Poder, instituições e elites: 7 ensaios de comparação e história (edited book)

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Poder, instituições e elites7 ensaios de comparação e história

Flavio M. Heinz(Organizador)

Poder, instituições e elites7 ensaios de comparação e história

2012

OI OSE D I T O R A

© Dos autores – [email protected]

Editoração: Oikos

Revisão: Luís M. Sander

Capa: Flávio Wild

Arte-final: Jair de Oliveira Carlos

Impressão: Rotermund S. A.

Conselho Editorial:Antonio Sidekum (Ed. Nova Harmonia)Arthur Blasio Rambo (UNISINOS)Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL)Danilo Streck (UNISINOS)Elcio Cecchetti (UFSC e UNOCHAPECÓ)Ivoni R. Reimer (PUC Goiás)Luis H. Dreher (UFJF)Marluza Harres (UNISINOS)Martin N. Dreher (IHSL – MHVSL)Oneide Bobsin (Faculdades EST)Raul Fornet-Betancourt (Uni-Bremen e Uni-Aachen/Alemanha)Rosileny A. dos Santos Schwantes (UNINOVE)

Editora Oikos Ltda.Rua Paraná, 240 – B. Scharlau – Cx. P. 108193121-970 São Leopoldo/RSTel.: (51) 3568.2848 / Fax: [email protected]

Poder, instituições e elites: 7 ensaios de comparação e história /Organizador Flavio M. Heinz. – São Leopoldo: Oikos, 2012.

186 p.; 16 x 23cm.

ISBN 978-85-7843-288-1

1. Elite – História. 2. Poder – Instituições. 3. História. I. Heinz,Flavio M.

CDU 316.344.42

P742

Catalogação na Publicação:Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184

Esta publicação apresenta resultados parciais de pesquisas desenvolvidas no âmbitodo projeto PROCAD-NF/CAPES “Composição e recomposição de grupos dirigentesno Nordeste e no Sul do Brasil: uma abordagem comparativa e interdisciplinar”, reu-nindo equipes do PPGH-PUCRS, PPGS-UFS e PPGCP-UFPR.

Sumário

Sobre os autores ................................................................................... 7

Apresentação ....................................................................................... 9

Comparação e história na ciência social .............................................. 13Renato Perissinotto

Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina .......................... 33Ernesto Seidl

Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimesbatllista (Uruguai, 1903-1933) e castilhista (Brasil: RS, 1891-1930) ......... 61

Flavio M. Heinz

Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina(Província de Buenos Aires) e no Brasil (Rio Grande do Sul) ............... 91

Alba Cristina Couto dos SantosMarluza Marques Harres

“Um império de cruzes, togas e espadas”. Notas comparativassobre as elites políticas do Rio Grande do Sul, do Ceará e daBahia no período monárquico ........................................................... 115

Jonas Vargas

Os founding fathers do Parquet: um ensaio comparativo entre as elitesdo Ministério Público de São Paulo e do Rio Grande do Suldurante o Estado Novo ..................................................................... 145

Marcelo Vianna

Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde:a comparação em estudos sobre a atuação da Fundação Rockefeller .. 169

Ana Paula Korndörfer

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Sobre os autores

Alba Cristina Couto dos Santos é mestranda em História das SociedadesIbéricas e Americanas (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grandedo Sul). Licenciada em História (Universidade do Vale do Rio dos Si-nos) e estudante de Ciências Sociais na mesma universidade, desenvolvetrabalhos relacionados com associativismo, imaginário religioso e me-mória coletiva.

Ana Paula Korndörfer é doutora em História pela Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio Grande do Sul, PUCRS. Integrante do Laboratório deHistória Comparada do Cone Sul, é coautora de Instituições de Saúde dePorto Alegre – Inventário (Ideograf, 2008), e possui textos publicados, en-tre outros, em História da Medicina: instituições e práticas de saúde no RioGrande do Sul (EDIPUCRS, 2009).

Ernesto Seidl é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal doRio Grande do Sul. Professor dos Programas de Pós-Graduação emSociologia e Antropologia da Universidade Federal de Sergipe,onde também coordena o Laboratório de Estudos do Poder e da Políti-ca. É autor de diversos artigos sobre elites e grupos dirigentes.

Flavio M. Heinz é doutor em História e Sociologia do Mundo Contempo-râneo pela Universidade Paris-Ouest, Nanterre. Historiador e professordo Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS, onde coorde-na o Laboratório de História Comparada do Cone Sul. É autor de Lesfazendeiros à l’heure syndicale: représentation professionnelle, intérêts agraireset politique au Brésil, 1945-1967 (Septentrion/ANRT, 1998), e organiza-dor, entre outros, de Por outra história das elites (Editora FGV, 2006) eExperiências nacionais, temas transversais: subsídios para uma história compa-rada da América Latina (Editora Oikos, 2009) e História social de Elites(Oikos, 2011).

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Sobre os autores

Jonas M. Vargas é mestre em História pela UFRGS e atualmente é alunode Doutorado do Programa de Pós-Graduação em História Social daUFRJ. É autor de Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégiasfamiliares da elite política do Rio Grande do Sul, 1850-1889 (UFSM, 2010).

Marcelo Vianna é mestre em História pela Pontifícia Universidade Católi-ca do Rio Grande do Sul e doutorando em História pela mesma univer-sidade. Historiador formado pela UFRGS, atuou no Arquivo Históricodo RS e Projeto Memória do Ministério Público do RS. Atualmenteparticipa do Laboratório de História Comparada do Cone Sul/PUCRS.É um dos coautores de Comunidade Negra de Morro Alto: Historicidade,Identidade e Territorialidade (Ed. UFRGS, 2004) e autor de Os homens doParquet: Trajetórias e Processo de Institucionalização do Ministério Público doEstado do RS (dissertação PUCRS, 2011).

Marluza Marques Harres é doutora em História pela Universidade Fede-ral do Rio Grande do Sul com a tese Conflito e Conciliação no Processo deReforma Agrária do Banhado do Colégio, Camaquã, RS. Pesquisadora eprofessora do Programa de Pós-Graduação em História da Universida-de do Vale do Rio dos Sinos. Recentemente participou da organizaçãoda obra Da Região à Nação: Relações de escala para uma história comparadaBrasil – Argentina (séculos XIX e XX) (Editora Oikos, 2011).

Renato Perissinotto é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Profes-sor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná, atua no Pro-grama de Pós-Graduação em Ciência Política e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR. É coeditor da Revista de Sociolo-gia e Política e um dos coordenadores do Núcleo de Pesquisa em Socio-logia Política Brasileira da UFPR. Publicou, entre outros, Classes domi-nantes e hegemonia na República Velha (Unicamp, 1994) e Marxismo comociência social (Ed. UFPR, 2011).

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Apresentação

Na apresentação de uma obra coletiva precedente, eu e Ana PaulaKorndörfer chamávamos a atenção para o fato de que, embora gozasse degrande prestígio, a história comparada não possuía, de fato, muitos prati-cantes*. Como uma das explicações para isso indicávamos a “ausência deum rol claro de procedimentos a serem seguidos”. Com efeito, embora amuitos a referência ao método comparativo fosse frequente, para um nú-mero expressivo de profissionais o conjunto de seus procedimentos, suaaplicação, permanecia uma incógnita. “Mais grave”, afirmávamos, “quan-do alguém se lança a buscá-lo, via de regra não encontra respostas objetivasquanto às suas etapas e consecução”.

Na ocasião, alertávamos para a inexistência de um rol de etapas clarasa serem seguidas por um comparativista debutante e salientávamos que ocânone da disciplina, a obra de Marc Bloch, e especialmente, dois artigos,“Por uma história comparada das sociedades europeias” e “Comparação”,respectivamente, de 1928 e 1930, ofereciam “linhas gerais para pensar a com-paração, não um manual de procedimentos”. Assim, a enorme repercussãodos dois artigos “como porta de entrada da história comparada [...] pode nãoter ajudado muito, uma vez que a perspectiva de análise, logo o modus operan-di do historiador, poderia ser melhor percebida na leitura do conjunto de suaobra do que nos textos de divulgação sobre as virtudes do método”.

