Antropologia em trânsito: reflexões sobre deslocamento e comparação [Anthropology in Transit:...

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antropologia em trânsito: reflexões sobre deslocamento e comparação

Projeto, Produção e CapaColetivo Gráfico Annablume

Conselho EditorialEduardo Peñuela Cañizal

Norval Baitello juniorMaria Odila Leite da Silva Dias

Celia Maria Marinho de AzevedoGustavo Bernardo Krause

Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)Pedro Roberto Jacobi

Lucrécia D’Alessio Ferrara

1ª edição: agosto de 2013

© Iracema Dulley e Marta Jardim

ANNABLUME editora . comunicaçãoRua M.M.D.C., 217. Butantã

05510-021 . São Paulo . SP . BrasilTel. e Fax. (5511) 3539-0226 – Televendas 3539-0226

www.annablume.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

D883 Dulley, Iracema, Org.; Jardim, Marta, Org.Organização de Iracema Dulley e Marta Jardim. Prefácio de Paula Montero. – São Paulo: Annablume, 2013. 235 p. ; 14x21 cm

ISBN 978-85-391-0580-9

1. Antropologia Social. 2. Teoria Antropológica. 3. Etnografia. 4. Antropologia Comparada. 5. Literatura Antropológica. 6. História dos

Estudos Antropológicos. 7. História da Antropologia. I. Título. II. Reflexões sobre deslocamentos e comparação. III. Dulley, Iracema, Organizadora. IV. Jardim, Marta, Organizadora. V. Montero, Paula.

CDU 338.2:81`28CDD 330

Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino

Sumário

prefácio................................................................................ 07Paula Montero

antropologia em trânsito: sobre alguns deslocamentos ... 13Iracema Dulley e Marta Jardim

porto alegre – paris – Île d’Yeu, ida e volta: percurso de pesquisa ................................................................................ 35Fernanda Bittencourt Ribeiro

identidades racial e religiosa em angola e no brasil: reflexões a partir da experiência de campo em luanda ...... 59Luena Nunes Pereira

viagens ao mundo da mina: aspectos de uma etnografia entre mineiros de carvão no brasil e na frança .......................... 91Marta Cioccari

“aliás, a sociedade civil na realidade não existe...”: o lugar e os sentidos das categorias em contextos periféricos ...... 121Héctor Guerra Hernandez

desafios metodológicos de uma pesquisa em arquivos em contextos extranacionais: o trabalho de campo de marY douglas no Kongo belga e o africanismo britânico do pós--guerra ............................................................................... 159Christiano Key Tambascia

simbiose, ambiguidade e assimilação: visões sobre a experiência judaico-alemã ..................................................................... 181Bárbara Odebrecht Weiss

etnologias em trânsito: contribuições dos estudos contem-porâneos sobre os ameríndios para a compreensão do contex-to do sul de moçambique ................................................ 203Luiz Henrique Passador

sobre os autores ................................................................ 229

Prefácio

De que matéria é feita a antropologia? Talvez esta seja uma das principais questões que este livro procura enfrentar. Ao trazer os mais diversos e fascinantes relatos das dificuldades encontradas pelo pesquisador no momento em que ele realiza uma das etapas de seu trabalho – a etapa do tradicional “trabalho de campo” –, Antropologia em trânsito revela um dos predicados mais marcan-tes do tipo de conhecimento que a antropologia produz. Ao con-trário dos cientistas políticos ou dos sociólogos, que geralmente se dão por objeto as instituições ou os grandes números, os antro-pólogos gostam do desafio de tentar entender o modo particular como as pessoas pensam o mundo no qual estão inseridas. Essa diferença basal de perspectiva entre as disciplinas – umas que buscam apreender os fenômenos a partir de um olhar externo e abrangente, panorâmico, e outra que busca olhar para o olhar do outro sobre o mundo – coloca para a antropologia problemas heurísticos muito particulares. O maior deles reside no fato de que esse tipo de conhecimento depende da habilidade do pesqui-sador para desenvolver interações sociais e afetivas com aquelas pessoas cujo modo de ver a vida ele deseja descrever. O pres-suposto aqui é fundado em um paradoxo de difícil solução: se queremos conhecer o modo de conhecer do outro, isto não pode realizar-se a sua revelia, sem seu consentimento e colaboração. Somente esse outro detém a chave de seu próprio conhecimento.

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Desse modo, chega um momento na experiência de grande parte dos antropólogos no qual “trabalho de campo” significa fazer-se aceito pelas pessoas que se deseja conhecer.

Os autores deste volume fazem-nos perceber que essa dificul-dade de inserção torna-se mais aguda quando a pesquisa antro-pológica brasileira se abre para universos de observação situados em outras nações e continentes, invertendo posições clássicas nesse campo de investigação. Esse novo momento da disciplina obriga-nos a colocar em outro patamar os problemas heurísticos clássicos que a própria natureza desse tipo de trabalho de obser-vação etnográfica impõe. Eles dizem respeito à contextualidade das categorizações e a sua tradutibilidade.

a contextualidade das categorizações

Muitos dos trabalhos deste volume tratam do problema da inserção do pesquisador em uma rede de relações como condição sine qua non para o sucesso dessa etapa do trabalho. Esse artificia-lismo metodológico coloca dificuldades mais ou menos graves no plano das interações. Isso porque a chegada de um pesquisador e, nos casos aqui relatados, pesquisador estrangeiro, sempre intro-duz uma série de ruídos na dinâmica das relações preexistentes – suspeitas, novas relações, novos afetos, novos modos de narrar, etc. – cuja consequência é, no mais das vezes, muito difícil de se levar em conta no momento da coleta de informações. Esse tipo de observação se faz frequentemente a partir de uma aproxima-ção intensa e quase íntima entre mundos que na vida social deve-riam permanecer distantes e separados e inverte suas hierarquias naturais. Fernanda Ribeiro, brasileira, casada mas sem filhos, não deveria estar na Île d’Yeu, onde estão abrigadas sob tutela do Es-tado mães francesas e seus filhos com histórico de maus tratos. Luena Pereira, brasileira/angolana, de boa família e mestiça, não deveria estar entre os Bakongo. Marta Cioccari, mulher, jovem e solteira, não deveria estar entre os mineiros na Lorena francesa. E Christiano Tambascia, doutorando em uma instituição periféri-

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ca, não deveria estar inquirindo sobre as configurações do campo institucional antropológico britânico. Esse tipo de “trabalho de campo” promove, pois, a intrusão de um observador estrangeiro em um universo particular de relações cotidianas, em posições sociais criadas ad hoc no momento de sua presença e que o obri-gam continuamente a explicar-se. Talvez por isso, metodologica-mente, faz-se emergir um lugar de observação não convencional.

Na introdução deste volume as organizadoras, Iracema Dul-ley e Marta Jardim, sintetizam muito bem o espectro de pro-blemas de conhecimento que a posição heurística suscitada pelo “trabalho de campo” provoca em suas diversas vertentes teóricas: “exotização” do observado, demanda agonística por um “outro”, necessária superação de paradigmas teóricos, etc. Mas há um as-pecto particular que os relatos etnográficos contidos neste volu-me põem em evidência, quando tomados em seu conjunto, que me parece importante mencionar: o estranhamento causado pela presença pouco convencional desse observador estrangeiro e fora de lugar que precisa se posicionar e se justificar explicita e obje-tiva o fato de que em todas as situações e em todos os níveis a vida social é feita de “categorizações”. Ou, dito de outra maneira, as interações sociais – e esta forma particular de interação que é a observação etnográfica –, para que possam desenvolver-se e ser bem-sucedidas, precisam empreender aquilo que Clifford Geertz chamou vagamente de “situar-se”. Radicalizando essa intuição geertziana, é possível afirmar que essa posição pouco convencio-nal no trabalho de campo adotada pelos autores deste livro torna ainda mais visível o artificialismo inerente a esse artefato heurís-tico que é a observação do “outro”. O trabalho de categorização e reposicionamento continuado torna cristalino o fato de que não se pode pretender um olhar abrangente, não posicionado, à vol d’oiseau, como diria Lévi-Strauss, sobre a vida que se obser-va; o que determina a condição do observador será sempre um olhar situado na sucessão de categorizações por meio das quais ele pode apresentar-se ao outro e fazer-se um interlocutor aceitável. Por que e em que condições uma pessoa aceita essa intromissão

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estrangeira feita de perguntas indiscretas que é o antropólogo? Por que, depois de sucessivos fracassos na tentativa de conversar com ex-mineiros em Creutzwald, foi o casal de origem iugos-lava e vietnamita o que primeiro abriu a porta de sua casa para a pesquisadora? Que tipo de narrativas uma pesquisadora sem filhos e moradora intermitente na Casa Familiar Cap Horn pode reunir? De que modo ser percebida como branca afeta o que se pode saber sobre os Bakongo? Essas são perguntas metodológicas chave que, como este livro demonstra muito bem, não podem mais permanecer no rodapé dos textos antropológicos. O que se pode ver e compreender depende em grande parte de como nos veem e compreendem. Desse modo, pode-se afirmar que uma das mais importantes dimensões da vida social que o artificialis-mo do trabalho de campo põe em evidência é o artificialismo das categorizações sucessivas e múltiplas que orientam toda forma de interação social: jovem, mulher, estrangeiro, branco, periférico, inimigo, etc. Edmund Leach, em seus estudos sobre linhagens na Birmânia, já nos ensinara que compreender o modo como as categorizações de parentesco são operadas na vida social nos per-mite compreender os jogos de status e as disputas de poder. No entanto, o conjunto de situações relatadas neste livro faz-nos ver que o jogo das categorizações está em toda parte, desenvolve-se em vários níveis e implica também o observador naquilo que ele faz ou pode fazer.

a tradutibilidade das categorizações

Dizer que aquilo que o observador pode observar está sempre situado em uma posição categorialmente demarcada torna o pro-cesso mesmo de categorização um objeto privilegiado da obser-vação etnográfica e um problema teórico. Os vários ensaios desta obra retomam esse problema do ponto de vista metodológico e analítico em diferentes contextos de pesquisa. No plano meto-dológico demonstram que, para evitar os avatares da reificação dos grupos, é necessário repertoriar os modos de categorização

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e colocá-los em perspectiva. É interessante observar, no entanto, que esse esforço de associar as categorias aos pontos de vista pos-síveis e a posições sociais não consegue realizar-se inteiramente no plano das interações. Se nesse nível o rol das categorias de apreciação e julgamento torna-se perceptível ao observador es-trangeiro interessado em fazer-se aceitável, é possível perceber na construção textual dos trabalhos que para analisar as categorias é necessário lançar mão de um outro tipo de material, que coloca o pesquisador em um espaço-tempo distinto daquele determinado pelas interações e que permanece, no mais das vezes, inalcançá-vel para o interlocutor. Como bem mostra Luena Pereira, não é possível compreender a categorização “mestiço” em Angola sem um mínimo conhecimento histórico sobre o período colonial e as particularidades dos processos de descolonização. Ser “mesti-ço” no Brasil, em Angola, na África do Sul ou na Rodésia defi-nitivamente não é a mesma coisa: não diferencia os grupos do mesmo modo e não remete ao mesmo tipo de experiência social. A posição heurística que permite esse tipo de formulação com-parativa exige um reposicionamento do olhar investigativo – um deslocamento, para usar a expressão que dá título à obra – que leva o pensamento para além da posição etnográfica. Conversas, co-mentários, ofensas e interditos situados no plano da experiência cotidiana devem ser colocados em uma perspectiva de média e longa duração capaz de reposicionar as categorias em um nível de compreensão e análise menos aderente às lógicas da prática.

Mas os trabalhos aqui apresentados também apontam para outro processo de categorização que se realiza, este, “de cima para baixo”: trata-se das categorias formuladas como instrumento das políticas do Estado. O “mal-estar” relatado por Héctor Guerra com o uso naturalizado da categoria de “refugiado” pelo discurso acadêmico é da mesma ordem que o mal-estar das mulheres de Caval frente à categoria “mães maltratantes”. Para governar, as di-ferentes instituições categorizam, cada uma a seu modo. Para tal, lançam mão dos mais diversos instrumentos: fazem estatísticas, apresentam dados demográficos, tipificam comportamentos ou,

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como indica Barbara Weiss referindo-se às práticas do Estado, classificam “usando como ferramenta uma dicotomização inces-sante”. Ao fazê-lo, também conferem substância social e natura-lizam grupos.

O que pode pretender então o pensamento antropológico diante de tal profusão de perspectivas e da irremediabilidade da categorização? Como ir além da “denúncia” da arbitrariedade das categorizações (truísmo que aborrece a própria condição de toda forma de categorização) e de seus usos no controle das popula-ções? Não há resposta simples para esta questão. O interesse deste livro e sua contribuição reside no fato de que ele nos ajuda, pela variedade das situações relatadas, a colocar em perspectiva o pró-prio pensamento antropológico: ele nos oferece muitos caminhos possíveis para os deslocamentos reflexivos necessários tanto para a compreensão das dinâmicas sociais quanto para a análise dos “efeitos de poder” inerentes a toda forma de categorização.

paula montero

Profa. Titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo

Presidente do Cebrap

Antropologia em trânsito: sobre alguns deslocamentos

Iracema Dulley1 e Marta Jardim

a respeito de deslocamentos

De forma geral, pode-se dizer que a antropologia é uma dis-ciplina que produz seu acúmulo teórico com base em desloca-mentos. Embora o deslocamento no espaço tenha sido funda-mental para a história da disciplina – por vezes acompanhado de um sub-reptício deslocamento (ou, na crítica de Fabian (1983), congelamento) do tempo –, ele certamente não é o único deslo-car-se, concebido também como descentrar-se, que constitui a antropologia. Nesse sentido, não trazemos aqui uma abordagem nova, mas uma reflexão acerca de mudanças, ou talvez alterações nos padrões de visibilidade, que acreditamos estar acontecendo há alguns anos na antropologia que vem sendo realizada no Bra-sil, onde a disciplina se constituiu num processo oposto ao das escolas clássicas. Se estas tiveram suas primeiras gerações de an-tropólogos formados em pesquisas envolvendo o deslocamento territorial para contextos onde não havia, de início, nem interlo-cutores acadêmicos, nem algo que se considerasse uma reflexão homóloga à que se vinha constituindo como antropologia, a an-tropologia feita no Brasil voltou-se inicialmente, e durante

1 Agradecemos os comentários valiosos de Luiz Henrique Passador, Chris-tiano Tambascia e Eva Scheliga a versões preliminares deste texto.

longo tempo, aos “outros” que se encontravam nos limites de seu próprio território político. É levando essa outra história em conta que nos debruçamos sobre os trânsitos que constituem as pesquisas aqui apresentadas, em alguma medida relacionadas com o Brasil, mas que se descolam de alguma forma, em termos etnográficos e/ou teóricos, desse eixo tradicional da disciplina. Assim, nosso intuito nesta introdução é, por um lado, situar os trânsitos que constituem os textos que aqui reunimos em rela-ção ao contexto mais amplo da disciplina no Brasil; por outro, apontar o potencial de crítica às categorias que acreditamos estar contido nesses estudos.

Os textos aqui compilados são exemplos deste que acredi-tamos ser um momento de abertura para outros exteriores que não os que constituíram a disciplina em seu estabelecimento no que diz respeito aos referenciais e temáticas que orientam as pes-quisas. Parece que a vinda de pelo menos duas gerações de es-trangeiros nos primórdios das ciências sociais no Brasil (alemães, americanos e franceses na USP; ingleses, americanos e alemães no Museu Nacional; alemães e americanos na ESP; americanos na UFBA) não serviu de estímulo para que se realizasse aqui uma teoria antropológica pautada pelo deslocamento em relação ao estado-nação brasileiro na época da constituição da disciplina, que buscou “o outro” menos em terras distantes do que no in-terior de seu vasto território, embora também partindo de uma lógica colonialista interna. Foi necessário um longo tempo para que o deslocamento para o exterior das fronteiras brasileiras co-meçasse a acontecer, e defenderemos a seguir o argumento de que a partir desse trânsito a antropologia feita no Brasil vem se beneficiando do acréscimo trazido por alguns intercâmbios de perspectiva. Entre eles, ressaltamos a intensificação das trocas com pesquisadores de outros países que vêm fazer sua formação no Brasil; as pesquisas comparativas entre o Brasil e outros países, feitas por brasileiros ou não; e a maior visibilidade conferida à diversificação dos objetos de estudo em outros contextos nacio-nais, com especial recorrência dos estudos africanistas e daqueles

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realizados em países com forte tradição em antropologia (como Estados Unidos, França e Inglaterra) ou na América do Sul.

Nesse trânsito, do ponto de vista da literatura antropológi-ca, observamos que existem três grandes tendências de discussão: uma voltada para a relação entre a produção antropológica e os estados nacionais; a abordagem da antropologia histórica, que busca menos generalizar sobre a história da antropologia no Bra-sil do que reconstituir seu desenvolvimento, atentando para as particularidades de cada caso e contexto; e as reflexões sobre a inserção etnográfica em contextos extranacionais. No que tange a esta última abordagem, verificamos uma rica produção que pro-blematiza a inserção em campo de pesquisadores que se dirigem ao exterior tanto no que diz respeito à realização de suas pesqui-sas em ambientes acadêmicos estrangeiros (pesquisas que podem ser a respeito de seu próprio país1, do país ao qual se destinam ou de um terceiro país – embora esta última possibilidade seja a menos recorrente) ou mesmo sua inserção em outros contextos nacionais. Encontramos problematizações desse último tipo nos trabalhos de Ruben Oliven (1998) sobre a ideia de dinheiro nos Estados Unidos e no Brasil, de Gustavo Lins Ribeiro (1998) so-bre imigrantes em São Francisco, de Claudia Fonseca (1987) so-bre grupos populares na França, de Cornelia Eckert (1992) sobre mineiros franceses, entre outros. Vários dos trabalhos que com-põem esta coletânea dialogam com essa produção e trazem suas próprias reflexões acerca do tema (ver seção final deste texto).

Os estudos sobre a história da antropologia produziram e ainda vêm produzindo trabalhos muito significativos sobre a antropologia feita no Brasil e suas intersecções com outros con-textos. Verificam-se ainda, nos últimos anos, estudos interes-sados em estender a compreensão dos contextos da disciplina para outras paragens, como é o caso do trabalho de Christiano

1 Esta tendência parece ser a mais representativa historicamente e vem ocor-rendo já há bastante tempo. Para sermos absolutamente sucintas, citamos as reflexões de Gilberto Freyre nos idos de 1930.

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Tambascia nesta coletânea. Esses trabalhos, ao situarem uma par-ticularidade – muitas vezes uma trajetória acadêmica – em seu contexto histórico, podem mesmo prescindir da circunscrição de seu objeto com base na ideia de estado-nação, pois a abordagem biográfica parece permitir, não só no que diz respeito à história da disciplina, articular sujeito e sociedade, antropólogo e contexto disciplinar. Nessa vertente, destacamos os trabalhos pioneiros de Mariza Corrêa (1987; 1998; 2000; 2003) e alguns dos inúme-ros trabalhos que dialogam com sua produção: Passador (2002), Massi (1989), Limongi (1989), Pontes (1998), entre outros.

No que diz respeito às análises realizadas em relação ao estado-nação, Mariza Peirano (1991a) articula as trajetórias de pesquisadores franceses e alemães a seus objetos de pesquisa e aos contextos nacionais em que elas se desenvolveram, e Ro-berto Cardoso de Oliveira (e.g. 1999; 2000) propõe e discute a oposição entre uma “antropologia central” e uma “antropologia periférica”2. Representativos são também estudos como os de Ly-gia Sigaud, Federico Neiburg e Benoit L’Estoile (2002), Omar Ribeiro Thomaz (2001), João Pacheco de Oliveira (1998) e An-tonio Carlos de Souza Lima (1995), entre outros. Os trabalhos de George Stocking (e.g. 1991) também podem ser aqui enqua-drados, principalmente sua oposição entre as antropologias de empire building e nation building (Stocking, 1982). A oposição defendida por Stocking de certa forma serve de base para a dis-cussão dos outros autores aqui mencionados. Segundo o autor, as antropologias nacionais estudariam principalmente as popu-lações de seu próprio território, estando associadas ao propósito de construir a nação, ao passo que as antropologias realizadas nas metrópoles abarcariam uma extensão territorial muito mais ampla, não limitada por suas próprias fronteiras.

2 Em diálogo com essa linha de reflexão, mas sem assumir sua perspectiva, temos, por exemplo, o texto de Héctor Guerra Hernandez nesta coletânea.

Alguns dos estudos sobre a disciplina voltam-se principal-mente para a relação entre o conhecimento produzido e os es-tados nacionais no interior dos quais as pesquisas se dão. Na formulação de Peirano (1991b), sendo a antropologia pratica-da a partir de instituições acadêmicas modernas cujas tradições são inventadas no interior de fronteiras nacionais, cabe ater-se à forma pela qual cada contexto nacional – com sua diversidade interna – produz a experiência de deslocamento que alimenta a teoria antropológica. Nessa linha, seria possível explicar a ten-dência brasileira de realizar pesquisa em seu próprio território e constituir objetos de pesquisa que não exigem deslocamentos ter-ritoriais para outros países como parte da ideologia nacionalista que constituiu o pensamento social brasileiro e da vinculação das elites intelectuais aos desígnios da constituição do Estado brasi-leiro. No Brasil, o deslocamento praticado para estudar um fe-nômeno que não diga respeito diretamente a questões nacionais deu-se basicamente na vertente da etnologia clássica nos termos formulados por Viveiros de Castro (1999), que reivindica um olhar para os índios que não parta do recorte da relação entre índios e sociedade nacional, mas os considere em sua particulari-dade. Esta é uma abordagem muito forte no contexto brasileiro – quiçá a mais representativa3–, presente desde o estabelecimento da disciplina e responsável em grande medida por sua projeção. O interesse pelos ameríndios, a disponibilidade de financiamento para realizar tais pesquisas e a facilidade do trânsito em território nacional certamente são fatores a serem levados em conta para compreender essa predominância, embora não sejam os únicos4.

3 Não é à toa que Montero (2004) afirma ser o campo da etnologia indí-gena aquele onde se observa maior internacionalização do conhecimento, entendida como diálogo com pesquisadores estrangeiros, publicações no exterior e publicações de estrangeiros em revistas brasileiras, especialmente no periódico Mana (Montero, 2003).

4 Não pretendemos reduzir os estudos realizados pela etnologia indígena a sua relação com o estado-nação. Exercitamos apenas uma das formas de leitura do campo da antropologia no Brasil a partir da perspectiva que ora discutimos. Ela será submetida a crítica a seguir.

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Os estudos que se voltam para a relação entre antropologia e Estado costumam estar preocupados com uma antropologia que se dirige a um outro país – geralmente territórios ditos “perifé-ricos” – e relaciona a produção antropológica com o contexto do estado-nação de origem dos pesquisadores, levando em conta aspectos como financiamento, relações com o Estado, aspirações do Estado na produção desse conhecimento. Sigaud, Neiburg e L’Estoile afirmam que “onde o senso comum acadêmico lamenta os efeitos poluidores da política sobre a ciência, a análise histó-rica e comparada permite colocar em evidência uma relação de dependência mútua entre a ação política, a elaboração e a imple-mentação de políticas estatais por parte dos agentes da adminis-tração, e a produção de conhecimento sobre as populações que estes administram” (2002: 17). Embora não haja uma determi-nação imediata entre uma coisa e outra – os autores da coletânea falam na existência de uma “afinidade eletiva” entre a produção de conhecimento e a administração do Estado –, é possível afir-mar que o interesse suscitado pelos estudos africanistas no atual contexto brasileiro é em parte tributário de uma tendência de valorização das “raízes africanas” do Brasil e de incentivos muito concretos nesse sentido – disponibilidade de financiamento, exis-tência de várias instituições voltadas para o tema, obrigatoriedade da presença de história da África no currículo dos ensinos funda-mental e médio5.

Nessa linha, Antonio Carlos de Souza Lima mostra como a consolidação da antropologia como disciplina acadêmica no Brasil nos anos 1960 é mais bem compreendida quando consi-

5 Vale ressaltar que os estudos sobre África no Brasil concentram-se muito mais nos países lusófonos, em parte impulsionados pela questão da luso-fonia, por comunidades como a CPLP e pelos congressos sobre o tema. Existe mais disponibilidade para investimentos em pesquisas nesse campo do que em outras regiões da África, tanto no Brasil quanto em Portugal, o que facilita o trânsito para os Países Africanos de Língua Oficial Portugue-sa. A esse respeito ver Dias, Thomaz e Trajano (2008).

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derada à luz da participação dos antropólogos na formulação de políticas estatais (Souza Lima, 2002) em um momento em que a constituição do discurso nacionalista no Brasil era forte. No que diz respeito ao contexto atual, o aumento na relativa pro-jeção internacional brasileira guarda uma relação de homologia com o movimento para o exterior que adquire maior visibilida-de em algumas instituições. Guardadas as devidas proporções e sem ter a pretensão de dotar a história de linearidade, um movimento semelhante ocorreu nos Estados Unidos na década de 1940, quando a antropologia americana voltou seu olhar para fora – por exemplo, com os trabalhos de Ruth Benedict e Margaret Mead sobre os japoneses e os melanésios e os tra-balhos de Pierson e Herskovitz sobre relações raciais no Brasil, para citar alguns poucos – em paralelo com a projeção inter-nacional assumida pelos Estados Unidos (Goldman e Neiburg, 2002). Até então, os estudos antropológicos americanos haviam se pautado por teorias trazidas principalmente por estrangeiros, especialmente alemães, como Franz Boas, e voltavam-se priori-tariamente para os povos indígenas da América do Norte e as comunidades de imigrantes no interior da fronteira norte-ame-ricana. Embora não haja causalidade simples entre a política imperialista americana e os area studies, o olhar para a história indica que as duas coisas costumam vir associadas. Assim, apa-rece aqui novamente o argumento de que uma antropologia nacional tende a estudar “a si mesma”, ao passo que uma antro-pologia internacional goza da liberdade de estudar “a si mesma” e “aos outros”. Mas é claro que este tipo de análise se complica muito quando se questiona quem somos “nós” e quem são “os outros” e se analisam as concepções de território relacionadas a essas categorias. Os textos dos autores desta coletânea fornece-rão, cada um a seu modo, leituras que estabelecem um diálogo com esse questionamento.

Parece-nos que se fôssemos seguir a linha de raciocínio apon-tada por esses autores, levando em conta o momento atual da disciplina, seria possível defender a ideia de que o Brasil estaria

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saindo de um desses polos ideais – o da antropologia preocupada em constituir a nação – em direção a um outro polo ideal – o da antropologia que pretende constituir um império –, ainda que esteja mais próximo do primeiro6. Nota-se, para além da questão do olhar para fora, a presença de alguns antropólogos brasilei-ros de relativa projeção internacional, o que tempos atrás ocorria apenas com estrangeiros que haviam feito pesquisa no Brasil ou aqui se estabeleceram (vide Bastide e Lévi-Strauss, para sermos absolutamente sucintas). Nessa linha argumentativa, cabe apon-tar, entretanto, que esses antropólogos brasileiros ganharam pro-jeção principalmente a partir de estudos realizados nos limites do território nacional. Não se pode dizer que seja um fenôme-no corrente no Brasil a existência de pesquisadores de projeção internacional que sejam brasileiros e estudem outras áreas. Os autores alinhados a essa vertente geralmente falam em uma dico-tomia, constituída a partir da circulação de ideias, que assimila o “nacional” ao “periférico” e o “internacional” ao “central”. A partir dessa associação, podem-se estudar as condições sociais que serviram de base para a criação dessas dicotomias. Não é nosso intuito abraçar esta tarefa, mas nesse quesito a questão linguística certamente se faz presente, na medida em que o acesso a outras línguas, assim como aos debates que circulam internacionalmen-te – o que no meio acadêmico inevitavelmente passa por idiomas

6 “Nação e império aparecem assim não como duas categorias exclusivas, mas como dois polos dos quais se aproxima ou afasta cada configuração social especificamente situada no tempo e na geografia. Mais um estado tem capacidade de projeção para o exterior (sob forma colonial ou hege-mônica), mais seus antropólogos tenderão a ‘fazer campo’ fora das fron-teiras nacionais. Uma análise como esta evita a essencialização própria das reflexões em termos de relações entre ‘centro’ e ‘periferia’, vinculando as transformações que ocorrem em tradições antropológicas singulares com a historicidade da interdependência entre os estados” (L’Estoile, Neiburg e Sigaud, 2002: 25).

estrangeiros, principalmente o inglês –, é determinante no movi-mento da “periferia” para o “centro”7.

Contudo, esta perspectiva, alinhada a Stocking (1982) e de-fendida em linhas gerais por Roberto Cardoso de Oliveira (1999; 2000), e talvez em grande medida semelhante à posição de Reis (1991), embora com outras ênfases, foi rebatida por alguns au-tores. Otávio Velho (2006) afirma que um outro tipo de orien-talismo pode ser constituído ao se promover a periferia como fonte essencial de autoridade e a ideia de que as “antropologias nacionais” são fontes de alternativas sui generis de conhecimento. O autor vê como problema a demanda agonística, na antropolo-gia, por um “outro” que possa oferecer diferença ao “mesmo”. Na visão de Velho, a formulação de Stocking acaba por criar uma ex-pectativa de que as antropologias nacionais forneçam saídas para as antropologias do centro, a despeito de terem sido moldadas por elas. Velho pergunta-se sobre o que poderá substituir a antro-

7 Seguindo a homologia entre contexto político e disciplinar, percebe-se a substituição da centralidade francesa pela centralidade americana, que pode ser atribuída não só ao contexto internacional mais amplo, mas tam-bém ao lugar ocupado hoje pela língua inglesa. O caso francês permite uma leitura não linear da história, no sentido de que a França passa hoje por um processo de nacionalização de sua antropologia, com o desmonte do aparato colonial, a escassez de financiamento para pesquisa e o pouco uso do francês internacionalmente. Ela se aproxima, portanto, da “perife-ria”, num movimento inverso ao americano. Nota-se, ainda, que os pes-quisadores de países fora do eixo tradicional da disciplina – EUA, França, Inglaterra – escrevem preferencialmente em inglês, sendo esta uma regra do jogo, no sentido que lhe atribui Bourdieu (1983), para a aproximação ao “centro”. A questão linguística pode ainda explicar por que a maior parte dos estudos feitos no Brasil sobre outros contextos se volta principal-mente para países de língua inglesa, francesa, espanhola ou portuguesa: são estas as línguas priorizadas no ensino superior brasileiro como um todo e nos programas de pós-graduação em antropologia. No caso do espanhol, é a primeira língua de muitos estudantes de outras nacionalidades que vêm fazer sua formação no Brasil. Voltar-se para outras línguas exigiria um esforço adicional, muitas vezes não previsto pelo tempo de pesquisa, financiamento e histórico das pesquisas.

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pologia de nation-building no Brasil e aponta como importante a desconstrução dos modelos de referência não só “entre nós”, mas num diálogo internacional.

Lins Ribeiro (2005; 2006) defende a ideia de que o campo político e epistemológico da antropologia é atravessado por for-ças sociológicas e históricas que se relacionam às dinâmicas do sistema mundial e dos estados nacionais. Assim, seria necessário entender a disseminação do conhecimento antropológico nos vá-rios estados nacionais de modo a contribuir para que as antropo-logias se abram para o “potencial heteroglóssico da globalização”. Para o autor, a antropologia desenvolvida no Atlântico Norte não daria conta das antropologias desenvolvidas em outros contextos nacionais, nem de outras cosmopolíticas. Lins Ribeito alinha-se à ideia de que há antropologias de construção da nação e de cons-trução de impérios, mas afirma que a “antropologia hegemônica” passa por uma crise de representação resultante do embaçamen-to das linhas divisórias entre nativos e não nativos. Em defesa da presença internacional de antropologias não hegemônicas e de que seu impacto no cenário antropológico internacional seja incorporado à produção antropológica com vistas à polifonia, o autor critica as oposições de Roberto Cardoso de Oliveira entre antropologias centrais e periféricas (1999; 2000), o que denomi-na “dilema de Stocking” (1982), e a ideia de “antropologias do Sul” de Krotz (1997). De seu ponto de vista, tais dicotomias não dariam conta de “ordens transnacionais” (e para ele, por trás da construção de um império há sempre um estado-nação). O autor afirma que não há nenhuma antropologia que se volte totalmente para o estado-nação, pois para que sua validade seja aceita ela pre-cisa passar por critérios que permitirão ou não sua consagração em uma comunidade cosmopolita. Sua análise pretende diluir a oposição entre “centro” e “periferia” olhando para o sistema mun-dial e para o imbricamento necessário entre as várias situações de um contexto mais amplo.

Johannes Fabian (2006), em resposta à proposta de Lins Ri-beiro, rejeita a afirmação de que a antropologia é uma disciplina

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universal. Sua crítica coloca em foco a interação a partir da qual os antropólogos produzem suas obras: se a antropologia é produ-zida dialogicamente, não se pode atribuir sua agência somente aos antropólogos (venham eles de onde vierem). Para o autor, as “antropologias do mundo” devem colocar um desafio contínuo ao conceito de cultura a partir de perguntas sobre o “quando”, e não sobre “quem” ou “onde” (o que vai ao encontro da defesa de Fabian do reconhecimento da coetaneidade – coevalness – entre o antropólogo e os nativos na produção antropológica (Fabian, 1983)). O autor reitera que a ideia de que é a geografia que deter-mina a “periferia” é falsa, pois esta não existe naturalmente – ela é criada pela economia e pela política –, e defende o argumento de que a desigualdade pode também ser sentida em lugares designa-dos como “centro”. Vai ainda mais longe ao considerar “sistema mundial” ou “globalização” como fachadas quase cosmológicas, que escondem sua natureza política. Enfim, Fabian questiona o caráter autoevidente da nação, que permite que se fale em “an-tropologias nacionais” como se fossem “estilos” distintos de fazer antropologia, amarrando o conceito de cultura a uma ideia de estado-nação como realidade política fornecedora de identidade coletiva. O que ele vê de positivo na antropologia é o fato de ter sido bem-sucedida em fazer com que alguns de seus participantes se vejam como transnacionais e já não se identifiquem a uma identidade nacional sem questionamento. Para o autor, isso se dá primeiramente em nível individual (e depende de características como ter laços transnacionais, dominar outras línguas e culturas, ter laços de amizade e profissão em contextos distintos), mas o “quando” da antropologia mundial de que fala Fabian chegará quando houver um número suficiente de indivíduos desse tipo. Considerando o conceito de prática mais fundamental do que o de cultura para a antropologia, posiciona-se contra as ideias de “centro” e “periferia” porque as práticas antropológicas ocorrem em eventos e movimentos: não adquirem sua identidade de um discurso comum, mas do fato de que enfrentam juntas o desafio

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de se constituírem no confronto com um mundo que não é a antropologia.

A perspectiva assumida por João de Pina Cabral de certa for-ma também se contrapõe à ideia de estado-nação, embora dialo-gue com ela, na medida em que coloca muito mais a necessidade de questionar categorias nacionais ou étnicas do que a proposta de partir delas como categorias de análise. Aproxima-se de Fabian ao propor uma crítica das categorias, que é o que pretendemos, em última análise, com esta introdução. Ao se questionar sobre “se podemos estar seguros quando adjectivamos como ‘portugue-ses’ todas estas pessoas, espaços e tempos” (Pina Cabral, 2004: 377), o autor se pergunta se estudos que partem desse pressupos-to não contribuem para naturalizar categorias como “o Estado” e “as nações” em vez de analisar os processos por meio dos quais essas categorias são constituídas.

A partir desse questionamento, pode-se defender a ideia de que não existe a especificidade de uma antropologia que se pos-sa dizer “brasileira”, e não pretendemos defender essa categoria porque um pensamento que se pretende analítico deve ser capaz de passar por uma crítica dessas fronteiras, ainda que elas sempre estejam em certa medida postas pelo contexto, pelas práticas e pelos discursos8. Assim, embora a questão do estado-nação possa ser um recorte interessante para pensar as determinações contex-tuais postas para qualquer pesquisa, se esta coletânea pretende defender alguma posição Nesse debate, esta é a de que a antropo-logia deve ser um lugar de crítica das categorias. Os textos aqui apresentados lidam cada qual a seu modo com esta questão e oferecem saídas diversas para ela do ponto de vista de uma análise empírica. Há um diálogo entre os textos no que diz respeito a essas problematizações e, para além disso, eles apresentam, quan-do vistos em conjunto, consonâncias e dissonâncias expressivas.

8 Nessa mesma linha de raciocínio encontra-se a recuperação de Mariza Pei-rano de uma ideia de Mário de Andrade, com a qual inicia um de seus textos: “acontece-me viver no Brasil” (Peirano, 1991a).

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Nosso intuito, aqui, é apresentar casos específicos desse movi-mento, que se esforçam por desenvolver uma discussão metodo-lógica da questão e apresentar um objeto empírico constituído nesse deslocamento, ou refletem sobre o trânsito entre teorias. Talvez seja este o caminho – empírico – para evitar lidar com a ideia de “centro” e “periferia”.

alguns deslocamentos em sua particularidade

Os textos desta coletânea refletem em grande medida as ten-dências de discussão sobre pesquisa em contextos extranacionais apontadas acima. Alguns dos trabalhos voltam-se prioritariamen-te para a inserção dos antropólogos em campo em contextos ex-tranacionais, nos quais, embora não fosse este o foco específico da pesquisa, a questão identitária acaba por emergir por contras-te. Quase todos os textos incluem a questão em alguma medida; alguns a discutem em profundidade. Este é o caso, por exemplo, do artigo de Fernanda Bittencourt, no qual a autora reconsti-tui seu percurso de pesquisa junto a instituições de proteção à infância na França e reflete sobre sua inserção em campo, apre-sentando o jogo identitário e relacional que vivenciou em uma das instituições, Caval, voltada para a acolhida de famílias mono-parentais cujos filhos estão sob tutela do Estado. Ela afirma que sua condição de brasileira – e portanto vinculada a um país cujos problemas no que diz respeito à pobreza e à infância eram bas-tante conhecidos na França, inclusive pelos sujeitos com os quais interagiu –, solteira e sem filhos determinou a relação com seus sujeitos de pesquisa, em sua maioria mães de várias crianças. A autora discorre ainda sobre um momento inesperado da pesqui-sa, qual seja, seu retorno à instituição dois anos depois da defesa para uma jornada de restituição em que apresentou suas críticas à instituição e teve seu trabalho amplamente discutido. Embora o foco do texto não seja a comparação, seu trabalho na França tem uma relação de continuidade com o trabalho iniciado no Brasil, também preocupado com as práticas de intervenção alinhadas ao

discurso homogeneizante dos direitos humanos. Em ambos os trabalhos, a defesa é de que a etnografia, ao olhar para a particula-ridade dos diversos contextos, contribui para a não reificação dos sujeitos enquadrados por categorias mundializadas pelo discurso dos direitos humanos, Nesse caso específico, “crianças em perigo” ou “famílias de risco”.

Luena Pereira também experimentou a situação inusitada da restituição ao discutir sua dissertação sobre os Bakongo em An-gola com os funcionários da ONG que apoiara sua pesquisa de mestrado e também com alguns amigos bakongo e professores angolanos. A autora narra sua trajetória de pesquisa tendo em foco o reposicionamento de suas identidades racial e religiosa a partir de sua inserção no sistema de classificações da sociedade angolana. O texto parte de uma discussão da bibliografia sobre relações raciais no Brasil, passando pela comparação com os Es-tados Unidos e voltando-se para os estudos mais recentes sobre contextos coloniais comparados, os quais contrapõem países afri-canos de colonização inglesa a países de colonização portuguesa, como Brasil e Moçambique. Esses estudos defendem o argumen-to de que a colonização britânica teria produzido uma diferença racial mais rígida, ao passo que a portuguesa teria dado ensejo a classificações raciais mais fluidas e assimilacionistas, menos essen-cializadas, ressoando o lusotropicalismo freyreano. Ao recuperar seu trabalho de campo, contudo, a pesquisadora mostra como as questões raciais em Angola e Brasil, diferente do que a aná-lise proposta pelos estudos mencionados acima levaria a supor, adquirem configurações completamente diferentes. Se no Bra-sil ela era geralmente classificada como “mestiça” ou “negra”, em Angola, ainda que a categoria “mestiça” pudesse lhe ser aplicada, tinha um sentido completamente diverso daquele ao qual estava habituada no Brasil: remetia às elites luandenses e a sua apro-ximação com o universo branco, o que inclusive permitia que fosse lida como tal pelos Bakongo com os quais interagiu. Nesse sentido, sua experiência de pesquisa, ao causar estranhamento e desconforto identitário, produziu um reposicionamento em suas

próprias identidades, inclusive religiosa. Também sua pesquisa, ao confrontar as teorias correntes com seu caso de estudo, contri-bui para a particularização de grandes generalizações.

Também eminentemente etnográfico é o texto de Marta Cioccari, que se debruça sobre sua inserção em campo entre os mineiros da recém-fechada mina de La Houve, em Creuzwald, na Lorena francesa, numa comparação com sua pesquisa entre mineiros em Minas do Leão, RS, Brasil. A autora discute como sua condição de brasileira, jovem e solteira (e, no caso da pesquisa na França, descendente de imigrantes italianos) interessada em trajetórias masculinas colocou-a em situações distintas nos dois contextos, tendo determinado a sua relação com os sujeitos de da pesquisa. O texto presta uma atenção minuciosa a sua inser-ção em campo, mostrando como se deu a aproximação com os mineiros (brasileiros, franceses e imigrantes de diversas naciona-lidades na França) e como estes leram sua presença. Termina com uma discussão acerca dos impactos teóricos dessa dupla inserção etnográfica, refinando a hipótese inicial de sua pesquisa – de que o ethos dos mineiros pautava-se pelo heroísmo – para uma análise que considera tanto o que veio a denominar “grande honra”, re-lacionada a esse sentimento heróico, quanto a “pequena honra”, presente nos momentos mais cotidianos da vida dos mineiros.

Já o trabalho de Héctor Guerra propõe questionar o uso de certas categorias com base em sua experiência de campo. Par-tindo da perspectiva de que seu estudo é realizado a partir de uma posição que pressupõe certa “subalternidade” em relação aos cânones da disciplina – na medida em que é realizada no Brasil por um pesquisador chileno –, olhando para um outro contexto “periférico” – os Magermane em Moçambique –, o autor defende o argumento de que muitas vezes assumimos de forma impen-sada categorias gestadas no próprio bojo do colonialismo para descrevermos a nós mesmos e a outros em posição semelhante. Assim, seria necessário olhar para o processo de produção dessas categorias naturalizadas pelo discurso antropológico para locali-zar o lugar de sua enunciação e questionar a ideia de que é possí-

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vel desterritorializar os pesquisadores e os conhecimentos por eles produzidos, sendo necessário inseri-los na história e nas relações de poder que a constituem. Feita essa crítica, somos levados ao contexto etnográfico dos Magermane em Maputo, antigos traba-lhadores da República Democrática Alemã que se autoclassificam como um “grupo socioprofissional reivindicativo”. Percebe-se en-tão como categorias tais como gênero e cidadania são lidas por eles de forma muito distante daquela geralmente apregoada pelo discurso acadêmico e político. A partir desse contraste, procura--se mostrar a distância entre discursos e, com isso, ao mesmo tempo questionar a aplicabilidade de categorias tão genéricas para sujeitos tão específicos. A partir dessa constatação, o autor pensa o rigor cientificista mais como um mecanismo de controle e regulação do próprio circuito de produção de conhecimento, que por sua vez atingiria mais o pesquisador do que o pesquisado.

Christiano Tambascia deslocou-se de seu contexto de pes-quisa no Brasil para fazer um estágio sanduíche na Inglaterra e para um período de pesquisa nos arquivos da Universidade de Northwestern nos Estados Unidos, movido por sua pesquisa de doutorado, que se voltava para a trajetória da Mary Douglas. Ini-cialmente com a ideia de conversar longamente com a autora sobre sua pesquisa de campo, uma vez que se interessava pelo lugar que esta teve na teoria que a tornou conhecida na disciplina posteriormente, viu os rumos de sua pesquisa mudarem com o adoecimento e subsequente falecimento da antropóloga. O au-tor traz para o texto as diversas negociações que marcaram sua inserção em campo – com os funcionários dos arquivos onde fez pesquisa; com os pesquisadores ingleses, que duvidavam de uma pesquisa que confiasse na memória da antropóloga sobre um pe-ríodo de campo tão longínquo; com a própria Mary Douglas durante o pouco tempo em que conviveram. Sua reflexão volta-se para a relação entre as diversas formações e tradições de pesquisa que entram em interação quando um antropólogo se desloca de um contexto analítico para outro. Trata-se de uma reflexão sobre a inserção em campo que, por se voltar para um objeto empírico

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que frequentemente ocupa o lugar de analista na antropologia, acaba por ser uma reflexão teórica.

Um movimento parecido perpassa o texto de Bárbara Weiss, que se preocupa com o lugar dos judeus asquenazitas no discur-so antropológico e defende o argumento de que, na disciplina antropológica, é bastante improvável alguém se encontrar, do ponto de vista de seu lugar no mundo social, simultaneamente na posição de pesquisador e pesquisado. O caso dos judeus é um exemplo particularmente instigante porque, ainda que tenham ocupado uma posição de alteridade radical em diversos momen-tos da história europeia, em especial durante o nazismo, a pro-dução antropológica a seu respeito é praticamente inexistente. Para a autora, é como se eles pertencessem às outras disciplinas das ciências humanas justamente por ocuparem, na antropologia, o lugar de pesquisadores. Assim, seu texto tem como objetivo realizar uma aproximação entre a disciplina antropológica e os estudos feitos sobre os judeus alemães, em especial as várias cor-rentes de discursos sobre a relação entre os judeus e os alemães no período que antecedeu a Segunda Guerra e sua relação com a shoá, passando por autores como Arendt Kremer, Shulamit Volkov, Avraham Barkai, Hannah Arendt, Gerschom Scholem, Julia Neuberger e Zygmunt Bauman. A autora argumenta que os judeus são um caso interessante de minorias vistas como alterida-de no interior da própria sociedade ocidental, devendo ser inte-grados ao arcabouço de reflexões da antropologia. Na verdade, o que surpreende é que isso ainda não tenha acontecido.

Finalmente, Luiz Henrique Passador reflete sobre um trân-sito teórico, qual seja, sua proposta de releitura das relações de gênero, da cosmologia guerreira e das teorias acerca do parentes-co e da aliança no Sul de Moçambique à luz das proposições da etnologia americanista contemporânea. Olhar para a medicina tradicional e a feitiçaria no contexto de sua pesquisa de campo a partir do debate pautado pelos ameríndios permite, segundo o autor, criticar uma leitura dos contextos africanos centrada na relação dos sujeitos de pesquisa com o colonialismo. Sua abor-

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dagem propõe, diferentemente, pensar uma continuidade entre as guerras pré-coloniais, as alianças estabelecidas com os coloni-zadores e as configurações sociais e simbólicas atuais a partir de uma leitura que privilegie os princípios cosmológicos que ope-ram na porção meridional de Moçambique, entre eles, a tendên-cia de pacificação do inimigo através da aliança; a existência de gradientes concêntricos de alteridade e de uma possibilidade de afinização do outro; o lugar ambíguo que ocupam as mulheres, ao mesmo tempo incorporadas como parentes após o casamen-to numa sociedade patrilinear, mas particularmente propensas à feitiçaria porque vindas de fora; a centralidade da guerra e das relações de vassalagem estabelecidas pelos antigos habitantes dos territórios com aqueles que se tornavam os “donos da terra” a partir de relações de conquista. O texto defende que é possível iluminar um determinado contexto a partir de teorias produzi-das como explicação para um outro. Nesse sentido, o argumento defendido por Passador é de que as teorias de linhagens, embora produzidas para o contexto africano, não dariam conta dos fenô-menos observados no Sul de Moçambique, sendo possível enxer-gar isso a partir de um diálogo com a produção sobre o contexto ameríndio.

