análise “acomunidade” em si mesma, denotando uma pretensão de entendê-laenquanto espaço isolado, o que, segundo ele, não seria pertinente, hajavista a dicotomia implícita em tal pressuposto.

Cabe a crítica ao descuido na acepção entre comunidades ruraismodernas e aldeias tidas como primitivas. As situações de interação social

89

não podem ser tecidas como igualdade entre ambas. Além disso, parecenão ter sido considerado o fato de que as comunidades nas complexassociedades modernas diferem, em espécie, das comunidades das culturassimples e primitivas (ARENSBERG & KIMBALL, 1973). Em suma ascomunidades estudadas pela Escola Livre de Sociologia e Política nãoeram, salvo exceção, sociedades simples, no sentido que teciam esparsasrelações sociais e que não estivessem ligadas à sociedade ampla e global,ainda que de maneira rarefeita. Esse caráter alimentava as manifestaçõesque viam essa modalidade de pesquisa como inválida e limitada(OLIVEIRA & MAIO, 2011).

A pretensa “utilidade” dos estudos de comunidade segundoGoldwasser (1974) e Castro (2001) estava no fato de que eles subsidiariama formulação e implantação de reformas sociais. Os estudos forneceriamalém das informações necessárias para medir os investimentosnecessários, bem como considerar os melhores métodos de aplicação,revelando os possíveis impasses e dificuldades de sua condução. ParaOLIVEIRA & MAIO (2011), os estudos de comunidade representavamos esforços que as Ciências Sociais dispunham no sentido de contribuirno desenvolvimento do país, incitando mudanças sociais. Em seu tornocriava-se um corpo “técnico” composto por agrônomos, antropólogos,sociólogos, para “corrigir as reais necessidades das populaçõesinterioranas” (2011, p. 536). Essa era uma tendência aos procedimentosque visavam conhecer cientificamente a sociedade para resolver os seusproblemas. Contudo, além de pensar as transformações e interporem-separa resolução de problemas os cientistas sociais faziam críticas adeterminados modelos de mudança social, preocupando-se em adequá-las. Consistia numa “intervenção racional” na realidade.

Existe também um problema de representatividade dos estudos decomunidade em relação ao resto do ambiente social, apontados por Castro(2001) e Goldwasser (1974). Afinal de contas a condução rigorosa, ocontrole absoluto de variáveis a expansão de discussão de “todos” osaspectos de um pequeno grupo social pode servir para o entendimentoda sociedade em geral? Em outras palavras, cientificamente os estudosde comunidade foram questionados enquanto sua importância para acompreensão da sociedade. Como contextualiza Goldwasser “arepresentatividade de um fenômeno é aquilatada em função do

90

atendimento de certos requisitos para comparabilidade” (1974, p. 76). Ofechamento e mesmo o isolamento analítico dificultam a possibilidadecomparativa, mesmo não a eliminando.

Essas críticas, no entanto, são ponderadas por Melatti (1983). Emseu entendimento estariam emergindo novas análises, baseadas emaspectos específicos da realidade comunitária. Exemplifica serem estesestudos baseados, entre outros, na singularidade étnica de certascomunidades rurais e estudos de aculturação de imigrantes, além deestudos de pequenos criadores de gado, agricultores camponeses,garimpeiros etc., sendo produzidos, geralmente em nível de dissertaçõesde mestrado. Denomina tais estudos pelo aspecto de serem estudos “em”comunidade e não mais “de” comunidade.

Por outro lado, já existe uma série de estudos sobre temasespecíficos desenvolvidos sem que estejam ligados a projetos maisamplos, em pequenas comunidades. Porém não se confundem comos antigos “estudos de comunidade”, por não pretenderem estudartotalidades socioculturais, mas apenas um determinado aspecto.Seriam “estudos em comunidades”, passíveis de um tratamentocomparativo a posteriori, uma vez que não previsto nos seusprojetos individuais. [...] Se os estudos de comunidade do períodoanterior foram objeto de várias apreciações, tanto por parte dealguns de seus realizadores como daqueles que não os achavamadequados para atingir os objetivos a que se propunham, os estudosregionais e os estudos em comunidades não parecem ter até agorasuscitado nenhum comentário crítico (MELATTI, 1983, p. 30-31).

A positividade da realização de estudos de comunidade reside, ouresidia, portanto, em seu caráter empírico, objetivo e intenso. Além disso,a superação de algumas das inconsistências na visão que se tinha dacomunidade e suas relações podiam produzir conhecimentos efetivospara o entendimento social. Como destaca Goldwasser, os estudos queconsideram os aspectos conflituais e paradoxais da comunidade, queconsiderem sua relação com a sociedade mais ampla e que procuramrelacionar os dados empíricos com um escopo teórico articulado temuma relevância destacada. Isto por que, como assegura, a comunidade

91

se mostra como “um lócus privilegiado para observação docomportamento humano, com seus sistemas de representação e categoriasde ação” (1974, p. 77). Para um empreendimento teórico válido épremente inquirir estes aspectos nas múltiplas possibilidades, reafirmandoque os resultados dessas discussões dependem da relação estabelecidana sua tessitura. Em situações nas fronteiras esta potencialidade pode serevelar ainda mais decisiva.

Finalmente, os estudos de comunidade, desenvolvidos pela tradiçãodas Ciências Sociais brasileiras exprimem um escopo de deficiênciasquando confrontados com a realidade empírica. O fechamento e asingenuidades que podem suscitar não inviabilizam nem deturpam aimportância que tiveram e que ainda têm. A comunidade como elementosocial ainda está presente em nossa sociedade e continua sendo um espaçoprivilegiado de análise. Com as ponderações metodológicas semprereafirmadas é pertinente considerar a necessidade de se fazerem novosestudos de comunidade. Não de comunidades entendidas em seu supostoisolamento, mas nas suas relações e fluxos sociais. Neste sentido, ascomunidades nas fronteiras podem representar um locus através das quaisimportantes problemáticas de pesquisa sejam encaminhadas. Não naacepção crítica que já teve, mas no sentido de considerar o espaçocomunitário nas fronterias na construção de problemas de pesquisa. Afeitura desses estudos precisa, talvez, seguir a aferição de que não seestudam lugares, estudam-se fenômenos, isto é, estudar “na” comunidade,“na” fronteira, e não “a” comunidade e “a” fronteira por ela mesma.

Enfim, esta configuração para os estudos pode assumir relevânciarenovada, notadamente “nas” comunidades situadas em áreas “nas”fronteiras. Mesmo por que, muitas problemáticas relacionadas àsfronteiras, notadamente aquelas envolvendo os fluxos de pessoas,demandam estudos localizados em determinadas comunidades nasfronteiras. Nestes as metodologias qualitativas de investigaçãopredominam e, dentre elas, a etnografia frequentemente assume a maiorimportância. Por isso na sequência discutimos alguns dilemasmetodológicos para a pesquisa etnográfica ou o que chamamos a infusãoetnográfica em comunidades nas fronteiras.

92

A INFUSÃO ETNOGRÁFICA EM COMUNIDADES NAFRONTEIRA

A construção, a feitura, a forja de uma análise social compõem-sede incessantes situações paradoxais. Ao propor deslindar uma dadaproblemática o pesquisador está envolto em conflitos operacionais,teóricos, conceituais e pessoais. Os mecanismos que lança mão,geralmente cuidadosamente prescritos e justificados, são insuficientespara a compreensão – efetiva – dos fenômenos sob os quais se debruça.Longe de lhe frustrar, esta dura realidade conjuntural o encaminha arever, repensar e reconstruir intermitentemente caminhos de pesquisa.

Essa constatação é comum no desenvolvimento de pesquisas emcomunidades nas fronteiras. Mesmo por que, em comunidades nasfronteiras, é comum um estranhamento maior do pesquisador em relaçãoà realidade empírica vivida pelos sujeitos pesquisados, em suas relaçõescom o lado de lá e o lado de cá da mesma. Por este motivo, frequentementea etnografia que, de início, pode ser concebida como um método decontrole dos demais instrumentos de pesquisa (entrevistas, questionários,documentos oficiais etc.), pode passar a ocupar uma posição privilegiadae de intensa contribuição para a compreensão da realidade em estudo.Assim, entre as diferentes estratégias de pesquisa, a etnografia podetornar-se o mecanismo de depuração dos dados, um instrumento dequalificação de todas as informações colhidas em campo. Algo que seaproxima da acepção de Clifford Geertz quando afirma que “o ecletismoé uma frustração, não porque haja somente uma direção a percorrer comproveito, mas porque há muitas: é necessário escolher” (1989, p. 4).

Particularmente, a etnografia (ou o “etnografar”) torna-seimprescindível para problematizar o sentido dado às ações dos sujeitosque se movem em comunidades nas fronteiras. Para perceber os processosde representação e os aspectos identitários que aqueles indivíduosmanifestam, intencionalmente ou não. Para desvendar as estratégiasdestes sujeitos no cotidiano nas fronteiras. Isto por que, como adverteGeertz: “a maior parte do que precisamos para compreender umacontecimento particular, um ritual, um costume, uma ideia, ou o que

93

quer que seja está insinuado como informação de fundo antes da coisaem si mesma ser examinada diretamente” (1989, p. 7). Por isso, adiscussão precisa avançar no sentido de complexificar o corriqueiro, oóbvio e o naturalizado em questionamentos, em pomo de discórdiaanalítico, em pesquisa.

A etnografia pode assumir neste ambiente influência decisiva, aindaque conduzida de maneira amadorística e em tons de aprendizado. Porisso o pesquisador deve redobrar atenção no campo de pesquisa paraavalizar técnicas, formas e modos de conduzir as várias incursõesetnográficas a fim de torná-las não só efetivas, mas também rigorosas eválidas. Algumas das obras clássicas6 que tratam do “fazer etnográfico”devem ser consultadas e servem para inferir os pilares mínimos de umapesquisa etnográfica propriamente dita. Dentre elas destacam-se: asproposições clássicas de Bronislaw Malinowski (1985) na introduçãode seu estudo “Os Arnonautas do Pacífico Ocidental”, obra originalmentepublicada em 1922, onde imprime modelos, exemplos e advertênciasdeste método de pesquisa; o trabalho de grande lastro de Clifford Geertz(1989), que pressupõe um contributo para estudar os intricados fenômenosculturais; e por fim, dirimem-se algumas críticas considerando asproposições de James Clifford (2011), principalmente no que tange aospercalços da associação/dissociação entre o etnógrafo e a etnografia.

Conforme lembra Geertz (1989), é em torno do conceito de culturaque surgiu todo estudo da antropologia e, por conseguinte, o que osantropólogos fazem é etnografia. Sua tese é a de que os fenômenosculturais, dada sua complexidade, prescindem de uma “TeoriaInterpretativa”. Essa teorização passa invariavelmente por métodos depesquisa que fortaleçam e aprofundem os vínculos do pesquisador comos aspectos pesquisados, no sentido que chama de uma etnografia quepromova a descrição “densa” em detrimento de uma descrição“superficial”.

[...] a etnografia é uma descrição densa. O etnógrafo enfrenta, defato – a não ser quando (como deve fazer, naturalmente) estáseguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados – é umamultiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delassobrepostas ou amarradas umas às outras, que são

94

simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que eletem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar.(GEERTZ, 1989, p. 7).

Por conseguinte, o termo infusão, utilizado nesta construção textualquer significar a entrada, o envolvimento, o mergulho na realidade e nasespecificidades da etnografia. A etnografia por seu turno é entendidacomo um mecanismo privilegiado de aproximar-se e distanciar-se doobjeto de pesquisa. Uma condição em que o pesquisador se mantém emespécie de sístole e diástole entre suas acepções teóricas e os elementosque a realidade de campo forma, desforma e reforma. Etnografar emcomunidades na fronteira supera a noção de um simples registro do quefoi visto. Assume uma posição de compreender pelo vivido, pelas açõesde dentro, se possível do âmago do problema. Geertz supõe que essacondição em relação ao etnógrafo lhe conduz também a uma forma deproposição para ação. Pergunta-se: “o que faz o etnógrafo? – ele escreve.[...] ele observa, ele registra, ele analisa – uma espécie de concepção deveni, vidi, vinci do assunto” (1989, p. 14). Dicotomias à parte, etnografarnão condiciona, como método e como prática, uma fórmula que alcancerespostas definitivas e totalizantes. Ainda seguindo Geertz, entende-seque mesmo não obtendo uma resposta total, vários pontos, fenômenos esituações em comunidades nas fronteiras podem ser analisados,discutidos, explicados e compreendidos à luz do fazer etnográfico.

Malinowski defende que a justificativa do fazer-se etnografia estána existência de fenômenos sociais que dada sua importância ecomplexidade, muitas vezes escapam ao registro de pesquisasquantitativas e observações distanciadas. Para ele estes eventos “têmque ser observados em sua plena realização” (1985, p. 42). São exemplos:as realidades que configuram rotina, como a vida comunitária; as noçõesde tempo e espaço; as tradições dispostas; as relações de trabalho, deamizade, de agrupamento, de hostilidades; as relações cotidianas nasfronteiras etc. Enfim aqueles eventos que não permitem uma rápida eefetiva definição por serem complexos também entre aqueles que ospraticam.

Uma descrição densa como defende Geertz não é uma descriçãodetalhista, mas uma análise aprofundada dos porquês envolvidos nas

95

ações. O etnógrafo não pode ser um espectador que apenas narra fatos,antes deve ser um interlocutor que os problematiza, além inclusive doque os próprios atores compreendem sobre. Como diz, é preciso analisarque vida eles levam e como a explicam; o que fazem e o que lhes aconteceao fazê-lo de tal forma (1989, p.11). Por isso na análise dos fenômenosem comunidades nas fronteiras o pesquisador precisa considerar aimportância e os sentidos conferidos pelos sujeitos às suas ações, tantoem termos manifestos quanto velados (GEERTZ, 1989, p.8).

O fazer etnografia não determina uma análise, mas constrói umatentativa de leitura em analogia ao que Geertz convenciona de “ummanuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendassuspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinaisconvencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamentomodelado” (1989, p. 7). Como experiência pessoal é um exercício devontade que incide em “situar-se” entre as posições teóricas e a realidadedireta vivida em comunidades nas fronteiras. Esse é um exercício bem-sucedido apenas parcialmente (GEERTZ, 1989). Seu foco evidencia-seno discurso e no comportamento dos indivíduos sob a leitura, nãonecessariamente em quem eles são.

Deve atentar-se para o comportamento, e com exatidão, pois éatravés do fluxo do comportamento – ou, mais precisamente, daação social – que as formas culturais encontram articulação. Elasencontram-na, também, certamente, em várias espécies deartefatos e vários estados de consciência. Todavia, nestes casos osignificado emerge do papel que desempenham no padrão de vidadecorrente, não de quaisquer relações intrínsecas que mantenhamumas e outras. (GEERTZ, 1989, p. 12-13).

A organização e os elementos sociais não se dirimem em tornoapenas do que está explicito nos discursos (GEERTZ, 1989).Notadamente no ambiente das fronteiras, as múltiplas condutas não estãonecessariamente marcadas a partir de códigos e estes por sua vez nãoprescindem à publicação oficial. Os códigos são estratagemas que nemsempre determinam condutas, o que exige ao pesquisador tornar visíveisas “curvas do discurso social”, ou fixá-lo de maneira “inspecionável”(GEERTZ, 1989, p. 13). Ao fazê-lo o etnógrafo cria um elemento de

96

entendimento da multiplicidade do fenômeno humano. Inicialmentetransforma os acontecimentos em dados, que podem subsidiar as análisese que se institui como informação codificada e permanente, o que permiteque os discursos e comportamentos possam ser guardados para consultasa posteriori (GEERTZ, 1989).

Na etnografia, ao passar do nível da observação e participaçãoentre os agentes pesquisados para o grafar – para escrever o que desseconvívio sobrevém como teorização possível – o etnógrafo se vê emdelicada tarefa. Como afiança Geertz, Clifford e mesmo Malinowski, aescrita, o diário de campo, o relatório não são elementos ou “entidades”que possam expressar exatamente o que ocorre entre os atores sociais. Otexto etnográfico é também uma versão construída pelo etnógrafo emrelação ao que pesquisou. É uma grafia metódica, comprometida comcritérios e cientificidade. Porém nunca substituirá ou expressará o fatoem si mesmo.

Para Paul Ricoeur, conforme contextualiza Geertz (1989, p. 14), épreciso ponderar a amplitude e a aplicação do texto etnográfico. Sendoeste constituído gradativamente através de discursos, o que importa emtermos de profundidade de compreensão se torna não necessariamente oque o ator social “diz” “ao” falar, mas sim o que foi “dito” “no” falar.Significa complexificar – ainda que nem sempre se possa chegar aconclusões factíveis – o que quis ser dito, como foi dito, o que de fato foidito, para quê foi dito, além do que não foi dito, silenciado e deturpadoe seus porquês subsequentes. Por isso o etnógrafo deve perseguir a“substância” dos sentidos implícitos e explícitos, indo além do que édito e não dito.

A etnografia torna-se assim um instrumento descritivo nosentido da representação dos fenômenos sociais. É uma descrição densapor que é interpretativa no sentido em que expressa o fluxo dos múltiplosdiscursos manifestos. Esse discurso torna-se permanente uma vezetnografado, pois permanece disponível após a incursão do etnógrafo,inscrito e encrustado no texto. É o que Geertz entende por “fixá-lo emformas pesquisáveis” (1989, p. 15).

Um exemplo clássico do trabalho etnográfico provém de BronislawMalinowski. Ele foi um antropólogo afeito às pesquisas de campo. Suasincursões entre populações ditas primitivas e tribais na Ásia e Oceania

97

renderam obras seminais. Exemplo mais claro de seu trabalho é o livro“Argonautas do Pacífico Ocidental”. A obra retrata com detalhes ocotidiano, as relações e os rituais entre os habitantes das Ilhas Trobriand,na costa da Nova Guiné. Nela ele registra o ritual do Kula, uma espéciede comércio recíproco e ritualístico entre vários povos dessa região, quepermanece disponível para a pesquisa.

Malinowski desenvolveu um “estilo” de pesquisa etnográficaalcunhado como “descrição total”. Caberia, segundo ele, ao etnógrafoinserir-se no grupo pesquisado, conviver com ele e discorrer sobrepraticamente tudo o que faz, como faz e porque o faz. Não haveria motivopara selecionar aspectos e fenômenos, uma vez que toda e qualquer atitudetomada pelo grupo importaria no sentido de compreendê-lo. Julgava “toloe míope” aquele que, ao estar diante de uma variedade de fenômenos,ignorasse e desprezasse parte deles por não ver utilização teórica imediata(1985, p. 43).

O etnógrafo de campo deve cobrir de modo sério e sóbrio toda aextensão dos fenômenos em cada aspecto da vida tribal, atribuindotanta importância aos fatos rotineiros e banais quanto aqueles quechamam a atenção por surpreendentes ou estranhos. Devepesquisar, ao mesmo tempo, toda a cultura tribal, na totalidadede seus aspectos. (MALINOWSKI, 1985, p. 34. Grifos do autor).

Suas acepções consideravam mister organizar o trabalho em termoscientíficos. Asseverava que o etnógrafo precisava definir e descrevertodos os métodos utilizados. Almejava separar “os resultados daobservação direta das afirmações e interpretações dos nativos” daquiloque concebia como “inferências do autor, baseadas em seu bom senso eseu discernimento psicológico” (MALINOWSKI, 1985, p. 26). Assim,considerava indispensável que ficasse bem definido o que era discursodo nativo e o que dizia respeito à análise do pesquisador.

Preocupava-se com a maneira como o pesquisador conduziria suasanálises, de maneira a não permitir que seu texto caísse em descréditoao suscitar uma “construção” difusa da realidade. Isso o mantinha comoperdulário de uma vigília intelectual constante que só se acalentava“através da aplicação paciente e sistemática de um certo número de regrasdo bom senso e de princípios científicos bem conhecidos e não pela

98

descoberta de qualquer atalho maravilhoso que conduza aos resultadosdesejados sem esforço ou problemas”(MALINOWSKI, 1985, p. 29).Afirmava ainda a necessidade de o etnógrafo estabelecer-se em base aprincípios metodológicos como: orientar-se por objetivosverdadeiramente científicos; criar condições adequadas de trabalho;emanter-se vigilante na aplicação de métodos de coleta, manipulação eregistro de dados (MALINOWSKI, 1985).

Para ele, o pesquisador deve manter constante ponderação emrelação ao peso que a preparação teórica configura em um trabalhoetnográfico. Ele não deve ir a campo para lá considerar a importância ea viabilidade de análise dos fenômenos, sob o risco de se desconsiderarfatos e eventos. Da mesma forma não pode propor engessar fatos a teoriaspreestabelecidas, de modo a preencher com informações do campo umafôrma teórica que resultará em conclusões de pesquisa. Sugere nessesentido que ambos, teoria e dados de campo, sejam mantidos numadistância segura que não os funda de inicio e que não impeça sua relaçãoposterior. Destacava neste sentido que estar preparado cientificamentenão era o mesmo que sobrecarregar-se de pré-julgamentos ao ir a campo.

Para Malinowski o etnógrafo não deve omitir qualquercomportamento, nem o íntimo nem o legal. Cabe ao pesquisador “mostraros detalhes e o tom do comportamento e não o simples esboço dosacontecimentos” (1985, p. 43). Problematiza nesse sentido que apreocupação com os comportamentos se justifica uma vez que em umgrupo social (em sua fala seria mais apropriadamente um grupo primitivo)cada elemento tem uma impressão parcial do todo que forma. Se osdiscursos e os comportamentos forem tomados como partes isoladas einflexíveis, a visão do todo será impossibilitada. Para tanto, lança mãode uma prática objetiva. Ao invés de incidir ao indivíduo perguntas queexprimam regras gerais, pode-se interrogar-lhe de que forma resolveriaum determinado problema (p. 35), ou seja, buscar compreender como opesquisado exprime seu próprio comportamento e suas própriasconcepções em relação a uma explicação do todo que forma. Todos estesaspectos, todavia, precisam ser questionados em relação à estruturacoletiva na qual se organizam. Em comunidades nas fronteiras podem-se encontrar realidades bastante diferentes. Por isso sugere que, o queinteressa são ações e manifestações sociais, ainda que analisadas em

99

separado, individualmente.

Em primeiro lugar, deve ficar estabelecido que temos que estudaros modos estereotipados de pensar e sentir. Como sociólogos,não nos interessa aquilo que A ou B sentem como indivíduos, nocurso acidental de suas próprias experiências pessoais – interessa-nos apenas aquilo que sentem e pensam como membros de umadada comunidade. E enquanto membros de uma comunidade, seusestados mentais recebem uma determinada marca, tornam-seestereotipados pelas instituições em que vivem, pela influênciada tradição e do folclore, pelo próprio veículo do pensamento,quer dizer, pela linguagem. O ambiente sócio-cultural em quevivem acaba por forçá-los a pensar e a sentir de um modo definido.Assim, um homem que vive em uma comunidade poliândrica nãopode experimentar os mesmos sentimentos de ciúmes inerentesaos membros de uma comunidade monogâmica, embora possapossuir alguns elementos dele. (MALINOWSKI, 1985, p. 46).

O proceder da pesquisa etnográfica precisa seguir certos“mandamentos”, como aconselha Malinowski (1985): “participar dosacontecimentos”; compreender as “peculiaridades sutis” e eventos“familiares”; construir um “diário etnográfico”; considerar e diferenciaro que é tido como “normal e típico” em relação aos “desvios” (p. 44). Épreciso descobrir “os modos típicos de pensar e sentir correspondentesàs instituições e à cultura de uma determinada comunidade” e a partirdisso formular os resultados “da maneira mais convincente possível”(p.46). Para tal intento diz ainda que é forçoso “reproduzir literalmente”as declarações que tiverem uma “importância crucial” no entendimentodos dados conjunturais (p. 46).

No entanto, mesmo observando estes cuidados, para manter umstatus de cientificidade e de reconhecimento de validade, o fazeretnográfico sofre críticas. Uma delas é a de que em muitas situações eleseja microscópico. Por seu turno Geertz defende que este não é um limite,mas uma das suas características e especificidades. Ao discutir o problemacom que o antropólogo se defronta no fazer etnográfico pondera queesse profissional aborda contiguamente “interpretações mais amplas eanálises mais abstratas a partir de um conhecimento muito extensivo de

100

assuntos extremamente pequenos” (1989, p. 15). Suscita que assuntostidos como “pequenos” constituem em si e em relação aos fenômenosamplos o tecido da vida social que é, em suma, o objeto a que se desnudamos antropólogos. Afirma que em torno da crítica de que “já existemsuficientes profundidades no mundo” suscita-se também a obsessão dealguns sociólogos com o tamanho de suas amostras (1989, p. 15).

O trabalho etnográfico apregoa a relação de proximidade dopesquisador com os pesquisados. Ainda que menos dogmatizados pelopeso do cartesianismo que impõe uma separação quase metafísica entresujeito e objeto, esse tipo de pesquisa causa algum desconforto esucessivas justificações no constructo do texto. Paradoxalmente, aproximidade pode mostrar muitas situações que de longe pareceriamdesfocadas e embaçadas. Entretanto ela gera um fluxo de foco que podenormatizar elementos ou não tecê-los em relação a outros fenômenosque levariam a interpretar ligações e interconexões camufladas e sutis.Essa condição engendra no fato de que os textos formatados segundoessas pesquisas geralmente assumem o caráter de ensaios, o que lhesconferem a desnecessidade de serem construídos como tratados teóricose sistemáticos da área. Até porque como o próprio Geertz alerta, se essestratados fossem assim escritos, enfastiariam os leitores por nãocondizerem com as especificidades dos problemas e dúvidas que osgeraram.

A análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior,quanto mais profunda, menos completa. É uma ciência estranha,cujas afirmativas mais marcantes são as que têm a base maistrêmula, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocadoé intensificar a suspeita, a sua própria e a dos outros, de que vocênão o está encarando de maneira correta. Mas essa é que é a vidado etnógrafo, além de perseguir pessoas sutis com questõesobtusas. (GEERTZ, 1989, p. 20).

Nestes casos, o pesquisador será impelido a construirrepresentações, a demostrar, expressar fatos e relacioná-los comproposições teóricas que lhes deem sentido interpretativo ou pelo menosproblematizá-los. Isso é possível, segundo Geertz (1989, p. 17), quandose assumir a máxima de que a etnografia não deve apenas ser um pensar

101

“sobre” os pesquisados, mas um pensar “com” eles. Assim, confere ocaráter inefável de que nessa relação o mais importante é “conversarcom eles”. Em suas próprias palavras “aqui a tarefa essencial daconstrução teórica não é codificar regularidades abstratas, mas tornarpossíveis descrições minuciosas; não generalizar através dos casos, masgeneralizar dentro deles” (1989, p. 18).

Em obra que enfoca o que denomina de “A ExperiênciaEtnográfica”, James Clifford confere uma visão sobre o fazer e o textoetnográfico no século XX. Um dos capítulos direciona-se a uma questãoespinhosa da etnografia. Refere-se à autoridade etnográfica, numaacepção que problematiza a validade, a efetividade e cientificidade dotexto exposto ao público. O que é tomado como pertinente é repensar deonde emanam os critérios e o reconhecimento destes textos em deslindede projeções que possam agregá-los a versões desconexas edescompromissadas. Afinal, o que garante criteriosidade a esse tipo depesquisa, que em última instância está congregado ao relatório final, aotexto? Clifford afirma que essa questão vincula-se a pretensa autoridadeque o etnógrafo detém pelo fato de que ele “estava lá” (2011, p. 18), nocampo, numa acepção que poderia se parecer com a fé pública manifestapela natureza de seu trabalho.

Essa problemática não carrega a etnografia ao descrédito comopesquisa. Mesmo que esteja envolta num mito de que o trabalho de camposeja um instrumento de revelação, que constitua um conhecimentoparticular, privilegiado e talvez único. Ao contrário, ela mantém-se, naafirmação de Clifford, com um “certo status exemplar” (2011, p. 20).

[...] a etnografia está, do começo ao fim, imersa na escrita. Estaescrita inclui, no mínimo, uma tradução da experiência para aforma textual. O processo é complicado pela ação de múltiplassubjetividades e constrangimentos políticos que estão acima docontrole do escritor. Em resposta a estas forças, a escritaetnográfica encena uma estratégia específica de autoridade. Essaestratégia tem classicamente envolvido uma afirmação, nãoquestionada, no sentido de aparecer como a provedora da verdadeno texto. (CLIFFORD, 2011, p. 21).

Geertz converge no sentido de alertar para o fato de que, sob os

102

auspícios de promover a valiosa e importante proximidade de pesquisae tomar os informantes como pessoas e não como objetos, a observaçãoparticipante assumiu, em alguns casos, condição de instrumento de má-fé do antropólogo. Isto por que, sua visão pode se fechar, se enviesar,enquadrando diferencialmente elementos e distribuindo seu interesse demaneira desvirtuada entre fenômenos simples e complexos. Nestascondições, a razão e o ímpeto da pesquisa podem ser minimizados ousuperestimados (1989, p. 14).

Clifford (2011) chama a atenção para o fato de que aindaresguardada a importância e a necessidade de problematizar aspectosnomeadamente complexos da cultura humana, estes não encontrem ummétodo soberano para garantir fortuitamente a verdade dos elementosapresentados. Considerar o etnógrafo como autoridade antropológicatácita, baseado no peso do fato de “estar lá”, ou em uma suposta“autoridade experimental”, seria distanciar-se de uma condição plausívelde criteriosidade científica. Replica que em etnografia o conceito deexperiência é imprescindível, porém é um pomo de furtividade já que“assim como ‘intuição’, ela é algo que alguém tem ou não tem, e suainvocação frequentemente cheira a mistificação” (CLIFFORD, 2011, p.33).

As ponderações de Clifford se evidenciam quando destaca ofato de que entre o etnografar como observação e o etnografar comoescrita existe um intercurso de tempo e espaço. O texto como relato econstrução teórica é sempre escrito após o convívio com os agentespesquisados e sempre fora do local de pesquisa. Isso gera o que chamade filtragem da realidade: “o processo de pesquisa é separado dos textosque ele gera e do mundo fictício que lhes cabe evocar. A realidade dassituações discursivas e dos interlocutores individuais é filtrada” (2011,p. 40). Sobre essa inquietação também contribui Geertz quando chama aatenção que os textos antropológicos são interpretações acerca de ficçõesque a própria etnografia configura.

Resumindo, os textos antropológicos são eles mesmosinterpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Pordefinição, somente um “nativo” faz a interpretação em primeiramão: é a sua cultura). Trata-se, portanto, de ficções; ficções no

103

sentido de que são “algo construído”, “algo modelado” – o sentidooriginal de fictio – não que sejam falsas, não-factuais ou apenasexperimentos de pensamento. (GEERTZ , 1989, p. 11).

A superação destas críticas impõe se defrontar com a compreensãoque a etnografia é uma partilha de experiências e não a sucção de umadelas, além da assunção de suas fragilidades, impotências eimpertinências. Para imprimir caráter de factibilidade e veracidade aosestudos etnográficos não é necessário tornar-se um nativo, como dizGeertz. No entanto, muito menos será também um relatório com discursoengajado, a pretensa autoridade ou o status do pesquisador. Essa respostaestará na complexidade com que os fenômenos são tratados, na clareza ena fluência do texto quando relaciona o tecido teórico com os aspectospráticos do campo e as cuidadosas, ponderadas e corajosas impressõesdo etnógrafo. Como adverte Geertz, a efetiva objetividade nestes estudosnão será alcançada. Esse fenômeno por seu turno não depõe contra ouinfere caráter de inferioridade a pesquisa. Ou como diz: “nunca meimpressionei com o argumento de que, como é impossível umaobjetividade completa nesses assuntos (o que de fato ocorre), é melhorque os sentimentos levem a melhor” (1989, p. 21). Toda complicação eefetividade da etnografia residem em sua capacidade de articular, informare problematizar a realidade. E a isso acrescentaríamos ainda que, emnenhum lugar encontra-se escrito que etnografia é uma tarefa simplescom resultados milagrosos.

A despeito destes limites, defende-se a potencialidade da etnografiacomo um poderoso recurso de pesquisa, notadamente nos estudos emcomunidades nas fronteiras. As problemáticas relativas às fronteiras,particularmente em termos das suas expressões locais e do fluxo depessoas, podem ser mais equacionadas com o dimensionamento deestudos em unidades de análise particulares e com técnicas de pesquisaadequadas. A infusão etnográfica em comunidades nas fronteiras podese revelar um importante recurso para o desenvolvimento da pesquisanestas áreas.

104

NOTAS EXPLICATIVAS

1 O trabalho está baseado na discussão metodológica realizada na dissertação de mestrado defendida porKUMMER (2013), bem como nas experiências de pesquisa dos autores, notadamente em trabalhos relativosà problemática das fronteiras.2 Mestre em Ciências Sociais pela Unioeste (2013) e docente da Unipar/Campus de Francisco Beltrão-PR.3 Doutor em Sociologia pela UFRGS (1997) e professor efetivo da Unioeste/Campus de Toledo, ondecoordena o Mestrado em Ciências Sociais. Email: [email protected] problematizar o conceito de isolamento circunscrito às comunidades nas fronteiras. O fato de que,nas áreas de fronteiras serem as distâncias fatores de isolamento não decompõe as relações de contatosocial, que podem ser intensas. Por outro lado nos ambientes urbanos de fronteiras, a proximidade socialnão necessariamente garante a tessitura de relações sociais intensas, muito menos a unidade.5 Nesse sentido é possível tecer comparações se estas forem estabelecidas entre o próprio grupo, com aanálise de comportamentos nas diferentes gerações que o compõe (OLIVEIRA & MAIO, 2011).6Não estão compiladas várias obras que tratam do assunto. Pode-se dizer que foram analisadas apenasalguns textos capazes de estabelecer uma breve “noção” acerca da metodologia. Para citar alguns autoresnão formulados aqui e que tiveram imprescindível contribuição no desenvolvimento das técnicas de etnografiae no pensamento antropológico como um todo, destaca-se: Radcliffe-Brown; Margaret Mead; James Frazer;Marcel Mauss; Claude Lévi-Strauss; Franz Boas; Raymond Firth; Evans-Pritchard; entre outros.

REFERÊNCIAS

ARENSBERG, C. M. & KIMBALL, S. T. O método do estudo em comunidade. In: FERNANDES,F. (org.). Comunidade e Sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e deaplicação. São Paulo: Companhia Editora Nacional/Edusp, 1973.

BARTH, F. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Tradução de John CunhaComerford. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000.

BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEd., 2003.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. 14. ed. Tradução Fernando Tomaz. Bertrand Brasil: Rio deJaneiro, 2006.

BRITO, F. As migrações internas no Brasil: um ensaio sobre os desafios teóricos recentes. BeloHorizonte: UFMG/Cedeplar, 2009.

CASTELLS, M. O poder da identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. (A era dainformação: economia, sociedade e cultura; v.2). São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CASTRO, E.G. de. Estudos de comunidade: reflexividade e etnografia em Marvin Harris. Rev.Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas. Vol. 23(2): 195-210, jul./dez. 2001.

CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 2003.

CLIFFORD, J. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. 4. ed. Rio deJaneiro: Editora UFRJ, 2011.

105

COMERFORD, J. Comunidade rural. In: MOTTA, M. (Org.). Dicionário da Terra. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 2005. [pp. 112-120].

CUNHA, J. M. P. da. Migração e urbanização no Brasil: alguns desafios metodológicos paraanálise. São Paulo em perspectiva, v. 19, n. 4, p. 3-20, out./dez. 2005.

ELIAS, N. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de umapequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

FONTENELLE, L. F. R. “A comunidade no Brasil: um estudo tentativo para sua configuração”.Revista de Ciências Sociais, vol. 2, nº 2, Fortaleza, UFC, pp. 5-14. 1971.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

GOLDWASSER, M. J. “Estudos de comunidade: teoria ou método?” Revista de CiênciasSociais, vol. 5, nº 1, Fortaleza, UFC, pp. 69-81, 1974.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro, PP&A, 2006.

JACKSON, L. C. Divergências teóricas, divergências políticas: a crítica da USP aos “estudosde comunidades”. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 18, p. 273-280, 2009.

KUMMER, R. Juventude Rural entre ficar e partir. Dissertação de Mestrado defendida junto aoPrograma de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unioeste. Orientador: Silvio AntônioColognese. Toledo, 2013. Pp.310.

MALINOWSKI, B. Introdução: o assunto, o método e o objetivo desta investigação (Argonautsof the Western Pacific). In: DURHAM, E. R. Malinowski. São Paulo: Ática, 1985.

MELATTI, J. C. A Antropologia no Brasil: Um Roteiro. Série Antropologia, Brasília, n. 38, p.1-64, 1983.

OLIVEIRA, N. S. & MAIO, M. C. Estudos de Comunidade e ciências sociais no Brasil. RevistaSociedade e Estado – Volume 26 Número 3 Setembro/Dezembro 2011.

PEIXOTO, J. As Teorias Explicativas das Migrações: Teorias Micro e Macro-Sociológicas.Lisboa: SOCIUS, 2004.

SANTOS, B. de S. Modernidade, identidade e a cultura de fronteira. In: Tempo Social, Revistade Sociologia da USP. São Paulo, 5 (1-2) p.31-52, 1994.

SANTOS, M. A. dos. Migração: uma revisão sobre algumas das principais Teorias. MauroAugusto dos Santos; Alisson Flávio Barbieri; José Alberto Magno de Carvalho; Carla JorgeMachado. - Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2010.

SCHALLENBERGER, E. Associativismo cristão e desenvolvimento comunitário: imigração eprodução social do espaço colonial no sul do Brasil. Cascavel: EDUNIOESTE, 2009.

TÖNNIES, F. Comunidade e sociedade como entidades típico-ideais. In FERNANDES, Florestan(org.). Comunidade e Sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e deaplicação. São Paulo: Nacional/Edusp, 1973. p. 96-116.

106

107

ETNOGRAFIA NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA,EM CORUMBÁ-MS: POR UMA ANTROPOLOGIA

“NAS” FRONTEIRAS

Gustavo Villela Lima Da Costa1

INTRODUÇÃO

As pesquisas etnográficas nas áreas de fronteira oferecem grandesdesafios e podem trazer resultados teóricos importantes aos antropólogosque se dedicam a estudar empiricamente a vida social nessas regiões,não apenas para o tema dos estudos fronteiriços, mas para o avanço dequestões teóricas da própria antropologia. O trabalho de campo naantropologia, de acordo com Peirano (1995) não se limita a uma simplestécnica de coleta de dados, mas é um procedimento com implicaçõesteóricas específicas, no que podemos chamar de dialética entre o processode produção de dados empíricos e a utilização de conceitos (semprerevistos criticamente a partir da pesquisa de campo). Neste sentido aantropologia, sempre se reinventou enquanto ciência, a partir do diálogoconstante entre e teoria e prática, no que Roberto da Matta classificacomo “estado de dúvida teórica” (DA MATTA,1981).

A etnografia, enquanto método subjetivo e interpretativo, em quenão existe uma separação absoluta entre sujeito e objeto, exige umavivência prolongada do pesquisador junto a seus interlocutores, nãoapenas para observar, mas para participar, em alguma medida, da vidasocial. Neste sentido nos consideramos pesquisadores privilegiados pormorarmos em Corumbá-MS, na fronteira com a Bolívia, a partir de Puerto

108

Quijarro, o que nos permite um contato direto e prolongado com a vidana fronteira. Esta premissa nos ajuda, em nossos estudos realizados apartir do Mestrado em Estudos Fronteiriços, em primeiro lugar a rompercom o preconceito presente nas representações sociais sobre as fronteiras(repetidas em noticiários e construídas nos imaginários nacionais): a deque as fronteiras são áreas da ilegalidade, da anomia e do crime.Entendemos que as fronteiras nacionais, enquanto lugares “liminares”,repletos de ambiguidades, são locais por excelência do estudo dasalteridades, assim como dos processos de construção de identidades edas trocas culturais. As fronteiras, enquanto locais dos encontros, são defato lugares propícios aos negócios, em função do diferencial fronteiriço(diferentes moedas e legislações), e é justamente por esta condição éque se costuma confundi-las, como se as mesmas fossem os lugares porexcelência da ilegalidade, sob o efeito de discursos que as caracterizamcomo “terras sem lei”. Neste sentido, as fronteiras são lugaresprivilegiados para estudos que procurem romper com as dicotomias dolegal e do ilegal, justamente porque estas separações não existem demaneira pura no mundo do comércio e dos negócios.

Os antropólogos, (sobretudo em nosso caso, que vivemos em umacidade de fronteira), ao compreenderem os significados da ação social,podem trazer à tona os pontos de vista nativos dos moradores fronteiriços,restituindo-lhes sua agência sobre suas próprias práticas e representações,o que nos permite escapar da segunda armadilha para olhar as fronteiras:a visão hegemônica e tutelar do Estado. A partir da etnografia, então, afronteira aparece como uma área rica de experiências humanas, de trocasculturais, assim como de conflitos (com suas ilegalidades particulares) ede trânsito de pessoas, tradições, culturas e de mercadorias (sejam elaslegais ou ilegais). As regiões de fronteira, a partir da vida de seusmoradores, representam também, o papel de protagonistas na formaçãodos Estados-nacionais, ainda que as narrativas “oficiais” as consideremcomo áreas marginais e coadjuvantes neste processo.

O trabalho etnográfico tem como desafio dar conta da realidadeque o antropólogo pretende estudar, ao mesmo tempo em que seu objetode estudo é construído de sujeitos que, agem, pensam, sentem, interpretame explicam a realidade em que vivem. Além das regularidadessociológicas que são observadas pelo pesquisador, a vida social é repleta

109

do que Malinowski (1976) chamou de “imponderáveis da vida real”,que são os acontecimentos mundanos e cotidianos, aparentemente semimportância, mas que são uma “mina de ouro” para o antropólogo. Estaé uma das maiores dificuldades e vantagens do método etnográfico:chegar à compreensão desses comportamentos ordinários, dos pequenosdramas do dia-a-dia que “dizem” muito sobre a vida social em seusaspectos mais amplos. Para chegar até essa compreensão e interpretaçãodos fatos observados, dentro de contextos culturais específicos, é precisoque o antropólogo passe um tempo prolongado de convivência e participe,em alguma medida, da vida social que pretende estudar, para que osdetalhes, antes sem importância, adquiram significado. Por este motivoas pesquisas de “tiro curto” não podem alcançar a densidade quealmejamos para o estudo das sociedades e das culturas.

Ao longo de minha atuação como antropólogo na fronteira realizeialgumas pesquisas que trataram dos seguintes temas: a construçãoidentitária local e o preconceito social em relação aos bolivianos emCorumbá (COSTA, 2010); a compreensão das representações sociaissobre a prática do contrabando de roupas chinesas na fronteira (COSTA,2010b); o conflito entre taxistas brasileiros e bolivianos e as disputaspelo espaço de “rua” em Corumbá (COSTA 2011) e o comércio de drogas(OLIVEIRA e COSTA, 2011), (esta última a partir da pesquisa demestrado de meu orientando Giovanni França Oliveira). Todos estestemas envolvem dificuldades específicas, pois como afirma Foote-Whyte(1975), é preciso estar atento aos problemas práticos e éticos relacionados,especialmente, à questão da identificação social do pesquisador pelossujeitos da pesquisa e o apoio ou proteção que ele pode conseguir decertos indivíduos. Neste sentido, adotamos sempre a tática de nosaproximarmos de algum “informante” privilegiado, que pudesse abrirportas para o universo social que pretendíamos estudar (ver OLIVEIRAe COSTA, 2012).

Ao estudar situações de conflito, de preconceito e até mesmo depráticas ilegais, surgem inúmeras dificuldades referentes ao processo deidentificação ou classificação social do pesquisador, que pode assumirpapéis variados, de diversas identidades sociais (pesquisador, funcionáriopúblico, professor, homem, brasileiro, e assim por diante) e que pode serconfundido pelas pessoas que entrevista, como se fosse um policial ou

110

fiscal, por exemplo. É preciso tempo e confiança junto aos atores sociaisque estudamos - que muitas vezes vivem nos limites da lei - para que apesquisa se inicie e se obtenha bons resultados. Neste caso esta é umadificuldade inerente ao grupo social estudado, que são os vendedores derua ou comerciantes de drogas, e independe de estarmos em uma zonade fronteira, pois certamente, colegas que estudam camelôs no centro dacidade de São Paulo, ou o mundo do crime em qualquer outra parte doterritório nacional, passam pelas mesmas dificuldades.