Perceber o modus operandi no trabalho do historiador é aqui o nossomotto. Este livro reúne textos de historiadores e cientistas políticos interes-sados nas possibilidades de utilização do método comparativo – ou tãosomente de uma perspectiva ou viés comparativo – na análise histórica esocial. Com certa ousadia e liberdade metodológica, estes autores “ataca-

*HEINZ, F. M. & KORNDÖRFER, Ana Paula. “Comparações e comparatistas”. In: HEINZ,F. M. (org.). Experiências nacionais, temas transversais – subsídios para uma História Comparada daAmérica Latina. São Leopoldo: Oikos, 2009.

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Apresentação

ram” os mais variados objetos de pesquisa, sempre colocando no centro desuas análises a dimensão comparativa, fosse esta uma possibilidade eviden-te oferecida por determinado recorte temático ou tipo das fontes disponí-veis, fosse uma solução menos óbvia, só possível pelo acionamento de umaoperação metodológica complexa. Igreja, governo, parlamento, justiça ecooperativismo são apenas alguns dos cenários aqui investigados atravésda lente comparativista. Neles circulam grupos de indivíduos com saberese poderes específicos, especialistas, intelectuais, elites políticas ou profissio-nais, a própria “carne” dos processos sociais, aqui cotejados com homólo-gos em outras realidades regionais ou nacionais. O resultado desse proces-so? Confirmam-se especificidades, é certo, mas se encontram também se-melhanças insuspeitas e recorrências surpreendentes. Enfim, é isso o quemove os autores e que orienta sua agenda coletiva de pesquisas: o desvela-mento do social através da realização de uma boa história social e compa-rada.

Os dois primeiros textos aqui reunidos, “Comparação e História naCiência Social”, de Renato Perissinotto, e “Igreja e construção nacional noBrasil e na Argentina”, de Ernesto Seidl, tomam o tema da comparaçãodesde a perspectiva da sociologia ou, mais especificamente, da sociologiahistórica. O primeiro desenvolve uma densa e instigante reflexão, no planoteórico e metodológico, sobre os sentidos do ato de comparar para os cien-tistas sociais e as razões para o uso da história nessa empreitada. O segun-do texto explora conexões entre Estado, Igreja e variável religiosa na con-formação de identidades e na construção do Estado nacional.

No próximo texto, “Driblando escalas? Nota sobre a comparaçãohistórica dos regimes batllista (Uruguai, 1903-1933) e castilhista (RS: 1891-1930)”, o organizador deste volume propõe um ensaio mais ou menos livresobre as possibilidades da comparação ao analisar, a partir de uma arrisca-da operação de rompimento de escalas, elites políticas e práticas de gover-no. Separados pelas dimensões regional/nacional/internacional e pelo sis-tema de recrutamento político, e informados por correntes ideológicas di-versas, dirigentes e administrações parecem convergir no desenho de suaatuação política e no perfil de seu relacionamento com elites sociais, gru-pos médios e oposição.

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Os quatro textos seguintes propõem comparações distintas e ofere-cem inúmeros exemplos interessantes e tantos outros insights de pesquisano âmbito da comparação. Em “Encontros e desencontros do cooperativis-mo na Argentina (Província de Buenos Aires) e no Brasil (Rio Grande doSul): exercício comparativo”, as autoras Marluza Marques Harres e AlbaCristina Couto dos Santos dedicam-se a perscrutar um determinado modelode organização econômica, social e profissional, o cooperativismo, a partirde sua inserção em dois subespaços regionais de dois países diferentes. Nesteexercício, investigam diferentes variáveis que contribuem para a moldagemdas práticas cooperativistas, como a imigração e a legislação. Em “Um impé-rio de cruzes, togas e espadas. Notas comparativas sobre as elites políticas doRio Grande do Sul, do Ceará e da Bahia no período monárquico”, JonasMoreira Vargas propõe um interessante estudo sobre a prevalência de deter-minados tipos de recursos familiares associados ao sucesso político em trêselites regionais no Oitocentos brasileiro. Assim, o autor nos informa que tervínculos familiares com o universo da caserna foi um elemento importantepara carreiras políticas no sul, possuir “tradição” familiar na profissão jurídi-ca uma variável muito positiva em carreiras na Bahia e, finalmente, ligaçõescom o clero constituíam um fator determinante do sucesso político na pro-víncia do Ceará. Marcelo Vianna, em “Os Foundig Fathers do Parquet: umensaio comparativo entre as elites do Ministério Público de São Paulo e doRio Grande do Sul durante o Estado Novo”, realiza um exitoso estudo decomparação em história social de instituições. Combinando uma perspectivade micro-história social de elites e técnicas de prosopografia, o autor expõeum perfil dos grupos dirigentes das instituições, indivíduos que concentra-ram recursos políticos e profissionais nos Ministérios Públicos de dois esta-dos. Por fim, fechando este volume, o texto “Ampliando os horizontes daspesquisas em história da saúde: a comparação em estudos sobre a atuação daFundação Rockefeller”, de Ana Paulo Korndörfer, mapeia o uso do recursoà comparação e possibilidades de pesquisas comparativas na produção aca-dêmica sobre a atuação da Fundação Rockefeller na América Latina, ofere-cendo um interessante painel de análise no qual se confundem a atuação daFundação, a história das políticas públicas de saúde na América Latina e aconformação mais ou menos recente da agenda de pesquisa na área.

Flavio M. Heinz

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Apresentação

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Comparação e história na ciência social

Renato Perissinotto1

As a minimal claim it can be said that what history is,or should be, cannot be analysed in separation from

what the social sciences are, or should be. However, Ishould want to go much further than this. There

simply are no logical or even methodologicaldistinctions between the social sciences and history –

appropriately conceived(GIDDENS, 1994, p. 230).

Apresentação

Este capítulo pretende responder duas questões. Primeira, como po-demos definir exatamente o procedimento comparativo? Segunda, uma vezdefinido o que entendemos por comparação, qual seria a melhor maneirade operacionalizá-la (i.e., de aumentar o seu rendimento analítico)? Na pri-meira seção, definimos o que entendemos por comparação e discutimos aspossibilidades e limites de sua aplicação nas ciências sociais; em seguida,procuramos apontar os possíveis ganhos teóricas produzidos pela análisecomparativa de poucos casos baseada em uma perspectiva histórica (o tipode trabalho executado pelos chamados “sociólogos históricos” ou “compa-rativistas históricos”).

Quase nada do que será dito neste artigo pode reivindicar o status deoriginalidade teórica ou metodológica. Há, no entanto, uma intenção sub-

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPR. O autor gostaria deagradecer a Paolo Ricci e Marcio Oliveira pela leitura e pelos comentários ao texto e aos mem-bros do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira da UFPR, que durante todo o anode 2009 participaram do debate sobre metodologia histórica comparativa. Este texto é, emparte, o resultado das pesquisas feitas para o estágio pós-doutoral no Latin American Centre(Saint Antony’s College, Oxford University), financiado pelo CNPq.

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jacente ao texto que gostaríamos de enfatizar: a defesa de Max Weber comoum cânone das ciências sociais. Esse tipo de afirmação pode parecer supér-flua, já que Weber é amplamente reconhecido por todos como um dosfundadores do nosso campo científico. O reconhecimento de Weber como“pai fundador”, porém, não implica tratá-lo exatamente como um cânone,isto é, como um intelectual que definiu procedimentos científicos aos quaistemos que recorrer ainda hoje para o exercício de nossas atividades. Noentanto, grande parte do que é dito atualmente pelos teóricos e metodólo-gos da análise histórica comparativa não faz muito mais do que reiterar,sob nova linguagem, os procedimentos científicos aplicados e sistematiza-dos por Weber. Essa insistência numa nova linguagem, porém, parece-nosprejudicial ao avanço científico na medida em que obriga os cientistas sociaisa fazer um esforço constante de “atualização” em grande parte dispensá-vel, pois pouco traz de novo do ponto de vista epistemológico. Ao insistirna necessidade de reconhecer Weber como um cânone, e não apenas comoum pai fundador, pretendemos apenas dizer que devemos valorizar os gan-hos que esse autor produziu e adotar uma conduta cumulativa, típica dequalquer ciência, que consiste em aproveitar o que já foi feito (e certamenteultrapassá-lo, se for o caso), em vez de “inovar” constantemente.