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Porto Alegre – Paris – Île D’Yeu, ida e volta: percurso de pesquisa9*

Fernanda Bittencourt Ribeiro

paris, ehess, 2000. uma surpresa

Três colegas brasileiras, um francês e eu conversávamos so-bre nossos temas de pesquisa para a tese de doutorado10. Nicolas estudava a área cultural soviética. Para nós, as quatro brasileiras, nossas pesquisas de campo estavam todas situadas na França. Isto provocou surpresa em nosso colega, que observou: o mais comum é nós irmos “fazer campo” no país de vocês! Continuando a conver-sa, cada uma falou um pouco mais de seu objeto de estudo: as populações sem domicílio fixo (Magni, 2002), os novos movimen-tos religiosos problematizados na França enquanto movimentos sectários (Rodolpho, 2002), a problemática da imigração vista a partir da missão-França dos Médecins du Monde (Ferreira, 2004) e as práticas de ajuda e de intervenção social na família em nome da proteção da criança (Ribeiro, 2005). Mais uma vez Nicolas

9 Este texto é uma versão modificada e resumida do artigo Pratiques d’intervention sociale et dialogues ethnographiques, publicado na revista Vi-brant (on line), v. 4, n. 1, 2007. pp. 97-125. Agradeço Christiano Tambas-cia, Iracema Dulley e Marta Jardim pela leitura atenta, seus ricos comentá-rios e sugestões.

10 Agradeço à CAPES pela concessão da bolsa de doutorado pleno no exterior.

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manifestava sua surpresa constatando: além do mais, vocês tratam de assuntos que a sociedade francesa prefere esconder. Quase ao mes-mo tempo que nós, ele se dava conta de que nossas quatro teses tratariam de grupos designados como “problemáticos” na França. A surpresa devia-se também ao fato de que este interesse partia de doutorandas cujo país de origem é conhecido na Europa por seus graves problemas sociais.

O procedimento de Nicolas, de ir pesquisar longe da Fran-ça, aprender uma nova língua, familiarizar-se e tentar entender modos de fazer e de pensar diferentes daqueles de sua sociedade, inscreve-se perfeitamente na tradição da disciplina antropológi-ca, fundada sobre o estudo do Outro pelo Outro. Nós também, situando nossas pesquisas de campo na França, repetíamos este procedimento clássico. Entretanto, na medida em que a antropo-logia consolidou-se nos centros universitários através do estudo etnográfico de povos não europeus ou primitivos, o Brasil foi uma das principais terras de destino dos antropólogos. Afirmando-se como alguém que estuda a área cultural soviética, nosso colega francês está completamente de acordo com a tradição da disci-plina antropológica em seu país, onde na maioria das vezes, os antropólogos definem-se como africanistas, americanistas, ocea-nistas, etc. Foi no Brasil que a tradição se fez de outro modo. Se a etnologia indígena desenvolvida por antropólogos brasileiros teve uma trajetória semelhante à antropologia francesa, inglesa e ame-ricana, situando os pesquisadores como americanistas, a ênfase nos estudos sobre a sociedade nacional coloca a tradição antropo-lógica brasileira em contraste com o começo da disciplina. Disto decorre que a antropologia no Brasil é, com bastante frequência, uma antropologia do Brasil (Carneiro, 1995), enquanto o voltar--se para sua própria sociedade é um desdobramento relativamen-te tardio da antropologia realizada na Europa. A etnologia da França, por exemplo, desenvolveu-se principalmente a partir dos anos 60 do século XX (Zonabend, 1985; Bromberger, 1987). Em 1985, Françoise Zonabend, cujos estudos tratam entre outros te-mas do parentesco na sociedade francesa, observava:

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as monografias etnológicas sobre a França contemporânea cons-tituem um aporte original a este procedimento tão particular que consiste em realizar uma etnologia de sua própria sociedade e em tentar pensar o Mesmo com os olhos do Outro (Zonabend, 1985: 37)No caso brasileiro, conforme Peirano (1992), a promessa for-

mulada por Lévi-Strauss nos anos 60 de uma antropologia cuja natureza seria bidirecional inspirou, entretanto, procedimentos de inversão da tradição. Desde os anos 80, como atesta um nú-mero da revista Comunicações do PPGAS do Museu Nacional do Rio de Janeiro, registram-se teses de doutorado realizadas por brasileiros a partir de pesquisas situadas fora do território nacio-nal11. Na introdução desta revista, onde são apresentadas duas teses defendidas na França, uma na Inglaterra e outra nos Estados Unidos, Gilberto Velho (1995), além de sublinhar a curiosa inver-são do campo tradicional, observa que a mudança de perspectiva permite imaginar o desenvolvimento de novos tipos de diálogo e de investigação entre “centro” e “periferia” (Velho, 1995, p. 5).

Nesse artigo, ao refazer o percurso de minha pesquisa na França, viso seguir esta pista e me voltar à possibilidade de trocas renovadas. Cabe, no entanto, sublinhar que as trocas que estas experiências de pesquisa podem ensejar não se dão facilmente e de maneira fluida. Falando, no Brasil, desta pesquisa realizada na França, com frequência confrontei-me, por exemplo, com a difi-culdade da contextualização. Seguidamente, estudantes, agentes

11 A lista de trabalhos apresentada Nesse número localiza duas teses realiza-das na França, uma maioria de pesquisas feitas nos Estados Unidos e um número também significativo de trabalhos produzidos na área lusófona ou na América Latina. Atualizando este inventário, constataremos que o número de estudos com esta característica aumentou bastante desde então. A título de exemplo vale destacar que em 2007, dois números da revista Vibrant (on line) reuniram artigos de pesquisadores brasileiros que tiveram experiências de pesquisa na França (v.4, n.1, janeiro-junho, 2007) e nos EUA (v.4, n.2, julho-dezembro, 2007).

de proteção à infância ou colegas pesquisadores com quem con-versava a respeito de minha pesquisa tinham familiaridade com as categorias em uso no campo do atendimento à infância – famí-lias em dificuldade, criança em risco, etc. No entanto, quando eu as utilizava para dizer as designações que enquadram institucio-nalmente parte daqueles com quem estive em contato através da pesquisa, eu remetia meus interlocutores a uma imagem bastante falsa do contexto francês. Quando as diferenças estavam minima-mente estabelecidas, a alteridade produzida em relação aos “po-bres de lá” parecia obstaculizar uma possibilidade que sempre me pareceu instigante, qual seja, colocar em perspectiva contextos muito distintos, mas igualmente marcados pela adesão discursiva aos direitos humanos, aspecto que participa do chamado proces-so de ocidentalização do mundo (Godelier, 2001).

Apesar dos vários obstáculos deste diálogo12, o argumento que busco defender é o de que uma abordagem etnográfica dos modos de intervenção social – práticas de ajuda, proteção e con-trole social – que de um país a outro estão alinhados sob o idioma genérico dos direitos humanos pode contribuir para a não rei-ficação de populações designadas por categorias mundializadas. Pode permitir interrogarmos os estereótipos e dar “carne e osso” a personagens que correspondem a categorias gerais de classifi-cação e descrição – os sem domicílio fixo, as mulheres agredidas, as crianças maltratadas – utilizadas no Ocidente para designar as populações-alvo das políticas sociais. Como consequência, afir-mo a especificidade da etnografia e o interesse de sua “fixação” no particular num mundo mundializado. A este propósito e tra-tando do estatuto da comparação e da generalização, Zonabend (1985), a partir dos estudos monográficos levados a cabo pela etnologia da França, argumenta:

12 Entre os quais aponto também a dificuldade do pesquisador, ao voltar ao país, de situar-se num campo de estudos consolidado no Brasil.

pela visão global que eles oferecem dos traços culturais ou dos gru-pos sociais que abordam, pelos procedimentos atentos à prática da pesquisa de campo, pelo recurso a teorizações próprias da etnologia clássica que cria a distância reveladora, estes trabalhos qualitativos realizados a partir de domínios geográficos restritos e praticando de fato uma etnologia do “pequeno” correspondem, na realidade, a uma etnologia do “grande”. (...) [A] generalização torna-se possível, pois se vê claramente a particularidade de cada caso (Zonabend, 1985, p. 35) 13.

Entendo que esta posição é passível de ser também defen-dida em relação à aproximação etnográfica de populações mun-dialmente estigmatizadas e reduzidas a “problemas sociais” de aparente homogeneidade. No que segue, dados etnográficos que colocam em evidência um complexo jogo identitário e relacional, encontrado num contexto institucional francês, serão apresen-tados com o objetivo de demonstrar resistências cotidianas aos processos de homogeneização produzidos pelas práticas de ajuda, proteção ou controle social. Nesse caso, eles decorrem do amplo processo de individualização das crianças frente à família de ori-gem observado nas sociedades ocidentais. Antes disto, retomo o percurso de pesquisa que me levou a instituições francesas de proteção à infância.

paris, laboratório de antropologia social, 1998. um desafio

Para mim, como para minhas três colegas brasileiras citadas anteriormente, a redefinição do problema e do campo de pesqui-sa para a França significou uma mudança do contexto de investi-gação sem, contudo, alterar radicalmente os temas das pesquisas realizadas anteriormente no Brasil.

13 A tradução de textos cuja referência bibliográfica encontra-se em francês foi feita por mim.

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Da minha parte, se o doutorado na França colocava-se cer-tamente como uma tomada de distância em relação ao familiar, em princípio eu não pretendia tomar nenhum segmento da so-ciedade francesa como objeto de estudo. Eu queria aprofundar o estudo das relações entre famílias demandantes de ajuda ou designadas como de risco e agentes de proteção à infância, inicia-do na pesquisa realizada para o mestrado (Ribeiro, 1996). Para o doutorado, de acordo com a tradição, eu pretendia voltar ao Brasil para fazer o campo num bairro popular de Porto Alegre. Isto até o dia em que minha orientadora, Françoise Zonabend, passados três meses de minha chegada a Paris, me fez uma per-gunta que ouvi como um desafio ao mesmo tempo fascinante e assustador: Por que você não faz sua pesquisa na França? Já que estás aqui deverias colocar estas questões Nesse outro contexto.

paris, alésia 14, fevereiro de 1999. um golpe de sorte

Aceito o desafio, era preciso encontrar um ponto de partida. A etnografia clássica prevista no meu projeto de pesquisa a ser realizada no Brasil não seria facilmente transposta para este outro contexto. Eu pensava em Claudia Fonseca, que ao relatar suas ex-periências de pesquisa em grupos populares na França afirmava:

A impressão de que cada casa era uma espécie de cidadela que só poderia ser tomada à força nunca me abandonou durante todo o tempo em que fiz pesquisa de campo na França. (...) Os grandes edifícios nos bairros populares de Paris me pareciam enormes; teria sido preciso estabelecer uma rede de contatos através da escola ou da paróquia (Fonseca, 1987: 93-94).

Decidida a me fixar num lugar capaz de servir como referên-cia para me situar no campo da proteção à infância em Paris, co-mecei por folhear as Páginas Amarelas – anuário telefônico de ser-viços – a fim de identificar instituições situadas Nesse domínio. Munida de uma lista de endereços suscetíveis de corresponder ao

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que eu queria, passei a telefonar, marcar visitas e ir a diferentes estruturas. Finalmente, dois meses depois desta conversa decisiva com Françoise Zonabend, me encontrava muito hesitante dian-te da porta do Centro Francês de Proteção à Infância (CFPE) em Paris. Nesse dia minha pesquisa se iniciava de fato. Através de folhetos que recebi nesta visita, interessei-me pelo trabalho realizado pela associação Alésia 14. Isto em função de seus pro-pósitos de escuta e ajuda a pais em dificuldade. A pesquisa que realizei junto a um Conselho Tutelar de Porto Alegre colocava a hipótese de que a partir da linguagem dos direitos, o processo de individualização da criança trazia o risco de penalizar famílias de grupos populares vivendo em condições de miserabilidade. Os propósitos de ajuda manifestos em materiais de divulgação desta associação parisiense me sugeriam uma alternativa ao efeito punitivo, às famílias pobres, das práticas apoiadas na intenção de proteção das crianças.

A associação Alésia 14 (atualmente CAP Alésia) atua através de uma equipe de psicólogas cujo modo de intervenção – visando ajudar pais ditos maltratantes ou que enfrentam graves dificul-dades com seus filhos – inclui uma escuta telefônica, o acompa-nhamento da família por uma rede de voluntários e entrevistas clínicas propostas a pais conscientes de seus comportamentos de agressão. Bem mais tarde percebi que desde sua origem, em 1984, Alésia 14 preconizava orientações que foram ganhando es-paço no campo da proteção à infância na França: o suporte à pa-rentalidade, o trabalho sobre o laço parental, a escuta do sofrimento, etc. Se considero que o encontro com esta equipe foi um golpe de sorte que me abriu portas, isto se relaciona com suas posições no campo, mas também (e talvez, sobretudo) com a ética de aco-lhimento fundada sobre os princípios da hospitalidade que estão na base da intervenção proposta por este serviço e da qual estou certa de ter sido beneficiada.

Depois de alguns meses de interlocução com as psicólogas de Alésia 14, da leitura de artigos por elas escritos e de visitas frequentes à associação, conheci Francesca – uma mulher de 30

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anos acompanhada pelo serviço e cujos três filhos (uma meni-na de quatro anos e dois meninos, um de dois anos e outro de quatro meses) estavam vivendo numa instituição. Em razão dos conflitos entre Francesca e os profissionais do abrigo, Alésia 14 tornou-se o lugar de encontro semanal da mãe com as crianças. Foi então que a equipe propôs que eu me engajasse como volun-tária para acompanhar Francesca e as crianças em passeios e ati-vidades conjuntas todas as quartas-feiras. Apesar da ambiguidade da posição pesquisadora-voluntária, aceitei a proposta na medida em que ela me conferia um ângulo privilegiado de visão acerca da prática de Alésia 14 e de suas relações com outras estruturas. Esses encontros ocorreram durante seis meses, de abril a outubro de 1999. Durante esse tempo, a equipe procurava uma alterna-tiva de residência que permitisse a reunião de Francesca com as crianças, visto que apesar de sua doença psiquiátrica, as psicó-logas reconheciam um forte vínculo afetivo entre mãe e filhos e estimavam que seria preferível que eles pudessem morar juntos. Um dia uma delas me disse: Talvez eles possam ir morar na ilha d’Yeu. Ela me explicou que estava em contato com uma associa-ção – CAVAL14 – que acolhe famílias monoparentais cujos filhos estão sob a responsabilidade do Estado através da Ajuda Social à Infância (ASE). A fim de avaliar a adequação deste serviço à situ-ação familiar de Francesca, a equipe de Alésia 14 propôs-lhe um período de férias na ilha d’Yeu e pediu que eu lhes acompanhasse durante a viagem de volta a Paris. Aceitei o pedido imediata-mente e manifestei meu interesse não somente em acompanhar a família desde seu retorno ao continente, mas em ir encontrá-los na ilha d’Yeu. As psicólogas transmitiram minha demanda ao di-retor de CAVAL, que prontamente aceitou me receber.

14 CAVAL é a sigla de Centro Autogestado de Vela e de Animação Local. Tra-ta-se de uma associação criada em 1976 e que recebe subsídios do Estado para o desenvolvimento de projetos de intervenção social junto a crianças, jovens e famílias.

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ilha d’Yeu, caval, fevereiro de 2000. uma escolha

Com 23 km² e distante 20 quilômetros do continente, a ilha d’Yeu está localizada na fachada atlântica da França, tem 10 qui-lômetros de comprimento e sua largura máxima não ultrapassa quatro quilômetros. Entre as 16 ilhas da costa oeste do país é a segunda mais distante do continente. Sua população permanente é de aproximadamente 5 mil habitantes e a pesca é a principal ati-vidade econômica local. Nesta ilha, a associação CAVAL acolhe populações ditas desfavorecidas e acompanhadas pelos serviços sociais situados no continente. Entre 1989 e 2002, ao menos 55 famílias (53 mães, dois pais e 98 crianças) residiram nesta insti-tuição por em média 15 meses. Assim como para Francesca, ain-da que as condições psicossociais (alcoolismo, moradia precária, desemprego) ou relacionais (conflitos no casal e com a família, suspeita de negligência ou de maus tratos contra as crianças) des-sas famílias tenham sido designadas como de risco ou perigo para as crianças, os trabalhadores sociais consideraram que a coloca-ção das mesmas em dispositivos tradicionais, que implicam na separação mãe-crianças e, frequentemente, também dos grupos de irmãos, não seria uma medida apropriada. A estadia Nesse ser-viço é marcada por duas etapas: a primeira corresponde a, apro-ximadamente, cinco meses de residência em coletividade numa casa chamada Cap Horn. Na segunda etapa, cada família passa a viver em casas individuais também localizadas na ilha. Ao longo da estadia, cada família é acompanhada por uma equipe formada por cinco educadores, uma psicóloga e quatro assistentes mater-nais. Seu objetivo é evitar a separação da família e exercer uma intervenção educativa sobre o modo de vida familiar.

Ao acompanhar Francesca e as crianças tive a oportunidade de ampliar minha pesquisa a esta estrutura cuja realidade topo-gráfica do lugar de acolhimento e maneira de representar a situ-ação social das pessoas acolhidas – famílias monoparentais, mães

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isoladas, famílias em situação de ruptura – muito me intrigava. Escutando os educadores e visitando a casa onde as famílias resi-dem em coletividade, eu via sobrepor-se à ilha – cujas caracterís-ticas topográficas ajudaram Goffman a elaborar sua teoria sobre as instituições totais15 – uma instituição de proteção à infância e à instituição família. Eu pensava na história social dos que inte-gram as classes ditas perigosas, para quem os espaços insulares fre-quentemente foram uma destinação forçada. Eu me interrogava sobre o sentido deste deslocamento levando em conta a recorrên-cia histórica do distanciamento geográfico adotado como medida punitiva e/ou de gestão dos “problemas sociais”. Eu estava parti-cularmente surpresa pelo fato de que esta alternativa de residên-cia na ilha d’Yeu tenha sido proposta a Francesca no contexto de uma intervenção que visava manter os laços familiares.

Em razão do conjunto de características próprias desta estru-tura – a insularidade do local de acolhimento, a rara possibilidade de acompanhar o cotidiano das interações entre as famílias e os trabalhadores sociais, o estatuto de estrangeiro partilhado pelos residentes – decidi retornar e fazer minha pesquisa para a tese de doutorado nesta instituição. Minha solicitação foi submetida ao Conselho Administrativo da associação e dois meses mais tarde recebi a resposta favorável à realização do meu trabalho. De fato, todas as características que tornam este serviço muito particular são, paradoxalmente, as mesmas que lhe conferem um potencial de abertura a problemáticas gerais: a permanência do modelo in-sular nas lógicas de gestão dos problemas de sociedade, as intera-ções entre agentes e usuários de um sistema de proteção social, as relações de alteridade numa sociedade complexa.

15 Majastre lembra que “Erving Goffman fez o caminho da ilha ao asilo, por ocasião de sua primeira pesquisa etnográfica numa cidadezinha das ilhas Shetland, com paradas prolongadas e estudiosas no bistrô do porto, até sua imersão de observação participante durante um ano no hospital psiquiátri-co Santa Elisabeth de Washington” (Majastre, 2000: 247).

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Durante minhas estadias na ilha d’Yeu, fui hospedada na Casa Familiar Cap Horn – ponto de chegada comum a todas as famílias16. Este alojamento em Cap Horn, atribuído as residentes durante a primeira etapa da estadia em CAVAL, foi para mim a ocasião de estar presente nos diferentes momentos da vida coti-diana e de aproximar-me das múltiplas facetas da existência nesta casa onde as famílias vivem em coletividade. Durante dois anos – de fevereiro de 2000 a fevereiro de 2002 – retornei a este mesmo apartamento que me foi destinado na Casa Familiar Cap Horn e onde me instalei por, em média, 15 dias a cada dois meses. Nesta casa conheci Thérèse, Emilie, Janine, George-Alain e seus filhos. Também me apresentei àquelas que, no início da pesquisa, já re-sidiam em casas individuais − Marilyne, Estelle, Barbara e Cori-ne. Sem poder detalhar minha inserção Nesse cotidiano, no que segue vou deter-me em aspectos de minha identidade que julgo terem tido um papel importante tanto na interlocução estabele-cida quanto no conhecimento produzido a partir desta pesquisa.

“a brasileira”

Na ilha d’Yeu as pessoas reagiam com surpresa diante da mi-nha nacionalidade17. Tentando adivinhá-la, alguns de meus inter-locutores passavam pela Espanha ou pelo Líbano. Quando eu me

16 O portão desta casa típica da ilha d’Yeu – branca com as janelas azul-mari-nho – dá para um pátio interno cercado pelas portas dos oito apartamentos destinados à hospedagem das famílias, da cozinha, da sala coletiva, de um escritório e da lavanderia. A capacidade total de alojamento da casa é de 25 pessoas. Compostos de quarto, banheiro e sala (nos maiores), cada aparta-mento é equipado com camas, uma mesa, cadeiras e móveis. A utilização do espaço de sete dos oito apartamentos é maximizada por um mezani-no normalmente ocupado pelas crianças. O aspecto simbólico relativo ao nome Cap Horn reforça a associação entre esta casa e um lugar de difícil travessia.

17 Sobre a identidade da pesquisadora em campo, a condição de estrangeira e brasileira, ver também nesta coletânea os artigos de Marta Cioccari sobre sua pesquisa de campo também realizada na França e o de Luena Nunes Pereira a partir de sua pesquisa em Angola.

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apresentava como uma estudante brasileira, minha presença pa-recia ganhar sentido logo que eu explicava estar realizando uma pesquisa na associação CAVAL. Vale lembrar que a problemática das crianças de rua, do trabalho ou da prostituição infantil, ou ainda das condições de vida das crianças nas favelas são assuntos tratados pela mídia europeia em relação ao Brasil. Durante esta pesquisa, mas especialmente a cada novo contato, tive sempre a impressão de que estas imagens do Brasil desempenhavam um papel importante na forma como meu interesse de pesquisa era interpretado. Durante o trabalho de campo, outras evocações, sempre direta ou indiretamente relacionadas a problemas sociais, pareciam confirmar que, de fato, para uma estudante brasileira, CAVAL era, na ilha d’Yeu, o “bom lugar”: um jovem brasileiro com nome francês, adotado aos três meses de idade por um ca-sal francês, estava passando uma temporada em CAVAL em ra-zão de problemas com sua família adotiva; o barco da associação chama-se Fortaleza porque seu antigo proprietário adotou uma criança nesta cidade brasileira; um educador que trabalha em CAVAL participara do Fórum Social Mundial ocorrido em Porto Alegre, cidade onde moro, e me mostrava fotos nas quais eu iden-tificava vários brasileiros conhecidos...

No Brasil, por ocasião de minha pesquisa no Conselho Tute-lar, enfrentei a desconfiança de alguns em relação a minhas curio-sidades, assim como críticas a propósito da confortável posição dos pesquisadores, que não precisam dar respostas aos problemas cotidianos. Na França meu interesse pelo que se faz no campo da proteção à infância era rapidamente associado aos problemas sociais existentes no Brasil e isto me abriu portas. No entanto, este interesse era associado à busca de um modelo a ser aplicado aqui18. Esta interpretação por vezes me causou mal estar diante de

18 Como observa Fonseca a partir de suas experiências de pesquisa nos dois con-textos, esta lógica se situa numa perspectiva “simplista que concebe o Brasil (ou outros países do terceiro mundo) como uma versão ‘retardada’ da Europa contemporânea, que não faz a distinção entre modelos econômicos e contextos históricos radicalmente divergentes” (Fonseca, 1987: 192).

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algumas mulheres residentes. Cabe lembrar que suas passagens por CAVAL estão relacionadas com a pesada designação de perigo para as crianças. Numa ocasião uma delas me lembrava, um pou-co constrangida, de que no Brasil há crianças prostituídas, por exemplo. Quando um de seus filhos queixava-se de morar na ilha d’Yeu ela me pediu, diante dele, para confirmar que no meu país tem crianças que vivem em condições insuportáveis, trabalham e não chegam nem a crescer: Diz pra ele, Fernanda, eu lhe expli-co, mas eu gostaria que tu mesmo dissesse! Eu respondi dizendo: “Sim, infelizmente é verdade que no Brasil existem crianças vivendo em condições muito difíceis”. Parecia-me que como outras mulhe-res que encontrei, Janine não gostava de pensar que seus filhos pudessem ser confundidos com estes brasileirinhos de quem ela tem muita pena. O que sempre me incomodou nestas situações era constatar que os problemas sociais ligados à infância pobre no Brasil podiam reforçar o estigma ressentido por estas famílias na França. Faizang, relatando suas dificuldades ao se apresentar como etnóloga junto à população residente na região parisiense, observa:

Apresentar-se como etnóloga é correr o risco de ser encaminhada a ir falar com os portugueses ou ciganos, julgados como os únicos etno-logizáveis por aqueles que pensam que o etnólogo só estuda os ‘sel-vagens’ e se interessa pelo exótico ou diferente. (Faizang, 1987: 134)

O que dizer quando se trata de uma estudante brasileira inte-ressada na infância pobre na França? Será que minha condição de estrangeira contribuía para minimizar o peso das suspeitas ligadas à minha presença, ou será que do ponto de vista das famílias ela confirmava o sentimento de não ser como a maioria das famí-lias francesas? Eu não saberia responder. Mas acredito que os etnógrafos em campo devem assumir o que Bromberger observa a propósito das negociações cotidianas de identidade que somos habituados a observar, a saber, que estas negociações são tributá-

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rias dos limites habituais de uma transação: só podemos negociar o que temos, o que sabemos, o que somos (Bromberger, 1987).

Estou certa também de que além da minha nacionalidade, o fato de eu ser mulher e na ocasião não ter filhos são aspectos de minha identidade que tiveram um papel fundamental na confi-guração das trocas que pude estabelecer. Diante da importância acordada pelas residentes à experiência de aprendizagem do savoir faire parental, o fato de eu não ser mãe me colocava na posição de quem não tem nada a lhes ensinar. Como minha postura não contrariava esta visão, parece-me que eu não chegava a represen-tar um perigo. No entanto, em tom de brincadeira, Marilyne (9 filhos) me deixava ver a estranheza que uma mulher casada com mais de 30 anos e sem filhos representava para estas mulheres, a quem a maternidade dá um lugar respeitável na sociedade. Lem-bremos que é por terem filhos que elas são acolhidas Nesse lugar e que uma equipe de profissionais as acompanha diariamente, avalia e vigia suas maneiras de agir, mas também as ajuda. A cada novo encontro Marilyne me perguntava “e então? Quando vais fazer um bebê? Não vais esperar os quarenta anos, né?” Quando o terceiro filho de Emilie nasceu e fui visitá-la, encontrei Marilyne. Eu estava com o bebê no colo enquanto esta se divertia dizendo: “Atenção à Fernanda, Emilie. Ela não tem filhos. Vai querer levar o Théo!” Considerando o lugar central ocupado pelas crianças no jogo relacional entre pais e profissionais, sempre tentei, através da minha relação com elas, passar a mensagem referente à minha distância em relação à intervenção educativa. Eu tomava o cui-dado de nunca responder a suas demandas sem antes perguntar a opinião de suas mães. Foram as crianças que, ao me perguntarem com frequência “tu não tens filhos?”, ao mesmo tempo em que manifestavam a dificuldade de me enquadrar no dia a dia des-ta instituição, indicaram suas percepções acerca do lugar central que ocupam nas interações cotidianas dos adultos.

No que segue trarei um fragmento da etnografia a fim de de-monstrar, por um lado, a percepção das residentes acerca da de-signação que as nomeia coletivamente, seus esforços de distinção

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e permanente combate para distanciarem-se de um dos estigmas mais pesados de nosso tempo, o de mãe ou pai maltratante. Por outro lado, os dados também permitem interrogar o efeito do escrito sobre identidades que se afirmam, sobretudo através da oralidade. Nisto podemos identificar um efeito comum da inter-venção social no Brasil ou na França.

nós, muheres de caval: uma identidade difícil de partilhar

Na ilha d’Yeu, as residentes de CAVAL são conhecidas e de-signadas como as mulheres, as mães ou as mamães de CAVAL. O fato de que dois homens já tenham lá residido com seus filhos não foi ainda suficiente para que sejam incluídos nesse grupo. Para as residentes, existem nós as mulheres e Georges-Alain. Esta maneira de falar torna-se uma autodesignação quando as mu-lheres interpretam, negativamente, a maneira como são tratadas ou os olhares que se voltam para elas e seus filhos, tanto dentro quanto fora da instituição. Emilie e Thérèse contavam para o educador que tinham sido paqueradas por dois homens no porto. Thérèse explicava: Eu estava com minha calça de couro... Emi-lie a interrompe: Não é por isso, é porque conosco, as mulheres de CAVAL, é assim! Estes dias eu estava no bistrô e um cara chegou... ‘e aí, minha linda?’ Mas o que é isso, eles pensam que nós somos o que? Quando seus filhos não são convidados para o aniversário de um colega, a explicação é óbvia: é por serem filhos delas, as mulheres de CAVAL.

Mesmo que Georges-Alain não tenha um lugar nesta manei-ra de falar, ele também se defende da interpretação que associa sua estadia na ilha à suspeita de que ele seja um pai maltratante. Frente a esta suspeita subjaz um mesmo sentimento de injustiça: Tu achas que se eu não fosse uma boa mãe eles teriam devolvido meus filhos? (Emilie); Parece até que eu vou matá-los. (Estelle); Estão me punindo e eu nunca fiz nenhum mal pra minha filha. (Barbara); Meus problemas de violência nunca tiveram nada a ver com meus filhos. Eu jamais bati neles! (Georges-Alain).

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O comportamento das crianças também se torna insupor-tável quando insinua maus tratos. Janine e Georges-Alain, por exemplo, não toleram que na presença dos educadores, ao apro-ximarem-se deles, Teddy ou Alain gritem: Ele/a vai me bater! Aos olhos dos pais é um jogo: De qualquer forma são todas crianças mártires – ironiza Janine. O consenso que reúne as mulheres e Georges-Alain sob a ideia de que eles são todos pais lutando pelos filhos torna as acusações mútuas de maus tratos insuportáveis. A distância reivindicada em relação a este estigma não significa que as mamães se julguem em igualdade de condições quanto às pos-sibilidades de superarem suas dificuldades. Emilie explica: Tem várias coisas, Fernanda, uma mãe pode muito bem amar seus filhos mas não poder assumi-los... tem vários casos: tem mães que não estão nem aí e só pensam em se mandar; tem mães que tentam até o fim e não conseguem, mas não é por não amarem seus filhos... e tem mães que lutam e que vão conseguir.

Frente à intervenção educativa, as residentes formulam o de-sejo de que suas diferenças (de idade, por exemplo) sejam reco-nhecidas e que suas necessidades sejam também diferenciadas:

Não vou te dizer que não existem mães que precisem de CAVAL porque é verdade que algumas precisam. Mas outras, como eu, a gente se pergunta o que estão fazendo aqui. Não era disto que precisávamos, mas de outra estrutura. (...) Eu acho que eles não separam bem as coisas: entre crianças realmente maltratadas que se pode tentar ajudar, apoiar... Mas para eles [os educadores] é todo mundo igual, eu não concordo. (Emilie)

Este tipo de reivindicação identificada também em trabalhos realizados em Centros Maternais (Donati et al, 1999: 253) per-mite entrever a sensibilidade das residentes em relação a um ou-tro efeito das intervenções sociais, efeito este que pude identificar através da leitura dos documentos que compõem seus dossiês. Enquanto leitora tive recorrentemente a impressão de ler sempre sobre a mesma pessoa. Trabalhando com os dados recolhidos nes-

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ses documentos me dei conta de que – apesar das inúmeras relei-turas e exercícios de sistematização das informações – eu era inca-paz de reconstituir de memória a trajetória de uma família cujos integrantes não conheci pessoalmente. É como se os documentos escritos não fossem suficientes para que eu pudesse lembrar ou reconhecer individualidades. Suas vidas me pareciam um mesmo quebra-cabeça cujo tamanho e cor das peças podiam mudar sem realmente produzir um quadro diferente. Da parte daqueles que redigem estes documentos também pude constatar um mal estar semelhante. Numa ocasião em que eu lia um dossiê no escritório de CAVAL, alguém da equipe escrevia uma “nota de situação” a respeito de uma família. De repente a pessoa parou de escrever e me disse: eu tenho a impressão de falar sempre da mesma pessoa e não é assim, as pessoas são diferentes. Finalmente, todos nós – as residentes, ao menos um profissional e eu – tínhamos este mes-mo sentimento que nos remete ao papel do escrito e do oral nas relações sociais. Em particular nestas relações cotidianas inscritas em situações de ajuda e controle social. Os escritos institucio-nais, de uma maneira geral, não são lugares de individualidade. Eles se referem a coletivos definidos em função de traços comuns: usuários de um serviço, solicitantes de ajuda, portadores de uma característica que os torna desviantes, etc. Em função disto os escritos visam homogeneizar tratamentos. Assim, quando são lu-gares de descrição das trajetórias de vida, é compreensível que as descrições as tornem muito parecidas, como se reproduzissem por escrito o que Petonnet observa a propósito do olhar social sobre a população residente na periferia: “Vistas do exterior, es-tas pessoas se parecem, ao menos nisto se acredita, pois elas são do mesmo rang. Vistas do interior, elas são mais confundidas do que parecidas, mas parecidas porque confundidas e colocadas nas mesmas condições” (Petonnet, 1985: 213).

Aqui, a escrita que tem por tema as vidas em família obede-ce à lógica do acompanhamento, da evolução de uma trajetória problemática. A força de homogeneização produzida pelos papéis também é visível num procedimento que me foi descrito pelos

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trabalhadores sociais e que consiste em evitar a leitura do dossiê antes de ter tido uma primeira entrevista, face a face, com os membros da família. Este modo de proceder pode ser visto como uma maneira de contornar o efeito de imposição da problemática produzido pelo dossiê. Além dessas possibilidades de controle so-bre os efeitos que os escritos institucionais podem ter nas relações cotidianas, também seria importante pensar nesses documentos como lugares de construção de uma memória familiar. Isto per-mite interrogar sobre o que as sociedades constroem, em termos de futuro, através dos documentos que elaboram no presente.

A homogeneização das individualidades que este tipo de escrito produz parece contrastar com o lugar preponderante da oralidade na cultura popular urbana identificada por diferentes antropólogos (Petonnet, 1985; Fonseca, 2000; Lepoutre, 1997). Estes autores sublinham a importância da eloquência verbal na afirmação de si nas trocas que envolvem principalmente os jovens e as mulheres. Num contexto institucional como este de CAVAL, onde os adultos estão sob observação e as crianças sob tutela do Estado, esta palavra se revela perigosa e frequentemente as mães se calam justamente nas situações em que seria apreciado que falassem – nas reuniões com o diretor, nas consultas à psicóloga. No entanto, ainda que não possa aqui detalhá-lo, cabe observar que nas situações de conflito entre elas, a agressão verbal revela-se uma arma poderosa.

ilha d’Yeu, junho de 2006. uma nova surpresa

Seis meses após minha defesa de tese e mais de três anos depois do término da pesquisa de campo fui convidada pela associação CAVAL a voltar à ilha d’Yeu, num final de semana comemorativo aos 30 anos da associação. Eu já estava de volta ao Brasil quando o diretor me telefonou dizendo que gostariam que eu participasse das comemorações e falasse do meu trabalho. Eu tinha lhes en-viado um exemplar da tese, uma representante da associação ti-nha estado na defesa; nesta ocasião eu almocei com membros do

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Conselho Administrativo de CAVAL, que gentilmente quiseram comemorar comigo o fim do doutorado. Entretanto, diferente do que eu imaginava, a restituição não tinha verdadeiramente acontecido. Era preciso voltar ao local da pesquisa, reencontrar os trabalhadores sociais, falar e discutir sobre o que fiz.

Visto que se tratava de um evento comemorativo aos 30 anos do serviço, eu esperava que a apresentação de meu trabalho fizes-se parte de uma programação comportando outras intervenções. Entretanto, para minha grande surpresa, chegando à ilha d’Yeu na sexta-feira à noite pelo mesmo barco que outros convidados, fiquei sabendo que todo o sábado seria dedicado à discussão do meu trabalho. O domingo seria um dia de trocas informais du-rante as refeições coletivas, os passeios de barco ou em terra fir-me... Assim, das 9 às 18 horas, ao redor de uma longa mesa, discuti meu trabalho e falei sobre o projeto da associação com umas quarenta pessoas: trabalhadores sociais que eu conhecia há muito tempo, fundadores de CAVAL, alguns dos quais eu havia entrevistado, membros do Conselho Administrativo que eu nun-ca tinha encontrado, jovens estagiários, apoiadores da associação, funcionários. A ausência das famílias residentes foi por mim es-pecialmente ressentida. As mães, o pai e as crianças que acompa-nhei já tinham todos partido, mas outros chegaram e estes não foram convidados para as atividades comemorativas aos 30 anos de CAVAL. Reforçava-se para mim uma hipótese geral, possível de ser avançada a partir da comparação entre diferentes experi-ências com programas ou políticas voltados à garantia de direi-tos, a saber, a dificuldade de dar visibilidade ou assegurar lugares de expressão aos seus usuários, Nesse caso famílias de origem de crianças designadas como em risco. Era como se o lugar de suspei-ção em que se encontram lhes tirasse também a possibilidade de

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dizer algo sobre o que se imagina como modo de intervenção em seus problemas familiares19.

De qualquer forma, minha tese tinha sido lida por várias pessoas, que trouxeram questões e comentários. Nesse dia fiquei sabendo que para alguns meu trabalho provocara um grande mal estar. Por outro lado, ele teria facilitado que se fale de assuntos que incomodam. Isto àqueles que estão encarregados de acompa-nhar as famílias no cotidiano. Enquanto o idealismo dos funda-dores foi ferido pelo fato de as residentes associarem a estadia na instituição a uma prisão, aqueles que têm por tarefa acompanhar as famílias manifestavam um grande prazer em falar. Apesar da enorme apreensão que esta jornada de restituição me causou, as trocas ocorridas ao longo deste dia me persuadiram de que meus interlocutores teriam ficado frustrados se eu não tivesse um pon-to de vista crítico, se eu tivesse vindo elogiá-los, se meu trabalho não provocasse polêmica. Este aspecto me interessava particular-mente porque Nesse mesmo momento no Brasil uma colega an-tropóloga enfrentava grandes dificuldades para que sua pesquisa sobre um projeto destinado a adolescentes infratores pudesse ser realizada. Isto em função das críticas que seu trabalho poderia suscitar... Assim, esta inesperada experiência me trouxe questões acerca dos dilemas aos quais os pesquisadores estão confrontados de um país a outro e sobre a forma como se desenvolvem as dis-cussões. Parece-me que além dos dados etnográficos que permi-tem colocar os diferentes contextos em perspectiva, a atenção às

19 Em outro trabalho aponto a invisibilidade das famílias de origem de crian-ças atendidas pelo sistema de proteção à infância no Brasil (Ribeiro, 2009). Fonseca (2009) identifica um silêncio semelhante no que se refere às fa-mílias das crianças colocadas em adoção no Brasil e, por outro lado, nas análises sobre serviços de atendimento à mulher: “é difícil entender a pou-ca ênfase atribuída (...) às ideias e reações variadas das pessoas atendidas” (Fonseca, 2006: 171).

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condições da restituição de nossas pesquisas em terra estrangeira também pode revelar semelhanças e diferenças boas para pensar.

referências bibliográficas

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Identidades racial e religiosa em Angola e no Brasil: reflexões a partir da experiência em campo em Luanda

Luena Nunes Pereira

introdução

Nesse artigo procuro refletir sobre minha experiência de campo em Angola, na cidade de Luanda, entre os anos de 1998 e 2001, na qual minhas identidades racial e religiosa, configuradas no Brasil, foram reposicionadas a partir de minha inserção nos sistemas de classificações locais. Este deslocamento identitário, produzido no contexto de pesquisa, me possibilitou perceber como as formas de filiação religiosa locais forneciam a chave que conectava as questões identitárias (étnicas e nacionais) às práticas cotidianas e às articulações de parentesco e vizinhança que bus-cava desvendar.

Embora a minha análise sobre questões angolanas não se te-nha debruçado sobre qualquer tipo de análise comparativa entre África e Brasil, ou entre processos históricos e culturais africanos e afrobrasileiros, a experiência de pesquisa, naquilo que ela afe-tou minhas próprias identidades, impeliu a uma reflexão sobre as distintas formas pelas quais se classifica racialmente no Brasil e em Angola – através dos lugares diferenciados ocupados pelo “mestiço” nos dois países – e sobre como se dão as composições religiosas entre cristianismo e religiosidades “afro” ou “locais”: em Angola, através da variedade de discursos político-identitá-rios veiculados pelas igrejas cristãs, e no Brasil, pelas religiões

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afro-brasileiras como um dos eixos de construção da identidade afro-descendente.

Chamo atenção para a dimensão comparativa, ainda que involuntária, derivada do confronto na pesquisa de campo fora do nosso contexto nacional, que nos obriga ao reposicionamento das referências teóricas e etnográficas já consagradas no país de origem. Este confronto produz um jogo de espelhos identitário, que nos pode tanto revelar como dificultar a percepção de outras formas de classificação social, que à primeira vista podem nos parecer semelhantes, mas guardam importantes distinções.

Minha experiência de pesquisa sobre Angola está inevitavel-mente marcada pelas minhas relações familiares. A primeira es-posa de meu pai era angolana. Meu irmão e minha irmã mais ve-lhos cresceram parte em Angola e parte no Brasil. Meus parentes em Angola seriam, considerando o sistema “ocidental”, a família destes irmãos, da primeira esposa de meu pai. Contudo, eu os considero, e por eles sou considerada, como família, remetendo a uma concepção africana de parentesco, classificada pela literatura antropológica de “família extensa” ou “alargada”. Entre estes pa-rentes também incluo a (e sou incluída pela) família da mãe dos meus sobrinhos, filhos de meu irmão, mesmo apesar de o casal já estar há muito separado. Ter sido abrigada por estas famílias quando em campo orientou de várias formas a minha circulação no espaço de Luanda.

estudos raciais comparativos e colonialismos comparados

Falar de identidade racial no Brasil e em Angola exige algu-mas considerações, ainda que breves, sobre o extenso campo de estudos de relações raciais no Brasil. Observações em torno deste campo têm sido tradicionalmente conformadas pela comparação com os EUA (Nogueira, 1954, DaMatta, 1981, por exemplo), através da oposição modelar cuja base estaria nas formas distin-tas de relações sociais engendradas na sociedade escravista e pós--escravista. Em termos gerais, nos Estados Unidos encontramos

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uma classificação binária entre “branco” e “não-branco” acom-panhada de um tipo de sociedade mais segregada, inclusive até poucas décadas do ponto de vista jurídico. Já o Brasil seria ca-racterizado, apesar das diversidades regionais, por uma classifica-ção mais circunstancial, em gradações, através de um continuum entre “mais claro” e “mais escuro”, com importantes variações regionais. A sociedade brasileira seria marcada pela forte miscige-nação, mais estratificada que a americana, tomando como ponto de referência o modelo do branqueamento.

Mais recentemente se produziu no Brasil um novo desdo-bramento dos estudos raciais a partir da comparação de diversos contextos coloniais. Da comparação entre Brasil e Estados Uni-dos operou-se um deslocamento ou expansão para a comparação entre blocos de países: Brasil e Moçambique, sob colonização portuguesa de um lado, e Zimbábue e África do Sul, além dos EUA, de colonização inglesa de outro. Peter Fry foi o mais im-portante autor desta reflexão a partir dos anos 1990 (1991, 2003, 2005). O argumento reside na análise das formas distintas da co-lonização britânica e portuguesa de operarem relações coloniais e raciais. A primeira teria produzido uma visão mais rígida da diferença racial e a segunda seria responsável por uma visão mais “relacional”, mais assimilacionista e, portanto, menos essencialis-ta, ainda que racializada (1991). A perspectiva mais binária, que não admitiria passagens e mediações entre os segmentos branco e negro, teria resultado em sociedades juridicamente segregacionis-tas. Já a perspectiva mais assimilacionista, no caso, a portuguesa, tem por base um sistema jurídico único e seu sistema social con-vive com “mediações” entre os segmentos, permitindo a convi-vência racial, ainda que hierarquizada, reconhecendo a mestiça-gem como um tipo social positivo. O argumento aqui supõe que a possibilidade de passagem e mediação através da positividade da mestiçagem estaria mais próxima de uma visão mais univer-salista, ou seja, menos crente na “inexorabilidade” das distinções raciais (Fry, 1991: 186).

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Este argumento, apresentado aqui de forma muito sucinta20, encontra ressonância nas obras de Gilberto Freyre, especialmente nos seus escritos resultantes das viagens às colônias portuguesas nos anos 1950 e 1960 (O mundo que o português criou, Aventura e rotina, etc.), mas já presente no clássico Casa Grande & Senzala. Gilberto Freyre desenvolveu a ideia de um padrão de relações raciais derivado de um “tipo civilizatório português”, mais tole-rante e miscível, cujo melhor desenvolvimento se encontrou na sociedade brasileira. Nas viagens às então colônias portuguesas na África e na Ásia, a convite do governo português, Freyre tornou a reconhecer o mesmo padrão, embora menos desenvolvido em Angola, por exemplo. Entretanto, atribuiu a presença de segre-gação racial em Moçambique por ele testemunhada à influência britânica (Freyre, 2001).

O argumento de que “é nas mentalidades colonizadoras, por-tanto, que temos que buscar as raízes da especificidade de cada experiência colonial” (Fry, 1991), ou seja, a doutrina colonial como chave para a construção de tipos de sociedades coloniais, apresenta claros limites quanto à consideração insuficiente dos contextos históricos e locais. Até onde existe um colonialismo português ou um colonialismo inglês, que junta tempos, espa-ços e contextos diferentes? Em que a comparação genérica entre colonialismos ilumina e elucida processos históricos específicos e peculiaridades locais? Na minha experiência de campo, a vivência em sistemas de relações raciais nos dois países que viveram a colo-nização portuguesa mais perturbou do que permitiu o desvenda-mento dos contextos distintos que produziram as lógicas muito próprias do jogo racial em cada país.

20 Fry apresentou um primeiro argumento em 1991, no qual tenta uma transposição mais direta entre os casos portugueses e britânicos na Áfri-ca e na América. Depois matizou a análise nos textos de 2003 e 2005, aprofundando a distinção britânica e portuguesa apenas na análise do caso moçambicano em comparação ao Zimbábue.

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pesquisando etnicidade em angola

Estas observações sobre colonialismo comparado e relações raciais parecem extemporâneas para uma pesquisadora que nun-ca se interessou em pesquisar relações raciais ou em desenvolver estudos comparados com o Brasil em pesquisas sobre Angola. Entretanto, durante a experiência de campo este enquadramento do debate das relações raciais me possibilitou viver e relativizar de forma muito aguda as distintas formas como a questão racial se coloca no Brasil e em Angola, dois países de colonização por-tuguesa e que, embora não apenas por isso, apresentam muitos aspectos comuns ou aparentemente “familiares”.

Iniciei minhas pesquisas sobre Angola a partir do Rio de Ja-neiro, em 1994, quando era bolsista de iniciação científica, jun-to com a colega Flavia Ruas, do PEAA, Programa de Estudos da África Austral do Laboratório de Pesquisa Social do Curso de Ciências sociais da UFRJ. Era orientada pelo professor Peter Fry, que propôs uma pesquisa sobre angolanos refugiados no Rio de Janeiro.

Angola tinha retornado à guerra civil em fins de 1992, após as eleições que deram vitória ao MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola), partido no poder desde a inde-pendência, em 1975. O resultado das eleições não tinha sido aceito pela UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), que ficou em segundo lugar. A UNITA era o movi-mento armado, nascido na guerra de libertação nacional contra os portugueses, mas que contestava o partido no poder desde a independência, ocasionando a longa guerra civil angolana des-de 1976. Esta nova guerra pós-eleições contou com armamento muito mais sofisticado e pesado, saindo do padrão anterior de guerrilha. A nova guerra atingiu pela primeira vez e com grande impacto as cidades, vitimando pesadamente as populações civis e provocando deslocamentos internos e o exílio dessas populações.

O Brasil vinha recebendo um volume relativamente grande de angolanos refugiados (alguns milhares) desde 1993. Estes se

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concentravam principalmente no Rio de Janeiro, destino final dos dois voos semanais vindos de Luanda. A nossa pesquisa, in-titulada “Os refugiados angolanos no Rio de Janeiro”, foi feita percorrendo organismos como a ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), Cáritas Arquidiocesana, programas de Serviço Social da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), bairros de residência de angolanos e outros imigrantes.

Durante o trabalho de campo, relatos da Igreja Kimban-guista, uma igreja cristã africana de origem zairense (Zaire, atual República Democrática do Kongo) atuando num bairro central do Rio, chamaram a nossa atenção para a diversidade de ango-lanos aqui presentes, reforçando nossa percepção quanto a uma clivagem interna que parecia dividir angolanos oriundos prin-cipalmente de Luanda (autodenominados “angolanos mesmo”) e outros angolanos originários do norte do país. Os “angolanos mesmo” frequentemente punham em dúvida a nacionalidade dos segundos, chamando-os de “zairenses”.