Na fronteira, há uma peculiaridade, que pode ser um fator dedificuldade que é o trânsito quase cotidiano do pesquisador em outropaís e o contato que precisa estabelecer com estrangeiros (sejaindividualmente ou com associações, por exemplo). Até mesmo por umaquestão ética, que envolve recolher informações em outro país, optamosem diversas ocasiões, por buscar um respaldo oficial junto a autoridadesbolivianas e, para isso, foi preciso estabelecer contato com atores sociaisprivilegiados, por sua posição de status ou poder político. Em Corumbá,destacamos a figura do Cônsul da Bolívia, a partir do consulado destepaís existente na cidade, que sempre abriu as portas para que fôssemosapresentados aos seus conterrâneos, tanto a partir de uma permissãooficial quanto informalmente. Ao mesmo tempo, obviamente havia uminteresse por parte do consulado em saber que tipo de pesquisas nósestávamos realizando em solo boliviano. Em outras ocasiões ospresidentes de associações (Feira Bras-Bol ou 12 de Octubre2) tambémgarantiram uma apresentação mais formalizada, que nos identificasse enos distinguisse, como professores universitários, de outros funcionáriosestatais brasileiros como da Polícia Federal ou da Receita Federal, porexemplo. O acesso aos interlocutores da pesquisa, a partir de umfuncionário diplomático, que simbolicamente nos “permite entrar emsua casa”, nos faz refletir também no papel quase onipresente dos Estadosna vigilância e controle do espaço fronteiriço e a forte simbologia presenteno ato de cruzar a fronteira.

Além disso, destacamos que para haver um bom andamento dapesquisa, é preciso entender como ocorre o processo de classificaçãosocial do pesquisador por parte dos entrevistados. Como o pesquisadoré visto pelas pessoas? O pesquisador oferece algum risco para os

111

entrevistados? Qual o significado de seu trabalho para as pessoas queentrevista e convive? Este processo envolve conhecer as regras dos grupospesquisados e compreender seu código social para poder participar, emalguma medida, de suas atividades, a fim de compreender os processossociais em jogo.

Uma dificuldade a mais que encontramos ao realizar o trabalhoetnográfico na fronteira, é a própria barreira da língua ao entrevistarbolivianos (no meu caso, entendo bem o castelhano e falo um “portuñol”que é bem compreendido), seja no lado brasileiro, seja no lado boliviano;e mais ainda, as diferenças culturais (outras fronteiras), que muitas vezesse manifestam em sutilezas de etiqueta, de gestos e da própria posturacorporal, por exemplo. Em geral, sobretudo os comerciantes bolivianosoriundos do altiplano possuem um habitus austero, de poucas palavras,que fazem parte de um ethos ascético em relação aos negócios e à vida,em que o trabalho “duro” é um valor ético de máxima grandeza, queabre pouca margem para um “bate-papo”. Soma-se a isto, a desconfiançaem relação ao pesquisador e às perguntas que fazemos, por parte demuitos desses comerciantes - que realizam suas atividades nas fronteirasdo legal e do ilegal - o que dificulta a aproximação do antropólogo (aindamais quando este pesquisador é de outro país).

Outra questão que emerge a partir daí é a de como romper a visãooficial do grupo, ou imagem pública que o grupo deseja projetar(BERREMAN, 1975). O trabalho do antropólogo procura compreender,de fato, qual o sentido ou significado das falas dos atores sociais,posicionando-os, já que nenhuma fala é neutra e os atores sociais sãosujeitos com interesses próprios que, em geral, procuram passar umaimpressão de si ou de seu grupo: quem fala, fala de algum lugar paraalguém (no caso o pesquisador). Como exemplo, ao entrevistar algunstaxistas brasileiros, a grande maioria dos entrevistados se auto-representava como se fossem “aqueles que cumprem a lei”, ao contráriodos bolivianos, que estariam “ilegais”. Entretanto, compartilhando umaexperiência pessoal, após conversar com alguns taxistas brasileiros,informalmente, os mesmos me disseram que realizavam práticas “forada lei”, como o transporte de mercadorias não taxadas (descaminho); deoutro lado, ao entrevistar comerciantes bolivianos em Corumbá, a maioriadizia ter nota fiscal de suas mercadorias as quais teriam sido adquiridas

112

em São Paulo e não teriam passado pela fronteira (que, de fato, é a rotaprincipal dessas roupas no comércio de Corumbá). Neste sentidoretomamos autores clássicos como Malinowski (1976), que foi o primeiroa apontar as diferenças entre o que as pessoas dizem e o que elas fazeme Max Gluckman (1965), que nos alerta que as regras sociais sãoincoerentes e contraditórias e podem ser manipuladas e redefinidas porindivíduos e grupos. As palavras se tornam então, no trabalho de pesquisa,“categorias nativas” que devem ser interpretadas pelo antropólogo, ouseja, partimos das classificações locais e das interpretações dos própriossujeitos da pesquisa sobre sua realidade para construir nossas própriasinterpretações (GEERTZ, 1978).

Roberto da Matta (1981) constata também que o etnógrafo nãoestá num laboratório, ou seja, não pode repetir ou controlar jamais suaexperiência. Além disso, em geral, o antropólogo realiza sua pesquisaem “solidão existencial”, em uma imersão profunda em outros universossociais, ajustando-se a novos valores e culturas, em um processorelativizador das crenças, visões e preconceitos do próprio pesquisador(DA MATTA, 1981). Nesta posição, o antropólogo fica sempre situadoentre duas culturas (a sua própria e a do “outro”), sem fazer parte inte-gral de nenhuma delas, em uma situação de “ambivalências de um estadoexistencial” (Idem). Esta é uma das características da etnografia: a decolocar o pesquisador em uma posição de “fronteira”, que a configuracomo um método filosófico que possibilita conhecer e transformar a simesmo, ao conhecer o “outro”.

No meu caso particular como pesquisador, houve um duplomovimento em minha trajetória de pesquisa na fronteira: logo ao chegara Corumbá, no ano de 2009, precisei tornar o “exótico”, familiar. A vidana cidade de fronteira, em que se vai a outro país cotidianamente; nasinúmeras placas de trânsito na cidade de Corumbá onde se lê “Bolívia”;as feirantes bolivianas com suas tranças e o falar e escutar o castelhanonas feiras; as placas de carro da Bolívia nas ruas, enfim, toda esta vidanova tinha algo de fantástico e misterioso para mim, que tinha vindo doRio de Janeiro. Na medida em que o tempo passou, o cruzar a fronteirase tornou cada vez mais parte do meu cotidiano, as placas de carro daBolívia se tornaram cada vez mais invisíveis, a feira de rua com suascomerciantes bolivianas se tornou a feira da minha cidade e a Bolívia, a

113

partir da cidade de Puerto Quijarro se tornou praticamente um bairro deuma cidade binacional aonde vivo. Neste momento, a fronteira se tornoufamiliar e aí precisei fazer um segundo movimento: tornar o que se tornoufamiliar em exótico novamente, para perceber as idiossincrasias, as nu-ances e as interações sociais da vida fronteiriça da qual eu faço parte.

VIVENDO NA FRONTEIRA: DEBATES ENTRE A TEORIAE A PRÁTICA

A partir da vivência e da observação empírica da fronteira entreBrasil-Bolívia, na cidade de Corumbá-MS e do diálogo com outrosautores, foi possível estabelecer um constante diálogo entre a teoria e aprática, a partir do qual surgiram as seguintes perguntas e hipóteses queserão debatidas neste artigo: quais as peculiaridades de realizar estudosantropológicos em áreas de fronteira? Existem características universaise estruturais nas regiões de fronteira, apesar da heterogeneidade dessasregiões pelo mundo, que permitem estabelecer pontos em comum decomparação entre as zonas fronteiriças? Quais resultados teóricos podemser obtidos ao estudar os processos de formação identitário nas fronteirase que podem ser aplicados a outras situações sociais distintas, em queessas dinâmicas não estão tão claramente demarcadas (realizar umaantropologia “nas” fronteiras e não apenas “das” fronteiras)?

Nossas pesquisas se opõem às ideias que tendem a homogeneizara fronteira, como se houvesse uma única identidade fronteiriça, umaúnica cultura fronteiriça em um processo de hibridização (VILLA, 2000).O que se observa, de fato, é um processo de constante reapropriação erenegociação das identidades (ou mesmo a adoção de múltiplasidentidades), por parte das pessoas que interagem em uma área fronteiriça,como é o caso da cidade de Corumbá-MS. Esta situação específica deCorumbá, como uma cidade que historicamente recebeu migrantes devárias partes do mundo - o rio Paraguai é uma porta para o OceanoAtlântico - aliada à sua condição fronteiriça com a Bolívia, nos leva apensar de que forma essas diversas tradições se encontraram nesta região,configurando um fenômeno histórico particular.

114

Bons exemplos de reprodução social dessas tradições podem serpercebidos em hábitos oriundos da cultura guarani como tomar o tereré,na culinária com forte influência paraguaia (chipa, sopa paraguaia) e namúsica (que aí se generaliza por todo o estado do Mato Grosso do Sul),que sofre forte influência da música de origem paraguaia ou platina, emritmos ternários (polca paraguaia, rasqueado, chamamé). A presença demilitares, cujo contingente sempre se renova na cidade também trazpráticas, hábitos e estilos de vida de várias regiões do Brasil, com destaquepara o grande contingente de cariocas e fluminenses oriundos da Marinha.Destaca-se alguma influência cultural do Rio de Janeiro, a partir docontingente majoritário de soldados e oficiais oriundos deste estado emCorumbá se faz sentir pela forte presença do funk e do pagode, assimcomo pela torcida pelos times cariocas de futebol. Além disso, nota-seforte presença da cultura “árabe”, como uma comunidade étnicaimportante historicamente na região (sírios, libaneses e palestinos), nãoapenas no comércio de rua (nos restaurantes “árabes”) e na influênciadessas famílias na política da cidade, mas também através dosmuçulmanos que freqüentam a mesquita da cidade, por exemplo.

Ao invés de entender a cidade de Corumbá como um mosaíco deculturas estanques a partir de uma visão essencialista do conceito decultura, o que pressupõe imaginar uma figura de partes separadas queformam um todo, buscamos compreender esta região como um local deinteração de tradições - onde essas correntes de conhecimentos seentrelaçam na circulação entre as pessoas - a partir de sua interação so-cial, tornando-se difusas na vida da cidade e distribuídas desigualmenteentre os indivíduos. O processo de apreensão individual e coletivo dessastradições, portanto, não ocorre de forma homogênea entre as pessoas,pois cada um possui sua trajetória, mas está posicionado socialmente eeconomicamente na sociedade, carregando consigo suas própriastradições e é socializado a partir de diferentes matrizes culturais e deconhecimento. Esta interação se deu historicamente não apenas a partirde relações comerciais e de trabalho, mas também a partir de matrimônios(com imigrantes, inclusive) e da formação multiétnica das famíliascorumbaenses.

Nas fronteiras existem múltiplas fronteiras e cada uma delaspossibilita um processo particular de construção de identidades. De

115

acordo com Villa (2000), existe uma situação de “espelhos múltiplos”na fronteira, em que os indivíduos e grupos de ambos os lados não apenasrepresentam os “outros”, mas são também representados pelo “outro”,pelo estrangeiro do outro lado da fronteira. Além disso, este jogo deespelhos ocorre também em relação a outras áreas de seus próprios países(em um discurso dicotômico centro/periferia ou centro/fronteira). A títulode exemplo, podemos observar as inúmeras reportagens produzidas nosgrandes centros urbanos brasileiros que representam a fronteira em seusaspectos mais negativos, como uma área ameaçadora à soberanianacional. Exemplificando esses discursos, posso citar as viagens de fériasque faço ao Rio de Janeiro, nas quais converso com taxistas da cidadesobre o lugar em que resido e, invariavelmente, a resposta era parecidacom a que me deu um taxista: - “Corumbá? Pô lá é sinistro! Fronteira ébrabo... Terra de ninguém” (sic.).

Essa situação me leva a pensar também em qual a influência dosprocessos de “globalização” e “hibridização” na construção de novasidentidades e novos significados para os moradores fronteiriços. Deacordo com Villa (idem), muitas pessoas não querem atravessar asfronteiras, se “hibridizar”, mas preferem justamente reforçar a existênciadas fronteiras. Ao longo do tempo, na seção de mensagens eletrônicasdos leitores do jornal “Diário Corumbaense” se lia mensagens que diziamcoisas do tipo: “fechem a fronteira e joguem a chave fora” (sic.), asquais demonstram certo grau de conflito e tensão nesta interação. E é oolhar antropológico, mais subjetivo em sua “descrição densa” (GEERTZ,1978), que pode contribuir para o entendimento desses processos, nemsempre visíveis e declarados. A fronteira oferece uma oportunidade únicapara olhar aos processos complexos de construção de identidades e seuuso constante de categorias arbitrárias. As pessoas que mudam de paísnão estão apenas cruzando de um país para outro, mas estão se movendode um sistema de classificação para outro e mais ainda, convivendo comambos os sistemas. Como afirma Villa (2000), as pessoas são forçadas ase mover de um sistema de classificação a outro cotidianamente (alémdas misturas de sistemas para dar conta de perceber o “outro”). Porexemplo, no México, este autor identificou que o sistema classificatórioprincipal seria o de “região”, (norteño, fronterizo ou del sur), já no sistemaestadunidense prevaleceria a ideia de “raça e etnicidade” (latino, negro,

116

branco)(Villa, 2000). Na fronteira Brasil-Bolívia, entendemos que oboliviano é representado por uma dupla alteridade pelos corumbaenses,de forma preconceituosa e estigmatizante na maioria das vezes:estrangeiro e índio (“choco” ou “colla”). Além disso, no Brasil, há ummisto de classificações étnico-raciais (branco, negro, índio, oupejorativamente “bugre”) e regionais (paulista, gaúcho, nordestino etc).Na Bolívia, por sua vez, predomina um sistema de classificação étnica,que divide seus habitantes entre Cambas e Collas3, sobretudo noDepartamento de Santa Cruz (onde estão localizadas as cidadesfronteiriças de Puerto Suarez e Puerto Quijarro).

Este caminho epistemológico pressupõe também a ideia de que asfronteiras são lugares onde os limites não imobilizam totalmente aspessoas, mas, que de fato, são constantemente atravessados, consoantecom as ideias de “culturas” em fluxo (nas zonas fronteiriças há espaçopara a ação no manejo da “cultura” e para a negociação identitária porparte dos atores sociais). A atual instabilidade das fronteiras - que umdia foram consagradas como fixas, como limites monolíticos de distintasentidades nacionais e culturais - revela cada vez mais processos denegociação “cultural” através das fronteiras, e coloca novas questõessobre as relações entre o local e o global, e entre nação e Estado(DONNAN and WILSON, 1994). Os limites, assim, são entendidos comoalgo através do que se dão os contatos e interações (não marcando“culturas” isoladas, o que corroboraria uma visão essencializante eholística de “cultura”, que dificilmente se sustenta a partir do trabalhoempírico)4;ou como afirma Barth (2000) é justamente por cruzarem asfronteiras que as pessoas mantém suas identidades e não evitando ocontato. As fronteiras se configuram, enfim, como um locusepistemológico privilegiado para os estudos dos processos de construçãoidentitária, de fenômenos “culturais” e de interação social, que se tornamaí mais visíveis e exacerbados.

Como vimos até aqui, é justamente por fazer parte da fronteira,entre dois países, que os moradores dessas regiões podem negociar emanipular a fronteira de acordo com seus interesses. Em função de seremáreas de encontros de diversos sistemas políticos, econômicos e culturais,as áreas de fronteira permitem uma visão única nos modos pelos quaisas identidades são construídas (DONNAN & WILSON, 1994). Sendo

117

assim, procuramos investigar como um grupo de pessoas que vivem emuma área de fronteira entre dois países renegociam e manipulam, tanto afronteira, como os limites culturais e processos contínuos de formaçãoidentitária. O processo de construção das identidades nas áreas fronteiriçasé, portanto, um fenômeno peculiar e complexo, em que a categoria“fronteira” adquire significados distintos de acordo com o posicionamentosocial dos atores sociais que vivenciam a experiência de morar nessasregiões. Se for verdade que nos processos migratórios (ainda mais emuma cidade de fronteira que recebeu muitos imigrantes como Corumbá),as pessoas carregam consigo seu passado, suas tradições, também épreciso considerar nas análises, que essas tradições são reatualizadas eressignificadas a partir da interação com outras correntes de pensamentoe de tradições nos processos de “globalização”. As fronteiras são locaisem que o próprio sentido de nacionalidade é colocado diariamente àprova e onde se dão as condições para a manipulação, instrumentalizaçãoe negociação das identidades e, por outro lado, é neste contexto em queas identidades são vividas e sentidas profundamente pelos atores sociais.As distinções identitárias e “culturais”, portanto, não dependem daausência de interação social, mas justamente ao contrário.

De acordo com Cardoso de Oliveira (1976), existem propriedadesestruturais do processo de identificação étnica, e que estendemos a todosos processos identitários: em primeiro lugar, o caráter contrastivo daidentidade e seu forte teor de oposição com vistas à afirmação individuale grupal; em segundo lugar, a possibilidade de sua manipulação emsituações de ambiguidade, quando se abrem diante do indivíduo ou dogrupo alternativas para a escolha (de identidades) à base de critérios deganhos e perdas na situação de contato. (CARDOSO de OLIVEIRA,1976: 131). A instrumentalização das identidades se traduz, em muitoscasos, em uma visão absolutamente pragmática sobre a nacionalidade,tal como ocorre na prática de registrar os filhos no país mais conveniente.A fronteira se torna um “recurso simbólico” através do qual torna possívela comunicação em contextos extraordinários (VALCUENDE e CAR-DIA, 2009).

Entendemos que, por si só, o tema das fronteiras apresenta umaquestão de caráter universal, pois a partir da construção histórica dosestados nacionais, forjaram-se as fronteiras políticas (linhas arbitrárias)

118

e o dogma da soberania nacional em todos os continentes do planeta, noque poderíamos chamar de “invenção das fronteiras”. O estabelecimentode limites soberanos entre unidades administrativas implica,necessariamente, na imposição de um tipo específico de interação sociale de construção das identidades a partir da convivência e do trânsitoentre os limites políticos nacionais. Não obstante, apesar do papelestratégico que as fronteiras têm para os estados nacionais, não é possívelmenosprezar a construção local do espaço fronteiriço, a partir de seusmoradores.

Em primeiro lugar, esta tarefa tem como ponto de partida acompreensão da dupla condição da fronteira: ora como “barreira” (zonafortificada) e limite (alfândegas, passaportes, muros etc.), ora como“passagem” (zona de interação), como área aberta, porosa, permeável ecomo um local de interação social (trocas simbólicas e econômicas).Sendo assim é preciso estabelecer relações dialéticas entre as duascondições da fronteira, não apenas entendê-las como áreas de livre trânsitoonde os limites e força dos Estados são abolidos e nem reduzi-las apenasà dimensão do conflito, da proibição, das disputas de poder. A fronteiraé, portanto, um espaço em movimento (um espaço vivo e vivido),movendo-se além das visões das fronteiras baseadas apenas no dogmada soberania dos Estados nacionais, que trabalham necessariamente coma ideia de limite estático e definitivo estatal. Isto nos leva a conceberuma ideia de fronteira como zona “liminar”, representando espaços queainda estão sendo estruturados e que são vivenciados pelos atores sociaiscomo “zona de interesses mútuos” (LEACH, 1960).

As cidades fronteiriças se constituem como um campo de disputaspor trabalho, rotas comerciais e pelo espaço da rua (como fonte derecursos econômicos e sociais), onde se dão também os processos deintegração formal e informal de grupos sociais. Entender as modalidadesde trabalho “ilegal” implica, portanto, em um afastamento de pré-julgamentos que inserem este fenômeno apenas nas esferas judicial ecriminal. Como percebemos nos estudos de caso, os atores sociaisenvolvidos na economia “ilegal” não vêem a si mesmos como criminosos,mas como trabalhadores - “que fazem seu ganho”, como empreendedores,inseridos na economia urbana da cidade de Corumbá, inclusive a partirde reinvestimentos feitos a partir da capitalização “ilícita” -. Neste sentido,

119

a etnografia, como método de pesquisa antropológica, fornece asferramentas para entender o trabalho desses indivíduos a partir do pontode vista dos mesmos, o que permite, por sua vez, uma melhorcompreensão das relações indissociáveis entre o que se convencionouchamar de economia “ilegal” e economia propriamente dita,transpassando os aspectos meramente normativos e legais.

O papel preponderante do Estado, entretanto, no cotidiano dosindivíduos não deve ser subestimado, já que o exercício do poder estatalnas fronteiras sempre foi estratégico, seja na defesa de seu território,seja no avanço de suas fronteiras. Apesar de considerar a posição centraldo Estado como um vetor de forças coercitivas e de controle social,entendemos que os estudos fronteiriços devem estar pautados na vidadas pessoas que habitam essas regiões, buscando suas relações com asinstâncias de poder. Pesquisadores como Donnan e Wilson afirmam queas fronteiras políticas entre Estados nacionais se tornaram, nos últimosanos, um foco de atenção mundial, mas que, entretanto, a vida das pessoasque vivem e trabalham nessas fronteiras não recebe a mesma atençãodos teóricos. Para estes autores: (...) “as culturas de fronteira são exemplosde relações dialéticas que existem entre uma miríade de grupos sociais eentre eles e níveis maiores e mais poderosos de integração sociopolítica,incluindo o Estado” (DONNAN & WILSON, 1994).

Para Grimson, por sua vez:

(...) trata-se de ir às fronteiras estatais com uma perspectiva abertaque permita detectar e compreender não apenas a multiplicidadee mistura de identidades, mas também suas distinções e conflitos.Disputas culturais nos confins do poder (GRIMSON, 2000: 1).

É justamente pelo contato com o “outro” - com o estrangeirofronteiriço - que se forja e reafirma a construção do sentimento depertencer à nação, por parte dos moradores da fronteira, diferentementede outras áreas centrais do Estado. Se em diversos momentos os limitesdo Estado são desafiados e até renegados nas regiões de fronteira, emoutros, são reafirmados com uma contundência maior do que em outraspartes do país. Sendo assim, se faz necessário compreender em quemedida a nacionalidade constitui uma categoria central na vida dos

120

moradores fronteiriços, “que organiza el espacio cotidiano, determinaacceso a derechos o define extranjería, y es condición para devenir per-sona en la vida local” (GRIMSON, 2003, p. 18). Concordamos com ocitado autor quando afirma que a distinção de nacionalidades é o modoprincipal através do qual as pessoas constroem o sentido de lugar nafronteira (a fronteira da nação, sua nação), constituindo um elemento desentido comum para a população local, (Idem). É preciso, portanto,investigar a construção dos processos históricos através dos quais esseslimites e essas identificações foram instituídos na fronteira Brasil-Bolívia,em Corumbá- Puerto Quijarro.

Mesmo neste contexto atual de integração e expansão das fronteiras,sobretudo através da expansão do capital, é notório que as políticas deintegração econômica e política não buscam beneficiar diretamente aspopulações fronteiriças, mas principalmente promovem o comércioterrestre entre países atravessando cidades fronteiriças, concebidas como“zonas de serviço”. (GRIMSON, 2000) Assim, se criam importantesfacilidades para a circulação de mercadorias de grandes empresas, abrindoas fronteiras ao capital, que tem peculiar interesse nas áreas fronteiriças(seja pela possibilidade de ganho de capital, seja pela possibilidade desua evasão através de remessas ilegais ao exterior). Por outra parte, ocontrole das populações fronteiriças, executado pelos Estados parece terse fortalecido, em relação à circulação, tanto de pessoas, quanto depequenas mercadorias do chamado “contrabando formiga”; ou seja,quando interessa aos grupos sociais ligados aos governos, sobretudoquando o que está em jogo são as grandes operações comerciais ligadasao grande capital, os Estados abrem suas fronteiras, todavia, quando setrata das populações fronteiriças - que dependem das condições favoráveisao comércio na fronteira, e que construíram suas vidas neste cenáriocomercial específico - observa-se o recrudescimento do controle, queignora as realidades, histórias e tradições locais.

Este ponto nos leva a pensar em outra característica estrutural davida nas fronteiras, a existência (quase sempre conflituosa) de duaslógicas nas demarcações políticas internacionais nessas áreas: a lógicadas populações locais e a lógica do Estado. De acordo com Valcuende eCardía (2009):

121

(...) “ as populações fronteiriças aprenderam a instrumentalizar afronteira em função de interesses concretos e, assim, as fronteiraspolíticas são reafirmadas ou negadas à medida que as fronteirassociais geradas a partir da interação social, sobrepassam asdemarcações estatais” (VALCUENDE e CARDIA 2009: 25).

A fronteira, de acordo com esses autores (Idem), pode ser entendidanão apenas como um recurso econômico para seus moradores, mastambém como um recurso social a partir do qual se formam redes desolidariedade e parentesco que atravessam os limites nacionais. Estacomunicação ocorre de várias maneiras na fronteira Corumbá/Ladário –Puerto Quijarro/ Puerto Suarez. Os fenômenos religiosos e a socializaçãodecorrente dos cultos religiosos são chaves interessantes para acompreensão dessas formas de interação e trocas simbólicas e merecemum estudo mais aprofundado; como exemplo, podemos citar os seguintesfenômenos: o trabalho de missionários de Igrejas evangélicas brasileirasno lado boliviano (além do barco da Assembléia de Deus de Corumbá,que realiza um trabalho de evangelização de ribeirinhos, nas margens dorio Paraguai, não apenas na Bolívia, mas também do lado paraguaio); asreligiões de origem “afro-brasileiras”, como a Umbanda, com fortepresença na cidade de Corumbá, que também possuem adeptos no ladoboliviano, (“pais-de-santo” de terreiros da cidade atendem no ladoboliviano da fronteira); a presença dos “feiticeiros” bolivianos, e os cultosreligiosos católicos, padroeiras e santas, que são reatualizados emCorumbá, e cuja devoção tem origem no Paraguai (virgem de Caacupé)e na Bolívia (Virgem de Urkupiña).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vida na fronteira, com toda sua complexidade, demanda um olharaguçado para romper com visões preconceituosas e estabelecidas no sensocomum e que emanam principalmente de atores sociais interessados, apartir de discursos hegemônicos ligados ao dogma da soberania estatal.Como romper com as visões preconceituosas que ora tratam as fronteirascomo “terras de ninguém”, como lugares desterritorializados e sem umaidentidade própria e ora consideram essas regiões como o locus da

122

violência, da ausência de leis e foco de preocupações exclusivas depolíticas públicas de segurança nacional? Como romper com a violênciasimbólica do silêncio e da negação dos discursos oficiais sobre asfronteiras? Para realizar a tarefa de compreender a vida fronteiriça emtoda sua densidade, acreditamos que o método etnográfico permita iralém de questionários fechados, de metodologias pré-concebidas,independentemente do campo de pesquisa e da coleta de dadosquantitativos que mais obscurecem do que revelam os fatos sociais queprecisam ser vivenciados e experimentados pelo pesquisador.

Outro aspecto relevante se refere ao fato de que as fronteiras sãorepresentadas de diferentes modos pelos atores sociais que as vivenciam,o que revela seu caráter polissêmico. A pesquisa empírica etnográficajunto aos indivíduos e grupos sociais que vivem em áreas fronteiriças éque pode fornecer os elementos para que possamos observar onde sedão as adesões e as reciprocidades, os conflitos e tensões entre as pessoasnas fronteiras, para entendermos como se formam os laços sociais e osmínimos de dependência entre os grupos e por quais processos asidentidades se reconfiguram nas áreas liminares de fronteira. Para realizaresta tarefa investigativa, resta saber se estes fenômenos fronteiriçospossuem características estruturais que permitem estabelecer pontos emcomum para sua comparação com outros contextos de fronteira, pararefinar cada vez mais nossas abordagens teóricas e permitir uma melhorcompreensão dos fenômenos sociais nessas regiões.

A Antropologia propõe um novo olhar para a fronteira e nossodesafio constante é o de estar cada vez mais envolvidos com a realidadeempírica da região e com a vida dos moradores fronteiriços, da qualfazemos parte também, que passam a ter uma “voz”, construindo ereinventando novos discursos sobre a fronteira, a partir do ponto de vistade si mesmos (nós mesmos, afinal de contas). Além disso, há umcompromisso teórico e metodológico de dar conta das interações formaise informais que ocorrem nas regiões fronteiriças e que podem forneceras bases, “de baixo para cima”, para a implantação de políticas públicasnessas regiões ainda tuteladas pelo Estado. É preciso enfatizar que osmoradores fronteiriços já aprenderam, ao longo da história, ainstrumentalizar sua condição e a criar laços através das fronteirasindependentemente, e anteriormente à “invenção” dos Estados e essas

123

formas de interação social não podem ser menosprezadas em seu poder,alcance e importância.

NOTAS EXPLICATIVAS

1Professor Adjunto de Antropologia e Docente do Mestrado em Estudos Fronteiriços da Universidade Federalde Mato Grosso do Sul/ Campus do Pantanal em Corumbá-MS.2Associações de comerciantes na fronteira. A Feira Bras-Bol, espécie de “camelódromo” em Corumbá, écomposta em sua maioria por bolivianos, que vivem nos dois lados da fronteira. A Associação 12 de Octubreestá situada em Arroyo Concepción, distrito de Puerto Quijarro, na Bolívia.3Os Cambas se auto-identificam como os habitantes das terras baixas do oriente boliviano (no Departamentode Santa Cruz) e denominam os habitantes do altiplano de Collas (identidade a princípio negativa, eestigmatizante, de conotação racista, que passa a ser reapropriada pelos mesmos, sendo ressignificadapositivamente, com um sentido de orgulho étnico). Este complexo e conflituoso sistema classificatórioboliviano não é tema deste artigo e serve aqui apenas como breve ilustração.4A partir de leituras de Barth (2000) e Cardoso de Oliveira (1976), entendemos que os grupos e identificaçõesnão podem ser compreendidos em si mesmos, mas apenas com relação aos outros, a partir de relaçõessociais que se dão pelo contato, sobretudo em áreas fronteiriças.

REFERÊNCIAS

BARTH, Fredrik. Os Grupos Étnicos e suas Fronteiras in: O Guru e o Iniciador e outras variaçõesantropológicas, Contracapa, Rio de Janeiro, 2000.

BERREMAN, Gerald. Por Detrás de Muitas Máscaras, in: Zaluar, Alba, org. DesvendandoMáscaras Sociais, Francisco Alves Editora: Rio de Janeiro, 1975.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, Etnia e Estrutura Social. Livraria PioneiraEditora: São Paulo, 1976.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto & BAINES, Stephen (Org.). Nacionalidade Etnicidadeem Fronteiras. Brasília: Editora UNB, 2005.

COSTA, Gustavo V.L. As Fronteiras da Identidade em Corumbá-MS: Significados, Discursos ePráticas. In: DA COSTA, G.V.L; COSTA E.A; OLIVEIRA M.A.M. (Org.). Estudos Fronteiriços.1ª ed. Campo Grande: Editora UFMS, 2010, v. 1, p. 69-98.

__________. Contrabando Para Quem? Controle e (in)disciplina na fronteira Brasil - Bolívia,em Corumbá-MS. In: Anais do II Congresso Internacional do NUCLEAS, Rio de Janeiro, 2010b.

__________. Os Taxistas na Fronteira Brasil-Bolívia: comércios de fronteira, identidadesnegociadas, in: Anais da IX Reunião de Antropologia do Mercosul, Curitiba, 2011.

DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social.Vozes, Petrópolis,

124

1981.

DONNAN, H. & Wilson T.M. Border approaches: anthropological perspectives on frontiers.Lanham : University Press of America, 1994.

FOOTE-WHYTE, William. Treinando a Observação Participante in: Zaluar, Alba, org.Desvendando Máscaras Sociais, Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro, 1975.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Zahar: Rio de Janeiro, 1978

GLUCKMAN, Max. Politics, Law and Ritual in Tribal Society. Aldine Publishing Company:Chicago, 1965

GRIMSON, Alejandro. Pensar Fronteras desde las Fronteras. Nueva Sociedad n.170.Noviembre-Deciembre, 2000.

___________. La Nación em SUS Límites. Contrabandistas y exilados em la frontera Argentina-Brasil. Gedisa Editorial: Barcelona, 2003.

LEACH, Edmund. The Frontier of Burma in Comparative Studies in Society and History, VolIII, number 1. Mouton & Co, The Hague, Netherlands, 1960.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. Um relato do empreendimentoe da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Gunié Melanésia. Editora Abril : SãoPaulo, 1976.

OLIVEIRA, G.F. e COSTA, G.V.L. Redes ilegais e Trabalho Ilícito: comércio de drogas naregião de fronteira de Corumbá/Brasil – Puerto Quijarro/Bolívia. Boletim Gaúcho de Geografia,38, 2011.

________. A cidade e os informantes inserção etnográfica nos pontos de venda de drogas dacidade de Corumbá/Brasil, na fronteira com Puerto Quijarro/Bolívia. Composição: Revista deCiências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, v. 11, p. 4-24, 2012.

PEIRANO, Marisa. A favor da etnografia. Relume Dumará: Rio de Janeiro, 1995.

RABOSSI, Fernando. Nas Ruas de Ciudad Del Este. Vidas e Vendas num Mercado de Fronteira.Tese de Doutorado apresentada ao PPGAS/ Museu Nacional/ UFRJ, 2004.

VALCUENDE DEL RÍO, José Mª; CARDIA, Lais M. Etnografia das fronteiras políticas esociais na Amazônia Ocidental: Brasil, Peru e Bolívia. Scripta Nova. Revista Electrónica deGeografía y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1º de junio de 2009, vol.XIII, núm. 292 <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-292.htm>. [ISSN: 1138-9788].

VILLA, Pablo. Crossing Borders, Reinfocing Borders. Social categories, metaphors and narrativeidentities on the U.S.-Mexico Frontier.University of Texas Press, 2000.

125

TEXTUALIZANDO CONDIÇÕES FRONTEIRIÇAS: ACONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA FICCIONAL

PARA O ESTUDO DO CONTRABANDO

Adriana Dorfman1

INTRODUÇÃO

O estudo das fronteiras desafia a pesquisar um objeto espacialgeneticamente estatal, mas que só pode ser descrito com atenção às outrasescalas geográficas em que sua vida de relações se constrói. A análiseescalar permite identificar comunidades com diferentes capacidadesdiscursivas, expressas em formas, suportes, circulação e legitimidadevariadas.

Reconhecemos a existência de uma política discursiva “na” e “sobrea” fronteira, o que nos permite interpretar o conteúdo dos discursos esuas conexões com as práticas, como performances com duração, quecaracterizam cada comunidade. Essa política discursiva se organiza apartir de elementos sociais e espaciais; há grupos cujos discursosalcançarão maiores audiências e terão maiores consequências, outrosserão pouco ouvidos. Também existem lugares de onde se lançamrepresentações sociais de ampla difusão e aceitação, que obliterarão asmargens geográficas e discursivas.

A fronteira – região em que se territorializa o limite do Estado –aciona uma carga simbólica que extrapola os aspectos administrativosda soberania, como o controle dos trânsitos de população e demercadorias. Daí a importância de atentar aos discursos e à sua

126

performatização; muito se diz e se escreve sobre a fronteira, geralmentelançando mão de simbolismo e normatividade descolados dasexperiências em condição fronteiriça. Especialmente no âmbito do estudoda (i)legalidade, interessa saber: qual comunidade emite cada enunciado,a partir de que posição política e situação geográfica, com que finalidadee alcance efetivo sobre as práticas.

Tenho me defrontado com tais constatações desde a pesquisa paraa tese de doutorado sobre os “contrabandistas” que hoje trabalham nafronteira do Brasil com o Uruguai (DORFMAN, 2009). Eu tentavainterpretar a fronteira na escala local - descrevendo as práticas dos“contrabandistas” de pequenos volumes -, tendo, para tanto, recorrido aum conjunto de documentos composto por textos muito diferentes, en-tre os quais se destacaram, num primeiro momento, obras ficcionais –os famosos contos de “contrabando” –, a legislação pertinente de ambosos lados da fronteira, bibliografia acadêmica, notícias e propagandas.

O exame desse material permitiu distinguir quais dentre osconteúdos desses discursos era concernente à realização do “contrabandoformiga”, e levou, ainda, a observar a presença de deslizamentosdiscursivos entre a ficção e a realidade, e entre as muitas realidades dos“contrabandistas” na fronteira. Durante os trabalhos de campo, converseiinformalmente e realizei várias entrevistas abertas com pessoas comconhecimento de causa, como “contrabandistas”, aduaneiros, advogados,juízes, professores, historiadores e geógrafos, e ao transcrever essematerial, pude comparar representações sociais e espaciais textualizadas.

Acolhi tudo o que caísse a mão, eis que sobre o “contrabando”paira o sigilo - tanto da parte daquele que o pratica, quanto dos órgãos desegurança e repressão -.

Para citar um informante:

(...) aqui nós ainda respeitamos os valores das pessoas, entendesse?Ainda hay um certo pudor, ainda não é escancarado. Tu fica natua, fica quieto e deixa que eles tussam, entende? Não te metecom nada e pronto, essa é a lei, deixa quieto que eles, vai chegarum momento, eles caem. (entrevista com Robles, Santana doLivramento-Rivera, 25/01/2006).

127

Então existia esse problema de “esperar eles tossirem”, e o sigilose mostrava como uma moeda forte nos discursos sobre delitos esegurança, defendido por “contrabandistas” e policiais por conta docaráter estratégico e reativo de suas operações. Assim, foi através derepetidos trabalhos de campo e da lenta construção da confiança comum informante-chave, de um trickster - pessoa falante, de grandeexperiência e ótimos relacionamentos nos diferentes campos da segurançaem Santana do Livramento-Rivera - que pude aceder aos relatos de“contrabando”, a essas verdades sigilosas.

Como se observa em campo, nessa fronteira o contrabando ébastante legítimo, mas isso não quer dizer que possa ser comentado dequalquer forma e em qualquer situação, menos ainda com aqueles quenão fazem parte dessa rede comercial de caráter ilegal. Ou seja, a aceitaçãosocial do pesquisador pelos agentes territorializados na fronteira écondição para ter acesso à informação sobre o “contrabando” como práticae não como delito. O sigilo só é rompido quando se é aceito no grupo,eis que se instala no limite entre pertencer ao local ou ser visto comoextralocal, criando uma geografia metafórica da informação.

A dificuldade também estava ligada ao caráter informal das práticasestudadas. Estatísticas sobre o “contrabando”? Em certos casos é possívelconseguir balanços de apreensões, mas o “contrabando” bem-sucedidotende à invisibilidade, não entra nas estatísticas. Além disso, a análiseestatística é problemática na fronteira - onde os fenômenos se afastamdas normas e justapõem-se as bases censitárias geradas a partir de critériosnacionais distintos -. Já a etimologia nos mostra a ligação entre o nexodo Estado e suas estatísticas. Além disso, descrever o “contrabando”como delito – a partir do Estado e de sua legalidade, nada dirá sobre seucaráter de prática legítima na condição fronteiriça.

Dada a coexistência de regimes normativos diferentes em cadalugar de enunciação, todo um esforço teórico foi empenhado parapermitir o trabalho com esse corpus de representações sociaistextualizadas e diversificadas: do “contrabando” romântico característicodos contos de “contrabando”, às notícias na página policial - passandopela lei do Estado e por frases ouvidas em campo -. Essa é a história quepretendo contar aqui: como a literatura foi importante para circunscrevero “contrabando” como prática, evidenciando aspectos morais e éticos

128

correntes na sociedade fronteiriça e estabelecendo os contextos de ilegalidade/legitimidade/viabilidade do “contrabando”, a partir da textualização dageografia desse lugar.

LITERATURA DE FRONTEIRA

No Rio Grande do Sul, o emblema literário mais recorrente é ogaúcho/peão. Da mesma forma, a literatura do Rio Grande do Sul épródiga em verso e prosa ambientados na região da fronteira. João Pintoda Silva, ao escrever a primeira História Literária do Rio Grande do Sul,ainda no ano de 1922, diagnosticava que em “nossas florações literárias,[...] quando reflexos do ambiente rio-grandense, o tom é um só. De facto,o nosso regionalismo é todo de accentuado cunho fronteiriço, aindaquando a acção de contos e novelas se desenvolve longe da linhadivisória” (p.129). Críticos contemporâneos reiteram tal diagnóstico: “apalavra ‘fronteira’ vem [sendo] [...] objeto de preocupação para todosaqueles que se voltam ao estudo da literatura sul-rio-grandense – edestacam-se aqui, dentre tantos, os nomes de Guilhermino César, OtheloRosa, Rubens de Barcellos e Moysés Vellinho” (MASINA, 1994, p. 55).

129

A expressão “literatura de fronteira” tem tido uso corrente em estudosliterários no Rio Grande do Sul – vejam-se os trabalhos de Lea Masina (1994,1995), Nara Rubert (2003) entre outros. O quadro abaixo (figura1) apresentaautores e obras publicados até 2009, sem exaurir a produção dos escritorese certamente omitindo muitos nomes importantes.

A literatura de fronteira pode ser reconhecida como um gênero, aoconsiderarem-se índices como a origem geográfica dos autores, a tematizaçãoda fronteira e a interpolação do português, do espanhol e de termos locais,gauchescos, em sua maioria, oriundos das línguas indígenas, por vezesassumindo-se como portuñol. Para a constituição do gênero contribuem aindaas referências recíprocas entre os autores, sejam eles contemporâneos ouprecursores, e a existência de editoras e de público-leitor, conformando umsistema literário.

O conceito de sistema literário, no qual a relação entre autores, públicoe um conjunto de editoras formam um sistema, também se aplica à literaturasul-rio-grandense sem descartar a ideia de literatura da fronteira. Sistemarefere-se à organicidade da literatura, “do triângulo ‘autor-obra-público’, eminteração dinâmica, e de uma certa continuidade da tradição” (CÂNDIDO,1981, p.16).

A literatura de fronteira não aparece apenas no Cone Sul.Internacionalmente, é a fronteira entre o México e os Estados Unidosaquela aceita como paradigmática, e não apenas no campo da literatura(GRIMSON, 2000, p.22). Edward Soja, por exemplo, incluiu emThirdspace, uma análise da cultura e identidade chicana valorizadas como“formas inovativas de interpretação (terceiro)espacial” (t.a) (“innova-tive new forms of (Third)spatial interpretation”, 1996, p. 129). SoniaTorres (2001) organiza sua análise da “literatura, etnografia e geografias deresistência” pelo questionamento da hispanização da cultura norte-americana,da busca de uma voz pelos migrantes latinos que não abandonam suas origens,e das resistências geradas no processo. Uma análise preliminar da literaturada fronteira México-EUA revela que apenas os latinos e seus descendentestêm tomado a palavra, ou talvez eles sejam mais valorizados por seremconsiderados pelos teóricos como os portadores da nova representação. Acomparação entre a literatura da fronteira gaúcha e a produzida nasborderlands norte-americanas revela ainda que os conflitos são muito maisclaramente expostos no segundo caso, refletindo as distintas realidades que

130

as geram (DORFMAN, 2004).Também na França encontrei obras que falamda fronteira e do contrabando, valorizando a primeira como lugar de memóriae o segundo como prática tradicional e marca do lugar (DORFMAN, 2008).

Assim, a literatura do Rio Grande do Sul recebe influxos da fonterevelada pelo uruguaio Bartolomé Hidalgo – que, em 1810, escreveu os“Dialogos Patrióticos” – e valorizada por José Hernández (1834-1886), em“El Gaucho Martín Fierro” (1872) e sua continuação “La vuelta de MartínFierro” (1874). Essas obras são escritas por intelectuais urbanos empenhadosem relatar a vida campeira em seus países, seus personagens e paisagens, aentrada da população no corpo pátrio, seja através do discurso ou da guerra(LUDMER, 2002). Essas obras comprometidas com a caracterização dasjovens nações latino-americanas são tidas como fundadoras das respectivasliteraturas nacionais.

Antes de Hernández, José de Alencar escrevera “O gaúcho” (1870),uma entre várias obras regionalistas através das quais pretendia mapear adiversidade da vida e da paisagem brasileiras. O romance de Alencar não foibem recebido entre os intelectuais do Rio Grande do Sul, por falta deverossimilhança na linguagem e na representação do tipo regional. Comoresposta, Apolinário Porto Alegre escreve “O vaqueano” (1872), onde seglorifica a “democracia da estância” (congraçamento entre fazendeiros e peões)(HEIDRICH, 2000, p.136). Note-se que a legitimidade da representaçãodo tipo regional é dada ao argentino Hernández e não ao brasileiro Alencar.

A literatura da fronteira insere-se, portanto, na “comarca literária doPampa” (RAMA, 1982), compartilhada por sul-brasileiros, uruguaios eargentinos (figura 2). Ao observar o mapa das comarcas literárias, a simultâneapertinência do Rio Grande do Sul ao Brasil e ao Pampa pode ser entendidacomo uma negação da suposta congruência entre cultura e nacionalismo,onde a fronteira nacional delimitaria língua e práticas culturais. No caso gaúcho,a fronteira é o marcador, o símbolo de uma cultura, de uma especificidadeem relação ao Brasil.

A literatura da fronteira produzida no Rio Grande do Sul carrega aambiguidade de ser a um só tempo não-nacional, mas transnacional,identificada com o regionalismo tradicionalista, conservador enacionalista. É recorrente a inclusão de glossários nas obras regionalistaseditadas nos centros culturais da nação, posicionando os termos ditosregionais nos marginalia da página e restabelecendo a posição periférica,

131

a condição desviante, deste produto cultural. Por outro lado, o conteúdo dosmarginalia é compartilhado entre as obras publicadas em outros paísesplatino. Há, portanto, uma linguagem da margem, incompreensível no centro,mas comunicando transfronteira, fortemente baseada na oralidade, nas origenshíbridas da cultura e dos habitantes desse espaço. A língua é uma prática,assim como o “contrabando”.