Que fique bem claro: não negamos os enormes avanços técnicos porque passou o nosso campo científico ao longo do século XX. Estou apenasdizendo que muito do que hoje se apresenta como “novo” no âmbito daanálise histórica comparativa (a utilização do prefixo “neo” nunca foi tãoabundante) do ponto de vista epistemológico não produz avanços significa-tivos em relação ao que Weber disse nos seus escritos metodológicos. Aocontrário, portanto, do que defendem alguns atualmente, acreditamos que,ao menos para os temas discutidos neste artigo, mais vale a um cientistapolítico estar a par do que foi dito por Weber no início do século XX do queestar familiarizado com as “atualizações” da literatura contemporânea2.

2 Um exemplo paradigmático: todas as considerações teóricas acerca do Estado feitas por umdos mais importantes nomes do “neoinstitucionalismo histórico”, Theda Skocpol, não avan-çam um passo em relação às formulações weberianas. Cf. Skocpol, 1996, p. 7-9. Como contra-ponto à ânsia dos cientistas políticos, notadamente americanos, pela “inovação”, ver a tranqui-lidade com que o historiador contemporâneo Aldo Schiavone lança mão das proposições deMarx, Weber e Polanyi para encaminhar as suas questões de pesquisa. Cf. Schiavone, 2005,especialmente capítulos II, IV e VIII. Kohli e Shue, referindo-se à história intelectual da socio-

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I. Comparação como operação mental

Giovanni Sartori (1991, p. 243) já observou que existem duas defini-ções diferentes do procedimento comparativo. Há os que, como Lijphart (1971,p. 682-684), entendem a comparação como uma técnica de pesquisa específi-ca utilizada especialmente no estudo comparativo de poucos casos, diferente,portanto, da técnica estatística; há, por outro lado, os que, como Neil Smel-ser (1976, cap. I), consideram a comparação uma “operação mental” quepode ser realizada lançando-se mão de técnicas de pesquisa diversas (experi-mental, estatística, histórica) (RIHOUX e RAGIN, 2009, p. xviii; MAHO-NEY e RUESCHEMEYER, 2008, p. 11-15; MAHONEY, 2008, p. 337) 3.

Neste capítulo assumimos a posição de Smelser (1976, p. 5). Enten-demos o método comparativo como uma “operação mental” cujo objetivoprimeiro é controlar “variáveis”4. Quando comparamos diversos casos, bus-camos essencialmente identificar condições constantes e variantes a fim deestabelecer imputações causais confiáveis. As técnicas específicas de con-trole de variáveis (experimental, estatística, histórica) diferem enormemen-te no tipo, na efetividade e na utilidade científica, mas todas elas podem serentendidas como esforços para explicar fenômenos sociais estabelecendo-se controle sobre as suas condições de variação. Nesse sentido, tanto a téc-nica experimental como a estatística e a histórica lançam mão das mesmasoperações mentais quando são utilizadas a serviço da comparação. Dife-

logia política no pós-guerra, observam: “A diferenciação exagerada da produção intelectualpode produzir ganhos profissionais de curto prazo, mas inevitavelmente põe a perder nossosmelhores propósitos. Gera modismos e falsos começos que frequentemente afligem nossos es-tudantes, com grandes custos intelectuais para todos nós” (KOHLI e SHUE, 1996, p. 322).Louve-se a honestidade intelectual dos autores, cujo comentário procura qualificar a sua pró-pria contribuição – a abordagem state-in-society –, declaradamente tributária da tradição weberia-na, como apenas mais equilibrada que as visões societalistas e estatistas da política.

3 Para evitar confusão terminológica, definimos “método comparativo” como um conjunto deoperações mentais que confere maior confiabilidade às proposições causais. A nossa posição,portanto, é a mesma de Sartori, para quem a palavra “método” se refere à estrutura lógica dainvestigação científica e não às diversas técnicas de pesquisa à disposição dos cientistas sociais.A lógica científica da comparação é uma só e pode ser operacionalizada tanto por técnicasestatísticas como por análises históricas, dependendo do objeto de estudo e do número de casosanalisados. Cf. Sartori, 1970, p. 1033-36.

4 Segundo Sartori, o termo “variável” só poderia ser utilizado para coisas mensuráveis. Nestetexto, tomo maior liberdade e o utilizo para me referir às condições sociais e políticas quedevem ser controladas durante o procedimento comparativo. Cf. Sartori, 1970, p. 1045.

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rem entre si, porém, quanto à questão de pesquisa, à natureza do objetoestudado, ao número de casos analisados, ao tipo de explicação fornecido eàs técnicas empregadas5.

Assim entendidos, os princípios lógicos do método comparativo fo-ram sistematizados por John Stuart Mill no livro III do seu System of Logic,publicado em 1886. Nesse livro, Mill identificou cinco procedimentos com-parativos, cada um com limites e potencialidades próprios: o método dasemelhança (agreement method), o método da diferença (method of differen-ce), o método indireto da diferença (indirect method of difference), o métododos resíduos (methods of residues) e o método das variações concomitantes(method of concomitant variations)6. Neste artigo, essencialmente voltado paraa análise histórica comparativa, interessam-nos especialmente os métodosda semelhança e o método indireto da diferença (uma importante variaçãodo método da diferença), amplamente utilizados por comparativistas histó-ricos.

O método da semelhança é aquele em que se comparam casos muitodiferentes entre si, mas que se assemelham quanto à presença do fenômenoa ser explicado e à presença, em todos os casos, de uma única circunstânciainvariante. Supõe-se que essa circunstância invariante seja a causa do fenô-meno em questão.

No método da diferença, o investigador compara casos muito simila-res entre si, mas que se diferenciam quanto à presença (casos positivos) eausência (casos negativos) do fenômeno a ser explicado. Ao analista cabeinvestigar se há uma circunstância que, ao mesmo tempo, esteja presenteem todos os casos positivos e ausente de todos os casos negativos. O méto-

5 Para uma análise exaustiva das diferenças entre as diversas técnicas de controle a serviço dométodo comparativo, ver Smelser, 1976, cap. 6, “Classificação, descrição e mensuração”. Logono início de seu livro, Smelser (1976, p. 5) observa que os “princípios metodológicos que orien-tam a investigação comparativa mostrar-se-ão poucos. Mais particularmente, será possível dis-cernir uma surpreendente continuidade entre todos os estudos comparativos aqui resenhados,clássicos e modernos. Essa continuidade reside no fato fundamental de que todos os teóricos einvestigadores empíricos que examinaremos estavam tentando controlar e manipular váriascondições causais na vida social e, assim, estabelecer um argumento em favor de uma ou outracondição selecionada”. Dito de outra forma, os “princípios metodológicos” são poucos porquea estrutura lógica da comparação não varia; o que varia são as técnicas de pesquisa.

6 A descrição detalhada desses métodos e dos seus respectivos cânones encontra-se em StuartMill, 1886, p. 254-259.

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do da diferença seria o procedimento típico do método experimental. Umexperimento consiste exatamente na produção arbitrária pelo investigadorde situações diferentes que lhe permitam comparar o impacto produzidopor uma variável, presente ou ausente, de acordo com a manipulação con-duzida por ele. Como esse método é muito exigente quanto à capacidadede controle sobre as variáveis, Stuart Mill definiu uma variante menos rígi-da, chamada por ele de “método indireto da diferença”.

O método indireto da diferença faz, na verdade, um uso complemen-tar dos dois métodos anteriores. Como primeiro passo, o investigador utili-za uma série de exemplos que contam com o fenômeno que ele pretendeexplicar e isola a variável recorrente em todos eles. Como segundo passo,utiliza outros casos que não contam com o fenômeno em questão a fim deavaliar se a variável recorrente encontrada anteriormente está ausente doscasos negativos. No entanto, em vez de um experimento artificial propria-mente dito, o pesquisador analisa os casos positivos e negativos tal comoeles aparecem na natureza (ou na história, diríamos nós). O método é “in-direto” porque a diferença não é produzida diretamente pelo pesquisador,por meio de experimentos artificiais, mas por meio da comparação de ca-sos negativos e positivos cuja existência independe dele (258-259). Outronome dado a esse método é “Método Conjunto da Semelhança e da Dife-rença” (The Joint Method of Agreement and Difference) (259)7.