Estes “zairenses” apresentavam um comportamento diferen-ciado, sendo mais voltados para o seu grupo, bastante religiosos e mais aproximados da comunidade religiosa local, não angolana. Mesmo aqueles vieram não do norte do país, mas da República do Zaire, sempre afirmavam: “nós somos angolanos”. Visitando semanalmente o culto da Igreja Kimbanguista, organizado num quintal contíguo a um grande sobrado transformado em corti-ço, tive o meu primeiro contato com os chamados “regressados”, os angolanos de origem bakongo emigrados para o Kongo/Zaire durante a guerra anticolonial e retornados a Angola após a inde-pendência.

As entrevistas com a delegada da ACNUR no Brasil davam conta de uma intensa perseguição aos “regressados” em Luanda, semanas após o reinício dos combates em Angola. Esta perse-guição teria ocasionado um grande fluxo dessa população para o Brasil. Não muito depois, encontrei em recortes dos jornais angolanos um relato sobre a chamada “Sexta-feira Sangrenta”,

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que confirmava os ataques a pessoas de origem bakongo ou zai-rense ou ex-exilados, em Luanda, no dia 22 de janeiro de 1993, causando dezenas de mortos e feridos.

Produzimos uma pequena etnografia dos angolanos refu-giados no Rio de Janeiro, na qual pretendíamos dar conta do aparato jurídico que os amparava e de um histórico de sua chega-da aqui no Brasil. As diferenciações entre os refugiados e outros imigrantes angolanos também foram abordadas, distinguindo os dois grupos acima mencionados.

Depois, no mestrado, iniciado em 1997, busquei responder como e por que tinham acontecido os massacres da Sexta-feira Sangrenta. Para tal, foi necessária toda uma iniciação a Luanda e a Angola propriamente dita, que ultrapassasse o conhecimento advindo de livros, revistas, jornais esparsos e conversas. Abria-se assim o caminho para a pesquisa de campo, realizada entre os meses de maio e agosto de 1998, no segundo ano do mestrado.

A experiência de campo, como de praxe, revelou-se fascinan-te e difícil. Nesse período, estar na cidade de Luanda era um trabalho de campo 24 horas por dia. Compreender a inserção dos regressados em Luanda implicava entender o que era Luanda e seu papel catalisador e centralizador no contexto nacional. O comércio informal construído pelos regressados e suas transfor-mações tinham de ser associados à paradoxal economia angolana, que girava à volta do petróleo e dos circuitos em torno do apare-lho de Estado e do aparato militar.

Os regressados foram os responsáveis pela construção do mer-cado paralelo no bojo da economia socialista que o regime do MPLA tentara implantar já no final dos anos 1970. Contando com uma experiência comercial secular, aprimorada na complexa economia zairense durante o tempo de exílio, construíram uma eficaz rede comercial. Os regressados provocaram um certo “cho-que” na sociedade de Luanda, então de certa forma provinciana e pouco afeita ao aparentemente desordenado comércio de rua e ainda ignorante na montagem de redes comerciais de longa distância. Com a transição para a economia de mercado, a de-

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sarticulação e a crise econômica jogariam boa parte da população angolana para o comércio informal, diminuindo o estigma de comerciantes ilegais que pesava sobre os regressados.

Tudo era um aprendizado prático e próximo, pois minha estadia em Angola era amparada por pessoas muito bem situ-adas no governo angolano. Podia mapear os lugares ocupados por meus próprios parentes na classe média luandense, mais ou menos próxima do aparelho de Estado e do governo, e seus expe-dientes na teia informal que caracteriza as relações econômicas e sociais de Luanda.

Compreender a vivência num país em guerra cuja economia baseia-se no petróleo também gerou aprendizados do ponto de vista de adaptação ao campo, no sentido do seu cotidiano mais prosaico. Angola na época não produzia a maior parte dos pro-dutos que consumia; mesmo os produtos agrícolas tinham difi-culdade para circular por causa da destruição das estradas. Angola importava até mesmo água mineral. Isso tinha um forte impacto nos preços, dependentes da variação do dólar e de uma expres-siva inflação. O déficit habitacional conjugado com o afluxo de estrangeiros ligados ou às grandes empresas petrolíferas interna-cionais ou ao terceiro setor de ONGs e consultorias tornou altís-simos os preços dos aluguéis.

Havia também o aspecto de familiaridade e exotização, pos-tas de uma forma peculiar. Estava numa terra estrangeira, en-tretanto abrigada numa rede familiar “emprestada” de meus ir-mãos. Ainda que tivesse convivido durante toda minha vida com angolanos no Brasil, da família ou não, nunca tinha estado em Angola. Assim, vivia o duplo processo de literalmente “estranhar” a família ao mesmo tempo em que Angola era, de certa forma, a mim muito “familiar” e afetivamente muito próxima (ver Da-Matta 1981 e Velho 1978), ainda que não dominasse muito bem os códigos locais.

Não era a todos com quem conversava que explicitava logo de início minhas relações familiares. Apesar de meu nome muitas vezes denunciar relações anteriores com Angola (Luena é o nome

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de um rio e de uma cidade no leste do país), nem todos se davam conta de que minha família pertencia “às boas famílias” de Luan-da, conhecida há gerações e estabelecida no circuito luso-africano que marcou a colonização nesta região da capital desde o período do tráfico. Pode-se dizer que é uma família crioula, muito ciosa no estabelecimento e manutenção de boas relações com outras famílias de mesmo porte dentro e fora de Luanda (e de Angola) e na conservação de uma posição de status no mutável enquadra-mento social e político de Angola, apesar de não ser mais toda ela uma família economicamente abastada.

A sociedade crioula angolana se caracteriza por ser um grupo social emergido da relação prolongada entre portugueses e afri-canos, que atuou como intermediário na rede comercial e na ad-ministração colonial dentro da ocupação e colonização empreen-dida por Portugal e por estes africanos em Angola, especialmente até o século XIX, sobretudo em Luanda e na cidade litorânea de Benguela, pricipais áreas de ocupação portuguesa até então. Considerado e considerando-se a si próprio como um grupo “culturalmente mestiço”, produto desta relação colonial (Dias, 1984), foi deste setor que emergiram as primeiras manifestações nativistas ou nacionalistas. Estes movimentos se aprofundaram especialmente a partir de fins do século XIX, quando a camada crioula foi progressivamente alijada social e economicamente, substituída cada vez mais por colonos brancos, que a partir daí chegam para se estabelecer de forma permanente já numa nova fase da colonização (Dias 1984).

As sociedades crioulas são características da presença euro-péia mais antiga sobre territórios africanos litorâneos, anterior à ocupação colonial propriamente dita (a partir do século XIX), relacionadas ao comércio de produtos africanos, em especial o escravista. Sociedades crioulas foram atuantes nos territórios afri-canos que hoje são Angola (Luanda e Benguela), Moçambique (Beira, Ilha de Moçambique e Inhambane), África do Sul (Cida-de do Cabo), Senegal (Saint Louis, Goreé), Tanzânia (Zanzibar) e outros.

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No caso angolano (mas provavelmente também em outros países no continente) há ainda hoje várias famílias, identificadas principalmente pelo sobrenome, que se consideram e são consi-deradas herdeiras desta “sociedade crioula”. Apesar de, na Angola atual, este pertencimento não se converter sozinho em capital so-cial, econômico e político, esta camada percebe-se de certa forma como estando na origem da formulação de um ideário naciona-lista e cosmopolita, progressivamente marcado pelo (bom) uso da língua portuguesa.

Ser recebida e tratada como filha implicava, além da satisfa-ção e segurança pessoal, também um certo controle – muito bem vindo nos primeiros tempos claudicantes na cidade, mas que progressivamente me ia provocando uma certa estranheza. Ainda que não houvesse nenhum tipo de constrangimento à minha mo-bilidade, parecia muito inusitada à minha família uma pesquisa em torno dos regressados que, deste ponto de vista “luandense” ou “crioulo”, era uma gente de cultura completamente diferente da deles e que, na verdade, não eram exatamente angolanos. Ou não eram angolanos como de fato só os crioulos, ou calús (os luandenses, numa categorização mais abrangente) poderiam ser. Reencontrava em Luanda, portanto, uma repetição da distinção vista no Rio de Janeiro, entre os “angolanos mesmo” e os “zairen-ses”, ou seja, os regressados do Kongo/Zaire.

Sendo assim, meu lugar como “a parente brasileira que está a fazer uma investigação um pouco estranha” foi interessante para acompanhar sem o menor pudor todo o tipo de avaliações e im-pressões dos que chamei de luandenses sobre o meu grupo de interesse, os regressados. Do ponto de vista dos Bakongo/regres-sados, este mesmo lugar de brasileira, de estrangeira, me deixava também numa posição confortável para compreender suas per-cepções e posições.

Esta posição deslocada e condensada, que partiu do estra-nhamento da minha própria “família angolana” para familiarizar--me com os “regressados”, considerados “estrangeiros”, ou seja, os “outros” dos luandenses, me fez refletir sobre a condição de

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“estrangeiridade”, nacionalidade e língua portuguesa como mar-cador identitário da chamada lusofonia para demarcação de nacionais, estrangeiros consentidos e nacionais estrangeirizados (não consentidos).

Esta foi a única experiência de campo que me permitiu con-cluir a dissertação de mestrado (Os “Regressados” na cidade de Lu-anda: um estudo sobre identidade étnica e nacional em Angola), defendida em 2000, na qual, através da descrição da trajetória do grupo de ex-exilados bakongo, discutia a construção de identi-dades étnicas e nacionais a partir da oposição entre “regressados” e “luandenses” na capital angolana. Esta oposição remontava a distinções regionais e políticas, com origem sobretudo na for-mação dos movimentos de libertação no período colonial, mas se traduzia nas relações de convivência e conflito na cidade de Luanda através de marcadores culturais nos quais o uso da língua portuguesa para a definição da nacionalidade angolana era fator fundamental no alijamento social e político dos ‘regressados’ pe-los ‘luandenses’.

o doutorado e as questões de identidade

No doutorado me propus a continuar o estudo sobre os re-gressados, mas desta vez vistos “de dentro”, enfatizando menos as oposições identitárias contrastivas, foco do mestrado. Interes-sava-me acompanhar o extenso processo de vivência desse gru-po em Luanda e as transformações que empreenderam para ga-rantir sua inserção na capital do país ao mesmo tempo em que se mantinham como um grupo muito coeso do ponto de vista identitário. Esse interesse advinha do questionamento de muitos deles de que, após tantos anos vivendo em Angola, ainda eram identificados como “regressados”, uma categoria imposta que pa-recia não fazer mais sentido para identificar o grupo na sociedade circundante nem dentro do próprio grupo, tão diversificado in-ternamente.

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Em 2000 estive em Angola por dois meses com o objetivo de retomar o contato com as pessoas que tinha conhecido dois anos antes e buscar pistas para desenvolver o novo projeto, que se centrava no grupo bakongo vivendo em Luanda como um todo e não só nos regressados. Esta foi uma tentativa de corrigir o viés an-terior, ampliando o foco de observação, na medida em que olhar para outros Bakongo não regressados poderia contribuir para des-naturalizar a figura do Bakongo como regressado, um estereótipo em Luanda. Além de realizar o trabalho de campo, pude subme-ter minha dissertação à leitura de algumas pessoas, professores angolanos e funcionários da organização não governamental que havia me apoiado. Uma dessas pessoas (a médica Mary Daly, en-tão diretora da ONG canadense Development Workshop) me propôs uma tarde de debates entre amigos bakongo que leriam o meu texto e fariam comentários.

Foi uma das experiências mais ricas que tive em todo esse processo de pesquisa. Entre aqueles que debateram o trabalho es-tavam professores e estudiosos da história de seu povo, religiosos e artistas. Foram extremamente gentis e cerimoniosos, como se espera de uma reunião entre os Bakongo. Lisonjeada, ouvi elo-gios – e algumas críticas – ao meu trabalho.

Algumas questões emergiram a partir daquela reunião. Uma, so-bre o problema da nomeação do grupo através da categoria regressado e o que implica esta nomeação para os diversos setores e subgrupos envolvidos. Isso suscitou um questionamento do meu próprio texto que, na busca de explicitar um processo ocorrido ao longo de anos entre dois grupos assimetricamente construídos, correu o risco de reiterar categorias – regressados e luandenses – e acabou, em parte, por recriar uma estereotipia que no fundo desejava denunciar.

Outra questão que emergiu, mas em outro nível, foi a das delicadas relações entre o pesquisador e o grupo estudado. Desse embate pude reavaliar os lugares por mim ocupados na pesquisa. Minha posição ali, e em toda a parte – de estrangeira, brasileira, jovem e negra, embora minha condição de mestiça tenha sido algo determinante por estar num lugar explicitamente diferencia-

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do com relação aos demais angolanos, especialmente os Bakongo –, era por mim meticulosamente avaliada nos julgamentos, elo-gios, curiosidades ali, e algures, suscitados.

“Jovem”, nesse contexto, é uma categoria relativa. Certa-mente eu era jovem em comparação com aqueles que estavam na reunião, jovem em comparação aos mais velhos de quem pro-curava aprender, jovem em relação a minha própria experiência em Angola, mas já tinha idade suficiente para ser mãe e, todavia, não tinha filhos e, ainda por cima, estava ali sem um companhei-ro. Esse deslocamento – não ser mãe – e isolamento – fora de um grupo familiar ou de uma “proteção” através de uma figu-ra masculina, já que minha família angolana nesse contexto não aparecia muito, me colocava, de um modo geral, no âmbito da pesquisa de campo e não apenas ali naquela reunião, numa po-sição ambígua. Entretanto as condições de jovem e solteira eram compensadas pelo fato de ser estrangeira, para quem as regras sociais do grupo de acolhida só têm mais peso na medida em que se é progressivamente inserida dentro do grupo.

Outra qualidade ambígua foi a de mestiça. A minha posição – atribuída, autoatribuída e construída – no sistema de relações raciais no Brasil é aparentemente semelhante, mas bastante di-ferente em Luanda. Minha posição no Brasil varia entre mestiça (ou mulata) e negra. Em Angola é inequivocamente de mulata. Apesar de a categoria mulato, tanto no Brasil como em Angola, ser uma categoria ambígua, ela aponta para significados muito ditintos. “Mulato” em Angola tem uma posição demográfica, po-lítica, social e simbólica muito diferente da do Brasil.

mestiçagem, raça, crioulidade e nação angolana

A questão da raça ocupa lugares muito distintos no debate nacional no Brasil e em Angola. No caso do Brasil a questão to-mou peso em meados do século XIX com a problemática de fun-dar uma nação nos termos europeus, com um enorme contingen-te de negros e mestiços em condição de escravidão, num contexto

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marcado pela emergência do racismo científico. Já na Angola do século XX, a África vivia sob o marco do pan-africanismo, do pós-guerra e da emergência dos povos de cor na luta contra o ra-cismo colonial. Ali não parecia haver horizonte para um projeto de nação com o tipo de integração racial hierarquizada, tal como foi feito nas Américas. No fim da era colonial africana as opções se restringiam ao complexo modelo da África do Sul e Rodésia/Zimbábue, o qual propunha uma independência sob o comando dos colonos brancos, ou da sua expulsão quase que total, deixan-do países como Angola e Moçambique, nos quais permaneceram importantes e enraizadas minorias brancas e mestiças relegadas ao espaço do resíduo, com uma herança não resolvida.

O desconforto com a questão racial nesses países de herança crioula ou de forte migração branca que não seguiram (ou não puderam construir) uma solução “rodesiana” permanece pouco de-batida e pouco pesquisada (ver Bender 1980). No caso de Angola não existem muitos estudos sobre relações raciais. Há alguns textos e publicações de memórias de antigos militantes sobre o papel dos brancos nos movimentos de contestação colonial. Entretanto, nas ruas e bares de Luanda as observações sobre raça e a questão do mulato são temas de conversas, comentários, ofensas e interditos bastante evidentes. São estas manifestações mais ou menos abertas que encorajaram minhas observações e provocações com amigos angolanos, pretos, mulatos e brancos, sobre o tema.

Os mestiços em Angola não devem chegar a 5% da população (e os brancos, a menos de 1%). Contudo, seu diminuto impacto demográfico não esconde um lugar social, e sobretudo simbóli-co, de grande importância na sociedade angolana e de Luanda em particular. Embora não formem um grupo social destacado, são uma camada bastante mais privilegiada relativamente ao res-to da população. Setores entre os mestiços, por vezes, parecem comportar-se como um grupo fechado e autodefensivo, como se pode perceber nos casamentos preferenciais entre mestiços e numa certa distinção entre mestiços filhos de brancos e negros e mestiços filhos de mestiços, também chamados de “mulatos de

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segunda geração”. Os “mulatos” são uma minoria socialmente muito importante e simbolicamente muito carregada. São distin-tos tanto dos negros, a grande maioria, como dos brancos, outra minoria cada vez mais invisibilizada do ponto de vista político, embora não econômico ou cultural.

No período colonial português na África, entre finais do sé-culo XIX e o XX21, as categorias de pessoas eram divididas, na prática, entre brancos, mulatos e negros22. De forma semelhante ao Brasil, a discriminação, feita de acordo com a origem ou com a tonalidade da pele, atingia menos os mulatos, ainda que pobres, do que os negros, a grande massa colonizada. O estatuto de mu-lato como camada intermediária e com acesso a certos privilégios dependia do status dado pelo pai. A camada mulata dividia-se as-sim em dois tipos: aqueles com ou sem reconhecimento, proteção e acesso ao pai e à casa paterna, ainda que de forma subjugada.

Com a chamada Lei do Indigenato, em 1926, a demarcação passou a ser juridicamente realizada entre “assimilados” e “indí-genas”. Esta divisão acirrou ainda mais a distinção entre a grande massa de negros, submetidos à lei do indigenato, dos mestiços, mais rapidamente admitidos como assimilados, especialmente por força da filiação a seus pais brancos, de forma mais ou menos assumida23.

21 Considero que a colonização portuguesa em Angola se fez realmente efeti-va em finais do século XIX, após o fim do tráfico de escravos, sendo con-temporânea ao período colonial na África propriamente dito. A presença portuguesa em Angola, entretanto, remonta ao século XVI, acompanhan-do o tráfico escravo.

22 Há uma distinção importante entre brancos metropolitanos e aqueles fi-lhos da terra, chamados “brancos de segunda”, há algumas gerações nasci-dos em espaço africano. A preferência para postos privilegiados de trabalho eram conferidos aos primeiros.

23 A Lei do Indigenato regia as relações coloniais através da distinção jurí-dica entre colonos, assimilados e indígenas. Os últimos eram destituídos de direitos civis, submetidos aos pagamento de impostos e ao trabalho forçado (chamado trabalho contratado). Para estes se elevarem à categoria de assimilados deveriam entre outros critérios ser alfabetizados, ter um

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Com a eclosão da guerra anticolonial, em 1961, foi su-primido o Estatuto do Indigenato, mas não o princípio tácito de distinção entre os antes “assimilados” e o resto, dado pelo acesso à educação e pela adesão aos valores e comportamentos ocidentais, aos quais os mestiços tiveram primazia, apesar da crescente camada de negros ascendentes, em decorrência do crescimento econômico nos anos 1960. Estes últimos, chama-dos “novos assimilados” (Messiant 2006) em contraposição aos assimilados do tempo do indigenato, vieram a formar a base da contestação do regime colonial.

O anticolonialismo assumiu, nesse contexto, um sentimento não só antibranco, mas em algumas situações também antimes-tiço. A ambiguidade da condição de mestiço, que decorria da herança do privilégio assimilado, era vista com desconfiança. Os mulatos eram acusados de ter um sentimento de superioridade frente aos negros, bem como de adotar o ideal do embranqueci-mento através da adoção do modo de vida e da posição de mando desempenhada por seus pais brancos.

Entre os “antigos assimilados” estão presentes não apenas os mulatos, mas a já mencionada camada crioula, que já havia perdido o principal de sua posição de intermediária para os numerosos colonos portugueses. Do ponto de vista dos negros então emergentes, as categorias mulatos e crioulos apareciam superpostas. O caráter de progressiva “destribalização”, ou seja, a perda da ligação com as culturas étnicas de origem (ainda que muitas das marcas dessas culturas tenham se mantido), a socialização na cultura europeia, a competência na língua portuguesa e a posição de intermediários, seja no período pré--colonial (até finais do XIX) como colonial, fazia com que essa superposição fizesse sentido.

determinado nível de renda individual e demonstrar a “adesão” a certos atributos da civilização ocidental, como usar calçados, comer com talheres, entre outros.

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Entretanto deve-se ter atenção que, do ponto de vista his-tórico e sociológico, os crioulos poderiam, até um determinado momento, ser considerados um grupo, posto que associados às antigas famílias. Os mulatos, por sua vez, não se restringem aos crioulos, pois não chegavam a formar um grupo coeso como o primeiro e são bem mais numerosos, se contarmos com os mula-tos mais pobres, fora do ciruito das antigas famílias.

A participação de brancos e mestiços nos movimentos de li-bertação foi especialmente intensa entre aqueles organizados nas cidades angolanas e no exterior, principalmente em Portugal. A ideologia socialista e antirracista do MPLA fez dele o movimento que mais abrigou mestiços e brancos. Após a independência hou-ve uma diminuição drástica do número de brancos em Angola pela saída de metropolitanos e filhos de portugueses após o final da guerra de independência. Embora muitos mestiços também se tenham evadido, seu número permaneceu muito maior que o dos brancos e ainda mais significativo em Luanda, Benguela e outras cidades.

A sobreposição entre crioulos e mestiços foi também refor-çada com o discurso da UNITA tanto durante a guerra antico-lonial, na qual acusava o MPLA de ser um partido de mulatos e destribalizados, como ao longo da guerra civil, através do argu-mento anticitadino. A UNITA se posicionou como representan-te da “Angola profunda”, reproduzindo a oposição entre rural e urbano na qual assumia o primeiro eixo, ligado à autenticida-de das tradições africanas, e o segundo, o urbano, associado ao “moderno”, era francamente assumido pelo MPLA, com grande influência nas áreas urbanizadas.

Nas décadas mais recentes, com o agravamento da desigualdade econômica, cresceu a verbalização do ressentimento e desconfiança em relação aos mulatos, através da acusação de que estes operam com sua ambiguidade de forma a circular por diversos espaços e manipular, segundo o contexto, identidades diversas. Seriam ca-pazes por um lado de utilizar a sua condição de negro-africanos na

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Europa. Já em Angola de operar com a circulação social que seria atributo da crioulidade e a distintividade mestiça que se apoia na expectativa de solidariedade endógena aos mestiços.

Um dos argumentos do ressentimento contra os mestiços se dá, por exemplo, no caso da posse ou suposição da posse de duplo passaporte angolano e português, a “nacionalidade bi-volt” (Za-wua 2009) atribuída aos mulatos. A quase inexistência de mesti-ços nas tropas angolanas durante a guerra civil é contrastada com a sua presença no oficialato das Forças Armadas. Os mestiços praticamente não eram atingidos nas “rusgas”, as batidas milita-res nas ruas e mercados para o recrutamento forçado de soldados para a guerra. Do mesmo modo, não é incomum verificar em várias boates e restaurantes angolanos a preferência de entrada dada a mestiços e estrangeiros em relação aos negros. O ideal de beleza feminina está, muitas vezes, associado à mulata, o que é detectável nos populares concursos de Miss Angola, que contam com uma proporção significativa de mestiças. A “mulata” tam-bém compõe um ideário peculiar, sendo construída como perso-nagem ambígua, associada à feitiçaria e à perdição dos homens casados por ser uma amante bastante dispendiosa e caprichosa.

O ressentimento contra o mestiço após a independência tem a ver também com a expectativa da inversão dos lugares ocupados no tempo colonial: a ideia de que o branco iria “varrer as ruas” enquanto o negro iria sair do musseque para morar na baixa de Luanda (centro da cidade, área no tempo colonial praticamente exclusiva dos brancos). Entretanto, após a independência, deter-minados aspectos da colonização foram ainda que involutaria-mente reforçados: a oposição entre os mundos rural e urbano, o ideal de assimilação a valores modernos e a valorização do domí-nio da língua portuguesa. Se num primeiro momento a intenção foi disseminar uma língua de unidade nacional em detrimento da variedade das línguas africanas, depois esta valorização represen-tou o reforço do prestígio da camada urbana, assimilada. A língua portugesa continua a ser percebida e veiculada como critério de

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modernização. Do ponto de vista nacional é condição de homo-geneização, de assimilação à nação angolana (Pereira 1999).

No processo de produção da nação assimilacionista, o mestiço torna-se capaz de representar a possibilidade de sínte-se cultural, ao mesmo tempo histórica, mas também resultado racial da hibridação entre África e modernidade. Entretanto, “modernidade” no contexto atual, após o final do socialismo de estado e da vitória do capitalismo, passou a ser o acesso ao dinheiro e ao status. Daí a noção de “vida mulata”, como referência jocosa luandense à “boa vida” associada ao mulato, de privilégios e acesso ao poder (Zawua 2009), sem a perda da legitimidade de ser nacional, sombra que ronda continuamen-te os angolanos brancos.

Entretanto, outras noções de “angolanidade” concorrem na construção da nacionalidade angolana, sendo evocadas de múlti-plos lugares. De um ponto de vista popular, nota-se a designação de “patrícios” ou “genuínos” para referir-se a angolanos negros pobres – entre eles mesmos ou de forma irônica pelas camadas mais privilegiadas, mesmo negras. Aqui, a representação de “au-toctonia” angolana é feita de forma racializada. Já a representação de angolanidade veiculada nas campanhas governamentais e do MPLA evocam a diversidade regional e étnica do país, apostando na ideia de multirracialidade e multiculturalismo, sob a égide da língua portuguesa. Repõe-se o unitarismo do slogan do período do partido único: “de Cabinda ao Cunene”.

Do ponto de vista da intelectualidade, que pode ser depreen-dido dos textos ficcionais ou dos espaços de sociabilidade de uma classe média intelectualizada de Luanda, percebe-se que o signi-ficado de angolanidade de certa forma repõe as antigas categorias de mestiçagem e crioulidade no sentido da valorização de uma nacionalidade híbrida, confirmando a síntese colonial e depois nacional que supera o pertencimento étnico. Entretanto busca ultrapassar a ideologia colonial para produzir a ideia de nação pós-colonial como síntese ao mesmo tempo moderna e “africana”

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(não europeia)24. Já a concepção de “lusofonia” como apanágio da crioulidade é uma noção controversa pela referência à cen-tralidade de Portugal na construção e disseminação desse ideário. Parece ser mais aceita em determinados círculos (de angolanos mais claros ou mais ligados a Portugal), mas é fortemente contes-tada em outros, especialmente os da intelectualidade negra/preta.

Sendo assim, na comparação entre Angola e Brasil pare-ce fundamental perceber as diferenças em relação à hegemonia branca no Brasil – Nesse caso, demarcada pela não explicitação do lugar do branco (ver Sovik, 2001), pela demografia e pela disseminação da ideologia do branqueamento. Em Angola esse lugar do branqueamento se faz mantendo o alijamento político dos brancos a partir de outro arranjo que não é demográfico, mas simbólico, pois passa pela disputa sobre uma construção de Angola ora mais lusocentrada, ora mais “autóctone”, mas sempre orientada por um ideário ocidentalizante.

Em Angola, como no Brasil, existem várias classificações de mestiço – cabrito (filho de branco com mulato), fulo (filho de mulato com preto) –, que se “tornam” ou aparecem mais claros ou mais escuros de acordo com o contexto, status e grupo de inserção. Tal como no Brasil, ser mestiço em Angola não tem apenas um significado.

É preciso, evidentemente, ter em conta certos parâmetros na comparação das relações raciais entre Angola e Brasil. Não houve, após a independência angolana, grupos racialmente discrimina-dos em Angola de forma geral. Há, sim, a herança colonial e sua reprodução do ponto de vista da manutenção do poder econômi-co dos brancos e mestiços que, todavia, não impediu a ascenção de uma poderosa elite negra. A questão não opera nos termos de uma simples discriminação racial antinegros ou antibrancos e mestiços, mas a manutenção de um status em termos de capi-

24 Ver Anjos (2002) para referências sobre intelectuais e o discurso da mesti-çagem e crioulidade em Cabo Verde.

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tal econômico e cultural desses grupos traz tensões que, embora muito ativas, permanecem pouco discutidas no seio da sociedade angolana.

Nesse contexto, a minha condição de “mulata” se deu, por-tanto, numa perspectiva muito diferente daquela vivida no Bra-sil. Ser mestiça em Luanda significa não ser negra, algo muito diferente da atual concepção brasileira, e que me proporcionou, lá, facilidades desconfortáveis. A situação de mestiça não foi tão contrabalançada pela minha situação de estrangeira. Eu era inú-meras vezes confundida com/tomada por angolana nas ruas, es-pecialmente em situações de anonimato, nas quais eu não falava. A forma pela qual as relações raciais em Angola estão estabeleci-das e as diferentes formas pelas quais os diferentes grupos classifi-cam racialmente me jogaram em diversos papéis que continham expectativas distintas. Essas expectativas eram difíceis de coor-denar com a minha própria identidade de negra, acentuada pelo contraste com a maioria dos brasileiros que vivia em Angola, em geral brancos, e por meus laços pessoais com Angola.

Ser mestiça entre os Bakongo consiste em algo ainda mais contrastivo. As classificações raciais em Angola são também dife-renciadas internamente. Se no Brasil a fronteira entre o ser negro ou não negro ou mulato ou branco varia regionalmente, e para grupos sociais distintos, em Angola há também alguma variação, embora bem menos flexível.

Os Bakongo de forma geral, nos bairros periféricos que visi-tei, fazem pouca diferença entre brancos e mestiços. Essa pouca distinção parece ser mais frequente entre os Bakongo da provín-cia do Uíge e menos entre os da província do Zaire, cujo litoral contava com mais mestiços que o Uíge, província mais interio-rizada. Essa situação era bem diferente nos bairros centrais de Luanda, onde a distinção feita entre mestiços e brancos é mais nítida.

Eu fui muitas vezes classificada como branca e custei a enten-der que isso não estava apenas relacionado com a minha condição de estrangeira, mas tinha relação com um universo local no qual

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as distinções raciais passam por uma leitura religiosa e cosmoló-gica do contato com o europeu de longa duração (desde o século XVI). A cor branca está associada aos mortos, e pessoas de cor clara, mesmo não brancos de origem europeia, são percebidos de forma especial, como se fossem mortos retornados. Esta foi a grade de percepção dos bakongo frente ao contato com os pri-meiros europeus chegados à região do Kongo (McGaffey, 1986). Há possivelmente nessa visão positiva do branco o legado de um longo período de missionação e colonialismo cuja hierarquia ra-cial é reproduzida sob uma forma religiosa e simbólica25.

A concepção de parte dos Bakongo sobre nação e identidade e sua relação com as concepções nacionais presentes na Angola atual está eivada de um imaginário pautado por noções racialis-tas. Entre os regressados, a pouca distinção entre mestiços e negros tem a ver com o período de exílio no Kongo, onde a demarcação entre brancos e negros era mais radical tanto pelas especificidades do colonialismo belga como pela radicalização da luta anticolo-nial com os distúrbios de 1960.

A minha condição de “branca” me suscitou inicialmente grande espanto, curiosidade e desagrado. Cada uma dessas “qua-lidades” foi vivida e sentida como decisiva para diversos tipos de

25 O fenômeno disseminado do clareamento de pele pelas mulheres e homens Kongoleses e outros africanos com produtos abrasivos à base de ácidos pode ser lido como um fenômeno relacionado à interiorização do racismo pelo colonizado. Entretanto, está cons-truído sobre um discurso religoso que opõe ‘luzes’ e ‘trevas’ e a pre-ferência pela pele clara como a que estaria “mais próxima de Deus” – argumento dito a mim por um angolano mukongo quando per-guntei sobre a preferência de muitos dos Bakongo por mulheres mais claras. Ver: Vincent Hecquet, «M’Bemba-Ndoumba, Gaston – Ces Noirs qui se blanchissent la peau. La pratique du « maquilla-ge » chez les Kongolais»,Cahiers d’études africaines, 183| 2006, mis en ligne le 13 octobre 2006. URL: http://etudesafricaines.revues.org/index6088.html. Acessado em 2 de maio de 2010.

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recepção e informação que conseguia e conquistava. Durante o trabalho de campo de 2001, a minha estadia mais extensa em Angola, essa minha múltipla condição se agudizou, tornando-se impossível pensar em minha experiência de campo sem refletir sobre as implicações de minha imagem para o grupo, meu lugar dentro deste e minha própria identidade.

Esse desconforto identitário provavelmente foi responsável por me distanciar da abordagem em torno da etnicidade e da identidade étnica e nacional. Embora jamais tivesse abandonado a perspectiva e a disposição de discutir as relações complexas que se estabelecem entre a formação da identidade nacional, com seu viés homogeneizante, e os grupos, que carregam trajetórias e his-tórias que costumam escapar à lógica nacional, já não considera-va mais tão frutíferos ou instigantes os debates sobre identidade. Parecia-me, por vezes, um exercício circular de avaliação sobre a primazia dos discursos ou das práticas sobre a construção da(s) identidade(s) que não dava conta dos processos miúdos do coti-diano que conferiam um sentido muito mais vivo à existência dos grupos, quando vistos de “dentro” e de “baixo”, e mais densos do que quando em oposição acirrada com outros grupos, quando as identidades se enrijecem e polarizam.

sistemas de classificação e lógicas identitárias

O desconforto com a minha “branquitude” (ou “branquida-de”; ver Ware, 2001) atribuída por outros, mas não assumida por mim, além dos vários significados – alguns deles muito negativos – atribuídos à categoria de mulato podiam ser contrabalançados pela minha condição de estrangeira e brasileira a partir do con-vívio mais aprofundado com o grupo. Entretanto, a chave racial, ou seja, o meu trânsito entre dois sistemas de classificação racial, foi o que me possibilitou refletir sobre o sistema de classificação religioso, sobre o qual me debrucei ao longo da pesquisa do dou-torado.

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Desde a estadia de campo em 2000, já vinha percebendo o papel fundamental das igrejas na vida comunitária bakongo. Mas, dispersa e fascinada com as múltiplas possibilidades de olhar e inserir-me no grupo – através das mulheres do mercado, dos jovens, das cerimônias tradicionais, do cotidiano familiar –, só fui aprofundar-me na vida religiosa bakongo durante a estadia de 2001, quando a visita sistemática às igrejas foi uma estratégia deliberadamente adotada.

Em 2001 já me parecia intrigante a forma como era per-cebida a multiplicação das igrejas pentecostais e africanas26 em Angola, seja através da visão das igrejas hegemônicas, como a católica, seja através dos meios de comunicação. Nesse momento já se fazia uma nítida ligação entre os Bakongo como o grupo étnico e social mais envolvido na abertura de novas igrejas. A proliferação de igrejas também era vista como um fenômeno com aspectos problemáticos. Parecia-me reiterado o senso comum de situar os Bakongo em Luanda como protagonistas de fenôme-nos indesejáveis – mercado informal, proliferação de igrejas –, embora toda a população aderisse avidamente a estes circuitos inevitáveis: comércio informal e igrejas pentecostais.

O trabalho de campo em 2001, no qual passei seis meses em Luanda, com viagens para o norte do país e para Kinshasa, capital da República Democrática do Kongo, foi um trabalho bem mais estruturado. Consegui alugar um pequeno apartamento e dirigia meu próprio carro. Inseri-me assim tanto na vida cotidiana da

26 A distinção entre igrejas pentecostais e africanas (também chamadas profé-ticas) atende a um critério de origem. As igrejas proféticas são as herdeiras dos chamados movimentos messiânicos ocorridos no período colonial, movimentos religiosos de contestação ao regime e de emergência de li-deranças religiosas africanas. Igreja profética seria assim uma designação genérica para igrejas de origem africana, e as pentecostais seriam aquelas vindas da Europa ou América. Quanto às práticas adotadas, tais como ritu-ais de cura, eventos de glossolalia e exorcismo, encontramos entre elas mais semelhanças que distinções.

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cidade como na do bairro do Palanca e da família do meu guia, Pindi Neves, para onde ia quase todos os dias.

Durante estes meses tentei aprender o lingala, a língua mais popular entre os regressados, através das crianças e das conversas frequentes com as senhoras da igreja. Frequentei rituais, encon-tros familiares, cerimônias tradicionais. Fui à província do Uíge, por uma semana, e visitei algumas aldeias próximas da cidade. Mas a atividade que mais realizei em todos estes espaços foi a frequência às várias igrejas, tanto aos cultos como às reuniões das mulheres, durante a semana.

A minha preocupação inicial era com a diversidade de lín-guas utilizadas durante os cultos religiosos, que para mim dava mostra da diversidade e complexidade linguística da sociedade luandense, para além do senso comum segundo o qual as línguas maternas estariam em processo de extinção em prol da hegemo-nia do português. Além disso, certas igrejas pareciam efetivar dis-tintas demarcações identitárias através dos cultos feitos nas várias línguas. Havia diferenças marcantes entre as igrejas de inserção mais antiga entre os Bakongo (caso da igreja batista), que utiliza-vam mais o kikongo, e as que optavam pelos cultos na sua maior parte feitos em português (as pentecostais de origem brasileiras, por exemplo) ou em lingala (como algumas das igrejas “africanas” vindas do Kongo). Outro interesse também era verificar o grande número de igrejas, sobretudo nos bairros de maioria bakongo e lideradas por regressados, que valia a pena investigar.

A inserção na vida religiosa, todavia, não me “libertou” das agruras identitárias. As visitas às diversas igrejas todos os domin-gos e durante a semana não me deixavam escapar da incômo-da pergunta sobre a minha filiação religiosa. A participação em tantos cultos e missas me impelia a reviver referências, gostos e lembranças, hierarquizando estas experiências por um “metro” católico, retomando minha própria tradição familiar brasileira.

Era impossível explicar para as pessoas que tinha tido uma formação católica, através da família, mas agora já não estava

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mais ligada a igreja alguma. A filiação religiosa, para a maioria do grupo estudado, era parte fundamental de sua identidade.

Sentia minha presença em tantos cultos perder em legitimi-dade e significado. Por outro lado, via que este descompromisso religioso ou a adesão individualizada que marca, em parte, a fi-liação religiosa urbana brasileira, não fazia qualquer sentido para eles. Meu retorno, ao menos através de uma identificação públi-ca, para o grupo com o qual convivi, à igreja católica, tinha a ver também com a admiração pela postura política adotada por esta igreja e seus membros frente ao conflito armado angolano e sua postura inabalável pela paz e pela reconciliação nacional.

Na história das igrejas em Angola, a igreja católica veio mo-dificando sucessivamente seus posicionamentos. De braço do colonialismo, torna-se uma igreja nacional e “neutra”, que quer situar-se acima de posições político-ideológicas e alinhamentos étnico-regionais. Estes posicionamentos garantiram a permanên-cia da igreja católica no mesmo lugar hegemônico que sempre ocupou, ou seja, uma posição de autoridade legitimada e em con-sonância com seu momento histórico.

A minha identificação como católica, sempre que me foi so-licitado, no circuito de visitas às diferentes igrejas e comunidades religiosas, não foi inocente desta posição hegemônica ocupada pela igreja católica. Implicou também uma forma ambígua de neutralidade, uma vez que a comunidade católica é quase majo-ritária entre os Bakongo, inclusive os de Luanda.

Não considerei minha afirmação de ser católica como uma estratégia para obter aceitação nos circuitos religiosos27. Foi um processo que até hoje me suscita certo estranhamento. Mas que

27 Mesmo a aceitação era relativa. Alguns membros e pastores das igrejas mais sectárias questionavam minha posição católica e viam nela uma oportuni-dade para a minha possível conversão. Mesmo assim, a maioria das pessoas nas igrejas entendia o meu papel de pesquisadora e a disposição de conhe-cer as comunidades religiosas e, através dela, “o modo bakongo de adorar a Deus”, sem questionar meu catolicismo, entendido como uma herança familiar. A questão que se punha para os Bakongo era ter uma filiação religiosa, qualquer que fosse.

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só teve cabimento no contexto angolano, embora seja preciso considerar que meu olhar para as igrejas em Angola está defini-tivamente marcado pela minha experiência de tradição católica da infância. E pelo distanciamento dela, após meus 12 anos. O meu afastamento da igreja católica e a busca por uma forma de religiosidade mais condizente com a minha busca identitária me aproximou do candomblé, aos 19 anos. Dez anos depois, uma investigação que intenta associar a dimensão religiosa a um pro-cesso coletivo de reformulação identitária e articulação política me confrontou com uma composição peculiar entre cristianis-mos e religiosidades africanas. Eu estava numa África que vive um cristianismo muito próprio e que reitera sua identidade por meio deste cristianismo.

Mais uma vez se percebem similaridades interessantes face às significativas diferenças do campo religioso angolano e afri-cano em comparação ao brasileiro e latinoamericano. No Brasil, vivemos a histórica hegemonia do catolicismo e a intensa catoli-cização dos escravizados. Religião imposta ou abraçada, o cato-licismo foi reinventado ou reinserido na devoção dos africanos e seus descendentes a partir do catolicismo rural ou popular ou do sincretismo com os cultos africanos (notadamente o candom-blé, mas não só). Com o processo de urbanização e o novo mo-vimento negro, em finais do século XX, a “reafricanização” do candomblé foi acionada como forma de afirmação identitária, depurando-o dos elementos catolicizantes que, segundo os líde-res deste movimento, colocariam os cultos afrobrasileiros numa posição de subordinação frente ao catolicismo.

Não é do escopo deste texto fazer um quadro comparativo do campo religioso na América e na África, mas cabe ressaltar que a disseminação pentecostal em África não se fez em terre-no prioritariamente católico, tal como na América Latina. Num campo bem mais pulverizado que o brasileiro, o pentecostalismo ganhou terreno explorando as crenças e práticas “tradicionais” numa chave diabolizante e maniqueísta semelhante da que o

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pentecostalismo vem se utilizando, no Brasil, com relação às reli-giões afro-brasileiras.

Diferente da maior parte de Angola, e mesmo da África, as missões cristãs estão presentes entre os Bakongo desde o século XV, com a conversão do rei do Kongo e depois de outras cama-das da sociedade. O cristianismo possibilitou aos Reis do Kongo reordenar seu campo político, estabelecendo uma relação privile-giada com o Reino de Portugal. A memória do cristianismo foi e tem sido foco importante da articulação identitária e política do grupo, inclusive se valendo da pulverização do cristianismo em vários segmentos.

Ou seja, de forma aparentemente inversa mas muito seme-lhante ao Brasil, percebem-se articulações entre etnicidade e reli-gião, valendo-se da memória ancestral, da distintividade históri-ca e da ressiginificação de legados de dominação em autonomia simbólica.

conclusão

Começar um estudo sobre a relação entre trânsito religioso e a proliferação de igrejas pentecostais e africanas com redes de parentesco e vizinhança deu início ao questionamento da minha filiação religiosa. Filiar-me a alguma igreja me deu legitimidade para circular entre as várias igrejas e comunidades religiosas. Ser “católica”, me permitiu falar entre iguais e realizar uma pesquisa sobre filiação e circulação entre igrejas e religiões.

Foi o fato de ter me encontrado sem lugar no sistema de classificações local que me fez compreender o quanto a filiação religiosa era a chave que ligava as questões identitárias às práticas cotidianas e às articulações de parentesco e vizinhança que busca-va desvendar. O desconforto e estranhamento a partir das minhas mudanças de posição – de forma consentida (de mestiça), esco-lhida (de católica) ou compulsória (de branca) – determinaram minha forma de circulação no campo, bem como me deram a

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possibilidade de perceber e analisar a operação dos diferentes sis-temas de classificação.

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Viagens ao mundo da mina: aspectos de uma etnografia entre mineiros de carvão no Brasil e na França28

Marta Cioccari

Nesse trabalho, analiso a experiência etnográfica de uma pes-quisa sobre a construção da honra em duas comunidades de mi-neiros de carvão: Minas do Leão, no Rio Grande do Sul, e Creut-zwald, cidade da Lorena francesa29. Em ambos os contextos, a última mina subterrânea já havia sido fechada quando realizei o trabalho de campo – o fim da mina de Leão I, em Minas do Leão, ocorreu em 2002 e da mina La Houve, em Creutzwald, em 2004 –, mas o trabalho exercido nas entranhas da terra continuava marcando fortemente as memórias e trajetórias dos moradores.

Para que se entenda como o tema se insere em minha pró-pria trajetória, é preciso dizer que meu interesse pelo mundo dos mineiros cresceu a partir de meus primeiros contatos com a co-munidade de Minas do Leão (RS), entre meados e o final da década de 1990, quando eu exercia a profissão de jornalista. Foi quando vivenciei a vertigem e o encantamento de descer pela primeira vez a uma mina de carvão subterrânea. Naquela ocasião, um mineiro, Zecão, na época com 35 anos, refletia assim sobre

28 Agradeço os comentários e as preciosas sugestões de Christiano Tambascia, Iracema Dulley, Valentina Salvi e Marta Jardim.

29 Os principais resultados desta pesquisa foram reunidos em minha tese de doutorado (Cioccari, 2010).

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seu ofício: “Pra mim, o mineiro de subsolo é um herói”, definiu, referindo-se à trajetória do pai e do avô, de quem ele havia her-dado a profissão. Algum tempo depois, ele comentava, a propó-sito do filme Germinal, uma adaptação da obra de Émile Zola: “Germinal é a história que meu pai contava, a história que eles viviam, entendeu?” Seu comentário estabelecia uma significativa conexão entre a transmissão de memórias familiares e a fonte que havia gerado meu próprio interesse por aquele universo – a leitu-ra de Germinal, na adolescência, e o impacto que teve sobre mi-nha visão de mundo. Esse mineiro tornou-se um de meus infor-mantes nas pesquisas de mestrado (2002-2004) e de doutorado (2005-2009), desenvolvidas na mesma localidade.

o mergulho na vida dos trabalhadores em minas do leão (rs)

Num dia de chuva do começo de setembro de 2006, eu che-gava a Minas do Leão – cidade que reúne cerca de 8 mil habi-tantes – para o trabalho de campo de doutorado, a bordo de um caminhão de mudanças pintado de rosa choque. Vi da boleia em que nos encontrávamos, eu, o motorista e outro funcionário da empresa de transportes, que alguns moradores saíam à rua, atraídos pela curiosidade sobre a chegada de um novo morador. Na parte traseira do caminhão, eu levava alguns poucos móveis, equipamentos e utensílios para a temporada de seis meses em que moraria na casa alugada no centro da antiga vila mineira. Como projeto, pretendia estudar a construção social do heroísmo en-tre ex-trabalhadores da mina subterrânea. Algum tempo depois, parecia-me que eu tinha ido procurar o heroísmo dos mineiros e encontrado mundos aparentemente mais domésticos. A mina de Leão I, a última exploração de subsolo na região, havia sido fechada quatro anos antes e, processado em certa medida o luto pelos trabalhadores, as referências à mina pareciam ter sido su-plantadas nas conversas cotidianas por questões familiares e de vizinhança, pelos conflitos sazonais na política, pela celebração

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dos esportes e jogos, pelas intensas e variadas procuras religiosas, assim como pelos embates das novas gerações em busca de em-prego ou de uma ocupação. Percebi que, à medida que se distan-ciava o “tempo da mina” de subsolo, afloravam mais claramente os outros mundos que teciam os sentimentos, valores e práticas dos moradores nesta cidade formada em torno da mineração – mesmo que uma exploração se mantivesse à flor da terra. Com o arrefecimento das emoções ligadas ao subterrâneo, emergiam à superfície da vida cotidiana outras realidades, de uma tessitura diversa e movente, que ajudariam a desvendar como se forjaram as ambiguidades em torno da mina.

Durante esta etnografia, habitei na localidade entre setembro de 2006 e fevereiro de 2007. Ao todo, realizei 60 entrevistas bio-gráficas gravadas e cerca de outras 20 com um caráter mais temá-tico (sobre algum aspecto específico relacionado à cidade, à saúde dos trabalhadores, etc.) tanto em Minas do Leão como na cidade vizinha de Butiá, onde habita parte de meus interlocutores e onde se localiza a sede do sindicato da categoria30. Em Creutzwald, na Lorena francesa, experiência que adoto como contraponto e não numa perspectiva comparativa31, gravei 25 entrevistas num período de observação de 21 dias (entre fevereiro e junho-julho de 2008)32. Nos dois casos, além de entrevistas, reuni documen-tos, fotos, vídeos e arquivos digitais tanto de informantes, como dos sindicatos, das companhias e das prefeituras. Tanto no Brasil como na França, pude me beneficiar também de uma vasta bi-

30 As 60 entrevistas biográficas feitas no doutorado foram agregadas a outras 25 realizadas no mestrado.

31 A experiência na França, em função do menor período dedicado ao traba-lho de campo, foi usada para iluminar aspectos da etnografia realizada no Brasil, sem que houvesse uma comparação no sentido estrito, para o que considero que seriam necessários investimentos similares nos dois univer-sos de pesquisa.