CONTOS DE CONTRABANDO

Os contos de contrabando integram um segmento importante naliteratura de fronteira. Essas representações textuais sublinham arelevância dos aspectos territoriais para aqueles envolvidos nas passagensilegais da fronteira. Seus enredos tematizam as práticas dos “bagayeros”,suas relações sociais e as formas de habitar o lugar.

FIGURA 2: América Latina: mapa das comarcas literárias. Fonte: DORFMAN, 2009, p. 127

Ainda que o valor estético ou artístico de alguns contos de“contrabando” possa ser questionado, é evidente a rentabilidade da análisedessas representações situadas – sobre as trocas que a fronteira permite,

132

sobre o confronto de identidades, sobre o regime normativo incidente sobreas práticas – sobre a condição fronteiriça.

A fim de estabelecer hipóteses sobre práticas, normas e condiçãofronteiriça relevantes para contrabandistas de pequena monta em Santana doLivramento-Rivera examino aqui dois contos de autores nascidos na fronteiraBrasil-Uruguai, escritos no limite entre texto culto e a narrativa nativa. Essescontos foram pinçados devido a referências mútuas, intertextualidades maisou menos explícitas, reconhecimento por parte da crítica e circulação entreleitores.

O uso de uma linguagem local é um recurso compartilhado pelostextos. Ligia Chiappini (1999, p. 21) cita Dino Preti (1977, p. 42-3, 47)para enumerar estratégias a que um dos autores estudados, Simões LopesNeto, recorre em seu esforço para transcrever a oralidade:

(...) a redundância; a freqüência das expressões de situação (aqui,ali, agora...); o truncamento básico; o ritmo e sonoridade típicosda fala; o papel da pontuação ressaltando a afetividade; a imagemdo interlocutor; as interjeições e chamamentos, pelo vocativo; asquestões, supostamente dirigidas ao interlocutor e, por meio deste,ao leitor-ouvinte; as comparações dentro do horizonte de Blau;os castelhanismos.

O conto mais antigo e conhecido aqui analisado é Contrabandista.É provável que João Simões Lopes Neto seja o pai dos contos de“contrabando” no Rio Grande do Sul. O título refere-se a Jango Jorge,descrito como um homem de muito valor e habilidade, fortementearraigado no pago, que se notabilizava pelo conhecimento da região -que “nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada”-localizando-se pelo faro, pelo ouvido e até pelo gosto característico acada lugar (LOPES NETO, 1998, p. 91).

A história se passa em meados do século XIX, mas remete tambémao tempo passado: já velho e afamilhado, Jango Jorge ia casar sua filha.Saiu na véspera da boda para buscar o enxoval do outro lado do rio, e dafronteira. Todos os preparativos estavam concluídos, mas a noiva nãopodia aparecer na festa enquanto o pai não chegasse com seus atavios.Depois de tensa espera, um movimento no terreiro anuncia Jango Jorge:deixando sua experiência de lado, insistira em enfrentar a guarda de

133

fronteira e fora morto.Além da rica informação factual deliberadamente incluída nessa

obra, e em parte transcrita acima, o desejo de registro é tão explícito quese pode afirmar tratar-se de um conto a serviço do documento, aprende-se que o “contrabando” é uma prática tradicional na região, e que desdesua origem, anterior a 1800, organizava-se em bandos ou “malocas”,atuando nos banhados do rio Ibirocaí, com qualquer tempo e a qualquerhora do dia (LOPES NETO, 1998, p. 91). Segundo o autor, o contrabandoteria nascido porque os estancieiros iam ou mandavam buscar artigosnecessários ou supérfluos para seu abastecimento do outro lado dafronteira ainda mal definida.

É evidente sua intenção em registrar a gênese e a organização do“contrabando”, apresentando-o como estratégia de sobrevivência dapopulação diante de uma dinâmica histórica desterritorializante, e nãocomo crime ou contravenção. O personagem-título surge com muitahumanidade, como um pai dedicado, generoso e conhecedor da terra, e aele opõem-se os “ordinários” guardas da fronteira. O “contrabando” queleva à morte de Jango Jorge não são armas nem drogas, mas um enxoval,a proteção e a delicadeza legada por um pai a sua filha. O casamentovira funeral, o dia vira noite, por causa do combate entre o “capitão-contrabandista” e o pai da noiva, próximo e familiar, e os ordinários quedefendem a lei estatal. É preciso lutar para reaver o corpo do“contrabandista”.

O contexto histórico é reforçado pelo escritor-testemunha, cientede seu papel social (o que é corroborado por sua opção por umpersonagem de extração social baixa, tal qual os bagayeros) escolhendoregistrar a dor desencadeada pela desarticulação de certo mundo rural. Asobreposição dos papéis de autor/testemunha permite o uso desse mate-rial na pesquisa geográfica: os textos ecoam um coletivo humanoterritorializado, sua oralidade, seu regime normativo. Eles representamuma vida de transgressões à norma nacional em condição fronteiriça.

O autor contemporâneo Amilcar Bettega-Barbosa (1964) escreveu“Arreglo” – que pode significar arranjo, suborno, reparação ou rendição– em 1996 (BETTEGA-BARBOSA, 2000). Essa história não louva ogaúcho ou sua região, como no começo do século XX. Ela mostra umlugar marginal e violento, “esvaziado de perspectivas”, onde o

134

“contrabando” é uma “alternativa à falta de alternativas” (entrevista, Paris, 23de março de 2007). O conto se passa numa fronteira marginalizada pelaeconomia e pela geopolítica, entre quartos de cabaré e um parador na Federal,em Rosário do Sul. O posto de serviços da Rodovia Federal, que poderiaser descrito como um não-lugar – não fosse o uso da expressão local –sublinha a presença do nacional e aponta para a articulação supranacionalatravés da estrada para a Argentina. A ação se desenrola na cidade, o entornorural é descrito como miserável, o rio é só um cenário. Não há menção acavalos, sequer como ornamentos da masculinidade, mostrando ter-seterminado o tempo dos cavaleiros em tropeadas campo afora. Outras escalase redes organizam o território.

Arreglo inicia com o assassinato do “contrabandista” Vico, porMendes. Como numa tragédia grega, o narrador é levado pela honra queoprime por inexequível, a vingar essa morte, apesar de querer mudar devida para casar. Vico, o “contrabandista” morto por Mendes ainda antesdo início da narrativa, era “chibeiro pequeno, talvez dos últimos numaépoca em que o chibo perdia a força e o rio já não passava de umapaisagem d’água irmanando a miséria”. Aparentemente o assassinatotivera motivação passional, uma disputa pela prostituta adolescente Sarita,mas na verdade outra era mulher em questão. A irmã mais moça deMendes havia sido estuprada por Vico e engravidara. Miséria e a violênciaatingem a todos. O desfecho é bárbaro: depois de surrar Mendesbrutalmente, o narrador solta um cachorro esfomeado e feroz que terminade matá-lo. O corpo é desonrado definitivamente pelos cachorros.

Um ódio ao gaúcho mítico, que poderia ser uma projeção doidealizado Jango Jorge, se manifesta no conto, exemplificando o contínuoespelhamento e distorção entre a literatura e a vida: os gaúchos saem davida para a idealização na literatura (no “Contrabandista”), voltam àliteratura expressando a impossibilidade de cumprir com tal destino numavida transformada, frustrada e empobrecida (em “Arreglo”). Acomparação entre as duas histórias mostra uma transformação no lugar,em seus habitantes e em suas representações.

A importância estratégica e os tempos heróicos pertencem aopassado da fronteira, tanto no lugar quanto nas histórias que ele inspira.A legitimação do “contrabando” no lugar se mantem associada àesperteza, rebeldia e coragem. O “contrabandista” é portador de verdades

135

locais, associadas à territorialidade fronteiriça, baseadas nos regimesnormativos que permitem ao fronteiriço negociar as leis estatais, e grandeparte de sua naturalização decorre da frequência aos textos aquianalisados.

REGIMES NORMATIVOS: LEIS E NORMAS

“O contrabando é ilegal, mas não é ilegítimo”, “contrabandoromântico”, contos de “contrabando”, bons bandidos e outros tropos dasexplicações positivas sobre “contrabando” só ganham sentido sepensarmos que surgem de comunidades que experimentam cotidianosque criam e interpretam as normas e leis, estabelecendo seus própriosentendimentos quanto à adoção destas, definindo as regras justas eaplicáveis na comunidade.

O regime normativo é esse conjunto de normas, escritas ou não,válidas para uma comunidade discursiva situada e compartilhando umdeterminado momento histórico. São definições sobre o que é possível,desejável, verossímil, legítimo e justo. Em sociedades complexas comoas nossas, o contrato social é debatido permanentemente, sem rupturacom o estado, a partir de noções locais – mas também de gênero, classe,faixa etária, etnia – sobre justiça, comportamentos e práticas legítimas.

A lei é o regime normativo de legitimidade mais abrangente noterritório nacional. Cabe resgatar aqui a etimologia da palavra: vem doverbo latino ligare, que significa “aquilo que liga”, ou legere, que significa“aquilo que se lê”. Sua redação é um processo lento e controlado, émonopólio do estado (as ditas autoridades competentes). Na prática,comunidades discursivas melhor situadas, em determinados pontos doterritório, emitem enunciados mais amplamente aceitos, que adquiremforça de lei. Por vezes,essas verdades ocultam, reprimem, criminalizamsentidos locais ou desviantes.

Enfim, as leis não são meras manifestações da vontade neutra eabstrata do estado, elas expressam a teia de interesses e encruzilhadaspúblico-privadas que buscam usar o aparato público no desenho daeconomia, da política, da moral, da cultura no espaço/mercado/lugaresreconhecidos como território nacional. Muitas vezes, há uma“privatização” da norma, isto é, esta é usada em proveito de grupos de

136

interesse situados (DORFMAN et al., 2012).A produção da lei é relevante, mas é importante também

problematizar a capacidade de levar à sua observância. Um aparato muitointrincado é construído para administrar o respeito à lei, personificado empolícias e fiscais, peritos e investigadores, juristas e carcereiros etc. A leiestabelece o que é contrabando, mas a decisão de reprimi-lo cabe, em certamedida, aos diferentes agentes que controlam o território estatal – seja noslimites territoriais,em outros pontos de entrada no território nacional comoportos ou aeroportos ou nos lugares em que se realiza o consumo.

Dada a impossibilidade de vigiar todas as mercadorias que transitampelo país, os órgãos de controle estabelecem metas em volume deapreensões e em produtos específicos. A definição dessas metas é, muitasvezes, resultado de um “clamor geral” ou da opinião pública, de umdebate que envolve sindicatos de produtores, militantes de direitos sociaise a sociedade em geral, condenando enfaticamente e demandando arepressão a um dado tipo de mercadoria contrabandeada (DORFMAN;REKOWSKY, 2011).

Obviamente, a opinião pública é formada pela atualização dasverdades através dos debates nos meios de comunicação, cujos conteúdossão primariamente definidos por comunidades discursivas ligadas agrandes interesses econômicos ou a órgãos oficiais. Em outras palavras,as fontes mais recorrentemente acessadas pelos jornalistas representamo alcance do poder de certos grupos, o que está ligado à facilidade e àefetividade da busca de informação por esses profissionais (GRIMBERG;DORFMAN, 2012).

A norma legítima é, portanto, um compromisso entre estruturas (oestado, o mercado, a imprensa, o lugar etc.) e agências (de aduaneiros,de empresários, de comerciantes, de contrabandistas etc.). Localmente,contrabandear é representado como um trabalho que implica nodesrespeito a algumas regras vigentes nos limites estatais, a partir de umconhecimento do lugar, das práticas possíveis e legítimas nele. Quandoenunciado a partir do estado, o contrabando define-se como o transporteilegal de mercadorias entre estados, elidindo os tributos por estesestabelecidos, através de um limite de permeabilidade seletivanormatizada por agentes políticos e econômicos hegemônicos.

137

LUGARES DE ENUNCIAÇÃO E CULTURA SITUADA

E o que são lugares de enunciação? Oswald Ducrot e TzvetanTodorov conceituam enunciação como “os elementos pertencentes aocódigo da língua e cujos sentidos, no entanto, variam de uma enunciaçãopara outra; por exemplo, eu, tu, aqui, agora etc.” (2001). Por lugar deenunciação entende-se o aqui/agora do autor e de seus interlocutores,nas províncias e redes de poder e representação que o contextualizam.

Os textos, as representações textuais, expressam a culturaespacialmente situada. O lugar da enunciação influi na representação doespaço formulada por cada agente: o agente é situado e a cultura emcirculação no lugar condiciona-o, ao regime normativo e às representaçõesque ele cria. Partindo desse ponto, enfatizo a mudança no significado dalei e do contrabando conforme a situação que informa a representaçãotextual formulada por cada agente considerado.

Vou dar uns exemplos de como aparece a lei em textos originadosem diferentes lugares de enunciação. Quintana Morales, poeta riverense,escreveu:

La ley sobre el contrabandono fue hecha en la campañaes como tela de arañano se si muy bien me explicono sujeta al bicho grandepero enreda al bicho chico

No Código Penal da República Oriental do Uruguai, escrito com aintenção de regular o mercado nacional, o artigo 245 da lei 13318/1964reza que:

Se considera que existe contrabando en toda entrada o salida,importación, exportación o tránsito de mercaderías o efectos querealizada con la complicidad de empleados o sin ella, en formaclandestina o violenta, o sin la documentación correspondiente,esté destinada a traducirse en una perdida de renta fiscal o enviolación de los requisitos esenciales para la importación o

138

exportación de determinados artículos que establezcan leyes yreglamentos especiales, aun no aduaneros

Simões Lopes Neto, escritor e publicista gaúcho do inicio do séculoXX, escreveu, naquele texto fundador dos “contos de contrabando”:

Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde emantes da tomada das Missões. [1801]

Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertire acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascasmontava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava umaponta grande de eguariços; abanava o poncho e vinha a meia rédea;apartava-se a potrada e largava-se o resto; os de lá faziam conoscoa mesma cousa; depois era com gados, que se tocava a trote egalope, abandonando os assoleados.

Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavamdesquitando-se do mesmo jeito.

Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em SantaTecla, do Haedo... O mais, era várzea!

Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a darsesmarias e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando poressas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um reipequeno... e agüentar-se com as balas, as lunares e os chifarotesque tinha em casa!...

Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho,o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderamestes pagos!

Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamavao capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelegodos sesmeiros...

Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas,se explicam.

139

Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sualicença é que algum particular graúdo podia ter em casa umpolvarim...

Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralhos de jogar,que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal,sim senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senãodessas!

Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandoubotar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com oslavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra darflux aos reinóis...

Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar comtantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertire pra luxar!... O tal rei nosso senhor, não se enxergava, mesmo!...

E logo com quem!... Com a gauchada!...(LOPES NETO, 1998, p.91)

Três formas de apresentar a lei: uma local, uma nacional, umaregional.

Existe uma quarta forma, a lei da natureza. Quem traz é o SergioFaraco “era a mesma lei que reinava em sua vida e na vida de seusconhecidos. Todo mundo se ajudava, claro, mas quando alguém morriaos outros iam chegando para a partilha dos deixados” (2000, p.295).

A variação no regime normativo reflete a combinação espaço-tempo-precursores, da mesma forma como se inscrevem nos textos asituação espacial, o contexto histórico de sua produção e leitura e,finalmente, os precursores eleitos pelos emissores. Sejam os textos legais,teóricos ou artísticos, sejam eles cultos ou populares, expressam a culturaespacialmente situada. O lugar da enunciação influi na representação doespaço formulada por cada grupo: o emissor é situado e a cultura emcirculação no lugar condiciona-o e às representações que ele cria. Emúltima análise, a origem espacial do texto está nele expressa, mesmoque não haja nele representação explícita do espaço.

Partindo desse ponto, entende-se a mudança nos conteúdos conformea situação que informa sua formulação. Situação é um conceito bem

140

explorado na Geografia Urbana, e refere-se à relação entre um lugar e seuentorno, enfatizando conexões e acessibilidade. Cabe lembrar o apelo dafeminista americana Donna Haraway por saberes situados, em que aobjetividade ganhe corporeidade e se reconheça como construção social(1989). Podemos afirmar que, dependendo do lugar em que se produza otexto, e a quem se dirija o argumento, representações muito diferentes dajustiça, da fronteira e da condição fronteiriça vão aparecer.

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Lendo, analisando a fronteira como numa central comutadora,podemos perceber diferentes representações sociais, aqui visitadas apartir dos textos em que elas são grafadas. Representações muitodiferentes de fronteira e de contrabando vão aparecer de acordo com olugar em que se produza o texto, e a quem se dirija o mesmo.

Cabe destacar: toda textualização constrói e representa o espaço.A literatura não só representa, mas também é parte da construção dosprojetos identitários que se expressam em territórios. Citando Eric Cardin:“a literatura sobre contrabando é um resultado, um reflexo, de umcontexto social plasmado na arte. No entanto, ela também difundeposturas, identidades e representações, ajudando a construir o contextosocial que ela própria é originada” (comunicação particular, 2013).

Já em Durkheim se encontra uma discussão da relação dasconstruções simbólicas com a realidade social, uma sociologia doconhecimento que debate as relações entre grupos socialmente situados,suas ideias e atos. Aqui exploramos algo que se aproxima de umageografia do conhecimento, uma vez que a referencia é a situaçãogeográfica das representações sociais. Segundo Serge Moscovici,representar é um processo de produção de conhecimento que funcionacomo que “rolando” sobre estruturas sociais e cognitivas locais (epopulares), sendo, portanto, sociovariável.As representações não derivamde uma única sociedade, mas das diversas sociedades que existem nointerior da sociedade maior (e, portanto, não podem ultrapassá-la) (2003).

Essa sociedade “maior” pode ser analisada a partir de sua

141

territorialização, lembrando da dialética que espelha sociedade e substratoterritorial. Na Geografia, isso exige ultrapassar as abordagens focadas só emaspectos materiais do espaço e da cultura. Um desses aspectos é a literatura.

DE VOLTA AO LUGAR DE PARTIDA

Ao fim desse diálogo entre representações textuais, revela-se umcontinuum entre os contrabandistas de ficção e da realidade, como sefossem refigurações de um mesmo personagem, adaptando-se àstransformações do espaço que habitam, dialogando com a tradição daliteratura e dos costumes. Sendo a fronteira um objeto geográfico, ehavendo uma estreita relação entre os objetos geográficos e a produçãode cultura, sabendo que a sociedade se territorializa gerandorepresentações textuais e que essas mesmas representações textuaisentram na construção cultural e política dos lugares – pode-se afirmarque a fronteira gera uma cultura específica. O contrabando é, nessesentido, uma prática cultural conectada com a condição fronteiriça. Háuma sobreposição entre a prática do contrabando e a cultura da fronteira,cujos índices mais reconhecidos são o portuñol, as famílias mistas, apolítica transfronteiriça, a música e a literatura de fronteira.

As obras locais sobre contrabando apelam para o folclore ou paraa “contracultura”, fazem o elogio do passado ou da margem. Trata-se deum folclore que imagina um território originalmente isento de fronteiras,criadas por imposição de poderes maiores ou externos, que mutilaram oterritório original sem, no entanto, extinguir, nos seus habitantes, o nexopregresso. A contracultura, a poesia da margem, atribui à região fronteiriçavalores como liberdade, autenticidade, criatividade, alinhando-se aospobres para exaltar seu inconformismo. Toda essa legitimação se estendea contrabando de maior monta, com outros propósitos, às vezes bemmenos nobres.

Por outro lado, a cumplicidade moral leva a uma coesão interna:os níveis de envolvimento com a atividade variam, há os que sãocúmplices apenas no sentido de partilharem o sigilo e não condenarem aprática. Esse grupo – a sociedade local – não é uma classe social, nem um

142

grupo profissional, nem uma facção política. Os bandos e seus cúmplicesabrangem uma grande parte ou a totalidade da população do lugar. Deve-seacrescentar que o contrabando dá coesão e identidade, mas não de umaforma pacífica, acomodada. Há embates, disputas, mortes, beneficiados eprejudicados. Conflitos, enfim. Podemos concluir que há um saber e umaidentidade nessa sociedade, nesse lugar, mas não há justiça.

Cabe pontuar que valorizar o contrabando como prática local éproblemático em outras escalas: reivindicar o delito conforma umasociedade fora da norma nacional, dando chance à estigmatização. Corre-se o risco de representar a fronteira como ameaça à segurança pública,reforçando uma geografia moral em que diferentes lugares do espaçoabrigam e estimulam valores como impureza, ameaça e delinquência. Aestigmatização da fronteira, pressupondo uma influência moral sobreseus habitantes, é presente em diferentes representações, seja pelamudança legal e territorial, pela situação periférica ou pelo contato/contágio com o estrangeiro/outro (DORFMAN, 2009; PARK, 1973, p.66).

CONCLUINDO

A literatura de fronteira e, especificamente, os contos decontrabando revelam lances e nuances do comércio ilícito internacionale da sociedade em que é praticado. A série de narrativas aqui encadeadasmostra que o tema mantém-se em movimento, integrando-se na correntede representações textuais em que circulam leitores e autores,contrabandistas fictícios e reais.

Como estratégia de aproximação aos sentidos locais docontrabando, a literatura nos forneceu subsídios, que servem comoorientação para o trabalho de campo, no levantamento das práticas dosfronteiriços. Alinhando tradição, costumes e práticas, podemos nosaproximar dos hábitos ou costumes que se fazem no espaço social, quetrazem em si a ciência do lugar, dos pais e dos precursores, ao mesmotempo em que necessariamente se territorializam no presente.

De forma resumida, vou colocar algumas conclusões desse trabalho,da minha experiência de pesquisa sobre o contrabando e da rentabilidadedos textos literários para esse esforço.

143

Em primeiro lugar, nessa tentativa de organizar os textos segundo asrepresentações sociais e a situação geográfica, coloco alguns pressupostos:

- existem diferentes modos para representar o espaço e as práticasque o ativam socialmente. A representação textual assume diferentesgêneros (uma matéria, uma lógica, um suporte) para verbalizar o espaço,com diferentes propósitos: descrição científica, obra ficcional, texto le-gal e jornalístico, entrevistas, conversas, causos, anedotas, canções...

- todo mundo fala, as palavras e seus usos são de domínio geral,em mutação e atualização permanente, mas cada gênero temcaracterísticas destacadas, leis internas. O texto científico prima pelodiálogo com os precursores; a escrita geográfica também é cartográfica.A representação oral recorre a gestos e entonações, perdidos na passagempara o registro escrito. Cabe examinar o conteúdo local das palavras.

Listo como os principais elementos de uma geografia daimaginação cultural:

- o lugar do emissor, o ponto de partida da representação, o lugarde enunciação, o aqui e agora subjacente a cada texto.

- o lugar de recepção, a quem se dirige o texto,enfim, a situaçãodo texto, sua vinculação com diferentes entidades geográficas, sua posiçãoperiférica ou central a outras representações sociais. Esse tipo de análisesublinha ainda a suíte escalar em que circula o texto, por exemplo, ocontrabando, e os conflitos gerados na relação entre representaçõesoriundas no lugar, na região e no Estado.

Para fazer uma geografia da imaginação cultural precisamos(a) reconhecer a natureza desigual de cada um desses gêneros

textuais,(b) aproximá-los, construindo comensurabilidades entre textos de

origem, suporte e propósitos distintos,(c) situá-los no lugar (em posições geograficamente coerentes com

a situação geográfica e social de quem as produz) e na tradição (que nãoabordamos aqui),

(d) reconhecer seu caráter político na produção de coerênciasinternas por vezes dissonantes em relação a outras escalas e grupos sociais

(e) gerando novas representações textuais, como o texto que aqui seencerra.

144

NOTA EXPLICATIVA

1Dra. em Geografia, professora adjunta do Depto. de Geografia e da Pós-Graduação em Geografia da UFRGS,[email protected].

REFERÊNCIAS

BETTEGA-BARBOSA, Amílcar. Arreglo. In: EQUIPE DA UNIDADE EDITORIAL (Org.).Contos sem fronteiras. Edição bilíngüe em português e espanhol. Porto Alegre: UE/ Sec. Mun.da Cultura, 378 p. p.55-62, [1996] 2000.

CÂNDIDO, Antônio. Prefácio da 2ª edição e Introdução. In: ______. Formação da literaturabrasileira (momentos decisivos). São Paulo: EdUSP/ Ed. Itatiaia Ltda, [1950] 1981.

CHIAPPINI, Ligia. No entretanto dos tempos: literatura e história em João Simões Lopes Neto.São Paulo: Martins Fontes, 416 p., 1988.

DORFMAN, Adriana. O espaço age sobre o estilo: comparando fronteiras através da literaturade gaúchos, chicanos e europeus. Anais do VI Congresso Brasileiro de Geógrafos. Goiânia:AGB, 12 p., 2004.

_______. Pequenas pontes submersas: interpretações geográficas e antropológicas de literaturasde contrabando. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 3, n. 1, p. 93-114,jan.-abr., 2008.

_______. Contrabandistas na fronteira gaúcha: escalas geográficas e representações textuais.Tese de doutorado, Florianópolis, 2009. Disponível em http://www.tede.ufsc.br/teses/PGCN0367-T.pdf.

_______; FRANÇA, Arthur Borba Colen; DURAN, Roberta Corseuil; SOARES, Guilherme deOliveira. Contrabando e mercado legal de agrotóxicos: articulações a partir da fronteira Brasil-Uruguai. Anais do IV Seminario da America Platina. Buenos Aires, 2012.

_______; REKOWSKY, Carmen J. Geografia do contrabando de agrotóxico na fronteira gaúcha.Revista Geográfica da América Central da Escola de Ciências Geográfica, v. 1, p. xx, 2011.

DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem.São Paulo: Perspectiva, 339 p., [1972] 2001.

FARACO, Sérgio. Guapear com frangos. In: EQUIPE DA UNIDADE EDITORIAL (Org.).Contos sem fronteiras. Edição bilíngüe em português e espanhol. Porto Alegre: UE/ Sec. Mun.da Cultura, [1986] 2000, 378 p. p.289-295.

GRIMBERG, Daniela Seixas; DORFMAN, Adriana. Uma geografia da informação dasapreensões de agrotóxicos na região Sul do Brasil. Anais do Encontro Internacional Fronteirase Identidade. Pelotas, 2012.

GRIMSON, Alejandro. Introducción ¿Fronteras políticas versus fronteras culturales? In: ______.(comp.) Fronteras, naciones e identidades: la periferia como centro. Buenos Aires: Ciccus, LaCrujía, 348 p. p 9-40., 2000

145

HARAWAY, Donna. Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege ofpartial perspective. Feminist Studies, Vol. 14, n. 3 (outono, 1988), pp. 575-599 Disponível emhttp://www.jstor.org/stable/3178066. Acesso em 07 ago 2012.

HEIDRICH, Álvaro Luiz. Além do latifúndio: geografia do interesse econômico gaúcho. PortoAlegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 212 p., 2000,

LUDMER, Josefina. O gênero gauchesco: um tratado sobre a pátria. Chapecó: Argos, 2002.

MASINA, Lea. O contrabando na confluência das culturas. In: CASTÉLLO, I. et al (orgs.).Práticas de integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. p. 165-175, 1995.

__________. Percursos de leitura. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro; Movimento, 159p.,1994.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro:Vozes, 2003.

PARK, R. E. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento social no meio urbano.In: VELHO, O. (org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en America Latina. México: Siglo XXI, 1982.

RUBERT, Nara Marley Aléssio. O regionalismo de Sérgio Faraco. Uma visão universalista daliteratura de fronteira. Dissertação de Pós-Graduação em Letras. Porto Alegre: UFRGS, 135 p.,2003.

SILVA, João Pinto da. História literária do Rio Grande do Sul. 2ª ed. P. Alegre: Livraria doGlobo, 280 p., 1930.

SOJA, Edward W. Thirdspace. Journeys to Los Angeles and other real-and-imaginedplaces.Cambridge, Massachusetts: Blackwell, 334 p., 1996.

TORRES, Sonia. Nosotros in USA: literatura, etnografia e geografias de resistência. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 186 p., 2001.

146

147

ANDAR EL CAMINO, ENCONTRAR EL PROPIOHOGAR: RELATO VITAL DE UN MIGRANTE A LA

FRONTERA MÉXICO–BELICE

Antonio Higuera Bonfil

INTRODUCCIÓN

El estudio de las fronteras en tanto espacios sociales construidospor el ser humano ha sido una prolífica forma de trabajo. La literaturasobre el particular incluye acercamientos desde distintas disciplinas, conenfoques teóricos variados; ríos de tinta han corrido para caracterizaresas zonas del planeta marcadas por la actividad de sociedades y gobiernoscomo puntos de confluencia y conflicto.

México tiene 4,301 kilómetros de fronteras internacionalesterrestres, de los que 3,152 corresponden a la vecindad con EstadosUnidos y 1,149 a la frontera con Guatemala y Belice (INEGI, 2013),algo más del 10% de esta última -149.5 kilómetros- concierne a lacolindancia entre México y Belice (Hidalgo, 2007). Las fronteras orientaly occidental del país son marítimas, comunicándolo con los océanosAtlántico y Pacífico.

Este trabajo centra su atención en el relato de vida de un migrantemixteco, muestra sus condiciones de vida en Oaxaca y el periplo que lollevó en 1979 a su destino final, la frontera México – Belice. Comopodrá comprobarse en las siguiente páginas, la experiencia vital de nuestro

148

personaje central está estrechamente relacionada con el trabajo agrícola,las vivencias incluidas en este relato están salpicadas de anécdotas quemuestran el perfil cultural de un individuo que durante sus primerosquince años de vida fue monolingüe, que por un periodo igual de tiemposólo tuvo los rudimentos del español para comunicarse y que adquiriólas habilidades de la lectura y la escritura sólo en el contexto del cambioreligioso que experimentaron él y su familia nuclear.

El mapa 1 muestra tanto el lugar de origen de nuestro personajecentral como el de su residencia desde hace más de treinta años. El estadode Oaxaca se localiza en la región sureste de México y tiene acceso alocéano Pacífico, el estado de Quintana Roo conforma la parte orientalde la Península de Yucatán, y hace frontera con el Caribe y Centroamérica,siendo la única entidad federativa que tiene colindancia con Guatemalay Belice.

Las diferencias entre estas entidades saltan a la vista. Oaxaca tieneuna extensión territorial de 93,952 kms2, divididos en 570 municipios(http://www.oaxaca.gob.mx/?page_id=32006); de acuerdo con el Centrode Información Estadística y Documental para el Desarrollo, de Oaxaca,su población asciende a casi 4 millones de habitantes (http://www.ciedd.oaxaca.gob.mx/sp/?p=1409). La densidad de población esde 37.3 habitantes por kilómetro cuadrado y su jurisdicción es territoriode 18 grupos étnicos.

Quintana Roo tiene una extensión territorial de 50,841 kms2, divididosen 10 municipios, de acuerdo con el Consejo Estatal de Población de QuintanaRoo, estima en 1,484,746 su población parta 2013. La densidad de poblaciónes de 29.2 habitantes por kilómetro cuadrado y en su territorio habitan, ademásde los mayas originarios, varios grupos étnicos que han protagonizado unamigración laboral de cierta importancia.

Varias de las partes que conforman este trabajo fueron concebidascomo piezas complementarias que buscan mostrar tanto la dimensión individualde nuestro personaje como algunas condiciones sociales en que aquéldesarrolló etapas específicas de su vida. El ir y venir de lo particular a logeneral permite asomarnos a diversos escenarios de la vida de los actoressociales.

El núcleo de este texto es, entonces, la recuperación del relato de vidade don Luis López Rojas, la forma en que creció en Oaxaca y los principales

149

rasgos de su vida en el sur de Quintana Roo, donde reside –literalmente- enla raya en donde termina México y comienza Belice.

Mapa 1:

Fuente: http://www.losmejoresdestinos.com/mapa_mexico.gif

QUINTANA ROO, DATOS BÁSICOS

El estado de Quintana Roo se ha caracterizado por ser un lugar dedestino de migrantes nacionales y extranjeros. Erigido por el gobiernofederal en 1902 como territorio federal, se sitúa en la parte oriental de laPenínsula de Yucatán, haciendo frontera con el Caribe y Centroamérica.Recibió oleadas de trabajadores para la extracción del chicle y el corte demadera en las primeras décadas de su vida, produciéndose la fundación devarias poblaciones en la frontera con Belice. Se debe resaltar que durante losúltimos 60 años la colonización dirigida por el Estado mexicano y la atraccióngenerada por polos turísticos como Cancún y Playa del Carmen han movilizadomiles de familias hacia esta zona de México.

Los trabajadores llegados a Quintana Roo para la actividad forestal,además de los grupos mestizos y mayas ya residentes en esta zona de México,

150

sumaron en 1910 algo más de 9,000 habitantes; hoy el estado tieneprácticamente un millón y medio de habitantes (COESPO, 2012). La condiciónde frontera agrícola primero y la intervención del Estado mexicano paracolonizar esta región del país después, trastocaron la tendencia de lentocrecimiento poblacional en la primera mitad del siglo XX. Por ello, a partir de1950 el número de habitantes tuvo un incremento sostenido, esta situacióndio lugar a una tasa de crecimiento sin precedente en los últimos sesenta años(ver tabla 1).

Tabla 1Tasa de crecimiento poblacional. México y Quintana Roo.

Período México Quintana Roo1951 – 1960 3.1 6.41961 – 1970 3.4 6.01971 – 1980 3.2 9.51981 – 1990 2.0 8.31991 – 2000 1.9 5.92001 – 2010 1.4 4.1

Fuente: INEGI.Censos de Población y Vivienda, 1950-2010

La tabla 1 da cuenta de la elevada tasa de crecimiento poblacionalexperimentado en Quintana Roo en la segunda mitad del siglo XX y elinicio del XXI. La inmigración es, sin duda, la variable que explica esatendencia, cuyo valor duplica (1951–1970), triplica (1971–1980, 1991–2000 y 2001–2010) y cuadruplica (1981–1990) lo ocurrido en el ámbitonacional a lo largo de toda la serie. Una de las múltiples manifestacionesdel crecimiento poblacional es la de la diversidad religiosa; Higuera(1992) y Vallarta (2011) han demostrado que en una parte de la fronterainternacional la pluralidad religiosa era un hecho consumado ya en 1904.

Si nos preguntamos por la evolución de la diversidad de creenciasreligiosas a lo largo de las últimas seis décadas, encontramos una tendenciaen el cambio religioso que apunta hacia el incremento de la disidencia religiosa.Si bien es cierto que la religión católica es hegemónica, resulta interesantecomprobar que de 1950 a 2010 el porcentaje de creyentes que profesan unareligión diferente a ella creció diez veces, al pasar de 3.5% a 35.47% (vertabla 2). De hecho, de acuerdo con los datos del XIII Censo General de

151

Población y Vivienda 2010, Quintana Roo es la entidad federativa con mayorcambio religioso en México, al registrar un 8.6% de disminución de loscatólicos.

Tabla 2Católicos en Quintana Roo(totales relativos). 1950-2010

Año Población Católicos Porcentaje1950 26,967 26,042 96.51960 50,169 46.099 91.81970 88,150 77,572 88.01980 225,985 186,931 82.71990 412,868 321,211 77.82000 792,990 552,745 73.22010 1´325,578 839,219 64.6

Fuente: Elaboración propia, con base en Giménez, 1996: 229-242;INEGI 2002; INEGI 2006; INEGI 2011a.

¿Cómo vive un actor social no sólo el cambio en el lugar deresidencia, sino casi simultáneamente el de adscripción religiosa?,¿estamos frente a un caso en el que el migrante lleva su creencia al lugarde destino ó es la migración la que consolida el cambio religioso? Lassiguientes páginas ofrecen un caso de estudio que vincula estas dosexperiencias vitales.

DISEÑO DE INVESTIGACIÓN

El diseño de este trabajo partió del interés de usar la historia oralcomo método de trabajo, como forma de acercarse a la realidad vividapor actores sociales en medios culturales específicos. Al plantearse elreto de abordar el estudio de la experiencia humana individual comocentro general de atención, y buscando no separarla del contexto social, loque la aislaría quitándole su sentido más profundo, se encontró una reflexiónde Marc Augé (2007) de gran utilidad para nuestro propósito.

En Casablanca, Augé ofrece un interesante modelo para abordarel estudio de la memoria. Teniendo como punto central su propiaexperiencia vital, que conecta el amor por el cine, una infancia en la

152

medianía del siglo XX y su profesión en las Ciencias Sociales, explora susrecuerdos sobre el éxodo que la Segunda Guerra Mundial impuso a su familianuclear, una vez que su padre se incorporó al ejército francés y fuera destacadoen diversas regiones del país galo. De ese punto de partida, la obra desmenuzapuntos finos de cómo al pensar en el cine se puede pensar en la recuperaciónde la memoria individual, que de una u otra forma se conecta siempre con elámbito social y nos permite conocer aspectos específicos de las relacionessociales.

Toda película que nos ha gustado un día comienza a ocupar unlugar en nuestra memoria, junto a otros recuerdos. Es un recuerdoentre otros, sometido como ellos a la amenaza del olvido, a laerosión de la memoria. Incluso sucede que, por una razón u otra,recordemos con mayor o menor precisión el lugar, la fecha y lascircunstancias en que vimos la película por primera vez. Peroacordarse de una película también es recordar la película misma,es decir las imágenes, como si la técnica de cine hubiese efectuado,desde el inicio, el trabajo mental que selecciona percepcionespara formar recuerdos, como si, de alguna manera, hubiera hechoel trabajo de la memoria. Así, sucede que las imágenes de laspelículas se nos aparecen en la mente como recuerdos personales,como si formaran parte de nuestra vida misma con, por lo demás,ese mismo grado de incertidumbre que suele afectar a los recuerdoy que a veces se revela cuando uno vuelve a los lugares del pasadoo coteja sus recuerdos con los de otra persona. (Augé, 2007: 25)

El epígrafe de la obra abre camino, “Este texto no es unaautobiografía; es, más bien, el «montaje» de algunos recuerdos. Es decir,habría podido elegir otros recuerdos u otro montaje”. Esta declaraciónes desarrollada en Casablanca, que poco a poco, como si se tratara de unfilm que va mostrando sus protagonistas, la trama, los paisajes y eldesenlace, nos da las piezas del gran rompecabezas que constituye su modelode conocimiento y método de trabajo.

El libro teje varios niveles narrativos, que configuran la propuestadel autor. Si sus recuerdos son el pretexto que da origen a la reflexión,los elementos técnicos que constituyen una película, las característicasde su elaboración y los procesos mentales que colocan al libreto, los

153

actores y los espectadores en lugares precisos, son utilizados por Augé pararesaltar la importancia que tiene la historia oral para conocer, entender yexplicar una capa sustancial de la vida social.

Cuando no tenemos buena memoria (una memoria que registre,feche y clasifique), el pasado, incluso el pasado cercano, se suelepresentar como un conjunto de “escenas” dispersas. En elmomento de la rememoración tratamos de encontrar el vínculoque las une, el hilo que corre de una a otra, es decir, el hilo mismode la existencia. La paradoja de la memoria es que, cuanto másantiguo es el pasado, más vívidas, coloridas y presentes parecenlas escenas que nos quedan pero, en cambio, más tenue, confusoy pérdido se vuelve el hilo que las une. Necesitamos “montar”nuestros recuerdos, esos rushes de la memoria, para recomponeruna continuidad, es decir, para trenzar un relato. (Augé, 2007:34)

Lo que más me gusta de las películas antiguas, sobre todo de lasnorteamericanas, no son tanto las películas (aunque muchas sonexcelentes) como los actores. Siempre los encuentros intactos,bellos como dioses y diosas o, en todo caso, expresivos, poderososencarnando la virtud o el mal, el coraje o la cobardía (…) Notienen una arruga. Siguen siendo iguales que la primera imagenque nos dieron de sí mismos, cuando éramos jóvenes. (…)

Cuando estoy en el cine, lo que veo en la pantalla son mayores,mayores que yo, exactamente como los adultos cuando yo eraniño. (…) Es cierto, el adulto que va al cine ha crecido, pero suposición de espectador sentado lo coloca más o menos en el mismonivel que el niño que ha sido. Frente a la pantalla puede someterse,sin demasiado riesgo, a la prueba de la fidelidad de su mirada, alvolver a encontrar las imágenes intactas de una película descubiertaaños antes. (…)

(…) un pasado presente, con su propio pasado y su propio futuro.Otra temporalidad se apodera de uno, irresistiblemente, desde elprincipio: la del relato que uno conoce de memoria, pero que detodos modos se apropia de uno y no lo deja hasta la escena final(…) una película es una suerte de largo flashback. Volver a ver

154

una película es reencontrar un pasado que conserva toda lavivacidad del presente. (Augé, 2007: 65, 66 y 68)

Haciendo el símil entre el cine y la vida, presentando sus vínculosreales e imaginados, el autor discute en varios niveles las formas en quelos seres humanos fijan sus recuerdos y los procesan para ser contadoscomo parte de su existencia. Casablanca es un documento en el queAugé reflexiona sobre el arte de recordar los acontecimientos de un época,vinculando la experiencia individual con el escenario de la vida social,la historia y los grandes eventos que marcan el ritmo de vida de lassociedades.

Una película es una combinación de tres miradas, la de la cámara,que obedece al director; la del protagonista, con la que la primerase confunde cuando la cámara se vuelve “subjetiva”; y la delespectador, por último, que toma las otras dos, mientras dura laproyección. Paradójicamente, en definitiva, esa última mirada, lamirada del espectador, es tributaria de las otras dos, es decir, laque hace o deshace la película, según se deje guiar o no por laprimera y se identifique o no por la segunda. (Augé, 2007: 75)

Cuando la historia particular de una persona se entrecruza con lahistoria en general, en ocasión de un hecho más o menos dramático(guerra, huelga general, revolución…), esa persona empieza avivir de forma más atenta: cada minuto cuenta, todo es un signo,nada se puede descuidar. Es la paradoja que tienen esos momentosde temor o esperanza: eliminan la morosidad de lo cotidiano, echanpor tierra las depresiones y, más tarde, una vez desaparecidas lasamenazas o las promesas que parecían acarrear, se inscriben demanera indeleble en la memoria… (Augé, 2007: 87)

El autor no deja de reconocer que el proceso de elaborar un relatovital pasa, ineludiblemente, por la experiencia subjetiva de quien havivido. Es éste un primer filtro que el investigador no puede obviar en sutrabajo; la posición específica del interlocutor, quien relata su propiahistoria, determina el “montaje” que se hará para contar una experienciaúnica, haciendo énfasis en determinadas épocas y circunstancias, fijandosu atención en elementos que, en el momento mismo del relato, tienen

155

importancia fundamental. Es el interlocutor el que decide, como el directorde la película, cuándo y dónde se hace un paneo, un primer plano o unprimerísimo plano, según quiera resaltarse una u otra situación específica dela historia contada.

Montaje: este término, que parece tomado de la mecánica, resumeun misterio que es el encanto del cine. ¿De qué manera elencadenamiento de una escena con otra previamente seleccionadapuede comprender un relato? […] (Al referirse a las seriestelevisivas estadounidenses dice) Las indicaciones de lugar, fechay hora se inscriben, sin embargo, en la pantalla, pero son a la vezsintácticamente mínimas y narrativamente esenciales, hacen máslegible el recorrido narrativo construido por el encadenamientorápido de las imágenes; es decir, lo balizan.

En la vida real, en efecto, los momentos fuertes, los momentosdecisivos, son pocos, separados en todo caso por largos períodosen los que fácilmente nos damos cuenta que no hay nada paradecir apenas nos ponemos a contar a alguien lo que hemos hechodurante el día o la semana anteriores. Pero la mayoría de las vecesesos momentos fuertes y decisivos sólo aparecenretrospectivamente, condenados a no existir más que comorecuerdos… (Augé, 2007: 30)

El segundo filtro, tan inevitable como el primero, es el que poneen marcha el propio investigador al seleccionar lo que quedará (inclusivecómo quedará) el “montaje” final. La redacción de la versión a publicarsepasa por la “censura” del investigador, quien decide qué se incorpora yqué no, en el texto final. Suerte de edición cinematográfica, esta labor dala forma definitiva al relato que emerge de la labor investigativa.