O uso desses métodos permite ao investigador descartar causas po-tencialmente necessárias e suficientes8. Como nos lembra Mahoney, no casodo método da semelhança, como o resultado a ser explicado está em todosos casos escolhidos para estudo, é logicamente impossível que uma causahipotética não partilhada por todos seja individualmente necessária para ex-plicar o fenômeno. No que diz respeito ao método da diferença, o fenôme-no analisado está presente em alguns casos e ausente de outros. Portanto,se uma causa hipotética está presente em todos os casos, positivos e negativos,

7 O leitor poderá encontrar uma sistematização gráfica desses métodos em Skocpol e Somers,1997, p. 80.

8 Causa necessária é aquela cuja presença é imprescindível, mas não suficiente, para a produçãodo fenômeno; causa suficiente é aquela cuja presença basta, mas não é imprescindível, para aprodução do fenômeno; causa necessária e suficiente é aquela cuja presença é ao mesmo tempoimprescindível e bastante para a produção do fenômeno.

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ela não pode ser considerada suficiente, visto que nem todos os casos quecontam com a presença da causa hipotética contam também com a presen-ça do fenômeno.

A busca (e a eliminação) de causas necessárias e/ou suficientes é,portanto, uma das características essenciais desses métodos, que, exatamentepor essa razão, tendem a ser rejeitados por alguns como inaplicáveis aoestudo dos fenômenos sociais. São três as críticas dirigidas à sua aplicaçãonas ciências sociais.

(i) A impossibilidade de realizar o controle exigido por esses métodos

Émile Durkheim rejeitou o uso desses métodos nas ciências sociais,argumentando que sua aplicação seria impossível em sociologia, pois ne-nhum inventário plausível dos fatos poderia permitir a um investigador es-tar certo “de que duas sociedades concordam ou diferem em relação a to-dos os aspectos, exceto um” (1978, p. 113). Acreditamos poder responder aessa crítica de duas maneiras.

Primeiramente, é claro que “comparar sociedades”, exigindo-se queo pesquisador tenha pleno controle sobre as variáveis em questão a pontode garantir que tais sociedades se assemelhem ou se diferenciem em todosos aspectos, exceto um, tornaria tais métodos impraticáveis. Mas o procedi-mento seria bem menos exigente se nos dedicássemos a comparar não “so-ciedades”, como sugere Durkheim, mas fenômenos restritos. Nesse senti-do, Skocpol e Somers insistem que a aplicabilidade da análise histórica com-parativa com base nos métodos sistematizados por Mill só é viável se oproblema a ser pesquisado for muito bem delimitado (1997, p. 90).

Em segundo lugar, o próprio Durkheim fornece um importante argu-mento em defesa da aplicação dos métodos de Mill (notadamente o méto-do da diferença) ao estudo dos fenômenos sociais. A eficácia desses méto-dos certamente aumentaria se comparássemos sociedades “de uma mesmaespécie e num mesmo estágio de desenvolvimento” (DURKHEIM, 1978,p. 118 e 121-122). “Sociedades da mesma espécie” facilitam o procedimen-to comparativo porque aumentam o número de condições comuns às socie-dades comparadas (as “condições paramétricas”, segundo SMELSER, 1976,p. 154) e, por conseguinte, diminuem a quantidade de diferenças que terão

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que ser levadas em consideração como possíveis causas pelo analista9. Com-parar sociedades da mesma espécie nos permite ainda respeitar outra ca-racterística fundamental do método comparativo. Como nos lembra Sarto-ri, o procedimento comparativo não pode ser efetuado entre entidades ab-solutamente idênticas (já que não faz sentido comparar uma coisa com elamesma) nem entre entidades absolutamente diferentes (o que impossibili-taria qualquer tipo de controle). Toda comparação pressupõe certo grau desemelhança e de diferença entre as coisas comparadas, evitando-se, assim,comparar o incomparável. Uma boa maneira de fazê-lo, como vimos, écomparar “sociedades da mesma espécie”, o que pressupõe, como reco-menda Sartori, o uso de bons critérios de classificação a fim de colocarmosjuntos entidades que de fato partilham alguns atributos importantes (SAR-TORI, 1970, p. 1035-36 e 1040 e 1991, p. 245-249).

(ii) A inadequação de escolher os casos pela “variável dependente”

Como vimos acima, ao utilizar o procedimento comparativo tal comosistematizado por Mill, devemos escolher os casos em função da presençaou ausência do fenômeno que se quer explicar (a “variável dependente”).Haveria, segundo os críticos, dois problemas nesse procedimento. O pri-meiro deles consiste na produção de uma amostra enviesada, escolhendo-se somente os casos que contam com o fenômeno a ser estudado. Esse pri-meiro problema, do qual o próprio Mill tinha consciência, pode ser evita-do, como vimos, escolhendo-se também casos negativos para a análise.

O segundo problema reside em escolher casos em que a variável de-pendente não varia. Desse modo, o analista não teria como medir o impac-to de supostas variáveis causais sobre a variável dependente simplesmenteporque esta última não varia. Isso, contudo, não é um problema quando oque se procura saber não é o impacto linear de uma variável sobre outra,

9 Alexis de Tocqueville (1977), Max Weber (1964), Otto Hintze (1975), Karl Polanyi (2000),Barrington Moore Jr. (1983), Theda Skocpol (1984), Ellen Kay Trimberger (1978) e váriosoutros autores produziram excelentes resultados aplicando esse procedimento comparativo aosseus respectivos objetos de estudo. A importância da relativa similaridade entre as sociedadescomo critério para facilitar e tornar mais seguro o procedimento comparativo é defendida tambémpor vários outros autores, clássicos e contemporâneos: Marc Bloch (1998, p. 123), Gerschenkron(1976, p. 64), Przeworsky e Teune (1982, p. 26), Lijphart (1971, p. 687-89).

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mas a presença/ausência de condições necessárias e/ou suficientes para aprodução do fenômeno que se quer explicar. Nesses casos, selecionar a par-tir da variável dependente é adequado. Apenas a título de exemplo, bastapensar na análise weberiana da relação entre protestantismo e capitalismoracional. Weber não se preocupa em saber o impacto quantitativo que a “va-riável independente” produz sobre a “variável dependente”, mas sim se oscasos que contêm a “variável dependente” (capitalismo racional) contam tam-bém com a presença da “variável independente” (ética protestante) e, aomesmo tempo, se os casos negativos evidenciam a ausência desta última10.

(iii) Os pressupostos determinísticos desses métodos não se aplicam aos fenômenossociais

Os métodos da semelhança e da diferença, como dissemos, estão pre-ocupados em identificar causas necessárias e/ou suficientes, o que, segun-do alguns, geraria dois problemas importantes.

Primeiramente, quanto às causas necessárias, os críticos dizem quehá potencialmente inúmeras causas desse tipo, a maior parte delas semimportância ou triviais (por exemplo, a existência de seres humanos é ne-cessária para uma revolução social). Da mesma forma, causas suficientespodem ser óbvias ou tautológicas (por exemplo, a guerra é causa suficientede morte em larga escala). No entanto, Mahoney tem razão ao observarque os cientistas sociais que usam os métodos sistematizados por Mill qua-se nunca cometem esses erros, conseguindo diferenciar claramente causasnecessárias triviais das não triviais e causas suficientes tautológicas das nãotautológicas (MAHONEY, 2008, p. 348).

O segundo problema, esse bem mais sério, residiria no fato de essesmétodos utilizarem pressupostos determinísticos inválidos para entenderum mundo social governado por leis probabilísticas. Pressupostos determi-nísticos podem levar a tomar como causas certas aquelas que são apenasprováveis ou a descartar causas prováveis porque não aparecem como cer-tas (BORGES, 2007, p. 3-4). Dito de outra forma, tais métodos podem equi-

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10 As expressões “variáveis dependentes” e “variáveis independentes” encontram-se entre aspasporque são inadequadas à perspectiva weberiana da multicausalidade.