32 A experiência de campo na Lorena Francesa deu-se durante meu estágio de doutorado junto ao CRBC-EHESS, entre novembro de 2007 e agosto de 2008.

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bliografia antropológica, sociológica e historiográfica relativa aos mineiros de carvão.

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Com um desenho estreito e alongado, Minas do Leão é uma cidade horizontal. Quase todas as casas, com poucas exceções, têm apenas um pavimento. Chamam a atenção dos visitantes os tons vivos que colorem a maior parte das moradias, pintadas de azul, rosa, verde, amarelo ou outras cores. Há um número menor de velhas casas de madeira sem pintura, que guardam característi-cas da antiga vila mineira. Os principais estabelecimentos comer-ciais estão situados ao longo da avenida principal. Ali estão a pre-feitura, a sede da principal companhia carbonífera, o sindicato dos mineiros, pelo menos cinco igrejas (católica e protestantes), farmácias, um clube, uma escola, as maiores lojas e supermerca-dos, a delegacia de polícia e a brigada militar.

Em razão de minhas atividades anteriores, em Minas do Leão, boa parte de meus informantes me via como uma “jor-nalista”. Ainda que eu explicasse a diferença entre meu traba-lho anterior e o da pesquisa que fazia naquele momento, não raro ouvia sugestões para “minha reportagem”. O próprio termo “antropologia” intrigava parte de meus interlocutores. Certa vez, num tom jocoso, um de meus informantes, filho de ex-mineiro, indagou: “Que bicho é esse... antropologia?” Outro conhecido disse, brincando, que as pessoas poderiam se assustar pensando que fosse um “experimento com humanos”. Algumas semanas antes, o primeiro interlocutor havia se arriscado a explicar à afi-lhada que antropologia “era o estudo da humanidade”. Devido à indeterminação do que fosse o meu papel ali, mais comumente eu era apontada como sendo “a jornalista”. Numa ocasião, eu também ouvi crianças que passavam em frente à minha casa co-mentar: “Ali mora uma escritora”.

Minha relação com os livros era algo que, de fato, chama-va a atenção da vizinhança. Certa vez serlon, tendo aceitado a

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função de “caseiro” numa de minhas ausências da localida-de, dedicou-se com gosto à leitura de livros que lhe franqueei, interessando-se, sobretudo, por poesia. Com menos anos de es-colaridade do que o filho, o ex-mineiro Ariovaldo também apre-ciava a leitura33, demandando-me o empréstimo de livros sobre a mina e os mineiros, os quais ele me devolvia junto ao muro que cercava minha casa, com o comentário: “Quando tiver outro livro de mineiro, pode me trazer, esse já li tudo!” Outro vizinho com a mesma escolaridade que ele e que me viu lendo, numa ocasião desfechou: “Se tem uma coisa que eu detesto é a leitura!” Não apenas o hábito de leitura não lhes era indiferente como podia ter a força de uma provocação.

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Se a observação participante foi adotada como um método fundamental em meu percurso de pesquisa, não foi, no entanto, o único recurso nas interações. Nos dois contextos, considerei as perturbações mútuas causadas pela presença do pesquisador no campo, tomando-as, como sugere Devereux (1980), não como ruídos indesejáveis, mas como parte importante e rica de uma interação recíproca, capaz de fornecer preciosos insights, que não poderiam ser obtidos de outra maneira. São deste autor análises pioneiras sobre como o gênero, a profissão, a condição social e a idade do pesquisador podem condicionar os papéis que os nati-vos tendem a imputar-lhe – e que, caso sejam aceitos, lhe permi-tirão o acesso aos dados a partir de determinado ponto de vista. Inspiro-me ainda no que escreveu Favret-Saada (1990) sobre o etnógrafo aceitar “ser afetado” pelo campo. Em sua pesquisa no Bocage francês, a autora descobriu que os nativos só aceitaram partilhar sua experiência quando pensaram que ela tinha sido afe-tada pelos efeitos da feitiçaria. A metodologia que adotou não era

33 O filho tinha estudado até a 5ª série e o pai não concluíra o primário.

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de observação participante, nem mesmo envolvia o pressuposto de uma empatia entre pesquisadora e nativos. Nesta perspectiva, um etnógrafo aceitar “ser afetado” não implica que ele se identifi-que com o ponto de vista nativo. Compreende, antes, o reconhe-cimento de que a comunicação etnográfica ordinária – verbal, vo-luntária e intencional, visando ao aprendizado de representações – é insuficiente para captar aspectos não verbais e involuntários da experiência humana.

Numa etnografia, o que deve estar em jogo, a meu ver, é o reconhecimento da subjetividade do observador e a aceitação de que sua presença influencia o evento pesquisado – de forma que ele jamais observa o comportamento que “teria lugar em sua ausência” (Devereux, 1980: 30). Manuais de pesquisa de cam-po têm destacado a importância da “explicitação das condições singulares de pesquisa” a que o etnógrafo está sujeito, na medida em que os dados de uma pesquisa só são analisáveis em seu con-texto de produção (Beaud e Weber, 1998). Como acentua Foote Whyte (2005: 283), quando um pesquisador vive longo tempo na comunidade que estuda, “sua vida pessoal estará inextricavel-mente associada à sua pesquisa”. Assim, uma explicação sobre a pesquisa envolve, muitas vezes, uma narrativa pessoal sobre como viveu aquele período. Em minha experiência, insights surgiram de situações em que considero ter sido “afetada” pela interação com os nativos.

Nos dois contextos, eram constantes as atitudes e referên-cias verbais que punham em jogo questões de gênero relativas à minha presença, de uma pesquisadora mulher interessada em trajetórias masculinas. Em Minas do Leão, particularmente, a importância atribuída à família e ao casamento era expressa através de recorrentes perguntas feitas a mim: “Tu tem paren-tes aqui?”34, “Tu é parente deles?” (referindo-se ao casal que me

34 Os questionamentos são similares aos narrados por Comerford (2003) e por Caballero (2008).

acompanhava). E ainda: “Tu é casada?”. Diante de uma negativa: “Mas já foi casada?” Não sendo parente de ninguém e não me encaixando nos papéis atribuídos às mulheres, eu estava continu-amente exposta à desconfiança35. Havia, ainda, o aspecto de ser uma “mulher solteira”. Morando sozinha em uma casa situada numa esquina, experimentei a desconfortável sensação de passar de observadora a observada, não apenas pela intensa curiosidade demonstrada por quem passasse pela rua, mas por tornar-me alvo mesmo da vigilância de vizinhas36. Eu adotava uma atitude de simpatia, mas também de certo recato – isso se refletia na escolha das vestimentas e na condução das interações. Só mais tarde vim a entender que esse controle fazia parte da construção de minha reputação. Como define Bailey (1971: 4), a reputação de uma pessoa não é uma qualidade que ela possui, mas a opinião que as outras pessoas têm dela. Nos grupos com os quais estabeleci laços de afeto, depois escutei dizerem: “Ela já é da família”, “ela é como uma filha”, ou “é como uma irmã pra gente”. Esses comentários refletiam construções positivas em torno de minha “reputação”.

Vencida a etapa do estranhamento, passei a ser convidada pelas esposas de casais vizinhos para “ir a um baile” com eles, onde poderia “conhecer alguém”. A situação de habitar durante longo tempo aquela cidade me colocava na condição de morado-ra, alguém a quem é preciso ajudar a se instalar, a criar raízes na comunidade, a “se assentar”, a constituir – também, por sua vez, – uma família. O convite para frequentar bailes era a maneira pela qual as mulheres expressavam seu acolhimento, sua aceita-ção a uma “estranha”. Nesta atitude exibiam noções entranhadas que remetem o feminino ao casamento, à vida familiar, enquanto a centralidade do trabalho seria algo inerente ao mundo mas-

35 Nas reflexões sobre o campo, numa vila de papeleiros de Porto Alegre, Caballero (2008) discute a questão da “desconfiança” dos nativos à sua presença.

36 Sobre o controle social exercido pelas mulheres, ver Hoggart (1973) e Fon-seca (2000).

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culino. Este tipo de solidariedade feminina pode embutir uma tentativa de familiarização e/ou domesticação da alteridade e de neutralização de fatores que poderiam significar concorrência junto aos homens.

Muitos interlocutores estranhavam meu modo de vida, de uma pesquisadora que “mora um pouco em cada lugar”, “como cigano”. Alguns não hesitavam em me perguntar sobre “quando eu iria me assentar”, ou sugerir-me que talvez eu pudesse ficar morando ali, já que, segundo uma crença local, “quem bebe água da sanga da Taquara não vai mais embora”. Certa vez, o ex-mi-neiro Hermes usou um termo peculiar: “Tu é uma andarína”, ele me disse, lançando mão do termo tomado do espanhol que ali se mistura à fala cotidiana37. A palavra andarína reúne três signi-ficados38: o de andarilho, pessoa que anda muito sem se fixar; o de mensageiro, que leva cartas ou notícias; e o que diz respeito à andorinha, a ave que simboliza o eterno retorno, pois parte no inverno e retorna no verão. Era uma imagem apropriada para traduzir o movimento do etnógrafo: do esforço de peregrinação nos mundos a que nos lançamos, das trocas objetivas e subjetivas, e dos inúmeros deslocamentos entre o campo e a escrita.

Ainda que os aspectos relativos à vida privada fossem aborda-dos por meus interlocutores sem delongas ou constrangimentos, as tentativas de aprofundamento do tema revelaram-se arriscadas. O que estou considerando como risco é o que pode suscitar de mal-entendido uma mulher mostrar interesse nessas questões. Em uma entrevista com um viúvo com cerca de 80 anos, uma pergunta sobre o porquê da recorrência das “histórias de cornos” na comunidade abriu o leque para revelações de caráter íntimo, nas quais o entrevistado se gabava de suas próprias aventuras amorosas. Constrangida pelo tom explícito das confidências, eu

37 Outros aspectos da experiência de campo em Minas do Leão (RS) e na Lorena francesa foram examinados por mim em Cioccari (2009a, 2009b, 2010).

38 Dicionário da Real Academía Española.

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ensaiava o fim da entrevista, quando ouvi: “Pode voltar a me en-trevistar, mas é perigoso, porque eu sou viúvo”. Com um gesto sugerindo cumplicidade, completou: “Não tem problema, né, tu é solteira”. A noção da viuvez como “perigosa” apareceu em ou-tras situações, com caráter mais ou menos jocoso. Tal represen-tação parece estar vinculada ao principal papel que tais homens sabem jogar, que os protege da desfiguração de outras identidades – como a de mineiros, em vias de desaparecimento. Essa constru-ção que enfatiza a virilidade, tão valorizada socialmente, parece ser uma defesa contra a ameaça representada pelo envelhecimen-to e pela solidão.

uma “brasileira” em campo francês

Em fevereiro de 2008, viajei pela primeira vez a Creutzwald, a cidade da Lorena francesa que abrigou a última mina de carvão do país, La Houve39. No final de junho daquele ano, retornei a essa localidade para, durante algumas semanas, realizar o traba-lho de campo. Realizar uma etnografia em terra estrangeira põe à prova características como paciência, persistência e determina-ção e nos despe de estratégias aprendidas para a construção de interações que ali, numa outra cultura, podem não ter grande valia. Nas notas que fiz no diário de campo no período, consi-derava que a etnografia requer uma espécie de “transcendência”, na medida em que atravessamos nossos medos e limitações para ir ao encontro do outro, expondo-nos à vulnerabilidade. Dwyer, citado por Mintz (1984), afirmava que, para o antropólogo, estão em jogo duas espécies de vulnerabilidades: uma relacionada com os reclamos da disciplina, e outra com seu envolvimento pessoal

39 Até meados dos anos 1940, a indústria carbonífera francesa gerava 80% da energia nacional. Nesse período, o setor chegou a empregar 330 mil trabalhadores no país. O fechamento das minas começou a partir dos anos 1960, quando os investimentos governamentais na matriz energética se voltaram a outras fontes, como a energia nuclear.

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com a pesquisa. Combinadas, fazem crescer a angústia e a ten-são do pesquisador. Mintz (1979), por exemplo, relatava sobre a apreensão e o medo que sentia quando chegou a Porto Rico para o trabalho de campo: era olhado com curiosidade, não dominava bem o espanhol e era um americano numa área de tensão provo-cada pela ocupação.

Para que se entendam as circunstâncias nas quais meu traba-lho foi realizado, manterei certos detalhes próximos dos registros feitos nos diários de campo. Assim, cheguei a Creutzwald pela primeira vez numa sexta-feira à tarde, após uma viagem de qua-tro horas, inicialmente a bordo de um trem TGV e depois de um ônibus. Na última parte do trajeto, podia-se ver uma deze-na de vilarejos, todos praticamente com a mesma configuração: as velhas casas de mineiros ainda sólidas, com uma tonalidade entre o cinza e o marrom, a igreja, geralmente com um relógio sobre a torre, a escola, alguns cafés e casas de comércio. Logo que desci do ônibus, caminhei cerca de um quilômetro até o hotel. Era um momento de expectativa porque eu não tinha nenhum contato na localidade, salvo a reserva da hospedagem. O hotel, com uma diária de 25 euros por dia, ficava situado sobre um café e sua recepção se confundia com o balcão do bar. Era um hotel “popular”, mas considerado “respeitável”. Como pude perceber nos dias seguintes, o café do hotel era um importante ponto de sociabilidade local de várias gerações – envolvendo operários, jo-gadores de futebol, professores e trabalhadores aposentados da mineração e de outros setores. Quando entrei no bar, havia uma maioria de clientes masculinos bebendo cerveja. Eles me observa-ram com certa discrição, mas isto não impediu o meu constrangi-mento. Como o gerente do hotel não dispusesse de um mapa da cidade, perguntei sobre a localização das vilas-mineiras. Um su-jeito que se encontrava no balcão fez algumas sugestões. Era um ex-funcionário da Charbonnages de France e, nos últimos anos, tinha participado da organização dos arquivos da companhia. Ele me deu seu cartão e colocou-se à minha disposição para me levar aos arquivos na segunda-feira seguinte. Apesar de minhas incer-

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tezas, era um bom começo. Na expedição aos arquivos, descobri-mos que a organização dos documentos não estava voltada para atender demandas externas, menos ainda de uma estrangeira.

Nos dias seguintes à minha chegada, entre os numerosos frequentadores do café do hotel, alguns se mostraram interes-sados pela “missão” de uma pesquisadora brasileira. Foi o caso de uma senhora – uma das poucas mulheres presentes no local – que decidiu me ajudar. Conduziu-me em seu carro até a casa de um ex-chefe da mina. Como ele não se encontrasse, fizemos um percurso por bairros operários para que eu tivesse uma noção da geografia da cidade. Depois, eu me pus a caminhar sozinha. Entrei numa vila-mineira chamada Bellevue (Bela Vista), que era constituída de pequenas casas individuais, com um jardim. Os nomes das ruas eram particularmente curiosos: Beethoven, Ri-chard Wagner, Bizet, etc. Muito rapidamente, percebi que seria quase impossível estabelecer contatos na rua, primeiro porque quase não havia pessoas no exterior das casas. E, quando havia, não estavam interessadas em falar com uma estrangeira. Nesse lo-cal, todas as minhas tentativas para começar uma interação foram infrutíferas. Eu tentei, por exemplo, puxar conversa com uma senhora que lavava roupa ao lado da residência, perguntando-lhe se ali eram casas de antigos mineiros. Ela respondeu que “sim” sem interromper a sua tarefa. Então, eu lhe perguntei se seu ma-rido havia trabalhado na mina. Secamente, ela me disse: “Não tenho marido!” Agradeci e fui adiante. Outro contato, uma nova recusa. Um senhor, que me havia sido indicado por seu sobrinho por ter trabalhado na mina, mal escutou a minha apresentação com a porta da casa entreaberta e foi logo me despachando: “Isso não me interessa”. Um tanto frustrada, mas disposta a vencer essas resistências, me dirigi a outro bairro mineiro chamado Be-ausite (Bonito Lugar). Havia decidido ser mais prudente, mas ao avistar um senhor entretido com um conserto no carro, resolvi abordá-lo. Mineiro polonês aposentado, ele foi um pouco mais receptivo, mas me disse que da mina “só tinha más lembranças” e que “preferia não falar delas”. Desta forma, em minha primeira

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visita a campo, me defrontei com muitas recusas nas tentativas de estabelecer contato: desconfianças em relação a uma estrangeira, aversão a evocar as lembranças difíceis da mina. Esses silêncios voluntários já eram reveladores. Quando podia, eu tentava que-brar as resistências falando do cotidiano dos mineiros brasileiros.

Posteriormente, nas casas nas quais fui convidada a en-trar, veria também o orgulho da profissão, expresso em palavras, gestos e em paredes e estantes decoradas com objetos da mina. Seria tocada pela similaridade entre sentimentos manifestos por mineiros franceses e brasileiros, que traduziam tristeza pelo fim da mina, assim como o orgulho da profissão e o humor peculiar cultivado no subsolo. Naquela região, marcada pela presença de imigrantes – alemães, italianos, eslovenos, espanhóis, marroqui-nos, argelinos, etc. – podia-se entender por que a filha de um mineiro italiano havia dito no depoimento a uma revista: “O subsolo é feito de gestos”, já que trabalhadores de diversas na-cionalidades, falando línguas diferentes, partilhavam a jornada na mina. Eles também lançavam mão de dialetos, construídos de diferentes línguas, como o francês e o alemão. Tal influência se devia não apenas à proximidade geográfica, mas também ao efei-to das sucessivas anexações da Lorena e da Alsácia à Alemanha, entre 1871 e 1918.

Observe-se que o universo de Creutzwald apresentava maior complexidade do que aquele encontrado em Minas do Leão. Pri-meiro, em função da centralidade do papel das imigrações na constituição da indústria carbonífera daquela região. Deve-se considerar o que escreveu Noiriel (2002) sobre o fato de que, até os anos 1940, quase a totalidade dos trabalhadores do subsolo nas minas francesas era de estrangeiros. A eles eram destinadas as tarefas mais duras e perigosas40. A entrada de trabalhadores

40 A primeira imigração foi de poloneses, instalados principalmente nas mi-nas do Norte. A segunda, de italianos, que se fixaram em torno das minas de ferro na Lorena, com um contingente menor nas minas de carvão. Os norte-africanos, especialmente marroquinos e argelinos, seriam a terceira

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estrangeiros de origem italiana, polonesa, alemã, iugoslava, en-tre outras, e, mais recentemente norte-africana, a partir dos anos 1970 e 1980, marcou de maneira significativa o processo de ex-ploração das minas daquele país, as clivagens no interior da cate-goria e também a distribuição socioterritorial nas comunidades. Outra diferença está relacionada à própria tradição de exploração carbonífera na Europa, em que o mineral – “o pão da indústria” – teve papel fundamental na Revolução Industrial, entre 1850 e 1950, diferentemente da jovem tradição carbonífera brasileira. Um terceiro fator a ser considerado relaciona-se à própria pro-fundidade das minas de subsolo francesas, cuja exploração exigia tecnologia apropriada41. Algo que deve ser mencionado no con-texto francês é que as crenças e concepções acerca do trabalho, das relações hierárquicas e do lazer contrastavam entre mineiros oriundos de diferentes imigrações42.

No começo de meu trabalho de campo, quem me abriu pri-meiro a porta de sua casa foram um ex-mineiro de origem iugos-lava e sua mulher vietnamita, ex-operária de fábrica. Eu encontrei com o casal num terceiro bairro mineiro, ao entrar numa rua com casas muito antigas. Dessa vez, a abordagem foi bem-suce-dida. Eles me convidaram para entrar em sua casa, um pequeno sobrado, construído pela companhia carbonífera, que habitavam

onda de imigrantes. Para um aprofundamento deste aspecto, ver Noiriel (2002), Ponty (1995, 2008), Eckert (1991) e a publicação Mineurs immi-grés, do Institut d’Histoire Sociale Minière (2000). Analisei mais detida-mente as diferenças entre a tradição francesa e a brasileira da exploração de carvão em Cioccari (2009a , 2010).

41 A mina La Houve, em Creutzwald, tinha uma profundidade de cerca de 1.200 metros, enquanto a mina de Leão I, em Minas do Leão, tinha 123 metros.

42 Um exemplo disso é que os poloneses eram vistos como mais adaptados às posições de chefia, por sua disciplina e dedicação ao trabalho, que seria diferente de outras imigrações. Delmas (2000, p. 73) refere-se ao “falso de-bate” sobre a “boa imigração”, mostrando que esse discurso não é neutro, mas pretende opor novos fluxos (marroquinos e argelinos, por exemplo) aos antigos (italianos e poloneses).

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havia alguns meses. Ali, me mostraram fotos da mina e as me-dalhas que o ex-mineiro havia recebido pelos anos de atividade no subsolo e por seu estatuto de “bom trabalhador”. Tratava-se de pistas sobre o orgulho, a honra da profissão, que seriam pro-veitosas para meu estudo. Acolhida na residência, eu enfrentava algumas dificuldades: meu interlocutor guardava um forte sota-que alemão, idioma que aprendeu antes do francês, enquanto sua mulher mantinha as marcas da sua língua materna. Em alguns momentos, ansiosos em repartir suas memórias, falavam comigo ao mesmo tempo sobre temas diferentes. A primeira entrevista transcorreu assim, de forma um tanto caótica. Num momento, a mulher vietnamita desapareceu e foi chamar o vizinho, mora-dor da casa geminada. Era um italiano, também aposentado da mina, que veio carregado de revistas e vídeos sobre aquele univer-so para me mostrar. Depois, ele e sua mulher me inseririam em sua própria rede de relações. Dos contatos que foram surgindo, um após o outro, em menos de um mês de etnografia, na se-gunda ida a campo, eu tinha chegado a mais de 20 entrevistas, reunindo mineiros que haviam se aposentado há longo tempo e outros que trabalharam até o fechamento da mina, assim como esposas e descendentes. Entre as entrevistas realizadas, a diversi-dade de interesses extrapolava a ideia de uma trajetória idêntica de família mineira: entre eles, sindicalistas de diferentes posições, ex-jogadores de futebol ligados à equipe da companhia, filhos de mineiros com escolaridade mais alongada que refletiam sobre a ruptura com o ofício do progenitor. Entre os descendentes, al-guns professores, um músico e um jogador de futebol que havia defendido a seleção do Marrocos nas Copas de 1994 e de 199843.

Na condução da etnografia, destaco minha relativa “vulne-rabilidade” como uma dupla alteridade em campo – estranha ao lugar e estrangeira –, mas convivendo com um forte sentimento

43 Refiro-me ao jogador marroquino Mustapha Hadji, que se tornou um de meus informantes.

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de familiaridade com o mundo mineiro44. Esse sentimento pro-vinha do longo envolvimento com o tema no Brasil nas pesquisas de mestrado e doutorado. Essa experiência prévia me permitia não apenas compreender os aspectos mais técnicos das narrativas, como também contribuía para aumentar minha credibilidade aos olhos de meus interlocutores. Em alguns momentos, eram eles que me faziam perguntas sobre a situação dos mineiros de car-vão no Brasil e sobre seu cotidiano de trabalho. Posso dizer que, se a condição de estrangeira intensificava resistências e recusas, estimulava, por outro lado, a manifestação de um tipo de solida-riedade e empatia. Mais de uma vez, ouvi de informantes que eu era “corajosa” por estar lá, sozinha e sem conhecer ninguém. Essa virtude atribuída traduzia, ela mesma, um valor que é central no mundo dos mineiros de carvão: estava ligada à disposição para enfrentar riscos.

Mas, como afirma Pitt-Rivers (1983), o estrangeiro é, por essência, o “incógnito”. Ele é, antes de tudo, “alguém em quem não se pode confiar”. Desta forma, as pessoas do lugar devem construir sobre ele sua própria opinião. Assim como em deter-minados momentos da etnografia no Brasil novos informantes se mostravam desconfiados de uma forasteira que fazia perguntas sobre sua vida, isso ocorreria ainda com mais razão na França. Certa vez, em Minas do Leão, um antigo mineiro me disse que tinha pensado em me pedir um documento de identidade an-tes de me conceder a entrevista, mas se tranquilizou quando lhe mostrei minha dissertação de mestrado portando inúmeras fotos de famílias que eram suas conhecidas. De maneira similar, na abordagem das famílias da Lorena, eu introduzia minha experi-

44 Eckert (1992), que viveu uma experiência de longa duração entre mineiros de La Grand-Combe, no sul da França, depois de ter pesquisado uma comunidade mineira no Brasil, diz que vivenciava ao mesmo tempo um sentimento de familiarização e de estranhamento – o primeiro relacionado à continuidade do trabalho realizado no Brasil e o segundo nascido da pesquisa num país estrangeiro. Ver também Eckert (1991).

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ência com os mineiros brasileiros. O compartilhamento desses aspectos nos aproximava como se a compreensão passasse, sobre-tudo, pela experiência partilhada e pela disposição de abrir-se a outros mundos – próximos, pela experiência da mina, mas tam-bém distantes, pela geografia e pelos códigos culturais.

Certamente o fato de que boa parte de meus entrevistados tivesse nascido fora da França ou descendesse de estrangeiros contribuiu para reduzir as resistências. Por outro lado, os reco-nhecimentos em campo são de toda ordem e ocorrem de forma inesperada. Foi assim que eu, bisneta de imigrantes italianos, encontraria entre famílias italianas vivendo na Lorena francesa uma acolhida equiparável a um simbólico “lar” a muitas léguas de distância de minha própria casa. Isso estava presente, por exemplo, na interação com o casal de italianos que conheci em minha primeira viagem a Creutzwald. Outro aspecto a conspirar para a confiança mútua foi o fato de um dos filhos deste casal ter cursado doutorado em sociologia, razão pela qual as situações en-gendradas pela pesquisa não causavam estranheza a seus pais. Em vários momentos, eles justificaram sua disposição em me ajudar fazendo referência ao filho – hoje professor em Nancy, e com quem mantive contato virtual, recebendo seus comentários e su-gestões ao meu projeto de pesquisa. A longa escolaridade de um filho de mineiro já consistia num dado relevante em minha inves-tigação. Contudo, estava longe de ser a regra. Como me indicava o sociólogo Michel Pialoux45, se uma escolaridade alongada entre descendentes de imigrantes italianos não era rara naquela região, a mesma coisa não se podia dizer das famílias operárias oriundas de outras imigrações.

A partir do contato com imigrantes, eu passaria a conhecer as formas pelas quais os estrangeiros tecem suas redes locais de solidariedade, calcadas na origem comum, para além das ligações

45 Durante interlocução sobre minha pesquisa. Com Stéphane Beaud, Pia-loux estudou filhos de operários na indústria automotiva em Sochaux, na França. Ver Beaud e Pialoux (1999).

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derivadas da camaradagem do trabalho na mina e das relações de parentesco e de vizinhança. Esse ex-mineiro italiano me apresen-tou a um casal – ele, ex-engenheiro da mina, filho de um antigo mineiro esloveno; sua mulher, professora de inglês, filha de um antigo mineiro italiano – junto ao qual acabei usufruindo um período de hospedagem na minha segunda incursão a campo. Uma de minhas identidades em campo passava a ser, então, essa origem familiar, ao lado da condição de “estudante brasileira”. Naquele contexto, soava um tanto “insólito” o interesse de uma brasileira pelas trajetórias de mineiros franceses. Este tom foi ex-presso no título de uma matéria publicada no jornal regional, Le Républicain Lorrain, sobre minha presença na localidade, que se seguiu a uma inversão momentânea de papéis durante uma entrevista que eu fazia com um ex-encarregado da mina. Depois de me consultar a respeito da possibilidade de aproveitar minhas informações para uma matéria, o ex-mineiro, acompanhado de sua mulher, me fez algumas perguntas. Ele havia combinado com a redação do jornal o envio da “notícia”. Alguns dias depois de meu retorno a Paris, recebi uma cópia da matéria publicada, cuja cartola, “Insolite”, era seguida pelo título: “Une étudiante brési-lienne enquête sur les mines” (Uma estudante brasileira pesquisa so-bre as minas), evidenciando o caráter “extraordinário” atribuído à minha visita. Era um texto de 20 linhas, sob uma foto na qual o ex-mineiro me presenteava com um relógio com uma pedra de carvão incrustada, homenageando a última mina da França. Muitos simbolismos: o do souvenir, de sua entrega a uma estran-geira e o da própria matéria no jornal.

Como Mintz (1979) mencionara sobre seu começo de pes-quisa em Porto Rico, ele era “o Estrangeiro”, “mas não qualquer estrangeiro”, e sim um americano. Posso considerar que algo aná-logo se passava no meu caso. Eu era uma “brasileira”, situação na qual identidade de gênero e de nacionalidade pareciam se colar e se potencializar. Desta dupla condição – de mulher e estran-geira – derivariam os constrangimentos que enfrentaria. Dife-rentemente da experiência de Minas do Leão, em que a questão

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de gênero, ela mesma, parecia ocasionar desconfortos, na Lorena francesa o estatuto de mulher se combinava ao de “brasileira”. Embora com uma estadia bem mais curta, minha permanência na Lorena francesa acionava igualmente a construção de uma re-putação, podendo confirmar ou desfazer visões sobre uma “bra-sileira”. Nem sempre isto estava em jogo de forma estereotipada. Apenas em quatro ou cinco casos houve um mal-estar derivado dessa condição. Em entrevistas atravessadas por forte densidade política (com sindicalistas ou militantes de esquerda, por exem-plo), o estatuto de pesquisadora latinoamericana interessada em trajetórias operárias despertava empatia e solidariedade. Em in-terações familiares, a atenção se focava em minha nacionalidade, trajetória pessoal e origem (estudante, filha de trabalhador, bis-neta de imigrantes). Às vezes, ser estrangeira era uma vantagem: havia menos riscos em contar a própria história a quem partiria a um país distante.

Algumas situações embaraçosas, no entanto, estavam relacio-nadas a comentários diante de uma “brasileira”. Num episódio, eu conduzia a entrevista na residência de um casal. O ex-mineiro, de pouco mais de 50 anos, havia se aposentado na mina ocupan-do uma posição de chefia. Sua casa, bem arrumada e decorada, mantinha uma ambiência fria, reservada, mesmo tom que predo-minou na interação. Durante a entrevista, sua mulher precisou sair e continuamos a conversa. O constrangimento ocorreu no final, quando entreguei a ele um papel com meu nome, e-mail e a referência “antropóloga brasileira”. Ele lascou a questão: “Por que ‘brasileira’?” Sem entender, reafirmei que era “brasileira”. Ele me disse que “eu não deveria fazer propaganda disso”, pois podia ser perigoso estando hospedada sozinha num hotel. Explicou: “As brasileiras eram a fantasia sexual da nossa geração. As brasileiras... e as suecas”. Depois, informou que um amigo, sabendo que uma brasileira estaria em sua casa, insistiu para ir até lá, ao mesmo tempo em que lhe demandava sobre minhas características. Meu interlocutor teria dito que eu era “atraente”, mas estava ali “fazen-do meu trabalho”. Na saída, quando lhe perguntei se podia fazer

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uma foto sua diante da casa, adquirida da companhia, sugeriu: “Eu é que devia fazer uma foto tua!” Segundo ouvi, o imaginário sobre “brasileiras” teria se alimentado de imagens televisivas de mulheres portando trajes sumários no carnaval e na praia. Atra-vessando essas imagens estavam representações sobre a “sensuali-dade” e a “permissividade sexual” atribuídas aos brasileiros46.

No período em que fiquei hospedada com o casal de infor-mantes na cidade de Freyming-Merlebach, minha presença en-gendraria um contorno mais “familiar”. Ali eu era recebida “como uma filha”. Mais do que à diferença de idade, essa atribuição esta-va relacionada à minha condição de estudante, similar à de seus filhos, e ao fato de eu ser uma mulher solteira e estrangeira, o que poderia remeter a certa “vulnerabilidade”. Ainda que a trajetória do marido, engenheiro aposentado da mina, fosse mais relacio-nada ao meu tema de pesquisa, coube à esposa me apresentar a famílias conhecidas de mineiros. Além da condição de gênero, havia as origens familiares comuns. Na condição de filha de um mineiro italiano, apresentou-me a outros descendentes de italia-nos. Foi um período em que eu estive assessorada e “protegida”, mas também um tanto restrita ao universo social compartilhado por meus anfitriões47.

Considero que em uma pesquisa envolvendo a construção da honra em comunidades mineiras, no contexto brasileiro e francês, tais elementos sobre as atribuições que me eram feitas durante a etnografia ajudam a iluminar aspectos não apenas do próprio trabalho de campo, mas também dos valores em jogo nas duas comunidades. Nota-se, portanto, que em ambos os casos a

46 Em seu estudo sobre a cultura sexual no Brasil, o antropólogo america-no Richard Parker (1991) abordou alguns “mitos de origem peculiares”. Conforme o autor, a sensualidade brasileira é celebrada e se relaciona, no nível mais profundo, com o que significa ser brasileiro. Essa imagem seria apresentada pelos brasileiros a si mesmos e para o mundo estrangeiro.

47 Abu-Lughod (1999) reflete sobre a relação entre “proteção” e “restrições” em seu estudo sobre uma comunidade de beduínos no norte do Egito.

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minha condição de gênero participava do delineamento da for-ma pela qual eu seria recebida em campo e da definição de meu estatuto nas interações. No caso brasileiro, como mencionado, sobressai a centralidade do papel conferido às relações familiares e ao casamento, enquanto no caso francês percebe-se o peso entre a combinação da condição de estrangeira, mais particularmente das atribuições a uma “brasileira”, e o pertencimento de gênero. Como se viu, certos estereótipos poderiam ser abandonados pela consideração de que uma pesquisa em terra estrangeira requer “coragem” – como dito, uma qualidade altamente valorizada pe-los trabalhadores na mineração.

impactos teóricos da dupla experiência de campo

Este trabalho etnográfico realizado nos dois contextos – as-sim como a pesquisa documental48 e bibliográfica – levou-me à percepção de que, entre os mineiros de carvão, uma determi-nada face do sentimento de heroísmo, minha primeira hipótese de trabalho, era só uma das construções – embora importante e profundamente enraizada. Posteriormente, passei a denominar o sentimento de heroísmo presente no universo dos mineiros de “grande honra” da profissão. Ela parte de uma “mitologia” criada em torno do mineiro de subsolo, com sua reverberação íntima mais ou menos entranhada nos sujeitos. Meu duplo investimento em pesquisas no Brasil e na França propiciou assim a compreen-

48 Trata-se de arquivos que pertenceram a uma companhia carbonífera gaú-cha, o Cadem, no passado, hoje guardados por uma historiadora local, onde é possível obter informações sobre as condições de vida e de trabalho dos mineiros entre as décadas de 1920 e 1960 – e também sobre as alianças entre as companhias e as forças policiais diante de mobilizações e greves dos trabalhadores gaúchos. Outro arquivo, da CRM, diz respeito às fichas funcionais dos seus empregados, nas quais se podem obter pistas acerca das promoções e das punições, por exemplo. A pesquisa em documentos contribuiu para esclarecer aspectos que emergiram das narrativas dos inter-locutores. Para aprofundamento destes aspectos, ver Cioccari, 2010.

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são de que o estudo da honra a partir da faceta heroica encara-ria só uma parte da questão. Seria preciso, então, estar atenta a outras configurações que emergiam das trajetórias individuais e dos pertencimentos coletivos, caracterizando o que denominei de formas de “pequena honra”.

Devo observar que a construção do heroísmo, tratada em mi-nha pesquisa como a “grande honra” da profissão, se aproxima do que Guattari (1986) chamou de perspectiva “molar”, enquan-to a “pequena honra”, relacionada a diferentes aspectos da vida cotidiana (por exemplo, profissional, familiar, religiosa, política, esportiva, etc.) teria um caráter “molecular”49, envolvendo sua recombinação e atualização constante. Desta forma, um primeiro deslocamento teórico necessário para dar conta de meu projeto foi desdobrar a noção de honra (no sentido de Pitt-Rivers, 1965; 1992) em duas dimensões: a da “grande honra”, mais voltada para as imagens que figuram nas representações idealizadas do heroísmo mineiro, e a da “pequena honra”, correspondendo aos diversos pertencimentos locais e às suas insurgências cotidianas, com suas tensões e conflitos internos.

Os aportes representados pela literatura e pelas autobiogra-fias operárias tornaram-se igualmente iluminadores em meu tra-jeto de pesquisa. A partir dessas fontes, foi possível notar que a “grande honra” da profissão do mineiro de carvão atravessa diferentes nações e culturas, tendo sido alimentada desde o sé-culo XIX pela literatura (com obras de Victor Hugo,1866, e de Émile Zola,1881, por exemplo), assim como pelas biografias e autobiografias operárias (como Malva, 1978; Viseux, 1991). Esta

49 Os termos “molar” e “molecular” correspondem ao sentido usado por Guattari (1986: 291-292), de que a ordem molar diz respeito às estratifi-cações que delimitam os objetos, os sujeitos, as representações e os sistemas de referência, enquanto a ordem molecular está ligada aos fluxos, devires, transições de fases e intensidades. Entre os dois níveis não há necessaria-mente oposição ou contradição. Um exemplo: as lutas sociais são ao mes-mo tempo molares e moleculares (Guattari e Rolnik, 1999:127).

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“grande honra” ganhou corpo com as campanhas movidas pelo Estado – francês, assim como o inglês, o alemão50, e, antes disso, o soviético –, com o apoio de sindicatos, visando tornar o mi-neiro o “primeiro operário” do país e convertê-lo num modelo moderno do proletariado (Desbois, Jeanneau e Mattéi, 1986). As homenagens, as medalhas e placas concedidas aos trabalhadores, enaltecendo a “honra do trabalho”, resultaram de uma política com o propósito de estimular a produção carbonífera na crise gerada pela Segunda Guerra Mundial.

Por outro lado, o conceito de “pequena honra” passou a ser delineado após o trabalho de campo em Minas do Leão, em que a observação das práticas sociais, a interação com as famílias e a escuta das narrativas remetiam à construção cotidiana de uma dignidade pessoal e coletiva dizendo respeito tanto ao trabalho como ao esporte, à política, à religião, à vida privada, etc. Além dos dados obtidos em campo, os estudos de Bailey (1971) so-bre reputações contribuíram para desenhar os contornos teóricos desta noção de “pequena honra”, cujo valor se inscreve na vida or-dinária. Segundo este autor, em pequenas comunidades, a peque-na política da vida cotidiana de cada um está ligada às reputações, o que significa “ter um bom nome”, “evitar a desqualificação so-cial” (Bailey, 1971: 21). Em minhas pesquisas (Cioccari, 2010), sugiro que a “pequena honra”, tal como a reputação estudada por Bailey, precisa do reconhecimento dos outros, mas está calcada num sentimento íntimo (que lhe corresponde ou contradiz), en-quanto a reputação mantém o seu caráter de exterioridade51. O que passei assim a denominar “pequena honra” é a combinação entre o prestígio que cada um obtém socialmente e a estima de si, seu próprio sentimento de dignidade, que tanto é alimentado por esse reconhecimento como o alimenta na esfera social. Tal como na “grande honra”, as formas de “pequena honra” se constituem

50 Ver Barrington Moore Jr. (1987).51 Na definição de Bailey (1971: .4), a reputação não é uma qualidade que a

pessoa possui, mas a opinião que as outras pessoas têm dela.

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na tensão entre o prestígio e o desprestígio, o respeito e o des-respeito. Identificada por mim nas comunidades de mineiros, a noção de “pequena honra” poderia, provavelmente, ser estendida a outras categorias de trabalhadores, podendo iluminar aspectos cotidianos que ancoram os valores nos estudos sobre segmentos populares52.

um exemplo de “grande honra”: o caso francês

Graças ao investimento etnográfico em Creutzwald, foi pos-sível recolher elementos sobre como os ex-mineiros e moradores daquela comunidade registraram o desaparecimento da última mina de carvão do país. A mina La Houve, que começou a ope-rar em 1856, foi fechada em 23 de abril de 2004, durante uma cerimônia, segundo a imprensa, “carregada de simbolismo e de tristeza”, na qual as autoridades prestaram homenagens aos úl-timos 410 mineiros, os “gueules noires”. Em 2008, quando eu me encontrava na cidade, percebi que ao lado do sentimento de luto que persistia para muitos ex-mineiros era possível notar a presença da “grande honra” celebrada e materializada nos objetos que adornavam as casas – documentos e imagens que reúnem fragmentos de uma memória coletiva, guardados como relíquias pessoais. Nas falas dos ex-mineiros, após o fim da mina, havia algo como um sentimento de heroicidade frustrada53 – expressa por meio de falas, de gestos e de certa rememoração nostálgica do passado. Era possível notar como o fechamento da mina naquele

52 No caso da “grande honra”, estudei suas especificidades no universo dos mineiros de carvão das duas comunidades, no Brasil e na França, mas é possível que este conceito seja útil para pensar os valores em outros contex-tos da sociedade contemporânea. As noções de “grande honra” e “pequena honra”, formuladas por mim, se inspiram no modelo teórico de Redfield (1967) acerca da Grande Tradição e da Pequena Tradição e na forma como se combinam pela ação de mediadores. Para uma discussão mais detalhada, ver Cioccari (2010, capítulos 1 e 2).

53 Agradeço a José Sérgio Leite Lopes a sugestão da expressão.

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contexto originou uma reatualização do trabalho de mitificação do mineiro através das homenagens públicas e da abertura de museus de carvão, como o de Petite-Rousselle, que tive a oportu-nidade de visitar. Graziano, o ex-mineiro italiano que referi antes, me dizia:

Graziano - Eu sempre lamentei o fim da mina. (...) Como dizia outro mineiro quando ainda estávamos na mina: ‘O métier de mi-neiro é o mais belo métier do mundo!’. Mesmo que isso não seja verdade, mas... [O fim da mina] faz mal ao coração. (...) O mineiro é assim como um bloco de cimento: a cordialidade, a amabilida-de, a sinceridade, a camaradagem não existiam na superfície como existia no subsolo.- E na superfície?Graziano – Quando um mineiro está na superfície, isso acaba. A mina não existe senão quando se vai ao subsolo. Lá embaixo, no interior da terra, a 1.100 metros [de profundidade], o mineiro par-tilhava com os outros mesmo se não os conhecesse, (...) com os italianos, os marroquinos, os russos, os portugueses, os espanhóis, de toda parte. (...) Quando um companheiro não tinha pão dava-se um pedaço mesmo que não o conhecesse.- É mesmo?Graziano – Sim, é algo fundamental e que não havia na superfície54.

Seu relato aportava imagens reveladoras, evocando a “mais bela profissão do mundo”, evidenciando os valores da solidarieda-de e da camaradagem presentes no subsolo – expressos no ato de partilha do pão com companheiros desconhecidos, pertencentes a diferentes culturas. Essa descrição nos remete ao alcance da in-teriorização da “grande honra” da profissão naquele meio. Como já foi mencionado, no caso francês, houve uma construção histó-rica em torno da “mitologia do mineiro” como sendo um herói

54 Tradução livre do francês.

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do trabalho – alguém que amava seu ofício, sua mina e seu país. Esta construção, como dito, foi tecida particularmente durante e após a Segunda Guerra Mundial, quando os mineiros – sobretu-do os europeus, mas também os brasileiros – foram convocados pelos governos para demonstrar seu patriotismo engajando-se no esforço de aumento da produção de carvão55.

Em Creutzwald, o fechamento da última mina, em 2004, deixou uma categoria de congés charbonniers, homens que conti-nuam a receber 80% do salário para ficar em casa à disposição da empresa, até a idade da aposentadoria. Essa condição resultou de um pacto negociado em 1994 entre a Charbonnages de France e os sindicatos CFDT, CFTC e FO (com a oposição da CGT)56. Pude perceber que se o pacto protegeu os últimos mineiros do desemprego, engendrou efeitos negativos sobre sua dignidade. Como estão proibidos de ter outro emprego, eles se ressentem da quebra da rotina de trabalho e da ociosidade, que estaria ge-rando um aumento de depressões, de alcoolismo, de divórcios e até de suicídios, segundo os relatos que ouvi. A permanência dos homens na vida doméstica intensificaria também os conflitos conjugais. Uma parte dos ex-mineiros buscava trabalho de forma clandestina em países como a Bélgica e a Alemanha. As reconver-sões individuais tomavam formas distintas, mas essas mudanças, quando existiam, pareciam sempre operar por relação ao vivido na mina.

Entre a maior parte dos trabalhadores que entrevistei havia a expressão de um sentimento de desonra desde o fechamento da

55 Ver Cioccari (2010), especialmente capítulos 1 e 2.56 São três medidas: a pré-aposentadoria para aqueles trabalhadores a partir

dos 55 anos; a licença mineira para aqueles em final de carreira – congé charbonnier en fin de carrière (CCFC) –, a quem tinha entre 40 e 50 anos na época do fechamento da mina; e a dispensa prévia da atividade – dispen-se préalable d’activité (DPA) – que se dirige aos mais jovens. Desde 31 de dezembro de 2007, a Charbonnages de France foi extinta. A administração salarial é feita pela Agência Nacional de Gestão dos Direitos dos Mineiros (ANGDM).

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última mina. Gilbert Pexoto, um dos líderes da CGT e militante do PCF pela terceira geração em sua família, ele próprio um congé charbonnier, por exemplo, expressava assim sua tristeza: “Antes, nós éramos respeitados, admirados pela sociedade; hoje somos vistos como quem recebe sem nada fazer”. Esta seria, segundo ele, uma das consequências nefastas do pacto para fechamento das minas que teve a oposição da CGT. Em seu relato, Gilbert manifestava este sentimento de uma heroicidade frustrada ou, em outras palavras, de uma honra ferida da profissão. No caso de La Houve, o que aumentou o sentimento de luto foi o desapareci-mento físico da mina, com a demolição dos prédios, das torres, das instalações e de todos os símbolos exteriores da exploração carbonífera, apesar dos protestos e das campanhas pela manuten-ção desses signos de memória coletiva. Morador em frente à área da antiga mina, Gilbert documentou com fotografias e filmagens, dia após dia, todos os momentos da implosão das instalações. Pareceu-lhe que o chevalement – a torre que sustentava os cabos do elevador de descida ao poço e que, comumente, se destaca na paisagem como o principal símbolo do mundo mineiro – “resis-tiu” à sua derrubada, sendo necessário o uso de dinamite num dos seus três pontos de apoio. “Parecia que não queria cair, como nós”, ele me dizia, enquanto mostrava as imagens que havia feito.

Atualmente, tanto em Creutzwald como em Minas do Leão, à medida que se esvai o reconhecimento à “grande honra”, os trabalhadores buscam refazer o cotidiano por meio de modalida-des da “pequena honra”, com a atuação em associações culturais, religiosas e esportivas, que ocupam um pouco do vazio deixado pela mina. Deve-se observar que iniciativas forjadas como proje-tos complementares, tais como os clubes de futebol vinculados às minas, mantiveram-se mesmo após o desaparecimento da produ-ção industrial.

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considerações finais

Nesse artigo, procurei explorar aspectos da condução do tra-balho de campo em duas comunidades de mineiros de carvão, no Brasil e na França, esmiuçando as condições em que essas in-vestigações foram conduzidas, nas quais se revelam as observações recíprocas entre pesquisadora e nativos, geradoras, por vezes, de constrangimentos, mas também de conhecimentos. Num segun-do momento, procurei evidenciar como certos trajetos etnográ-ficos em contextos diferentes, realizados sob condições diversas e com distintas durações, podem ser complementares no sentido de iluminar e complexificar os resultados de uma pesquisa antro-pológica. Debruçada sobre a questão da honra profissional dos mineiros, a partir dos dados obtidos nos dois contextos, pude alargar minha hipótese original – em torno da heroicidade minei-ra – para duas dimensões, ambas envolvendo a multiplicidade, da “grande honra”, composta de imagens e representações que atravessam diferentes culturas, e da miríade de práticas cotidianas representada pela “pequena honra”, com suas especificidades em cada contexto57.

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57 Outros aspectos dessas formas de honra foram exploradas em Cioccari (2010).