No deja de ser interesante que el modelo de Augé tenga variospuntos de coincidencia con la posición expresada por Bourdieu (1989),quien reflexiona sobre la aceptación de una sola perspectiva al trabajarla historia oral, en su fórmula de historia de vida:

Todo permite suponer que el relato de vida tiende a aproximarsetanto más al modelo oficial de la representación oficial de unomismo, carnet de identidad, estado civil, curriculum vitae,

156

biografía oficial, y de la filosofía de la identidad que lo sostiene,que se aproxima más a los interrogatorios oficiales de lasinvestigaciones oficiales –cuyo límite es el interrogatorio judicialo policial-, alejándose tanto de los intercambios íntimos entrefamiliares como de la lógica de la confidencia que transcurre enesos mercados protegidos. Las leyes que rigen la producción delos discursos entre la relación de un hábito y un mercado se aplicana esta forma particular de expresión que es el discurso sobre unomismo; y el relato de vida variará, tanto en su forma como en sucontenido, según la calidad social del mercado en el que seráoficial –la misma situación de la entrevista contribuyeinevitablemente a determinar el discurso obtenido” (Bourdieu,1989: 30-31)

Para Bourdieu es condición indispensable de las historias de vidala comprensión de las circunstancias sociales en que se he desarrolladoel biografiado, (…) “intentar comprender una vida como una serie únicay suficiente en sí misma de acontecimiento sucesivos sin otro nexo quela asociación que la de un nombre es por lo menos tan absurdo comointentar dar razón de un trayecto en el metro sin tomar en cuenta laestructura de la red, es decir, la matriz de las relaciones sociales entrediferentes estaciones.” (Bourdieu, 1989: 31)

NOTA METODOLÓGICA

El relato de vida que se presenta en este trabajo es producto de unainvestigación mayor, realizada en la frontera México – Belice a lo largode varios años, con el tema central de la diversidad religiosa. La regiónestudiada es un escenario donde la presencia de diferentes iglesias cristianases una realidad añeja; si bien es un tema local poco estudiado, ha sidoabordado por autores como Villalobos (1989), Higuera (1999, 2012), CanulG. (2000), Canul R. (2005), Poot y Vázquez (2005), Ucán (2005), Rivera(2009), Higuera, Andrade,Caamal y Juárez (2009), Higuera, Crisóstomo yLlerenas. (2012).

Como se ha dicho en la introducción de este trabajo, la zonafronteriza que nos interesa forma parte de la entidad federativa con mayor

157

índice de cambio religioso en México (INEGI, 2010), razón que pone enrelieve la pertinencia de acercarse al estudio de la (in)migración a travésde la lente de la adscripción religiosa. Adicionalmente, debe señalarseque Quintana Roo es el estado más joven de la República Mexicana,habiendo sido erigido como Territorio Federal el 24 de noviembre de1902 y alcanzado el estatuto de Estado Libre y Soberano el 8 de octubrede 1974 (Careaga, 1980; Careaga e Higuera, 2011).

Espacio de colonización a lo largo de varias décadas, QuintanaRoo ha experimentado varias oleadas de inmigrantes, en la década de1970 la colonización dirigida por el Estado Mexicano fomentó lafundación de varios asentamientos humanos en la selva tropical; lacreación y desarrollo de un polo turístico de la importancia de Cancúnllevó a miles de familias a esta parte caribeña del país, y la migraciónespontánea, aquella que es opción para quien busca tierra para cultivar ódesea un trabajo agrícola, han contribuido decisivamente al crecimientodemográfico del estado.

La investigación sobre el panorama religioso en la frontera México– Belice ha seguido un diseño mixto, combinando trabajo de gabinete yvarias temporadas de trabajo de campo. Ha recurrido a diversas fuentesde información, considerando tanto las primarias como las secundarias.La consulta bibliográfica y de ediciones periódicas ha sido de gran utilidadpara enmarcar el cambio religioso como una expresión del cambiocultural, en tanto que tienen injerencia directa en las relaciones socialesregionales.

El trabajo de campo ha permitido abordar las formas concretasque adopta la migración, el cambio de adscripción religiosa, lasmodificaciones ocurridas al interior la familia como consecuencia de lapluralidad confesional, bajando a la dimensión de los actores socialesque tiene vínculos particulares con la historia local y regional, documentandolas diversas encarnaciones individuales de los procesos sociales.

La observación participante se ha concretado en la asistencia a losservicios religiosos de diversas iglesias, colaborando en actividades dela vida cotidiana de los creyentes y conviviendo con ellos en la vidaritual y la seglar. Los encuentros con ancianos, ministros de culto, pastoresy encargados de los templos nos han permitido conocer la estructura conla que operan las comunidades de fe y su historia local. Las entrevistas

158

en profundidad con los creyentes se han utilizado sistemáticamente, obteniendolos datos necesarios para construir una serie de historias de vida que décuenta de la forma en que se han experimentado individualmente los procesossociales locales y regionales.

Se empleó, además, el método genealógico para entender elcontexto inmediato de los actores sociales. Esta forma de trabajo nosólo permite conocer las relaciones de parentesco de una familia extensa;incorporar indicadores socioculturales a las estructuras genealógicas laspotencializa como herramienta para la investigación, ya que interrelacionaaspectos concretos de la vida social. Si se piensa como una metáfora,este procedimiento metodológico hace que las imágenes obtenidas en elcampo “ganen volumen, puedan ser apreciadas en tres dimensiones”.Ello permiten expresar situaciones sociales complejas que entretejen lasdiferentes experiencias individuales.

En el caso estudiado, la estructura genealógica muestra laadscripción religiosa de los integrantes de la familia López Coronel, asícomo elementos adicionales, que exponen el tránsito de los actoressociales por la vida religiosa institucional. Quien ha permanecido fiel alos patrones de conducta de la iglesia puede acceder a cargos deresponsabilidad dentro de la estructura institucional; si, por el contrario,se ha mostrado desapego por las normas de la congregación puedenocuparse diversas posiciones, que van desde la no pertenencia a lacomunidad de fe, la separación voluntaria de la congregación(denominada desasociación), hasta la expulsión de ella, perdiendo lahermandad simbólica que significa pertenecer a los testigos de Jehová.La separación voluntaria es una decisión personal del individuo, quecuestiona los fundamentos de la religión, la expulsión no es un asuntomenor entre estos creyentes, toda vez que significa –en mayor o menor grado-la muerte social del expulsado.

El relato vital presentado en este texto corresponde a un hombre nacidoen el sureño estado de Oaxaca y, como se verá en las siguientes páginas,tiene una historia de migración que lo llevó por diferentes estaciones ycondiciones de vida, hasta ubicarlo en la frontera internacional que nos interesa.Prácticamente toda su descendencia nació fuera del lugar de origen paterno yuna parte importante de ella es originaria de Quintana Roo. La migración y laadaptación a medios naturales y sociales diversos está impreso en la

159

experiencia de los primeros integrantes de la segunda generación de la familia,no así en el resto, que han tenido un solo lugar de residencia, en lasinmediaciones de la frontera México – Belice.

Las entrevistas realizadas con López Rojas tuvieron como escenariosu propia casa, en un ámbito de convivencia familiar y en las que variosmiembros de la familia intervinieron en uno u otro punto de la relacióndialógica. Tal condición de investigación significó un enriquecimientode la visión de conjunto obtenida, pues no sólo refiere la experiencia deun actor social, aportando destellos de la memoria familiar.

RELATO DE VIDA

EL CONTEXTO DE ORIGEN

Luis López Rojas ha vivido algo más de ocho décadas. Originariode Oaxaca, un estado del sur de México, ha residido en la frontera México– Belice desde 1979. El crecimiento y consolidación de su familia, queya tiene tres generaciones de descendientes, fue el logro de laperseverancia en una tierra que requería de individuos dispuestos altrabajo y al esfuerzo.

Proveniente de una familia mixteca del que es el únicosobreviviente, don Luis nació en Santa María Uquilita, Taxiaco, 25 deagosto de 1932. Además de sus padres, su familia de orientación estuvoformada por un hermano mayor, uno menor y tres hermanas; el segundomatrimonio de su padre –ocurrido tras su viudez- sumó dos medioshermanos a la estirpe. Si bien todos alcanzaron el estado adulto, se casaron ytuvieron hijos, todos fallecieron por enfermedades propias de un estado crónicode pobreza y un alcoholismo rampante. En la niñez la situación de carenciaeconómica dejó a todos fuera de la educación escolarizada, manteniéndolosa casi todos en un estado de analfabetismo perenne.

La orfandad comenzó cuando tenía 5 años, al fallecer su madre.Siete años después perdería a su padre, lo que significó la atomizaciónde su familia de orientación. Luis regresó a vivir con Plácido, tío paternoque le había dado cobijo cuando su padre aun vivía pero ya se manifestabauna relación complicada con su madrastra; ahí se dedicó a cuidar chivos

160

y borregos del tío. Su padre poseía una pequeña porción de tierra para laagricultura, en la que sembraba maíz de autoconsumo, con ayuda de suhijo. Dado que el oficio paterno era la alfarería, lo transmitió a su hijo, alque incorporó al proceso productivo desde niño:

(…) me enseñó a artesanías. Empecé a hacer ollas, platos, cazuelas,jarros, cántaros, empecé a hacer. Él me enseñó… empecé atrabajar, aunque sea chiquito, ¿no? Pero trabajé; empecé a hacerartesanía, y sí con eso después de que crecí vivía yo de eso (…)era barro rojo (…) a veces lo pintaba yo antes de quemar, esapintura no se borraba, y a veces así nomás, quemaba yo sin pintar.No quemábamos en horno, amontonábamos la olla al piso, al suelo,montaban, encimaban unos con otros, y echaban la leña encima yechaban lumbre, así se quemaba...

Su mamá colaboraba con la economía doméstica, “a veces tejaba1

el rebozo, la nagua, así para vender, cobijas, o algo… se iba a vender aTlaxiaco, a veces, a la plaza, iba ella y mi papá… sacaban la lana delborrego o compraban; compraban la lana y sacaba el hilo”. Las hermanastambién “tejaban rebozo, ahí le dicen la nagua, con lana de borrego,primero hacia hilo y luego ya tejaba eso, usaban un telar de cintura,amarrado a un árbol”.

Las artesanías tenían dos vías de comercialización, por un lado losrevendedores locales que adquirían las piezas a la casa paterna,comprando al mayoreo para revender en mercados de los puebloscercanos; por el otro, ofrecer sus productos en las plazas de localidadescomo Putla ó Chacactongo, a los que llevaban “cargando la olla a vender,en la plaza”. El contexto general en que don Luis vivió su infancia lo formócomo un mixteco más, un campesino y artesano monolingüe que no sabía leerni escribir.

(…) “mire, la vida era dura, porque como le digo, mi papá teníaque hacer ollas, hacer lo que sea pa´ llevar y vender y ahí comprabael maíz; llevaba la olla a vender y ahí compraba el maíz, imagínese;cada 8 días, cada 15 días tenía que ir a vender y comprar el maíz,se vivía al día, estaba duro. (...) sí sembraba pero como era pocatierra y a veces no llovía, no se daba, o se daba pero se acababa

161

comiendo elote (…) era su tierra (y cuando falleció) yo quedécomo mayor de mis hermanos, y tuve que repartir pedacito a cadauno, nomás a los hermanos. Y me tocó pedacito pero ya que mevengo pa´cá… me tocó como una hectárea, es poquito…

Como sus papás eran mixtecos casi no hablaban español fuera decasa, sólo para comercializar sus productos, “hablaban, pero cuatriado”.Ninguno de sus hermanos fue realmente bilingüe, don Luis es el únicoque sigue vivo y el único que consiguió tierra. Aprendió españolsistemáticamente a partir de los 15 años, cuando “salí a andar a Veracruz,Loma Bonita y allí juí aprendiendo, aunque trabalenguas pero me juíaprendiendo [ríe]”; habló primordialmente mixteco los primeros 30 añosde vida, idioma en el que se comunicaba con su esposa, aunque hoy yano suele hablarlo. Demetrio, su primogénito, es el único de sus hijos queentiende algo de mixteco. “Cuando estaba chamaco, hablaba yo con miesposa, así platicábamos de mixteco, por eso él aprendió (…) [DoñaAlberta, su esposa, era básicamente monolingüe], aprendió españolcuando salimos de nuestra casa, yo tenía 23 años, ella como 18, […] ellasí fue a la escuela, como dos años, de niña, aprendió en español porquela escuela de allá llegaban los profesores a enseñar español”.

Don Luis afirma que aprendió a escribir en el régimen Cardenista:

(…) Faltó un punto creo más importante. Cómo aprendí a leer,¿verdad?, yo aprendí a leer… Lázaro Cárdenas fue el que hizo unprograma de alfabetización por todo el país, sacó un libro que sellama Lengua y alfabetización,2 [vivía con su tío Plácido] y huboescuelas por los pueblos y ahí fue a donde aproveché, medioempecé a letrear, sí ahí aprendí esa escuela nocturna, tantitoempecé a letrear y entonces cuando empecé a salir solito empecéa practicar, a escribir… copiaba yo las palabras. Yo hablabamixteco y escribía en español, pero no entendía lo que escribía,ya cuando empecé a estudiar la Biblia empecé a leer bien, comocualquier alumno de la escuela, pero antes no podía leer bien […]escribía mi nombre; o cualquiera libro, agarraba y lo copiaba,pero yo no entendía lo que escribía; aprendí a juntar las letras yno podía leer bien, […] [fue más difícil aprender a hacer cuentas]cuando vendía yo mis ollas, ahí donde iba a vender era puroidioma, todo lo vendía; el que iba a mi tierra era revendedor,

162

pero también iba a la plaza, iba yo a Chacatongo, a San MiguelGrande, Tlaxiaco. […] Cuando empecé a estudiar la Biblia, mepuse a practicar, a practicar, a practicar, hasta que aprendí…escribo en manoescrita. Cuando empecé a escribir comencé apracticar el número, empezaba yo a sumar, a multiplicar… veía amis compañeros, sabían leer y ayúdame, a ver...

INICIA LA MIGRACIÓN

A partir de los 15 años de edad, soltero, don Luis tuvo que salir desu pueblo, “en verdad casi ahí no había trabajo, ya cuando crecí ahora sí,rranqué a venir a Veracruz”; comenzó a trabajar en el corte de caña deazúcar, en el ingenio Juan Díaz Covarrubias. Como la zafra se extiendeunos seis mese del año, al concluir volvía a casa de su tío Plácido, einiciada la temporada de corte de piña en Loma Bonita, Veracruz, seincorporaba como jornalero de junio a agosto. Era común que entreseptiembre y diciembre –cuando no había trabajo agrícola seguro- sededicara a la elaboración y venta de artesanías de barro.

Esta vida de trabajador migrante, soltero y sólo con compromisocon la familia de su tío Plácido, se prolongó alrededor de una década.

(…) Cuando regresé en mil noveciento… mil novecientocincuenta y siete, me casé con ella (...) es que la costumbre deallá era diferente, no como ahora. La costumbre es que el mayor,papá, tío ó tía tenía que buscarle a la mujer, no el muchacho:ahora hay libertad, así era en aquel tiempo. (…) [El tío Plácido ledijo] te vas a casar con julana y… pues ni modo… católico, enel pueblo, para entonces daba poca importancia en el registro civil,la más importante es la iglesia, nada más…

Doña Alberta, su esposa por casi sesenta años, recuerda esa época:“mi mamá y mi tía fue que lo aceptaron el viajador que envió su familiade él (…) estaba yo chamaca todavía, unos 14 años”, don Luis confirmala costumbre: “el viajador, busca a un hombre mayor de edad, para quevaya a pedir”. La descendencia llegó tres años después del matrimonio,el primogénito fue el único que nació en Oaxaca, tres hombres y tres

163

mujeres vieron la luz en Veracruz y las últimas tres mujeres en Quintana Roo,estados de la república mexicana que configuran la ruta migratoria de la familiaLópez Coronel.

No habiéndose cumplido un lustro del matrimonio, don Luis saliódefinitivamente de Oaxaca, iniciando una ruta migratoria que seprolongaría casi dos décadas:

(…) Mire, cuando me vine de una vez para no volver ya, 1960;me vine ya para no volver, pero tuve viviendo cerca de Acayucan[Veracruz], en un pueblo que se llama Benito Juárez; estuveviviendo varios años pero de ahí no pude, no pude hacer algo, entierra nacía puro zacate de clavo, todo, todo… no podía trabajar.Agarro, me salgo de ahí y me juí otra vez a Covarrubias; en BenitoJuárez trabajaba la tierra, jornales, sembrando maíz, pero comole digo no es una tierra buena, sembraba maíz entre puro zacatede ese clavo, y necesita tractor, arado, yunta, pero no tenía, estabayo igual que [cuando] estaba viviendo en Oaxaca, en mi tierra,pues…

Durante ese período don Luis trabajó en el campo veracruzano sinpoder reunir un patrimonio para su familia, el abuso en el consumo dealcohol se había vuelto un problema para él y su parentela, ya que habíacomenzado a tomar bebidas embriagantes casi desde que comenzó acortar caña, a los 15 años de edad. Los recursos obtenidos por su trabajoa lo largo de muchos años no alcanzaban para alimentar a sus hijos yhacerse de una casa propia. El sueño de poseer un pedazo de tierra seescapaba una y otra vez de sus manos.

Estos años son recordados por don Luis como de gran agitación.Viviendo de acuerdo con los patrones culturales de su grupo de origen, lafamilia López Coronel perdió a tres de sus hijos por enfermedades como ladisentería o la infección del ombligo de un recién nacido. Él mismo estuvo apunto de fallecer de disentería pero, según asegura hoy en día, beber aguacon cal le salvó la vida, al acabar con la infección estomacal que sufría.

LA EXPERIENCIA RELIGIOSA

Tal condición de precariedad no fue obstáculo para moverse en

164

ámbitos extraordinarios; con el tiempo se embarcó en actividades esotéricas,relacionadas con espacios religiosos específicos. Según sus propias palabrasera una situación tremenda, echaba suerte con la baraja, leía baraja española,aprendió cuando era soltero, jugaba baraja y dominó, en el corte de caña.Ahí comenzó a practicar a echar la carta, no se acuerda quién le enseñó esearte, pero sus clientes le pagaban con botellas de licor…

Hubo problemas, contenía el demonismo, poco a poquitodescubriendo, me fui dando cuenta que eso no es bueno, pero yacuando empecé a estudiar la Biblia; varios años lo estuvepracticando, ya cuando me di totalmente cuenta cuando loshermanos me ayudaron, que eso no, eso es cosa de… demonismo.

Era rezandero, rezaba a los muertos, oraba pues, pero eso esdespués que me casé, ya grande. Aprendí en Oaxaca, mi cuñado[esposo de una de sus hermanas] era cantor, cantaba con el cura,y él me estaba enseñando para quedar en lugar de él, estaba yoaprendiendo latín, porque para entonces no había Biblia español,sólo el sacerdote estudiaba la Biblia pero en latín, nunca le decíaa la gente qué significaba, ni él entendía lo que decía; estaba yoaprendiendo, pero ya después que me vine pa´cá y lo dejé, ya noseguí aprendiendo… rezaba en español, por los muertos, las almasdel purgatorio, fueron varios años como 20 años, organizaba lasnovenas.

Iba a centro espiritista… hay mucho qué platicar. Yo tenía unaenfermedad mental y yo quería ser sano, ¿no?, sanarme, pues, yla ente me mandaba pa´llá, pa´cá, que ídolo julano, que templojulano, pues yo fui hasta el centro espiritista, la última vez que fui,Tehuantepec, ahí me quedé en el templo de esa gente, pero ahímienta Dios, mienta Cristo, ¡ay señor, si le cuento se va usted aespantar!, me quedé adentro de ese templo y no podía dormir, metapaba yo mi ojo, y vi un visión, que llegaba murciélago, perogrande murciélago, un montón llegaron, entraron a ese templo yse salieron y se fueron, hasta sonaban las alas, cuando me despiertome levanto ¡no, aquí está el Diablo, aquí no está Dios!, pero mimeta era, como le dije antes, mi pensamiento era encontrar cuáles el Dios verdadero, y dije entre mi, no, aquí no está Dios.

165

Desde entonce lo dejé, pero todavía no estudiaba la Biblia, hastaahí llegué. Cuando vi eso dije entre mi, no y dejé esa creencia, escosa mala, el espiritismo, pues es el demonio… La enfermedadera mental porque me revelaban cosas de noche pero feas, feísimas,desde chamaco empezó eso, a saber por qué, yo no comprendíapor qué, soñaba cosas feísimas, soñaba todo lo grandísimo,culebra, gatos; […] pensaba que volaba y los animales atrás, ycaía yo donde había culebras […] desde que entra la noche hastaque amanece, cansadísimo, un chamaco qué puede hacer porquele haga la gente maldad, así crecí, con esa mentalidad, cuandoconocí la verdad se me fue borrando, no de un jalón, entoncesquiere decir que el Diablo me tenía bien agarrado, ahí me dicuenta… Jehová tiene más poder.

Se debe señalar que su experiencia religiosa comenzó desde lainfancia, en un contexto dominado por la religión católica tradicional,pero como se ha señalado, evolucionó por caminos dispares. Su contactocon los Testigos de Jehová es recordado por don Luis como un resultadodirecto de su búsqueda de Dios.

Mire, este… como le digo que me quedé huérfano, verdad, y mitía pues me llevaba a la iglesia, ¿no?, y ellos iban besando lasimágenes ahí, persignaba y solo, solo vino a pensar mipensamiento, No, pues éste no es Dios, ¿cómo va a ser Dios?, yoquisiera conocer a Dios. No sabía leer, pues era un niño, ¿no?, nosé cómo me vino ese pensamiento, fíjese, y con esa preguntacrecí.

No se me olvidó esa pregunta; así crecí, así me enfermé. Ya cuandome estaba enfermando acá, en la garganta, conocí a un hombre,que se llamaba Villalobo, era mi amigo, vivíamos juntos, cercaahí, y cayó cáncer acá [la garganta] y… lo llevaron hasta Orizaba,ahí lo operaron, lo metieron un tubo acá y allí le daban la comida…No, pa´qué sirve uno así ya. Entonces cuando me enfermé y meempezó a doler aquí, y el hombre ese no me dejaba dormir, todala noche me revelaba, y dije entre mí, puesyo creo que hasta aquíllegué; pero la pregunta que le digo del principio, tengo queconocer a Dios, cuál es el Dios verdadero… y garro así por dondesale el sol, allá en Cuatotolapan Estación, y llego donde estaban

166

dos familias, estaban estudiando, pero no sabía qué religión era.Llegué y le di las buenas tardes,

- Buenas tardes, señor, ¿qué quere usted?- Pues mire, le digo, ¿no tiene un libro que estudie por ahí,quiero que me venda uno para estudiar…

Salieron, me abrazaron

-¡Aquí llegó una oveja perdida!

De inmediato don Luis inició su preparación de la doctrina de losTestigos de Jehová. Hay que recordar que no sabía leer en español, razónpor la que en este contexto de aprendizaje religioso nuestro personajeadquiere esa habilidad y mejoró la de la escritura. Su memoria señalaque en su acercamiento a esta comunidad de fe fue determinante el libroVerdad que lleva a la vida eterna3, edición con la que se introdujo a lanueva doctrina. La congregación local estaba comenzando y se reuníaen una casa alquilada que hacía las veces de salón del reino. Este grupode creyentes era atendido por hermanos provenientes de San AndrésTuxtla, Veracruz, quienes llevaban la delantera como cuerpo de ancianos.Con ellos aprendió los primeros elementos de doctrina, en su búsquedadel dios verdadero.

Y luego luego empezaron a dar estudio [bíblico], me invitaron areunión [de congregación] y luego iba a la reunión, luego luego,porque eso era lo que yo quería […], para entonces no habíamuchos requisitos. Mi matrimonio no estaba legalizado y así, asíme la llevaba, así me daba mi discursito de cinco minutos, es comoempecé a hablar, poco a poco, así conocí la Verdad, pero mipregunta, le digo, así era de chiquita… […] esa pregunta tenía yovivo en el corazón y en mi mente, hasta que llegó el momento,pero no me fui con ninguna religión.

Su incorporación a esta congregación fue paulatina, pues supreparación avanzaba lentamente por estar aprendiendo a leer y aescribir. Durante los dos años que estuvo en contacto con ese

167

grupo local de creyentes no se bautizó. Sin embargo sí seprodujeron los primeros cambios importantes en su vidaMi maestro de la Biblia cada que me daba estudio me exegía eso.Me exegía eso,

- Se tiene que casar.

Pero yo no entendía luego por qué ¿no? y digo

- Bueno, y este señor por qué sigue tanto eso, decía yo, no,pero ya estoy casado…- Pero ¿dónde te casaste?- Por la iglesia católica…- No, dice, eso no vale.- ¿Entonces a dónde…?- El Registro civil, entonces llegó un día de mayo, yo mismote voy a llevar- ¿A dónde me va usted a llevar?- Coayapan de Ocampo, allí el 10 de mayo casaba gratis [ríe],ese hermano me trajo allí, en esa fecha, ahí me casé.

Como ha sido patente en las páginas precedentes, la condicióneconómica general de la familia López Coronel no experimentóuna mejoría evidente. Esta situación se prolongó alrededor dedos décadas. Sin embargo, un acontecimiento casi fortuitocambiaría el escenario de vida al presentarse la posibilidad demigrar al sur de Quintana Roo, la frontera internacional con Belice.Por noticias de uno de sus cuñados que había migrado a esa zona,decidió probar suerte:Estaba yo viviendo ahí en Cuatotolapan, cuando vino mi cuñadopa´cá primero y me mentaba carta, que acá se está poniendobueno, se está haciendo un ingenio,

- Y vente y bueno…

y no quería venir, pero tanto y tanto llegó él personalmente,

- ¿Qué piensa usted se va?, ahí va a estar bueno…

168

- Bueno, le digo, vete, dame una dirección, onde vives y…yo voy personalmente… Y me vine yo solito [ríe], a ver el lugar.Y sí llegué. Llegué Chetumal y, como traía la dirección, tú dile alchofer que te baje en Palmar, y así lo hice. Sí lo encontré.

Estuve aquí ocho días en Palmar, ya después regresé y le dije ami esposa, “así está el lugar, no sirve el agua, ¿qué vamos a hacer,vamos o no vamos?”, pero allá donde estábamos viviendo no teníani casa pues, alquilando así, pa´llá y pa´cá. Pues estuvimoshaciendo unos arreglos y “pues vámonos, total…”, pues allí notenemos nada, pero sí sentí lejos, sentí lejos, lejos… y ya mevine, estuve viviendo tres años al Palmar, pero Palmar no mequería..un dichoso que se llama Soriano, es juerano4, él eracomisariado de ahí y no me quería dar tierra pa´ trabajar y dijeentre mí, ¿pues qué hago aquí?, yo vine a trabajar la tierra…

El cambio de residencia, con la mediación de unos 900 kilómetrosde distancia, no minó su interés religioso por la doctrina de los Testigosde Jehová. Una vez con la familia en Palmar don Luis trabó relación conla organización local de esa comunidad de fe y pronto comenzó unalabor de prédica en la frontera internacional, actividad que se ha extendidohasta el presente. Sin embargo, hubo de ocurrir un cambio de residenciamás, en 1980, que amenazó con no ser el último,

…me iba a ir para San Pedro Peralta. Entonces deja venir loshermanos de Chetumal,

- No, hombre, ¿qué estás haciendo aquí solito?- Aquí, pero ya me voy…- No, no, no te vayas. Quédate y aquí te vamos a ayudar,aquí vamos a hacer una congregación, me dijeron- Bueno, si es así, me quedo…

Pero caminé otros dos pasos, aquí a Sacxan. Mire, la diferenciade un comisariado juerano a un nativo. Fíjese cómo es la cosa,allá no me quería y acá vine a solicitar; aquí era comisariado unnativo, y ese señor me recibió.

- ¡Vente acá!, ¿cuánto son ustedes?

169

- Somos dos, na´más, yo y mi hijo, le digo- ¡No, dijo, si son cincuenta para mí es mejor!

Estaba queriendo gente porque quería agrandar el poblado. Y mevine a quedar aquí. Estaba viviendo yo allá [en Palmar] cuandovine a hacer mi casa acá, en cartón y ya de una vez pasé, y hastaahorita aquí estoy… hasta aquí terminó la historia.

ECHANDO RAÍCES…

A partir de su establecimiento en Sacxan, la vida de don Luis hatenido dos actividades principales, el trabajo agrícola en el ejido y unavida religiosa hacia el interior de su familia y hacia el exterior, quecristalizó en la formación de una congregación de testigos de Jehová enPalmar y en la predicación su doctrina en la frontera internacional conBelice.

En este periodo estableció relación con los Testigos de Jehová depoblaciones localizadas en la carretera Chetumal-Escárcega. Su contactocon los predicadores de Chetumal impulsó su decisión de incorporarsedefinitivamente a esta religión, bautizándose en 1980. En ese momentosólo operaban tres congregaciones en la zona fronteriza, Sarabia, Butróny Obregón, por lo que se dio a la tarea de impulsar la creación de una enPalmar con la colaboración de los hermanos de la ciudad. Uno de losprimeros estudios bíblicos conducidos por don Luis tuvo en EstebanChablé a un importante aliado, que aportó un anexo de su casa (unacocinita construida de tasiste y huano, con piso de tierra) para comenzar lasreuniones de los pocos interesados locales. Ahí se reunía la congregación losdomingos para el estudio de La atalaya y el discurso público.

Esteban Chablé no sólo contribuiría con el espacio para las reunionesde la congregación, como cabeza de familia también atraería a la congregacióna un importante número de parientes residentes en Palmar, que sumado a lafamilia de don Luis conformarían la base de la nueva congregación. Lapredicación fue sumando adeptos y con una membresía que no llegaba a 15integrantes se cambió el local del salón del reino. A partir de 1982 unaconstrucción de block ubicada en el solar de la familia de don Esteban fungiócomo el nuevo recinto de la congregación.

170

No obstante que Esteban Chablé se bautizó como testigo de Jehová,no había erradicado el viejo vicio de fumar marihuana. Sabiendo queesa práctica no era aceptada por la congregación, el señor Chablé seescondía para consumirla, siendo expulsado cuando se conoció estasituación. La salida de Don Esteban representó una escisión de lacongregación, pues con él se retiraría la mayoría de sus parientes,reduciendo el número de sus integrantes. En consecuencia, el salón delreino tuvo que cambiar su ubicación.

La familia Avilés Chablé donó en 1984 parte de su terreno paraconstruir el nuevo local para el salón del reino. En ese momento lalocalidad de Palmar era parte del territorio asignado a la congregaciónSarabia, razón por la que parte de la predicación era realizada por susintegrantes. El nuevo local se haría de block y techo de huano, pero notenía registro alguno ante las autoridades locales, por ser atendido desdeSarabia.

En ese entonces un precursor especial llegó a Palmar. Su asignaciónera constituir una congregación en Palmar y vino a coordinar los trabajostendientes a dicha fundación. Una de las contribuciones de BernabéMartínez fue la edificación del salón del reino.

En ese salón que estamos, ahorita no recuerdo, parece que laSociedad no llevó orden, porque para entonces la autoridadperseguía a nosotros, no podíamos ser una congregación. Porquellegaba […] la autoridad a vernos. Y eso, como quien dice, nosescondíamos pero ya más después ahora sí legalizó la obra, porqueantes no estaba legalizada la obra aquí en México. Y cuandolegalizó ahora sí, como quien dice, abrió la puerta a construirsalones. Antes no cantábamos cántico…

Por ser territorio aislado se constituyó la congregación El Palmar em1985, cuando logró tener 12 publicadores locales. La congregación contó,entre otros predicadores, con Don Luis López, su esposa Alberta Coronel,don Esteban Chablé, su hija Gloria Chablé y su yerno Celso Avilés, ademásde don Nicolás Coronel, Jesús Pérez, su esposa y 2 hijas (que vivían enSabidos). Poco tiempo después los hijos mayores de don Luis se bautizaron,contrayendo matrimonio con mujeres que se habían integrado a lacongregación. El territorio de prédica asignado a la nueva congregación incluyó

171

–de norte a sur por la carretera que corre paralela a la frontera internacionalcon Belice- las poblaciones de Sacxán, Palmar, Ramonal, Allende y Sabidos.

Con el correr del tiempo y por el aumento de conversos en la región, lajurisdicción de la congregación El Palmar se modificó, al crearse nuevascongregaciones en la zona. Por ello el territorio de prédica original se redujoa Sacxan, Palmar y Ramonal. Son los residentes de estas localidades los queparticipan en las reuniones de congregación del núcleo iniciado por don Luisa finales de la década de 1970.

Durante un cuarto de siglo la congregación El Palmar tuvo doscentros de culto, primero se reunió en una pequeña construcción (quehoy es la casa habitación) y luego en una galera ubicada en el predio dela familia Avilés Chablé, que hizo las veces de salón del reino; variasmodificaciones fueron realizadas a la construcción y el crecimiento desu membresía implicó que dejara de ser un espacio cerrado, dando pasoa un lugar abierto con capacidad para 80 personas sentadas.

Fotografías 1 y 2. Salón del reino de Palmar (2009)

172

Durante este periodo de consolidación de la congregación El Palmar,todos los integrantes de la familia López Coronel se asociaron a ella. Laesposa y los descendientes de Don Luis, 2 hijos y 5 hijas, se bautizaron enesta comunidad de fe entre 1983 y 2001. Al revisar las edades deincorporación de la familia a esta religión se observa una interesante tendencia.La primera generación se bautizaría después de los treinta años – es lageneración del cambio religioso-, la segunda lo hizo una vez cumplidos losveinte y antes de los treinta –son individuos cuyos padres les inculcaron lanueva religión a partir de la adolescencia-, mientras que en la tercera generación–compuesta por quienes nacieron en una familia de Testigos de Jehová- laedad de bautizo varía entre los diez y los dieciséis años.

Este tendencia muestra con claridad cómo se forma una tradición familiar,producto de una forma de vida guiada por directrices religiosas, que primeroes vivida como un proceso de cambio religioso para luego, a lo largo de dosgeneraciones, convertirse en el estándar de comportamiento de sus integrantes.

En octubre de 2010 la congregación había crecido casi cinco veces,contando con 54 bautizados y 10 asistentes. Un año antes, en diciembre de2009, la sucursal nacional de La torre del vigía informó a los integrantes deesta congregación que se construiría un nuevo salón en la localidad. Estaedificación, conocida como Salón del reino tipo, tiene característicasarquitectónicas definidas por el departamento encargado de la construcciónde estos inmuebles en el ámbito nacional y su distribución interior sigue loscriterios institucionales.

El costo total del local ascendió a $550,000 y la obra se extendió a lolargo de siete semanas. Los arreglos entre la sucursal nacional y la congregaciónlocal incluyen un crédito aportado por la primera cercano al 94% del costo,el plazo de recuperación oscila entre los 15 y los 20 años y por un decreto dela congregación se comprometieron a pagar $2,000 mensuales a la sucursal.

El terreno había sido adquirido por dos miembros de la congregacióny donado para este fin. Celso Avilés y Nicolás Coronel compraron el terrenode mil doscientos cincuenta metros cuadrados (50 mts. por 25 mts.), ubicadoa la orilla de la carretera que atraviesa el poblado y corre paralela a la fronterainternacional. El vendedor fue Jorge Luis Chablé, joven miembro de lacongregación local que iniciaba su vida en pareja y requería de recursos parasu matrimonio. Al terreno se sumó una donación especial de $34,000 que lacongregación hizo a la sucursal nacional de La torre del vigía para iniciar la

173

obra.Como el esquema institucional contempla autoconstrucción y

autofinanciamiento, las aportaciones de la congregación local durante la obrase hicieron en efectivo, en especie y con trabajo voluntario. Don Luis, quiendetentaba entonces el cargo de Anciano presidente, hizo varias donacionesde importancia para esta causa, ya que su condición de productor de caña deazúcar le permitió disponer de efectivo suficiente para este propósito. Estecomportamiento fue replicado por varios integrantes del cuerpo de ancianosde la congregación local, quienes son ejidatarios y cañeros.

En lo que respecta a la propiedad del terreno y el permiso deconstrucción, la sucursal envió un apoderado legal que realizó los trámitesante las autoridades estatales y municipales; localmente se avisó a lasubdelegación municipal del inminente inicio de la construcción. Laedificación del salón del reino tipo inició el 5 de marzo de 2010, paradirigir la construcción del salón del reino la sucursal nacional asignó algrupo de construcción 17, compuesto por siete varones solteros y unmatrimonio.

Para la construcción la sucursal adquiere y envía un alto porcentajedel material que se requiere en la construcción (varillas, herrería para laestructura, tubería, sillas, puertas, láminas de zinc, equipo de sonido, ventanería,etcétera), comprando localmente elementos tales como block, cemento, arenay cal. Además aporta los recursos para la manutención del grupo deconstrucción.

Como el grupo de construcción es permanente y sus componentestrabajan tiempo completo durante periodos de tres meses, viajan de unapoblación a otra con un tráiler que hace las veces de bodega de herramientasy accesorios, que son usados durante las siguientes semanas. Al llegar a lapoblación en que se edificará el salón en turno la congregación local aseguraa los integrantes del grupo de construcción condiciones básicas de vida. Seorganizan varios grupos de hombres para trabajar en la obra y dos grupos demujeres, al primero se le asigna la tarea de cocinar los tres alimentos diariosdel grupo de construcción y el segundo de lavar, remedar y planchar su ropade trabajo y de uso diario. Cada uno de estos conjuntos tiene un coordinador,al que llaman capitán de grupo.

174

Figura ¿? Croquis del Salón del reino tipo de Palmar

Asimismo, los fines de semana es común la llegada de voluntariosexternos. Miembros de diversas congregaciones suman varias decenasde trabajadores, hombres y mujeres de todas las edades, que en la medidade sus posibilidades físicas y de sus compromisos ordinarios, trabajanen las diferentes labores propias de cada etapa de construcción. Son enlas instancias de coordinación de los circuitos de congregaciones en dondese programa la asistencia de estos voluntarios, estableciéndose un ordenprogresivo de ayuda. Esta programación incluye la asistencia detrabajadores especializados y semi especializados, albañiles que sabenpegar blocks, repellar las paredes, soldar estructuras metálicas, hacerinstalaciones hidráulicas y eléctricas, entre otros oficios, llegan acolaborar.

El domingo 28 de marzo se registró la mayor asistencia detrabajadores voluntarios durante la construcción del salón de Palmar,llegando a sumar 310 personas en el momento de mayor afluencia.Sabiendo la congregación local que ese día habría una importanteparticipación de voluntarios, asumió espontáneamente el compromisode dar de comer a todos, razón por la que compró un cerdo en pie, lobenefició y preparó carnitas, invitando a todos los presentes.

175

Fotografías 3, 4 y 5. Aspectos de la construcción del Salón del reino tipo

Para asegurar que no decaiga la espiritualidad de los integrantesdel grupo de construcción, la congregación local hace los ajustesnecesarios reprogramando las dos reuniones semanales e incluyéndolosen la prédica y en la lista de discursantes. A finales de abril de 2010 elsalón del reino tipo estuvo listo; su aforo es de 111 personas sentadas yhasta 150 de pie. El local pasa a ser propiedad de La torre del vigía y lacongregación se hace cargo de los gastos de mantenimiento, conservación ypago de servicios. Por estar ubicado en la zona rural, a pesar de localizarseen el trópico húmedo, el salón del reino de Palmar cuenta con ventiladores detecho para contrarrestar el calor que es característico de la zona.

El 5 de julio de 2010 se dedicó el nuevo salón del reino. Esta ocasión,que hace las veces de inauguración, es un momento solemne para los testigos

176

de Jehová, pues es la primera reunión que se verifica en el nuevo local. Suprograma incluye invitados especiales que hablan de las orígenes de lacongregación local, recuerdan a las personas que contribuyeronsignificativamente a su fundación y explica el papel que el salón tiene en elculto a dios. En marzo de 2013 la congregación El palmar tiene como suterritorio de prédica los poblados de Sacxán, Palmar y Ramonal. Lascongregaciones más cercanas a la de Palmar se localizan en las poblacionesde Carlos A. Madrazo y Sabidos.

Para atender el actual territorio de prédica de la congregación sehan organizado tres grupos, cada uno es coordinado por un anciano de lacongregación y se ocupa de una de las localidades referidas en el párrafoanterior, donde se realiza prédica de casa en casa y se conducen estudiosbíblicos. Cada grupo tiene días asignados durante la semana para efectuarestas actividades, razón por la que antes de iniciar esta labor susintegrantes se reúnen, organizan las parejas que trabajarán juntas en lajornada, consideran un texto bíblico y hacen oración.

Llama la atención, por su significado en el soporte dado a lacongregación y su desarrollo, el hecho de que a lo largo de treinta añoslos cuatro locales que han servido como salones del reino en Palmar hanestado en la misma manzana, propiedad de algún miembro de la familiaChablé.

Don Luis resume su vida en la frontera México – Belice de lasiguiente forma:

(…) pues en verdad verdad aquí a donde vine a hacer algo, ¿no?,porque como le cuento mi historia que yo trabajaba corte de caña,trabajaba en el corte de piña, pues así anduve, jornaleando portodos lados, pero aquí es donde llegué a hacer algo. Trabajé unaño en ingenio [San Rafael de Pucté], un año fui velador, pero yopensé mejor en trabajar la tierra, no hacerme esclavo todo el tiempo,y ya vine a quedar totalmente aquí ya; empezamos a hacer grupos,empezamos a sembrar caña, primero 4 hectáreas sembré, pues alaño ya vi el billete, ¿no?, y me gustó, bueno, yo creo que aquí sívoy a hacer algo, y así me fui, ampliando, sembrando más ymás. Gracias a Jehová, ahora sí que no me quejo, recibo algo dedinero [del ingenio], dos veces o tres veces al año…”

177

ESTRUCTURA GENEALÓGICA LÓPEZ CORONEL

La genealogía López Coronel está conformada por 29 personas,que conforman cuatro generaciones. El proceso migratorio, que llevó ala familia a Quintana Roo en 1979, involucró a la pareja original y a susprimeros cinco hijos. La otra mitad de la segunda generación y losintegrantes de la tercera y cuarta nacieron en la frontera México – Belice,en las etapas de arribo y arraigo en esa zona de México. Como puedeapreciarse en la distribución por nivel generacional, esta familia extensa(de orientación) se encuentra en pleno desarrollo ya que tanto en elsegundo como el tercer escalón sus integrantes han formado familiasnucleares (de procreación), favoreciendo el crecimiento del conjunto deparientes.

Si bien la migración formó parte de la experiencia de los miembrosde más edad de la estructura (que incluye dos niveles generacionales),los más jóvenes han nacido y crecido en la frontera internacional quenos ocupa, desdibujándose así en su memoria muchas situaciones vividasen los años iniciales de la pareja original y sus primeros hijos. La faltade tierra, la inseguridad del trabajo, la falta de alimento, el desplazamientoperiódico de una localidad a otra, el contacto frecuente con la parentelaoaxaqueña, que son referentes obligados en la vida de don Luis López,son sólo escenas en que habitan los recuerdos familiares más lejanos,pero que no forman parte de la experiencia vital de los integrantes demenor edad.

Uno de los elementos económicos que cambiaron definitivamenteel perfil de esta familia extensa fue el acceso a la tierra mediante laincorporación, paulatina, de varios hombres al régimen de tenencia ejidal. Enefecto A

1, B

1 y B

9 tienen derechos agrarios en el ejido Sacxan, lo que asegura

contar con una fuente de trabajo segura que reditúa ganancias desde diferentesopciones, el cultivo de la caña de azúcar, la siembra de la milpa ó la producciónde verduras y hortalizas.

Como ya se ha dicho en páginas anteriores, hay que notar que lasprecarias condiciones económicas de la historia inicial de la familia LópezCoronel repercutieron en la muerte de tres descendientes (B

3, B

5 y B

6),

178

pero el cambio producido en Quintana Roo evitó que tal situación se repitiera.Como es evidente, la adscripción religiosa de sus integrantes es una

constante. Resulta especialmente llamativo comprobar que el cambio religiosooperó de forma significativa desde la segunda generación. Si bien A

1, A

2, B

1

y B2 (13.79%) se criaron inicialmente como católicos para luego ser testigos

de Jehová, el 41.37% del total (12 casos) sólo han pertenecido a esta últimacomunidad de fe.

Los indicadores socioculturales incorporados a la estructuragenealógica muestran que se trata de una familia extensa en la que elcambio religioso –operado en la primera generación- se transformó enuna condición estable y las siguientes dos generaciones experimentaronser Testigos de Jehová como una consecuencia de la educación familiarrecibida.

CONSIDERACIONES FINALES

El relato de vida presentado en este trabajo trató de llamar laatención sobre ciertos aspectos relevantes en la experiencia migratoriade un trabajador agrícola y su familia, cuyo perfil cultural refleja ciertosrasgos propios de un pueblo originario de Oaxaca. Asimismo, muestracómo el proceso migratorio, que implicó la ruptura de las relacionessociales previas, asociado al cambio religioso, mitigó las consecuenciasnegativas del desarraigo y fijó a una familia, cuyo desarrollo definitivotuvo lugar en el lugar de destino migratorio.

La experiencia relatada aquí muestra la sincronía –tal vez fortuita-de varios elementos. En primer lugar, la condición general de la fronteraMéxico – Belice, zona tradicionalmente poco habitada que fue objeto de unaacción colonizadora con múltiples facetas y características; no sólo lacolonización dirigida, sino tal vez más importante en sus repercusiones ynúmero, la espontánea, que llevó a miles de familias a Quintana Roo.

En segundo lugar, el arribo a esta región fronteriza en el momento enque los trabajadores agrícolas podían obtener ciertos beneficios imposiblesde pensar en otras zonas de México. A finales de la década de 1970 elacceso a tierras y créditos, apoyos gubernamentales para la producción y laincorporación a diversas localidades rurales en pleno desarrollo, fueron

179

opciones efectivamente al alcance de los inmigrantes llegados a la fronterainternacional. Con el paso del tiempo, tales condiciones se disiparon ya quela etapa de conformación, crecimiento y consolidación de los asentamientoshumanos fronterizos fue una realidad.