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vocadamente eliminar do seu modelo fatores causais probabilísticos, já queum modelo determinístico exclui qualquer causa que não esteja presenteem todos os casos. Assim, valendo-se do método da semelhança, um ana-lista que, por exemplo, examinasse três casos de acidente de carro elimina-ria a bebida alcoólica como causa se ela estivesse presente em apenas doiscasos. Da mesma forma, usando o método da diferença, o analista elimina-ria a bebida como causa se ela estivesse presente tanto em casos com aci-dente como em casos sem acidente (MAHONEY, 2008, p. 349).

É verdade que esse tipo de procedimento comparativo, que buscacausas necessárias e suficientes, não permite avaliar o “efeito líquido” doimpacto de uma variável sobre outra. No entanto, o método mostra corre-tamente, para manter o exemplo dado por Mahoney, que beber não é nemcondição necessária nem condição suficiente para acidentes (uma vez quenem todo acidente é causado por bebida e nem todo motorista que dirigebêbado causa acidente). A crítica acima apenas apresenta o tipo de proble-ma que pode surgir quando se pensa em termos de causação necessária esuficiente sobre situações em que uma causação linear está operando. Ométodo ajuda a descobrir se dirigir bêbado em combinação com outras variá-veis é uma causa suficiente (ou quase suficiente) para acidentes de carrosnuma população específica de casos (MAHONEY, 2008, p. 349-350).

Alguns pesquisadores contemporâneos, no entanto, defendem que asexigências colocadas por tais pressupostos podem e devem ser atenuadaspara que o uso de tais procedimentos produza resultados frutíferos nas ci-ências sociais (por exemplo, HALL, 2008). Poderíamos dar inúmeros exem-plos de investigadores que usam os métodos sistematizados por Mill e, aomesmo tempo, tomam todo o cuidado para evitar proposições determinís-ticas. Basta lembrar, porém, o caso de Max Weber e o seu conceito de “cau-sa adequada”. Weber defende explicitamente o uso do método da diferençana pesquisa sociológica11, porém jamais formula suas proposições explica-

11 “Nos demais casos [em que o experimento e a quantificação não são possíveis], e como tarefaimportante da sociologia comparada, só resta a possibilidade de comparar o maior númeropossível de fatos da vida histórica ou cotidiana que, semelhantes entre si, só se diferenciam emum ponto decisivo: o ‘motivo’ ou a ‘ocasião’, que tratamos de investigar precisamente por suaimportância prática” (WEBER, 1984, p. 10).

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tivas em termos de causas necessárias e/ou suficientes. O seu objetivo ésempre a identificação de “causas adequadas”, definindo-as da seguinteforma: “Dizemos [...] que uma sucessão de fatos é ‘causalmente adequada’na medida em que, segundo as regras da experiência, exista a seguinte pro-babilidade: que sempre transcorra de igual maneira”. Ou por outra: “A ex-plicação causal significa, pois, a seguinte afirmação: que, de acordo comuma determinada regra da probabilidade [...], a um determinado processo[...] observado segue outro processo determinado (ou aparece juntamentecom ele)” (WEBER, 1984, p. 11, itálico nosso)12. Como se sabe, a epistemo-logia weberiana é marcada por uma compreensão complexa da causalida-de nos fenômenos sociais. Para o sociólogo alemão, a multicausalidade e ahistoricidade das ocorrências no mundo social impedem o estabelecimentode relações causais unívocas e universais. Uma causa, por mais fundamen-tal que seja, jamais opera sozinha e nunca exatamente da mesma forma emcontextos históricos distintos. Por essa razão, o uso do método da diferençapor Weber não implica aderir aos pressupostos determinísticos original-mente presentes na sistematização de Stuart Mill.

2. Por que comparar poucos casos epor que comparar usando a história?

Como dissemos no item anterior, a comparação, tal como sistemati-zada por Stuart Mill e utilizada por inúmeros cientistas sociais, é uma ope-ração lógica passível de ser operacionalizada por diferentes técnicas de pes-quisa. Cabe agora defender um modo específico de fazer comparação, istoé, estudos comparativos de poucos casos baseados no conhecimento histó-rico aprofundado de cada um deles. Na verdade, quando nos referimos aestudos comparativos de poucos casos estamos necessariamente defenden-do o uso de uma perspectiva histórica e contextual, já que estudos de Npequeno, i. e., com poucos casos analisados, não admitem o uso de técnicasestatísticas. Por essa razão, a principal crítica que se faz aos estudos de Npequeno é que eles conjugam dois problemas sérios para o controle cientí-

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12 Vale observar ainda que Max Weber sempre define seus conceitos sociológicos em termosprobabilísticos. Ver, por exemplo, os conceitos de “relação social”, “poder” e “dominação”em Weber, 1984, p. 21 e 43.

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fico: poucos casos e muitas variáveis. Esse problema (poucos casos, muitasvariáveis), por sua vez, inviabilizaria a formulação de inferências causaisseguras e, por conseguinte, a produção de ganhos teóricos (isto é, a produ-ção de generalizações). Acreditamos que quatro argumentos podem ser apre-sentados contra essa crítica.

Primeiro argumento: estudos de N pequeno e ontologia causal complexa

A crítica acerca da conjugação de poucos casos com muitas variáveisdeve ser prontamente aceita, mas deve ser também qualificada, já que osestudiosos que lançam mão de estudos dessa natureza o fazem exatamenteporque desconfiam da possibilidade de formulação de leis universais, algosupostamente factível a partir de estudos de N grande. Ao contrário, seusobjetivos consistem fundamentalmente na formulação de “generalizaçõesmodestas”, historicamente embasadas, válidas para contextos claramentedelimitados (TILLY, 1984, cap. 4)13. Esse tipo de estratégia analítica, base-ada no conhecimento histórico14 de poucos casos, seria mais adequado auma outra concepção de causalidade do mundo social que não a causalida-de linear (HALL, 2008). O entendimento de que a complexidade e a histo-ricidade dos eventos sociais não podem ser adequadamente captadas poruma visão linear de causalidade nem por uma visão panorâmica de umainfinidade de casos demandaria um tipo de estratégia analítica orientadapela busca de “combinações causais múltiplas” que operariam em contex-tos específicos e que só poderia ser colocada em prática por meio de estu-dos de N pequeno e pela análise histórica.

Esse tipo de análise seria, assim, em tudo diferente das pesquisas ba-seadas em técnicas quantitativas, que, segundo Charles Ragin, limitam-se aavaliar separadamente o impacto de cada variável independente sobre avariável dependente. Nesses casos, diz Ragin, o objetivo principal é estimar

13 Segundo David Fischer, generalizações históricas devem ter duas características fundamen-tais: a) devem ser espacial e temporalmente limitadas e b) devem ser apresentadas na forma deenunciados probabilísticos. Cf. Fischer, 1970, p. 129.

14 Segundo Charles Tilly, o conhecimento histórico é aquele que revela como o contexto em que oseventos ocorrem e a sequência em que se dão são fundamentais para a definição do resultado quese quer explicar. Assim, o desconhecimento do contexto e da sequência dos eventos comprome-teria radicalmente a explicação dos fenômenos sociais. Cf. Tilly, 1984, p. 79; 2005, p. 4, nota 1.

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a contribuição separada de cada causa para a produção do resultado anali-sado e não o efeito diferenciado de uma combinação de causas. As técnicas esta-tísticas aplicadas às ciências sociais, portanto, não permitiriam pensar emtermos de “causação múltipla” (1987, p. 64). Desse modo, diz esse autor,um investigador pode determinar, por exemplo, que a presença de X

1 au-

menta a probabilidade de Y ocorrer em 10%, enquanto a presença de X2

aumenta a probabilidade de Y em 15%, enquanto X3 e X4 não têm efeitosobre a ocorrência de Y. Concluir-se-ia, então, que, juntos, X1 e X2 aumen-tariam a probabilidade de Y ocorrer em 25%. Esse objetivo de estimar acontribuição independente de cada causa à probabilidade de ocorrência deY é inconsistente com o objetivo de determinar as diferentes combinações decondições que causam Y15.