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“Aliás, a sociedade civil na realidade não existe...”: o lugar e os sentidos das categorias em contextos “periféricos”

Héctor Guerra

introdução

Em uma de minhas primeiras participações no circuito institucional de reuniões anuais em ciências sociais aqui no Brasil, durante uma das mesas de meu grupo de trabalho sobre migração internacional, ao discutir o problema dos refugiados, senti um grande mal-estar ao perceber a naturalidade com que muito dos debatedores usavam a categoria “refugiado” e, sobretudo, a forma como – talvez com um desejo de atuar de maneira politicamente correta – as categorias de raça e gênero eram explicitamente usa-das de maneira forçada em algumas das investigações apresenta-das por jovens pesquisadores, como se a aplicação dessas catego-rias pudesse explicar melhor a situação vivencial dos sujeitos em questão. Lembrei nesse momento da proposta de Lévi-Strauss de pensar a categoria “identidade” como uma noção que existe só em nível teórico e não corresponderia ao campo da experiência, isto é, serviria como elemento classificatório, mas não explicativo (Lévi-Strauss, 1981: 368-369). E se precisamente essas categorias de raça e gênero, abstraídas para dar coerência ao nosso discurso científico-social e, sobretudo, aos nossos esforços nas últimas dé-cadas por desnaturalizá-las, fossem as maiores responsáveis pelas diversas formas de exclusão e discriminação conhecidas até hoje?

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Pode parecer exagerado, mas penso que há algo de verdadeiro por trás disto.

Levando em conta o aumento significativo do número de pessoas deslocadas em todo o mundo (42 milhões de pessoas), das quais apenas 25 milhões são reconhecidas e assistidas como refugiados, em procura de asilo e deslocados internos pela AC-NUR58 – único órgão internacional responsável por sua assistên-cia –, parece necessário tomar certo cuidado ao falar do tema ou assumi-lo como objeto de estudo, precisamente porque a cate-goria “refugiado”, tratada da maneira como ocorreu nessa mesa de trabalho, não se diferenciava muito das categorias usadas pela própria organização e, portanto, parecia conter as mesmas carac-terísticas de abstração classificatória que Lévi-Strauss conferiu ao conceito de identidade59 ou, quando menos, estaria sendo usada de maneira muito simplificada. De alguma maneira eu parecia estar me deparando com um tipo de alegoria da sentença ma-nifestada por Gabriel Tarde (1902) em relação a uma certa ten-dência reducionista na ciência econômica, caracterizada por ter confundido a medida medida (economy) com a medida mensurá-vel (economics): “ao se tornar mais ‘simples’ a medida, o ‘estado social’ tornou-se reflexivamente mais fácil de identificar” (Latour, 2009: 30).

Talvez este mal-estar provocado pela maneira “academicista” de entender e trabalhar com categorias fosse também produto de

58 Folheto informativo da ACNUR: “2008 Global Trends: Refugees, Asylum-seekers, Returnees, Internally Displaced and Stateless Persons”, junho de 2009, acessado on-line: http://www.unhcr.org/4a375c426.html

59 Historicamente a categoria de refugiado foi definida pela ONU em 1951, na tentativa de dar conta dos milhões de deslocados europeus como produ-to da Segunda Guerra Mundial. Durante a Guerra Fria e depois da queda do Muro de Berlim, a questão mudou significativamente. A quase totali-dade dos deslocados mundialmente na atualidade provém de regiões da África, Ásia e América Latina, ou seja, das antigas colônias europeias. Este fato nos obriga a refletir de maneira mais crítica, principalmente porque esta categoria continua sendo a mesma de 1951.

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um ceticismo e desconfiança em relação a esta forma de enqua-dramento um tanto ambivalente que mistura o defendido “rigor” científico com a repetição formatada e muitas vezes acrítica do próprio discurso acadêmico em relação a um fenômeno especí-fico – desconfiança desenvolvida durante meus anos de trabalho com imigrantes e refugiados na Alemanha, sobretudo porque a partir desta experiência pude comprovar a complexidade e o ca-ráter discursivo e negociador dos processos de adscrição a uma identidade determinada, mas sobretudo a maneira pragmática como estes sujeitos faziam uso dessas categorias “obrigatórias” no interior deste “estado social”, as quais, por sua vez, estavam deter-minadas, antes de tudo, pelo objetivo que cada grupo estabelecia como estratégia de articulação na luta pelas suas reivindicações. Lembrei da conversa que tive com alguns ativistas da organização dos “sem papéis” na Alemanha, os quais ironizavam sua própria situação, pois uma vez que carregavam o rótulo de refugiados, deviam representá-lo o tempo todo, e eles nem sabiam como era ou devia ser um refugiado, nem como deviam atuar para ser re-conhecidos como tais. Eles só sabiam o que eram antes de trans-formarem-se em refugiados e gostariam de algum dia voltar a ser eles mesmos.

O argumento que acompanhou este mal-estar, se procurou dar uma atenção diferenciada às diversas tendências no interior do debate na mesa em questão, concentrou-se principalmente em compreender qual(is) era(m) o(s) regime(s) de verdade(s) que governava(m) a discussão e se os sujeitos adscritos à categoria de “refugiados” tinham alguma possibilidade real de libertar-se dessas camisas de força analíticas em direção às quais os cientis-tas sociais, em nosso afã de codificar os fenômenos para dar-lhes uma coerência explicativa, os empurrávamos. Sobretudo porque, paralela e independentemente à complexidade construída pelos mesmos cientistas sociais em torno da relação entre o condiciona-mento estatutário e a autopercepção dos próprios sujeitos, muitas vezes a falta de senso crítico frente a esta construção é produto precisamente da maneira como o conhecimento é (re)produzido

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e, portanto, deveríamos prestar maior atenção à maneira como esta circulação funciona e a suas relações muitas vezes assimétri-cas (ver Mignolo, 2001:21).

o lugar da reflexão

Penso que uma das causas desse tipo de situação é o modo como dentro de nosso espaço/enquadramento acadêmico assu-mimos categorias numa prática um tanto fetichista, porém, sem a necessária reflexão sobre o tipo de relação que esta suscita e, principalmente, em relação ao lugar de onde é enunciada. Nesse sentido, parece-me de muita utilidade recorrer ao debate pós--colonial latinoamericano60 atual e, sobretudo, às questões que dizem respeito à geopolítica do conhecimento, discutida por di-versos autores, em especial por Mignolo (2005). Por questões de espaço, não será possível aprofundar o debate, porém, conside-ro importante deixar colocadas as bases deste pensamento, pois acompanham, e por vezes sustentam, as reflexões deste texto. Se-gundo Mignolo, o termo pós-colonial seria uma expressão ambí-gua, perigosa e confusa, para dizer o mínimo. Ambígua, porque abrange e homogeneiza diversas histórias coloniais e processos de descolonização, localizados em diversos espaços e tempos. Peri-gosa, porque esconde a potencialidade discursiva de constituir-se como uma oposição à hierarquia estabelecida na circulação e dis-tribuição de conhecimento. Mas confusa, também, porque cria a ideia de excepcionalidade, sobretudo porque com categorias como “hibridização”, “mestiçagem”, entre tantas outras, sugere--se a ideia de descontinuidade entre a configuração colonial do objeto de estudo e a posição pós-colonial do lugar da teoria.

Daí a importância de reconhecer o lugar de enunciação dessas categorias. Principalmente porque a matriz do pensamento euro-

60 Digo latinoamericano exclusivamente porque os autores referidos assu-mem esse lugar de enunciação para elaborar sua crítica.

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peu ocidental é de origem colonial e esta origem está fundada basicamente na diferença racial como elemento hierarquizador. Com os processos de descolonização, esta matriz foi substituída pelo que se conhece como “retórica da modernidade”, retórica racional que está implícita em todas as categorias que fundaram a ideia de progresso humano através do projeto ocidental da mo-dernidade (Mignolo, 2001:23).

A epistemologia moderna, portanto, seria produto de proces-sos históricos constitutivos que vão desde o Renascimento à ex-pansão do cristianismo, junto com o capitalismo e a emergência do circuito comercial do Atlântico. “O conhecimento produzido nas colônias ou nas áreas reguladas pelos desenhos imperiais, se era interessante o era como objeto de estudo que permitia com-preender formas locais de vida, mas que não considerava como parte do saber universal, produzido pela humanidade” (Migno-lo, 1996:4, grifos do autor). Essa geopolítica do conhecimento é substantiva para entender o que alguns autores chamam de colo-nialidade do poder (Quijano, 2000), sustentada por um consen-so silencioso (Nigh Há, 2004) – muitas vezes escondido no inte-rior das práticas e mecanismos de reprodução do próprio conhe-cimento científico –, o qual, voluntária ou involuntariamente, cria e reproduz cânones e padrões de comportamento oriundos de uma tradição iluminista que, na grande maioria das vezes, é entendida como democrática, mas que no entanto é portadora de características marcadas pelo etnocentrismo, de fabricação euro-peia, e constituída sobre a base de uma lógica colonial, por vezes messiânica, sobretudo se considerarmos seu aspecto doutrinador.

Para o caso em questão, interessa-me refletir a partir de uma pressuposta condição “subalterna” – na medida em que somos pesquisadores localizados em lugares “periféricos” em relação àqueles considerados centrais na produção do conhecimento, de onde ousamos estender nosso horizonte de análise para além das regiões em que estamos situados, mas que são também con-sideradas periféricas: mais especificamente, como pesquisador autoadscrito à América Latina (Chile, Brasil) estudando Áfri-

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ca Austral (Moçambique), duas regiões localizadas “fora” dos centros de produção de conhecimento e, portanto, entendidas dentro dessa lógica como receptoras e reprodutoras desse co-nhecimento. O propósito com isso é evitar descontextualizar a abordagem que pretendo em torno da situação atual de Mo-çambique61, a qual é muitas vezes apresentada como sendo o resultado de um conglomerado de eventos excepcionais e per-passada por uma continuidade caracterizada pela justaposição (Appiah, 1997) de dois Estados ideológica e diametralmente opostos: o domínio colonial português e, após a luta de liber-tação, o período pós-colonial de viés socialista. Ao contrário, a proposta é apresentar Moçambique atravessado por dois proje-tos semelhantes em relação às políticas e às categorias utilizadas nos diversos momentos de sua história, bem como os efeitos disso sobre as subjetividades dos diferentes grupos inseridos no interior das fronteiras, precisamente porque são estas as conti-nuidades que desvendam a relação histórica entre a lógica colo-nial e a retórica da modernidade mencionadas acima.

Assim, pretende-se evitar ser seduzido por categorias de viés desenvolvimentista, através das quais se supõe um percurso li-near e evolutivo entre os diferentes momentos vividos por esta jovem república. Este suposto não conseguiu até hoje dar conta da complexidade dos universos relacionais, assim como do agen-ciamento, das dinâmicas e práticas dos diversos grupos humanos locais, em especial dos antigos trabalhadores na extinta RDA62, preocupação principal deste trabalho, para além de um Estado

61 Em rigor, para evitar abstrações desnecessárias, talvez seja aconselhável pre-cisar que o espaço específico de estudo é a região sul do país, principalmen-te sua capital, Maputo.

62 Grupo conhecido hoje em Moçambique como “Magermane”. A história e desempenho deste grupo nos últimos vinte anos é objeto de minha tese de doutoramento sob o título Ma(d)germane: Passado colonial e presente dias-porizado. Reconstrução etnográfica de um dos últimos vestígios do socialismo colonial europeu, realizada no Programa de Pós-Graduação em Antropolo-gia Social da Unicamp e financiada pela Fapesp.

entendido como “em construção” e, portanto, como processo es-truturante dessas dinâmicas e relações de poder no atual contexto moçambicano.

Um exemplo que poderia explicitar melhor o que se pretende dizer aqui está relacionado às muitas categorias que hoje consti-tuem não só nosso vocabulário acadêmico cotidiano, mas que foram inseridas no acervo institucional das muitas organizações de cooperação e, sobretudo, das fundações internacionais que de certa forma “controlam” o circuito de produção de conhecimen-to ao condicionar o alocamento de recursos aos fins e propósitos das suas agendas. De todas as categorias, o caso mais exemplar e controverso é aquele que faz referência à produção da diferença. Estamos diante de um fenômeno que tende a transformar o de-bate sobre a diferença em um fetiche academicista da pluralidade, o qual vai se constituindo cada vez mais em um princípio norma-tivo para a própria produção acadêmica.

O maior perigo dessa tendência culturalista é, ainda, quando observamos como identidade e cultura concatenam-se num cir-cuito que parece ser providenciado ou sustentado por um prin-cípio de relativismo filosófico, o qual supõe a não existência de critérios gerais para julgar princípios e práticas culturais (Kuper, 2001: 262). Portanto, a ideia ou imposição de uma cultura uni-versal constrangeria o desenvolvimento das identidades particula-res existentes nas sociedades “multiculturais”. Na minha opinião, essa defesa da diferença contra um projeto universalista (do qual pessoalmente não sou partidário) estaria aos poucos construindo novas entidades essencializadas63, precisamente porque o lugar de

63 Terence Turner adverte que o multiculturalismo, a partir de uma perspec-tiva antropológica, está repleto de perigos tanto do ponto de vista teórico como prático: corre o risco de definir a cultura como propriedade de um grupo étnico ou de uma raça; corre o risco de reificar as culturas como enti-dades separadas por insistir muito na homogeneidade interna das mesmas, em termos que potencialmente legitimam as demandas repressivas para se alcançar uma conformidade cultural (Turner, 1993: 411-412).

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produção dessas categorias continua sendo o mesmo: um lugar colonizado pelo “ocidente”.

Se levássemos a reflexão colocada anteriormente especifica-mente para o contexto moçambicano, este deixaria entrever a po-laridade dos discursos a respeito da mesma história, as contradi-ções entre as categorias discutidas, a diversidade na percepção da própria realidade e, por último, o caráter implicitamente confli-tuoso da construção de uma história e cultura oficial consensual. Entende-se que esta última é defendida por uma elite que luta por sua inclusão no “clube dos modernos” e, por isso, a produção acadêmica dos seus intelectuais está aos poucos sendo condicio-nada a assumir categorias de análise que dizem menos a respeito da própria diversidade social e cultural no país do que reprodu-zem categorias aceitas nas diversas políticas desenvolvimentistas propostas pelas agências doadoras e aceitas nos circuitos de pro-dução acadêmica alhures, em algum lugar indeterminado pela globalização desterritorializadora que vivemos.

Pensar cultura e diferença nessa realidade social obriga-nos, portanto, a não esquecer sua dimensão política, ou, dito de ma-neira mais diáfana, obriga-nos a levar em consideração o contro-vertido problema do poder e da dominação, pois da perspectiva da elite governante, a política de modernização e sua retórica modernizante (ainda que antes houvesse estado na base de uma ideologia potencialmente emancipatória) é agora indicadora de diferença social (Sumich, 2008:321). O perigo basear-se-ia no fato de que, ao mesmo tempo, constatamos que esta sociedade continua num processo ainda conflituoso de constituir-se como um corpo social coerente sob a ideia de nação, sendo atravessa-da por uma série de clivagens e assimetrias ainda sem solução. Trata-se de uma “moçambicanidade” imposta por uma elite que se constrói passando por cima de muitas alteridades, todas elas construídas historicamente e atuantes no espaço.

Considero importante essa reflexão introdutória, pois assim como o “mal-estar” provocado no encontro temático mencio-nado no início, em torno do uso das categorias sobre os ainda

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hoje chamados refugiados, também somos confrontados com situações em nossos campos de pesquisa in loco; porém, dessa vez o questionamento viria dos próprios sujeitos “estudados”. O presente texto pretende, a partir do relato de alguns momentos das minhas estadias em campo, discutir de que maneira muitas vezes somos surpreendidos em nosso próprio convencimento te-órico. Tentaremos ver como esta normatividade academicista vê--se confrontada com as dinâmicas, práticas e discursos de nossos interlocutores, dinâmicas estas que falam mais da maneira como localmente as “novas” situações são entendidas e confrontadas, contestando nossa própria prática como pesquisadores, em rela-ção à maneira classificatória como usamos as categorias e concei-tos que nos acompanham na hora de descrever ou “desvendar” um fenômeno social com base em nossa experiência em campo.

moçambique: os objetos e sujeitos do desenvolvimento

Sobre a existência de um senso comum no sul de Moçam-bique hoje, mesmo que ainda prematuro e provocador, pode-ríamos afirmar que em muitos casos “ser moderno” está asso-ciado à posse de bens materiais e de consumo, o que remete inevitavelmente à posse de dinheiro. De um modo geral esta constatação inicial não é nova; no entanto, para o caso em ques-tão, levando-se em conta que o contexto em pauta se refere so-bretudo à capital do país, torna-se indispensável um confronto mais aguçado e propositivo em relação à questão da posse e do consumo. Maputo seria o espaço a partir do qual formulo a ideia deste “senso comum”, pois, ao invés do que se poderia pensar, a cidade de Maputo representa atualmente – de maneira contraditória e muitas vezes conflituosa – o eixo de referência da modernidade moçambicana. Contraditória, porque histori-camente esta cidade esteve mais conectada ao mundo exterior (África do Sul, Portugal, Inglaterra, etc.) do que em relação aos diversos universos socioculturais no interior de suas fronteiras. Conflituosa justamente porque, concomitantemente, também

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como produto do processo histórico dos últimos trinta anos, conteria de maneira assimétrica dentro de seu espaço urbano, suburbano e periférico muitas Maputos, tanto no que se refere às relações dos diferentes grupos inter-regionais e étnicos, como socioeconômicos. Todos estes sujeitos e grupos fariam valer si-multaneamente suas alteridades e semelhanças, de maneira ne-gociadora, especialmente quando se procura o objeto-chave do bem-estar moderno: o dinheiro.

Atualmente, Moçambique é apresentado como um dos pa-íses mais pobres do planeta e, como tal, as agências de coo-peração e financeiras internacionais injetam uma quantidade imensa de dinheiro em “projetos de desenvolvimento”. No en-tanto, não se injeta apenas capital em Moçambique; também vem sendo implementada, desde 1987, uma série de projetos de reativação econômica de forte caráter neoliberal, coincidindo desta maneira com a política do partido governante, que tem como foco “modernizar o país a todo custo”. O certo é que to-das essas medidas não estão produzindo os efeitos esperados, e o que se torna visível até agora é um processo de hierarquização social extrema junto a processos de integração de viés clien-telista acrescidos de muita corrupção64. É nesse contexto que devemos localizar o trabalho dos chamados Magermane, pois acredito que representam muito mais que um grupo social rei-vindicativo contestatório: eles são de alguma maneira o espelho social do processo de modernização começado imediatamente após a independência de Portugal.

Considerando que este país sofreu transformações cujas re-percussões alcançaram inúmeras subjetividades – os enviados aos campos de reeducação, deslocados forçosamente para longe de suas unidades comunitárias; desintegração familiar como produ-to da guerra prolongada; etc. –, em um período relativamente

64 Para uma visão geral e atualizada desta situação recomenda-se o livro de Joseph Hanlon e Teresa Smart, Há mais Bicicletas – mas há Desenvolvimento?, cap. I.

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curto – luta de libertação; enquadramento socialista; guerra civil; enquadramento capitalista – e, paralelamente, constatando que os processos de inserção social, reparação econômica e reconheci-mento social, propostos como possíveis soluções para a extensão de uma “democracia sustentável e participativa”, não tiveram e ainda não têm o “desempenho esperado” pelas organizações in-ternacionais65, e em muitos casos estes processos de inserção nem sequer foram implementados, a única marca perceptível de todas estas políticas, na quase maioria dos casos, talvez seja o desen-volvimento de uma elite extremamente excludente em torno do partido governante66.

A partir dessa reflexão talvez seja possível pensar a impor-tância da existência de um grupo social como os Magermane, que desde seu retorno a Moçambique (em 1990) persiste em seu movimento reivindicativo, chegando inclusive a atuar de maneira violenta e provocadora contra as estruturas de poder. É precisa-mente a interação com este grupo que usarei como exemplo para questionar o quão válidas podem ser as noções de cidadania, so-ciedade civil, reparação, entre outras. Todas estas noções são par-te não apenas do nosso acervo analítico, mas também foram in-corporadas ao discurso oficial do governo e das organizações não governamentais, assim como financeiras internacionais. A ques-tão aqui é perguntar que tipo de posição estaríamos assumindo

65 Segundo cifras do ODAmoz de 2007, organização patrocinada pela ONU, o total de dinheiro injetado como ajuda ao desenvolvimento de Moçam-bique foi de US$ 1.269.338.416,00, com uma projeção para aumentar as doações em US$ 6.323.605.079,00 em 2010. Disponível em: http://www.odamoz.org.mz/ptreports/annual_totals.asp. Último acesso em 16/09/2010.

66 Em março de 2010 o grupo dos doadores internacionais (G-19) anunciou uma greve e o congelamento integral de todas as doações em dinheiro para a receita nacional do país. Os argumentos, entre outros, são a falta de transparência entre a separação de Estado e partido e, curiosamente, a atitude arrogante dos representantes moçambicanos nas negociações. Para ver o texto integral, acessar: http://www.kas.de/mosambik/de/publica-tions/19216/. Último acesso em 16/09/2010.

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ao usar essas categorias para explicar o processo de modernização econômico e político em andamento nesse contexto específico.

A importância de colocar os Magermane como ponto de re-ferência para esta reflexão não se sustenta na suposta excepciona-lidade do agenciamento dos Magermane, mas sim em uma ten-tativa de inseri-los historicamente no emaranhado de conflitos anteriores, levando em conta que são os únicos que visivelmente exigem seus direitos. A análise a partir dessa reflexão permitiria pensar na possibilidade de sugerir que as formas reivindicativas desse grupo social são de uma nova ordem para o contexto espe-cífico moçambicano. Para esclarecer melhor este ponto, podemos referir-nos aos dez anos de guerra de libertação nacional contra o império português, liderada pela Frelimo, e também aos quase 16 anos de guerra civil pós-independência. Poderíamos pensar inge-nuamente que em Moçambique, historicamente, a única manei-ra de resolver os conflitos seria pela via da violência67, e, portan-to, da mesma maneira, os Magermane poderiam haver “pego em armas” para resolver seu conflito. Optaram, no entanto, pelo que chamam de “desobediência civil”, que consiste em manifestar pú-blica e abertamente seu descontentamento frente às estruturas de poder. Através de marchas nas ruas e de ações não violentas, sem a presença de armas – mas nem por isso mais pacíficas –, os Magermane seguiram exigindo seus direitos violados.

Se durante a guerra de libertação quem liderava a luta era uma frente fortemente ideologizada, durante a guerra civil era um “corpo social guerreiro” (Geffray, 1991) que confrontava a Frelimo militarmente, produzindo como consequência mais de um milhão e meio de mortos e sete milhões de deslocados em todo o país. Hoje, para ser mais exato, durante os últimos vinte anos, é este grupo social com características de movimento or-

67 Na atualidade, existem inúmeros casos de mortes de indivíduos, homens e mulheres, acusados de feitiçaria, assim como incontáveis são os casos de mortes provocadas por linchamentos públicos em diversas cidades de Moçambique.

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ganizado ou, como eles mesmos se intitulam, “movimento socio profissional reivindicativo”, que se constitui como oposição real ao poderio quase incontestável do partido governante. Exemplo disso é que não só partidos políticos, como a própria Renamo (Resistência Nacional de Moçambique), assim como a Unamo (União Nacional de Moçambique), mas também na atualidade o novo Movimento Democrático de Moçambique, procuram alianças com os Magermane para constituir seus quadros dinami-zadores68; além disso, desde 2008 os trabalhadores dos Caminhos de Ferro de Moçambique começaram a sair às ruas às quintas--feiras, da mesma maneira como os Magermane às quartas, sob orientação e assessoria dos próprios Magermane. Ainda nesta perspectiva, a organização dos desmobilizados de guerra tentou uma aliança e assessoria junto aos Magermane, de tal modo que o governo teve que intervir repressivamente para evitar esta união, ocupando o Jardim 28 de Maio69 no dia 29 de janeiro de 2009, ocasião em que teria lugar o encontro entre as lideranças de am-bos os grupos.

De modo geral, poderíamos pensar que as práticas e agen-ciamentos dos Magermane não só representam uma tentativa de diálogo social, conflituoso ou não, mas também que, sobretudo, propõem uma reflexão em torno das formas de diálogo possíveis em Moçambique. A constante referência a sua relação com o Es-tado na Alemanha, além de acarretar um elemento diferenciado com implicações fortemente identitárias, remete-nos também à ideia de temporalidade, pois aparentemente o fato de assumir-se como “Magermane” e, em termos de representatividade, como

68 Arnaldo Mendes, vice-presidente da associação, com a qual trabalhei du-rante todo este tempo, disse-me em entrevista que o movimento está bus-cando Magermane para entrar nos municípios, pois a população necessita de líderes, hoje mais do que nunca, e os Magermane, pela sua experiência de luta, seriam os quadros idôneos para este trabalho.

69 Para uma descrição detalhada do Jardim 28 de Maio, atual base central dos Magermane, vide também Guerra (2008a).

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“antigos trabalhadores da RDA”, ambas expressões exaltando de maneira inequívoca sua passagem pela Alemanha, propõe nova-mente uma relação com uma certa ideia de modernidade dife-rente da defendida pelo discurso da elite no poder hoje. O mes-mo vale para o fato de eles se intitularem “antigos trabalhadores” numa realidade de desemprego contínuo, ressaltando a função dignificadora que teve o trabalho na sua formação quando da sua estadia na Alemanha. Aqui vale a pena entender quais são as versões de modernidade e as referências espaço-temporais Nesse conflito, levando em conta que ambas as partes, em um dado momento da história, compartilharam e estabeleceram um tipo de relação de lealdade mútua, mesmo que hierárquica, ao aceita-rem ir para a Alemanha, enviados pelo governo para se “transfor-marem”, com a prática laboral e a formação técnica profissional, nos “homens novos” dos quais o processo modernizador, naquele momento, necessitava.

No entanto, voltando ao pressuposto de que em todo pro-cesso de construção nacional o papel das elites é fundamental, para o caso de Moçambique a noção vanguardista do seu papel na transformação social é compartilhada de maneira antagônica pelos Magermane. Ambos os grupos são atravessados, ao mes-mo tempo, por uma realidade monetarizada que acentuaria as divergências, sobretudo no que diz respeito à posse do dinhei-ro. Nesse contexto, acredito ser possível pensar na existência de uma constante relação entre compulsão e modernidade, tanto pela violência e exclusão que traz implícitas, quanto pela maneira como através disso são criados corpos sociais de caráter fortemen-te identitário e em muitos casos antagônico.

Aqui, a presença dos Magermane, inseridos como os mineiros do Traansval70 na lógica do sistema de produção de livre merca-do, parece-me oportuna e adequada. Diferentemente dos minei-

70 Para uma visão geral da situação dos mineiros moçambicanos em relação aos trabalhadores que foram à RDA, vide Guerra (2008b).

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ros, os primeiros foram enviados para a Alemanha no “período socialista”, e portanto as disposições apreendidas foram diversas daquelas que alcançaram os mineiros. Ambos os grupos se estabe-leceram portanto em uma estrutura de relações de poder diferen-te, ainda que submetidos a um controle rigoroso. No entanto, o que sobressai para o caso dos Magermane é a maneira manifesta e cotidiana de colocar essa “modernidade adquirida” na Alema-nha de maneira seletiva e negociadora em relação aos significados adscritos ao conflito específico do qual tento dar conta. Nesse sentido, e para cartografar a maneira como esta modernidade é manifestada no cotidiano deste grupo, recorro a alguns momen-tos significativos de meu trabalho de campo.

conflito, traição e desconfiança: os sentidos da cidadania

Diferente do que ocorreu em minha última viagem a Ma-puto, entre novembro de 2008 e março de 2009 os Magerma-ne realizaram apenas uma marcha pela cidade71 durante toda minha estadia, uma semana após as eleições autárquicas (em novembro de 2008) na qual a Frelimo, partido governante, obteve a maioria em todo o país, acabando de vez com seu oponente político mais forte, a Renamo. Diferentemente das outras marchas, esta começou mais tarde e tinha menos pes-soas que o habitual. Um aspecto importante foi a ausência das mulheres. Os cartazes eram novos e menos sofisticados, sendo na maioria dos casos feitos de papelão rasgado com a mão. Porém, os textos estavam atualizados e continham bor-dões relacionados à conjuntura eleitoral passada. O início da marcha foi abençoado por uma senhora que fez uma pregação em changana. “Esta senhora é mãe de um magerman morto e está no jardim representando a herança que ele deixou”, dis-

71 Em relação às marchas Magermane na capital Maputo como parte funda-mental de sua luta reivindicativa, vide Guerra (2008c).

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se-me Lázaro, que é natural da Zambézia e ficou seis anos na RDA, antes de começar a marchar. Contei 72 participantes (antes eram entre 100 e 200) formados agora apenas em duas filas (antes eram três). A marcha se iniciou com o bordão “a Frelimo venceu à Renamo, mas não acabou com Magermane”, em alusão aos resultados das eleições autárquicas em que a Frelimo conquistou as 43 assembleias municipais e 42 presi-dências dessas assembleias, restando apenas uma, a da Beira, conquistada por Daviz Simango como independente.

O percurso foi o mesmo que o dos anos anteriores72. Na altura da Av. 24 de julho com a Av. Tomás Nduda, onde se localiza o café “Cristal”, os Magermane começaram a gritar com manifesta raiva e agressividade em direção ao café. Des-cubro que o marido da Primeira Ministra, Luísa Diogo, está sentado com outras pessoas assistindo à marcha. Luísa Diogo é umas das muitas personalidades rotuladas pelos Magermane como responsável pela miséria do grupo. Alguns Magermane mais exaltados começam a insultar e cuspir em direção ao café. Um deles tentou pegar uma pedra do chão com o firme propósito de lançá-la, mas a ação do dispositivo de segurança dos próprios Magermane evitou que a revolta acabasse em tu-

72 Percurso da Marcha dos Antigos Trabalhadores Moçambicanos da extinta RDA pelas avenidas de Maputo. Começando no Jardim 28 de Maio no Alto Maé A, entrando na Av. Alberto Luthuli, e então seguindo pela Av. Eduardo Mondlane, logo dobrando à esquerda na Av. Almicar Cabral, até a Av. 24 de Julho no Bairro de Polana Cimento. Segue então até a Av. Már-tires da Machava, para logo continuar por dentro do bairro onde, segundo eles, moram os funcionários da Frelimo, partido governante e inimigo do movimento. Dobra-se então na Av. Paulo Samuel Kankhomba, até chegar na Av. Salvador Allende para logo subir até a Av. Mao Tse Tung e seguir em direção ao Bairro Malhangalane A, passando pela rua Olivença, a Av. Vladimir Lenine e entrando na Av. Marien Ngouabi. Logo seguem até a esquina com a Av. Alberto Luthuli e se dirigem de volta à Base Central no Jardim 28 de Maio no Bairro de Alto - Maé A, finalizando o percurso. As Marchas acontecem todas as quartas-feiras desde 1992.

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multo, acalmando alguns e reprimindo abertamente outros. Logo depois desse percalço, a marcha continuou seu habitual percurso. Ao retornar à base no Jardim, reuniram-se em tor-no do memorial de Virgílio Amade – Magerman morto pela polícia em 2003 –, realizaram a missa de encerramento e logo iniciaram uma reunião junto com os que estavam no Jardim e não tinham ido à marcha.

A reunião começou criticando a falta de assistência à mar-cha por parte de muitos Magermane. A crítica principal é feita por Chico, natural da Zambézia, que ficou na RDA por seis anos: “estar a marchar é estar a trabalhar e quem chega tarde deve ir ao encontro nos pontos conhecidos, quem não vai é pre-ferível ficar em casa, porque os que não vão à marcha ficam no Jardim a criar confusão, espalhar boatos e isso não ajuda a luta”. Quem responde a Chico é Juma, natural de Nampula, que ficou na RDA por oito anos, membro da diretoria da associação e não participou da marcha devido a uma consulta médica. No en-tanto, segundo ele, a falta de assistência à marcha se deve a um descontentamento geral em relação ao que está acontecendo na base com alguns Magermane. Há semanas que algumas pessoas estão pensando em se unir a Mahuai73 para poder receber o dinheiro e estão levando as pessoas para a casa dele. Especifica-mente, Juma fala das mulheres que estão sendo convencidas por seus maridos e por outras mulheres a assinar a lista que Mahuai

73 Alberto Mahuai, natural de Maputo, de origem ronga, ficou na RDA um ano e meio e foi o presidente do que na altura se chamava “Grupo de Pressão”. Após uma negociação com o governo, recebeu uma soma con-siderável de dinheiro, o qual teria entregue como ações para a criação da SOCREMO (banco de microfinanças, feito com capitais principalmente alemães, mas também moçambicanos) sem consultar previamente a as-sembleia. Isso provocou a raiva de muitos e seu posterior linchamento (foi espancado e apedrejado e chegaram a envolver seu pescoço com um pneu de carro com o firme propósito de queimá-lo, mas isso não ocorreu por-que outros Magermane intervieram tentando acalmar o grupo que agredia Mahuai fisicamente) e expulsão da base. A partir de então foi considerado pelos Magermane do Jardim como ladrão do governo e traidor.

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está criando para reunir mil afiliados e criar sua própria asso-ciação e, assim, desacreditar a ATMA (Associação dos Antigos Trabalhadores Moçambicanos na Alemanha).

O fato de Mahuai ter convencido alguns membros do chamado “Gruppe Fünf ”74 (especificamente Jacobi, natural de Maputo, que ficou na RDA seis anos) que, aliás, seriam membros da diretiva, “está a fazer com que muitos se sintam traídos”. Além disso, descobriu-se a presença de “um elemen-to” que está recrutando Magermane para acrescentar à lista de Mahuai e estaria recebendo dinheiro por cada Magermane recrutado. A discussão esquenta, embora a ordem das falas seja respeitada por todos, mesmo que exaltados. Outro Ma-german, Mica, natural de Maputo, que ficou na RDA um ano e meio, desculpa-se por não ter participado da marcha, mas manifesta seu desafeto com a diretoria porque não está “a reagir a estes ataques do inimigo. Existem traidores na base e a diretiva anda a tomar cerveja com eles”. Critica ainda a morosidade da direção em convocar uma assembleia geral para discutir os problemas que estão acontecendo e também os acusa de estarem escondendo alguma coisa, exigindo um claro posicionamento.

Outro Magerman que participou da marcha, Magenge, mas do qual não tenho maior referência, usando uma linguagem re-ligiosa característica, interpela seus companheiros dizendo que “esse dinheiro que estão recebendo alguns Magermane foi amas-sado pelo diabo e isso quando a justiça chegar vai fazer-lhes mui-to mal”. Critica também a diretoria por não ter convocado uma assembleia geral, argumentando tratar-se de uma crítica constru-tiva, pois defende o trabalho que a diretoria tem feito até agora. Insiste, contudo, na necessidade de se convocar esta reunião para

74 Gruppe Fünf significa grupo cinco e faz alusão a um grupo de pessoas específicas que estão na base e que para sustentar o dia a dia pedem a todas as pessoas cinco meticais. Mahuai fez parte deste grupo quando se reunia na base antes de ser expulso.

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fazer um balanço de tudo o que tem sido feito e ver assim onde as coisas não estão funcionando, observar e definir o que pode ser feito para resolver os problemas: “sabemos que não todos podem pensar, mas têm ideias, e se cada um coloca a sua é mais possível encontrar solução aos problemas, pois não é apenas a diretiva que deve agir para resolver os problemas na base, somos todos, e quem está a trair o nosso grupo terá que ser julgado no seu momento, mas isso não depende só da diretiva, isso depende de todos os associados à ATMA”.

Novamente, é Juma que responde e insiste que as mulheres estão fazendo uma lista para ir à casa de Mahuai “por pressão de pessoas que não são Magermane e também mulheres de Mager-mane mortos estão a criar confusão porque querem o dinheiro que corresponde aos seus maridos e não estão a pensar na as-sociação”. Além disso, existiriam “elementos” que, para além de assinar a lista de Mahuai, colocariam os nomes de outros Mager-mane, pois receberiam mais dinheiro.

A discussão é muito tensa, os participantes muito agitados mostram manifestamente sua desconfiança uns com os outros, alguns se acusam mutuamente, até que Mendes, “Manito”, na-tural de Maputo, que ficou na RDA por dois anos e hoje é vice--presidente da associação,, apela para que se pare com a “fofoca” e se comece a atuar como grupo, pois “a diretiva está a saber dos problemas e está a ver soluções possíveis”, mas para isso o grupo deve agir como tal. Depois segue Ade, natural de Cabo Delgado, que ficou na RDA por seis anos, também membro da diretoria. Ele propõe que, para evitar problemas com as datas, a assembleia seja feita na quarta seguinte aos dias quatro e cinco de dezembro, pois haveria então um encontro nacional dos Magermane. No dia da assembleia não haveria marcha e ninguém poderia dizer que a diretoria não está a fazer nada... “sob qualquer circunstân-cia a assembleia terá lugar nesta quarta feira 10 de dezembro”. Todos os Magermane reunidos ali concordam e comemoram a convocatória com gritos.

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Depois da comemoração, o presidente da associação é ins-tado a responder questões que o atingem pessoalmente, pois ele era um dos membros da diretoria “que estava a beber cerveja com os traidores”. Zeca Cossa, natural de Maputo, que ficou na RDA oito anos, relata os acontecimentos a partir da sua perspectiva e chama o culpado para depor. Ele diz que Cachopa, outro Mager-man natural de Maputo, que ficou na RDA oito anos também, já estava bêbado quando lhe contou que tinha ido à casa de Mahuai para pegar a soma de 10 mil meticais (pouco mais de R$ 600), mas que Nesse momento estava a vender seu celular por duzentos meticais, pois queria continuar a beber. Cachopa pegou o dinhei-ro e gastou-o. Ele relata como foi que pegou o dinheiro e também como o gastou. Eu tinha conhecimento de situações anteriores em que Magermane considerados traidores e culpados eram lin-chados e espancados na via pública (como o caso de Mahuai, Júlio e Arcanjo), porém, desta vez ninguém tentou bater em Ca-chopa, todo mundo ouviu o relato dele e logo foi “liberado”. Zeca continuou explicando que Mahuai sabe muito bem que

o que nós precisamos é o dinheiro e por isso ele está a usar essa tática, pois sabe que todo o mundo aqui não vai resistir se precisa comer ou não tem como pagar dívidas. Não se pode julgar quem precisa pegar esse dinheiro, quem pode ser julgado é aquele que está a recrutar Magermane para Mahuai e a espalhar boatos; eles têm que ser punidos e é a associação inteira que deve julgar que tipo de castigo eles vão receber.

Faz também um apelo para parar com a “fofoca”, pois não ajuda o trabalho. Então, as poucas mulheres que se aproximaram da reunião contestaram as acusações dizendo que elas nunca as-sinaram a lista, mas outra pessoa teria feito uso de seus nomes.

De todos estes acontecimentos, o que mais chama a atenção é que, se é verdade que a marcha, usada como “uma arma psico-lógica na guerra contra a Frelimo” (Zeca Cossa) e com um caráter claramente marcial e exaltado, é marcada por contenção, disci-plina e por uma hierarquia incontestável (que por vezes é difícil de manter devido aos muitos anos de ressentimento acumulado,

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no caso do café “Cristal”), na reunião este caráter hierárquico e dominante da liderança é questionado de maneira explícita.

Refletindo de maneira apressada, poder-se-ia pensar que es-sas reuniões e assembleias conformam uma prática de resolução de conflito atravessada por uma série de situações prementes (ca-rência econômica, ressentimento e desconfianças mútuas, entre outras), o que contrastaria com a rigidez da marcha, onde a di-retoria se transforma em “chefia militar”. O que interessa aqui, no entanto, é salientar que sendo a marcha a face visível dos Ma-germane, não traduz a riqueza de suas reuniões e assembleias, nas quais se pode perceber que a relação entre uns e outros é diferente porque mais horizontal, embora o universo de relações esteja im-pregnado de desconfianças e traições. A população de Maputo só percebe aquilo que vê durante a marcha pelas avenidas e ruas da capital, mas não conhece (e não tem como) a dinâmica interna, não faz ideia de que, “entre eles”, o respeito mútuo se apresenta como uma maneira de exercício da cidadania.

Fala-se de inimigos e traidores quando se trata de dinheiro, e a desconfiança é tal que muitas vezes qualquer um pode se tornar alvo dos boatos se faz alguma coisa às escondidas dos outros e os outros ficam sabendo (e sempre ficam sabendo). São muitos os anos já transcorridos e muitas as “traições” vividas durante todo este tempo de luta reivindicativa. A de Mahuai é apenas mais uma. Ele sabe que pode “corromper” os Magermane oferecendo dinheiro, mas também cabe perguntar aqui se se trata mesmo de corrupção ou de opções individuais condicionadas pela necessi-dade de acesso ao dinheiro. Estamos falando de indivíduos cuja idade média é de 45 a 50 anos75. Para muitos, “aqueles elementos no Jardim” não passam de um “bando de marginais bêbados”, mas de perto é possível enxergar que toda essa bebedeira é, em

75 De acordo com cifras entregues pela UNICEF em 2008, a esperança de vida ao nascer em Moçambique é de 48 anos. Disponível em: http://www.unicef.org/spanish/infobycountry/mozambique_statistics.html Acessado em 16/09/2010

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muitos casos, frustração e dependência a uma condição forçada, talvez um novo tipo de enquadramento: o marginal.

Outro momento significativo aconteceu quando a polícia, fortemente armada, ocupou o Jardim 28 de Maio, lugar onde os Magermane têm instalada sua “base central”, para evitar o en-contro entre estes e o agrupamento de desmobilizados de guerra. A polícia tentou em um primeiro momento despejar o jardim, mas se deparou com a resistência férrea dos Magermane ali con-gregados, alguns dispostos a qualquer coisa para não sair do lugar que, segundo eles, lhes pertence. Cabe destacar que a situação era tensa e delicada, pois os policiais estavam armados com armas de guerra de alto calibre (AK 47, entre outras). Qualquer agressão desmedida de qualquer parte poderia desembocar em uma tragé-dia, como já havia acontecido anos atrás (em 2003) com a morte de Virgílio Amade.

O presidente da associação, Zeca Cossa, exigiu falar com o responsável pela operação para saber o porquê da ocupação ar-mada. Ao se apresentar diante dele um oficial que parecia estar no comando da tropa, Zeca disse-lhe em tom quase depreciativo: “não é com o senhor com quem quero falar, quero falar com o responsável que está sentado no seu escritório lá, dirigindo a ope-ração”. O oficial, um tanto surpreendido por estas palavras, pegou seu celular e fez uma ligação; depois passou o celular a Zeca, que imediatamente começou a exigir do seu interlocutor, que estava do outro lado da linha, que enviasse seus homens ao quartel, que é onde eles deviam estar, para assim evitar um conflito que poderia acabar tragicamente. Aparentemente, a pessoa do outro lado da linha se recusou a aceitar o pedido de Zeca, o que provocou uma discussão de alguns minutos entre eles. O resultado foi que parte da tropa saiu dos arredores da base central, ocupando o resto do jardim. Este fato foi celebrado como uma vitória pela massa de Magermane reunida até esse momento.

Este ambiente de vitória estimulou a conversação entre eles e al-guns começaram a relatar outros momentos “heróicos” na sua luta

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reivindicativa dos últimos vinte anos76. O evento mais celebrado foi a ocupação da embaixada alemã em julho de 2004, quando se come-moraram as ações individuais e coletivas daquele episódio glorioso, ressaltando a coragem e a inteligência de todos os participantes nessa ocupação. Repentinamente, um dos Magermane que estava no grupo perguntou: “se tudo ia tão bem, por que foi a liga (liga de direitos humanos de Moçambique) e outros os que negociaram a saída da embaixada e não nós?” Depois de um curto silêncio, Zeca responde: “olha, eles são da sociedade civil, não como nós, que somos um grupo sócioprofissional reivindicativo. O governo tem medo de nós, e para evitar qualquer situação de violência estas pessoas, que também têm medo, eram as que deviam negociar e não nós”.

Esta resposta me deixou um tanto perplexo. Lembrei que mui-tos dos Magermane acompanharam as manifestações de segunda--feira em Leipzig e Dresden antes da queda do muro. Lembrei, ao mesmo tempo, de como na imprensa se usava de maneira infla-cionária o conceito de “sociedade civil” para definir o sujeito que

76 Deve-se ressaltar o fato de que desde seu retorno a Moçambique, mais especifi-camente a partir de 1992, ano em que se assinou o tratado de paz que acabaria com uma guerra fratricida de proporções devastadoras, sua visibilidade como grupo social, com reivindicações concretas frente ao Estado, esteve marcada por um discurso e uma política estatais que acrescentavam uma imagem de nega-tividade, transformando estes trabalhadores na nêmesis do desenvolvimento, isto é, como as figuras de que Moçambique não necessitava para sair da cri-se econômica e social na qual se encontrava, estigmatizando suas ações, como se se tratasse de indivíduos marginais propagando violência e desconfiança na sociedade. O grau de desinformação existente em Moçambique e o pouco de-senvolvimento de uma esfera pública contribuíram para manter estes trabalha-dores durante muitos anos excluídos do debate público. No entanto, foram suas audazes ações, como a ocupação da assembleia da República, e também sua presença (apesar da proibição) nas comemorações do 1° de maio de 2002, onde não economizaram esforços para insultar o próprio presidente da Repú-blica, acusando-o de ladrão e corrupto, que foram criando as condições para negociar suas reivindicações e com isso sair do silenciamento, transformando-se em sujeitos potenciais de direito ao exigir uma solução para seus problemas no Parlamento.

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se manifestava pelo fim da RDA77. Passaram-se quase vinte anos e muitas políticas governamentais, assim como não governamentais e também organizações de cooperação financeira internacionais, incorporaram nos seus documentos a necessidade de dialogar com a sociedade civil no que diz respeito às políticas de integração e participação da cidadania. O certo é que nenhuma delas, até o dia de hoje, delimitou o que é ou não é sociedade civil. Daí minha perplexidade, pois Zeca me entrega uma definição que enuncia su-jeitos específicos e o grau de relação que os leva a interagir. Maior é minha surpresa quando vejo que o Magerman que questionou a atividade se conforma com a explicação de Zeca, assim como os outros corroboram o que foi dito por ele. “O governo tem medo de nós”. A sociedade civil também é medrosa? Com que ferramentas analisamos esta posição, se já Gellner (1996), em seu livro Condi-ções da liberdade, ao se opor ao domínio da coerção e à superstição como garantia da ordem social, pressupunha no voluntarismo e na falta de medo o nascimento da sociedade civil como um milagre do mundo moderno78?

77 Não devemos esquecer que naquele momento esse conceito de sociedade civil atuou como uma espécie de coringa conceitual para descrever de maneira indiferenciada a heterogeneidade de uma enorme massa de pessoas exigindo o final da dominação do partido único. Sociedade civil, naquele momento, era o sujeito homogêneo e transformador da transição, o componente in-separável das teorias que construíam em torno de outra categoria também muito requisitada: a esfera pública. Sobre este ponto ver Ulrich Beck (1993; 1995), Anthony Giddens (1995; 1991) e Jürgen Habermas (1998), entre os mais significativos, que apostaram no aperfeiçoamento da modernidade como caminho para o progresso humano. Na antropologia podemos citar Ernest Gellner (1996), que dedica parte de sua produção intelectual à defesa da sociedade civil.

78 As condições bastante especiais que podem levar as pessoas a aceitar a or-dem social, mesmo sem medo, voluntariamente, são, na verdade, os pré--requisitos da Sociedade Civil [...] Antes do Milagre da Sociedade Civil, as sociedades humanas viviam habitualmente sob sistemas coercitivos e supersticiosos, e geralmente tomavam essa condição como ponto pacífico. Tinham razão de fazer isso: não tinham alternativa (Gellner, 1996: 34-35).