En tercer lugar, el interés del personaje central en su búsqueda deDios permitió montar un escenario particularmente favorable para elarraigo en la zona fronteriza. Es en ese contexto que ocurre el procesodefinitivo de incorporación a una nueva comunidad de fe, al bautizarsecomo testigo de Jehová en Chetumal (la capital de Quintana Roo, que sesitúa en el sur del estado, en plena frontera internacional). Tal interéscoincidió con la etapa de crecimiento y expansión de esta religión enQuintana Roo (Higuera, 1999), lo que propició la creación de nuevasrelaciones sociales que soportaron a los inmigrantes y les dio certeza yseguridad en el lugar de destino.

Finalmente, posicionarse en una condición extraordinaria, alprotagonizar la creación de una congregación local de los testigos deJehová, colocó a nuestro personaje central y a su familia entera encondiciones de prestigio social que capitalizaron a lo largo de las tresdécadas más recientes.

Desde luego, lo que aquí se ofrece es una de las vías posibles en elproceso de migración. Una experiencia recordada y presentada bajo lapropuesta de Marc Augé, un “montaje” que debe contrastarse con la deotros trabajadores agrícolas que han experimentado avenidas diferentesen la aventura que significa la migración.

NOTAS EXPLICATIVAS

1 Tejaban es el término que usa para decir tejían .2(1934) La modificación del artículo tercero constitucional permitió, por primera vez establecer demanera oficial, en el texto constitucional, una política de Estado para dar un carácter socialista a laeducación y obligar a las escuelas privadas a seguir los programas oficiales. Con la llegada de LázaroCárdenas al poder se toma nuevamente la idea de erradicar el analfabetismo en el país mediante elPrograma Nacional de Educación, que incluía un proyecto de alfabetización. (1935) El gobierno creael Instituto Nacional de Educación para Trabajadores, que debía establecer escuelas secundarias,preparatorias y superiores, bibliotecas, museos y editar publicaciones. (1936) Surge la Confederaciónde Trabajadores de México, a la que se afiliaron gran cantidad de maestros, y que se extendió por casitodo el país, dando origen con esto al Sindicato de Trabajadores de la Enseñanza de la RepúblicaMexicana. (1937) Se pone en marcha la Campaña Nacional de Educación Popular. La propaganda deesta campaña tomó tintes de cruzada redentora nacional, y el propio Cárdenas la encabezó comopresidente de la República. Al igual que en 1920 se invitó a la sociedad a participar en esta tarea, e

180

incluso se ordenó a otras dependencias y departamentos del gobierno a trabajar en ella, además de quese invitó a “organizaciones políticas, centrales obreras y grupos campesinos” a “establecer centrosdealfabetización, imprimir carteles y folletos, [así como a] organizar representaciones y exhibiciones”.Selanza también otra campaña, la de Pro-educación Popular con la que el gobierno se comprometió a“desanalfabetizar” al país en tres años, además de lograr el “mejoramiento técnico y cultural de losmaestros así como la elevación del nivel higiénico de las comunidades y viviendas paraobreros”.Cfr.Mirada ferroviaria (2011).“Cronología de la educación y campañas de alfabetización enMéxico”, Revista digital, 3ra.Época, Num. 15, septiembre-diciembre, pp. 43-52.3 Libro publicado en 1968 por la Watch Tower Bible and Tract Society of New York .4Término con el que Don Luis se refiere al fuereño.

REFERENCIAS

AUGÉ, Marc. Casablanca, Barcelona: Editorial Gedisa, 2007.

BOURDIEU, Pierre. La ilusión biográfica, In Historia y fuente oral, Barcelona, Universitat deBarcelona –Ajuntament de Barcelona, Institut Municipal d´Historia, pp. 27-34, 1989.

CANUL GÓNGORA, Ever Marcelino. Estudio de la identidad, a partir de las prácticas religiosasde los testigos de Jehová en la comunidad de Corozal, Belice, Chetumal, Tesis de licenciaturaen antropologia social, Universidad de Quintana Roo, 74 p, 2000.

CANUL ROSADO, Elisa Esther. Los Adventistas del Séptimo Día en Chetumal, Quintana Roo.Las Dorcas como actor social, Chetumal, Tesis de licenciatura en Antropología Social, UQRoo,2005.

CAREAGA VILIESID, Lorena. Lecturas básicas para la historia de Quintana Roo. La creacióndel territorio y su desarrollo hasta 1974, Chetumal, Fondo de fomento editorial del Gobiernodel Estado de Quintana Roo, 146p, 1980

________, Lorena y Antonio Higuera Bonfil. Quintana Roo. Historia breve, México, El Colegiode México-FCE, 2011.

HIDALGO CASTELLANOS, Jorge Luis. La frontera México-Belice: desafíos y oportunidades,en Revista Mexicana de Política Exterior, México, S.R.E., julio-octubre, pp. 157-189, 2007.

HIGUERA BONFIL, Antonio. Fronteras y poblamiento en Quintana Roo. El caso de laSubprefectura de Payo Obispo en 1904, In Five Centur of Mexican History – Cinco siglos deHistoria de México, México, Instituto Mora – University of California Irvine, pp. 434-445,1992.

_______, Antonio. A Dios las deudas y al alcalde las jaranas. Religión y política en el Caribemexicano. Universidad de Quintana Roo - Consejo Nacional de Ciencia y tecnología, 311p, 1999.

_____, ______; Amayrani Andrade Moreno; Claudia Rubí Caamal Solísy Sandra N. JuárezVelasco. La diversidad religiosa en la frontera México – Belice.Una primera imagen, In Memoriadel Tercer Congreso Internacional de Antropología desde la Frontera Sur, Chetumal, UQRoo,2009.

______, ______. La Sociedad Watch Tower y los testigos de Jehová. Conversión religiosa y

181

organización familiar, México, Tesis doctoral en Antropología Social, ENAH, 484p., 2012.

______, ______; Félix Crisóstomo Cuxin y Verónica Llerenas Trejo. La diversidad religiosa enla Zona Libre de Corozal, Belice. Un primer acercamiento, In Memoria del 3er CongresoInternacional de Ciencias Sociales en el Sureste de México. Cancún, Universidad del Caribe,2012.

INEGI. Panorama de las religiones en México, México, 2010.

NIETHAMMER, Lutz. ¿Para qué sirve la Historia Oral?, In Historia y fuente oral, Barcelona,Universitat de Barcelona –Ajuntament de Barcelona, Institut Municipal d´Historia, pp. 3-26,1989.

POOT CAMPOS, Guadalupe Georgina y Vázquez Dzul, Gabriel. La concepción de las relacionesde género desde la perspectiva de dos confesiones religiosas: El adventismo y el pentecostalismo.El caso de la iglesia adventista del Séptimo Día y la iglesia evangélica Pentecostés “Jesucristoes el camino” en Chetumal, Quintana Roo. Universidad de Quintana Roo, Tesis de Licenciaturaen Antropología Social, 270 p, 2005.

RIVERA FARFÁN, Carolina. Pluralidad confesional en el sureste de México, en Hernández,Alberto y Carolina Rivera (Coords.). Regiones y religiones en México. Estudios de latransformación sociorreligiosa, México, COLEF - CIESASpp. 25-61, 2009.

UCÁN Yeladaqui, Ana Laura. Protestantismo y conversión religiosa en Chetumal, QuintanaRoo, Universidad de Quintana Roo, Tesis de Licenciatura en Antropología Social, 132 p, 2005.

VALLARTA VÉLEZ, Luz del Carmen. Los payobispenses: Identidad, población y cultura en lafrontera México- Belice, Chetumal, UQRoo – CONACyT, 2001.

VERD, Joan Miquel. La construcción de indicadores biográficos mediante el análisis reticulardel discurso. Una aproximación al análisis narrativo-biográfico, In REDES. Revista hispanapara el análisis de redes sociales, Vol.10, No.7, Junio. http://revista-redes.rediris.es, 2006.

VILLALOBOS GONZÁLEZ, Martha Herminia. Una comunidad adventista en el sur de QuintanaRoo, en Cardiel Coronel, Cuauhtémoc y Martha Herminia ______, Religión y sociedad en elsureste de México, México, Casa chata - CIESAS Sureste, 249 p., 1989.

ENTREVISTAS

Entrevista con Celso Avilés, Palmar, Quintana Roo, 23 de enero de 2009.

Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 14 de enero de 2009.

Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 9 de junio de 2009.

Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 16 de julio de 2009.

Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 6 de agosto de 2009.

Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 6 de septiembre de 2010.

Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 2 de diciembre de 2010.

182

Entrevista con Luis López Rojas, Sacxan, Quintana Roo, 27 de marzo de 2013.

SITIOS DE INTERNET

COESPO. (2012) Nota demográfica enero 2013, consultado en: http://coespo.qroo.gob.mx/portal/NotasDemograficas/NotaDemograficaEnero2013.pdf

INEGI. (2013). Referencias geográficas y extensión territorial de México, consultado en: http:// w w w. i n e g i . o r g . m x / i n e g i / s p c / d o c / i n t e r n e t / 1 - G e o g r a f i a D e M e x i c o /man_refgeog_extterr_vs_enero_30_2088.pdf

http://www.losmejoresdestinos.com/mapa_mexico.gif

183

FRONTEIRAS MÚLTIPLAS: NARRATIVAS SOBREOS SERTÕES DO PARANÁ

Valdir Gregory1

INTRODUÇÃO

Este capítulo apresenta algumas reflexões a partir de narrativassobre os sertões do Paraná. É um caminhar atento por entre registros erelatos de viajantes, de empreendedores, de administradores e de agentesdo estado feitos no município de Foz do Iguaçu, caracterizado comosertões do Paraná, durante a primeira metade do século XX. Buscarelacionar dados e informações com a gênese, circulação e significaçõesde narrativas. Aborda questões que emergem de registros no âmbito dequestões teóricas e históricas no que tange às fronteiras.

O texto contempla discussões em torno da ideia de múltiplasfronteiras na fronteira. Ou seja, predomina a concepção de que fronteirassão construídas pelas e nas narrativas e por leitores das mesmas. Iniciatratando dos Sertões do Paraná. Segue com reflexões sobre Narrativassobre os sertões. Depois traz descrições e interpretações a partir derelatórios de órgãos de segurança em Olhares, registros e segredos nasfronteiras, Pelas lentes da Delegacia de Ordem Política e Social –DOPS, Segredos da fronteira para a Comissão de Estudos daFronteira. Termina com algumas Considerações.

184

OS SERTÕES DO PARANÁ

Parte da historiografia denomina os sertões do Paraná como o oestedeste estado antes da “colonização moderna” dos anos de 1940 e 1950,ocorrida contexto da Marcha para o Oeste dos meados do século XX. Ooeste do Paraná é constituído por uma área do estado do Paraná que,grosso modo, abrange o território que fazia parte do município de Fozdo Iguaçu, emancipado em 1914. Deste município foram sendodesmembrados os territórios de municípios que foram criados a partir de1951, como Cascavel, Toledo, Guaíra e Marechal Cândido Rondon e deoutros municípios, abrangendo, atualmente, as áreas de 51 municípios.A denominação oeste do Paraná começou a ser usada na década de 1930,no contexto da política da Marcha para o Oeste durante o período dogoverno Getúlio Vargas, depois adotada pelo Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística - IBGE. Portanto, é uma região historicamenteconstruída e, também, concebida para esta pesquisa, enquanto delimitaçãoespacial. Localiza-se numa área fronteiriça internacional, limitando-secom o Paraguai e a Argentina, e numa área fronteiriça nacional, limitando-se com o Estado do Mato Grosso do Sul e outras regiões do Estado doParaná.

Na primeira metade do século XX, esta região fazia parte, pois, doque se denominava de sertões do Paraná e era disputada por diversosinteresses. Havia disputas por domínios territoriais entre as naçõeslimítrofes desta região. Era um cenário onde atuavam empreendedores eempresas que pretendiam explorar riquezas nativas para destiná-las paraos mercados platinos e mercados a ele vinculados. Era um ambiente, noqual as fronteiras entre populações nativas, mestiças e migrantes eramdisputadas.

Estas discussões estão sendo feitas para um estudo sobre fronteirase territórios na primeira metade do século XX para evidenciar elementosdiscursivos referentes à construção de diferenças. Refere-se a uma épocaem que predominavam explorações denominadas de obrages por parteda historiografia2 da região. Estas, no século XIX e nos primeiros decêniosdo século XX, eram fazendas com características próprias, existentes noParaguai, Argentina e Brasil. Tinham, normalmente, acesso aos rios, onde

185

era costume criar infraestrutura de transporte e de portos para os quaiseram levadas as riquezas extrativas da erva mate, da madeira e de outrasriquezas nativas a fim de serem transportadas para os mercados platinose além destes.

NARRATIVAS SOBRE OS SERTÕES: REFLEXÕES

Tenho estudado algumas narrativas e relatos de viajantes e relatosde autoridades ou empreendedores/administradores da primeira metadedo século XX3. Para este texto, apresento, sinteticamente, algumasreflexões relacionadas a estas narrativas.

Um exemplo destas fontes é uma narrativa de Wilson Sidwel4,engenheiro norte americano, que foi administrador da Companhia MateLarangeira em Guaíra de 1916 a 1930. Este engenheiro foi responsávelpelos projetos e pelas construções do Porto Mendes, localizado no rioParaná abaixo das Sete Quedas5, da ferrovia deste porto a Guaíra e porparte de construções destas duas localidades. Outro é Correa Filho6 quedescreveu a rede de transportes com os locais de origem e de destino daprodução, mostrando que Guaíra se tornara o porto receptor da erva mate,produzida pela companhia, para, a partir daí, ser destinada aos mercadosplatinos. Também, Coelho Junior7, em livro publicado em 1946, relata,em estilo literário, suas andanças pelas selvas e rios do Paraná. Esteautor refere-se ao caboclo caluniado pelo “gênero literário”, que fariadele “uma caricatura onde lhe deformamos as linhas exagerando-lhes osdefeitos, sem uma única pincelada de seus traços nobres”. Ainda ArturMartins Franco8, engenheiro que exercia a função de Comissário de Terrasdo estado do Paraná em vários municípios, foi incumbido de participarda execução de serviços de medição e demarcação de terras no oeste doParaná. Ele teria realizado uma excursão em 1904 e outra em 1913. Fezrelatos dessas viagens de trabalho, dando ênfase aos registros docotidiano. Escreveu esses relatos em 1949, ou seja, 36 anos após arealização da última viagem. Usou fotografias para rememorar. Apublicação ocorreu em 1973.

Nestas e em outras fontes que foram trabalhadas, há referênciascom relação a características diversas sobre as populações locais, sobrea ausência de civilização, sobre a natureza e sobre as potencialidades

186

econômicas da região. São adjetivações e conferência de atributos,principalmente no que se refere às pessoas, à exuberância da vegetação,à abundância e à força das águas, dentre outras. Transparece, nadocumentação mencionada, uma necessidade de serem atribuídascaracterísticas aos humanos: uma nacionalidade, uma origem étnica, umnível cultural, uma capacidade produtiva, uma religiosidade, condiçõespsico-sociais, dentre outros atributos. Os moradores, por diversas vezes,são denominados de incivilizados, bárbaros, selvagens, atrasados. Oespaço é descrito como inóspito, sertão e selvagem. Ocorrerecorrentemente o uso de termos dicotômicos, ou pares opostos. GilmarArruda9, em texto sobre o oeste paulista, norte do Paraná e Mato Grosso,chama a atenção para tais dicotomias, como “moderno/arcaico, civilizado/incivilizado, progresso/atraso, cidades/sertões”. Estas caracterizaçõesforam detectadas nas narrativas mencionadas.

Percebe-se, na leitura destas fontes, que havia uma necessidade deatribuir, por exemplo, características às pessoas. Parece que se confirmao dizer de Benedict Anderson10 de que “todo mundo deve e pode ‘ter’, e‘terá’ uma nacionalidade, tanto quanto terá um sexo”. As línguas quesabiam falar, os modos de se vestirem, a alimentação, a dedicação ounão ao trabalho, as habilidades de lidarem com lugares inóspitos dossertões, enfim, muito do cotidiano da fronteira foi registrado. A construçãoda nacionalidade tinha implicações “étnico-raciais”. Estes dadosproporcionam subsídios para debater fronteiras e territórios nos três paíseslimítrofes: Brasil, Argentina e Paraguai.

Foram analisadas, também, construções de paisagens em contextosde fronteiras e territórios nos sertões do Paraná na primeira metade doséculo XX11. Mostrados conteúdos de narrativas sobre os rios e a funçãodas águas. Discutida a construção de representações sobre a exuberânciae as potencialidades da natureza. Apontamentos sobre planos denavegação e de construções de ferrovias foram pinçados dos textos. Foramevidenciados e discutidos registros sobre as possibilidades do uso daságuas para navegação e produção de energia elétrica. Evidenciada aconstrução de elementos justificadores para discursos da Marcha para oOeste, que teve na região oeste do Paraná, dentre outras regiões, umaforte ação durante o governo Vargas.

187

OLHARES, REGISTROS E SEGREDOS NASFRONTEIRAS

Em meio a estas pesquisas relacionadas a um projeto que discutiaestas questões de fronteiras e territórios, participei de evento realizadona Uniamérica, em Foz do Iguaçu, em outubro de 2011. Fui convidado acoordenar os trabalhos numa secção de comunicações na qual eu iriaapresentar resultados de minhas pesquisas. Parte dos trabalhos inscritose apresentados tinha relação direta com as temáticas dos meus estudos.Aconteceram boas discussões sobre temas ligados a fronteiras e estudosagrários. Anderson Weizennmann, aluno do curso de história daUniamérica, apresentou trabalho sobre trabalhadores de portos do rioParaná na fronteira entre Brasil e Paraguai, utilizou fontes de órgãos desegurança estaduais e nacionais, disponibilizou cópias de documentosque chamaram a minha atenção; eram cópias impressas de documentosdigitalizados do Arquivo Público do Estado do Paraná.

Depois da secção das apresentações e debates, trocamos ideias edocumentos, e bem mais: iniciamos um processo e comprometimentode intercâmbio de fontes e de textos; disponibilizei textos meus e recebidois CDs contendo fontes digitalizadas da pasta Foz do Iguaçu do ArquivoPúblico do Estado do Paraná; material amplo e rico para estudos sobre atríplice fronteira - Brasil, Argentina e Paraguai -. Tinha tudo a ver commeus estudos!

Iniciei a exploração de parte do referido material. Fui percebendoque se trata de material para pesquisas diversas e para tempo prolongado.São documentos de órgãos de segurança sob diversas denominações:relatórios, levantamentos informativos, “Consulta s/reg/ estrangeiros”,ofícios, editais, correspondências, declarações, telegramas, ordens,cópias/reproduções de notícias etc. Este conjunto de documentosmencionados aqui recebe datas como sendo produzido nos anos de 1941,1942 e 1943.

Na sequência, trago alguns resultados de pesquisa em torno dessematerial encontrado, na perspectiva de apontar como agentes do estadobrasileiro produziam informações destinadas a subsidiar vigilâncias,políticas e ações de Estado. São olhares, registros e segredos da segurança.

188

As reflexões e apontamentos apresentados no início deste texto permeiamas lentes de funcionários do Estado.

PELAS LENTES DA DELEGACIA DE ORDEMPOLÍTICA E SOCIAL - DOPS

Deparei-me com alguns documentos de órgãos de segurança. Umdeles foi produzido pela DELEGACIA DE ORDEM POLÍTICA ESOCIAL: RELATORIO – COPIA. É um relatório sobre localidades dafronteira.

É cópia de um documento datilografado de quatro páginaspaginadas, espaço simples, em papel timbrado com o “brasão”, junto àdenominação do Estado do Paraná, da “Tip. Gonçalves”. É identificado,no canto à direita: “A.G. 12-A”. Sobre o texto, há um carimbo “COPIA”.Estes dados e características aparecem em todas as páginas. Éencaminhado ao “Ilmo. Sr. Dr. Delegado Regional de Polícia”. Ainda nocanto acima e à direita vem escrito, manualmente, “arq. Pasta Foz doIguaçu”, seguido de assinatura.

O documento inicia informando que, “Cumprindo as determinaçõesde V.S., parti desta localidade dia 27 do mês proximo findo, margendotoda costa do Rio Paraná, regressando á 21 do fluente sem novidade” 12.

É finalizado com o registro de que, no dia 17, o autor teria estadode regresso a Guaíra; e, ainda, “Dia 21: Nesta localidade sem novidade.Qualter do Destacamento em Fóz do Iguaçú, 22 de dezembro de 1942.Respeitosamente, (a) MANOEL CURSINO DIAS PAREDES – 3ºSargento”. “Nesta localidade” quer dizer Foz do Iguaçu. Ou seja, o 3ºSargento Manoel Cursino Dias Paredes, encaminha texto com registrosque fez durante atividades pelo território fronteiriço do município deFoz do Iguaçu ao delegado Gláucio Guiss. Nele constam observações edados deste agente de segurança e da ordem feitas a partir de observaçõesin loco pelos portos da costa do rio Paraná e suas adjacências. As minhasobservações dão conta de que ele estava prestando contas de tarefas quelhe foram atribuidas. Percebo que nas estruturas de estado dos anos 1940autoridades disseminaram preocupações e atitudes para garantir umasuposta segurança nacional. O “3º Sargento”, o “delegado” e outros fazemparte de uma “rede de estado” com responsabilidades institucionais sob

189

o abrigo de um governo central e estado fortalecidos.13

Há, no mesmo parágrafo, um “DESPACHO: Extraia-se cópia, eencaminhe-se a Secretaria do Interior, Justiça e Segurança Pública. (a)GLAUCIO GUISS – DELEGADO”. Na sequência, informa-se que estáde acordo com o original. “O referido é verdade e dou fé. Foz do Iguaçú,23-12-42. (a) Aracy Albuquerque Neira. Escrivão.”

E, finalmente e em destaque: “ CONFERE COM OORIGINAL. Curitiba Em 13 de abril de 1943.” Segue assinado porOriente Franco Godoy (nome provável, pois não é datilografado), “agenteaux. Da Sec. De Controle.”

Busco alguns dados biográficos de autoridades de segurançamencionados no documento.

Manoel Cursino Dias Paredes foi vereador em Curitiba, membrode loja maçônica paranaense. Também, o 63º Comandante Geral daPolícia Militar do Paraná de 08 de Novembro de 1960 a 23 de Janeiro de1961.14 Gláucio Guiss foi Delegado da 9ª Região Policial em Foz deIguaçu de 24 de setembro de 1942 a 20 de julho de 1943, quando foitransferido para a Delegacia da 12ª Região Policial em Londrina.15 AracyAlbuquerque Neira foi escrivão e teria participado da repressão decolônias alemãs de Foz do Iguaçu e de denúncias contra a Congregaçãodo Verbo Divino16. Para mais informações sobre os agentes do estadonominados na fonte, há textos que abordam aspectos da fronteira desteperíodo, destacando-se as críticas de Aloisio Palmar.17

Eis a “embalagem” do documento. Considero pertinente trazer estaspeculiaridades para que o leitor, que não tem a fonte em mãos, possaampliar percepções sobre a atuação de agentes de estado nas fronteiras,nos sertões, nos rios, nos portos, nas localidades num verão de 1941/42.

Enfatizo, além dos registros, os trâmites realizados. Percebe-seque o relatório recebeu despachos e encaminhamentos de cópias. Hoje,cópias digitalizadas estão em arquivos. Documentos receberamtratamento arquivístico; foram organizados e são geridos por umainstituição (Arquivo Público do Estado do Paraná), cujos objetivos sãodiversos dos agentes do Estado brasileiro e das instituições envolvidasna gênese documental. Uma das finalidades da gestão de tais documentos,realizada na atualidade, é que investigadores, estudiosos, curiosos possamconsultá-los e pesquisá-los.

190

As observações que faço são percepções minhas, são leiturasprovocadas por curiosidades e interesses meus. Outros terão outrosolhares, conclusões e/ou reflexões diversas.

Voltando para os anos quarenta do século XX, relembro que oBrasil estava sob o governo Getúlio Vargas. Os nacionalismos estavamexacerbados no mundo e nos países desta tríplice fronteira. Os governosse moviam sob os ímãs dos Aliados e do Eixo. A política da Marcha parao Oeste estava em discursos e em práticas.

Observo que a “máquina” do Estado brasileiro estava contaminadapor ideias protecionistas e voltadas para a tomada e para o controle deespaços de fronteira. Os agentes, os funcionários de Estado atribuíam asi e a eles eram atribuídos papéis e funções voltadas à garantia dasfronteiras nacionais. Vejo nas entrelinhas do documento que trabalho,agora, o patriotismo fronteiriço dos que gestaram e encaminharam osregistros feitos nas tarefas atribuídas pelos superiores e pela ideologiadominante.

É isso que fui percebendo no manuseio, nas leituras e nasinformações do relatório, documento este feito por várias mãos e mentes;os matizes e os enfoques são representações de paisagens datadas elocalizadas. Estado Novo, fronteiras do Paraná com Paraguai e Argentina,empreendimentos extrativistas da madeira e da erva mate, vínculoseconômicos, de poder e de cultura platinos. Homens e mulheres sendodescritos, adjetivados, imaginados, recebendo atributos. São carimbados;nomes, sobrenomes, nacionalidades, idades foram sendo registrados afim de que as fronteiras fossem caracterizadas em personagens, emestruturas econômicas (portos, estradas, equipamentos...) e de vivências(moradias, distribuição espacial...). A Tríplice Fronteira foi vasculhada.As concepções de fronteiras constantes no documento são mais asconcepções dos que registraram do que de quem foi descrito. É a visãode agentes do estado sobre uma paisagem representada18. Foi a construçãode uma paisagem ideológica. Enfim, são fronteiras múltiplas mencionadasno título deste texto.

O funcionário de estado relata que passou por vários portos a partirdo dia 27. Fez seus registros.

191

“Porto Embalse, morador Snr. Cancio Aquino (Paraguaio), portoBella Vista, morador Snr. Ewaldo Keneg (Argentino) que faz atravessia de passageiros em canôa. Chacara Carvalho, do Snr.Antonio Carvalho (brasileiro). Porto Leonor que fica em frente oporto Curupaiti no Paraguai, morador Snr. Pedro Jeca Kuei(Argentino) com cinco filhos brasileiros. Porto Carola Cuê,morador Amancio Arçamendia (paraguaio), tem uma pequenaplantação de milho, arroz, feijão, fumo e etc.; Tem no porto duascanôas, uma de propriedade de Antonio Carvalho e outra deEstefano Ramires. Porto Temoteo Uzuna, morador Snr. TemoteoUzuna, Brasileiro, tem plantações de milho, feijão, arroz e criaçãode gado, cabritos, porcos e galinhas. A estrada até este porto écarroçável e boa, podendo entrar caminhões.”

No dia seguinte, continua relatando suas passagens e observações.São paisagens com estabelecimentos, atividades de criação e plantação.Com moradores.

“A casa do Snr. Rafael Uzuna, Brasileiro, com grandes plantaçõesde milho, arroz, feijão, mandioca e criação de carneiros e porcos.Porto Ipiranga está abandonado, existindo somente um moradoro Snr. Rosario Benitez (paraguaio). Porto Ocuy, morador o Snr.Rosario Benitez (paraguaio), com 67 anos de idade, residente nesteporto desde 1.903, é o maior plantador desta zona, com criaçãode porcos. Neste porto fica o campo de emergência Ocuy, com550 x 80 metros; quem toma conta da conservação desse campode pouso é o Snr. Julio Dominhack.”

Os relatos referentes aos dois primeiros dias, 27 e 28 de novembrode 1942, dão a perceber que havia portos nos trajetos percorridos; existiamplantios e criações. Plantações eram cultivadas e animais eram criados.Os registros mostram uma fronteira problemática, há estrada carroçável,campo de emergência. Os moradores receberam nomes, sobrenomes,nacionalidades, idades. Alguns tinham filhos. As mulheres não participamdo cenário construído; a fronteira é masculinizada. As lentes focam edesfocam. Atentar para os sobrenomes ajuda a concluir que moravampessoas de diversas origens étnico-nacionais. Percebo, pelos sobrenomes,

192

que predominavam descendentes de europeus. Havia brasileiros,argentinos, paraguaios. O documento contém demarcação de diferenças,distingue dentre as três nacionalidades contíguas à Tríplice Fronteira;um morador brasileiro não seria um morador argentino, nem paraguaio.A nação estava confusamente povoada na fronteira.

Agora, já no dia 29, realidades sobre outras localidades sãoinformadas.

“Porto 7 de Setembro abandonado, antigo trabalhador EugenioCaferata, na exportação de madeiras. Porto Ytacora, onde o snr.Jeronimo Vargas está tirando madeira. O porto está abandonado(sem morador) tendo na planchada cem torras de madeira. PortoMoleda, mora o Snr. Patricio Moleda, brasileiro, está nesse portodesde 1.910 (Colono Militar) é grande conhecedor desta zona.”

O colono militar estaria neste local desde 1910, seria conhecedorda região. Antes, já tinha sido informado que o paraguaio Rosário Benitezde 67 anos viveria no Porto Ocoí, desde 1903 e era grande plantador. Serparaguaio e grande plantador eram dados a serem considerados. Permito-me a acrescentar que creio que as vivências entre essas pessoasconfiguravam relações de troca de mercadorias, de conversas em que asgramáticas com suas concordâncias e suas regras oficializadas passavama largo. Fronteiras, acredito, havia, mas, o agente do Estado imprimenovas e mais fronteiras, muitas delas nem vislumbradas pelos moradores.Torna-as múltiplas; outras, certamente, existiam, todavia não forampercebidas e registradas.

Passada mais uma noite, é o último dia de novembro. Odocumento começa a trazer dados sobre empreendimentos de maiorenvergadura, o primeiro porto mencionado estaria em decadência.

“Dia 30: Porto Sol de Maio antiga sede da Cia. Esperia, hojeparalizado, em decadência, tem como administrador o Sr. AgenorSilveira, Inspetor de Quarteirão desta D.R., que possue criaçãode porcos e tem grandes plantações de arroz, milho, feijão e etc.,Porto Sol de Maio dará ao município 1.000 sacas de arroz para oano próximo. Porto Dionisio Chieli, a maior chácara da zona Rio

193

Paraná, com plantações de café, milho, tuna, feijão e cana deassucar.”

Inicia-se o último mês do ano de 1942: governo Vargas, a GrandeGuerra se alastrando e a fronteira sendo descrita.

“Dia 1º de Dezembro: Sede da Cia. Bartes, Cooperativa “ManoelRibas”, Cia. Esperia (ramificação), e boa casa comercialpertencente a Valentim Agostini. Cia Bartes, possue nessalocalidade grandes paiois cobertos de zinco e também grandesquantidades de ferros velhos. Tem como administrador digo,administrador atualmente o Sr. Pedro Alhana, pois o Sr. LadialauViver transferiu sua residência para o Paraguay. Cia. Esperiatambém possue grande numero de casas abandonadas. Administratambém essas propriedades o Sr. Agenor Silveira. Cooperaiva“Manoel Ribas”, não vai adiante, devido a falta de capital, asdividas que contraiu com os colonos, e também devido aconcorrência nas vendas com o Sr. Valentim Agostini estabelecidocom o negócio. Esta colônia, tem mais ou menos 60 famílias quese dedicam a plantação de arroz, cana de assucar, feijão, milho ecriação de porcos, para a exportação da banha. Para o ano entranteesta colônia fornecerá 3.000 sacas de arroz. De Foz do Iguaçu aSanta Helena, a estrada é carroçável podendo passar caminhões,somente durante as secas, pois existem vários rios como BelaVista, Guaviroba, Passo Cuê e Ocuy, que quando cheios nãopermitem nem a passagem a pé. As estradas estão necessitandode limpezas, e transito de carroça entre Sol de Maio e SantaHelena, está interrompido devido ter caído a ponte do Rio SãoVicente Chico.”

Em 1º de dezembro, foram verificadas instalações e atividades da“Sede da Cia. Bartes, Cooperativa “Manoel Ribas”, Cia. Esperia”.Vislumbra-se que essas companhias e cooperativa teriam potencial paraajudar no abastecimento de Foz do Iguaçu. As condições de transportedeveriam ser melhoradas. A estrada, se melhorada, facilitaria a passagemde caminhões e carroças. As 60 famílias, que ali viviam, repito, “sededicam a plantação de arroz, cana de assucar, feijão, milho e criação deporcos, para a exportação da banha. Para o ano entrante esta colônia

194

fornecerá 3.000 sacas de arroz”. A Cia. Esperia, na outra localidade,produziria 1.000 sacas de arroz.

É interessante atentar para o fato de que a quantificação da produçãoé em números arredondados em milhares. As famílias são dezenas cheias.Em linguagem coloquial, dir-se-ia que é um “chutômetro”. Isso reforçao caráter e os objetivos subjacentes ao documento, que não foi feito parafins estatísticos ou de registro de dados mais seguros. Vários nomes depersonagens, como de estabelecimentos e empreendimentos aparecemcom grafias diferentes no próprio documento e, principalmente, em outrasfontes. Considero pertinente levar isso em consideração.

Um exemplo: Domingos Barthe é argentino, com atividadesextrativistas, de navegação e hoteleira em Posadas e outras localidadesda Argentina. Teria conquistado poder político na Província de Misiones.Obteve concessões de terras no Paraná.19 Veja-se as grafias destesobrenome.

A Cooperativa “Manoel Ribas” estaria em decadência. Cabelembrar que Manoel Ribas era o interventor no estado do Paraná de 1932a 1945. Então, nesta época da decadência da cooperativa que levava oseu nome ele deveria ter seus esforços voltados à administração do estadodo Paraná e para atividades políticas.

O autor do relatório teria proporcionado um dia de “descanço aosanimais”. No dia 3 teria partido para Cascavel pela estrada que ligariaSanta Helena a Cascavel, onde existiria somente “uma picada paracavaleiro ou carroça, com mui dificuldade, em virtude das pontes estaremcaídas, como a de São Francisco Falso, com 50 metros de comprimentoe 4 de altura (aproximadamente), passando a serra de Boa Vista eDiamante, onde existe um depósito da Cia. Barte”.

No dia seguinte, teria ido até Barro-Preto, local de um depósitogrande da Cia. Barthe em abandono. E, no dia 5, “rumo a estrada deGuarapuava, picada denominada Benjamim, saí no logar denominadoBoa Vista, daí até Cascavel passando por 2 de Maio, ‘Tate Jupi’, Botú eDeposito Central da Cia. Barter”. Em Cascavel, Manoel Cursino DiasParedes, autor do documento, teria sido informado que “nenhumairregularidade ocorre nesse distrito, tendo notado que o povo dessalocalidade, está conciente do momento atual e a discreta vigilânciapolicial, está sendo mantida de maneira a elogiar”.

195

O “3º sargento teria notado que o povo estaria “conciente domomento atual” e que haveria “discreta vigilância policial”. A consciênciae a vigilância em Cascavel são observações registradas durante uma faseaguda da Segunda Grande Guerra e em pleno Estado Novo no Brasil.Estas situações voltarão mais adiante no texto.

Depois de dois dias de descanso para os animais, teria rumadopara “porto Mendes acompanhando a linha telefônica, passando pelologar denominado Lepey antigo trabalhado da Cia. Nunes na extraçãode erva-mate. Morador deste logar é o brasileiro Jorge Maceno, guarda-linha.” Mais adiante, em “Barro Preto ou Cruzinha, reside o Sr. CosmeAquino (Argentino) plantador de milho, fumo, feijão, mandioca e criadorde cabritos e porcos.”

No dia 10, foi a “Marrecos, onde mora o Sr. José Alves deCarvalho, guarda linha”. Informo que, pelo desenrolar da narrativa, pode-se perceber que o funcionário estava retornando às proximidades do rioParaná e dos portos, locais nos quais os empreendimentos de maiorenvergadura possuíam infraestruturas mais desenvolvidas. A seguir vãosurgindo alguns exemplos disso.

No dia 11, foi a Rio Branco, onde “a Cia. De Madeira AltoParaná, atualmente trabalhando na extração de olios cidreira, extraídodo capim cedroso. Administrador é o Sr. Henrique Hermer, casado comsenhora Suissa, tem 1 filho brasileiro, dedica-se a caça e possue umaparelho radio-receptor.”

Seguem dias e localidades registradas.

“Porto São Francisco, morador Sr. Francisco Valejo (Paraguaio),casado com mulher brasileira e tem 6 filhos brasileiro. O mesmoé operario. Porto Altasa (Alica), antigo porto de extração eexportação de erva mate, mora aí a viúva do caudilho ArgentinoJulio Thomas Alica. Porto Francisco Mendes Gonçalves, Cia.Mate Laranjeira. A estrada de rodagem de Cascavel a MendesGonçalves está abandonada e com quase todas as pontes caídas,não permitindo mais o transito de carroças.”

Dia 13 teria chegado a Guaíra e descansado até o dia 16. Guaíraera uma subssede da Companhia Mate Laranjeira, contemplada com umaconsiderável infraestrutura portuária e logística.

196

“Dia 16: Rumo ao Piquiri a cavalo. Porto Thomas Larangeira,chácara do Sr. Thomas Zeballos (Argentino). Chacara do Sr.Gregorio Benitez (Paraguaio). Chacara do Sr. Teleforo Gonçalves(Paraguaio). Chacara do Dr. João Batista, médico de Guaíra. Barrado Piquiri, chácara do Sr. Martins Mertuce (Paraguaio). Daí decanôa, Rio Piquiri acima passando a chacara do professor MiguelCamargo, até a chacara do Sr. João Palma (Italiano). Está tomandoconta desta ultima chcara, o Sr. Prudencio Miranda. Todos estesSnrs. Tem grandes plantações de milho, feijão, mandioca, etc.que vendem a Cia. Mate Laranjeira, sendo a chácara melhororganizada a do Sr. Thomas Zeballos, chefe do armazém deGuaira.”

Continuam os argentinos, paraguaios e brasileiros presentes emchácaras e em atividades na fronteira. O médico, o professor e um quetoma conta de uma chácara são nominados, sem lhes ser atribuída umanacionalidade. Vê-se que, no dia 11, aparece, no texto, uma “senhorasuissa” e, depois, uma “mulher brasileira”. São as únicas presençasfemininas no documento, mesmo que os homens tivessem filhos. Concluoque a atenção e o esforço dos registros não estavam voltados às mulherespresentes nesta fronteira.

No dia 17, estaria de regresso a Guaíra e dia 21 em Foz do Iguaçu“Nesta localidade sem novidade”. Perdura uma curiosidade a respeitode detalhes do percurso feito pelo narrador. Não há informações sobreacompanhantes ou não. Nem sobre a(s) forma(s) de locomoção. Sabe-seque houve dias intercalados de descanso para os animais. E só!

Além do mais, há uma ausência total de guaranis e de indígenas deoutras denominações. Outros documentos, como relatos de viajantes,que descrevem os sertões do oeste do Paraná em períodos próximos,trazem aos cenários números significativos de guaranis “mansos ebravos”.20 Relaciono este aspecto a debates atuais sobre a demarcaçãode terras indígenas nos quais prevalece a ideia de que quaisquerreivindicações e lutas de povos indígenas são criações ideológicas deórgãos e organismos ligados a questões indígenas, como a FundaçãoNacional do Índio (FUNAI) e Organismos Não Governamentais (ONGs).Outra observação que cabe sobre esta questão é que os guaranis não

197

tinham importância na geopolítica das fronteiras no período do EstadoNovo. As atenções estavam voltadas às populações que “carregavam”nacionalidades envolvidas nos embates da Segunda Grande Guerra. Outroaspecto a ser considerado é que atribuir aos guaranis algumanacionalidade não traria reforços aos discursos nacionalistas. Os guaranisrepresentavam populações transfronteirças21. A ausência dos guaranisaponta, pois, para um “vazio indígena” à semelhança do “vaziodemográfico” apontado por parte da historiografia referente à dinâmicapopulacional da primeira metade do século XX no Paraná.22

Enfim, os conteúdos deste documento dependem de horizontesinstitucionais e da ideologia nacionalista da época. Assim, asrepresentações presentes neste escrito pendem mais para o “genitor” dodocumento, eivado de (pré)conceitos, do que para a realidade que,aparentemente, estaria representada. Aqui as concepções a respeito dememórias23 contribuem para a análise. Os horizontes da criação destanarrativa, bem como as destinações e os circuitos/circulações dos dadospretendidos, foram condicionando escolhas, opções, ênfases,esquecimentos, descartes.

SEGREDOS DA FRONTEIRA PARA A COMISSÃO DEESTUDOS DA FRONTEIRA

Passo, agora para outro documento. É o encaminhamento “AoExmo. Sr. Presidente da Comissão de Estudos da Faixa de Fronteiras doConselho de Defesa Nacional, Palácio do Catete”, Rio de Janeiro, de“cópia do levantamento informativo da costa da Região do Iguaçú e daRepública do Paraguai, nas margens do Rio Paraná”. A primeira folhatem informações, timbres, carimbo e outros dados semelhantes aodocumento anterior (DOPS: RELATÓRIO). “G/283 14 dezembro 2”(1942). “SECRETO”. “ERB. Prot. Nº G/865-42.” Do “Cap. FernandoFlores – Secretário”. Não vem assinado. Teria sido feito pela DelegaciaRegional de Polícia de Foz do Iguaçu, tendo “a colaboração do Comandoda Companhia da Fronteira”.

_________________________(Cap. Fernando Flores)

- Secretário –

198

Tem duas partes: uma referente ao lado do Brasil e a outra, ao ladodo Paraguai.

A segunda folha contém o título: Levantamento informativocompleto de todas as localidades da costa do Rio Paraná, pertencentesa 9ª região policial, com sede em Foz do Iguaçú – Brasil.-, seguido decarimbo:

DELEGACIA REGIONAL DE POLÍCIADA

FOZ DO IGUASSÚ ESTADO DO PARANA

Algumas palavras do documento só são legíveis com uso de lupa,outras, poucas, não consegui decifrar nem com este equipamento deampliação. Permanecem secretas! É um texto denso que traz maisdescrições do que as que constam no relatório discutido nas páginasanteriores. Várias informações coincidem.

Fiz leituras, busquei informações, resumi dados e organizei umquadro do “Levantamento”, para facilitar a visualização e agilizarpercepções e comparações.

No “Levantamento informativo completo de todas as localidadesda costa do Rio Paraná, pertencentes a 9ª região policial, com sede emFoz do Iguaçú – Brasil”, foram “levantadas” 36 localidades. Esta primeiraparte referente ao Brasil contém oito folhas datilografadas, quase todasem espaço simples, referindo-se ao território brasileiro. A leitura desteslevantamentos ajuda a perceber que por localidades entendem-se áreasou locais em que havia moradores ou vestígios de moradores recentesmerecedores de registros.

As toponímias (nomes de lugares) mencionadas são 36 (trinta eseis) e referem-se a 6 (seis) “chácaras”, 2 (duas) “planchadas”, 1 (uma)“quinta”, 1 (uma) “ilha” e 26 (vinte e seis) “portos”. Não há clareza (ounão havia a preocupação!?) quanto aos aspectos legais de tais domínios.Os termos “residência”, “reside(m)”, e “mora(m)” são usados 16(dezesseis vezes). O de “propriedade” aparece 6 (seis vezes). Tambémos termos “administra(do)”, “concessão”, “pertencente”, “depósito”constam uma ou duas vezes. Este documento e o trabalhado anteriormente

199

prescindem de informações e precisões quanto aos aspectos jurídicos deacesso à terra nestas fronteiras.

Vários estudos acadêmicos apontam para situações confusas econflitivas no que tange ao uso, ao mercado e ao domínio sobre as terrasnas fronteiras a oeste do Estado do Paraná. Alguns processos judiciaischegaram e/ou estão, ainda, por chegar ao Supremo Tribunal Federalpara decisão.24

As atenções estão voltadas para os nomes de pessoas seguidos dealguns atributos, para as interferências sobre as paisagens no que se refereà infraestrutura e a cultivos. Na tabela a seguir, organizada por esteautor, são atribuidas as categorias moradores/proprietários paraproporcionar uma visão geral de uma parte do relatório. Há conteúdosbem mais amplos no que se refere à produção, atividades desenvolvidas,condições de instalações e outros aspectos que não foram incorporadosa esta tabela.

200

201

O Porto Guaíra é descrito com destaque em duas páginas, constandotabelas e informações mais detalhadas que as outras localidades. Seria omais importante porto do “Rio Paraná (alto e médio)” e “Sede da Cia.Mate Laranjeira S.A”, ligando a região “aos Estados de São Paulo eMato Grosso por meios fluviais e a Porto Mendes por estrada de ferro”.O destaque ainda é voltado a sua infraestrutura e às atividadesdesenvolvidas nesta Companhia.

Guaíra teria “todos os recursos de uma boa cidade e apresenta

202

melhor aspecto que Iguaçu”. Existiria o prédio da Administração, alémde: “hotel, farmácia, armazém, depósito de erva, estação de estrada deferro, hospital, igreja, oficinas, usina, casas de material para osfuncionários graduados, grupo escolar, casas de madeira”. Estainfraestrutura e as suas respectivas instalações serviriam “para todas asrepartições estaduais e para os funcionários e empregados da Cia.”25.