Segundo argumento: estudos de N pequeno permitem testar teorias

Os estudos aprofundados de poucos casos podem contribuir para tes-tar teorias, confirmando-as, refutando-as (sobretudo se forem formuladasem termos determinísticos) ou reformulando-as. Uma das formas de se re-forçar teorias é o estudo de least likely cases (RUESCHEMEYER, 2008, p.311), isto é, quando se escolhe o caso menos adequado para testar a forçade uma proposição explicativa. É o que ocorre, por exemplo, no estudo deRobert Michels sobre os partidos políticos, em que ele aplica a tese da lei debronze da oligarquia ao partido de discurso democrático mais radical. Se ahipótese passar bem por esses testes mais rigorosos, mais chances ela teráde ser válida para outros casos.

15 Comentários sobre os limites dos estudos de N grande podem ser encontrados em Sartori,1970 e 1991; Hall, 2008; Tilly, 1984; Mahoney, 2008; Ragin, 1987; Rihoux e Ragin, 2009;Przeworsky e Teune, 1982; Borges, 2007. Não pretendemos, de modo algum, encampar avelha e infrutífera antinomia entre “métodos quantitativos” e “métodos qualitativos”. O nossoobjetivo é antes de tudo defender, frente ao uso indiscriminado dessas técnicas, formas alterna-tivas de pesquisa que possam revelar aquilo que os números escondem. Quanto a esse ponto,aliás, vale lembrar, contra certa ingenuidade frente aos procedimentos estatísticos, a frase deArthur Stinchcombe, para quem “um número nunca é empírico o suficiente” para ser o pontode partida de construção de qualquer teoria. De fato, para que se chegue a um número deman-da-se tanta codificação, com base em pressupostos teóricos nem sempre explicitados, que seriaingenuidade tomá-lo, como fazem alguns, como simples expressão numérica da realidade so-cial. Cf. Stinchcombe, 1978, p. 6-7. Sobre o processo social de produção dos indicadores nu-méricos como algo que afeta diretamente o resultado das pesquisas, consultar Neil Smelser,1976, p. 164-165.

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Terceiro argumento: estudos de N pequeno e recusa de modelos causais universais

A atenção à historicidade e à complexidade das relações causais per-mitiria ainda aos estudos de N pequeno baseados em análises históricasevitar o sério problema da homogeneidade do modelo causal, recorrenteem estudos de N grande. Nesse tipo de estudo, o pesquisador frequente-mente aplica um único modelo causal a todos os casos analisados, partindodo pressuposto de que o efeito da causa é o mesmo em diferentes contextos(HALL, 2008, p. 383 e RAGIN, 1987, p. 167). Ou seja, não se percebe queX pode ter o mesmo impacto quantitativo sobre Y nos contextos A e B, maso modo pelo qual X afeta Y no contexto A pode ser completamente diferen-te do modo pelo qual afeta Y no contexto B, exatamente porque o modo dearticulação de X com as demais variáveis e com Y pode ser completamente dife-rente num e noutro contexto16.

Nesse sentido, a constatação de correlações entre variáveis pouco nosrevela acerca dos processos e mecanismos que vinculam uma variável aoutra, processos e mecanismos que podem alterar qualitativamente a natu-reza da correlação entre elas (BORGES, 2007, p. 7). Não se trata, portanto,de dizer apenas que A causa B, mas como A causa B, detalhando-se a “ca-deia causal” entre ambos. Como nos lembra Sartori (1991, p. 253-54), cor-relações significativas podem ser mal interpretadas se não houver uma teo-ria que ajude a interpretar os dados e a levar em consideração o contextopara evitar afirmações fictícias. É preciso, portanto, evitar o comparativistaignorante do contexto, isto é, produzir uma (má) informação quantitativaque pode ser usada sem qualquer conhecimento substantivo do fenômenosob consideração (SARTORI, 1970, p. 1039).

Esse tipo de problema levou Charles Tilly a sugerir a inversão dosprocedimentos de pesquisa usualmente aceitos. Normalmente, os investi-

16 Uma ilustração interessante desse fato está presente na discussão de Gerscenkron acerca dos“pré-requisitos” do processo de industrialização. Segundo este autor, os pré-requisitos da in-dustrialização inglesa, por exemplo, simplesmente não existiam em outros contextos maisatrasados, cabendo ao Estado e outras instituições produzirem seus substitutos. Além disso,determinados fatores que desempenharam o papel de causa da industrialização em contextosmais avançados, como na Inglaterra, foram, em países atrasados como a Itália e a Rússia, oefeito desse processo. Cf. Gerscenkron, 1976, p. 113 e 123-24. Dizendo o mesmo em outralinguagem: o que é variável independente na Inglaterra torna-se variável dependente na Itáliae na Rússia.

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gadores se dedicam a fazer estudos quantitativos de muitos casos e, somen-te depois, análises mais aprofundadas sobre casos exemplares que cum-prem um mero papel ilustrativo. Para Tilly, nas pesquisas de N grande afamiliaridade com o contexto declina dramaticamente e, por isso, estudoshistóricos detalhados de poucos casos devem ser feitos antes de se procederà análise estatística de muitos casos, pois o conhecimento do contexto permitevalidar melhor a comparação (1984, p. 74 e 77). A ignorância dos contextoshistóricos e culturais dos estudos de N grande levou Tilly a formular o durojulgamento de que “pouco de valor durável para as ciências sociais surgiude centenas de estudos conduzidos nas últimas décadas que efetuaram aná-lises estatísticas incluindo a maioria dos estados nacionais” (1984, p. 77)17.

Quarto argumento: estudos de N pequeno permitem formular novas hipóteses e teo-rias a partir do conhecimento histórico

A recusa de modelos causais universais não implica dizer que os adep-tos dos estudos de N pequenos rejeitam a possibilidade de qualquer tipo degeneralização e de ganhos teóricos. A comparação exaustiva de poucos ca-sos complexos pode levar à elaboração de novas hipóteses e teorias válidaspara contextos similares. Quanto a esse ponto, Rueschmeyer (2008, p. 321-322) cita como exemplo os tipos ideais de Weber como uma formulaçãoteórica que nasce da comparação entre casos históricos. Ele lembra que ostipos ideais não são apenas instrumentos descritivos, mas comportam pro-posições teóricas. Por exemplo, ao estudar a relação entre capitalismo raci-onal e Estado moderno, os tipos ideais weberianos sobre os dois fenôme-nos permitem dizer que a racionalidade econômica tende a ser maior quan-to mais a ordem política se aproxima da racionalidade jurídica, o que éclaramente uma generalização causal válida para algumas partes do Oci-dente (RUESCHEMEYER, 2008, p. 321-322). No entanto, tal proposição

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17 Na verdade, os adeptos dos estudos de N grande e de técnicas estatísticas defendem a possibilida-de de inserção de dados contextuais, por exemplo, por meio do uso de variáveis dummies queindicariam a presença ou ausência de uma dada qualidade contextual. Cf., por exemplo,Przeworsky e Teune, 1983, p. 13 e 26. No entanto, é preciso observar que o uso desse procedi-mento de dicotomização pressupõe um profundo conhecimento do contexto histórico dos casosanalisados a fim de que essa codificação não seja mera ficção. De qualquer forma, apesar de útil,ele representa sempre uma ostensiva simplificação da realidade. Cf. Rihoux e Ragin, 2009.

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causal nunca é apresentada na forma de uma lei universal. O retorno aosdados históricos permite mostrar que há importantes exceções (a Inglater-ra, por exemplo) que exigem uma qualificação melhor daquela proposição.Portanto, estudos de N pequeno conduzem a uma interação mais direta efrequente entre desenvolvimento teórico e dados, uma combinação maispróxima entre pretensões conceituais e evidência empírica (RUESCHE-MEYER, 2008, p. 318). Não é verdade, portanto, que estudos de N peque-no não possam produzir ganhos teóricos.