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Outro momento digno de ser colocado aqui teve lugar du-rante uma assembleia geral da associação no mesmo Jardim no dia 14 de dezembro (a mesma anunciada para o dia 10 por Ade). Devo ressaltar que nestas reuniões todos podem dar sua opinião, discordar, debater, a diretoria pode ser alvo de críticas e até pode ser destituída se a maioria acreditar que não está atuando como esperado. Sem dúvida, existem muitas diferenças entre eles. Al-guns, muitas vezes, não conseguem articular a crítica ou expor suas ideias; outros não dominam o português o suficiente para falar uma frase inteira sem usar sua língua de origem; alguns são mais exaltados do que outros. No entanto, todos permitem ver nos seus rostos a passagem do tempo e a acumulação de um res-sentimento profundo contra as esferas do poder. Nesta reunião específica, a discussão girou em torno de uma série de questões que carregavam o ambiente de maneira negativa há já algumas semanas. Um dos motivos de preocupação e declarada descon-fiança por parte dos membros da associação frente à sua diretiva era o fato de que há uma semana ocorrera um encontro nacional de Magermane, patrocinado e organizado por duas instituições alemãs (a agência de cooperação alemã GTZ e o instituto cul-tural moçambicano alemão ICMA), no qual estiveram presentes algumas mulheres da associação que não fazem parte da diretiva. Uma delas era, inclusive, acusada de estar recebendo dinheiro de um traidor (Mahuai), o que agravava a situação. A maioria exigia uma explicação detalhada não só do encontro, mas também do papel que essas mulheres cumpriram nele.

A resposta de Zeca e a majoritária e positiva recepção de parte dos associados me deixaram novamente perplexo. Zeca argumentou:

Todos sabem que é uma de nossas políticas procurar alianças inteli-gentes; bom, este encontro era importante para nós porque reunia a todas as associações de Magermane em nível nacional, era um momento importante para saber quantos somos, que força temos. O problema é que era um encontro organizado pela Alemanha e

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eles exigiam alguns critérios de participação. Como sabem também estamos procurando há muito tempo uma aliança com a Alemanha e esta era uma oportunidade importante, depois da ocupação da embaixada, as relações caíram muito. Então, não sei se os senhores sabem o que é gênero? Bom, para o encontro a Alemanha exigia que as associações incluíssem o gênero nas suas delegações ao en-contro. Gênero não é outra coisa que colocar mulheres no grupo que ia participar e isso foi o que fizemos. Queríamos dar uma boa impressão.

Suponho que se nesses momentos estivessem algumas femi-nistas presentes, o mais lógico seria que tentassem responder a tamanha simplicidade na análise de Zeca. No fundo eu também poderia ter tentado “corrigir” o “erro” semântico na sua definição, mas o certo é que não o fiz, pois os homens e mulheres presentes na reunião concordaram com o argumento de seu presidente. Nenhuma mulher questionou sua posição e, o que é mais signi-ficativo, indagando-as sobre o que tinha provocado o discurso de Zeca, nenhuma “entendeu errado” a definição; inclusive, as duas “acusadas” diretas explicaram com as mesmas palavras à assem-bleia o sentido de sua participação.

Comentei estes dois eventos aqui para tentar desenhar o entorno e o universo de relações no qual me inseri como pes-quisador. Devo salientar que se trata de um grupo organizado faz já vinte anos, cuja característica principal reside no fato de eles terem sido enviados para a RDA para, em termos formais, ser formados técnica e profissionalmente para logo assumirem, na qualidade de trabalhadores qualificados, o processo produti-vo que naquele momento fazia parte do projeto modernizador do país, recém-libertado do domínio português. São homens e mulheres que, ao retornar em 1990, não encontraram enquadra-mento laboral e foram excluídos do processo de reestruturação que se vivia ao finalizar a guerra civil que assolou o país durante 16 anos. Desde então seu apelo por justiça e reconhecimento, dirigido ao Estado, levou-lhes a encontrar uma série de situações

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com as quais tiveram que apreender a lidar. É nesse contexto que se inserem essas noções de sociedade civil e gênero. Para esse gru-po, essas duas categorias são percebidas como externas, embora necessárias para sustentar sua reivindicação.

perguntas abertas

Yussuf Adam (2006) coloca uma questão interessante de se levar em conta para o contexto moçambicano: qualquer inter-pretação passa necessariamente por adotar certa posição política. Para o caso e, sobretudo, depois de muitos meses intensos com meus interlocutores, devo concordar em certa medida com esta afirmação. Fundamentalmente porque durante todo este tempo, na minha convivência com os Magermane na base central, pude perceber como eles têm politizado quase todo seu universo in-terpretativo, condicionando de maneira impressionante qualquer possibilidade de enquadramento. Esse condicionamento parece compreensível ao observar sua exclusão dentro da ordem social na qual sua vida se desenvolve de maneira geral. Depois de todos esses anos, talvez devamos concordar minimamente com Adam; porém, a ideia de outsiders elaborada por Elias (1994) deveria ser pensada inversamente. Nesse caso, os integrados parecem repre-sentar melhor a chave para entender o funcionamento da exclu-são social do que um grupo marginalizado social e politicamente, principalmente porque esta marginalidade parece relativa se a confrontarmos com o cotidiano fora do cotidiano reivindicativo da base central.

Penso na ideia dos Magermane como sujeitos relacionados às implicações que o dinheiro coloca para a criação e manutenção das alianças, e devo concordar que de alguma forma ser Mager-mane tem um sentido eminentemente coletivo, mas na medida em que adentramos o histórico de alianças e inimizades podemos enxergar melhor que a função do dinheiro é norteadora e, em muitos casos, mais determinante do que o passado vivenciado na Alemanha Oriental. Trata-se de um sujeito coletivo muito he-

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terogêneo e versátil, com uma moral e sentimento de pertença moldados em grande medida pelas diversas negociações feitas em torno do dinheiro, para além dos usos do mesmo entre os próprios Magermane. Tomemos o caso de Cachopa, mencionado anteriormente, que “pegou” o dinheiro de Mahuai. Se pensásse-mos que esta posição moral é rígida e estática, ordenadora dos sentimentos de pertença, o “lógico” seria que Cachopa fosse no mínimo expulso do Jardim junto com os outros que aceitaram o dinheiro de um indivíduo rotulado de traidor e inimigo. Porém, ele confrontou seus colegas reconhecendo publicamente que ti-nha feito algo errado. Esta atitude o “libertou” do castigo, mas não da desconfiança dos outros: tornou-se um “traidor confesso”. Nesse sentido, parece relevante pensar o grau de compreensão para com as necessidades de cada um, exigindo, de alguma ma-neira, uma compreensão individualizada. Parece-me que a supos-ta “inflexibilidade” deste posicionamento moral frente ao poder foi contornada pela urgência da solução material específica das suas necessidades econômicas, pois esta definiria seu lugar no in-terior dessas relações de poder.

Ao contrário, no caso de Jacobi, membro da diretoria da as-sociação, a animosidade é maior e menos negociável, talvez pelo fato de ele ocupar uma posição de poder, e também para “aquele elemento” que estava no Jardim recrutando Magermane para a causa de Mahuai, precisamente porque Mahuai representaria o poder da Frelimo. Um, membro “corrupto” da diretoria; outro, agente inimigo, fatos que são, aos olhos dos Magermane, motivos de traição e, portanto, puníveis. Ao contrário, Cachopa, que reco-nheceu publicamente haver pego e usado o dinheiro de Mahuai, é “compreendido” e de alguma maneira “absolvido” da sua culpa. Alcinda Honwana, em seu livro Espíritos vivos, tradições modernas (2002), descreve como muitos indivíduos foram reinseridos em suas respectivas comunidades através do reconhecimento público dos seus atos e, logo após um processo de exorcismos e purifi-cação, eram absolvidos e reinseridos na comunidade originária. Esta analogia não deixa de ser interessante, pois revela que os

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modelos rotulados de “tradicionais” para a resolução de conflitos em contextos “modernizantes”, assim como de monetarização a todo custo, de alguma forma constituem elementos e práti-cas locais necessários para a sucessão da vida, para a pacificação, revitalização e manutenção das alianças, para além das políticas de estabilização e reinserção social apregoadas pelas instituições internacionais e “traduzidas” para o contexto nacional pela elite no poder.

Pacificamos nossos possíveis inimigos na medida em que os incorporamos ao nosso universo de alianças e os destruímos, ou mesmo “neutralizamos”, criando novas alianças mais poderosas; afinal, a vida é difícil mas devemos continuar, o ciclo se renova na medida em que conseguimos negociar, “quem fica parado mor-re”... São expressões que se ouvem em toda parte, e em muitos casos os Magermane são referência da difícil situação econômica que se vive no país. Seu apelo por justiça e reconhecimento é um problema real para a elite governante porque, mesmo que de maneira complexa, constituem até hoje o único corpo social or-ganizado que sistematicamente fala aberta e publicamente desta situação de predação e do novo enquadramento marginalizante organizado pelo dinheiro. As marchas se tornaram tão cotidianas e incorporadas à paisagem citadina que aparentemente deixaram de ter relevância pública; entretanto, foram incorporadas ao sen-so comum da maioria das pessoas. De alguma maneira, parece que estamos diante de um estereótipo radical deste novo enqua-dramento moderno: o marginal, e no caso dos Magermane, um marginal que resiste e rejeita ser enquadrado nesta condição.

Paralelamente, a ideia de enriquecimento de uma elite fecha-da e excludente, que sustenta seu discurso com o pressuposto de estar lidando contra uma pobreza “endêmica” no país, aparece como uma contradição contestada de maneira geral não apenas pelos Magermane. Novamente nos deparamos com a questão das lealdades políticas: será que estas são constituintes não apenas do processo de significação, mas também responsáveis pelo funcio-namento dos mecanismos de inclusão/exclusão? Por outro lado, e de maneira indireta, este questionamento sugere um confronto

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com a atitude de diversos intelectuais integrados, os quais, tendo acervo e experiência suficientes para levar a cabo um trabalho crítico, optam por não questionar abertamente as situações de in-justiça, enclausurando-se nos seus pequenos círculos intelectuais. Parece que o espaço público, essa esfera apregoada e defendida no discurso das organizações internacionais, onde a cidadania se expressaria, por razões de lealdades políticas, foi substituído por um mundo subterrâneo, onde os boatos e as acusações mútuas de traição e oportunismo político, entre outras coisas, parecem constituir-se nos formadores da opinião pública.

Porém, são precisamente estas situações que provocam desconcerto. Se aceitássemos a definição de marginais para rotular os Magermane79, que sentido fariam as marchas de quarta-feira; as assembleias e discussões internas; as práticas “democráticas” de escolha das suas lideranças; as negociações, não apenas com o governo, mas também com as poucas organizações constituídas e estruturadas na paisagem social de Maputo? Que sentido faria a incorporação de maneira “inteligente” das categorias do tipo socie-dade civil ou gênero? Por um lado, as organizações internacionais “estacionadas” em Maputo não mostraram até hoje interesse algum em negociar com este grupo80; por outro, na atualidade não exis-te nenhum trabalho significativo dos intelectuais locais em torno

79 E nesse caso, seja qual for a perspectiva, como resultado de uma análise so-cial ou uma crítica moral, ou simplesmente como inimigo em um conflito de posições cristalizadas.

80 Nesse sentido devemos salientar que para os Magermane existe uma ex-plicação para este evento e para o fato de que essas organizações estão em Moçambique só porque o partido no poder o permite. Nas palavras de Jacinto, presidente da associação na Beira, da província central de Sofala, que metaforicamente aponta para a questão: “se eu te convido na minha casa, mas te aviso que não pode falar com o meu vizinho porque ele é meu inimigo, você falaria com ele?” (Jacinto Natamingo, Beira, dezembro de 2008).

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da problemática de vinte anos entre Magermane e o governo81. Finalmente, mais desconcertante ainda é o fato de que o Estado moçambicano, a partir do momento em que se considera Estado, continua sendo governado pelos mesmos sujeitos que libertaram Moçambique de Portugal – os mesmo indivíduos que enviaram os quase 21 mil moçambicanos à RDA, ainda que, depois de quase vinte anos, não tenham reconhecido este fato publicamente e cria-do, com a seriedade que requer o caso, uma dinâmica eficiente de inserção social.

Contudo, devemos salientar que também se trata de um movimento cuja situação específica no contexto social de Ma-puto expõe de maneira sensível um ressentimento que a elite governante desenvolveu em relação a eles, desde seu regresso da Alemanha, quando eles começaram a questionar seu monopólio do poder, situação que já tinha sido vivida e resultou em uma guerra de 16 anos. Por sua vez, eles respondem ao desprezo dessa elite com um ressentimento próprio, atrelado à reivindicação em torno do dinheiro, o qual, na ordem social, provoca um estado de pouca governabilidade, mas que no nível do movimento ali-menta um sistema de solidariedade que em muitos casos serve à coesão social deste heterogêneo grupo. Nesse sentido, caberia perguntar se por acaso essa situação de ingovernância82, provo-cada pela ação reivindicativa dos Magermane, de alguma forma é percebida da mesma maneira como uma perda do monopólio da violência vivido durante guerra, e, portanto, é constitutiva do desenvolvimento desse ressentimento que caracteriza a elite

81 Concretamente existe só um trabalho de dissertação, escrito em 2002 por Aníbal Fernando Lucas, que por coincidência ou não é um antigo traba-lhador moçambicano na RDA, além deste trabalho.

82 A expressão ingovernância é pensada a partir da definição de “governância” e “governmentality” introduzida por Patha Chatterjee ao se referir ao fun-cionamento da política popular na atualidade. Segundo ele, “democracia, hoje, não é o Governo do povo, pelo povo e para o povo. Antes, deveria ser vista como política dos governados” (Chatterjee, 2004:70).

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governante. Ressentimento que será dirigido com bastante vee-mência contra esses ex-trabalhadores, outrora colocados no dis-curso da própria FRELIMO como grande contribuição para o desenvolvimento do país.

Este último aspecto, porém, necessita ser precisado. O des-prezo ou ódio dessa elite em relação a esse grupo reivindicativo é interpretado aqui a partir da definição que Ansart (2001) propõe como segunda forma de ressentimento:

o ódio recalcado dos dominantes quando se encontram em face da revolta daqueles que consideravam inferiores. Ressentimento re-forçado pelo desejo de reencontrar a autoridade perdida e vingar a humilhação experimentada (Ansart, 2001:19).

Se por uma lado esta perda relativa do monopólio do poder coercitivo atua como uma explicação interessante para entender como esta elite se constitui, precisamente se atrelamos esse pro-cesso constitutivo ao da formação da nação moçambicana, não podemos esquecer que esta elite nasce como resposta a outra or-dem social coercitiva que é o período colonial: ela foi outrora também um movimento contestatório Este é outro elemento que deveria ser levando em consideração se pretendemos entender o papel da elite na conformação da nação. Parafraseio o argumento usado por Cabaço (2009), que definiu a própria elite branca por-tuguesa durante o período da guerra de libertação nos seguintes termos:

A mentalidade colonialista, consolidada como cultura hegemôni-ca em Moçambique, exprimia-se com toda dimensão de desapreço pela diferença (vista como desvio da norma) que o conceito acarre-ta. E é nesse “desvio de norma” que a sociedade civil branca começa a classificar o militar. Na vivência colonial, o colono desenvolvia um sentimento elitista (econômico, social e cultural) que, no con-fronto com os outros portugueses, se evidenciava num complexo de superioridade ‘cosmopolita’ (Cabaço, 2009: 266).

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Se nesse parágrafo trocássemos “mentalidade colonialista” por “mentalidade modernista”; “elite branca portuguesa” por “elite moçambicana dominante”, “sociedade civil branca” por “socieda-de civil moçambicana”, e no lugar dos militares colocássemos os Magermane, perceberíamos a incrível semelhança histórica de dois processos ideológica e discursivamente definidos como opostos.

Nesse sentido, considero importante pensar na possibilidade de estar-mos diante de uma justaposição histórica na prática e não apenas na análise, de estarmos nos defrontando com aquilo que foi expresso no início do texto, ou seja, a maneira como a ideologia da modernidade se constrói a partir de uma lógica colonial. Nesse sentido, essa “marginali-dade magermane” deve ser entendida não como um atributo intrínse-co de um sujeito desprovido do necessário para se autoperceber como “moderno” (definição de sujeito extremamente liberal), mas como uma rotulação desenvolvida algures. O lócus de enunciação estaria então nessa mesma elite que defende sua pertença com base nessa ideologia de modernidade. Portanto, essa pós-colonialidade moçambicana não pode ser entendida apenas a partir de uma linearidade racional. A contempo-raneidade dos Magermane no processo de modernização moçambicano é negada, assim, por um discurso e uma prática adscritos a esta ideologia da modernidade. De acordo com Sumich (2008),

No período pós-socialista, a ideologia de modernidade foi despojada de grande parte da sua antiga ênfase sobre a mobili-zação de massas. Em vez de redefinirem o lugar de Moçambique entre a comunidade global das nações, muitos membros da elite procuram agora integrar-se a si próprios em poderosas redes in-ternacionais. Assim, esta ideologia funciona actualmente, cada vez mais, como um sinal de status e uma afirmação de poder social por parte da elite. Por um lado, continua a legitimar a po-sição das elites ao manter de pé a promessa de progresso e, por outro, permite a essas mesmas elites afirmarem-se como as únicas detentoras das competências e capacidades necessárias ao cum-primento dessa promessa (Sumich, 2008: 322).

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No discurso antropológico nos deparamos muitas vezes com um debate já inflacionário sobre tradição e modernidade – seja entre os modos de vida rural e urbano, seja entre as crenças e senti-dos racionais e irracionais –, sem, no entanto, nos incomodarmos com a origem dessas discussões. Optamos por pensar as relações existentes no espaço específico, aplicando categorias discutidas e definidas em outro lugar. Talvez estejamos mais preocupados em validar ou contestar esta ou aquela teoria do que em pensar precisamente qual é o verdadeiro regime que sustenta nossa prá-tica científica. Precisamente, um dos problemas e talvez o mais significativo, por haver todo o tempo condicionado o trabalho de campo, foi essa adscrição à suposta condição de pesquisador subalterno e as dificuldades em assumir um posicionamento “de acordo” com as exigências dos meus interlocutores. Seguindo a linha reflexiva de Pina Cabral (2006), fazer campo é estruturá-lo, organizá-lo, torná-lo visível, enfim, identificá-lo, não é apenas estar lá. Significa também entender os condicionamentos que o próprio contexto e os indivíduos no seu interior determinam; portanto, significa também ser flexível. Significa não só pensar o ambiente estudado, mas também pensar o próprio contexto – aquele campo do qual “saímos” para “entrar” em um outro, com o objetivo de compreendê-lo. Isso tem mais implicações para nosso universo e nosso contexto pessoal como “observadores” do que supomos – um contexto nem sempre “puro” e sempre revestido de uma autoridade que nos permita sobrepor-nos ao contexto com o qual interagimos.

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Desafios metodológicos de uma pesquisa em arquivos em contextos extranacionais: o trabalho de campo de Mary Douglas no Kongo Belga e o africanismo britânico do pós-guerra83

Christiano Key Tambascia

introdução

Em maio de 2007, faleceu na capital britânica a antropólo-ga Mary Douglas. Nesse ano, eu estava em Londres, realizando minha pesquisa de doutoramento sobre o período de trabalho de campo da antropóloga no Kongo Belga, no final da década de 1940 e começo da década de 1950, bem como sobre a importân-cia deste para a teoria antropológica que produziu posteriormen-te, e que a tornou conhecida na disciplina84.

Minha intenção, ao chegar em Londres, era entrevistar Mary Douglas acerca de sua pesquisa etnográfica e do contexto do cam-po africanista, inspirado pela literatura disponível e hoje consi-derada clássica na disciplina. Richard Fardon escreveu, em 1999,

83 Este artigo é produto de uma apresentação na VIII Reunión de Antropo-logia del Mercosur, de 2009, em Buenos Aires, Argentina. Agradeço aos colegas que discutiram o trabalho e enriqueceram a discussão, em especial Iracema Dulley, Valentina Salvi, Marta Jardim e Luiz Henrique Passador.

84 Sou grato à CAPES pela bolsa de estágio de doutoramento no exterior que possibilitou esta pesquisa, bem como ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UNICAMP, pelo apoio para uma segunda viagem, para Evanston, Estados Unidos, onde Mary Douglas lecionou e depositou grande parte de seu material pessoal.

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a biografia intelectual de sua antiga professora (Fardon, 2004). Entre outras questões, o autor refletiu sobre a relativa margina-lidade que a obra da antropóloga sofreu em relação à produção intelectual do grupo africanista que se tornaria hegemônico: os colaboradores próximos ao sul-africano Max Gluckman, na Uni-versidade de Manchester (e, antes disto, no instituto rodesiano Rhodes-Livingstone, onde Gluckman foi diretor).

Entretanto, a morte de Douglas fez com que minha inten-ção de analisar sua história de vida, à luz do contexto do campo africanista, tivesse que ser repensada metodologicamente. Uma reconsideração sobre a maneira de obter as informações necessá-rias para a condução da pesquisa trouxe à tona algumas questões interessantes acerca dos problemas – ou vantagens – que antro-pólogos que se deslocam de seus contextos nacionais podem en-frentar, tornados claros pelas dificuldades particulares que podem surgir. Portanto, parto de uma reflexão sobre o próprio desenvol-vimento da pesquisa para apontar possibilidades heurísticas que tal posicionamento pode propiciar no resultado do estudo.

Tem havido no Brasil, nas últimas décadas, um crescente in-teresse em pesquisas em contextos extranacionais – seja em locais comumente estudados pela “antropologia central”, ou mesmo nesses próprios centros de produção acadêmica, que também apenas recentemente se voltaram para uma reflexão interna. Mes-mo que o objetivo não seja realizar uma análise comparativa entre fenômenos em contextos nacionais e estrangeiros, a experiência pessoal do antropólogo diante de uma nova realidade tem efeitos sobre o seu trabalho de campo e na interação com os sujeitos pesquisados.

Se existem dificuldades de inserção nesses novos locais pela trajetória específica de um antropólogo estrangeiro (em que pe-sem também outros marcadores sociais, como gênero e religião, como atesta o trabalho de Pereira, Nesse volume), também ocor-rem contrapontos interessantes, que reatualizam uma questão que de maneira alguma é nova na disciplina: o diálogo inter-subjetivo e o estranhamento da alteridade na pesquisa. Entre-

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tanto, menos do que endossar conceitos e teorias já canônicas, este deslocamento permite traçar novos questionamentos sobre processos históricos e contemporâneos, face a um enfrentamento de perspectivas, seja em ex-colônias africanas (além do citado tra-balho de Pereira, também são exemplo disso os textos de Passador e Guerra, no presente volume), ou nas ex-metrópoles europeias (como os artigos de Cioccari e Bittencourt, também Nesse volu-me, exemplificam). O mesmo vale para uma revisão teórica sobre as reflexões acerca do lugar de determinados grupos na literatu-ra internacional contemporânea (como é o caso do trabalho de Weiss, Nesse volume). Diversos estudos apontam para os desafios de uma pesquisa etnográfica, com diferentes referenciais teóricos, para processos que em um primeiro momento poderiam pare-cer semelhantes, ou então, ao contrário, totalmente distintos, de modo a rever conceitos e esmiuçar suas particularidades.

Desta maneira, minha intenção aqui é refletir sobre questões específicas surgidas na condução da pesquisa antropológica em contextos em que ocorram diálogos entre diferentes tradições e perspectivas teóricas e metodológicas – a do antropólogo que se desloca de seu contexto analítico e a de seus interlocutores no país em que vai trabalhar. Especificamente, no caso em que o antropólogo realiza sua pesquisa em instituições em contextos extranacionais: em comunicação direta com profissionais da área em universidades, arquivos e bibliotecas estrangeiras.

A reflexão sobre os impasses e “mal-entendidos”, muitas ve-zes ocasionados por ênfases distintas na abordagem teórica ou na metodologia adotada – que proporciona, geralmente, efeitos dis-tintos na produção do conhecimento antropológico – permitirá compreender a maneira como a pesquisa é institucionalmente reorientada na negociação entre os pressupostos que o antropó-logo traz de sua formação e os que os profissionais com os quais tem que lidar possuem.

Para exemplificar a questão, tratarei de meu estudo para a tese de doutoramento, realizada em grande medida em institui-ções britânicas e americanas. Procurarei refletir sobre a maneira

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como a análise antropológica feita nestas instituições, sobre a re-lação entre o trabalho de campo da antropóloga Mary Douglas e o contexto do campo africanista no Reino Unido no pós-guerra para compreender sua trajetória acadêmica, teve que ser constan-temente negociada na interação do antropólogo com seus inter-locutores – com outros intelectuais que auxiliaram no trabalho e com a própria Mary Douglas. Para tanto, será crucial uma breve descrição do meu trabalho de pesquisa, principalmente nos ar-quivos britânicos, sobre o contexto antropológico da época em questão. Tal trabalho constituiu em uma análise da bibliografia africanista dos autores com os quais Douglas procurou estabe-lecer interlocução teórica, entrevistas com diversas pessoas que conheceram a antropóloga e pesquisas em diversos arquivos: car-tas, documentos pessoais, atas de reuniões das instituições que financiaram sua pesquisa, resenhas que Douglas escreveu sobre obras africanistas publicadas no período, bem como resenhas que foram feitas sobre sua própria produção etnográfica. Nesse texto, especificamente, tratarei com mais detalhes dos documentos do International African Institute, em Londres, que promoveu a pes-quisa de campo da então jovem antropóloga Mary Tew85.

A despeito da expectativa criada pela reputação de Mary Douglas de possuir um temperamento difícil, deparei-me com uma pessoa receptiva e que, diante de minhas perguntas sobre sua pesquisa, prontamente se dispôs a colaborar. Entretanto, ao entrevistá-la, não pude evitar um certo sentimento de frustração ao perceber que o que ela tinha a dizer não correspondia aos rela-tos de bastidores, repletos de anedotas, impressões subjetivas do encontro etnográfico e da convivência com os Lele, a sociedade estudada por Douglas, que eu esperava encontrar. Seu relato era muito próximo do que eu já havia encontrado em suas descri-ções, nos artigos e livros, do modelo de organização social dos

85 Sobrenome de solteira que Mary Margaret Douglas usou até 1952, quan-do se casou com James Douglas.

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Lele. Foi apenas em uma reflexão posterior que percebi que o relato assumiu esta forma não em função de um “apagamento” das dimensões vitais da experiência, mas era uma expressão genu-ína da experiência de pesquisa de campo naquela época. Afinal, como nos diz Joan Scott (1999), esta é indissociável do discurso que a constitui.

o percurso da pesquisa

Em meados de maio de 2007, recebi a notícia de que Mary Douglas, uma das principais representantes da antropologia bri-tânica da segunda metade do século passado, havia falecido. Ri-chard Fardon, chefe do departamento de antropologia da School of Oriental and African Studies, em Londres, bem como autor da biografia intelectual e executor legal da obra da antropóloga, informou-me, na manhã em que havíamos combinado conver-sar, que Douglas, que fora sua professora, morrera na noite an-terior. Eu havia chegado ao Reino Unido quatro meses antes e soube imediatamente que teria que repensar minha metodologia de trabalho.

Havia sido muitíssimo bem recebido por Fardon, no come-ço daquele ano, quando Adam Kuper, meu supervisor no Reino Unido, sugeriu-me procurá-lo. Já havia conseguido me encontrar com Mary Douglas, de quem Kuper era amigo, bem como com alguns de seus colegas e familiares. Entretanto, se me propunha a conversar com diversos antropólogos que conheceram e convi-veram com Douglas, também pensava, quando cheguei em Lon-dres, que passaria muito tempo conversando com a antropóloga sobre as questões que orientavam minha pesquisa no momento: a importância do trabalho de campo realizado no Kongo Belga, durante as décadas de 1940 e 1950, em sua obra intelectual, bem como as razões pelas quais sua pesquisa africanista não se tornou conhecida no meio acadêmico inglês – a despeito de sua evidente

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qualidade, que em nada devia às monografias do período, depois tornadas clássicas na literatura antropológica86.

Em parte guiado pelo trabalho de Fardon (2004), imaginava que existiam questões sobre o campo institucional antropológico britânico pós-Segunda Guerra Mundial que tinham efeitos nada insignificantes sobre a produção do conhecimento antropológico de Mary Douglas. Ao menos sobre os rumos da trajetória acadê-mica da antropóloga.

Mesmo antes da notícia de seu falecimento percebi que a pesquisa de arquivo, inicialmente já prevista, se tornaria ainda mais importante, quando ficou claro que não seria possível con-versar tanto quanto gostaria com a própria Mary Douglas, cujo estado de saúde piorava rapidamente.

Foi em meio a esta indefinição dos rumos da pesquisa que me encontrei com Fardon, no dia seguinte à morte de Douglas. O antropólogo me presenteou com inúmeros textos, livros e artigos de sua antiga professora, que pareciam se multiplicar em pilhas assustadoras em seu pequeno escritório, e com os quais ele parecia já não saber o que fazer. Instigado por terminar com este “hiato” em sua pesquisa antropológica87, desde a publicação da biografia intelectual de Douglas (que o alçou à categoria de especialista na autora), bem como pela necessidade de esvaziar o apartamento de Douglas em Bloomsbury, Fardon foi generoso com o espólio que lhe foi confiado. E mesmo em meio a telefonemas de outros

86 Especificamente, o livro resultante de sua pesquisa, The Lele of the Kasai, publicado em 1963 (Douglas, 1963). O livro recebeu algumas resenhas bastante favoráveis e alguns comentadores arriscaram a previsão de que este se tornaria um clássico da disciplina: Vansina (1964a, 1964b) e Kuper (1963), ambos bons amigos de Mary Douglas, são exemplos. Outras rese-nhas do livro foram feitas por Gulliver (1964), Cabot (1964), Lienhardt (1964), Vorbichler (1964a, 1964b), Van Geluwe (1964) e Lystad (1963). As resenhas de Cabot e Van Geluwe foram publicadas em francês e a de Vorbichler em alemão.

87 Fardon realizou pesquisa de campo na costa ocidental africana, especial-mente na Nigéria e Camarões.

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antropólogos e de repórteres de jornal que lhe encomendavam um obituário, discutiu comigo algumas possibilidades de novos rumos para minha pesquisa.

Um passo parecia inevitável: mergulhar de fato nos arquivos do International African Institute88, que havia financiado inú-meras pesquisas antropológicas desde as primeiras décadas do século XX, inclusive as da jovem Mary Tew, antropóloga recém--formada em Oxford sob a orientação de Evans-Pritchard, que propunha estudar os Lele do Kasai, uma sociedade matrilinear da província no interior do Kongo Belga, então ainda colônia da pequena metrópole europeia, no final da década de 1940.

Também ficou claro que uma visita aos arquivos da Univer-sidade de Northwestern, onde Douglas lecionou quando residiu nos Estados Unidos na década de 1980 e depositou grande parte de suas notas de campo e sua correspondência, era necessária. Mas foi nesta conversa com Fardon que comecei a perceber que algumas das dificuldades que se impunham na pesquisa, tradu-zidas em distintas preocupações metodológicas e teóricas com meus interlocutores britânicos, tinham também consequências para a natureza do trabalho que me propunha a realizar. Diferen-ças que, concluo agora, vão além dos interesses pessoais dos pes-quisadores. Elas pareciam remeter a ênfases distintas sobre a pró-pria construção das questões que guiam a análise antropológica.

Já havia enfrentado dificuldade semelhante ao tentar explicar minha proposta de trabalho a Adam Kuper, assim que cheguei em Londres e o procurei. Ambos, Fardon e Kuper, pareciam ter suspeitas sobre os ganhos reais que adviriam de minhas conversas com Mary Douglas sobre fatos que aconteceram sessenta anos antes, no Kongo – ainda que Fardon tenha confidenciado que enquanto escrevia a biografia intelectual de Douglas, esta parecia se lembrar de muita coisa, depois de lhe ter dito, quase vinte anos

88 Doravante IAI.

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antes, que havia esquecido tudo sobre seu período de trabalho de campo.

Essa desconfiança da memória, bem como do método bio-gráfico aplicado à antropologia, não é de maneira alguma exclu-sividade de ambos os antropólogos. A reflexão sobre a utilização da história de vida vem se desenvolvendo nas últimas décadas nas ciências sociais. Entretanto, menos do que a formação de um consenso quanto à sua utilização e metodologia, existe uma di-versidade de posturas teóricas em relação à análise da trajetória individual e em relação a sua relevância na compreensão de pro-cessos sociais mais abrangentes que apenas recentemente parece ter sido problematizada89.

Se as ressalvas que ambos, Fardon e Kuper, pareciam me fazer encontram correspondência nos impasses do trabalho de campo e na relação entre o pesquisador e seus informantes, tais como pensados na elaboração de metodologias de pesquisa por diver-sos outros teóricos da disciplina, elas teriam especial significação quando aplicadas para dentro do próprio campo. Como já no-

89 Crapanzano (1984), por exemplo, reflete sobre a utilização das histórias de vida em antropologia, tendo como referência a questão do encontro etnográfico e da representabilidade de uma trajetória pessoal nos processos culturais. Para Crapanzano, a complexidade da relação dialógica constituí-da em campo possuiu um claro caráter biográfico que tende a ser apagado no momento da análise e da escrita. Kofes (2001), por exemplo, em seu estudo sobre Consuelo Caiado, lembra-nos que estudar história de vida implica em algo mais do que a entrevista com um indivíduo – ou, pode-ríamos acrescentar, a análise de uma biografia ou autobiografia, o que foi escrito ou dito por e sobre tal indivíduo. É um conjunto de informações passíveis de interpretação que deve lidar com a “subjetividade” do relato e mesmo com as “inscrições objetivadas” de sua experiência, lidando muitas vezes com contradição e imprecisões. Para Kofes, a experiência de pesqui-sa sobre Consuelo é menos uma biografia do que uma trajetória, o que evidentemente coloca algum foco na reflexão sobre a própria pesquisa e a maneira como esta trajetória foi reconstituída, e como o sentido atribuído pelo indivíduo a sua própria vida deve ser também considerado.

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tado pelos historiadores da disciplina, o assunto ficou perigosa-mente familiar90.

Em um primeiro momento estas considerações me parece-ram estranhas, vindas de um antropólogo que se propôs a realizar uma história da antropologia britânica, por vezes controversa, e de outro que escreveu uma biografia intelectual de uma de suas maiores expoentes – o que inevitavelmente levou, em ambos os casos, a considerações às vezes pouco discretas sobre os bastidores da academia e da pesquisa etnográfica. Considerações que, se-guindo as lições extraídas do trabalho de Pierre Bourdieu sobre o campo acadêmico francês, ou do “furacão” surgido na disciplina com a publicação dos diários de campo de Bronislaw Malinowski na Melanésia – apenas para citar duas frentes que suscitaram cer-tas indagações na agenda teórica da disciplina e que encontraram eco no trabalho inaugurado por Clifford Geertz e outros autores críticos de alguns pressupostos da objetividade em antropologia –, colocavam em suspensão quaisquer pretensões ainda sobrevi-ventes sobre a possibilidade de neutralidade científica. Os efeitos do encontro etnográfico, entre o antropólogo e seus pesquisados, e a necessidade de investigar o contexto da produção do conheci-mento produzido mostram-se, assim, também estendidos para os centros de pesquisa e departamentos universitários.

Ao se debruçar sobre a análise do campo científico, Bourdieu defendeu a necessidade de compreender os pressupostos históri-cos nos quais se baseiam as objetivações dos cientistas – no que, bem ao estilo do sociólogo francês, poderia ser caracterizado por

90 Cf. por exemplo Corrêa (1995), sobre a etnografia do processo de profis-sionalização da antropologia no Brasil. Segundo a autora, o que se propõe por etnografia da ciência pode gerar alguns constrangimentos, inerentes à investigação do universo acadêmico, em que o objeto de investigação é necessariamente nomeado e identificado, ao invés do trabalho de campo convencional, quando se estudam atores e personagens, não autores. Ainda que a ênfase deva ser dada à análise institucional e ao contexto em que tais pessoas atuaram, estas estão demasiado próximas para não ocasionar desafios ao historiador da disciplina.

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“objetivar as objetivações”, ou “historicizar a matéria de histori-cização” (Bourdieu, 2001: 86). Trata-se de evidenciar as dispo-sições inconscientes dos próprios pesquisadores e as condições sociais em que são produzidas, neutralizando efeitos de relativi-zação que, ademais, assumem contornos específicos quando se trata das chamadas ciências sociais (especialmente a sociologia e a antropologia, sobre as quais Bourdieu reserva mais tinta em sua obra), carentes em autonomia (e, portanto, passíveis de maior controvérsia ou do estabelecimento de paradigmas alternativos) quando comparadas às ciências da natureza. É, enfim, sublinhar a existência de distintos pontos de vista segundo o pressuposto de que os fatos sociais – e então a sociologia do conhecimento é apenas um possível objeto de análise – são por sua vez socialmen-te construídos e que, portanto, podem ser analisados por seus próprios instrumentos de pesquisa – o que resulta no fato de que os próprios agentes sociais do campo científico são parte do universo que procuram objetivar. A importância do estudo do campo científico torna imprescindível o mapeamento das posi-ções ocupadas Nesse mesmo campo, bem como dos espaços de possibilidade de determinado sujeito em seu interior, dada sua trajetória acadêmica.

Em alguns momentos, percebi, ser um pesquisador “de fora” apresentava vantagens, mas também desvantagens. De qualquer maneira, minha condição de antropólogo estrangeiro surtia efei-tos na maneira como conduzia a pesquisa e era recebido pelos “meus informantes” – muitos deles também antropólogos. Aler-tado para a possibilidade de enfrentar uma senhora um tanto quanto difícil, célebre por aterrorizar seus alunos, surpreendi-me pela maneira como fui bem recebido, pela disposição mostrada em discutir certos assuntos e pela sinceridade e franqueza com que Mary Douglas relembrava, por exemplo, as rusgas que teve com Max Gluckman e os antropólogos ligados ao Rhodes-Livin-gstone Institute rodesiano e à Escola de Manchester – que passou a dominar, em meados do século passado, o campo africanista britânico (antes ancorado nas universidades de Oxford e Cam-

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bridge e, em certa medida, na London School of Economics). Se estas não eram de fato informações sigilosas e desconhecidas, ainda assim revelavam uma faceta menos nobre dos motores da academia, as necessidades de estabelecimento de relações insti-tucionais e uma rede de colaboração que resultou diretamente, por exemplo, no financiamento de pesquisas e na repercussão (em forma de resenhas, convites de trabalho e apresentação de resultados) e divulgação de trabalhos (na forma de utilização das monografias nos cursos de formação). Assim afirma Fardon em seu livro:

Em Mary Douglas, foi impossível desconhecer o sentimento de marginalização disciplinar que inaugurou sua carreira. Ele envolveu questões de personalidade e do contexto institucional. Num senti-do lato, era quase fatal que uma inglesa de classe média, católica romana praticante, da geração de Douglas e movida por grandes ambições sentisse um certo grau de marginalização numa disciplina que – afora o fato de ser de classe média, por definição – não era nenhuma dessas coisas (Fardon, 2004:11)91.

o campo acadêmico britânico e o africanismo de marY douglas

Fardon observa também que a relação entre Mary Douglas e os antropólogos de Manchester, em especial Max Gluckman, não era das mais tranquilas, ainda que cordial. Isto a despeito da admiração que Mary Douglas tinha pelos trabalhos dos membros da equipe do antropólogo sul-africano, resenhando inúmeros de seus livros ao longo das décadas de 1950 e 1960 (Douglas, 1959:

91 Entretanto, tal silêncio, acredito, se refere mais à monografia publicada em 1963 (Douglas, 1963), do que ao conjunto dos trabalhos etnográficos de Mary Douglas. Diversos de seus artigos foram lidos e criticados por autores africanistas na época.

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168)92. Sua monografia, segundo Fardon, teria sido praticamente endereçada ao grupo, ao tentar utilizar alguns dos métodos de in-vestigação caros aos colaboradores de Gluckman – o que apenas torna o silêncio recebido mais contundente (Fardon, 2004: 51).

Não obstante, o trabalho de Douglas foi também criticado. Da correspondência de Victor Turner dos arquivos do Interna-tional African Institute, vemos, por exemplo, que este pediu uma cópia da monografia de Mary Douglas. Depois de ter feito uma resenha para o periódico do instituto, Africa, Turner escreve para o diretor do IAI, Daryll Forde, em 16 de abril de 1964, expres-sando seu desejo de escrever algo sobre esta e outras publicações acerca de feitiçaria e bruxaria na África, dado que acreditava exis-tir uma inexatidão na utilização destes termos no livro de Dou-glas e nos trabalhos de John Middleton, Max Marwick e Edward E. Evans-Pritchard, que segundo Turner “obstrui a análise dos processos sociais envolvendo tais crenças e práticas”93.

Segundo Fardon, foi em uma de suas resenhas críticas que Mary Douglas se indispôs publicamente com Gluckman, a quem achava “uma personalidade pouco atraente e dominadora – visão que ele parecia retribuir” (Fardon, 2004: 97)94. Ainda que tenha

92 Ver também Schumaker (2004), Engelke (2004) e Werbner (1984). Werbner fala sobre o reconhecimento de Mary Douglas, mas também lembra sua posi-ção marginalizada no africanismo e no grupo de Manchester: “Talvez o primei-ro reconhecimento de fora que uma nova escola emergiu tenha vindo em uma resenha de Douglas, uma antropóloga formada em Oxford, familiarizada, ainda que marginal, tanto à área principal quanto ao grupo de trabalho original da Escola” (Werbner, 1984: 158). Tradução minha.

93 IAI 42/18, Turner para Forde, 16 de abril de 1964. É interessante no-tar que Turner, nesta época já residente nos Estados Unidos e convertido ao catolicismo, dedicava-se aos estudos sobre simbolismo, performance e ritual tão criticados por Gluckman quando Turner ainda era seu aluno em Manchester – Gluckman preferia que Turner desse ênfase aos aspectos políticos da organização social. Não obstante, ainda não tinha se desligado totalmente do grupo de Manchester. Cf. Engelke (2004).

94 A polêmica pode ser acompanhada em Gluckman e Colson (1952) e Dou-glas (1952).

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sido o próprio Gluckman o responsável pela indicação da jovem Mary Tew para o projeto do Ethnographic Survey of Africa, co-missionado pelo Escritório Colonial através do IAI95.

Minha hipótese é de que, somado a estas questões pessoais, ter realizado seu trabalho de campo em uma colônia de língua francesa quando era comum que os antropólogos britânicos fi-zessem suas pesquisas em colônias anglófonas – o que a aproxi-mou de etnólogos belgas que se tornaram colaboradores de longa data, como Luc de Heusch e Jan Vansina – contribuiu para que a pesquisa de Douglas não se tornasse referência no Reino Unido. Mesmo que a relação entre a antropologia de língua inglesa e a de língua francesa não tenha sido tão pobre como a princípio se poderia imaginar.

Gluckman parece ter sido de fato uma personalidade con-troversa. John Middleton, que havia se formado no University College de Londres (mesma instituição em que Mary Douglas lecionou depois de formada) após o final da Segunda Guerra e foi convencido por Meyer Fortes e Evans-Pritchard a realizar seu doutorado em Oxford, na mesma época em que Douglas, lem-bra que Gluckman era um homem um tanto quanto bruto, ain-da que extremamente competente e um ótimo professor. Exigia muito de seus alunos, mas conseguiu formar um grupo fiel de colaboradores ao longo dos anos (Middleton, 1999: 221-222)96.

Gordon (2002) também afirma que Gluckman suscitava a antipatia de muitos de seus colegas, mesmo em Manchester, o que levou, por exemplo, ao afastamento de Turner de seu círcu-lo97. Edmund Leach também é duro ao lembrar do sul-africano, que conheceu pela primeira vez em um seminário de Radcliffe--Brown em Oxford, no final de 1938, e por quem adquiriu um desgosto instantâneo e duradouro:

95 IAI 16/1. Forde para Hibbert, 10 de outubro de 1947. O estudo foi publi-cado em Tew (1950).

96 Cf. também Brown (1973) e Brown (1979).97 Cf. também Engelke (2004).

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Se alguém me perguntasse, na época ou depois, o que eu acha-va de Gluckman, eu provavelmente teria dito que o considerava um egocêntrico incivilizado e fundamentalmente inculto cujas tentativas de generalização teórica eram de uma incompetên-cia deveras pueril. Minhas impressões de Radcliffe-Brown não eram muito diferentes, mas talvez eu tivesse qualificado o inculto (Leach, 1984: 20)98.

De qualquer maneira, uma análise das disputas simbólicas e de prestígio na disciplina, nos centros de antropologia britânicos na época – o eixo estabelecido, ainda que não mais hegemônico, Oxbridge (Oxford e Cambridge), London School of Economics e Manchester – permite-nos começar a compreender o campo institucional em que os antropólogos em formação tinham que se posicionar. Alguns passos parecem ter sido obrigatórios: a pes-quisa de campo nos moldes inaugurados por Malinowski em sua pesquisa em Kiriwina, o desenvolvimento de uma monografia que lidasse com a bibliografia estabelecida e a tessitura de uma série de relações interpessoais que envolviam discussões teóricas, mas também posições nos centros de pesquisa e recursos de tra-balho. No caso de Manchester, filiar-se às linhas dominadas por Gluckman significava seguir uma certa agenda acadêmica que Mary Douglas parece não ter estado disposta a adotar. A antro-póloga ainda lembrava, no final da vida, sobre sua relação com “Gluckman e seus guarda-costas”99, conforme me relatou uma tarde em seu apartamento.

Em certa ocasião, em 1949, após o término do BSc (Bache-lor of Science) de Mary Douglas, Evans-Pritchard teria dito, com Gluckman presente na mesma sala, quando este último ainda es-tava no departamento de Oxford: “you should have Max supervise

98 Tradução minha. Leach admite, entretanto, que a antipatia mútua entre ambos se deve às radicais diferenças de suas heranças sociais e não a incom-patibilidades teóricas.

99 Cf. também Douglas (1998).

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you”. Entretanto, ela havia recentemente lido um artigo em que Gluckman fora muito duro com seu antigo professor, Malinowski (publicado no boletim do Rhodes-Livingstone Institute em 1949 e intitulado “Malinowski’s Sociological Theories”). Douglas não gostara do tom, chegando à conclusão de que um homem que diz tais coisas não poderia ser bom. Era uma situação delicada. Mary Douglas respondeu, evasiva, que desejava focalizar suas pesquisas no tema da religião e acreditava que “Max” não estava interessa-do no assunto. Gluckman concordou, e foi decidido então que M. N. Srinivas, o antropólogo indiano que também estava em Oxford na época, exerceria o papel de orientador.

Pouco tempo depois Gluckman saiu de Oxford para assu-mir a cadeira de antropologia em Manchester. Entretanto, Mary Douglas refletiu sobre a decisão e tentou imaginar o que teria sido diferente em sua carreira tivesse ela ido também para Manchester. Interlocução e promoção não faltavam aos membros da Univer-sidade e, de certa maneira, ela se sentia de fato marginalizada entre os etnógrafos da década de 1950. Evans-Pritchard e Meyer Fortes já haviam alertado sobre a necessidade de interlocução e diálogo com os africanistas quando convenceram Mary Douglas a não realizar pesquisa de campo no Mediterrâneo, como queria inicialmente: a África era o lugar a ser estudado.

A importância dessas relações institucionais nos rumos da trajetória acadêmica de Douglas tornava-se cada vez mais clara à medida que investigava os inúmeros documentos e correspon-dências do período, bem como as resenhas publicadas – ou, como afirmado acima e também igualmente significativo, o relativo si-lêncio de seus colegas quanto ao seu trabalho de campo, processo que culminou com a má recepção de sua monografia de 1963. Esses fatores eram, além disso, percebidos, ao menos em certa medida, pela própria Mary Douglas, como ficou evidente em sua reflexão sobre as razões que a levaram a se afastar do campo afri-canista (ainda que os insights que produziu em decorrência de seu trabalho sobre os Lele tenham acompanhado toda sua obra).

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Fardon atribui a marginalidade de Douglas no campo afri-canista a razões de gênero, religião e interlocução com os grupos estabelecidos. Entretanto, meu desconforto em relação a esta hi-pótese de marginalidade adquire um sentido diferente, dado que se de fato ela não fez parte de grandes grupos intelectuais e não reuniu, ao seu redor, um conjunto de pesquisadores com interes-ses semelhantes, mas, ao contrário, permaneceu uma pensadora independente, isto constituiu sua própria inserção no campo. Acredito que, ao ir além da análise do campo, uma perspectiva que leve em consideração a noção de trajetória expõe também diferenças das percepções de pesquisadores “de fora” e “de den-tro”, além das distintas tradições teóricas. Manter-se uma pensa-dora independente trouxe uma série de restrições à inserção de Douglas no campo acadêmico britânico, mas permitiu também, por outro lado, uma liberdade considerável em explorar os mais diversos temas. Paralelamente à preocupação de Kuper e Fardon em explorar os fatores constitutivos do campo (e da desconfian-ça em relação à memória), acredito que estes processos, se eram familiares a ambos, exatamente por esta razão adquiriram uma análise que não problematiza o sentido desta marginalidade da antropóloga.