A partir de uma verificação panorâmica desta fonte, fui pinçandoalgumas ênfases constantes no documento.

Aparecem nomes completos (nomes e sobrenomes), vários nomessão incompletos, às vezes os nomes e outras vezes os sobrenomes. Épossível que, por ocasião da busca de dados e dos levantamentos, osinformantes soubessem e/ou mencionassem alguns nomes completos eoutros incompletos. Algumas referências a autoridades, como “vice-cônsul paraguaio nesta cidade”, “primeiro suplente desta D.R.”, sãoenfatizadas. 14 (catorze) nomes são precedidos por “Sr.”, mas a maiorianão recebe esta deferência.

Verifiquei que a maioria dos nomes é seguida de referências noque tange às suas nacionalidades: (brasileiro), (paraguaio), (argentino) eoutros; brasileiro aparece 12 (doze) vezes, paraguaio 15 (quinze) vezes,argentino 7 (sete) vezes. Esporadicamente são encontrados espanhóis,suíços, italianos, alemães, guatemalenses. Em alguns casos, asnacionalidades são atrubuidas coletivamente, principalmente quando setrata de grupos de trabalhadores. Apresento alguns exemplos: “Sr.Francisco Cherloski (brasileiro) negociante e criador”; “Dionizio Chielli,brasileiro, com 48 anos de idade, casado, com 12 filhos, sendo 8 homens,que são reservistas”; “Leopoldo Friedrich (brasileiro) de 46 anos, casadocom brasileira”; “Antonio Arsumencia (paraguaio), com 50 anos deidade”; “Rogastiano Barcella (Paraguai), casado com brasileira e tem 4filhos menores”; “Em Britania 30 pessoas (os tarefeiros de herva sãotodos paraguaios)”.

Aqui posso observar que interessava, também, atentar às idades,ao número de filhos, ao estado civil dos moradores. Além destes atributos,o conhecimento e a prática da língua portuguesa eram observadosreiteradamente.

Outros exemplos que apontam neste sentido: “Sr. Evaldo Kenig(argentino). Fala o português, é de boa aparência e é esperto”; “Timóteo

203

Ozuna (argentino), com 68 anos, fala bem o português, e é casado comAmélia Ozuna (brasileira)”; “Rogastiano entende muito mal o portugues,e seus filhos falam o português”; “Os Meireles falam mal o português, eresidem nesse lugar, para mais de um ano”, “Timóteo Ozuna (argentino),com 68 anos, fala bem o português, e é casado com Amélia Ozuna(brasileira)”.26

Um dos componentes importantes da brasilidade era o domínio dalíngua portuguesa. Portanto, atentar para tais aspectos e registrá-los eratarefa dos atos de vigiar a fronteira.

Patrício Moleda é apresentado como “antigo colono militarbrasileiro, com 78 anos, forte e com 22 filhos”. Mora na localidade há“30 anos e tem alguma cultura”. Estaria morando com 6 filhos, sendoque o menor teria 17 anos. “Ensina a todos ler e escrever. Tem 3 filhosargentinos e um paraguaio, que não residem em sua companhia”. Este,então, é um brasileiro de idade avançada, tem numerosa prole, inclusivefilhos argentinos e um paraguaio. Observa-se que “Patrício não temvizinhos e vive num isolamento único”.

Na “Cia. Esperia”, o Estado teria interditado a concessão de suasterras, motivado pela “morte do administrador Sr. Bissoli (?) eirregularidades havidas”, sendo que a administração seria exercida pelo“Sr. Agenor Silveira, inspetor policial de quarteirão”. No local haveriaduas famílias paraguaias e dez brasileiras. “Há pouco tempo foramdesalojados por esta D. R., súditos alemais, solteiros, que lá residiam eque atualmente se encontram em Guarapuava”. Nas proximidades deoutro porto, “no perímetro de 10kmts de Santa Helena, residem cerca de300 pessoas (80 famílias), na maioria brasileiros descendentes deitalianos, que falam o português”. Desta localidade, por ação de “estaD.R.” teriam sido retiradas “cerca de 10 famílias italianas, as quais foramencaminhadas à Guarapuava.”

A minha leitura deste parágrafo do texto vincula alguns elementosa aspectos geopolíticos relacionados aos Aliados e ao Eixo. O Estadobrasileiro requer do seu funcionário que atua na segurança da fronteira aatenção voltada ao registro de indícios de nacionalidades dos moradorese informações de atuações e ações adequadas do órgão da segurança nafronteira. E é recomendável informar aos seus superiores, ao governo eà nação. O “Sr. Bissoli (?)”, falecido, é grafado com interrogação. No

204

entanto, “súditos alemais, solteiros” e “famílias italianas” foramencaminhados para Guarapuava. Chama à atenção o fato de os registrosreferentes a esses desalojamentos e encaminhamentos a Guarapuava.Entrementes, os descendentes de italianos que “falam o português”residem no referido perímetro. José Augusto Colodel, em livro sobre ahistória do município de Santa Helena, escreveu sobre a emigração deitalianos (descentes?) desta localidade27. Mesmo que a Segunda Guerra(1939-1945) tenha sido realizada em campos de batalha na Europa e emparte da Ásia, os seus reflexos faziam-se sentir na Tríplice Fronteiraatravés da atuação de órgãos de estado.

A área de 274.750 hectares de “propriedade da Cia. MadeireiraAlto Paraná (Cia. Inglesa)” teria “sede em São Paulo e Buenos Aires”. Asua administração seria exercida por “Henrique Elmer, suíço, com 41anos de idade”. Este administrador “fala bem o português” e estariaresidindo “com sua esposa e filho de 11 anos”. O filho teria nascido naGuatemala. No outro documento, trabalhado em páginas anteriores, ofilho de Henrique é brasileiro e apenas a mulher seria suiça. O tal doHenrique Elmer “é homem viajado e de certa cultura.”

Em outra localidade, “a família Dionizio dedica-se a lavoura eapresenta ótimo aspecto não só como trabalhadores, como também doponto de vista social.” O paraguaio Ladislau Vive, casado com paraguaia,“tem 28 anos de idade, e é de ótima aparência e vive em harmonia comos colonos da Cooperativa Manoel Ribas”. Teria participado da guerrado Chaco. “É ex-tenente do exército paraguaio”. Por sua vez, o paraguaio“Rogastiano não tem canoa, é indolente”.

Observam-se aspectos ligados a comportamentos, sociabilidade,“cultura”, aparência, indolência etc. O documento apenas registra estesaspectos, não explicita julgamentos de valor de forma aberta, no entanto,há conotações subjacentes neste sentido.

Há um conjunto de informações referentes às infraestruturas, àsatividades econômicas, aos volumes de produção, às condições demoradia e outras informações bem amplas. Neste trabalho, estasinformações não são analisadas.

Além dos levantamentos da costa brasileira, a fonte apresenta um“LEVANTAMENTO INFORMATIVO DAS DIVERSASLOCALIDADES EXISTENTES NA COSTA DO RIO PARANÁ,

205

PERTENCENTES Á REPUBLICA DO PARAGUAY”É a segunda parte do documento referente a localidades do

Paraguai. Ela tem a mesma estrutura e característica de registros daslocalidades da “COSTA DO RIO PARANÁ, PERTENCENTES Á 9ªREGIÃO POLICIAL, COM SEDE EM FÓZ DO IGUAÇÚ – (BRASIL)”.Na costa paraguaia são 18 (dezoito) portos nominados, seguidos de suasdescrições: PORTO PRESIDENTE FRANCO, PORTO EMBALSE,PORTO ITACURÚ, CURUPAITY, PORTO LAS PALMAS, PORTOAURORA, PORTO GENERAL DIAS, PORTO VANGUARDIA,PORTO ALEGRE, PORTO DORIELA, PORTO VITÓRIO BOCAY,PORTO CARDONA, PORTO SAENZ PENA, PORTO SANTATEREZA, PORTO 3 DE JUNHO, PORTO ALICA, PORTO ITAMBEÍ,PORTO ADELIA.

Três deles estariam “totalmente abandonados” e três aparecem seminformações sobre moradores ou proprietários.

As atribuições de nacionalidades aos moradores e proprietáriossão as mais recorrentes, seguindo-se dados e registros da primeira parte.

A “Industrial Paraguaya” seria “uma Cia. De capital inglês”. A“propriedade dos Ayala” teria um certo conforto, com os moradoresatingindo “a 250 pessoas, inclusive 150 peões paraguaios”. O PortoGeneral Dias, pertencente a Leandro Bertoni, teria como “administrador,Carlos Maguez, paraguaio, que aí reside com sua senhora e 40 bugresparaguaios”.

No Porto Doriela teria morado “o brasileiro Antonio Carvalho”,outro porto teria sido explorado “por um argentino chamado Vasques”.O “Porto Sta. Tereza pertence à Leandro Bertone. Possui 70 famílias(140 pessoas), todas paraguaias, que trabalham no cultivo da erva (3 kmquadrados de plantas), afora a erva nativa. Administra o lugar o Sr.Milciades Schneider, paraguaio, cujos avós são alemães”. Em outro,“reside um comissário paraguaio, Zeferino Acosta, encarregado da guardada fronteira, nessa zona”.

Alguns aspectos merecem ser mencionados. O rio Paraná fazfronteira. Há o “lado de cá e o lado de lá”. No entanto, os levantamentosfeitos apontam para mais semelhanças do que para as diferenças. Mesmoque as preocupações se voltem para enfocar a fronteira, as tintasencontram dificuldades e resistências no momento em que as vivências

206

foram sendo registradas.Escritos de Roberto Abinzano28 contribuem para compreender esta

aparente contradição. Este autor trabalha com o conceito de transfronteira,mostra que os atores da Tríplice Fronteira diluem nas suas vivências aspretensas fronteiras nacionais. Em texto sobre a Frente extrativista (Elfrente extractivista), Roberto Carlos Abinzano caracteriza a Provínciade Misiones, no período de 1865 a 1930, como uma “formaciónsocioeconômica y espacial transfronteiriza”. Para ele, a exploração damadeira e da erva mate impulsionou “epifenómenos complementários”como traçados de vias de comunicação, o desenvolvimento da navegação,a construção de infra-estrutura portuária. Menciona que havia“agricultores de subsistencia, colonos espontâneos (...) especialistasartesanos y El território”. Observa, ainda, que muitas de suas práticasestariam presentes em décadas posteriores nos três países destatransfronteira. Menciona fontes que afirmariam que estas regiões eramfrequentadas por “’matreros’ y otros aventureros”, que eram combatidos.“Ya por entonces em Argentina se decia que estos personajes eranbrasileños y em Brasil, obviamente, que eran ‘castellanos, argentinos oparaguaios’”29.

Mostra, também, a exploração da erva mate em território paraguaio,referindo-se a um lugar conhecido como “Tucuru-Pucu” (formigueirogigante), localizado no porto Presidente Franco à frente da foz do rioIguaçu no rio Paraná. Assim, ele aponta aspectos históricos, enfatizanandopresenças de empreendedores e trabalhadores oriundos dos três paíseslimítrofes. Alerta que estas atividades desconheciam limitesinternacionais. “Individuos de varias nacionalidades y Orígenes pasabanlas fronteras nacionales en cualquer sentido”, sendo que os controlesaduaneiros e os de outra natureza não existiam nos três países. Oservateiros e obrageiros criaram um mundo quase autônomo. Abinzanomenciona regulamentações e legislação que buscavam controlar asfronteiras. Tais tentativas de normatização proporcionaram a presençade funcionários, que, em muitos casos, usaram de espaços de poder paramanobras voltadas a seus interesses. “Estas empresas que surgen luegode la venta de lãs tierras y se convierten en grandes empórios estabanmontadas y actuaban em los tres países yerbateros ya que habia algunasde ellas que poseían tierras y capitales em más de una jurisdicción.” Por

207

outro lado, a maioria dos trabalhadores rurais nos ervais “fueron índios,mestizos y criollos de los três países”, além da presença de estrangeiroseuropeus.30

Com relação à população preexistente na região, havia numerososguaranis, mestiços e imigrantes. Com a Guerra do Paraguai, houveocupação militar, famílias teriam acompanhado combatentes, além degrande comitiva de comerciantes. Assim, “crearon efecto derepoblamiento de la zona a la que acudieron argentinos de variasprovíncias, brasileños, uruguayos, españoles, franceses, italianos,alemanes, etcétera, y aventureros o colonizadores de orígenes diversos”.Escreve que se encontram entre escritos de viajantes e informes oficiaisqualificativos e descrições de “dos tipos de pobladores: a) agricultorescom técnicas muy primitivas de subsistência; b) bandidos o cuatrerosdedicados al pillaje, y refugiados de los três países implicados em Laregión”. Também havia indígenas do grupo tupi31.

O interessante é que nomes de empreendedores e suas respectivasobrages circulam em registros do Brasil, do Paraguai e da Argentina.Com relação ao erval Tucurú-Pucú, “la Industrial Paraguaya, umimportante ‘holding’ integrado em su gran mayoría por capitalesargentinos”, teve, na sua constituição e desenvolvimento , a contribuiçãode “tenaces hombres”, que foram os “Goicoechea, Aramburu, Bossetti,Luchessi y Paggi”. Eram imigrantes e filhos de imigrantes europeus.Em outra situação o ervateiro Goicoechea informa a Peyret que tevecontatos com expedições de reconhecimento dirigidas por estrangeiros.Cita Fender, um suíço, o francês Andrieuz, o italiano Lencisa, Coffin,comerciante norte americano, os ingleses Fair e Davison, o espanholVitorio Abente. Dentre os maiores ervateiros, Abinzano menciona “losArrechea, los Goicoechea, Robet-Blosset, Nuñes, Gibaja, Arrillaga,Barthe, Nosiglia...” Termina o texto com um epílogo afirmando que teriafeito uma descrição de uma formação espacial como um processo, ondese constituíram “fronteras socioantropologicas específicas junto a lãsfronteras jurídicas e políticas”32.

Eis a Tríplice Fronteira levantada e estuda. Os documentos deórgãos de segurança e o texto de Roberto Abinzano evidenciam, pois,fronteiras múltiplas.

208

CONSIDERAÇÕES

Considero pertinente observar que os conteúdos dos documentosmencionados e destacados nas páginas anteriores trazem elementos queevidenciam preocupações geopolíticas e disputas na Tríplice FronteiraBrasil, Argentina e Paraguai. Os conflitos platinos estavam mal resolvidosnas primeiras décadas o século XX. Conteúdos de discursos da políticada “Marcha para o Oeste” do período Vargas estavam sendo gestados econsolidados nesta época. Justificativas para os planos de colonização epara a criação de empresas madeireiras e colonizadoras, que atuaram noParaná nas décadas de 1940 e 1950, aparecem nas narrativas trabalhadas,interferindo nas construções ideológicas locais.

Em discussões com os colegas Antônio Myskiw e TarcísioVanderlinde durante reuniões do grupo de pesquisa Cultura, Fronteiras eDesenvolvimento Regional, foram debatidas e apontadas algumas ideiasarespeito de fronteiras e territórios. Antônio Myskiw33 redigiu textos sobreestes dois verbetes que foram publicados no Dicionário da Terra. Segundoo autor, fronteira costuma significar limites entre duas ou mais situações.Ela pode apontar onde tem início ou fim um determinado território,estabelecendo soberania. Pode servir para assinalar o que pertence e oque não pertence. Há uma diversidade de tipologias de fronteira,dependendo da natureza da discussão a ser realizada, quer na geografia,na sociologia, na antropologia ou na história. Ao mesmo tempo em quefronteira se constituiria num “cenário de intolerância, ambição e morte”.No entender de José de Souza Martins34, seria, também, “lugar daelaboração de uma residual concepção de esperança, atravessada nomilenarismo da espera do advento do tempo novo, um tempo de redenção,justiça, alegria e fartura”. Michel de Certeau35, ao problematizar algunsaspectos teóricos e práticos da fronteira, argumentaria que “a fronteirafunciona como um terceiro”, isto é, o espaço existente entre o lado de cáe o lado de lá da fronteira.

Permito-me considerar que estas discussões sobre fronteirasrelacionadas com as narrativas estudadas apontam para fronteirasmúltiplas explicitadas nas fontes e apontadas no decorrer do texto.

209

Com o conceito de fronteira se articula o conceito de território.Myskiw, citando Werther Holzer36, aponta que território também podeser entendido como um conjunto de “itinerários e lugares”. Ele buscariacompreender o território a partir das relações sociais e culturais quedeterminados grupos humanos (ou animais) mantêm com lugares eitinerários que constituiriam seus territórios. Nessa óptica, a existênciado território não depende de delimitação de fronteiras fixas, e simflexíveis, visto que os limites são dados de acordo com as relações(espontâneas ou não, conflituosas ou não) frente (ou junto) a outrosgrupos, com a alteridade.

O território, suas fronteiras, a população e a paisagem que ocompõem têm historicidades. As histórias de lugares são histórias demovimentos, de migrações constantes, de conflitos e de transformaçõesde espaços e de paisagens. Assim como o espaço, o território é produzido(explorado ou utilizado) por formações sociais, com dinâmicas própriase repletas de contradições e desigualdades. No interior das fronteirasdos territórios, estão presentes as especificidades locais, inerentes àdinâmica geral da sociedade e às peculiaridades de lugares e temposhistóricos.

A territorialidade é constituída na perspectiva da construção deidentidades, principalmente na dimensão simbólica, cultural. Nesteaspecto, aparece o externo, a alteridade, a distinção entre nós e os outros.Também a distinção dos outros entre eles. Constrói-se a desigualdade ea diferença. A desigualdade exige um parâmetro comum, de essênciacomum, de identidade, mas as distinções se dão no âmbito daclassificação, da quantidade, culminando em hierarquização. A diferençase dá no sentido da alteridade, do outro, da exclusão, do preconceito. Osencontros com os semelhantes e/ou com os outros, normalmente, levama comparar: Os “não-nós” podem ser considerados superiores, inferiores,ou iguais.37 Prevalece a concepção de que os outros são inferiores a nós.

A pesquisa buscou conceber os autores dos relatos, das narrativascomo pretensos nós que procuram caracterizar os outros, os diferentes,conferindo-lhes atributos, hierarquias, valores, etc.38 Nas narrativas, osautores atribuíram características a partir de concepções e de idealizaçõesconsideradas adequadas aos moradores dos sertões. As descriçõesapontavam para modos de ser, para atitudes, para identidades étnico-

210

nacionais passíveis de interferirem na formação da civilização e danacionalidade brasileiras.

Ocorre uma luta por representações, pelo simbólico. Para Chartier39,as representações possibilitam articular três modalidades da sua relaçãocom o mundo social. Seriam a classificação e a delimitação, produzindo“configurações intelectuais múltiplas”, as práticas, visando “reconheceruma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo” eas formas institucionais e objetivadas, marcando “a existência do grupo,da classe ou da comunidade”. As narrativas trabalhadas enquadram-se,mais ou menos, nessas modalidades, uma vez que os autores discursamenquanto indivíduos, pertencentes a grupos e tendo vínculos ecompromissos institucionais. As representações, também, vão sendoconstruidas de acordo com configurações e concepções próprias de suasrespectivas temporalidades e territorialidades, ou seja, em tempos eespaços historicamente contextualizados.

Foram enfocadas descrições e observações sobre homens emulheres nas “costas” do rio Paraná. Foram trazidos elementos parasubsidiar a análise sobre representações e fronteiras múltiplas emcontextos de fronteiras e territórios na Tríplice Fronteira. Mostradosconteúdos de narrativas, enfocando características relacionadas a questõesétnico-raciais, a elementos culturais e a disputas territoriais. Discutidasidentidades no contexto da construção de representações sobre fronteirasculturais, econômicas e nacionais.

As fontes são narrativas produzidas na primeira metade do séculoXX, duais delas nos anos de 1940 a 1945 no interior do DOPS por agentesque atuaram no oeste do Paraná. Refletiu-se sobre estas narrativas,buscando mostrar e compreender representações nelas contidas sobrefronteiras múltiplas. Estas representações são construções de imagensentendidas como consciência do eu em relação ao outro, podendopredominar um esquema cultural mais de quem observa e registra doque de quem é observado. Portanto, fronteiras e territórios são conceitosque permeiam o texto construído.

211

NOTAS EXPLICATIVAS

1 Doutor em História pela UFF/Niterói, Professor Associado da UNIOESTE – Universidade Estadual doOeste do Paraná e líder do grupo de pesquisa Cultura, fronteiras e desenvolvimento regional.2Ver COLODEL, José Augusto. Obrages& companhias colonizadoras: Santa Helena na história do OesteParanaense até 1960. Santa Helena: Prefeitura Municipal, 1988. WACHOWICZ, Ruy. Obrageros, Mensuse Colonos: história do Oeste Paranaense. Curitiba: Vicentina, 1982. WESTPHALEN, Cecília Maria.História documental do Paraná: primórdios da colonização moderna na região de Itaipu. Curitiba, UFPR,1987.3 Ver GREGORY, Valdir e SCHALLENBERGER, Erneldo. Guaíra: um mundo de águas e histórias. MarechalCândido Rondon, Editora germânica, 2008. GREGORY, Valdir. Fronteiras e territórios: construções depaisagens nos sertões do Paraná na primeira metade do século XX. Pesquisa desenvolvida durante licençasabática (fevereiro de

2011 a janeiro de 2012). Marechal Cândido Rondon/PR, fevereiro de 2012.4SIDWEL, Wilson. A través de los años 1910-1930. (Xerox de texto datilografado, acervo pessoal).5 Atualmente inundadas pelo Lago da Itaipu Binacional.6CORREA FILHO. A Mate Laranjeira. Cuiabá, 1925, pp. 96-97.7 Coelho Junior. Pelas selvas e rios do Paraná. Curitiba/SP/RJ, Editora Guaíra Limitada, 1946, p. 30.8 Franco, Artur Martins. Relatos de viagem. Curitiba, 1973.9 ARRUDA, Gilmar. Cidades e Sertões: entre a história e a memória. Bauru, EDUSC, 2000, p. 14.10 Ver Anderson, Benedict. A nação e consciência nacional. São Paulo, Ed. Ática, 1989, p. 13.11 Ver GREGORY, Valdir. Fronteiras e territórios: construções de paisagens nos sertões do Paraná na primeirametade do século XX. Marechal Cândido Rondon/PR, fevereiro de 2012.12 Optei por reproduzir partes das fontes mantendo a redação original no que se refere a concordâncias,pontuação e outros componentes. Os textos são bem escritos, mas a pontuação, a acentuação e a grafiadiferem da correção gramatical atual. A interferência nestes aspectos, no meu modo de ver, poderia afetarsignificados e características, bem como descontextualizar conteúdos e dados. Nas próximas páginas estareiutilizando este documento que estou caracterizando sem citá-lo repetidamente. A redação deixa claro quese refere a esta fonte.13 Cabe mencionar que, naquela época, os nacionalismos estavam assoberbados, com repercussões nestaTríplice Fronteira.14http://pt.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADcia_Militar_do_Estado_do_Paran%C3%A1acessado em 10/02/2012.15h t t p : / / domino . cmc .p r. gov.b r / p rop2005 .n s f / f 9b260 fb1de06c4b052569ba005c75ad /3122df4bc6063a2c0325716f006a3e7d?OpenDocument, acessado em 10/02/2012.16Fonte:http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/840276, acessado em 02/06/2013.17 Ver SILVA, Micael Alvino. Vigilância aos súditos do Eixo na parte brasileira da Tríplice Fronteira (1942-43). 2010. 222p. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Maringá. Ver tambémBLOGUE DO ALUIZIO PALMAR: Histórias do porão, acessado em 10/02/2013. Ver também http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/840276, acessado em 02/06/2013.18 Ver CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990.19 Ver ABINZANO, Roberto Carlos. Cuadernos de la Frontera. Año I, Num. II – Posadas, marzo de 2004.20 Ver GREGORY, Valdir e SCHALLENBERGER, Erneldo. Guaíra: um mundo de águas e histórias. MarechalCândido Rondon, Editora germânica, 2008.21 Este conceito tem o sentido de vivências além e independente destas fronteiras nacionais. Sobre este

212

conceito, ver o estudo de ABINZANO, Roberto sobre as frentes extrativistas em Misiones na Argentina.22 Ver MOTA, Lúcio Tadeu ; NOELLI, Francisco Silva. Exploração e guerra de conquista dos territóriosindígenas nos vales do Tibagi, Ivaí, e Piquiri. In: DIAS, Reginaldo B. ; GONÇALVES, José HenriqueRollo. Maringá e o Norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá EDUEM, 1999.23 Ver POLACK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, RJ, vol2, nº 3, 1989, p. 3-15. Ver Também TEDESCO, João Carlos. Passado e presente em interfaces: introdução a uma análisesócio-histórica da memória. Passo Fundo. , UPF Editora, 2011.24 Ver MYSKIW, COLOMBO, GREGORY, WESTPHALEN e outros.25 A Companhia Mate Laranjeira foi objeto de estudos meus nos últimos anos. Considero pertinente mencionar,aqui, que esta obrage atuava na Argentina, no Paraguai e no Brasil na exploração, beneficiamento ecomercialização da erva mate. Só em território brasileiro atraiu mais de três Mil trabalhadores (os Mensus).Dentre os seus proprietários (acionistas) destacam-se Mendes Gonçalves (argentino), Thomaz Laranjeira(brasileiro) os Murtinho (brasileiros matogrossenses). Ver ARRUDA, Gilmar.26 Como já mencionei em nota anterior, optei por manter a grafia original. Portanto, as incorreções gramaticaisconstam no original.27 Ver COLODEL, José Augusto. Obrages & companhias colonizadoras : Santa Helena na história do OesteParanaense até 1960. Santa Helena : Prefeitura Municipal, 1988.28 ABINZANO, Roberto Carlos. Cuadernos de la Frontera. Año I, Num. II – Posadas, marzo de 2004.29 Ver ABINZANO, p. 2 e 7.30 ABINZANO, p. 10, 15 e 17.31 ABINZANO, p. 22.32ABINZANO, p. 24, 33, 36 e 37.33DICIONÁRIO DA TERRA. Márcia Motta (org.). RJ, Civilização Brasileira, 2005.34 MARTINS, 1997:11, apud DICIONÁRIO DA TERRA.35 CERTEAU, 2000: 213, apud

DICIONÁRIO DA TERRA.36HOLZER, 1997:83, apud,

DICIONÁRIO DA TERRA.37Ver HAESBAERT, Rogério. Des-territorialização e Identidade: a rede gaúcha no Nordeste. Niterói:EdUFF, 1997, p 42-44.38 Ver TODOROV TODOROV, Teodor. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana.RJ: J. Zahar, 1993.39 Ver CHARTIER, Roger.A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990, p. 23 a27.

REFERÊNCIAS

ABINZANO, Roberto Carlos. Cuadernos de la Frontera. Año I, Num. II – Posadas, marzo de2004.

ANDERSON, Benedict. A nação e consciência nacional. São Paulo, Ed. Ática, 1989.

ARRUDA, Gilmar. Cidades e Sertões: entre a história e a memória. Bauru, EDUSC, 2000.

213

BARTH, Fredrik. “Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. SP: Ed. UNESP, 1997.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982.

CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas, Papirus, 2001.

________. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990.

_______. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

COELHO JUNIOR. Pelas selvas e rios do Paraná. Curitiba/SP/RJ, Editora Guaíra Limitada,1946.

COLODEL, José Augusto. Obrages & companhias colonizadoras: Santa Helena na históriado Oeste Paranaense até 1960. Santa Helena: Prefeitura Municipal, 1988.

DICIONÁRIO DA TERRA. Márcia Motta (org.). RJ, Civilização Brasileira, 2005.

DOMINGOS NASCIMENTO. Pela fronteira. 1903.

GREGORY, Valdir e SCHALLENBERGER, Erneldo. Guaíra: um mundo de águas e histórias.Marechal Cândido Rondon, Editora Germânica, 2008.

___________. Os eurobrasileiros e o espaço colonial: migrações no Oeste do Paraná. Cascavel:Edunioeste, 2002.

__________. Fronteiras e territórios: construções de paisagens nos sertões do Paraná na primeirametade do século XX. Pesquisa desenvolvida durante licença sabática (fevereiro de 2011 ajaneiro de 2012). Marechal Cândido Rondon/PR, fevereiro de 2012.

GUIMARÃES, Ekiane Silva e MOTTA, Márcia Maria Menendes (org). Campos em disputa:história agrária e companhia. SP, Annablume, Núcleo de Referência Agrária, 2007.

HAESBAERT, Rogério. Des-territorialização e Identidade: a rede gaúcha no Nordeste. Niterói:EdUFF, 1997.

HOLZER, Werther. Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e lugar,território e meio ambiente. In: Território. N.º 3, jul/dez 1997.

HUNT, Lynn. A nova história cultural. SP, Martins Fontes, 1992.

JULIO NOGUEIRA. Do rio Iguassu e ao Guayra. Rio de Janeiro, Editora Carioca, 1920.

MARTINEZ, Cesar. Sertões do Iguassú. SP, Cia. Gráphico-Editora Monteiro Lobato, 1925.193p.

MARTINS, José de Souza. Fronteira:A degradação do Outro nos confins do humano. SãoPaulo: HUCITEC, 1997.

MONTOREANU, Hortência Zeballos. Guayrá guaíra. São Paulo: Arte Imprensa. N. 1992.

MOTA, Lúcio Tadeu; NOELLI, Francisco Silva. Exploração e guerra de conquista dos territóriosindígenas nos vales do Tibagi, Ivaí, e Piquiri. In: DIAS, Reginaldo B.; GONÇALVES, JoséHenrique Rollo. Maringá e o Norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá EDUEM,1999.

_______; _________. Exploração e guerra de conquista dos territórios indígenas nos vales

214

dos rios Tibagi, Ivaí e Piqueri. In: DIAS, Reginaldo B. e GONÇALVES, José Henrique. Maringáe o Norte do Paraná: estudos de história regional. Maringá, EDUEM, 1999.

MYSKIW, Antonio Marcos. O Oeste do Paraná, à sombra dos livros: História e historiografia(mímeo, 2008).

POLACK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos históricos, RJ, vol2, nº 3,1989, p. 3-15.

POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. SP: Ed. UNESP,1997.

SCHALLENBERGER, Erneldo (org.). Cultura e memória social: territórios em construção.Cascavel: Coluna do Saber, 2006.

SIDWEL, Wilson. A través de los años 1910-1930. (Texto datilografado, acervo pessoal).

SILVEIRA NETO, (1872-1942). Do Guairá aos Saltos do Iguaçu. Curitiba, Fundação Cultural,1995.

TEDESCO, João Carlos. Passado e presente em interfaces: introdução a uma análise sócio-histórica da memória. Passo Fundo, Editora da UPF, 2011.

TODOROV, Teodor. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. RJ: J.Zahar, 1993.

WACHOWICZ, Ruy. Obrageros, Mensus e Colonos: história do Oeste Paranaense. Curitiba:Vicentina, 1982.

WESTPHALEN, Cecília et al. Nota prévia ao estudo da ocupação da terra no Estado do Paraná.Boletim da Universidade Federal do Paraná, n.7, p. 1-52, 1968.

__________. História documental do Paraná: primórdios da colonização moderna na região deItaipu. Curitiba : UFPR, 1987.

215

RUPTURA HISTORICA E (DES)CONTINUIDADESCULTURAIS NA FRONTEIRA: OS DESAFIOS DO

PESQUISADOR

Erneldo Schallenberger1

A multiplicação de interesses pela pesquisa acerca da temática dasfronteiras tem levado muitos estudiosos a enveredar por campos designificação que conferiram ao conceito fronteira um sentido polissêmico.A fronteira, ao mesmo tempo em que aponta para o horizonte do novo edo indefinido, sugere um limite e estabelece uma relação entre estesdois indicadores que são sempre expressão do alcance humano a partirdas condições socioculturais histórica e espacialmente construídas. Osdiferentes sujeitos sociais constroem seus referenciais de fronteira a partirdo lugar em que se movimentam, do seu mundo de significados esímbolos e das representações que têm de si e dos outros. Numaperspectiva holística e abordagem interdisciplinar, os campos deinvestigação não se encontram tão distintos nas representações e vivênciasda fronteira. Eles remetem o pesquisador aos processos históricosmarcados por encontros e desencontros, às relações de poder, a conflitos,acordos e negociações.

As relações culturais na fronteira começam a ter expressão namedida em que se estabelecem formas de contato entre povos ou gruposétnicos que passam a interagir espacialmente, produzindo processos dediferenciação. No encontro de povos com mundos de significação erepresentação diferentes, o espaço passa a se configurar como um palcosimbólico onde se travam relações de poder, maiormente marcadas porum campo de forças desigual em virtude da diferença dos tempos sociais

216

vividos e acumulados pelos sujeitos em contato. Essa diferença pode serencontrada, pelo pesquisador atento, no conjunto dos referentes da culturaque orientam a vida em sociedade e que e se materializam através debens sociais com significados simbólicos.

A cultura enquanto expressão e manifestação dos símbolos erepresentações social e historicamente produzidos e espacialmentevividos envolve os sujeitos em uma “teia de significados”, na acepçãode Clifford Geertz (1978), através da qual se identificam, apreendem econferem sentidos, são significados e geram comunicação. Deriva dessaasserção que os “(...) espaços culturais são criados por atos de significaçãocom caráter intencional e interacional” (FEIBER, 2013, p.23). Aocientista social cabe observar que as diferentes culturas são portadorasde signos, que expressam, a um só tempo, a unidade de sentido entre oabstrato e o real nas representações e ações humanas. A par desses signos,os fenômenos comunicativos traduzem, enquanto linguagem erepresentação, o imaginário coletivo como força social que produz aunidade de sentido e a sociabilidade. Assim, os sujeitos coletivosconstroem o seu mundo real e espiritual como unidade de referência efronteira cultural em relação a outros mundos culturais. Embora o realpossa ser entendido, a partir de Cassirer (2001), como o mundo das açõese dos seus efeitos que ultrapassam as meras representações, as formassimbólicas conferem significado aos processos culturais, na medida emque são entendidos a partir da perspectiva histórica de uma sociedadeem movimento e se constituem em princípios estruturais da atividadehumana.

Travadas em espaços e períodos específicos, as relaçõesintersubjetivas geram distinções que fazem aflorar o imaginário etraduzem a atmosfera cultural dos grupos humanos em contato. No casoespecífico da conquista e colonização da América, o encontro dediferentes mundos culturais colocou frente a frente sociedades comsistemas simbólicos distintos, marcadas pelo pensamento mágico e pelopensamento racional. Mito e logos sustentam maneiras de pensar,percepções e sensibilidades próprias que diferenciam a relação homem-natureza e conduzem a formas específicas de interpretar os fenômenos ede organizar seus esquemas mentais de compreensão e apropriação dosespaços de vivência e convivência social. Se para os agentes da conquista

217

e da colonização da América pensar a realidade implicava conceber adualidade entre homem e natureza, ou seja, separar a razão do mundonatural que os rodeava, para as culturas primitivas o mundo se apresentavacomo uma unidade plena onde os mitos explicam como funcionam einteragem todas as forças dessa enigmática realidade (CARDOZO, 2006).

O imaginário indígena não foi identificado a partir de registrospróprios e reporta à memória, à tradição e às narrativas colhidas pelosprimeiros cronistas e epistológrafos que, sem conhecer a sociodiversidadenativa das sociedades tribais, destacam aspectos ausentes ou desviantesdo mundo da cultura racionalizada. Os sentidos emanados dos conceitosde sociedade, da(s) divindade(s) e de poder, entre outros, eraminterpretados e vividos de forma muito particular pelas sociedadesindígenas e pela sociedade da conquista. A experiência mística indígenae a explicação mítica dos fenômenos naturais e humanos não tinhamlugar nos cânones civis e religiosos dos sujeitos da conquista. A missãode trazer aos primitivos habitantes da América a civilização e a salvaçãoenvolve e justifica, na esfera do racional, um campo de interesses queinstiga o pesquisador a buscar historicamente a atmosfera do períodoespecífico no qual se configurou o modo de ser e de pensar dos atoressociais da conquista e da colonização da América. Interesses que podemser observados a partir da convergência de ideologias com axiologiasque se refletiram, de certa forma, na ética e na estética da apropriação eda organização espacial.

Entendida como um conjunto orgânico de ideias apreendidas apartir das suas inversões (MAFFESOLI, 2001, p. 76), a ideologia daconquista definia campos de interesse que, de modo geral, reduziram adiversidade sociocultural dos povos nativos. Negava-lhes a natureza desua cultura, reduzindo-os a uma unidade de referência exterior aosprotótipos de homem e de sociedade por ela veiculados, para explicar,justificar e argumentar em seu favor a superioridade cultural. Selvagem,bárbaro, indigente, “sem-Deus”, “sem-Rei” e “sem-lei” são atributos quederivam de formulações ideológicas que desqualificam a alteridadeantropológica a partir de uma racionalidade que situa no sobrenatural eno estado civil instituído os pressupostos dos ideais éticos e políticos.

O imenso mundo da América abrigava inúmeros povos nativos,com culturas distintas que devem ser associadas aos territórios por onde

218

circulavam, às extensas famílias que cultivavam suas tradições, aosespaços vividos, às relações com a natureza, de cujos fenômenos emistérios emanaram os mitos, as divindades e as formas de prover asubsistência. Tudo isto era, inicialmente, desconhecido pela sociedadeda conquista.

A ideologia que moveu a conquista espiritual e política, além dedesconhecer de modo geral a realidade multicultural, fez com que muitassociedades tribais, sobretudo as que ofereceram resistência,desaparecessem do mapa etnográfico das Américas. Entretanto,fragmentos contidos nos relatos de viajantes que percorreram a regiãodo Rio da Prata revelam uma tentativa de entendimento de umadiversidade cultural (SCHMIDEL, 1903; NÚÑEZ CABEZA DE VACA,1995). De modo particular, conseguiram identificar, de certa forma, acultura dos Guaranis, distinguindo-a dos demais grupos étnicos, muitomais em função dos interesses imediatos que os impulsionaram.

A maior contribuição para o conhecimento da diversidade culturalda América deve-se aos jesuítas. Nas suas incursões pelo interior docontinente identificaram sociedades tribais e territorialidades por ondecirculavam, conferindo-lhes características socioespaciais, lingüísticase políticas. Usaram para tanto o método cartográfico (BARCELLOS,2000). A cartografia jesuítica representa um verdadeiro mapeamento daetnodiversidade da América latina. Por ela é possível identificar asterritorialidades e as culturas contidas neste universo até entãodesconhecido pela sociedade da conquista. Ela rompe, em parte, com aideia do desconhecido, que se confundia com o ilimitado. Fatoresgeográficos relacionados com o meio ambiente, como pântanos, florestase rios, contribuíram para definir o modo como essas sociedades serelacionaram com o seu ambiente natural. Ao pesquisador menos atentopode passar despercebido que houve uma geografia cultural não mapeadaaté então. O mapeamento desencadeado, sobretudo pelos jesuítas, alémde situar espacialmente os diferentes povos nativos, conferiu-lhes certaidentidade pelo registro de como viviam, de suas crenças, de suas formasde comunicação e de seus aspectos físicos. Assim, o mundo desconhecidoe a fronteira ilimitada começaram a ter contornos através de uma cartaetnográfica que estabelecia, de certa forma, fronteiras culturais.

O conhecimento da geografia cultural se tornou um elemento de

219

fundamental importância para os agentes da conquista e da colonização.Não raras vezes serviu de referência para o desencadeamento de açõesde subjugação ou de aliança. Detentores desse conhecimento, os jesuítasconseguiram estabelecer relações horizontais com alguns povos nativos,o que lhes conferiu um papel mediador entre as culturas em contato. Asfricções interétnicas resultantes do avanço das frentes do colonialismointerno, que no espaço platino foram fortemente marcadas pelobandeirantismo e pela expansão do sistema de encomiendas, fizeramcom que a mediação dos jesuítas fosse requisitada pelas autoridadescoloniais constituídas para recuperar a sinergia entre os indivíduos e seuespaço e trazer uma solução para os conflitos interétnicos.

O bandeirantismo, que transbordou a fronteira imaginária doTratado de Tordesilhas, foi sem dúvida um fenômeno de expansão internado colonialismo luso, sem precedente na história das nações pelaobservação de Affonso E. Taunay (1946), que aguçou a questão dasfronteiras entre os impérios coloniais ibero-americanos. Afetou o sistemade fixação da colonização espanhola através das encomiendas,promovendo certa instabilidade no próprio sistema colonial, maisprecisamente em relação à integração da força de trabalho indígena.

No período da unificação das coroas da Espanha e de Portugal(1580-1640), se a questão das fronteiras em torno da fixação de limitesterritoriais se diluiu, acentuou-se, no entanto, a mobilidade dos diferentesgrupos de conquistadores e colonizadores que visavam à ocupação deespaços produtivos ou das riquezas naturais neles contidos. Essemovimento expansionista desencadeou embates culturais que, vistos soba perspectiva dialética dos interesses e dos conflitos, afetou asubjetividade dos povos nativos.

Para além das esferas político-institucionais e ideológicas aquestão fronteiriça se configurou na América Meridional como umproblema humano que expôs os limites do próprio sistema colonial. Sobo regime do padroado, as autoridades coloniais se renderam ao podercoercitivo da religião, dando lugar às ordens religiosas, mormente denatureza transnacional e com um carisma contra reformista, para persuadire converter as culturas nativas ao catolicismo. Soldados de Cristo, osjesuítas, conhecedores da geografia cultural, passaram a se apropriar deelementos significativos da cultura, a exemplo da linguagem, o que lhes

220

favoreceu a comunicação e o estabelecimento de relações intersubjetivashorizontais. Nas fraldas dos espaços vulnerados pelo avanço das frentesinternas do colonialismo, buscaram a transformação da subjetividade ea reterritorialização dos povos nativos, a exemplo dos Guaranis, dosChiquitos e dos Moxos. Das relações intersubjetivas resultou certosincretismo cultural, possível de ser verificado na ordenação do espaço,na arte e na arquitetura, presentes na memória escrita e nos momentosque alimentam a história da experiência societária das reduções jesuítico-guaranis. Estes elementos simbólicos e materiais possibilitam aopesquisador identificar uma nova ordem social, marcada pelaaproximação de duas culturas, integrando os atores sociais em torno deum campo simbólico, onde discursos e representações caracterizaram oconjunto das relações materiais e imateriais refletidas no espaçovivenciado no cotidiano.

O novo poder que os jesuítas controlavam através doconhecimento antropológico e da comunicação lhes conferiu apossibilidade da construção de um espaço cultural com característicaspróprias e distintas da sociedade colonizadora e das demais sociedadestribais na fronteira colonial da região platina. Nessas circunstânciasespecíficas cabe o raciocínio de Bhabha (2010, p. 27) quando afirmaque:”o trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’que não seja parte de um continuum de passado e presente. Ele cria umaideia do novo como ato insurgente de tradução cultural”.

Pela estratégia da segregação étnica, a identidade coletivaconstruída no espaço fronteiriço jesuítico-guarani resultou em grandemedida dos conteúdos simbólicos dessa identidade e de seu significadopara os atores sociais que a constituíram ou dela se excluíram. O novomodelo societário, fundado em padrões éticos e estéticos resultantes dacomunicação de duas matrizes culturais promoveu inquietudes e foitransformando o espaço cultural missioneiro numa fronteira indesejadatanto para a vertente espanhola quanto para a portuguesa do colonialismo.A partir daí a dinâmica das relações culturais na região platina assumeuma nova configuração.

Com a restauração da monarquia portuguesa (1640) a buscada consolidação das fronteiras nas possessões americanas se tornou maisintensa. Além do estabelecimento de fortalezas e sítios para simbolizar e

221

garantir os limites no Novo Mundo, batalhas e movimentações militarespassaram a caracterizar o conjunto de operações nos espaços fronteiriços.O nordeste e o norte comportavam a presença dos holandeses, desde1630, o que ameaçava os domínios territoriais de Portugal na América;o sul, sobretudo a região do entorno do estuário do Prata, era a zona dasmaiores disputas, muito em virtude da intensificação das atividadescomerciais e de “contrabando”. Essas atividades ensejaram oestabelecimento de novas estruturas de poder e atraíram novos atoressociais, que, por sua vez, promoveram um processo de intensacomunicação cultural e interação social. Buenos Aires e Colônia do Sac-ramento, estabelecida pelos portugueses em 1680 na margem setentrionaldo rio da Prata, se constituíram em importantes centros de projeçãopolítica das metrópoles e de interesses econômicos plantados em tornodo comércio platino. A Colônia do Sacramento foi alvo permanente dosespanhóis desde a sua fundação, tanto assim que a tomaram em 1704, adevolveram por força do Congresso de Utrech (1715) e a negociaramcom o território dos Sete Povos das missões jesuítico-guaranis da margemoriental do rio Uruguai, por ocasião do Tratado de Madrid (1750).