Primeiramente, se operacionalizado por meio da lógica comparativa(sobretudo o método indireto da diferença), esse tipo de estratégia analíticanão está condenado a produzir um conhecimento estritamente idiográfico,sendo capaz de produzir explicações com alguma possibilidade de gene-ralização na medida em que a comparação histórica permita identificar pa-drões de ocorrência dos eventos (revoluções, industrialização, construção deEstados nacionais, reforma agrária, etc.). Ao mesmo tempo, porém, por seruma comparação histórica, esse tipo de procedimento produz “generaliza-ções modestas”, que reconhecem a especificidade dos padrões detectados,válidos para certas épocas e regiões do planeta. A comparação histórica, por-tanto, permite a produção de generalizações historicamente embasadas, ummeio-termo entre o conhecimento estritamente idiográfico e a formulação desupostas leis universais. Como diz Bendix, o objetivo da análise históricacomparativa é formular proposições “que são verdades para mais de umasociedade, mas não para todas as sociedades” (BENDIX, 1963, p. 539).

Portanto, os estudos de N pequeno conferem lugar de destaque à nar-rativa histórica como passo importante para elaborar teorias com base em“analogias históricas” sem recorrer a “teorias epocais” que formulam ex-plicações universais e apriorísticas sobre épocas inteiras da história huma-na (STINCHCOMBE, 1978, p. 7 e 19-22). Quanto a esse ponto, Ruesch-meyer (2008, p. 323) lembra o exemplo de Theda Skocpol, que, nos seusestudos sobre revoluções sociais, apresenta seus casos por meio de narrati-vas detalhadas que identificam uma série de eventos causalmente conecta-dos, compara tais narrativas e, por fim, identifica um padrão de estrutura deeventos que é enunciado como causa do fenômeno nos três casos analisados.

Em segundo lugar, a comparação histórica é inerentemente preocu-pada com a identificação de padrões (semelhanças) e de singularidades (di-

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ferenças), sendo, portanto, um instrumento adequado para a produção declassificações pertinentes. Dessa maneira, a comparação histórica nos per-mite evitar aquilo que Sartori (1991) chamou de catdogs, ficções inexisten-tes, fruto sobretudo de maus procedimentos classificatórios. Boas classifi-cações representam ganhos teóricos inestimáveis para qualquer ciência e jáproduzem por si só algum grau de generalização.

Em terceiro lugar, a comparação histórica permite ir além da simplesconstatação da existência de correlação entre variáveis. O conhecimentoda história é, por definição, o conhecimento do processo, do modo e dasequência em que os fatos se dão. Sendo assim, a narrativa histórica permi-te revelar a cadeia causal que preenche o “espaço vazio” entre as variáveisindependentes e as variáveis dependentes. Desse modo, a recuperação his-tórica de um processo permite realizar aquilo que Peter Hall chamou deprocess tracing (ou “análise sistemática de processos”), isto é, o rastreamentodo processo que vai de uma variável causal até o seu efeito.18 É importanteobservar, entretanto, que a narrativa histórica na análise comparativa nãodeve ser confundida com a descrição exaustiva e detalhista de uma infini-dade de eventos e fatos históricos desconexos. Não se trata, portanto, deapenas “contar história”. Essa narrativa, ao contrário, só reconstruirá efeti-vamente a “cadeia causal” se for feita em termos de identificação e encade-amento de causas adequadas (para manter a terminologia weberiana), istoé, recuperando aqueles fatos cuja presença (e articulação entre eles) for fun-damental para a produção do fenômeno que se pretende explicar19.

Por fim, a análise histórica é fundamental para uma perspectiva ana-lítica amplamente utilizada atualmente pelos cientistas sociais, a saber, aperspectiva da path dependence. Segundo Peter Hall, a literatura sobre pathdependence enfatiza dois pontos com sérias implicações para a análise cau-

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18 Como exemplo, esse mesmo autor utiliza a correlação existente entre governos social-demo-cratas e arranjos corporativos de representação de interesse. Diz ele: “Não é suficiente [...]dizer que a presença de social-democratas no governo explica o desenvolvimento de arranjosneocorporativos. Para ter um poder explicativo, qualquer teoria desse efeito deve conter algu-ma explicação da cadeia causal por meio da qual um conduz ao outro” (HALL, 2008, p. 393,nota 16). Outro exemplo dessa posição pode ser encontrado na seguinte passagem do livro deKarl Polanyi: “Mesmo que consigamos comprovar, fora de qualquer dúvida, que no cerne datransformação estava o fracasso da utopia do mercado, ainda temos que mostrar de que ma-neira os acontecimentos reais foram determinados por essa causa” (POLANYI, 2000, p. 256).

19 Agradeço a Paolo Ricci por essa observação.

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sal. Primeiro, reconhece que os desenvolvimentos causais de grande impor-tância para o entendimento de um dado fenômeno ocorrem com frequên-cia bem no início de uma longa cadeia causal. Segundo, sugere que ocor-rências iniciais podem mudar o contexto de um caso tão radicalmente queos desenvolvimentos subsequentes de um mesmo fenômeno terão diferen-tes efeitos em casos diferentes (HALL, 2008, p. 384-85). Nesse sentido, nãose pode pressupor que o impacto do evento x será o mesmo em qualquercontexto. A intensidade e a natureza do impacto de x dependerão do fatode a sua ocorrência se dar antes ou depois de w, por exemplo. Por essarazão, “teorias da path dependence dirigem explicitamente a nossa atençãopara a importância da narrativa histórica (sempre em termos de causas ne-cessárias e suficientes). Elas implicam que resultados correntes raramentepodem ser explicados apenas com referência ao presente ou ao passadoimediato” (HALL, 2008, p. 385). Como dissemos anteriormente, a análisehistórica comparada, com seu pendor para reconhecer as singularidadescontextuais, desconfia fortemente de modelos causais homogêneos, o que éplenamente coerente com a perspectiva da path dependence.

Do que foi dito acima podemos concluir mais uma vez que a compa-ração historicamente embasada permite evitar tanto generalizações abstra-tas e vazias, de um lado, como, de outro, a “história total” à la FernandBraudel, isto é, o conhecimento exaustivo de todos os detalhes de uma épo-ca (TILLY, 1984, p. 65-74). Dizer que o conhecimento histórico comparativoestá a serviço da produção de generalizações modestas (mas não artificiais)significa dizer que ele pode, sim, gerar ganhos teóricos para as ciências so-ciais, diferentemente do que dizem os adeptos radicais dos estudos quanti-tativos de muitos casos. Ao contrário do que sugere Neil Smelser (1976, p.157-158), portanto, o uso da história comparativa não serve apenas parafins ilustrativos, sendo fundamental para revelar adequadamente as rela-ções causais que produzem os fenômenos sociais em determinadas épocas.

Conclusão

O objetivo deste capítulo não foi defender qualquer estratégia de “pu-reza metodológica”, a nosso ver sempre infrutífera sob qualquer ponto devista. Os cientistas sociais devem ter uma relação utilitária com métodos e

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técnicas de pesquisa. Dependendo do objeto de análise e da questão de pes-quisa, alguns procedimentos são analiticamente mais rentáveis que outros.

No entanto, esse não parece ser a espírito que vigora em algumasáreas das ciências sociais contemporâneas. O que presenciamos hoje pare-ce ser a defesa, algumas vezes implícita, outras explícita, de que a únicapesquisa realmente válida é aquela ancorada em estudos que abarcam mui-tos casos e em técnicas estatísticas de controle de variáveis. Sem a menorintenção de refutar a validade desse tipo de estratégia investigativa, procu-ramos, porém, apontar alguns de seus limites (raramente expostos pelosseus adeptos) e como eles podem ser contornados por formas alternativasde investigação, notadamente o uso da comparação histórica.

Por fim, ao expor as vantagens desses procedimentos investigativos,sugerimos que teríamos muito a ganhar com um retorno às contribuições(metodológicas e substantivas) de Max Weber. Toda a terminologia hojemobilizada pelos sociólogos e cientistas políticos que utilizam a compara-ção histórica em suas pesquisas – “multicausalidade”, “combinação cau-sal”, “causação conjuntural”, “generalização modesta”, “rastreamento deprocessos”, “indução histórica analítica”, “path dependence” – não passa,no fundo, de uma nova maneira de expressar proposições teóricas e meto-dológicas há muito tempo encontradas na epistemologia weberiana. Acre-ditamos, portanto, que por detrás de toda essa “inovação” há, ao contráriodo que sugere Peter Hall (2008, p. 394, nota 19), bem mais do que “algumasimpatia” por Max Weber.