Um rápido exemplo poderá clarificar a relação entre Gluckman e Douglas e as posições destes no campo acadêmico, evidenciando a existência de grupos distintos, organizados em institutos de pesquisa e em universidades, muitas vezes em situação de competição. E, é importante ressaltar, em um período em que o número de etnógrafos nas universidades britânicas era extremamente reduzido. Todos se co-nheciam e frequentavam as mesmas reuniões, seminários e cursos, o que torna as relações pessoais entre estes fator importante para a análi-se das interlocuções teóricas e institucionais. O exemplo é o pequeno debate, já referido anteriormente, surgido nas páginas da revista do International African Institute, Africa, entre Mary Douglas, de um lado, e Elizabeth Colson e Max Gluckman, de outro.

Em 1952, quando Mary Douglas ainda se preparava para defender sua tese de doutoramento, a antropóloga escreveu uma

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resenha do livro organizado por Colson e Gluckman, Seven Tri-bes of British Central Africa, publicado no ano anterior (Douglas, 1952). Douglas, ainda que elogiosa do trabalho desenvolvido pelo Rhodes-Livingstone, critica a demora na publicação das pes-quisas do instituto nos últimos dez anos. Critica, principalmente, a organização do livro, manifestando seu desapontamento e acre-ditando que a escolha das sete “tribos” a que o título do livro faz referência não se sustenta, pois o volume abdica de um exercício de comparação ao supor que a reunião das pesquisas por critérios geográficos em uma publicação não requer um argumento com-parativo, o que fez com que os dados etnográficos de cada traba-lho não rendessem ao serem postos em relação com os demais. A autora crê que o livro não acrescenta nada para os estudantes de antropologia que ansiavam por um estudo que organizasse os diversos resultados publicados até então pelo jornal do Rhodes--Livingstone. Mais do que isso, a publicação não é, segundo a jovem antropóloga, útil para os administradores coloniais que trabalham na região100.

A resposta não tardou a ser publicada, na mesma revista, dois números depois (Gluckman e Colson, 1952). A defesa não

100 Os administradores coloniais eram importantes interlocutores dos antropólo-gos antes do processo de descolonização, ainda que a relação entre ambos tenha sempre sido tensa. Afinal, antropólogos e administradores ocupavam e dispu-tavam espaços semelhantes no mundo do império britânico. Os antropólogos buscavam se tornar os legítimos especialistas das sociedades ditas primitivas, e cada vez mais se distanciavam dos métodos dos funcionários coloniais, que produziam um tipo de conhecimento etnográfico diferente. Entretanto, uma antropologia que lidasse com a política colonial era o objetivo de alguns ins-titutos de pesquisa, como o International African Institute, que auxiliara no desenvolvimento de um sistema de governo indireto que fosse eficiente nas co-lônias britânicas na África, reunindo para tanto profissionais de diversas áreas. Malinowski, que exerceu importante papel na constituição do instituto, tinha em seus seminários na London School of Economics não apenas etnógrafos, mas linguistas, missionários e administradores coloniais. Evidentemente que não faltaram críticas a esta escola de antropologia “aplicada” entre alguns antro-pólogos “puristas”, especialmente os representantes do eixo do “establishment” em Oxford, como Evans-Pritchard e Radcliffe-Brown (Kuper, 2005: 52-53).

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se refere às críticas sobre a organização interna da obra, mas ao que Gluckman e Colson acreditam serem indagações incorretas sobre o funcionamento interno do Rhodes-Livingstone, basea-das em “afirmações inadequadas e imprecisas”. Ambos os edito-res passam então a enumerar e contestar as afirmações de Mary Douglas: sobre sua objeção quanto à não inclusão dos resultados de pesquisa de Ian Cunnison (que não havia voltado de campo quando o livro estava no prelo); sobre os custos de uma publi-cação em conjunto em comparação ao lançamento das pesquisas em separado; sobre os prazos da “demora” na publicação; bem como outras objeções. Ainda, sobre o desejo de Douglas de que os textos houvessem sido disponibilizados anteriormente aos es-tudantes de antropologia, os editores ressaltam que o manuscrito de Clyde Mitchell foi utilizado em publicação recente por Au-drey Richards; que a própria Mary Douglas teve acesso aos ma-nuscritos, quando trabalhou no Ethnographic Survey of Central Africa (sob orientação do próprio Gluckman) e que recebera o manuscrito de Gluckman sobre os Lozi quando partiu para seu trabalho de campo no Kongo. Também lembram que o material estava à disposição dos interessados na região central africana, como ela mesma sabia, considerando assim injustas suas afirma-ções sobre atrasos e não disponibilidade de material. Por fim, Gluckman e Colson rebatem a crítica de Douglas sobre a seleção dos textos, argumentando que se trata de dispor o conjunto de pesquisas do instituto, que correspondem a uma região política de colonização britânica, que já vinha sendo objeto de estudo por outros antropólogos interessados em metodologias modernas de pesquisa e que são então citados.

Um leitor atento poderia concluir pela troca de críticas en-tre uma promissora, mas ainda não estabelecida antropóloga, e membros de um instituto de pesquisa e de um grupo de pesqui-sadores com mais experiência e renome, que está em jogo uma disputa por espaços no campo acadêmico, que toma a forma de objeções teóricas, mas cuja parcela de diferenças nas agendas ins-

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titucionais e o pertencimento a certas redes de relações também não pode ser descartada.

conclusão

Uma pesquisa nos arquivos do International African Institu-te, atualmente depositados na biblioteca da Malinowski’s Sociolo-gical Theories, permite-nos perceber como uma análise do campo universitário britânico e das redes estabelecidas entre os pesquisa-dores pode jogar luz sobre a trajetória acadêmica de Mary Dou-glas. Soma-se a isto o estudo das possibilidades de pesquisa (e financiamento) nas instituições britânicas de meados do século passado.

Acredito, mais do que isso, que seja razoável indagar, se-guindo a lição extraída desta análise da lógica institucional da antropologia britânica da época de Douglas, se uma pesquisa sobre tais questões, quando realizada por um antropólogo não britânico, pode ser conduzida de maneira singular. Problematizar as condições de pesquisa em um contexto extranacional e seus efeitos no trabalho produzido, tal como fui levado a fazer, pode levantar interessantes pontos teóricos e metodológicos a serem pensados. Ficou claro que os efeitos de uma pesquisa conduzida por um antropólogo brasileiro no Reino Unido não eram insig-nificantes, fosse pelo risco apresentado de uma investigação sobre a própria disciplina, ou pelos distintos interesses nas informações disponíveis – o que implicou, necessariamente, uma perspectiva negociada.

Durante minha pesquisa sobre o lugar do trabalho de campo na obra de Mary Douglas, dado o contexto do campo acadêmico e a inserção da antropóloga no mesmo, ficou evidente que, para-lelamente às diferenças teórico-metodológicas que surgiram em minha interlocução com antropólogos britânicos, que se refle-tem nas preocupações sobre o alcance do estudo do campo para compreender o rumo da carreira da autora e os sentidos de sua experiência na utilização de seus dados etnográficos, existiram

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ênfases distintas na análise das escolhas realizadas. Estas diferen-ças são vistas, por exemplo, nas interpretações sobre a noção de marginalidade – atribuição delicada no caso de uma pensadora tão influente.

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Simbiose, ambiguidade e assimilação:visões sobre a experiência judaico-alemã

Barbara Odebrecht Weiss

os judeus como objeto de interesse da antropologia

Há sem dúvida uma dissimetria entre pesquisadores e pesquisa-dos na antropologia. As chances de alguém se encontrar no primeiro grupo diminuem as chances de estar no segundo, e vice-versa. Este estado de coisas é fruto tanto do desenvolvimento histórico da dis-ciplina – quando ocidentais lançaram-se ao projeto da alteridade – quanto reflete (também) a dissimetria de poder em nosso mundo. Embora historicamente outros na Europa cristã, os judeus – em espe-cial os judeus asquenazitas101– consolidaram-se na antropologia como grandes, imprescindíveis nomes. Para ser absolutamente sucinta, cito como exemplos Claude Lévi-Strauss na França e Franz Boas nos Es-tados Unidos. Não à toa, a ascensão da disciplina deu-se em paralelo à ascensão dos judeus como ocidentais, ou seja, ao grupo dominante do sistema mundial102. A proeminência dos judeus asquenazitas na antropologia contrasta fortemente com o interesse tímido e restrito da disciplina pelos mesmos como um objeto de investigação103.

101 A questão pesquisada Nesse artigo refere-se em geral aos judeus asque-nazitas, que se gestaram como grupo entre a Europa Central e a Europa Oriental ao longo da Idade Média. Trata-se do grupo judeu dominante hoje nos Estados Unidos e mesmo em Israel.

102 A respeito do processo pelo qual os judeus tornaram-se ‘brancos’ ou ‘oci-dentais’ e sua ligação com a forte presença de judeus na antropologia esta-dunidense, ver Frank (1999).

103 Uma interessante discussão a respeito dos motivos que poderiam ter afas-tado os antropólogos de estudar judeus asquenazitas (os sefaraditas e orien-

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Ao que parece, os judeus europeus, que estiveram no epicentro das convulsões do ocidente no século passado, ‘pertencem’ às outras disciplinas das humanidades. Historiadores, sociólogos, cientistas po-líticos e filósofos se debruçaram sobre o seu processo de integração à sociedade ocidental. Não raro, tomam-nos em sua relação com o restante da sociedade ou com os estados nacionais como modelares da condição moderna. Como deverá ficar claro ao longo do texto, mui-tos destes teóricos recorreram – de maneira mais ou menos explícita – a elementos da antropologia para explicar um conturbado processo de construção identitária que escalou até a forma mais radical da al-teridade: o genocídio.

Nesse artigo procuro aproximar da antropologia estudos feitos sobre os judeus alemães, um importante subgrupo entre os asquena-zitas. Faço-o por meio da apresentação de balanços feitos por auto-res de outras disciplinas, buscando filtrar temas e conceitos que nos remetem imediatamente ao cânone da antropologia. Por último, o estudo deste grupo e das questões clássicas a ele relacionadas parece--me ser eloquente sobre a necessidade reiterada de manter aberto o trânsito entre os vários ramos das ciências humanas.

visões sobre os judeus alemães104

O judaísmo alemão como fenômeno histórico é apontado por Grossman (2000) como a possível maior clivagem no interior do judaísmo ocorrida na Era Moderna. Até hoje, o significado da aculturação/integração dos judeus nos estados nacionais – para a

tais constituem outro caso) encontra-se em Goldberg (1990). A respeito da questão correlata em Israel, ver Topel (1996).

104 Considero como judeus alemães não a totalidade dos judeus asquenazitas (literalmente em hebraico antigo: alemães), mas apenas aqueles que, após as inúmeras expulsões durante a Idade Média e início da Idade Moderna, perma-neceram ou voltaram aos territórios de língua alemã. A maioria dos autores está de acordo em ver semelhanças entre os acontecimentos no Império alemão e no Império Austro-Húngaro. Acredito que, para o escopo deste artigo, possa se falar dos ‘judeus alemães’ como um fenômeno que é comum a ambos os lados da fronteira entre Áustria e Alemanha.

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qual o caso judeu-alemão é tido muitas vezes como paradigmáti-co – é disputado zelosamente pelos estudiosos do judaísmo.

Os autores aqui selecionados trilham duas linhas básicas: aquela que se concentra no fracasso da experiência judaico-ale-mã, e Nesse sentido é descendente da crítica sionista, ou então aquela que se concentra em seus sucessos e produtos positivos.

A apreciação positiva da aculturação/integração dos ju-deus alemães está ligada a uma visão trágica sobre seu destino. O suposto desta é que eles estariam integrados à(s) sociedade(s) alemã(s). Como consequência, eles teriam tido uma existência criativa e satisfatória nos países de língua alemã antes da Shoá105 (Grossman, 2000:79). Os historiadores israelenses Shulamit Volkov, Frank Stern, Moshe Zimmermann, Avraham Barkai e Amos Elon encontram-se entre os expoentes desta vertente. Vale notar que todos eles descendem de judeus alemães. Significativa-mente, os três primeiros inclusive escrevem e publicam suas obras em alemão, mesmo sendo radicados em universidades israelenses. A estes autores é possível acrescentar o autor alemão não judeu Arendt Kremer.

Deste grupo, primeiro Kremer e por último a dupla Volkov e Barkai serão tema da minha reflexão. Busco extrair deles modelos ideais de interpretação da existência judaico-alemã, que não cor-respondem à complexidade de sua obra, mas que procuram deli-near seus posicionamentos. Como principal contraponto, apre-sento as ideias do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Apresen-to este autor, que ficou mundialmente conhecido por sua vasta obra, como exemplar de quem vê na experiência do judaísmo alemão o caminho para a decadência ou, mais radicalmente, para a aniquilação do judaísmo. O resgate da memória dos judeus ale-mães está, Nesse caso, inevitavelmente atrelado à Shoá. Hannah

105 Shoá (catástrofe, em hebraico) tem sido o nome preferencial de muitos historiadores recentes para designar o assassinato em massa dos judeus eu-ropeus durante o nazismo. Deseja-se assim contornar a conotação religiosa evocada pelo termo Holocausto (sacrifício, em hebraico).

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Arendt, ela mesma judia alemã, comparece como uma autora que inspira ainda hoje diferentes abordagens.

um novo contexto para o resgate dos judeus alemães

Enquanto a Shoá continua a ser um dos principais estímulos para o resgate dos judeus alemães, outros elementos emergem no atual contexto. No que diz respeito aos países de língua ale-mã, parte do impulso de voltar-se à história conjunta de judeus e alemães deve ser creditada à aspiração por ‘normalização’. Desta vez não se trata da ‘normalização’ dos judeus, tal como conce-beu o sionismo em seu princípio, mas por parte de alemães, que buscam reconstruir sua imagem, deteriorada pelo acontecimento excepcional do nacional-socialismo106. Nesse sentido, o Jüdisches Museum (museu judaico) em Berlim é uma construção emblemá-tica. Instalado em um edifício enorme, o museu foge da proposta de um Museu do Holocausto para cobrir a história conjunta de judeus e alemães. Sua proposta é, na verdade, ainda mais ousada, por traçar uma continuidade da presença judaica na Alemanha, desde a Idade Antiga107 até os dias atuais.

Também na Áustria existem movimentos que buscam res-gatar uma ‘história conjunta’ entre austríacos e judeus. Em se-tembro de 2008 foi realizado um grande festival de nome ‘spot on Jiddischkeit’. Como prelúdio para o evento, foi inaugurado em Viena um teatro judeu, que prometeu ser um espaço para a apresentação de peças em ídiche.

A leitura da história que, sem negar a Shoá, nem sua dimen-são cataclísmica, não a torna onipresente, é provavelmente a que está no interesse dos Estados alemão e austríaco. Tanto o Museu Judaico em Berlim quanto o Museu Judaico em Viena enfatizam

106 A Shoá como elemento central da identidade alemã no pós-guerra foi dis-cutida por Norbert Elias em Os alemães (1997).

107 Com este propósito expõe uma réplica do escrito do imperador Constanti-no aos decúrios de Colônia em que este menciona uma população judaica na Alemanha no ano de 321 E.C.

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a coexistência judaico-alemã. Da mesma forma, autores judeus que escreveram em língua alemã estão mais seguros do que nun-ca no cânone das literaturas nacionais. Nesse contexto, a posição de muitos autores judeus, notadamente de descendência alemã, acaba coincidindo com a visão representada pelo Estado alemão e influencia o resgate feito por eles.

É interessante estar atento a esta nova tendência, que vem produzindo alguns efeitos concretos na sociedade, quando pes-soas e instituições se utilizam de ponderações sobre este passado para continuar a construir a história. Assim, a abertura do se-minário rabínico Abraham Geiger há dois anos, o primeiro em solo alemão desde 1942, foi descrita pela rabina Julia Neuberger como o estabelecimento de uma escola nova, “mas com profun-das raízes históricas”108. Não é em vão que esta forma de entender o passado provenha de uma rabina cujos pais são judeus alemães. A experiência dos judeus na Alemanha é vista pela rabina como solução para a modernização. Solução para a vida na diáspora, solução para uma vida judaica integrada na sociedade não judia. Que na Alemanha esta possibilidade tivesse se desenvolvido faz do processo de integração na Alemanha um sucesso, um modelo.

É relevante lembrar que os ecos deste resgate não se limi-tam apenas a terras alemãs. Pois, como afirma Steer (2006), nos Estados Unidos muitos estudiosos voltam-se para a experiência judaico-alemã. Segundo a autora, trata-se Nesse caso de ‘encon-trar antepassados’ para o próprio sentimento de bem-estar e in-tegração que experimentam. A experiência judaico-alemã antes da ascensão do nacional-socialismo é vista como modelar de uma identidade judaica que interpreta o judaísmo como uma confis-são ou passado étnico, ambos compatíveis com a atual nacionali-dade não judaica. A ampla ‘modernização’/adequação da religião e do rito judaico, bem como a mais elaborada das teorizações

108 Disponível em: http://www.opendemocracy.net/faith-aboutfaith/jewish_german_3922.jsp. Acessado em 5 de maio de 2008.

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deste tipo de identidade judaica, teriam suas raízes nos países de língua alemã .

a simbiose judaico-alemã ontem e hoje

Entre aqueles autores e atores sociais que defendem a pre-servação de uma história conjunta entre judeus e alemães, bem como a influência positiva de um sobre o outro, os mais entu-siastas, como a rabina Neuberger, resgatam uma ideia que foi e continua a ser por muitos, a exemplo do intelectual sionista Gerschom Scholem (1897-1982), classificada como um mito: a simbiose judaico-alemã.

Por mais que a simbiose judaico-alemã possa ser apenas um mito, os mitos são passíveis de orientar as ações e os sentimentos humanos. E por mais surpreendente que possa parecer em re-trospecto, em contato com arquivos do início do século XX109 é possível ver quão forte era esta ideia.

Na biologia, simbiose quer dizer a convivência de dois orga-nismos diferentes, que produz um benefício para ambos. A ex-pressão simbiose judaico-alemã sugere que estes dois grupos se frutificaram mutuamente. Em termos sociais, tal ideia implica que não apenas os judeus estiveram interessados em se adequar e se incorporar à cultura alemã, como isto também foi verdade para os alemães, ou ao menos parcelas deles.

O auge da ideia da simbiose equivale a pensar que os ju-deus não se sentiam apenas bem como cidadãos de fé mosaica na Alemanha e na Áustria, mas também culturalmente, até gene-ticamente se sentiam próximos dos alemães. Esta concepção está exposta pelo autor alemão Arndt Kremer (2007: pp.1-2). Para ele, que crê na plausibilidade desta modalidade da simbiose, ela

109 Refiro-me a jornais sionistas que pesquisei, e que abrangem o período entre a fundação do sionismo moderno em 1897 e o início da Primeira Guerra Mundial em 1914. Eles estão disponíveis no arquivo digital cujo endereço é: www.compactmemory.com.

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serve inclusive como estímulo para ler a história judaica. O autor não lê a história judaica a partir da Shoá, mas lê a Shoá a partir desta que considera ser a história judaico-alemã. A Shoá aparece, Nesse caso, não como o ápice de um desenvolvimento, mas como um fenômeno brutalmente surpreendente e até inesperado. Esta postura diante da Shoá repõe o assombro com que a maioria dos judeus europeus de então reagiu a ela110. Significativo Nesse contexto é que Kremer chama o grupo conhecido na literatura de maneira mais geral como ‘judeus alemães’, de alemães judeus (jüdische Deutsche).

Como Grossman (2000) nota, a referida relação genética en-tre judeus e alemães não esteve, nem mesmo no discurso dos seto-res mais liberais da sociedade alemã, associada ao casamento. Os casamentos mistos – que sem dúvida ocorreram – foram apenas uma consequência, possivelmente indesejada, deste construto. A relação genética deveria se dar, de fato, em um plano puramente ideal, por afinidade de ideias. O acaso ou a conveniência política encerrados na convivência entre judeus e alemães são assim apro-ximados do mito: da fatalidade que encerra um sentido também para o futuro. No caso de judeus e alemães produz-se uma nar-rativa que aproxima ‘o povo dos filósofos’ ao ‘povo do livro’ por meio de suas supostas predisposições intrínsecas.

No contexto da história de judeus e alemães, esta predisposi-ção de ambas as partes para frutificarem-se culturalmente ganhou o nome de ‘Wahlverwandtschaft’, termo comumente traduzido no Brasil por ‘afinidades eletivas’, mas cujo sentido literal está mais próximo de ‘parentesco por escolha’. Este termo pertencia à nascente disciplina da química e fora trazido para as humani-dades pelo maior ícone poético da Alemanha, Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), como título de um romance.

110 Para maiores detalhes sobre a reação dos judeus alemães contemporâneos à Shoá, consultar, por exemplo, a parte II de Reich-Ranicki (2005). A mãe do próprio autor negou que a Shoá pudesse ser possível até ser levada por um trem a um campo de extermínio.

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Como testemunho deste parentesco por escolha, Heinrich Heine (1797-1859) explicou em seu estudo Sobre as mulheres e meninas de Shakespeare, no início do século XIX, que judeus e alemães tinham então tantos conflitos não por causa de suas di-vergências, mas por causa de suas semelhanças, tão profundas que

dever-se-ia considerar a antiga Palestina como uma Alemanha oriental, e a Alemanha atual como o lar do povo escolhido, como terra mãe dos profetas, como fortaleza da espiritualidade pura111. Hoje, tanto a rabina Julia Neuberger quanto o historiador

Frank Stern esperam, assim como o Jüdisches Museum em Ber-lim, que na convivência atual entre judeus e alemães possam ser resgatados aspectos desta mistura especial, calcada em uma afini-dade frutífera para judeus, alemães e para o mundo112.

Para Frank Stern, mesmo que se faça sempre necessário reite-rar que se trata de uma relação entre vítimas e culpados durante o nazismo, a Shoá é uma catástrofe também para a Alemanha. Considerando a importância de judeus na cena cultural alemã, Stern fala de uma ‘Entkulturierung’ no nacional-socialismo, ou seja, de uma regressão cultural da República Federal Alemã em relação à República de Weimar. Por último, Moshe Zimmer-mann, sociólogo nascido em Israel de pais alemães, afirma que, mesmo depois da Shoá, Heimat (lar, pátria em alemão) é um

111 Tradução minha de: “(dass man) das ehemalige Palästina für ein orientali-sches Deutschland und das heutige Deutschland für die Heimat des heiligen Volkes, für den Mutterboden des Prophetentums, für die Burg der reinen Geist-heit halten sollte”. O texto encontra-se originalmente em um artigo de Max Nordau no periódico sionista Die Welt (caderno 36, ano 1989), intitulado ‘Deutschtum und Judentum’, em que ele pede aos judeus que revejam a crença na afinidade com os alemães.

112 A quantidade excepcional de cientistas e literatos que provieram de um meio “simbiótico” judaico-alemão é o tema de Amos Elon em ‘The Pity of It All: a Portrait of the German Jewish Epoch,1743- 1933’ (2004), bem como em Willi Jasper, Deutsch-jüdischer Parnass (2004).

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conceito no plural. Hamburgo é para ele “lar, casa”, assim como Jerusalém113.

arendt: raízes do antissemitismo e questões internas

Hannah Arendt e Zygmunt Bauman voltam-se aos judeus alemães com uma pergunta subjacente: quais questões inerentes a esta experiência dos judeus nos países de língua alemã pôde levar a um desfecho em que a ‘solução’ para ‘a questão judaica’ tivesse de ser o extermínio?

Embora seja difícil avaliar em que medida estas obras podem ser consideradas teleológicas, note-se que o nexo que as guia é o contrário daquele proposto por Kremer ou Stern. Nesse caso, trata-se de encontrar sentidos para o passado a partir da catástro-fe, mais do que de explicar a catástrofe apesar do passado.

Hannah Arendt (1906-1975) é a única autora falecida con-siderada Nesse artigo, não em vão. Seus trabalhos causaram uma celeuma no interior do judaísmo, com destaque para Eichmann em Jerusalém (1963)114. Suas provocações e questionamentos es-tão presentes hoje ainda, como a geração mais nova atesta expli-citamente. As questões aqui tratadas são retiradas dos ensaios que compõem a primeira parte de As Origens do Totalitarismo, intitu-lada ‘O antissemitismo’. Publicado em 1951, no momento ime-diatamente posterior à Shoá, quando esta ainda era um tabu para judeus e não judeus, As Origens antecipou a animosidade em tor-no de Eichmann e rendeu a Arendt a crítica de ser ‘inimiga do seu próprio povo’115. Como parte de seu projeto para compreender o antissemitismo, a autora apontou e criticou problemas internos

113 Ver entrevista concedida e disponível em: http://www.religionen.at/irzim-mermann.htm. Consultado em 16 de janeiro de 2009.

114 Para um panorama do intenso debate envolvendo Eichmann, ver Endel-man (1991).

115 Uma versão bastante atenuada desta crítica encontra-se no primeiro en-saio de Volkov (2001).

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ao judaísmo. E, em última instância, buscou compreender, mas não perdoar, o genocídio, em um momento em que a compreen-são já parecia insultuosa diante de um fato que era inexplicável e para o qual as palavras pareciam inadequadas. A análise histórica de Arendt passa por um intrincado de considerações de ordem material, bem como de ordem simbólica.

Durante a Idade Média e início da Idade Moderna, uma elite judaica havia funcionado como judeus de corte, que deviam fide-lidade pessoal a reis, príncipes e imperadores, a quem empresta-vam dinheiro, e para quem vestiam e alimentavam exércitos. Este grupo era um grupo de exceção – um grupo privilegiado – que podia funcionar apenas porque estava separado religiosamente dos cristãos. Daí, diz Arendt, o zelo com que os nobres europeus tratavam a integridade do judaísmo, e faziam questão de que os ‘seus judeus’ preservassem seus ritos e sua identidade. O antijuda-ísmo na Idade Média não estava ligado ao ódio contra este grupo de judeus privilegiados, porque aquela sociedade aceitava o privi-légio como princípio ordenador. Os pogroms e expulsões medie-vais estavam ligados a questões locais mais diretas, que utilizavam o discurso religioso como verdade e que se voltavam contra os judeus pobres, que eram marginalizados pelas mesmas regras que favoreciam os judeus de corte.

Na Idade Moderna, os nobres perderam espaço para os es-tados nacionais, que abraçavam mais poderes e funções, em um processo de centralização que culminaria no monopólio da força (Weber, 2004) e no monopólio da lealdade (Bauman, 1999). Os judeus de corte passaram a funcionar como banqueiros que fi-nanciavam os exércitos, mas agora em nome dos Estados. Como o montante de dinheiro ficava cada vez mais expressivo, os judeus que antes se mantinham conectados a judeus por toda a Euro-pa passaram a descolar-se destes e a constituir praticamente uma aristocracia. A distância social e geográfica entre privilegiados e excluídos aumentava assim. Não obstante a distância geográfica e social que separava este grupo privilegiado dos demais judeus, estes banqueiros sentiam-se como se fossem os seus patronos e

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também tinham interesse na manutenção da identidade judaica, que justificava aos olhos do mundo a separação com os demais e era a base de seus próprios privilégios.

Com o Iluminismo e seu ápice, a Revolução Francesa, um novo padrão impõe-se na Europa. Igualdade passa a ser a or-dem do dia. Como em tantas outras circunstâncias históricas, os decretos que derrubavam os privilégios pouco podiam fazer para derrubar da noite para o dia formações econômicas e sociais historicamente constituídas. O Estado francês revolucionário deixou claro aos judeus que não toleraria “uma nação dentro da nação” (ou seja, precisamente aquilo que antes era o desejável).

Mas os Rothschild na França e por toda a Europa continua-ram a manter suas relações próximas com o Estado, porque eram então o único grupo capaz de fazê-lo. A emancipação que signifi-caria melhoras na vida da maioria dos judeus significaria a perda de privilégios da elite judaica. Ao mesmo tempo, ela não foi ca-paz de dissolver de imediato as relações econômicas privilegiadas que esta elite mantinha com o Estado. No entanto, o Estado já não era responsável pela segurança dos judeus. No século XIX o desequilíbrio entre riqueza e quase nulo poder político daria margem aos ataques ideológicos dos antissemitas.

a ambiguidade da emancipação e da incorporação segundo arendt

A Revolução Francesa e o império de Napoleão foram a gota d’água política para as ideias iluministas que já vinham propondo uma solução para ‘a questão judaica’. Em 1791 foi concedida a emancipação aos judeus na França, por meio de um ato definiti-vo. Desta forma, foram abolidas de uma só vez as restrições que pesavam principalmente sobre os judeus pobres, como a proi-bição da posse de armas e a proibição de adquirir terras, entre outros. Já na Prússia, no entanto, várias idas e voltas marcaram o processo de emancipação, que entrou para a historiografia com o epíteto de incompleto e, mais precisamente, de ‘ambíguo’. Aren-

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dt contribuiu para cunhar termos capitais com os quais tantas vezes é descrita a moderna condição judaica, tais como dubie-dade e ‘ambiguidade’ (equivocality), bem como para dar-lhes um sentido específico.

Para Shulamit Volkov (2000), o Estado prussiano foi pene-trado precocemente pelas ideias iluministas, o que o havia levado a conceder a emancipação antes mesmo da França. Para Arendt, no entanto, as leis emancipatórias prussianas da primeira metade do século XIX, quem dirá aquelas antes da Revolução, na verda-de utilizavam uma linguagem moderna para continuar a benefi-ciar os ‘seus judeus’ e, portanto, manter o status quo. O mesmo era verdade para o Império Austro-Húngaro. Para a filósofa, a negação do acesso de judeus aos serviços públicos, inclusive na carreira universitária, fazia parte da estratégia do Estado prus-siano em evitar ou ao menos postergar a assimilação dos judeus, quando estes perderiam as características que os faziam valiosos como financiadores (separação da sociedade e rede de parentesco espalhada e unida por um código de ética próprio).

Mesmo fazendo parte dos países que Arendt considera re-trógrados, a Prússia passou a chamar a atenção dos judeus de toda a Europa pela feição de sua proposta de incorporação dos judeus à nação alemã, que tinha em seu centro, segundo Norbert Elias (1997), os conceitos da Bildung e Kultur. Para o autor, es-tes conceitos haviam surgido num contexto amplo de definição da nação alemã encabeçado pela classe média, que rejeitava os valores afrancesados das cortes em um tempo em que a França representava uma ameaça militar. Os hábitos das cortes foram então considerados artificiais e antinaturais. Estes valores apenas impunham regras arbitrárias que visavam estabelecer hierarquias entre as pessoas e não promoviam aquilo que se esperava de Bil-dung: a perfectibilidade humana, o conhecimento genuíno, a ex-pressão da individualidade. Em oposição ao francês utilizado pe-las cortes, o alemão foi alçado a tesouro nacional e a um veículo de suma importância para a Bildung. A classe média dos Estados alemães era alheia à intenção da nobreza prussiana de manter os

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privilégios dos judeus por meio de sua situação legal e religiosa diferenciada.

Esta forma de imaginar a nação alemã, quase um século an-tes da unificação política, era muito convidativa para os judeus (Volkov, 2001). Um aspecto que Elias116 não ressalta, mas Arendt sim: o projeto era atrativo em especial para os judeus pobres e remediados, distantes da relação com a aristocracia. Os judeus alemães entregaram-se com afinco à tarefa de provar sua adesão à nação alemã, e os clássicos da literatura alemã, Goethe, Schiller, Lessing, foram quase que sacralizados. De fato, existia um propó-sito, um projeto de assimilação e adequação dos judeus alemães, desejosos de se integrar (Grossman, 2000: 94).

Para Arendt, no entanto, o fenômeno da intelectualidade de classe média que se interessava pelos judeus permaneceu sem-pre marginal. Ela tem os salões intelectuais de Berlim, como os da salonière judia Rahel Varnhagen, em mente. Lá era possível diagnosticar a ‘ambiguidade’ que esteve presente desde o início e por muito perduraria do lado dos alemães. Na voga da aber-tura humanista ao conhecimento dos povos, que encontrou em figuras como Herder e os irmãos von Humboldt sua máxima ex-pressão, intelectuais alemães tinham expectativas pouco flexíveis em relação aos judeus. Por um lado, esperavam que estes fossem exóticos, que guardassem uma pureza ou uma excepcionalidade ausentes nos cristãos. Por outro lado, esperavam deles um padrão ‘decente’, civilizado, valores elevados e – poder-se-ia acrescentar – alemão impecável.

Segundo Grossman (2000), Moses Mendelssohn serviu de modelo para o judeu romantizado que corresponde a um destes

116 Norbert Elias não tem os judeus como objeto principal de investigação. Nesse artigo, ele comparece de forma a complementar os argumentos de Arendt no que diz respeito ao contexto alemão da época. A menção de Volkov, de quem trato ao final do artigo, também tem como propó-sito completar, esclarecer o raciocínio por vezes um tanto exigente de Hannah Arendt.

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aspectos desejados ou requeridos no judeu para Hannah Arendt. O paradigma se construiu com a peça de Lessing, Die Juden, em que uma personagem, nitidamente baseada no Mendelssohn de carne e osso, encarna uma série de virtudes não propriamente judaicas, mas universalmente abstratas e elevadas. Nas palavras de Arendt:

Em nenhum outro país houve qualquer coisa parecida com o cur-to período de verdadeira assimilação tão decisiva para a história dos judeus alemães, quando a verdadeira vanguarda de um povo não apenas aceitou os judeus, mas pareceu até estranhamente ávida para associar-se a eles (1976:65)117.

A avidez, no entanto, era frágil, pois servia aos seus próprios interesses. Não surpreende que esta imagem do judeu idealizada por Lessing tenha podido ser impiedosamente achincalhada nos palcos por dramaturgos antissemitas posteriormente. Os judeus tornaram-se reféns de uma imagem social.

a assimilação como armadilha

Para o sociólogo Zygmunt Bauman o fenômeno histórico do judaísmo alemão é modelar para entender a relação entre o Es-tado nacional e as minorias étnicas na modernidade. Para os fins deste artigo, interessa estar atento a este contexto e verificar como afinal ele constrói a sua visão dos judeus alemães.

Bauman lança seu olhar sobre a racionalidade especificamen-te moderna que surge na Europa por volta do século XVII, a qual se confundiu com o ímpeto compulsivo de classificar usan-do como ferramenta uma dicotomização incessante. Aquilo que

117 Tradução minha de: “In no other country had there been anything like the short period of true assimilation so decisive for the history of German Jews, when the real vanguard of a people not only accepted Jews, but was even strangely eager to associate with them”.

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escapasse à classificação era visto como uma ameaça à raciona-lidade e visto com horror. O ator moderno mais poderoso que incorporou este princípio foi o Estado, ao qual Bauman chamou de ‘Estado jardineiro’, enquanto o inclassificável eram as ervas daninhas que teriam de ser arrancadas do jardim para que reinas-se a ordem que fazia o mundo inteligível às mentes modernas, acostumadas ao raciocínio dicotômico e exclusivo do ‘ou isto, ou aquilo’.. O Estado moderno trabalhava não apenas com podero-sos exércitos e finanças, mas os empregava de acordo com uma racionalidade específica, que viria a espraiar-se sobre os demais âmbitos da sociedade moderna.

Bauman explica o surgimento daquilo que é conhecido na bibliografia sobre nacionalismos como ‘comunidade de destino’, um dos índices capitais para definir o conceito de nação. Para Bauman, ela nasce da tomada de consciência da artificialidade das ordens, em contraste com o período pré-moderno, em que a ordem das coisas era tomada como natural. Esta consciência a faz lançar-se a um ímpeto classificatório que, de resto, é comum a todas as comunidades humanas e uma função mesma da lin-guagem. A empreitada moderna, no entanto, consciente de seus atos, teme constantemente a desordem, a possibilidade de fracasso da tentativa de impor a ordem. Como classificação alguma pode dar conta do fluxo do ser, seu esforço deixa necessariamente para trás áreas cinzentas, que não se encaixam na classificação: áre-as, pessoas, fenômenos ambíguos. Sociologicamente, Bauman identificou estes ‘restos não classificáveis’ ou elementos ambíguos com os judeus alemães.

O sociólogo judeu polonês Zygmunt Bauman é um grande herdeiro da posição defendida por Gerschom Scholem durante as primeiras décadas do sionismo e descrita belamente em sua autobiografia De Berlim a Jerusalém. Para Bauman, na esteira de Scholem, não houve na Alemanha ou na Áustria simbiose, mas o seu avesso. O autor lembra que na biologia assimilar quer dizer ‘incorporar’, ‘tornar semelhante’. Peço licença para emprestar as

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palavras de Bourdieu, um autor caro à antropologia, e que pare-cem sintetizar o tom do texto de Bauman:

(...) qualquer unificação, que assimile aquilo que é diferente, en-cerra o princípio da dominação de uma identidade sobre a outra, da negação de uma identidade sobre outra (Bourdieu, 2005:129).

A princípio, os estados nacionais modernos convidaram os judeus a assimilarem-se, como uma consequência lógica da emancipação. Esta assimilação não passaria, porém, para Bau-man, de uma armadilha, pois impossível de ser realizada nos ter-mos propostos pelo Estado nacional alemão.

Com a emancipação, os poderes comunais autônomos ha-viam sido subtraídos. Aos judeus fazia-se necessário jogar o jogo do Estado e ser assim determinado a partir de fora. Como con-sequência, tratou-se de um movimento unilateral: os judeus de-veriam moldar-se aos alemães. E isto significava despir-se de si mesmo para tentar copiar, imitar o comportamento do outro.

E para moldar-se, os judeus alemães deveriam despir-se de toda a herança que traziam consigo. Bauman é, portanto, um destes autores que considera ter sido o projeto de Moses Men-delssohn, ao traduzir a Torá para o alemão e demandar que os judeus adquirissem Bildung, um projeto de autoimplosão do ju-daísmo. A perda demográfica dos judeus na Alemanha deve-se à assimilação, à passagem para o campo dominante não judeu. Sem representantes, o judaísmo está fadado ao desaparecimento.

Diferente do alemão para o francês e do francês para o ale-mão, que se viam como ‘o outro de mim mesmo’, o judeu era ora ‘outro’, ora ‘eu mesmo’. Nem claramente europeu, nem cla-ramente não europeu, nem cristão, nem pagão, ora alemão, ora francês, ora russo. Para Bauman, o judeu passou a ser o ‘estranho’ da Europa, o paradigma do inclassificável. A teoria da inclassifi-cabilidade como resíduo sórdido da empreitada moderna talvez ilumine o paradoxo de terem sido odiados os judeus tanto por se-

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rem responsáveis pelo capitalismo quanto pelo socialismo quan-do estes agentes eram antagonistas perfeitos no século XIX e XX.

A sociedade alemã não aceitou o judeu que se encaixava tão mal nas classificações nacionais modernas, e sua reação a esta anormalidade que desafiava a razão foi o horror. O problema da assimilação é que o comportamento dos judeus, não obstante, nunca seria aprovado. Ele seria sempre identificado como ‘não natural’. O inclassificável, ou o ‘estranho’, desencadeava reações mais violentas do que aquilo que se prestava a uma classificação negativa, mas certa.

Tanto para Hannah Arendt quanto para Gerschom Scholem, judeus alemães que acabaram por se alinhar ao sionismo muito antes da ascensão do nazismo, a emancipação já havia trazido o isolamento social. Em sua autobiografia, Scholem (1994) re-lembra como havia uma percepção dominante entre os judeus de estarem bem integrados à sociedade alemã, e se considerarem alemães, quando na verdade, se se atentasse bem, apenas famílias judias eram amigas de famílias judias. A aceitação na sociedade alemã não passou, para o autor, de uma quimera, um autoengano produzido pelos próprios judeus, iludidos demais para absorver a realidade.

A Alemanha em que queriam se integrar existia essencialmente na sua fantasia coletiva (Bauman, 2003:134).

Por último, para Bauman (assim como para Scholem), a Shoá é vista como a prova cabal da inviabilidade de uma noção positiva da história conjunta de judeus e alemães.

rebeldia contra a oposição intransponível entre ‘judeu’ e ‘alemão’

Entre a simbiose e o fracasso existe uma terceira versão so-bre a história judaico-alemã. Em essência, tanto Shulamit Volkov quanto Avraham Barkai negam que a incorporação dos judeus à

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sociedade alemã tenha sido em primeiro lugar apenas um deixar levar-se pelas pressões externas, e um consequente abandono de si. Para estes autores, a maioria dos judeus alemães não deixou de ser judia, sequer tiveram esta intenção em algum momento. Na verdade, eles se rebelavam contra a dicotomização de conservado-res e antissemitas que discernia sempre entre judeus e alemães. A invenção do judeu alemão é a criação de uma cultura em que esta conciliação seja possível. Shulamit Volkov acredita que muito se deixou de avançar no entendimento dos judeus alemães porque além de reproduzir as posições teóricas do passado, reproduziu-se inclusive a terminologia que então dividiu aqueles atores sociais (2000:120). A palavra ‘assimilação’ é possivelmente a mais repre-sentativa entre essas.

Para a autora, o judaísmo nos Estados alemães do final do século XIX parecia-se mais com um sistema cultural, no senti-do geertziano, fruto de um projeto judaico de inserção em uma sociedade moderna. Os judeus não eram alemães que se diferen-ciavam dos outros apenas por sua fé, porque a religião naquele momento não representava uma opção individual nem somente de foro íntimo, a despeito da ideologia liberal que assim o pre-gava. Também para os católicos e os protestantes ela significava uma rede específica de relações sociais e comportamentos, ou en-tão éticas diferentes, para evocar mais especificamente o quadro conceitual weberiano. Sem dúvida o intuito expresso do judaís-mo reformado, ao qual se filia hoje a rabina Julia Neuberger, era transformar o judaísmo em uma questão pura de confissão. Para fazê-lo, no entanto, seus organizadores arranjaram uma rede tão ampla de divulgação, inclusive com institutos e imprensa, que ajudaram a definir o espaço do sistema cultural. O ‘isolamento so-cial’ denunciado por Scholem é percebido por Volkov como uma rede de relações sociais preferenciais, comum a todas as confissões em todos os Estados modernos.

O historiador Avraham Barkai disse-se surpreso com a fal-ta de estudos sobre o CV, (Centralverein der Deutschen Bürger

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Jüdischen Glaubens)118, que foi a “maior e mais representativa associação judaica em território alemão” (1998:112)119. Fundado em 1893, foi praticamente contemporâneo do Primeiro Con-gresso Sionista (1897) e deveu-se à necessidade de unir forças para combater o antissemitismo. Segundo Avraham Barkai, seu mais insistente fio condutor até 1933 foi a negação da dicotomia e a afirmação de uma identidade ao mesmo tempo judaica e ale-mã. É certo que, dependendo das circunstâncias políticas, uma ou outra identidade ganhava mais acento, sendo a raison d’être da associação a constante busca por conciliação. Barkai consi-dera que por meio do CV a maioria dos judeus alemães estava organizada politicamente para defender a identidade que havia escolhido para si.

Para Shulamit Volkov, a assimilação, ou melhor, a integração dos judeus nas sociedades de língua alemã não é um projeto que propõe o desaparecimento do judaísmo. Pelo contrário, tratar--se-ia de uma condição para a invenção de um novo judaísmo120. Na verdade, a incorporação às nações europeias, em especial a alemã, teria sido uma condição obrigatória para que os judeus como coletividade pudessem entrar na modernidade, sendo que esta tem para a autora uma conotação positiva, bem como os ideais iluministas que respaldaram a emancipação. Em Volkov, antissemitismo e modernidade convivem, mas não se confun-dem. A Shoá não é, para a autora, um sintoma da modernidade, já que esta compreende também os ideais iluministas que até hoje possibilitariam a integração de minorias étnico-nacionais aos Es-tados nacionais. A Shoá é, no máximo, o sintoma de um dos aspectos da modernidade: o pensamento conservador e racista.

118 ‘Associação central dos alemães de fé mosaica’, tradução minha. 119 Embora sediada na Alemanha, ela tinha um alcance considerável também

na Áustria.120 Para Shulamit Volkov o desfecho da história judaico-alemã com o nazismo

também é surpreendente, tal como para Kremer (2000:167).

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Já os Estados Unidos seriam uma espécie de ‘Alemanha que deu certo’. Lá os judeus encontraram acolhida como minoria e pude-ram integrar-se a partir dos preceitos desenvolvidos na Haskalá, a Ilustração judaica.

um encontro possível

O estudo do processo judeu/alemão em pauta Nesse artigo, acompanhado de preocupações caras à antropologia, é apenas uma das vias de entrada possíveis para integrar o estudo dos ju-deus asquenazitas ao arcabouço teórico da disciplina. Atente-se que a integração de minorias aos estados nacionais ao redor do globo, bem como os problemas e possíveis violências a elas rela-cionados, compõem algumas das preocupações da antropologia atual. A experiência judaico-alemã, profusamente estudada em outras disciplinas, em parte utilizando conceitos que dialogam diretamente com a antropologia, oferece um caso para estudo no seio da sociedade ocidental. A partir da comparação e contraste deste com outros casos, distantes no tempo e no espaço, é possí-vel construir uma ponte entre as disciplinas e avaliar em profun-didade semelhanças e diferenças entre sociedades tidas como ‘não ocidentais’, tradicionais objetos da antropologia, e ‘ocidentais’, tradicionais objetos das outras ciências humanas. Além disso, a meu ver, este ponto de encontro é privilegiado para se apreende-rem noções como as de modernidade e integração, assim como para analisar os discursos sociais que acompanham estes proces-sos.

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Etnologias em trânsito: contribuições dos estudos contemporâneos sobre os ameríndios para a compreensão do contexto do Sul de Moçambique

Luiz Henrique Passador

introdução

O trabalho aqui apresentado procura indicar caminhos que venho percorrendo desde o início das investigações para a minha tese de doutorado, a respeito das medicinas tradicionais e suas imbricações no trato com a epidemia de HIV/Aids no Sul de Moçambique, mais especificamente no Distrito de Homoíne, na Província de Inhambane121.

121 O trabalho de campo foi realizado entre março de 2007 e fevereiro de 2008, financiado por uma bolsa sanduíche concedida pela Capes através do Programa de Estágio de Doutorando no Exterior - Balcão. Esse período foi precedido por duas viagens ao Sul de Moçambique, em 2003 e 2005, tendo recebido auxílio da Fundação Ford do Brasil para as passagens da segunda viagem. Retornei a campo para coleta complementar de dados bibliográficos, históricos e de campo, no período de novembro de 2008 a fevereiro de 2009, sob minhas próprias expensas. A pesquisa foi inicial-mente orientada pelo Dr. Omar Ribeiro Thomaz e posteriormente pela Dra. Mariza Corrêa, no PPGAS-Unicamp, com co-orientação da Dra. Te-resa Cruz e Silva no Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduar-do Mondlane. Agradeço as críticas e comentários a este texto por parte de Iracema Dulley, Marta Jardim, Christiano Tambascia e os demais colegas que participaram do GT na VIII Reunión de Antropologia del Mercosur, de 2009, em Buenos Aires, Argentina, que deu origem a esta coletânea.

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Os dados etnográficos e históricos que colhi em minha pes-quisa, assim como a revisão da produção antropológica sobre aquela área, demonstram que é possível reinterpretar e rever as teorias sobre o parentesco e a cosmologia associada ao curandei-rismo122, à feitiçaria e às guerras naquela região a partir das críti-cas e modelos surgidos nos estudos ameríndios.

Tal percepção abriu-me a possibilidade de explorar as con-tribuições da produção etnológica contemporânea sobre as terras baixas da América do Sul, que partiu de uma crítica às teorias africanistas das linhagens em finais dos anos 1970123, para desem-bocar em análises que se debruçam sobre a importância da afini-dade na estruturação do parentesco e das relações sociais entre os grupos ameríndios, inclusive relativas ao trato com os inimigos e à guerra.

Grosso modo, tenho apostado na possibilidade de estabelecer pontes e diálogos teóricos entre o Sul de Moçambique e as terras baixas da América do Sul. Esse tipo de tentativa dialógica entre teorias sobre diferentes áreas etnográficas já tem sido feita por vários antropólogos em estudos comparativos que estabelecem pontes entre a Melanésia e as terras baixas sul-americanas e entre a Melanésia e a África, a partir de questões relativas às noções de pessoa, corpo e gênero (e.g. Gregor e Tuzin, 2001; Lambek e Strathern, 1998), além dos estudos comparativos e contribui-ções entre a Melanésia e as terras baixas que cito no texto que se segue124.