Fatores conjunturais como a Guerra da Sucessão Espanhola(1702-1714), que resultou da disputa de poder pelo trono da Espanhaentre os Bourbons e os Habsburgos, e a mudança da política externaportuguesa, que se valeu da estratégia da guerra para defender seusterritórios, afetaram toda a Europa e, por conseguinte, as relações entreas metrópoles e suas colônias. O impacto imediato dessa mudança derelação talvez fosse a maior presença de milícias e de agenciadores docomércio e do “contrabando” de outras nacionalidades na região platina.Por outro lado, as condições locais proporcionadas pela atividadepecuária, grandemente fomentada pelas estâncias missioneiras e pelasvacarias, fizeram com que o manejo, a preação e o contrabando do gadofossem partilhados por sujeitos sociais de diferentes matrizes culturais,fazendo com que elementos da cultura material, símbolos, hábitos epráticas culturais se tornassem costumes em comum.

Preconceituoso seria concordar com Capistrano de Abreu(1976, p. 176/177) quando se refere à Colônia do Sacramento insinuandoque: “Este ninho antes de contrabandistas que de soldados, foi talvez oberço de uma prole sinistra, os gaúchos, os gaudérios, originários da

222

margem esquerda do Prata, famosos durante longas décadas e ainda nãoassimilados de todo à civilização”. O olhar atento do pesquisadorobservará que nessa realidade complexa os contatos e as interações dediferentes atores sociais em torno das atividades econômicas e das lutasde fronteira foram forjando uma cultura regional, onde índios,portugueses, espanhóis, negros, entre outras culturas étnicas e nacionaisforam progressivamente interagindo num espaço cultural onde elementossimbólicos e práticas culturais se cruzaram e definiram uma fronteiramulticultural. Essa fronteira carregou as marcas da transgressão e a lutapor espaços de livre movimentação. Nesses espaços as relaçõessocioculturais se sobrepunham às questões dos limites territoriais. Alémdo mais, a presença das missões jesuítico-guaranis, que representaramum espaço cultural com unidade de referência ética e estética e com umamodelação social e política definida, se afigurava como uma fronteiracultural que se contrapunha aos interesses dominantes dos impérioscoloniais.

O processo de renegociação das fronteiras luso-espanholasculminou em 1750 com o estabelecimento do Tratado de Madrid(FURTADO, 2011). Esse Tratado eliminou o de Tordesilhas, fixou osnovos limites entre os domínios portugueses e espanhóis na América eteve a finalidade de apaziguar as relações conflituosas existentes. Com asua celebração, as pretensões portuguesas sobre a extensão territorial daAmazônia e da região Centro-Oeste, desbravadas por seus colonizadores,foram contempladas. O interesse espanhol esteve centrado na Colôniado Sacramento, sem descurar, no entanto, dos territórios das missõesjesuítico-guaranis do Guairá, do Tape, do Itatim e dos Chiquitos. Nacampanha do Uruguai, nos arredores da Colônia do Sacramento, osportugueses haviam expandido a pecuária sob o consentimento dogoverno espanhol. Essa indústria comportava, no entanto, restrições dospovoados missioneiros (CORTESÃO, 1951).

O Tratado de 1750 motivou a constituição de comissões dedemarcação para o estabelecimento dos limites territoriais. O princípiodo Uti Possedetis, ou seja, da posse por quem primeiro se fixou nosterritórios, desencadeou operações de campo, elaborações cartográficase descrições etnográficas. Na região amazônica o avanço português sefez notável. Persistiam, entretanto, polêmicas em torno dos limites do

223

centro-oeste e do sul, onde os portugueses praticavam intenso comércioatravés da navegação dos rios Paraguai e Paraná. Essa atividade nãocaracterizava uma ocupação efetiva do território, razão pela qual osespanhóis se empenharam em demonstrar a existência de espaços compopulações estabelecidas ou contatadas por eles. Inúmerascorrespondências recolhidas por Pedro de Angelis (1836) dão conta daexistência dessas populações.

Relatos como os de D. Manuel A. de Flores ao Marquês deValdelírios, comissário geral para a execução do Tratado de 1750,descrevem as distâncias entre os povos de uma e outra parte do rio daPrata, o ambiente natural, o clima, o número e a espécie de seus habitantes,suas chácaras e os frutos que produzem, além de indicar as formas dasua comercialização (ANGELIS, 1836). Ele observa que ao longo dosrios que deságuam no Paraguai e no Paraná existem por toda a fronteirasítios de povoamento por meio dos quais os portugueses sustentam a suanavegação e comércio e exploram madeiras para o fabrico de suasembarcações. Questiona os embaraços e as desvantagens que o comércioportuguês poderia trazer à província do Paraguai, onde “(...) viven susnaturales con nuestros primeros padres, entre quienes el uso del oro y laplata era desconocido; no tienen metales algunos ni piedras preciosas,y aun la moneda que de otras partes se pudiera llevar no tiene curso.”

A descrição da fronteira de Félix de Azara apontaem suaCorrespondência oficial e inédita sobre a demarcação dos limites entre oParaguai e o Brasil, de 12 de abril de 1784 (ANGELIS, 1836), para aexistência de diferentes grupos de populações nativas e, ao referir-se aosMbyas e suas terras, evidencia interesses contraditórios entre portuguesese espanhóis a seu respeito. Os portugueses alegavam a neutralidade detais espaços ocupados, enquanto os espanhóis sustentavam tratar-se dedomínios concedidos aos jesuítas pelas autoridades hispânicas para con-verter os índios e torna-los súditos da Espanha.

Para los portugueses, el Paraguay era parte integrante de la mismaexpresión geográfica, el Brasil. La más antigua cartografíaportuguesa - Lope Homen (1519), Diego Ribeiro (1525 y 1527),Joao Alfonso (1528 - 1543), André Homen - objetivó la idea deque el Brasil era una gran isla, flanqueada por las cuencas de los

224

ríos Madeira, Amazonas y del Plata con sus principales afluentesel Paraná y el Paraguay. Ese mito de la Isla-Brasil gravitófuertemente sobre la imaginación de los gobernantes lusitanos yfue estímulo poderoso para oponer a la letra del tratado deTordesillas la razón geográfica de Estado que iba a presidir laformación territorial de Brasil, y que le llevaría incansablementea buscar el señorío del Paraguay (CARDOZO, 1961, p.35-36).

As correspondências e os escritos sobre as fronteiras instigam opesquisador ao questionamento dos interesses, projetos e ambições emjogo, fazendo com que os diferentes modos de disputa e negociaçãotransformassem a fronteira num espaço móvel de contínua redefiniçãode territórios. Nesta mobilidade da fronteira, diferentes grupos, situadosem temporalidades diversas, se descobrem, convivem e interagem,promovendo relações culturais que transcendem os limites que se lhespretendia interpor.

Nesse tempo de fronteiras a ideologia política do ultra-absolutismo combateu de forma sistemática a ideologia político-eclesiástica – ultramontanismo -, visando o fim do domínio do poder daIgreja e a limitação dos privilégios eclesiásticos. O alvo principal eramos jesuítas, acusados de asfixiar a maçonaria e de promover oobscurantismo (FRANCO; RITA, 2004). A metodologia usada pelosjesuítas de estabelecer relações de intercomunicação cultural e depromover a reordenação sócio-espacial é vista como um fator deinstabilidade do sistema colonial. Para José de Carvalho e Melo - marquêsde Pombal - “A única fonte de progresso e de fidelidade para o povo eraa vontade real” (FRANCO; RITA, 2004, p. 34). Nesse clima, anti-jesuítico e secularizante, se deu a expulsão dos jesuítas da América, afragmentação do território missioneiro e do seu espaço cultural.

Com a expulsão dos jesuítas o território das missões (1767)passou a ser ocupado pelos colonos castelhanos, ficando a margemesquerda do rio Uruguai, entretanto, exposta às incursões dos portugueses,que disputavam o caminho que levava de São Paulo a Colônia do Sacra-mento.

A revisão do Tratado de Madrid através do de Santo Ildefonso(1777) promoveu embates que tiveram repercussões sobre as populações

225

fronteiriças. A maior tensão se projetou sobre as regiões do Iguatemi, deonde os portugueses foram desalojados, e da Colônia, onde haviasignificativas inversões e resistências à fixação da fronteira em funçãoda grande mobilidade social e das intensas atividades econômicasdesenvolvidas por grupos de diferentes origens étnico-culturais enacionais.

Assim, o tempo da fronteira que se estende do período dadefinição das possessões coloniais ao da delimitação dos territórios dosEstados nacionais emergentes é marcado por negociações e por intensoscontatos sociais. Contatos que, observados a partir da perspectiva doencontro de diferentes mundos culturais, promoveram, em circunstânciasdadas, conflitos e fricções interétnicas, comunicação e negociação cul-tural, hibridismo e sincretismo cultural e, enfim, relações intersubjetivasonde as relações de poder sempre se fizerem presentes. É um períodoem que desconhecido e o ilimitado são desconstituídos e se decompõema parte ilusória da fronteira.

Na medida em que houve o recrudescimento da influênciado ultra-absolutismo sobre as colônias e, consequentemente, aascendência dos interesses do liberalismo, grupos nativos ou associados,sobretudo ao imperialismo inglês, buscavam a hegemonia local. Essesgrupos começaram a construir de diferentes formas um sistema dereferência cultural traduzido em uma comunidade imaginada,representada a partir dos seus interesses expressos em um discurso quebuscou unificar as diferenças étnicas, de raça, de classe e de gênero emtorno de uma identidade nacional. Assim, os referentes éticos eideológicos veiculados pelo próprio sistema colonial são reinterpretadose unificados pelas sociedades colonizadas em torno de uma nova entidadepolítica e identidade cultural, constitutivas de um novo poder, capaz deremover os limites impostos à liberdade individual e coletiva herdadosdos colonizadores (QUEVEDO, 2006).

Os sentidos produzidos a partir dos discursos de nação e daconstrução de uma condição política autônoma merecem a atenção doinvestigador no sentido de verificar a partir de que matrizes sociais eculturais eles são produzidos. No caso específico das nações e estadosemergentes da bacia do Prata, diferentes motivações e ideologiasalimentavam os conteúdos discursivos e repercutiram sobre os processos

226

de constituição de entidades políticas e da emancipação política.Processos que, aliás, não se traduziram na construção de uma identidadenacional, enquanto forma ampla e unificada da identidade cultural.

Talvez seja possível buscar no horizonte do crioulismo paraguaioe no sentimento da pertença a uma grande família guarani as matrizeshistóricas e culturais de unidade nacional. Essa vertente autóctone daconstrução da unidade nacional certamente foi uma das razões doreconhecimento tardio da independência do Paraguai por parte de estados,como a Argentina, que construiu seu discurso de unidade nacional a partirde matrizes culturais européias.

As expressões regionais da cultura, portadoras de símbolos,representações e práticas que emergiram historicamente de ambientesde interação e de tensão, constituem fortalezas que resistem aos processosunificadores das culturas. A pluralidade dos coletivos, historicamenteconstituídos em contextos regionais multiculturais, pode ser uma dasrazões explicativas do dificultoso caminho do reconhecimento e daconstrução de uma identidade nacional no Brasil. Assim, as manifestaçõese as revoltas regionais apresentaram-se como formas de resistência eexpressão da singularidade sociocultural em meio à tentativa da reduçãoda pluralidade à unidade discursiva de um ente nacional.

A unidade e a identidade nacional na fronteira sul foram forjadasnum contexto de conflitos de fronteira, onde atores de diferentes origensétnicas, culturais e sociais se movimentaram num espaço partilhado apartir de relações horizontais que os aproximou em torno de símbolos,representações e práticas culturais construídas em comum, porém nadiferença. Esses elementos da identidade historicamente constituídos apartir da horizontalidade das relações socioculturais se transformam emforças que potencializaram a ação em busca do reconhecimento. Nessecontexto, emergiu um tipo sociocultural simbolizado em torno da figurado gaúcho, portador dos ideais da bravura, da liberdade e de hábitos ecostumes ligados à vida do campo. Constituiu-se, dessa forma, umafronteira cultural em territórios transfronteiriços que não se reduziu enem se fragmentou diante dos interesses interpostos verticalmente noprocesso da constituição das fronteiras nacionais.

Na luta pelo reconhecimento dos novos entes nacionais e dos seusrespectivos territórios os movimentos impulsionados pelos discursos da

227

unidade nacional não conseguiram criar, pela acepção de Benedict Ander-son (2008), uma comunidade política imaginada que fosse capaz de nosdespertar diferentes grupos culturais um sentido de pertencimentocomum. Em alguns casos, como assevera Charles Quevedo (2006, p.239), estes grupos:

(...) somente tem substituído uma elite dominante por outra; emoutros, a luta entre grupos étnicos diversos pela hegemonia e ocontrole dos estados pós coloniais emergentes, deu lugar aposteriores divisões fragmentações e segregações, quando não averdadeiras guerras ou massacres.

O tardio reconhecimento da independência da República doParaguai reflete as posturas das elites nacionais, a exemplo dos estadosemergentes do Brasil e da Argentina, impondo condições queresguardavam interesses plantados ainda no período colonial, sobretudoos relativos à navegação dos rios Paraná e Paraguai. A Argentina somentereconheceu a independência paraguaia e a livre navegação dos rios em17 de julho de 1852 em troca da renúncia do território de Missiones peloParaguai (CARDOZO, 1987). Assim, a luta pelo reconhecimento dasfronteiras em espaços culturais de grande mobilidade e comunicaçãocultural entre grupos de diferentes origens étnicas e sociais promoveurupturas não só em relação às formas de apropriação e de organizaçãodos territórios, mas, também, nos modos de representação e da recriaçãoda cultura.

Os ajustes negociados na década de 1850 porplenipotenciários para estabelecer a línea divisória entre o Impériobrasileiro e a República do Paraguai evidenciam posições divergentesacerca do reconhecimento da fronteira a partir dos espaços culturaissocialmente apropriados. Enquanto a posição dos representantesparaguaios, liderados por José Borges, assegurava o respeito aosagrupamentos humanos que haviam se estabelecido por primeiro, a dosbrasileiros, sob a liderança de José Maria da Silva Paranhos, alegavaque o direito que regulava as relações internacionais (uti posseditis)deveria levar em consideração duas exceções fundamentais: os tratadoscelebrados entre as coroas de Portugal e Espanha, que reconhecia como

228

vigentes e que só poderiam ser revogados mediante novo tratado. OParaguai mantinha posição marcante em defesa do principio do utiposedetis e não reconhecia os tratados celebrados entre os impérioscoloniais. “Se nulos, não há possessão definitiva”, alegava o representanteparaguaio José Borges (QUESADA, 1920, p. 175).

Resulta, enfim, que o Acordo assinado em 1856, precedidode uma série de conferências, inibia as relações interétnicas e culturaisnuma fronteira até então viva, uma vez que em seu artigo 22 definia que:

Fica conveniado que mesmo não se chegue a estabelecerdefinitivamente o acordo de limites, os governos do Brasil e doParaguai não fixarão e nem consentirão que seus súditos façamnada que se pareça ao estabelecimento, ocupação ou posse doterreno litigioso na margem esquerda do Paraguai, nem na direitado Paraná (QUESADA, 1920, p. 169).

Referenciou-se, dessa forma, uma fronteira embaraçada, com umaárea litigiosa, que considerava o curso do rio Paraná como marco divisórioe que respeitava os espaços apropriados das populações já estabelecidas,mas firmava que ambas as partes respeitariam e fariam respeitar o utipossidetis em vigor.

As divergências persistentes em torno das fronteiras definidas embase ao conceito geopolítico de território nacional encontraram navariável espaço cultural um dos seus fundamentos. A posição do Impériosustentava, ao contrário da República paraguaia:

(...) onde não há posse efetiva, que regra jurídica servirá de critériopara o delinde? (...) Não há território res nullis. (...) Para decidira controvérsia entre o domínio da República e o do Império,convém remontar-se a origem deste domínio, toda a vez que asúltimas populações ou estabelecimento de uma nação não sepuseram em contato com os da outra, e estão separados porterrenos ainda despovoados, por sua natureza, por falta depopulação ou por outras causas que é desnecessário enumerar(QUESADA, 1920 .p. 178).

Essa discussão se alastrou por décadas até que, depois da Grande

229

Guerra2, os limites territoriais foram fixados em dissonância com osacordos anteriormente negociados. O primeiro Tratado foi firmado em09 de janeiro de 1871 com o Brasil, através do qual:

(...) o Paraguai perdia 62.325 km2 de ervais situados entre o rioBlanco e o rio Apa, permanecendo este rio como limite norte doParaguai. Aceitava o pagamento de indenizações ao Brasil pelosprejuízos derivados dos gastos da guerra e dos danos causadosaos seus súditos (GONZALES, 193 apud NÚNEZ GOMES, 2011,p. 121).

As fronteiras entre o Paraguai e a Argentina tiveram longanegociação, uma vez que afetaram visivelmente populações jáestabelecidas nos territórios em litígio. As condições impostas pela Ar-gentina ao Paraguai se materializaram no tratado firmado em 09 defevereiro de 1876. Resultou desse tratado que a República do Paraguai,além do pagamento da dívida de guerra, tivesse que ceder à Argentina94.090 km2 que integram os atuais territórios das províncias de Formosae Misiones (NÚNEZ GOMES, 2011).

Impostos os limites territoriais ao Paraguai, persistiram pendênciasentre o Brasil e a Argentina acerca da definição da fronteira do Territóriodas Missões. As negociações bilaterais envolveram a intervenção arbi-tral do governo dos Estados Unidos que, em 1895, se posicionou favorávelao Brasil.

Os embaraços da fronteira, com suas negociações e seusdeslocamentos, tiveram repercussões sobre os atores sociais que semovimentaram na fronteira e sobre relações culturais derivadas dos seuscontatos. A fronteira, enquanto espaço negociado e território duvidoso -não apropriado em definitivo -, atraiu sujeitos de diferentes origens étnicase culturais, como caboclos, descendentes de indígenas, crioulos eparaguaios, que haviam se estabelecido antes da Guerra da TrípliceAliança. Tornou-se um espaço multicultural e, de certa forma, híbrido,não alinhado com a ideologia dos segmentos sociais e políticos queproduziram o discurso das identidades nacionais.

Com a intensificação do comércio pelos rios Paraná e Paraguai,fortemente impulsionado pela associação com o capital estrangeiro,

230

maiormente inglês e alemão, com os empresários argentinos, sobretudopara e exploração de madeira e erva mate, os contingentes humanos dafronteira foram incorporados como mão de obra nas empresasextrativistas. Instituiu-se, dessa forma, um regime de intensa exploraçãoda força de trabalho, caracterizado pela instabilidade e pela grandemobilidade social. As empresas (obrages) recrutavam os seustrabalhadores (mensus) de diferentes lugares e os mantinham sob o seucontrole, numa relação de dependência que limitava ao máximo as suaspossibilidades e sua vontade de querer (WACHOWICZ, 1987).Insurgências, conflitos e perseguições criaram um ambiente de conflitonas fronteiras. Forjou-se, neste contexto, um espaço vivo de relaçõeshorizontais de transgressão e de resistência que deu origem a umaformação social transfronteiriça, não identificada com os marcos e asimbologia da fronteira. Neste sentido, pode se afirmar com Peter Burke(2010, p. 72) que o “(...) local que favorece a troca e a hibridação é afronteira.”

No final do século XIX e início do século XX os governosargentino e brasileiro passaram a intensificar as estratégias de ocupaçãoterritorial através da construção de estradas de ferro no sentido norte-sul, que servissem de aporte logístico para promover a integraçãoeconômica e o povoamento, sobretudo das terras indígenas e dos espaçosvulneráveis da fronteira. A questão era a de: “(...) buscar um sistema deorganização conveniente para obter o povoamento de seus desertos, comopopulações capazes de indústria e de liberdade para educar seus povos(...)”. (ALBERDI, 1994, p. 189). Em 1887, o Ministro da Guerra daArgentina enviou um memorial ao Congresso Nacional enfatizando que:“O poder executivo nada espera das expedições aos toldos dos selvagenspara queimá-los e arrebatar suas famílias, como eles queimam aspopulações cristãs (...)” (ALSINA, 1877, p. 38). Importava, segundo oministro, povoar os desertos e não destruir o índio.

A ocupação dos espaços vazios, sobretudo dos hiatos sociaise territoriais fronteiriços, foi motivada grandemente pela sua nãoidentificação com a ideia de unidade e identidade apregoadas pelosdiscursos nacionais. A luta dos índios pela preservação do seu espaçotribal era tida como um problema que atentava contra o ideal de nação,uma vez que eles não se enquadravam no modelo de sociedade nacional,

231

que contrapunha “civilização e barbárie”. Índios, crioulos e caboclosbeiravam, a partir desse entendimento, os limites da civilização, umavez que a mobilidade social e espacial, a troca de produtos e a apropriaçãode suas territorialidades não expressavam o caráter estável de fixação doterritório. Eles favorecem, a partir do olhar de Adriana Dorfman (2009),o “contrabando”, burlam as regulações econômicas e o controle doterritório pelo Estado. A barbárie representava uma ameaça e apossibilidade da transgressão da fronteira do privilégio e do poder. Oshiatos das fronteiras como espaços indefinidos e sem identidade eramvistos como lugares incertos e sem futuro. Por essa razão, era preferívelplantar os marcos da “civilização” através de um povoamento seletivo,referenciado em sujeitos sociais portadores de um sistema socioculturalconstituído a partir da matriz européia. Partia-se do entendimento deque:

“Os europeus das classes inferiores são ávidos de possuir a terraem propriedade, este é o único fim de suas aspirações (...) Oscolonos irão defender a sua propriedade sem necessidade de outroestímulo que o do seu próprio interesse, o mais poderoso de todos”(IRIARTE, 1852, p. 30).

Nesse caso, a defesa da propriedade representava implicitamenteuma proteção à integridade territorial.

A política da colonização através da imigração se tornou pautacomum nas estratégias de ocupação territorial dos países fronteiriços datríplice fronteira Brasil, Argentina e Paraguai. Ela foi dando lugar àideia de fronteira agrícola, que passou a não ser rígida em relação aoslimites territoriais, mas dinâmica em função dos contingentespopulacionais que historicamente se deslocavam através de processosmigratórios dirigidos ou espontâneos. O incentivo à imigração deslocoufrentes agrícolas, com perfil étnico e cultural similar, portadores deelementos culturais alicerçados em símbolos, representações, práticas,hábitos e costumes em comum, norteados por referenciais éticos eestéticos responsáveis pela construção de espaços socioculturaismarcados pela ambiguidade das identidades. Se as condições político-institucionais se constituíram em fatores circunstanciados de negociação

232

e de adaptação cultural de um lado, de outro, a memória e a tradiçãorepresentaram os elementos constituintes da modelação social e daorganização dos espaços de recriação e de demonstração da cultura. Afragmentação de laços sociais imposta pelos limites da fronteira e aarticulação das diferenças identitárias não impediram que entre os núcleoscoloniais dos diferentes espaços fronteiriços os bens simbólicos emateriais historicamente constituídos fossem recriados, demonstrados ecomunicados.

A drástica redução populacional no Paraguai com guerra contra aTríplice Aliança fez com que a atração de colonos europeus se tornasseuma prerrogativa para fomentar o desenvolvimento interno do país. Apolítica imigratória paraguaia reduziu ao mínimo as exigências e os pré-requisitos para promover a imigração estrangeira (KLASSEN, 2001;MASKE, 2004). As terras do Estado situadas ao longo dos rios e dasferrovias foram colocadas à disposição dos imigrantes. A imigração alemãpassou a ser o alvo principal dessa política, uma vez que havia dadoresultados satisfatórios nos Estados Unidos, no Brasil e na Argentina.

No sul do Brasil os imigrantes alemães e seus descendentes,que haviam se estabelecido a partir de 1824, foram buscando novosespaços de colonização em função do esgotamento das fronteirasagrícolas. Assim, das colônias pioneiras foram se expandindo para asregiões da Serra, do Planalto, do Alto Uruguai e do Oeste Catarinense,em território brasileiro, transpondo as fronteiras para se estabelecer nosterritórios missioneiros de Corrientes, Misiones (Argentina) e Itapua(Paraguai). No início do século XX as frentes de colonização do sul doBrasil iniciaram a colonização de Puerto Rico, Eldorado e Montecarlona Argentina. A organização destes núcleos de colonização seguiu asdiretrizes da Associação Riograndense de Agricultores – Bauerverein,que estabelecia um modelo de ocupação social do espaço centrado napequena propriedade familiar, na organização comunitária - com vínculossocietários firmados a partir da solidariedade étnica - e no associativismo.(SCHALLENBERGER, 2010). Lideranças emergidas da Bauerverein,a exemplo do jesuíta Max von Lassberg e do agrimensor evangélicoluterano Helmut Culmey, exerceram mediação importante na escolhados espaços de colonização e na organização e constituição dos núcleosde povoamento. Essas frentes de colonização foram atraídas pela política

233

imigratória do Paraguai e no início do século XX fundaram nas terraspróximas as margens do rio Paraná, nas imediações das reduções deTrinidad e Jesus, a colônia de Hohenau, seguida das de Bela Vista eObligado (KLIEWER, 1941).

Os colonos de ascendência étnica alemã do sul do Brasil que seestabeleceram nos territórios argentino e paraguaio, apesar das fronteirasterritoriais e institucionais, mantiveram vivas relações culturais atravésde correspondências, impressos e encontros, o que representa de certaforma uma rede de relações que caracteriza um espaço culturaltransfronteiriço. A produção social desse espaço tornou presente ummundo simbólico e de referência ética e estética que identifica estesmigrantes, traduzido em equipamentos que refletem a organização fa-miliar, comunitária, associativa e cooperativa, presentes na cultura ma-terial destes grupos étnicos até os dias atuais. As fronteiras políticoterritoriais não representam, neste caso, uma ruptura dos elos culturais,mas se interpõem como elemento distintivo em relação ao lugar daprodução e da recriação da cultura, situando os colonos imigrantes eseus descendentes num ambiente de ambigüidade de identidades – aétnica e a nacional.

As circunstâncias históricas que envolvem a mobilidade dasfronteiras no período que sucede a fase da constituição dos núcleos decolonização reservam aos pesquisadores temas com aderência àsatividades relacionadas à troca de bens e mercadorias (remédios,alimentos, pneus e outros), que sugerem a observação não só a partir daperspectiva da contravenção, mas, também, da complementaridade e dainteração num cenário socioeconômico fronteiriço. Pode se entender destaforma que: “(...) comércio e contrabando são, pois, as faces de uma mesmaatividade, a troca de bens e mercadorias, que atendem às necessidadesda região” (SOUZA, 1996, p. 126). Por outro lado, o tráfico, o crimeorganizado e o furto passaram a dilacerar de forma crescente os laçossociais e transformaram os lugares de fronteira em espaços incertos eperigosos, inibindo valores como os da autenticidade, da criatividade eda liberdade.

A projeção vertical de estratégias geopolíticas de desenvolvimentoregional e de controle territorial, a exemplo da ITAIPU Binacional,promoveu deslocamentos que redefiniram o conceito de fronteira e

234

afetaram as relações culturais nos espaços fronteiriços. Além de trazernovos atores sociais para o cenário regional, a nova configuração espacialpromoveu uma mobilidade social marcada pela migração interna etransfronteiriça, responsável pela desconstituição de fronteiras culturais,pela efemeridade das relações sociais e pela insegurança nas e dasfronteiras. A instituição do MERCOSUL, mesmo tendo entre os seusobjetivos, o de integrar os controles nas fronteiras internas, não conseguiudar conta da percepção da sua vulnerabilidade, e, tampouco, da integraçãoeconômica, social e cultural das populações que nelas residem e semovimentam.

Em circunstâncias e contextos históricos diferentes dos quemobilizaram as frentes imigratórias espontâneas, incentivadas pelaspolíticas de colonização e de fixação dos territórios nacionais, a injunçãodo processo de expansão capitalista, sobretudo a derivada da vertente doagronegócio, passou a exercer pressão sobre a propriedade da terra e,consequentemente, comprimir as pequenas unidades produtoras,obrigando os seus usuários a buscarem espaços produtivos em novasfronteiras internas ou externas. Esses deslocamentos geraram umfenômeno cultural complexo que pode ser observado a partir daambiguidade dos sentidos construídos pelos atores sociais que semovimentam neste novo cenário. É um processo constituinte de relaçõesculturais marcadas pela permanência, referenciada na memória e natradição, pela negociação cultural e, em certos casos, por certo hibridismocultural, que enseja o novo.

É pertinente que neste longo tempo histórico, da conquistaterritorial da América Meridional à negociação continuada das fronteirasnacionais, as lentes teóricas do pesquisador visualizem a possibilidadede novos modos de existência e de novas relações socioculturais quepermitam entender experiências societárias inovadoras – heterotopías(FOUCAULT, 2000). Estas experiências desconstituem as utopiaspreconcebidas, inquietam, alteram sentidos, invertem relaçõesdominantes e definem espaços reais, construídos pelos movimentoshistóricos da conquista, da colonização e da interação das frentesimigratórias com os atores sociais dos diferentes ambientes culturais(RUIDREJO, 2006). A acomodação teórica que privilegia tão somenteas relações verticais de poder como forma simples de subjugação de um

235

mundo cultural por outro é muito cômoda e pouco crítica. Conduz àadmissão de certo estado de inferioridade e impotência que tributa aopassado a dependência estrutural da América Latina e a sua incapacidadede superar os desafios presentes de uma possível mudança socioculturale política.

NOTAS EXPLICATIVAS

1 Doutor em História e Professor Associado da Unioeste/Campus de Toledo, onde atua na Graduação e Pós-Graduações em Ciências Sociais (Mestrado) e Agronegócio e Desenvolvimento Regional (Mestrado eDoutorado).2 A Grande Guerra se refere ao conflito da Tríplice Aliança Argentina, Brasil e Uruguai com o Paraguai.

REFERÊNCIAS

ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. 6ª ed. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira; Brasília: INL, 1976.

ALBERDI, Juan Baustíta. Fundamentos da organização política da Argentina. Tradução AngelaMaria Naoko Tijiwa, Campinas: Editora da Unicamp, 1994.

ALSINA, Alfonso. La nueva línea de fronteras. Memoria especial presentada al HonorableCongreso Nacional por el Ministro de la Guerra. Buenos Aires: Porvenir, 1877.

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas - Reflexões sobre a origem e a difusão donacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

________. Comunidades imaginadas. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia das Letras, 2008.

ANGELIS, Pedro de. Colección de obras y documentos relativos a la Historia Antigua y Modernade las provincias del Río de La Plata. Tomo IV, Buenos Aires: Imprenta del Estado, 1836.(Edição digital da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2002). Portal: Academia Argentinade Letras

BARCELOS, Artur H. F. Mergulho no Seculum: exploração, conquista e organização espacialjesuítica na América espanhola. (Tese) Porto Alegre: PUCRS, 2006.

BHABHA. Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.

BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo, RS: Editora UNISINOS, 2010.

CARDOZO, Aníbal. La crítica de la arquitetura como crítica de la cultura. El caso paraguayo.In: SANCHO, A. T; MARTÍNEZ, J. M. B. Pensar en Latinoamerica. Asunción: Jakembó Editores,2006, pp. 125-129.

CARDOZO, Efraim. Breve Historia del Paraguay. Asunción: El Lector, 1987.

________. El Imperio del Brasil y el Río de la Plata. Antecedentes y estallido de la guerra del

236

Paraguay. Buenos Aires: Librería del Plata, 1961.

CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (1750). Rio de Janeiro:Instituto Rio Branco, 1951, Parte III, T.I.

DORFMAN, Adriana. A cultura do contrabando e a fronteira como um lugar de memória. EstudiosHistóricos – CDHRP, Nº 1, mayo 2009.

FEIBER, Silmara Dias. O espaço estético como expressão social na arquitetura jesuítica – umaabordagem geográfica. Curitiba: UFPR (tese de doutorado), 2013.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo:Martins Fontes, 2000.

FRANCO, José E.; RITA, Annabela. O mito do Marquês de Pombal – a mitificação do primeiro-ministro de D. José pela maçonaria. Lisboa: Prefácio, 2004.

FURTADO, Júnia Ferreira. Guerra, diplomacia e mapas: a Guerra da Sucessão Espanhola, oTratado de Utrecht e a América portuguesa na cartografia de D’Anville. Topoi, v. 12, n. 23,jul.-dez. 2011, p. 66-83.

GEERTZ, Cliford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

GONZALEZ, Teodósio. Infortúnios del Paraguay. Buenos Aires: Talleres Graficos ArgentinosL. J. Rosso, 1931.

IRIARTE, General Tomás. Memoría sobre inmigración y línea de fronteras sobre los índiossalvaje. Buenos Aires: lmprenta de! Estado, 1852.

KLASSEN, Peter. Die Mennoniten in Paraguay: Reich Gottes und Reich dieser Welt. Bolanden-Weierhof: Mennonitischer Geschichtsverein, 2001.

KLIEWER, Friedrich. Die deutschen Volksgruppen in Paraguay. Hamburg: Verlag Clio, 1941.

MAFFESOLI, Michel. O imaginário é uma realidade. Revista FAMECOS, Porto Alegre, N.15, pp 74-82, 2001.

MASKE, Wilson. Entre a Suástica e a Cruz: a fé menonita e a tentação totalitária no Paraguai.Curitiba: UFPR (tese de doutorado), 2004.

NÚÑEZ CABEZA DE VACA, Álvar. Comentários. Curitiba: Farol do Saber, 1995.

NÚÑEZ GÓMEZ, Demétrio Gustavo. Limites territoriales: deuda de guera impuesta al Paraguaytrás la guerra de la Tríplice Alianza - pasado-presente. In: SCHALLENBERGER, Erneldo (org).Identidades nas fronteiras: territórios, cultura e história. São Leopoldo: ÓIKOS, 2011, pp. 100-138.

QUESADA, Vicente G. História diplomática latino-americana III – La política imperialista delBrasil y lãs questiones de limites de lãs republicas sudamericanas. Buenos Aires: Casa Vaccaro,1920.

QUEVEDO, Charles. La identidad cultural a partir de la teoria postcolonial. In: SANCHO, A.T; MARTÍNEZ, J. M. B. Pensar en Latinoamerica. Asunción: Jakembó Editores, 2006, pp. 235-240.

237

RUIDREJO, Alejandro. Foucault. de las Repúblicas Guaranies del Paraguaya uno ontologiade nuestro presente. In: SANCHO, A. T; MARTÍNEZ, J. M. B. Pensar en Latinoamerica.Asunción: Jakembó Editores, 2006, pp. 241-251.

SCHALLENBERGER, Erneldo. Associativismo cristão e desenvolvimento comunitário –Imigração e produção social do espaço colonial no sul do Brasil. Cascavel: EDUNIOESTE,2009.

SCHMÍDEL, Ulrich. Viaje al Río de la Plata (1534-1554). Buenos Aires: Cabaut y Cia. Editores,1903, LI, LII.

SOUZA, Susana B. de. Os caminhos e os homens do contrabando. In CASTELLO, Iara Regina(Org.) Práticas de Integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. Porto Alegre: Editora daUniversidade/UFRGS. 1996.

TAUNAY, Affonso d’E., O bandeirismo e os primeiros caminhos do Brasil, em: Curso debandeiralogia. São Paulo: Departamento Estadual de Informações, 1946.

WACHOWICZ, Ruy C. Obrageros, mensus e colonos – história do oeste paranaense. 2 ed.Curitiba: Vicentina, 1987.

238

239

APUNTES SOBRE LOS MÁRGENES: FRONTERAS,FRONTERIZACIONES, ÓRDENES

SOCIOTERRITORIALES

María Lois1

Hace unos meses, cuando comenzaba a recopilar informaciónperiodística para incluir en un artículo sobre fronteras en América Latina,dos noticias llamaban mi atención; el día 24 de abril, Bolivia presentabauna demanda contra Chile ante la Corte Internacional de Justicia de LaHaya (Holanda), reclamando una salida al mar, al Océano Pacífico2. Casial mismo tiempo, se publicaba una actualización del Eurobarómetro,cuyos resultados establecían que el 62 % de los encuestados afirmabaque la libertad de circulación sería el principal logro del proyecto deintegración desarrollado por la Unión Europea3.En ambas noticiasencontraba algunas de las características generalmente más difundidasde los imaginarios ligados a las fronteras: por una parte, los diferendosfronterizos, las disputas por los límites en América Latina. Profundizandoen la cronología de la noticia, podríamos interpretar que elcuestionamiento del límite marcado en el tratado de Paz y Amistadfirmadoen 1904 y los discursos estadocéntricos que despliegan ambaspartes respecto a la opinión pública recolocaría a las fronteras, a sudelimitación, en el centro de la soberanía estatal. La instancia implicadaen la resolución de la demanda jurídica, un tribunal localizado en Europa,remarca la vinculación de los diferendos con los procesos de colonizacióny descolonización de la región, re-creados algunos siglos después, peroirremediablemente anclada en el pasado. Mientras tanto, en medio deuna crisis económica y política, en el espacio de la Unión Europea la

240

normalización de la libre circulación entre países miembros podríaconvertirse en el baluarte de un proyecto institucional claramentecuestionado. Incluso podríamos asumir que la mayoría de los ciudadanosentienden el espacio Schengen como un territorio de libre circulación,con un régimen de movilidad absolutamente laxo, practicado por nómadaslibres de las ataduras territoriales de los viejos Estados.

En ese universo de cosmopolitanismo líquido, las fronterasinterestatales serían poco más que reliquias de un pasado lejano. Estalectura del pulso fronterizo en ambos lados era, sin duda, un lugar seguro,confortable, desde la que comenzar a escribir un capítulo de un volumencolectivo a publicar en Brasil. Algunos de los atributos de la imaginacióngeopolítica moderna (AGNEW, 2005) me empujaban definitivamente aseguir esta línea: la evocación de una división regional, jerárquicamentedefinida, donde uno de estos bloques, a causa de su carácter extraeuropeo(por tanto, más atrasado en experiencia histórica), estaría atrapado enun intento de significarse a partir de uno de los atributos claves de labúsqueda de un lugar en el horizonte político, esto es, a través delcuestionamiento territorial de la imaginación estatal, a través de unademanda por la delimitación fronteriza. Una generalización de estascaracterísticas, ayudada por las recurrentes noticias sobre diferendospendientes de resolución en América Latina, proporcionaría una visiónhomogénea de las características sociopolíticas de la región, definidadesde su división territorial respecto a otros espacios. La cuestión esque, desde la incomodidad intelectual que produce un cierto escepticismohacia las divisiones regionales en particular, y hacia la Transitología engeneral, me parecía más imaginativo proponer, desde el mismo contextode producción, una visión algo desenfocada, proyectada desde unaminúscula incisión dentro de las miradas preferentes.

Así, el presidente boliviano Evo Morales inauguraba, casi un parde meses después de la incursión en La Haya, un tramo de carretera delCorredor Bioceánico Pacífico-Atlántico4. Proyecto mayoritariamentefinanciado por la Corporación Andina de Fomento (CAF), esta ruta uniríalos puertos atlánticos del sur de Brasil con los del norte de Chile a travésde territorio boliviano, desde una imaginación transfronteriza deintegración regional entendida como un necesario impulso al comercio.También, a principios de junio, se debatía en el Parlamento Europeo las

241

dimensiones de una reforma de la regulación del espacio Schengen5 ;cuestión recurrente desde la denominada ‘primavera árabe’, e impulsadadesde la Comisión, la idea sería regular los requisitos necesarios, elcontenido de las circunstancias excepcionales necesarias para justificarla reintroducción temporal de controles internos, en las fronterasinterestatales6. En esta segunda incursión en el mundo de las noticiassobre fronteras, la referencia a diferentes proyectos de integración en laregión latinoamericana iba en paralelo a las reincidentes peticiones devarios países miembros de la UE de una mayor flexibilidad en lascondiciones de suspensión unilateral del tratado de Schengen. Lasimaginaciones regionales en torno a dinámicas fronterizas se saturabancon diferentes ángulos y perspectivas, que se cruzaban para incorporar,por un lado, proyectos de integración en América Latina, que implicanal país envuelto en un diferendo fronterizo por la salida al mar con Chile;y, por otro, la poderosa visión de las fronteras como dispositivo de con-trol de movilidad, periódicamente desplegada como icono territorialcontra la inseguridad de los estados de la Europa occidental.

La tercera etapa del recorrido periodístico sobre fronteras llegabaa una localización desordenada, esto es, la de las fronteras de la UniónEuropea en América Latina7. En realidad, el ejemplo paradigmático deuna fronteras localizada más allá de la mirada regional. Surinam reclamaa la Guyana francesa la soberanía de un área de 5.000 kilómetroscuadrados situados entre el río Marouini (Maroni) y el Litani (Itany),ambos afluentes del río Lawa. El diferendo, como es frecuente, data detiempos coloniales, cuando Francia y Holanda sometieron la disputa alzar ruso en 1891. Surinam aceptaba en un principio la frontera propuestapor Holanda en el momento de su independencia (1975), aunque luegose mostraba dispuesto a aceptar la delimitación propuesta por Francia(1977), a cambio de ayuda para el desarrollo. Sin embargo, un acuerdomás reciente cerrando la diferencia estaría pendiente de ratificación.

Maroni es también el apellido de un ex ministro de Interior italiano,Roberto. Maroni fue el promotor y responsable de la implementación,en 2008, del llamado Pacheto Sicurezza (algo así como Paquete deSeguridad), la primera de una serie de medidas periódicas destinadas amantener la seguridad en el país. En su primera edición, el Paqueteelevaba a la categoría de delito la inmigración irregular, criminalizando

242

y racializando al sujeto móvil a través del vínculo entre los asentamientosgitanos en ciudades como Roma o Verona, y la inseguridad ciudadana,en línea con el discurso y la práctica política de su partido, la Liga Norte.Pese a las continuas denuncias públicas de racismo y xenofobia, la defensadel gobierno italiano de la suspensión del tratado de Schengen, y su usode las fronteras como dispositivo territorial de control de movilidad,convertía a Rumania, país miembro de la UE y también de origen departe de estos colectivos, en el último peldaño de una gradación demembresías dentro de la Unión, la de los ciudadanos abyectos de Europa(HEPWORTH, 2012).

En torno a los Maronis, entonces, se reconfirmaba ya lasuperposición de significados complejos y formatos diversos de lasfronteras en Europa, donde se mezclan el topónimo de un accidentegeográfico utilizado como marcador de las delimitaciones territorialescolonialescon los diferentes estatus de ciudadanía ligados a los regímenesde movilidad de la Unión Europea; pero también están las prácticas defronterización de la Unión Europea, ligadas a la ayuda al desarrollo comoespacio de transacción y eliminación de las diferencias políticas8, que,en este caso, aparecen como mecanismo clave de la negociación deldiferendo por parte del receptor latinoamericano, de Surinam; al tiempo,nos encontramos con un diferendo en el trazado del límite fronterizo, eneste caso, en la frontera europea localizada en la región latinoamericana.

Toda esta incursión periodística abunda en las aristas de lasnociones de límites y de fronteras; más allá de lo anecdótico, aparecenvisiones fragmentadas, procesos superpuestos, donde las fronteras y loslímites cambian, se trasponen, y, sobre todo, muestran especificidadesculturales e históricas, por su carácter de procesos multidimensionales.Establecen y marcan referentes, espacializan contextos geohistóricos derepresentación del espacio y el tiempo colectivos, y por tanto, deproducción y reproducción del orden social, afectando no solo a lasprácticas materiales, sino también a la comunidad de destino, a losespacios de imaginación cotidianos, desde donde construimos loshorizontes simbólicos de las prácticas y representaciones sociopolíticas.Como acabamos de ver, las formas en las que se delimitan y definenesas comunidades espacialmente están en cambio constante. Lasocialización espacial, entendida como proceso a través del que los actores

243

individuales y las colectividades son socializados como miembros deentidades territorialmente delimitadas y adoptan formas específicas depensamiento y acción (PAASI, 2007:15; 1996:54), está en permanenteconstrucción y reconstrucción. Por tanto, el orden socioterritorial,también.

La reflexión que presento a continuación es un conjunto de apuntessobre las fronteras en Europa, desde una geografía política fragmentada,y con vocación provinciana. A partir de la perspectiva – últimamentepopularizada por la crisis- de los múltiples espacios europeos, la idea esmostrara una serie de dinámicas que ocurren en el contexto de las fronterasinterestatales de la Unión Europea como pretexto, desde el parroquialismoy la inevitable heterogeneidad espacial, para plantear algunas cuestionesen torno al papel de las fronteras en el contexto europeo, a sus insalvablesparadojas, a la variabilidad de sus espacios y sus tiempos, a sus vínculoscon la territorialidad y la imaginación geopolítica moderna y, en definitiva,a la experiencia del homo geographicus (SACK, 1997) contemporáneo9.

LAS FRONTERAS Y LA GEOGRAFÍA POLÍTICA10

Desde el inicio de su conceptualización por la ciencia socialmoderna, la frontera ha viajado mayoritariamente acompañada de susignificado como límite. Considerado uno de los fundadores de laGeografía Política moderna, Ratzel definía a las fronteras como “el órganoperiférico del Estado, el soporte de su crecimiento así como sufortificación, y participan en todas las transformaciones del organismodel Estado” (RATZEL, 2011: 147).