122 Utilizarei por vezes o termo curandeirismo para me referir à medicina tra-dicional em função de ter me deparado com essa categoria êmica na área que pesquisei.

123 Refiro-me aqui à crítica seminal elaborada em artigo sobre a noção de pes-soa entre os indígenas brasileiros (Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, 1979).

124 Assumo aqui os riscos apontados por Héctor Guerra, em seu texto que compõe esta coletânea, de estar a fazer uma espécie de tráfico de categorias analíticas “ocidentais” para compreender contextos “periféricos”. Contu-do, acredito que esse é um caminho possível na tentativa de se compre-

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No início de minhas investigações, mais exatamente quan-do comecei a pensar na possibilidade dessa ponte teórica, antes mesmo de ir a campo, fui advertido por alguns professores e co-legas sobre os riscos de reler uma tradição teórica tão sedimenta-da como o africanismo pela ótica de outra tradição (Nesse caso, a americanista). Algumas dessas advertências assumiam quase o tom de acusações por heresia – utilizar conceitos como “preda-ção” e “pacificação de inimigos pela aliança”, caros à atual etno-logia americanista, era visto quase como desrespeito (por vezes, o mero pronunciar dos termos causava reações de desaprovação). A maioria apontava o caminho da prudência: procurar na própria literatura africanista os caminhos para solucionar certos impas-ses entre teoria e dados com que eu me deparava. Conforme fui insistindo e as minhas proposições ganhavam um pouco mais de consistência e coerência, fui percebendo que meus interlocuto-res passavam a perceber as possibilidades que elas traziam. Hoje vejo colegas que estudam Moçambique – com quem discuti mi-nhas ideias e proposições antes mesmo de começar a publicá-las – compartilhando não apenas o léxico dos estudos ameríndios em suas análises sobre o contexto moçambicano, mas também assumindo algumas perspectivas que eu propunha serem possí-veis. Isso, a meu ver, indica que o caminho tomado não era sem sentido.

Que fique claro que não proponho um transporte mecâni-co e completo de um modelo teórico surgido nas etnografias de uma área para outra, mas procuro fazer um uso crítico e caute-

ender, pelas relações contrastivas que um método comparativo permite, aquilo que é categoria local e formas “nativas”, permitindo também que se critiquem (através da própria crítica que compõe os modelos teóricos que emprego) outras categorias “ocidentais” que acabaram por construir etnologicamente o Outro africanista que se estabeleceu dentro da tradição africanista ocidental, principalmente a partir da antropologia britânica. Christiano Tambascia, em seu texto na coletânea, lança instigantes luzes sobre a constituição institucional e teórica de um africanismo “britânico”.

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loso de algumas proposições e soluções para certos problemas e impasses teóricos que minhas leituras e meus dados impuseram. O que me interessou, desde o início de minhas investigações, foi buscar caminhos para compreender o que alguns autores africa-nistas, como David Webster (1976) e Hammond-Tooke (1984), já apontavam em textos das décadas de 1970 e 1980: em alguns grupos da África Austral, como os Chopi de Moçambique e os Zulu da África do Sul, as linhagens não operam da forma estru-turada que os modelos teóricos clássicos preveem, sendo muito mais fluidas ou até praticamente inexistentes. Até mesmo Evans--Pritchard (1982 [1950]) apontou que entre os Nuer, um gru-po não meridional (o que indica que o problema pode ser mais amplo no contexto africano), as linhagens operam muito mais como argumento político do que como sistemas que organizam a vida do grupo o tempo todo e em todas as instâncias da vida social. Por fim, no estudo de Alcinda Honwana (2002) que cito repetidamente adiante, os dados sobre a descendência de espí-ritos dentro de um grupo “linhageiro” no Sul de Moçambique mostram que ela ocorre tanto pelo lado paterno quanto pelo lado materno, não operando como uma patrilinhagem clássica que a própria autora pressupõe existir – foi a leitura desse estudo, aliás, muito antes de minha ida a campo, que me impôs a necessidade de buscar alternativas para reinterpretar a operacionalidade das linhagens naquela área. Sendo a crítica à teoria das linhagens o ponto de partida de uma série de estudos sobre as terras baixas sul-americanas, desembocando em novas proposições teóricas para abordar os dados etnográficos, pareceu-me rentável explorar se as respostas que eles davam a esse problema na América pode-riam iluminar o problema que se colocava para mim num cam-po africano. Partindo desse ponto, pude também explorar outras questões que os estudos sobre grupos ameríndios levantaram, como aquelas relativas ao gênero e à presença de uma cosmologia guerreira, para tentar compreender o contexto sul-moçambicano.

A meu ver, o que isso aponta é que há diálogos possíveis a serem explorados entre diferentes áreas etnográficas e as teorias

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que emergem de seus estudos. Nisso não há grande novidade, se atentarmos à história da antropologia, e é nisso que tenho apos-tado em minhas pesquisas.

Deparei-me algumas vezes com o estranhamento de colegas em relação ao uso que faço de teorias produzidas por “brasileiros” (como é o caso de boa parte da produção etnológica atual sobre os grupos ameríndios) para se estudar grupos não “brasileiros” (como os sul-moçambicanos). Outro fato que várias vezes pare-ceu estranho para alguns é que antropólogos “brasileiros” façam pesquisas num contexto africano e não no próprio Brasil, um objeto tão “tradicional” da etnologia quanto o continente africa-no. É, para estes, um estranho trânsito de uma “periferia” a outra – o que de fato era uma novidade há até pouco tempo – e que vi causar em alguns colegas brasileiros o questionamento sobre estarmos talvez praticando uma antropologia “neocolonial”. Para estes, de colonizados, estaríamos nos tornando “neocolonos” no continente africano, inseridos mesmo no fluxo de “cooperação internacional” entre Brasil e Moçambique, que resulta em gran-de presença de técnicos e empresas brasileiras naquele país, sem haver uma contrapartida simétrica.

É bastante óbvio que esses estranhamentos todos emergem do (já nem tanto) inusitado que esses fatos trazem consigo e se apoiam na ideia de que há antropologias “nacionais”125 e áreas et-

125 Enfrentei essa questão já em minha dissertação de mestrado, sobre Herbert Baldus. Ele foi um etnólogo alemão, formado na Alemanha, naturalizado brasileiro, que desenvolveu suas pesquisas e carreira no Brasil e formou uma geração de antropólogos “brasileiros” – como Darcy Ribeiro e Flores-tan Fernandes, por exemplo – que se valiam de teorias “estrangeiras” para analisar contextos “brasileiros” e construir a “antropologia brasileira”. É in-teressante – embora não espantoso – como a categoria “estrangeiro”, dentro de uma disciplina “ocidental”, incorpora a nacionalidade como marcador e categoria analítica importantes para identificar tanto seus praticantes, quanto suas escolas de pensamento, de uma forma que chega mesmo ao essencialismo. De minha parte, em minha pesquisa tive que repensar e desnaturalizar a noção de “estrangeiro” visto que, para os sujeitos que pes-

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nográficas bastante bem delimitadas e impermeáveis à aplicação deste ou daquele modelo teórico.

No mais, o próprio discurso antropológico sobre o “respeito à diversidade” parece alimentar os temores que “ousadias” desse tipo causam. É, de fato, sempre temerário transpormos discus-sões e temas surgidos numa área etnográfica para outro contexto, pois o risco é o de incorrermos no etnocentrismo ou em gene-ralizações infundadas. Cabe sim ao antropólogo estar constante-mente atento a isso, mas acredito nas possibilidades de diálogos frutíferos entre “tradições” e teorias antropológicas.

O meu ponto de vista é que a antropologia sempre se ali-mentou de trânsitos e diálogos – é já um lugar-comum dizermos que a própria disciplina surgiu do trânsito e do diálogo entre “civilizações” (assimétrico, na maior parte das vezes). Se dessas trocas emergirem novas possibilidades de compreensão da “diver-

quisei, estrangeiro é todo aquele que simplesmente vem de fora, como discutido mais adiante no texto, e não necessariamente o portador de uma nacionalidade e/ou uma língua diversas. Os marcadores de alteridades e nacionalidades eram outros, como bem experimentou Luena Pereira em Angola (ver seu texto nesta coletânea). Nas discussões de outros textos desta coletânea, a questão da nacionalidade também aparece de forma cla-ra como marcador importante e componente crucial das negociações dos antropólogos em seus trabalhos de campo ou nos transportes de perspec-tivas teórico-metodológicas, porém em contextos de pesquisa “ocidentais” (como no caso de Tambascia, Cioccari e Bittencourt). Já Barbara Weiss se depara com outro tipo de dificuldade também bastante comum nesses trânsitos teóricos, que é a de transpor as fronteiras estabelecidas entre dis-ciplinas para legitimar seu estudo como “antropológico”. Ao que parece, nos contextos de pesquisa “ocidentais” a nacionalidade assume contornos, sentidos e importância diversos daqueles que encontrei em meu campo, menos “ocidentalizado” e bastante cosmopolita. Como “brasileiro” em Moçambique, eu era mais comumente interrogado sobre as telenovelas do que sobre as minhas filiações teóricas “nacionais”. O mais importante para meus sujeitos de pesquisa era o fato de eu ser mulungo, termo que se referia tanto ao fato de eu ser branco, quanto estar ligado a um universo urbano. Quanto aos meus interlocutores acadêmicos em Moçambique, meus apor-tes teórico-metodológicos sempre foram bem recebidos.

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sidade” que encontramos (ou construímos em nosso ofício), que irão operar no sentido de tornar mais claras certas questões rela-tivas a essas diferenças, então o que se alcançará será aquilo que acredito buscarmos como antropólogos. E isso de forma não in-gênua. “Traficar” teorias pode de fato trazer confusões e prejuízos aos sujeitos de nossas pesquisas, ao invés de boas compreensões, quando esse “tráfico” não é suficientemente criterioso. Contudo, quando feito dentro dos limites do bom senso, da ética e do es-tudo cuidadoso, esse trânsito pode agregar pontos de vista que permitam complexificar e contribuir para o exercício de compre-ensão do Outro e seu contexto. Portanto, o que se busca de forma resumida no texto que segue é justamente isso: agregar discussões e análises que permitam reler dados e teorias, procurando agregar pontos de vista “americanistas” que se mostrem produtivos no esforço de compreensão dialógica e antropológica do contexto do Sul de Moçambique.

parentesco, gênero e curandeirismo

O que me levou a repensar os dados sobre o Sul de Moçambi-que, principalmente os expostos por Alcinda Honwana (Honwa-na, 2002) sobre as medicinas tradicionais tsonga126 naquela área, foi a leitura da monografia de Cecilia McCallum sobre os Cashi-nahua (McCallum, 2001), mais especificamente sobre o papel da afinidade no trato com os inimigos e sua consanguinização como forma de incorporação e pacificação destes. As semelhanças descritas por Honwana e McCallum entre os Tsonga e os Cashi-nahua, respectivamente, na utilização dos mecanismos de clas-sificação dos inimigos como afins e sua posterior incorporação através da aliança, pareceu-me permitir uma reinterpretação váli-

126 O etnônimo Tsonga designa um conjunto vasto e diverso de povos que ocupavam a região Sul de Moçambique antes da invasão nguni no século XIX e que ainda hoje é utilizado por vários autores para se referirem aos grupos etnolinguísticos que se encontram naquela área.

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da da dinâmica social tsonga pela lente das terras baixas, no que se refere à estruturação das medicinas tradicionais e seus sujeitos através da cosmologia e do parentesco. Mais que isso, pareceu--me possível recorrer à produção etnológica contemporânea so-bre as terras baixas, e sua crítica (por vezes estereotipada demais) aos esquemas africanistas, para repensar a análise africanista num campo africano mesmo. Essa transposição da crítica americanista para o campo africanista parece conter um potencial de revisão das teorias clássicas sobre o parentesco africano, que reconhe-cem a preponderância da linhagem e da descendência sobre a afinidade na organização do parentesco e das relações sociais nas sociedades africanas. Para tanto, recorri à fonte primordial das análises de McCallum, que vem a ser as proposições de Eduardo Viveiros de Castro (2002) a respeito da problemática da afinida-de entre os povos das terras baixas – juntamente com as contri-buições de Marilyn Strathern a respeito do gênero na Melanésia (Strathern, 1988).

Embora os objetos privilegiados das investigações de Mc-Callum entre os Cashinahua sejam as questões relativas ao gê-nero e à socialidade, a autora aponta para o papel fundamen-tal da noção de afinidade potencial para a compreensão de tais fenômenos, partindo das análises de Viveiros de Castro acerca dessa problemática. Reconhece que a alteridade e a afinidade são os elementos cruciais que dinamizam a economia simbólica das relações sociais e da socialidade, uma vez que é a alteridade o sen-tido fundamental inscrito na afinidade, tanto mais na categoria de afim potencial; a semelhança (e a identidade grupal, pode-se deduzir) se constituiria como tal por processos de incorporação e consanguinização do outro (seja afim, inimigo, espírito e/ou animal), constituindo um campo social que emerge do outro para definir o mesmo, de fora para dentro. Assim, o parentesco emerge dessa socialidade governada pela alteridade expressa ide-almente na categoria de afim potencial.

A asserção, baseada em Strathern, sobre a configuração es-sencial da afinidade entre homens (“male-male affinity”) ser so-

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mente produtiva através da afinidade entre homens e mulheres (“male-female affinity”), dentro do esquema same-sex e cross-sex, permite-nos pensar o caso das curandeiras no Sul de Moçambi-que (descrito por Honwana) como a realização possível da afini-dade essencial entre homens através da afinidade entre homens e mulheres. Uma vez que as curandeiras se constituem como espo-sas de espíritos que se casam com os espíritos inimigos que ata-cam um grupo de descendentes para vingar suas próprias mortes, causadas por antepassados desse grupo, elas transformam esses espíritos em inimigos pacificados, de cura e proteção, que serão transmitidos dentro dos grupos de descendência aos quais foram incorporados pela aliança. Parece bastante claro que a aliança ma-trimonial constitutiva dessas curandeiras – qual seja, entre uma jovem do grupo familiar com o espírito vingativo vindo de fora, a fim de pacificá-lo e incorporá-lo à parentela –, corresponde à lógica de transformação da diferença hostil em semelhança po-tencial, através da transformação de afins potenciais em parentes, que McCallum observa entre os Cashinahua. Isso impõe o reco-nhecimento do feminino como possibilidade da pacificação e in-corporação de inimigos aos núcleos de descendência, da mesma forma que abre a possibilidade de se reconhecer que é também o feminino aquele que pode desagregar e repor a hostilidade pela desconstrução das alianças pacificadoras – sendo as doenças os principais sintomas da presença de malefícios e hostilidades espi-rituais127. Essa ambiguidade do feminino está explicitada na pre-ponderância das mulheres tanto como curandeiras quanto como feiticeiras – fato apontado por Honwana e observado por mim em minha pesquisa de campo.

Outra asserção de McCallum permite pensar o nexo cons-titutivo das curandeiras como uma incorporação do externo ao interno, novamente operada pela lógica da transformação da

127 A respeito da relação entre o feminino e as doenças por feitiçaria, ver Pas-sador 2008a, 2009a e 2009b.

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diferença em semelhança através da transformação do inimigo em consanguíneo, num sentido de pacificação e neutralização da hostilidade do Outro, inimigo potencial. A autora se refere àqui-lo que Viveiros de Castro define como gradiente de diferença entre o exterior e o interior extremos, traduzidos num esquema concêntrico pela linguagem do parentesco, que vai do inimigo ao consanguíneo, numa sequência de transformações de categorias de alteridade absoluta em direção ao parentesco, cuja expressão máxima de semelhança é a consanguinidade. Essa mesma lógi-ca, e seu aspecto gradiente, parecem estar presentes na transfor-mação que os Tsonga fazem dos espíritos inimigos estrangeiros, primeiro em afins potenciais, depois em afins reais ou efetivos e, finalmente, em espíritos incorporados à linhagem de descen-dência, a qual será daí por diante protegida por ele. Ou seja, na construção do parentesco por aliança temos a desconstrução do inimigo, através da pacificação operada pela afinização e consan-guinização dos mesmos. Portanto, os pares alteridade-semelhan-ça, afinidade-consanguinidade e interno-externo operam entre os Tsonga de formas bastante similares àquelas observadas nas terras baixas, como deixam transparecer as comparações.

A proposição de Viveiros de Castro de que a Amazônia deva ser tomada como uma rede de relações entre grupos di-versos corresponde, guardadas as particularidades, à observação de Honwana de que o Sul de Moçambique é um complexo de relações interculturais postas em movimento pela guerra nguni. Carlos Fausto (Fausto, 2001), assim como Viveiros de Castro, afirma a centralidade da guerra na constituição das socialidades e dos sistemas de parentesco e xamanismo entre os ameríndios. A rede de trocas interculturais ou interétnicas desencadeada pelas guerras nas duas áreas permitiu a constituição de uma economia simbólica de alteridades, expressas em termos de inimizades, hos-tilidades e exterioridades, que dinamizam as relações internas aos diversos grupos, resultando na construção do campo social e suas estruturas de fora para dentro. Num cenário desses, as relações entre o dentro e o fora se constituem como paradigmáticas na

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constituição das relações cosmológicas e de parentesco internas aos diversos grupos, sempre remetidas ao referencial externo. Isso parece ser tanto válido para a Amazônia como para o Sul de Mo-çambique.

Portanto, a afinização dos espíritos inimigos/estrangeiros e sua incorporação como espíritos aparentados pode ser interpreta-da como o mecanismo por excelência que permitiu “costurar” as relações interétnicas no Sul de Moçambique (e mesmo construir as fronteiras que hoje se reconhece entre grupos etnolinguísti-cos), tanto ao nível espiritual quanto ao nível político, construin-do redes e definindo as fronteiras sociais dos grupos postos em relação e a hierarquia que se estruturou no trato com as diferen-ças. A consanguinidade e a descendência, por si só, não permiti-riam solucionar essa questão. Mas, por outro lado, parecem ter se alimentado dessa operacionalidade que a aliança e a afinidade permitem para se acomodarem internamente como “corporações de parentesco” dentro dos grupos etnolinguísticos, porém sem-pre em relação aos inimigos/estrangeiros. Portanto, de fora para dentro, novamente. E através da afinidade.

Outro aspecto que merece atenção é a questão da catego-ria que determina os espíritos incorporados como parentes pelas mulheres curandeiras. O esquema tsonga parece realizar plena-mente a consanguinização dos inimigos, uma vez que eles têm sua transmissão regida pelo mecanismo de descendência inter-na às linhagens. Porém, um espírito nguni ou ndau permanece enquanto tal, mesmo sendo sucessivamente transmitido dentro da linha de descendência tsonga. Portanto, ele sempre carrega consigo a carga de alteridade que o define originalmente como inimigo/estrangeiro, ou seja, afim potencial. Assim, a consan-guinização de fato não se completa no caso dos Tsonga, sendo perpetuado o estatuto de afim para os espíritos originalmente não linhageiros. Essa aparente contradição pode ser explicada e solucionada pela proposição de Dumont que Viveiros de Castro cita, de que “a aliança pode ser um princípio de perpetuação tão eficaz como a descendência, (...) a primeira como um pendant da

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segunda: transmite-se a afinidade como se transmite a consangui-nidade – e a transmissão da consanguinidade não está claramen-te distinta da ideia-instituição da descendência” (in Viveiros de Castro, 2002:99). O que parece claro, de qualquer forma, é que a transmissão dos espíritos não se dá como consanguíneos dentro das linhagens, mas como afins aparentados, o que os mantém como inimigos potenciais uma vez que não desconstrói por com-pleto sua alteridade e externalidade ao grupo.

Outra possibilidade de explicação desse fenômeno se dá pela utilização da noção de cognação proposta por Viveiros de Castro. Para o autor, há confusão entre consanguinidade e cognação, uma vez que a última se caracteriza como categoria de corresidentes não necessariamente consanguíneos. Ou seja, cognatos podem ser afins aparentados, diferenciados em relação aos “de fora”. A cognação como corresidência estaria assim definida pela oposição dentro/fora. A utilização dessa categoria soluciona a contradição da incorporação linhageira sem respeitar a patrilinearidade rígi-da, ao menos no nível sincrônico. O que parece ocorrer entre os Tsonga, no que diz respeito à incorporação e descendência dos espíritos, é semelhante ao esquema cognático e concêntrico pro-posto por Viveiros de Castro.

Cognação e gradiente de diferenças parecem ser noções que permitem dar conta de um certo “afrouxamento” do sistema de parentesco, uma abertura para fora e para além da patrilinearida-de e patrilateralidade, no que se refere à categorização e à classifi-cação dos espíritos entre os Tsonga. Sua perpetuação diacrônica, dentro das linhagens, ocorre como afins, que demandam cons-tantes procedimentos de consanguinização através da aliança, sem contudo realizar tal potencial por completo. No plano sin-crônico da relação com o exterior, os espíritos se mantêm como inimigos, afins potenciais ou, no máximo, afins aparentados, que demandam constantes processos de apaziguamento e incorpora-ção de fora para dentro, ordenados por graus de alteridade. O que se está querendo propor aqui é que no plano cosmológico tem-se uma estrutura de relações, historicamente construída no

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período das guerras pré-coloniais, que não é governada pela ló-gica da descendência linhageira, e sim pela lógica da cognação e da aliança. O curandeiro seria o responsável, no plano da expe-riência cotidiana e sincrônica, pela constante mediação e recom-posição das relações entre exterior e interior, inimigos e cognatos. Os mecanismos e fórmulas do parentesco e da afinidade que o constituem enquanto sujeito, e que ele manipula na solução de crises espirituais, se assemelham, em termos lógicos, ao esquema concêntrico ameríndio proposto por Viveiros de Castro.

A aliança e a afinidade, no sistema tsonga, não ocupam po-sições apenas secundárias, como seria o caso de sociedades regi-das pela lógica das linhagens. É possível até suspeitar que essa tipificação clássica não dê conta da complexidade que pode ha-ver mesmo nas sociedades regidas pela lógica da descendência, a não ser no que se refere ao plano local. Ao nível supralocal, como sugere Viveiros de Castro, a aliança e a afinidade são cru-ciais. E ao pensarmos no plano espiritual e cosmológico, somos inescapavelmente remetidos ao exterior das fronteiras do socius, onde a consanguinidade tende a subordinar-se à afinidade como mecanismo relacional com a alteridade definidora e inerente a esse campo. O parentesco parece subordinar-se a outras lógicas e sistemas quando se coloca a relação com o exterior, ocorrendo um “englobamento dessa dimensão por outros circuitos de troca simbólica” (Viveiros de Castro, 2002: 107). Parece bastante plau-sível afirmar que a guerra se sobrepõe ao parentesco na constru-ção sociocultural e etnolinguística do Sul de Moçambique, o que nos permite pensar que o parentesco opera fundamentalmente como um idioma ou linguagem a partir do qual é possível pensar e categorizar as relações cruciais com o exterior, não o contrá-rio. Assim, a lógica do parentesco está fora dele, e encontra-se nas guerras e alianças pré-coloniais que constituíram aquela área etnolinguística – ou na própria guerra, tomada como princípio lógico e categoria transcendente que se atualiza e organiza os sis-

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temas que operam na área128. Como propõe Viveiros de Castro, deve-se atentar para não procedermos a um “achatamento das sociedades (...) à dimensão do parentesco” (op. cit.: 107). O prin-cípio constituinte da alteridade encontra nele uma possibilidade de expressão e agenciamento, mas não se subordina a ele; ao con-trário, o parentesco é que tende a ser englobado por tal princípio. E para dar conta da expressão de tal princípio nas relações sociais, a afinidade é uma noção potencialmente mais lógica que a con-sanguinidade.

Olhando o problema por essa ótica, a medicina tradicional entre os Tsonga ganha contornos e sentidos que Honwana não percebe. É bastante claro que o parentesco dá forma e sentido, constrói e estrutura o campo médico tradicional, mas operando muito mais como linguagem que permite expressar dimensões que estão aquém e além do parentesco e, portanto, podendo modificá-lo por princípios mais elementares. E os princípios fun-damentais parecem ser mesmo os da alteridade e da exterioridade num campo definido por uma rede de relações interétnicas posta em movimento pelas guerras pré-coloniais no Sul de Moçambi-que. Enfim, o fundamento cosmológico de tal matriz social é a guerra, que define e dinamiza as categorias que constroem a ma-

128 É notável como várias das falas que ouvi em campo remetiam-se a guerras determinadas (“a guerra do Gungunhane”, “a guerra civil”, “a luta de liber-tação nacional”), articulando-as como se fossem distintas, mas ao mesmo tempo fossem também uma mesma guerra, estabelecendo um continuum de sentido entre elas. Honwana (op. cit.) chama atenção para o fato de que, no plano da medicina tradicional e de seus usos durante e após a guerra civil, havia uma percepção de continuidade entre as guerras civil e de in-vasão nguni. Vale notar também que a Renamo, durante a guerra civil, utilizava a língua dos Ndau como língua oficial, para marcar diferença e opor-se ao changana, língua do grupo etnolinguístico das principais lide-ranças do Partido Frelimo de então (cf. Honwana, 2002 e Geffray, 1991). A força simbólica e política dessa escolha remetia à resistência e tenacidade dos Ndau frente aos Nguni e aos Tsonga que a eles se submeteram, fato histórico que deu origem aos Changana no Sul de Moçambique.

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triz social que se observa no Sul de Moçambique. E a guerra tem por fundamento a inimizade potencial e ontológica do Outro.

Retomando a questão das relações de alteridade entre o den-tro e o fora, no que concerne às práticas médicas tradicionais e às relações com os espíritos, há uma outra frente que pode ser explorada entre os Tsonga a partir da produção etnológica so-bre as terras baixas sul-americanas. Esta é a questão da feitiçaria, que parece guardar em si o sentido da alteridade, da inimizade e da externalidade extremas, impossíveis de serem incorporadas no esquema das alianças, e que se constituem na ponta externa do gradiente de diferenças, cujo componente significativo fun-damental é expresso nos termos do canibalismo e da predação. Sobre isso, os aportes da etnologia das terras baixas não devem ser desprezados e podem permitir uma importante contribuição teórica para o campo africanista, ao menos no que diz respeito ao Sul de Moçambique.

Se por um lado os curandeiros têm a função de mediação entre o dentro e o fora, entre os consanguíneos e os inimigos, a partir do campo social interno, por outro lado os feiticeiros apa-recem como categoria impossível de ser incorporada enquanto elemento interno. Se os curandeiros se constituem internamen-te a partir da incorporação dos inimigos e afins potenciais, os feiticeiros são determinados por espíritos inimigos irredutíveis e incapazes de serem pacificados e incorporados pelos mecanismos de afinização, cognação ou consanguinização. Nesse sentido, os curandeiros são “sociais” – atuam no sentido de recompor as de-sordens em termos de recomposição dos sistemas e relações de-finidos e reconhecidos pelo grupo –, ao passo que os feiticeiros são “antissociais” – ameaçam a própria existência social e humana dos homens, conduzindo-os para uma externalidade extrema e pré-cultural. Essa parece ser a oposição fundamental que deli-mita e diferencia a medicina tradicional e a feitiçaria, enquanto categorias, entre os Tsonga. O que não quer dizer que, na prática, essas categorias ideais não se misturem e os curandeiros não se-jam vistos e temidos como produtores e fornecedores de feitiços,

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como já discuti em outros textos publicados anteriormente (Pas-sador, 2009a e 2009b). Aqui estou marcando mais a categoriza-ção ideal e estruturante que estabelece esses campos teoricamente distintos do que tratando da ruptura dessas fronteiras na prática cotidiana dos sujeitos que observei.

Minha intenção é pontuar o caráter não social ou “antisso-cial” que define os espíritos na feitiçaria – marcados pela exter-nalidade e pela anterioridade. Eles não pertencem a linhagens ou grupos étnicos definidos, como aqueles que constituem o sistema médico tradicional. Parecem regidos por uma lógica mais ele-mentar, não redutível ou traduzível em termos de sistemas sociais e história. Estão no campo de uma alteridade elementar, absoluta e original, que engloba todos os sistemas e categorias sociais e remete ao canibalismo e à morte – e à morte por canibalismo – como expressão e fundamento. Ora, não é difícil pensarmos tal esquematização nos termos da predação proposta por Viveiros de Castro, como o princípio fundamental que estabelece o gradien-te de alteridade e origina e engloba todas as relações sociais no campo ameríndio. Há um componente de canibalismo na cos-mologia tsonga que pode ser localizado e categorizado como o limite extremo da alteridade e do próprio humano, organizadores e estruturadores do socius, que encontra expressão na feitiçaria.

Diferentemente do que ocorre dentro do circuito espiritual in-terétnico no qual os Tsonga estão imersos, os espíritos dos feiticeiros não são afinizáveis, nem incorporáveis à linhagem; apenas podem ser combatidos e neutralizados pelos espíritos linhageiros e afinizados, permanecendo fora dos domínios do parentesco. A afinidade (mais a potencial do que a efetiva), que categoriza os espíritos manipula-dos pelos curandeiros, aparece como possibilidade de administrar os inimigos externos, os mortos e a própria morte, que são de teor extremo nos espíritos manipulados pelos feiticeiros – espíritos estes que foram “dessocializados”, desconstruídos como pessoas sociais. A afinidade, regida pela aliança, parece ser a categoria por excelência da relação e da transmutação possíveis entre o fora e o dentro, entre o inimigo e o parente, entre a morte e a vida, cuja expressão extrema de

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periculosidade aparece em termos de predação e canibalismo, expres-sos na guerra e na feitiçaria – “antissociais” por definição e, por isso mesmo, princípios que geram e estruturam as alianças de fora para dentro129.

guerra, cosmologia, ontologia, curandeirismo e feitiçaria

Com relação à cosmologia, à ontologia e aos sistemas sociais iden-tificados como “tradicionais” entre os Tsonga, que permitem compre-ender a lógica que governa as noções de feitiçaria e curandeirismo, é possível encontrar na história das guerras no Sul de Moçambique as raízes dessas ordens e compreender sua lógica e operacionalidade130.

129 A meu ver, é exatamente essa a raiz que erige a situação que Héctor Guerra encontra (e se espanta com ela) entre os magermanes de Maputo, no seu texto que compõe esta coletânea. Atravessando supostas fronteiras entre urbano e ru-ral, entre “moderno” e “tradicional”, entre os “prés” e “pós” que a historiografia “ocidental” costumou traçar para entender Moçambique, tem-se as mesmas on-tologia e cosmologia persistentes a permearem as socialidades e agenciamentos que se observam naquele contexto. Ademais, é importante que se diga, catego-rias como “moderno” e “tradicional” eram utilizadas pelos sujeitos de minha pesquisa de forma êmica (o que não significa que compreendam essas categorias da mesma maneira que os discursos acadêmicos e políticos propõem, como já discuti em outro artigo [Passador, 2009b]). É justamente essa persistência que me interessa compreender, não como persistência de formas inalteradas, mas como marco que permitiu aos sujeitos produzir as transformações naquilo que é “ocidental” e “moderno” no Sul de Moçambique, produzindo aquele contexto histórico, político e social. A atualidade da feitiçaria como categoria utilizada pelos sujeitos para construírem discursiva e pragmaticamente seus conflitos – desde as questões relativas às doenças até a relação com o dinheiro (cf. Passador, 2009b) – revela exatamente, a meu ver, a importância de se atentar para as persistências e entendê-las em seus termos e proposições.

130 Os dados que se seguem sobre o período pré-colonial e suas guerras foram co-letados de uma série de estudos publicados e de documentos constantes no Ar-quivo Histórico de Moçambique da Universidade Eduardo Mondlane, em Ma-puto. Das fontes publicadas, ressalto as obras de António Rita-Ferreira (1975, 1982a e 1982b), Gerhard Liesegang (1986a e 1986b) e o primeiro volume da história de Moçambique produzido pelo Departamento de História da Univer-sidade Eduardo Mondlane (Departamento de História, Universidade Eduardo Mondlane, 2000).

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Constituída como uma área de invasão e ocupação durante o perío-do pré-colonial por vários povos vindos do sul, do oeste e do norte, tem-se que pensar a formação do Sul de Moçambique a partir das guerras de ocupação, que estabeleceram as dinâmicas das relações e a matriz social que operam na região. Antes mesmo do mfecane e da instalação do império de Gaza sob Ngungunyane (ou Gungunhane, a grafia varia bastante nas fontes), a região experimentou uma série de invasões e assentamentos de vários povos que se sucederam como “donos da terra”. É nesse ponto que se pode compreender a raiz da noção de conquista e posse do território como dado que se sobrepõe às noções de descendência agnática, aliança matrimonial e herança de bens e as organiza. As relações de ocupação e posse dos territórios foram marcadas pela subordinação e vassalagem dos derrotados. O ápice desse regime foi conhecido sob o domínio de Ngungunyane, de origem nguni (zulu), que herdou e ampliou o domínio iniciado por seu avô Shoshangane (ou Manicusse) e sucedido pelo irmão de seu pai (Mawewe) e por seu próprio pai (Muzila). As formas de pa-cificação, dominação e subordinação encontravam na vassalagem e nas alianças matrimoniais seus principais mecanismos de realização. É assim que as relações entre os Vanguni131 (que dominaram o Sul de Moçambique), os Vandau (que foram levados da região do Cen-tro para o Sul pelos Vanguni, para auxiliá-los a dominar e ocupar aquela área), e os Tsonga (dominados e subordinados aos Vanguni e Vandau) ordenaram as relações hierárquicas e espirituais que dão origem à atual medicina tradicional da região. Portanto, é a guerra o princípio histórico e lógico que ordena as concepções cosmológicas que dão origem ao curandeirismo. A cura tradicional opera como um processo de pacificação de espíritos causadores de malefícios, no qual espíritos vanguni, vandau e os tinguluve (espíritos dos antepassados tsonga) atuam de formas específicas na resolução dos problemas e desordens. Da mesma forma, os feitiços são concebidos como ata-ques de espíritos vingativos ou manipulados por inimigos, remeten-

131 O prefixo va- indica plural.

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do a feitiçaria a um processo cujo sentido é a agressão, a predação e a guerra132. Por outro lado, as alianças matrimoniais operam como mecanismos de pacificação e estabelecimento de alianças mais amplas entre grupos. Uma das maneiras de os Tsonga, derrotados, estabe-lecerem relações pacíficas durante a invasão nguni era casarem suas mulheres com homens vanguni e vandau (processo que originará as curandeiras anteriormente citadas). São essas alianças matrimoniais que permitiram a posse da terra, a integração pacífica – ainda que hierárquica – desses grupos “estrangeiros” aos grupos de descendência agnática no Sul de Moçambique, e cujos espíritos transmitidos pela via do parentesco deram base à formação dos curandeiros atuais. O que se tem diante desse quadro histórico e social é a constituição de uma ontologia baseada no pressuposto da guerra e do inimigo como elementos que desencadeiam socialidades, nas quais o sentido pri-mordial é o de pacificação hierárquica de inimigos. Assim operam a medicina tradicional e o parentesco (através das alianças matrimo-niais). Assim também se concebe a feitiçaria e toda sorte de malefício que seja experimentado como relação interpessoal e que coloque em risco as alianças que constituem as socialidades, os sujeitos e sua ga-rantia de posse pacífica sobre bens conquistados. Por isso encontrei em meu trabalho de campo um paralelo estrutural nos discursos so-bre a guerra civil, a feitiçaria e a criminalidade. Nessas falas, cujo teor

132 António Rita-Ferreira (1975) e David Beach (1984) apontam para uma reveladora raiz etimológica dos termos que designam o feiticeiro na região Sul de Moçambique e entre os Shona do Zimbábue, respectivamente. O primeiro chama atenção para a coincidência do termo wuloyi e seu plural valoyi com o nome de um dos grupos invasores no período pré-colonial, os Baloyi, que eram guerreiros temidos e deram origem aos Makwakwa. Beach, por sua vez, vê relação semelhante entre o termo rozwi, que desig-na feiticeiro, e os Rozwi, que construíram um império e eram bastante temidos. Ainda segundo Rita-Ferreira (op. cit.), parte dos Rozwi migrou para a zona de Inhambane e foi esse grupo shona-karanga que deu origem aos Baloyi. A ideia de feitiçaria, portanto, parece intimamente relacionada com as guerras do período pré-colonial, sendo uma forma de caracterizar o inimigo predador “de fora”.

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é a representação da violência predatória de seus agentes, refere-se ao inimigo (seja feiticeiro, “bandido”133 ou “matsanga”134) como alguém que age de forma imprevisível, sorrateira e certeira. Por isso também o feitiço e o curandeirismo operaram como armas durante a guerra civil e são objeto de queixas levadas ao poder judiciário135. Por isso, enfim, teme-se a todos por princípio (principalmente os vientes136) e o feitiço é um pressuposto da agência de qualquer sujeito, que deve ser objeto de constante vigilância, suspeita e ações de pacificação através do estabelecimento de laços de parentesco, amizade formal, vizinhan-ça pacífica e troca de nomes (constituindo os xarás137), alianças que garantem a persistência da ordem conquistada e da posse de bens por parte de seus “donos”. No entanto, essas alianças não desconstroem

133 Termo genericamente utilizado para se referirem a criminosos de todo tipo. Não é pouco significativo o fato de ter sido utilizada a expressão “bandidos armados” para se referirem aos soldados da Remano durante a guerra civil.

134 Termo utilizado para se referir aos soldados da Remano. A raiz etimológica é o nome do primeiro líder da Renamo, André Matsangaíssa.

135 Assisti a julgamentos no Tribunal Distrital de Homoíne nos quais acu-sações de feitiçaria por vezes compunham as acusações das vítimas em relação aos réus. Nessas circunstâncias, as autoridades jurídicas tomavam como procedimento usual o encaminhamento do caso à Ametramo (Asso-ciação dos Médicos Tradicionais de Moçambique) para que fosse julgado e solucionado pelos curandeiros, no que diz respeito ao seu teor de alegada feitiçaria. O caso era então reencaminhado para o tribunal, a fim de dar prosseguimento aos procedimentos jurídicos laicos que os códigos civil e penal permitem julgar em Moçambique.

136 Viente é o termo usado para se referir aos que vêm de fora. É equivalente a estrangeiro, por exemplo. Viente pode ser qualquer sujeito que provenha de uma outra região, seja um país estrangeiro ou uma localidade vizinha.

137 A respeito dos usos do termo xará e do papel dos parentes agnáticos, dos matrilaterais, dos vizinhos e dos amigos formais, ver a obra de David We-bster (1976). Xarás são indivíduos que compartilham o mesmo nome por conta de negociações entre doadores e receptores desses nomes. A troca de nomes estabelece uma forma de aliança que estabelece um xará como uma espécie de parente do outro. O mesmo ocorre com vizinhos e amigos formais.

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por completo o inimigo virtual pressuposto em cada sujeito e a am-bição que ele porta, o que parece apontar para o fato de haver nessa área uma ontologia calcada na guerra e na noção de inimigo. A meu ver, é essa a raiz das suspeitas e acusações de feitiçaria que recaem principalmente sobre familiares e vizinhos e, preferencialmente, sobre as mulheres, como pude observar em meu trabalho de campo. Num regime de descendência agnática, são as mulheres que são incorpo-radas por alianças matrimoniais, provenientes de outros grupos de descendência e, nesse sentido, são tão vientes quanto vizinhos, amigos e estrangeiros. No entanto, estão mais próximas que estes, conhecem os espíritos dos antepassados que protegem as famílias às quais foram incorporadas e sabem o valor das posses que essas famílias acumulam, podendo lançar mão de feitiços movidos pela ambição e de forma mais eficaz. Por isso oferecem maior risco. Na lógica em que esse es-quema opera, um inimigo, quanto mais próximo, mais perigoso se torna. Ouvi de um jovem de vinte anos que chegou a classificar-me como “amigo” uma frase que talvez resuma o princípio que governa as relações interpessoais nesse ambiente. Ao explicitar sua desconfian-ça em relação à natureza da minha presença no campo, afirmou: “é preciso desconfiar para poder confiar”.

O que tal matriz revela é uma lógica específica de trato com as tensões e conflitos que resultam de relações assimétricas relacio-nadas com as trocas e posses e que remete, portanto, às alianças e ao parentesco, assim como às demais formas de socialidade na área. Há que se buscar, portanto, nos fundamentos ontológicos e cosmológicos dessas formas de socialidade as explicações para uma persistência das lógicas calcadas na feitiçaria e na agência de espíritos predadores.

Pensar um regime histórico de conflitos e contatos com al-teridades que se inicia com o encontro colonial é perder de vista que tal regime é anterior à colonização e que o trato sistêmico com conflitos e alteridades organizou-se em termos cosmoló-gicos e ontológicos em períodos anteriores, que já colocavam a mesma problemática de incorporação de inimigos e estrangei-ros predadores. As transformações no Sul de Moçambique não

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principiaram com a chegada dos colonos portugueses, da mesma forma que não cessaram com a independência do país. Anterior à alteridade do colono e do “sistema ocidental”, os povos do Sul de Moçambique constituíram-se num processo de invasões e guer-ras que definiram seu regime de trato sistêmico com o Outro. A meu ver, a própria relação dos povos do Sul de Moçambique com os colonizadores deveria ser investigada nos termos da vas-salagem pré-colonial, que historicamente pode ter emprestado ao colonizador uma legitimidade que se reconhece na área àqueles que se tornaram “donos da terra” através de guerras de conquis-ta. Olhando a questão pelo ângulo das estruturas políticas e de poder pré-coloniais, poderíamos nos perguntar se os vassalos de Ngungunyane não teriam se articulado como vassalos dos portu-gueses após a derrota imposta por estes ao antigo imperador de Gaza. E se não seria esta uma das raízes históricas da fidelidade dos antigos régulos aos colonizadores portugueses. São especu-lações que podem abrir uma perspectiva analítica que vá além do corte histórico e epistemológico que normalmente se propõe entre os períodos pré e pós-coloniais, iluminando aspectos histó-ricos e sociais da relação entre colonizador e colonizado no Sul de Moçambique.

Há, portanto, que se prestar atenção ao regime de produção e gestão das alteridades que historicamente formulou, antes do processo de colonização, as formas de socialidade e trato com o inimigo e o estrangeiro, suas benesses e malefícios. Anterior ao Outro colonial e pós-colonial, tem-se o Outro pré-colonial – este sim assume um caráter ontológico e não apenas histórico. A economia simbólica do cosmos que opera as relações com as alteridades não se organizou a partir do início do período colo-nial e do contato com o “Ocidente”. Dessa forma, como propõe Eduardo Viveiros de Castro (2002b), baseando-se em Deleuze, é na relação com o Outrem (ou o Outro do Outro) que se devem buscar os fundamentos para a compreensão da gestão das relações com o Outro. Ou seja, nas formas de construção dos inimigos e estrangeiros pré-coloniais podem-se encontrar princípios lógicos

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e ontológicos que operam as relações com a “modernidade” colo-nial e pós-colonial, sejam elas pacíficas ou conflituosas.

Como já afirmado anteriormente, o que tenho me proposto a fazer é analisar o contexto sul-moçambicano a partir de algu-mas proposições gestadas na literatura etnológica contemporânea sobre os povos ameríndios, o que me permitiu uma revisão de alguns pressupostos teóricos africanistas a partir da crítica ame-ricanista. Ao retornar tais críticas a contextos africanos, parece possível rever e repensar os cânones que têm marcado as discus-sões sobre o papel dos sistemas ditos “tradicionais” face ao colo-nialismo e ao pós-colonialismo, voltando as investigações para a compreensão das bases cosmológicas e ontológicas formuladas no período pré-colonial, o que necessariamente nos remete à com-preensão das guerras pré-coloniais e sua centralidade na estru-turação dos agenciamentos e socialidades que persistem apesar das transformações históricas. Tenho defendido isso em trabalhos anteriores (Passador, 2006, 2008a, 2008b, 2009a e 2009b), bus-cando nos princípios ontológicos e cosmológicos que persistem no Sul de Moçambique – assim como nas formas em que se ex-pressam e nos meios objetivos através dos quais se efetivam seus agenciamentos – a chave para a compreensão de fenômenos con-temporâneos e a persistência de determinadas formas de aliança, do curandeirismo e da feitiçaria.

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Sobre os autores

christiano KeY tambascia

É doutor em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas e desenvolve pesquisas em história da antropolo-gia. Atualmente é pesquisador colaborador de pós-doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp, com projeto referente a cultura material e museus na constituição da disciplina no Brasil.

fernanda bittencourt ribeiro

Com doutorado em antropologia social pela École des Hau-tes Études en Sciencies Sociales (EHESS, Paris), é professora e pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais e do Progra-ma de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS e pesqui-sadora associada ao Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACI) da UFRGS. Realiza pesquisas em antropologia das práticas de in-tervenção social, antropologia da infância e da criança. Interessa--se também pelo estudo da dimensão simbólica do nascimento e das práticas relativas ao parto.

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héctor guerra hernandez

Desde 2012 é professor adjunto no Departamento de His-tória da Universidade Federal do Parana (UFPR). Doutor em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), possui mestrado em antropologia cultural, história moderna e sociologia pelo Instituto Latinoamericano da Uni-versidade Livre de Berlim (2005). Tem experiência nas áreas de antropologia, sociologia e história, com ênfase em antropologia urbana, atuando principalmente nos seguintes temas: pós-co-lonialismo, pós-socialismo, ideologia e cultura, migração inter-nacional e conflitos sociais. Desde 2006 desenvolve pesquisa na África Austral, especificamente em Moçambique. É pesquisador associado do Centro de Estudos Africanos da Universidade Edu-ardo Mondlane em Maputo desde 2008.

iracema dulleY

Doutora em antropologia social pela USP com estágio san-duíche na Universidade de Columbia, mestre em antropologia social pela Unicamp e bacharel em filosofia pela USP. Atualmen-te realiza pós-doutorado no Cebrap. É autora do livro Deus é feiticeiro: prática e disputa nas missões católicas em Angola colonial (2010). Suas principais áreas de interesse são teoria antropológica e antropologia da África, com interesses específicos por Angola, história da África, tradução, etnografia, colonialismo, biografia, processos de mediação e práticas de nomeação.

luena nascimento nunes pereira

É mestre e doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo e professora de antropologia na Universidade Fede-ral Rural do Rio de Janeiro. Desenvolve pesquisas sobre Angola e a construção de identidades étnicas e nacionais através do caso do

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grupo bakongo em Luanda. Também desenvolve pesquisas sobre a construção de identidades étnico-raciais no Brasil. luiz henrique passador

É mestre e doutor em antropologia social pela Unicamp e professor da Universidade Federal da Fronteira Sul. Em seu dou-torado, desenvolveu pesquisa no Sul de Moçambique sobre o campo da tradição e o universo das doenças, com especial aten-ção à epidemia de HIV/Aids. Tem trabalhos publicados em peri-ódicos nacionais e internacionais sobre os seguintes temas: HIV/Aids, medicina tradicional e feitiçaria, gênero e sexualidade, e marcadores sociais da diferença. Atuou como investigador asso-ciado do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique) e em projetos de pesquisa do CEBRAP e da FIOCRUZ. Seus interesses têm se voltado para a teoria an-tropológica, os estudos de gênero e a antropologia da saúde.

marta cioccari

É mestre em antropologia social pela UFRGS e doutora em antropologia social pelo Museu Nacional, UFRJ, onde atua como docente-pesquisadora Prodoc-Capes. É uma das coordenadoras do Núcleo de Antropologia do Trabalho, estudos biográficos e de trajetórias (NuAT), no PPGAS-MN-UFRJ. Coautora do livro Retrato da Repressão Política no Campo. Brasil 1962-1985, Cam-poneses torturados, mortos e desaparecidos (MDA, 2010, 2011), é também organizadora da Coleção “Camponeses e o Regime Mi-litar”, com dois volumes lançados. Publicou diversos artigos em revistas especializadas abordando reflexões sobre o trabalho de campo etnográfico e sobre aspectos da vida das classes trabalha-doras urbanas e rurais.

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marta jardim

Professora do Departamento de História da Arte, Unifesp. Pesquisadora colaboradora do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa do CNPQ Diversidade, Homogeneização e Conflito, no Departamento de Antropologia da Unicamp. Re-alizou pós-doutorado no CEBRAP com bolsa Fapesp entre 2006 e 2010. Concluiu o mestrado em antropologia social pela Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul (1998) e o doutorado em ciências sociais/antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (2006). Foi professora de história da África no Depar-tamento de História da Unicamp (2009-2011). Atua nos seguin-tes temas: etnografia e história das práticas artísticas e das línguas das Áfricas; reprodução da família; hindus; Sul de Moçambique; Kwa Zulu Natal (África do Sul).

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