De este modo, Ratzel situaba el discurso sobre las fronteras en unplano localizado más allá de lo político: podríamos diferir en términosde instituciones, de su mayor o menor efectividad; del diseño político.Pero si el territorio era para Ratzel el cuerpo “natural” del Estado, sufrontera tendría que ajustarse a su crecimiento, no por imperativo político,sino por necesidad vital. Precisamente por su deriva orgánica, Ratzel nopensaba las fronteras como realidades inmutables, sino como parteconsustancial del cuerpo político, de la comunidad política que no podíaconcebir sin fronteras.

La mayoría de los trabajos sucesivos sobre fronteras abundaban

244

en esta concepción naturalista, prescriptiva respecto a la existencia defronteras, y a su dimensión de límite lineal. Así, el coronel Holdich, porejemplo, en una de sus más conocidas investigaciones sobre límites,cualificaba específicamente su carácter: “deben ser barreras, que cuandono son geográficas y naturales deben ser artificiales y tan fuertes comoel dispositivo militar pueda hacerlas” (HOLDICH, 1916: 46). Lanaturalización del límite fronterizo, desde un énfasis en su dimensióndefensiva y su vinculación con la soberanía territorial de los Estados,era uno de los rasgos fundamentales de los ejercicios de delimitaciónfronteriza de finales del siglo XIX y principios del XX. Algunos añosmás tarde, en consonancia con la evolución de la disciplina, comienzana publicarse trabajos descriptivos enfocados ya desde la hegemónicaperspectiva funcionalista. Buenos ejemplos serían las clásicasaportaciones de Hartshorne (1936) o Boggs (1940), que incluían yatipologías de fronteras. En todo este período, esto es, la primera mitaddel siglo XX, los trabajos publicados desde la Geografía Políticacontinuaban siendo prescriptivos, incidiendo repetidamente en laimportancia de delimitar, demarcar y administrar correctamente lasfronteras. La idea básica era que una demarcación adecuada evitaríaque los territorios de los Estados fueran fuente de conflicto.

Los años 1970 supusieron un cambio tanto en la Geografía Políticacomo disciplina como en los estudios sobre fronteras. Trabajos comolos de Guichonnet y Raffestin (1974), y algo más tarde, el de Foucher(1991) colocaban la investigación sobre fronteras dentro de una visiónmás amplia, al conectarla con la discusión central de la subdisciplina,esto es, la relación entre espacio y poder.Estas aportaciones comenzarona cuestionar algunos de los mitos en torno a la naturalidad de los límitesfronterizos, y, definitivamente, abrieron nuevas vías en suconceptualización. Pero será en los años 1990 cuando se transformedefinitivamente el panorama de la investigación sobre fronteras, en buenaparte gracias a la generalización de retóricas político-territoriales desdedonde se proyectaban nuevas bases fundacionales para el mapa políticomundial. Así, en una conocida revisión sobre narrativas en torno a límitesy fronteras, Newman y Paasi (1998) identificaban varias de las principalescuestiones en torno a las que giraba la investigación en aquellos años.Una de ellas, muy presente en las investigaciones en torno a los llamados

245

“procesos de globalización” (MATO, 2001), era la que asumía unaprogresiva desaparición de las fronteras (1998: 191; ver, por ejemplo,OHMAE, 1990). El referente de un futuro mundo sin fronteras seconvertía en una cuestión de discusión durante al menos una década. Sinembargo, el paso de los años confirmaba no sólo la pervivencia de lasfronteras, sino también su multidimensionalidad espacial y temporal,algo que periódicamenteobliga a actualizar debates teóricos ymetodológicos. En palabras de Balibar, “vivimos en una coyuntura deconstante vacilación de las fronteras ¯tanto de su trazado como de susfunciones¯ que es, al mismo tiempo una vacilación de la propia nociónde frontera, que se ha convertido en particularmente equívoca”(BALIBAR, 1998: 217-218). La equivoca noción de fronteras, entonces,requiere una persistente e inconfortable actualización en la incorporaciónde perspectivas, contextos y herramientas de análisis desde las que trabajarsu complejidad.

EL QUÉ Y EL CÓMO EN LOS ESTUDIOS DE FRONTERAS

En los últimos años, muchos son los trabajos que han insistido enla necesidad de adoptar una perspectiva multidimensional en lainvestigación sobre fronteras (PERKMANN-SUM, 2002; PAASI, 2005;NEWMAN, 2006; VAN HOUTUM et al, 2005; AGNEW, 2008; KUUS,2010; ZAPATA-BARRERO, 2012; ZÁRATE, 2012), y en suconceptualización como procesos históricamente contingentes(NEWMAN y PAASI, 1998: 201). Si las fronteras crecieron como partede los Estados y de su creación, las identificaciones políticas se construyena través de “prácticas de fronterización” (bordering practices) (KUUS,2010: 671-672), entendidas como “una amplia gama de procesostransformativos y afectivos en los cuales los órdenes y desórdenes socialesy espaciales son constantemente reelaborados” (WOODWARD y JONES,2005: 236). Re-pensar las fronteras a través de las prácticas defronterización supone entender dichas prácticas como algo implícito enla construcción de esas fronteras, no analizables como desarrollosincompletos o acabados, “sino en constante proceso de materialización”(PROKKOLA, 2008: 15). Asumir, entonces, el carácter equívoco de lasfronteras (AGNEW, 2008: 176), y los cambiantes y contradictorios

246

procesos en torno a su constante reproducción, se convertía, en la décadade 2000, en una posibilidad de superar una conceptualización de lasfronteras en términos binarios, como mecanismos de delimitación entreEstados; al tiempo, permitía dejar de pensarlas como lugares en procesode desaparición, o como estructuras permanentes, estáticas yespacialmente localizables. Si bien las fronteras han sido proyeccionesterritoriales del poder infraestructural del Estado (O´DOWD, 2010),imaginarlas como las líneas fronterizas en las que se materializa el con-trol político y social a través de la separación de espacios dejaría de ladouna amplia gama de matices desde los que mirarlas.

En ese sentido, y retomando el ejercicio de la mirada cruzada en-tre Europa y América Latina, podría ser paradigmática una anécdotarelativamente reciente. En octubre de 2012 recibía un mail de una colegaargentina; a raíz de una baja de última hora, una hermana suya venía aMadrid, a presentar su trabajo en un Congreso internacional sobreeducación, y pedía ayuda para entrar en España. En Buenos Aires, seacercaba a la Cancillería a averiguar cuáles serían los requisitos para suingreso en el país. Allí le hicieron una lista interminable, siendo la visitade la contraparte en destino a la Comisaría un requisito innegociable; endicha Comisaría, en Madrid, además de unos plazos de inicio imposiblesde cumplir ante la inminente llegada, se requería una carta de invitación,firmada ante notario, además de otra serie de pruebas fehacientes desituaciones de copresencia previa respecto a la persona invitada. Tratandode descifrar los códigos de las prácticas burocráticas desplegadas en tornoa la entrada en España, el contacto con individuos que habían cruzadoesa frontera, y en mayor o menor medida familiarizados con esta práctica,nos llevó a decidir que una carta de invitación explícita del Congreso,un billete de avión cerrado y una reserva en un hotel de dos días podríaser una forma de solucionar la cuestión de cruzar la frontera para unviaje de trabajo. En el aeropuerto de Barajas nadie preguntó nada. Ni aqué venía ni cuándo se iba, ni dónde se quedaba ni cuando era su fechade regreso. El viaje se completó sin necesidad de más pruebasdocumentales que un pasaporte en vigor. La construcción de redes yprocesos burocráticos articulada por actores institucionales sedesmantelaba ante la implementación de los agentes de política fronteriza:al tiempo, se hacía evidente la vinculación entre la construcción de

247

frontera y la capacidad de agencia, esto es, individuos o colectivos quesubvierten, cuestionan o construyen esa frontera, y las especificidadesde su cruce.

Así, la anécdota redundaba en cuestiones de trabajo fundamentales:¿dónde estaba el límite fronterizo en este viaje?, ¿en los agentes deseguridad que trabajan en el aeropuerto de Barajas?, ¿en la comisaríadel barrio de destino?, ¿en el notario que certifica una carta de invitación?,¿en los funcionarios de la Cancillería del país de origen?, ¿en las narrativasde las personas que desafiaron el ritual oficial en base a su propia visióny experimentación de la esa frontera?... En definitiva, aparecía claramenteuna pregunta clave: ¿cómo y para quién se proyecta la fronterizaciónentre ambos Estados? El mismo tipo de cuestiones, formuladas de unmodo más elaborado y académico, también ha sido motivo de una recientediscusión entre expertos (JOHNSON et al, 2011: 61-69): ¿dónde está lafrontera en los estudios sobre fronteras? Abordar la investigación sobrefronteras como mecanismos multidimensionales de la producción delímites, pero en múltiples escalas y en múltiples lugares requiere tambiénuna mayor sofisticación conceptual que permita incorporar diferentesescalas, actores, prácticas y contextos a un marco teórico general. Losplazos de solicitud de una certificación notarial, la virtualización de laemisión de visas, la creación de fronteras supraestatales, o las narrativas,experiencias y visiones de individuos y colectivos remiten a prácticas defronterización alejadas del límite fronterizo, y que han de formar partenecesariamente de un marco de referencia donde el tiempo y el espaciofrontera son elásticos. La frontera se disloca espacialmente (e.g., enoficinas policiales, aeropuertos, oficinas de emisión de visados, tercerospaíses, etc.), y se dilata temporalmente, en un proceso que va muchomás allá de la inmediatez del cruce del límite fronterizo.

El cómo se despliegan y producen prácticas de fronterización seconfirmaba, entonces, como cuestión de investigación (LOIS Y CAIRO,2011), entonces. El dónde, obviamente, también, desde una imperiosadesencialización de la relación entre contexto geográfico y dinámicas defrontera. Así, el acercamiento al contexto europeo de la Unión Europeaserá el pre-texto para ir dando contenido a unos apuntes parafuturasinvestigaciones.

248

FRONTERAS EN EUROPA: LUGARES PARA EL CENTRO,LUGARES PARA LA PERIFERIA

Siguiendo la lógica experimental más clásica, la espacializacióndel proyecto institucional de la Unión Europea sería uno de loslaboratorios más interesantes para acercarnos a procesos defronterización, y a los significados territoriales de la idea de Europa. Poruna parte, una de las principales consecuencias de la construcción delespacio Schengen ha sido el fortalecimiento del límite exterior de laUnión, en una suerte de frontera móvil, ligada a los procesos deampliación de la UE hacia los nuevos miembros, pero, al mismo tiempo,explícitamente delimitada. Así, acciones como las desarrolladas a travésde FRONTEX y los acuerdos con Terceros Países Seguros (CASAS etal, 2011), además de externalizar el propio control fronterizo, incidenen la dinámica de dislocación espacial y temporal de la frontera,mostrando su permeabilidad selectiva. Al tiempo, confirman, entre otrascosas, una racialización de la migración (VIVES, 2011), que se repro-duce transversalmente y estructura imaginarios en torno a característicasfísicas y lugares de procedencia (van Houtum, 2010). Estas dimensionesse han ido configurando como claves en la producción de un imaginariode frontera, y en su concepción como dispositivo de control de lamovilidad, al estilo Maroni. Sin embargo, en un territorio atravesadopor procesos de desigual espacialización de los límites, también semultiplican las perspectivas éticas y políticas en torno a las fronteras; sibien una parte de los estudios sobre fronteras de/en Europa se centran enun imaginario fronterizo espectacularizable, hiperrepresentado a travésde las prácticas de riesgo y represión de su cruce irregular y en losmecanismos de seguridad proyectados de manera similar al esquemade territorialidad estatal más clásica, la presencia de diferentes regímenesde movilidad, desiguales procesos de acceso, y, en definitiva, de modosvariables y móviles de construir frontera en el mismo espacio de referenciaes cada vez más frecuente11.

Mientras tanto, en las soporíferas fronteras interestatales de laUnión, se dirimen los contenidos políticos de las circunstanciasexcepcionales que se negocian a través de prácticas como los controles

249

de pasaportes en la frontera entre España y Francia al entrar en el Trainà Grande Vitesse (TGV) francés; la ausencia de ellos en algunos de loslímites que cruzan los autobuses de larga distancia;o las cámaras devigilancia instaladas en la parte holandesa del límite fronterizo conAlemania. En términos de procesos internos, la entrada en vigor deltratado de Schengen también condiciona la imaginación espacial delproyecto de la UE. Así, incorporamos una de las geniales paradojas queDiez (2006) describe como inevitablesen un trabajo sobre Europa y laUnión Europea, esto es, que el reconocimiento de las fronterasinterestatales multiplica los significados de estos límites; su des-securitización implica una subversión de su dimensión más evidente(DIEZ, 2006: 238-239), la de diferenciación territorial de grupos sociales;y, al tiempo, una volátil y constante re-inscripción de las fronteras en laimaginación geográfica cotidiana en relación al proyecto espacial de laUnión.

En cualquier caso, la imaginación espacial ligada a la UniónEuropea es la de la Europa de las regiones; estas funcionarían como unconjunto de entidades funcionales que conectarían y mejorarían lacompetividad de las regiones en diferentes escalas. Este proceso sematerializaría en “la introducción de nuevos procesos y estructurasinstitucionales que funcionan en nuevas escalas y transgreden las fronterasestatales, creando nuevas posibilidades de acción” (JENSEN yRICHARDSON, 2004: 24). Así, la política regional de la Unión Europease basa en crear regiones capaces de desempeñar plenamente su papelen favor de un mayor crecimiento y competitividad e intercambiar almismo tiempo ideas y buenas prácticas. Este es precisamente el objetivoteórico de la iniciativa “Las regiones, por el cambio económico”12: lapolítica regional en su conjunto coincide con las prioridades que se fijala Unión Europea en favor del crecimiento y el empleo, tal y como serefleja en documentos programáticos clave, como la Estrategia de Lisboa.

Esa es la teoría. Pero resulta interesante ver también cómo sepractica la frontera, a través de qué mecanismos se subvierte susignificado. Así, en términos de prácticas institucionales, el 75% de lasregulaciones de la UE son implementadas a nivel de las regiones (EVERS,2006: 81, apud LAMBREGTS et al., 2008: 46), y alrededor de un terciodel presupuesto comunitario se destina al desarrollo regional. Dentro de

250

ese proceso, la regionalización transfronteriza se habría convertido enun icono de la política territorial de la Unión. Entendiendo por regióntransfronteriza aquella entidad territorial que contiene unidadessubnacionales de uno o más Estados (PERKMANN y SUM, 2002:3), elproceso de regionalización implicaría, al menos teóricamente, a losactores regionales y locales (institucionales y no institucionales; públicosy privados) en estrategias de desarrollo, a través de la promoción deformas de gestión donde el Estado ya no sería el principal agente deregulación política. Son instrumentos como las iniciativas INTERREGo las Redes Transeuropeas los que aportan el marco regulador de laconstrucción del desarrollo de regiones transfronterizas; de hecho, elterritorio de la Unión Europea suele presentarse como el territorio defronteras por excelencia: “las regiones fronterizas representan el 40%del territorio de la Unión Europea y un 25% de su población […] Lasregiones situadas enteramente a lo largo de las fronteras internas de laUnión, esto es, las fronteras entre estados miembros, forman un grupoheterogéneo que supone el 27% del territorio de la Unión y el 18% de supoblación” (EC 2002). Tras las sucesivas ampliaciones, “el aumento delsuelo fronterizo comunitario y su extensión implica que el valor añadidode la cooperación transfronteriza (…) debe ser incrementado” (EC 2006/1083). En ese sentido, los programas de trabajo de la Unión Europeapara resignificar las fronteras entre los Estados miembros se basan en unmodelo de desarrollo cuyo eje fundamental sería el turismo.Especialmente desde la firma del Tratado de Maastricht, en 1992, elturismo ha pasado a ser oficialmente reconocido como uno de los ejesfundamentales del desarrollo promovido por la UE: “La infraestructuracreada para el turismo contribuye al desarrollo local, y se crean omantienen puestos de trabajo incluso en zonas en declive industrial orural, o que están en proceso de regeneración urbana. La necesidad demejorar el atractivo de las regiones sirve de incentivo para que un númerocreciente de destinos y partes interesadas promuevan prácticas y políticasmás sostenibles y positivas respecto al medio ambiente”13. El turismo serepresenta como futura actividad económica y motor de desarrollo enlas periferias rurales de Europa, entre las que se encuentras las zonasfronterizas de los diferentes Estados. Así, el desarrollo del turismo estaríavinculado con la promoción de una conciencia regional y, al tiempo,

251

refleja la ambición de promover la integración a través de las fronterasinternas de la Unión (PROKKOLA, 2007: 124). Este modelo dedesarrollo, presente no sólo en el mencionado INTERREG, sino tambiénen iniciativas como el LEADER, la Carta Europea del Turismo Sostenibleo la Agenda 21, presenta características específicas: “El turismo sostenibledesempeña un papel esencial en la preservación y la rehabilitación delpatrimonio cultural y natural en un número creciente de ámbitos, queabarcan desde el arte a la gastronomía local, pasando por los oficios o lapreservación de la biodiversidad”14.

Las iniciativas de la Unión Europea, entonces, suponen una fuentede financiación para las actividades fronterizas, con la intención de“promover redes transfronterizas e identidad regional”, incluyendo unsubprograma para iniciativas turísticas y culturales15. Las regionesperiféricas se integrarían así en redes institucionales y centros de tomade decisiones; las prácticas y los discursos de desarrollo que afectan aestos ámbitos “vinculan el destino turístico a estructuras regionales yeconómicas más amplias, y, finalmente, a la economía mundial y lacirculación de capital y de cultura. Al mismo tiempo, sirven como unaherramienta y un medio institucional para el desarrollo y la construcciónde la idea de una región” (SAARINEN, 2004:169). Estos lugares dedesarrollo se convertirían en lugares de turismo enclávico- una formaespecífica de reproducción de actividades económicas - pero tambiénuna forma de re-crear las representaciones de los contextos locales, enpermanente procesos de encuentro con las expectativas turísticas.

De esta manera, la puesta en marcha de planes específicos deactuación en las fronteras interestatales abre un proceso de resignificaciónde las prácticas y los discursos sobre los límites, cómo se producen ycómo se representan y recrean cotidianamente. La transformación de lasfronteras interestatales de periferias en centros, a través de políticasbasadas en el turismo y la regionalización transfronteriza, subvierte sucarácter de periferia y las define como elementos centrales del proyecto,entonces. De esta manera, las zonas fronterizas se localizan en el centrode los procesos de construcción de la esfera pública (BALIBAR, 1998,apud PICKLES, 2005: 362), las prácticas políticas, socioterritoriales ydiscursivas en torno a las fronteras se convierten en una de las claves dela performance de la europeidad de la Unión.

252

A través de ellas, de ver cómo se practica la idea de Europa en lasfronteras de la UE, podemos hablar de diferentes geografías políticasdesplegadas desde el horizonte político y a través de las políticas de laUnión Europea en particular, y en Europa en general. Seguir trabajandosobre ellas ha de superar, necesariamente, su conceptualización comouna estructura geográfica; implica considerar diferentes geografíaspolíticas desplegadas en diferentes escalas espaciales y momentostemporales, absolutamente heterogéneas, multiescalarmente desplegadas.Y, en todo ello, el rol de individuos y colectivos, como sujetos queconstruyen, mantienen o cuestionan fronteras ¯lo que se denominaborderwork (RUMFORD, 2008: 2 y ss.)¯, es fundamental para seguiravanzando en la investigación en torno a cuándo, dónde y para quiéncontinúan funcionando.

NOTAS FINALES

Sin intención de hacer un inventario exhaustivo o una clasificaciónregionalde los estudios sobre fronteras, quisiera concluir haciendoreferencia a algunos trabajos que incorporan, en mayor o menor medida,un acercamiento a la naturalización de diferentes órdenessocioterritoriales, y que, a su vez, entiendo como relativamentedescentrados de la imaginación geopolítica moderna. Retomando laargumentación de la sección anterior, la idea es trabajar el cómo sepracticaEuropa en las fronteras en la Unión Europea (LOIS, 2010); enotras palabras, como se performan y evocan horizontes socioespacialesy políticos en los límites fronterizos interestatales europeos, desde y através de los actores institucionales y no institucionales, en las fronterasaburridas. En esos lugares también, cotidianamente, se negocian,cuestionan, re-producen o resisten patrones de socialización espacial,siendo nodos necesariamente presentes de un debate más amplio en tornoa las imaginaciones geopolíticas en torno a la relación entre fronteras-Europa-América Latina-regiones.

Así, uno de las principales cuestiones de trabajo en torno a lasfronteras en la Unión Europea ha sido la cooperación transfronteriza.Convertida en la atalaya de este proyecto de integración, y del significadode la cooperación transfronteriza en algunos otros16, resulta

253

tremendamente evocador acercarse no sólo a los discursos programáticossino también a las dimensiones espaciales que derivan de lasintervenciones en zonas fronterizas. De hecho, pasado un momento deEU-foria que duró casi una década, algunos trabajos ya han profundizadoen las prácticas ligadas a la cooperación transfronteriza desde unaperspectiva saludablemente escéptica, y vinculada a la incorporación dela capacidad de agencia como variable en la producción de fronteras. Esel caso de Prokkola et al (2012) quienes, a partir de la frontera entreFinlandia y Suecia, abundan en la complejidad práctica de la retóricaprogramática de los programas de cooperación transfronteriza,específicamente los derivados de fondos INTERREG. El artículo sugierela importancia de diferentes elementos, como las identificaciones estataleso las relaciones entre colectivos de ambas partes como variablesfundamentales a la hora de construir la socialización espacial en lasregiones transfronterizas; la proyección de estas regiones, su contenido,adquiere significado en los contextos cotidianos y siempre en claverelacional y performativa17

Otros autores, en otras fronteras, profundizan en las paradojasinevitablemente de la cooperación transfronteriza, tanto en el surgimientode nuevas fronteras desarrolladas a partir del desarrollo de institucionestransfronterizas, como en la reproducción de los límites estatales ligadaa la financiación de estas iniciativas. Es el caso de los trabajos sobre elparque científico y empresarial Avantis, en la Eurorregión Mosa-Rhin,en la frontera entre Alemania y Holanda (JACOBS y KOOIG, 2013), ode la Eurociudad Chaves-Verín, al noreste de la frontera hispano-portuguesa (LOIS, 2013), entre otros. La idea de trabajar desde unaperspectiva desenfocada respecto a la construcción de la frontera, y quecentra la atención en sus intentos de borrarla, de suavizarla. En ese sentido,resulta muy sugestiva la propuesta de Kramsch (2011), que lanza laposibilidad de, una vez terminado el periodo de fascinación por lagobernanza transfronteriza, comenzar a trabajar en una agenda deinvestigación que incorpore, desde una visión no teleólógica, la dobledimensión de las fronteras europeas; por un lado, como límites, comomedios espaciales, y, por otro lado, como iconos que definen normas ypresuponen valores y horizontes normativos de gobernanza intra-metropolitana (KRAMSCH, 2011:203). En cualquier caso, la necesaria

254

apertura de la lente conceptual, que trate de incorporar las políticas derepresentación, espacialización y socialización ligadas a los límites serevela como enormemente excéntrica y tremendamente interesante. Yen esas políticas, además de la cooperación y regionalizacióntransfronteriza institucionales, el cruce de fronteras es, como veíamosanteriormente, la práctica espacial que transgrede su definición comolímite, que contesta su atributo espacial más clásico, y que reifica lasdiferencias marcadas por el confín. Como veíamos, las dinámicasindividuales y colectivas en torno al cruce contestan, refuerzan,comparten, proponen, y dibujan la frontera. En ese sentido, trabajos comolos de Alburquerque (2012) o van Houtum y Gielis (2006) abordan lapráctica del cruce de fronteras interestatales desde perspectivasmultiescalares, incorporando dimensiones específicas de los proyectosde integración regional (Brasil y Paraguay, por un lado, y Alemania-Holanda, por otro) en la constelación relacional a través de la que senegocia la frontera como recurso. En otros trabajos, el cruce ilegal de lafrontera, el contrabando, ha sido ampliamente estudiado como estrategiade supervivencia cotidiana (GODINHO, 1995, 2011; FREIRE et al, 2009;CARDIN, 2012; SIMÕES, 2009). La transgresión de la frontera querepresenta el contrabando sigue siendo clave en la negociación delcontenido político de la frontera. Contradiciendo la imaginacióngeopolítica más fácil sobre fronteras en la UE, y sin haber desaparecidocomo actividad económica, también ha pasado a convertirse en elementode memoria (CUNHA, 2009), en un objeto de patrimonializaciónesponsorizado a través de su ritualización (LOIS y CAIRO, 2012). Lare-creación del cruce de la frontera como experiencia se significa comohorizonte de gobernanza cultural (SHAPIRO, 2004), repetidamentemusealizado y teatralizado en las fronteras interestatales de la UE(PROKKOLA, 2008b), pero, en cualquier caso, ligado al consumoturístico, a la turistificación de la frontera. Esa turistificación se manifiestaen diversas formas, siendo una de ellas la de re-presentar el cruce de lafrontera como parte de la experiencia fronteriza; esta aventurase puedeconsumir en la frontera entre Laos y Thailandia (su precio incluye unpaseo por el río Mekong y un sello en el pasaporte que confirma haberpasado al otro lado); también es parte de las amenidades ofertadas por almenos dos empresas finlandesas -no localizadas en el límite

255

necesariamente -, que reproducen un cruce de la frontera Finlandia-Rusiaque incluye falsos guardias fronterizos rusos bebiendo vodka(LÖYTYNOJA, 2007); y es una de las actividades más demandadas delparque temático EcoAlberto, en el estado de Hidalgo (en el centro deMéxico), donde se re-crea el cruce de la frontera a Estados Unidos.Gestionado por indígenas HñaHñu, en el tour se performan coyotes yfalsos agentes de la Border Patrol estadounidense18. Quizás en elencuentro entre la construcción de la frontera como atracción turística yla re-producción de las fronteras como espacios de espectacular represiónpudieran surgir elementos de fuga de la imaginación geopolítica moderna,en su dimensión fronteriza. Las políticas de representación de fronteras,en cualquier escala, disponen las coordenadas de los diferentes circuitosde movilidad.

Continuando con las dimensiones de una gobernanza culturalproyectada desde las fronteras como espacios de negociación delcontenido territorial de lo político, resulta interesante también reseñar larepetida presencia de elementos comunes en la representación visual delas fronteras y, específicamente, en la forma de incorporar lo que está alotro lado el límite. En ese sentido, la construcción de puentes, comoiconos de definición regional financiada por fondos INTERREG ha sidotrabajada, por ejemplo, en el caso de la frontera entre Dinamarca y Suecia(HOSPERS, 2006). Como infraestructuras que habilitan a la otra partecomo parte de un consorcio, proyectan un espacio imaginado, enocasiones relativamente alejado de las prácticas locales. La mismadimensión es remarcada, en términos escalares birregionales, en el casodel puente sobre el río Oyapoque, entre Brasil y la Guyana francesa(KRAMSCH, 2012). Financiado en buen parte por la Iniciativa para laIntegración de la Infraestrucura Regional Suramericana (IIRSA), en esepuente, aún sin inaugurar, confluirían lecturas regionales, visionesparalelas que regularizan, desde la monumentalidad y la contundenciavisual de la infraestructura, la proyección del cruce.

Mientras continúo con la preparación del artículo sobre fronterasen América Latina, leo como una manifestación en el País Vasco reabrecinco puestos fronterizos terrestres entre Francia y España; o cómo lavisita de los Ángeles del Infierno a un club de motociclismo de Reykjavikrehabilitó los controles aéreos en unos 16 vuelos procedentes de países

256

Schengen. En definitiva, continúo coleccionando circunstanciasregionalmente excepcionales.

NOTAS EXPLICATIVAS

1 Departamento de Ciência Política III (Teorías y Formas Políticas y Geografia Humana). UniversidadComplutense de Madrid. E´mail: [email protected]<http://www.la-razon.com/nacional/demanda_mar%C3%ADtima/Gobierno-demanda-Chile-CIJ-ensamblara_0_1855014551.html>[ consultado el 24/06/2013]3<http://www.euroefe.com/3799_asuntos-sociales-y-juridicos/2090406_la-eurocamara-respalda-el-nuevo-codigo-de-fronteras-para-la-zona-schengen.html> [consultado el 24/06/2013]4<http://spanish.irib.ir/elsur/noticias/america-del-sur/item/82829-evo-morales-inaugura-una-ruta-interoce%C3%A1nica> [consultado el 24/06/2013].5 El tratado de Schengen, en vigor desde 1995, regula la eliminación de controles fronterizos entre lospaíses suscriptores, a través de la libre circulación de personas. Forma parte de la legislación de la UniónEuropea desde la firma del Tratado de Amsterdam, en 1999, y reconoce una sola frontera común, exterior,con procedimientos y normas comunes en lo referente a visados para estancias cortas, solicitudes de asilo ycontroles fronterizos. <http://europa.eu/legislation_summaries/justice_freedom_security/free_movement_of_persons_asylum_immigration/l33020_es.htm> [consultado el 10/06/2013].6<http://www.europarl.europa.eu/news/es/pressroom/content/20130607IPR11372/html/El-PE-debate-la-reforma-del-espacio-Schengen> [consultado el 24/06/2013].7 Agradezco a Olivier Kramsch la conversación (y la bibliografía) que movilizó esta idea.8 Caso, por ejemplo, de las Políticas Europeas de Vecindad (ENP).9 Mencionar que ese ha sido el objetivo docente de la asignatura Geografía Política y Geopolítica deEuropa, ahora ausente de los nuevos currículos educativos, pero que impartí durante 7 años en la licenciaturaen Ciencia Políticas de la Universidad Complutense. A lo largo de ellos, mi propuesta de trabajo en el aulase ha basado instrumentalizar el particularismo de las diferentes formas espaciales presentes en Europa(desde área a región rural policéntrica, pasando por nación, Unión Europea o ciudad global) para pensar enel interminable proceso de alteridad ligado a su definición, así como en la multiplicación de geografíaspolíticas posibles en torno a un mismo referente. A pesar de alguna sorpresa inicial ante la ausencia demetanarrativas tranquilizadoras, los estudiantes me han ido enseñando cómo avanzar en este dirección.10 Buena parte de los argumentos que aquí se presentan fueron publicados en Lois y Cairo (2011).11 En ese sentido destacar, por ejemplo, el trabajo de Vives (2013) sobre la migración femenina de Senegala España, desarrollado desde una perspectiva etnográfica multisituada, con una cartografía móvil, y, enparticular, con la (éticamente) adecuada discreción respecto a las prácticas de cruce irregulares. Riofrio(2012) ha desarrollado un planteamiento similar, relacionando los cambios en la política de movilidad enEcuador en 2008con la externalización de la frontera de la Unión Europea, que convirtieron al paíslatinoamericano en lugar de tránsito hacia España para los flujos de población procedentes del norte deÁfrica.12<http://ec.europa.eu/regional_policy/cooperation/interregional/ecochange/doc/comm_es_acte.pdf>[consultado el 25/02/2009]; <http://ec.europa.eu/regional_policy

; http://ec.europa.eu/regional_policy/faq/q7/index_es.htm>; <http://europa.eu/scadplus

/glossary/lisbon_strategy_es.htm>, [consultado el 25/02/2009]; «Informe estratégico sobre la estrategia deLisboa renovada para el crecimiento y el empleo: lanzamiento de un nuevo ciclo (2008-2010), parte I»,Comunicación de la Comisión al Consejo, de 11 de diciembre de 2007, [COM(2007) 803 final – no publicado

257

en el Diario Oficial].)13<http://europa.eu/legislation_summaries/enterprise/industry/n26107_es.html> [consultado el 25/02/2009].14<http://europa.eu/legislation_summaries/enterprise/industry/n26107_es.html> [consultado el 25/02/2009].15INTERREG IIIA Nord- Fondo Europeo de Desarrollo Regional. <www.interregnord.com> [consultado el26/02/2009].16 Excelente el ejemplo del uso de un manual de INTERREG como manual de cooperación transfronterizaen África Occidental (Kramsch y Brambilla, 2007), o de la visita en 2010 de una delegación del gobiernode Brasil a la Eurociudad Chaves-Verín, en el marco del Memorando de Entendimiento entre la ComisiónEuropea y el Ministerio de Integración de Brasil, donde los integrantes (representantes de las Meso-Regionesde Alto Simoneo, Vale do Río Acre y de la Gran Fronteira Mercosur) recibieron, además de una introduccióna las buenas prácticas, su tarjeta de Eurociudadanos (Lois, 2013). Reconociendo la desigual relación entrelas partes, tampoco entendemos, al estilo orientalista , que las prácticas, modelos y posiciones emitidasdesde la UE se asumen y reproducen miméticamente; es algo más complejo, y que llevaría a una discusiónsobre cuestiones de agencia mencionadas anteriormente pero alejado del objetivo de esta sección. En cualquiercaso, las prácticas de representación de los sujetos como receptores y transmisores resultan escasamenteinnovadoras.17 Paula Godinho (2009) entiende esas negociaciones constantes como claves para contextualizar la figuradel regionauta, productos de una concepción de la cooperación “desde arriba hacia abajo, y desde adentrohacia afuera“ (GODINHO, 2009 :148; en cursiva en el original).18http://www.fronterasdesk.org/news/2013/jun/18/fake-border-crossing-amusement-park-attraction/?utm_source=facebook.com&utm_medium=referral&utm_campaign=fronteras-facebook [consultado el 27/06/2013].

REFERÊNCIAS

AGNEW, J. (2005): Geopolítica: una re-visión de la política mundial Trama Editorial, Madrid.Trad. al castellano por M. Lois de Geopolitics: re-visioning world politics, Londres: Routledge,1998.

______. Borders on the mind: re-framing border thinking. Ethics & Global Politics, 1 (4), 175-191, 2008.

ALBUQUERQUE, L. Limites e paradoxos da cidadania no territorio fronteirico: O atendimentodos brasiguaios no sistema público de saude em Foz do Iguacu (Brasil), Geopolítica(s) 3 (2),185-205, 2012.

BALIBAR, E.: “The borders of Europe” en P. Cheah y B. Robbins (eds) Cosmopolitics: Thinkingand Feeling beyond the Nation, Minneapolis: University of Minnesota Press, 216–233

BOGGS, S. W. International boundaries: A study of boundary functions and problems. NuevaYork: Columbia University Press, 1940

CARDIN, E.. Trabalho e práticas de contrabando na fronteira do Brasil com o Paraguai,Geopolítica(s) 3, (2), págs. 207-234, 2012.

CASAS, M. et al: Stretching Borders Beyond SovereignTerritories? Mapping EU and Spain’sBorder Externalization Policies, Geopolítica(s), 2, ( 1), págs. 71-90, 2011.

CUNHA, L.: Memórias de fronteira: o contrabando como explicação do mundo, In D. FREIRE

258

et al (coord.), Contrabando na Fronteira Luso-Espanhola. Práticas, Memórias e Patrimónios,Lisboa, Edições Nelson de Matos, págs. 289-307, 2009.

DIEZ, T.: The paradoxes of Europe’s borders, Comparative European Politics, 4, págs.. 235-252, 2006.

EUROPEAN COMMISSION: Structural policies and European territory: Cooperation withoutfrontiers. Luxemburgo: European Social Fund and the Cohesion Fund, 2002.

______: European Regional Development Fund, the European Social Fund and the CohesionFund, Luxemburgo, European Social Fund and the Cohesion Fund, EC 2006-1083

FOUCHER, M.: Fronts et frontières. Un tour du monde géopolitique, París: Fayard, 1991.

FREIRE, D. et al (coord.): Contrabando na Fronteira Luso-Espanhola. Práticas, Memórias ePatrimónios, Lisboa, Edições Nelson de Matos, 2009.

GODINHO, P. O contrabando como estratégia integrada nas aldeias da raia transmontana, ATrabe de Ouro, II, págs. 209-222, 1995.

_____. Entre Chaves e Verín: mediadores, fronteira útil e fronteira fútil, In E. MEDINAet al(eds) Fronteras, Patrimonio y Etnicidad en Iberoamérica, Sevilla: Signatura Ediciones, págs.137-152, 2009.

____. Oír o galo cantar dúas veces. Identificacións locais, culturas das marxes e construciónde nación na fronteira entre Portugal e Galicia, Ourense: Deputación Provincial de Ourense,2011.

GUICHONNET, P. y Raffestin, C. Géographie des frontiers, Paris: Presses Universitaires deFrance, 1974.

HARTSHORNE, R.. Suggestions on the terminology of political boundaries. Annals of theAssociation of American Geographers, 26, págs. 56-57, 1936.

HEPWORTH, K. Abject Citizens: Italian ‘nomad Emergencies’ And The Deportability OfRomanian Roma. Citizenship Studies, 16 (3-4), págs. 431-449, 2012.

HOLDICH, T. H.. Political frontiers and boundary making, Londres: Macmillan, 1916.

HOSPERS, G.: Borders, Bridges and Branding: The Transformation of the Øresund Regioninto an Imagined Space, European Planning Studies, 14, págs. 1015-1033, 2006.

JACOBS, J. y KOOIJ, H. J. Fading Euphoria at the Dutch-German Border? The Case ofAvantis, Tijdschrift voor Economische en Sociale Geografie (TESG) 104, págs. 379–387, 2013.

JENSEN, O. B. y RICHARDSON, T.. Making European Space. Mobility, power and territorialidentity, London: Routledge, 2004.

JOHNSON, C. et al. Interventions on rethinking «the border» in border studies. PoliticalGeography, 30, págs. 61-69, 2011.

KRAMSCH, O. Negotiating the ‘Spatial Turn’ in European Cross-Border Governance: Noteson a Research Agenda. Geopolítica(s)2, (2), págs. 185-207, 2011.

___________. Reconociendo la frontera UE-MERCOSUR: Espacio, visión e imaginación‘dreyfusard’ sobre el puente del río Oyapock, In C.ZÁRATE (ed): Espacios Urbanos y SociedadesTransfronterizas en la Amazonia, Leticia: Universidad Nacional de Colombia Sede Amazonia,

259

págs. 127-153, 2012.

_________. y BRAMBILLA, C. Transboundary Europe through a West African Looking Glass:Cross-border Integration, ‘Colonial Difference’ and the Chance for ‘Border Thinking’,COMPARATIV, 17,(4), págs. 95-115, 2007.

KUUS, M.. Critical Geopolitics. In R. DENEMARK (ed.) The International StudiesEncyclopedia. Vol. II, Chichester: Wiley-Blackwell, págs. 683-701, 2010.

LAMBREGST, B. et.al.: Effective governance for competitive regions in Europe: the difficultcase of Randstad. GeoJournal, 72, págs. 45-57, 2008.

LOIS, M.: Practicing Europe,in the EU borders: local geographies, tourism and spatialsocialization at the Spanish-Portuguese border, comunicación presentada en la ConferenciaAnual de la Asociación de Geógrafos Americanos (AAG), Washington D.C., Abril 2010.

_______. Re-significando la frontera: el caso de la Eurociudad Chaves-Verín. Boletín de laAsociación de Geógrafos Españoles (AGE), 61, págs. 309-327, 2013.

_______. y CAIRO, H. Desfronterización y refronterización en la Península Ibérica, Geopolítica(s), 2 (1), págs. 11-22, 2011.

_______. y _______. Border-Crossing and Transborder Mobilities: spatial stories at the Spanish-Portuguese Border, comunicación presentada en el Congreso de las Asociación Internacionalde Ciencia Política (IPSA- RC15: Geografía Política y Cultural), Madrid, Julio 2012.

LÖYTYNOJA, T.: National Boundaries and Place-making in Tourism: Staging the Finnish-Russian Border. Nordia Geographical Publications 36(4), págs. 35-45, 2007.

MATO, D.: Des-fetichizar la ‘Globalización’: Basta de Reduccionismos, Apologías yDemonizaciones, Mostrar la Complejidad y las Prácticas de los actores, en D. MATO (ed)Estudios Latinoamericanos sobre Cultura y Transformaciones Sociales en Tiempos deGlobalización, Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), págs.147-178, 2001.

NEWMAN, D.: The lines that continue to separate us: Borders in our borderlessworld. Progressin Human Geography, 30 (2), págs. 1-19, 2006.

_________. y PAASI, A.: Fences and neighbours in the post-modern world: boundary narrativesin political geography. Progress in Human Geography, 22 (2), págs.186-207, 1998.

O´DOWD, L.: From a ‘borderless world’ to a ‘world of borders’: bringing history back in,Environment and Planning D: Society and Space, 28, págs. 1031-1050, 2010.

OHMAE, K.. The Borderless World. London: Collins, 1990.

PAASI, A.: Territories, Boundaries and Consciousness. The Changing Geographies of the Finnish-Russian Border, Chichester, Wiley, 1996.

________.: Generations and the «Development» of Border Studies, Geopolitics, 10, págs. 663-661, 2005.

________.: Region-Building, Boundaries and Identities in a Globalizing World. NorthernEncounters in Geography, Tromsae [En línea].Disponible en http://uit.no/getfile.php?PageId=1671&FileId=160 [consultado el 22 de marzo de 2011].

260

PERKMAN, M., y SUM, N. L. Globalization, Regionalization and Cross- Border Regions:Scales, Discourses and Governance, In M. PERKMAN y N-L. SUM (eds.) Globalization,Regionalization and Cross-Border Regions, Houndsmills: Palgrave Macmillan, págs. 3-24, 2001.

PICKLES, J.: New cartographies and the decolonization of European geographies, Area, 37(4), págs. 355-364, 2005.

POUNDS, N., y BALL, S. S.: Core areas and the development of the European states system.Annals of the Association of American Geographers, 54: págs. 24-40, 1964.

PROKKOLA, E.: Making bridges, removing barriers. Cross-border cooperation and identityat the Finnish-Swedish border.Oulu: Nordia Geographical Publications, 2008.

________.: Border Narratives at Work: Theatrical Smuggling and the Politics ofCommemoration. Geopolitics, 13(4), págs. 657-675, 2008.

________. et al: Performance of regional identity in the implementation of European cross-border initiatives. European Urban and Regional Studies, doi: 10.1177/0969776412465629,2012.

RATZEL, F.: Die Gesetze des räumlichen Wachstums der Staaten. Petermanns GeographischeMitteilungen, 42, págs. 97-107. [trad. al castellano por M. DÍAZ: “Las leyes del crecimientoespacial de los Estados. Una contribución a la Geografía científico-política”, Geopolítica(s), 2,(1), págs. 135-156], 2011.

RIOFRIO, M.: La externalización de la frontera española y su incidencia en el cambio de rutasmigratorias provenientes de África: el caso de Ecuador en el período 2008-2010. Tesis deMaestría inédita, Universidad Complutense de Madrid, 2012.

RUMFORD, C.: Citizens and borderwork in Europe, Space and Polity, 12 (1), págs. 1-12, 2008.

SAARINEN, J.: Destinations in Change. The transformation process of tourist destination.Tourist Studies, 4 (2), págs. 161-179, 2004.

SACK, R.: Homo geographicus: a framework for action, awareness, and moral concern.Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1997.

SCOTT, J. W., y HOUTUM Van, H.: Reflections on EU territoriality and the «bordering» ofEurope. Political Geography, 28 (5), págs. 271-273, 2009.

SHAPIRO, M. J.: Methods and Nations: Cultural Governance and the Indigenous Subject,New York: Routledge, 2004.

SIMO�S, D.: O contrabando em Barrancos; memórias de um tempo de guerra, In D. FREIREet al (coord.). Contrabando na Fronteira Luso-Espanhola. Práticas, Memórias e Patrimónios,Lisboa, Edições Nelson de Matos, págs. 165-195, 2009.

STRÜVER, A.: Stories of the ‘Boring Border’: The Dutch-German Borderscape in People’sMinds, Münster: Lit Verlag, 2005.

HOUTUM, Van H.: Human blacklisting: the global apartheid of the EU’s external border regime.Environment and Planning D: Society and Space 28, págs. 957 -976, 2010.

________. et al. (eds) B/ordering Space, Aldershot: Ashgate, 2005.

________. y GIELIS, R.: Elastic migration: the case of Dutch short-distance transmigrants in

261

Belgian and German Borderlands. Tijdschrift voor Economische en Sociale Geograe (TESG),97, págs.195–202, 2006.

VIVES, L.: White Europe: an alternative reading of the Southern EU border, Geopolítica(s), 2(1), págs. 51-70, 2011.

VIVES, C.: Through The Border: Senegalese Gendered Migration To Spain (2005-2010), TesisDoctoral inédita, University of British Columbia, 2013.

WOODWARD, K., y JONES, J. P.: On the border with Deleuze and Guattari, In H. VANHOUTUM et al (eds). B/Ordering Space, Aldershot: Ashgate, págs. 234-248, 2005.

ZAPATA-BARRERO, R.: Teoría Política de la frontera y la movilidad humana. Revista Españolade Ciencia Política (RECP), 29, págs. 39-66, 2012.

ZÁRATE, C. (ed): Introducción, en C. ZÁRATE (ed).Espacios Urbanos y SociedadesTransfronterizas en la Amazonia, Leticia: Universidad Nacional de Colombia Sede Amazonia,págs. 11-18, 2012.