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PERISSINOTTO, R. • Comparação e história na ciência social

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Poder, instituições e elites

Igreja e construção nacionalno Brasil e na Argentina

Ernesto Seidl1

A principal finalidade deste texto é retomar discussões consagradasno campo de estudos sobre construção nacional, formação do Estado e dosistema político e procurar atualizá-las com base em perspectivas menoscorrentes ou consideradas pelas ciências sociais no Brasil. Dentro de temá-tica muito ampla, a atenção está voltada ao papel e peso da Igreja Católicanos processos argentino e brasileiro de construção nacional. Com ambi-ções muito limitadas – inclusive pela mobilização exclusivamente de fontessecundárias, elemento que, sem si, é muito problemático2 –, procura-se for-necer pistas para problematizações analíticas e encaminhamentos de pes-quisa pertinentes.

Nation-building em contextos periféricos

Como é sabido, o vasto campo de estudo sócio-histórico voltado paraos processos de nation/state-building tradicionalmente vê-se às voltas comquantidade muito grande de variáveis a examinar, e seu conteúdo muda deacordo com as diferentes linhas epistemológico-teóricas disponíveis. Porseu propósito muito específico, o presente trabalho ficará restrito a um exer-cício que toma em conta apenas a variável religiosa no contexto de forma-ção dos Estados nacionais na Argentina e no Brasil.

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe.Pesquisador do Laboratório de Estudos do Poder e da Política – LEPP.

2 Caberia mencionar rapidamente, ao mesmo tempo a escassez de estudos empíricos (monográ-ficos ou comparativos) e, por outro lado, a disponibilidade de uma bibliografia sobre a “históriada Igreja” produzida quase inteiramente por indivíduos comprometidos em algum grau com ainstituição. No caso brasileiro, isso é evidente, por exemplo, nas publicações coordenadas porpadres, teólogos e “historiadores da Igreja”, no sentido mais ambíguo do termo. Exemplo clarodisso é a coleção História Geral da Igreja na América Latina, editada pela Vozes, editora con-trolada por franciscanos há mais de um século.

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Em um nível geral, cabe apontar, de início, uma questão mais amplada problemática abordada, a qual diz respeito à centralidade do exame dasrespectivas dinâmicas de formação do Estado nos dois países apontados,tomando-se em conta suas peculiaridades históricas, estruturações sociais econtextos culturais. Pretende-se tornar claro, por essa via, um posiciona-mento que vai de encontro a vertentes clássicas de estudo de formação esta-tal, todas elas fundadas, em maior ou menor medida, em uma visão deuniversalidade do fenômeno político e sobretudo do Estado-nação e, conse-quentemente, voltadas à observação de suas distintas variações no tempo eno espaço e ao seu enquadramento no espectro de um suposto desenvolvi-mento político (BADIE, 1980). Em contrapartida, o pressuposto epistemo-lógico em que se baseia a perspectiva aqui defendida centra-se na compre-ensão dos fenômenos políticos em sua multiplicidade e especificidade, colo-cando-se justamente a comparação como recurso para a apreensão de va-riantes históricas e culturais. Dessa forma, o desenvolvimento relativamen-te recente de uma vertente de caráter culturalista no interior da SociologiaHistórica ou Sociologia do Estado3 tem fornecido um leque de questões degrande fertilidade.

Um aspecto central nesta corrente, em particular nas obras de Ber-trand Badie, Pierre Birnbaum e Guy Hermet, diz respeito à concepção dosfenômenos de constituição do poder político em termos de dinâmicas quenão obedecem a determinantes universais nem a sequências necessárias.Ao mesmo tempo, também apontam a existência de um fenômeno históri-co mais amplo de expansão de uma esfera propriamente política ocidental,cuja característica é justamente “autoproclamar-se universal” (BADIE, 1992,p. 69 e segs.). Ou seja, se toda a orientação desta vertente baseia-se nasnoções de diversidade e especificidades das manifestações do “político”,indissociáveis das noções de cultura e história, por outro lado ela chama

3 Às vezes, também denominada genericamente Política Comparada, trata-se de uma vertenteteórica iniciada com trabalhos debruçados sobre padrões comparados de construção nacional,herdeiros notadamente da sociologia de Max Weber e de Norbert Elias. Para uma visualizaçãogeral do estado da arte nesse campo no início dos anos 1990, ver especialmente a edição n. 133(1992) da Revue Internationale des Sciences Sociales, e o artigo de Bertrand Badie & Pierre Birn-baum, intitulado Sociologie de l’État revisitée, publicado na mesma revista, n. 140 (1994); paraquestões mais gerais sobre a reaproximação entre história, sociologia e estudos da política, verDéloye (2003), Déloye & Voutat (2002), Offerlé & Rousso (2008) e Tilly (1981, 2001, 2007).

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atenção com muita ênfase ao inegável contexto de sua universalização, en-tendida como ocidentalização, do fenômeno (BADIE, 1992; BADIE &HERMET, 1993).

Partindo da visualização de uma crescente generalização das formasocidentais do “político” em contextos não-ocidentais, isto é, países ou regi-ões de tradição totalmente alheia a tal processo (América, África e Ásia) einclusive, como é o caso da América, de estruturas sociais completamenteextintas com a chegada das potências colonizadoras ocidentais, esta pers-pectiva acaba lançando ampla agenda de questões a serem devidamenteencaradas. Como fazem ver com clareza os trabalhos acima mencionados,o processo de difusão de um modelo europeu de formação estatal nacionalnão pode ser desvinculado de uma ambição do Estado à sua universalidadecomo estrutura (“melhor”, “mais desenvolvida”, “inevitável”, “moderna”,“racional”) de organização do poder político. De fato, pelo menos a partirdo século XVI, a crescente circulação dos governos e das relações interna-cionais propiciou a formação de um código comum para todos os atores dosistema internacional, favorecendo assim o surgimento de uma cena inter-nacional na qual cada vez mais são difundidas categorias ocidentais de pen-samento. A construção dos Estados ditos periféricos – no qual se inseremArgentina e Brasil –, resultado de uma relação de subordinação às metró-poles, coloca em foco a ambiguidade dos processos de homogeneizaçãodos âmbitos políticos. Desde vários pontos de vista, o Estado periférico seestrutura como se sobre ele devessem estabelecer-se as relações de depen-dência que os unem aos Estados hegemônicos. Por um lado, a dependênciapropicia a territorialização dos âmbitos políticos, a construção de um cen-tro de poder e a formação de estruturas burocráticas, ainda que, por outro,contribua para limitar a soberania do Estado, a constituição de uma socie-dade civil diferenciada e estruturada e o estabelecimento de fórmulas delegitimação suficientemente sólidas.

A importação de modelos exógenos, além dos efeitos citados, tem comoconsequência o surgimento de um Estado híbrido, fruto do transplante deinstituições estrangeiras ao interior de sociedades culturalmente diversas,de tradição completamente desconhecida frente ao modelo importado. Postoque suas condições de surgimento e de uso social nunca podem ser repro-duzidas em outras situações, por serem resultado de uma história e cultura

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específicas, a estrutura implantada passa por um processo de adaptação einterpretação que implica necessariamente modificações significativas nomodelo adotado, a ponto de, em muitos casos, resultar em uma deforma-ção do paradigma original (BADIE & HERMET, 1993, p. 180-209).

As implicações analíticas e metodológicas dessa perspectiva são mui-tas e de difícil resolução. Em primeiro lugar, colocam-se a centralidade e aamplitude do fenômeno, fazendo com que todo pesquisador debruçado sobretais contextos tenha de tomá-lo devidamente em conta ao conduzir seusestudos, por mais variados que sejam os objetos. Provavelmente o principalefeito negativo acarretado pela desconsideração desta dimensão de análiseseja percebido na quantidade não negligenciável de abordagens históricas esociológicas que veem em fenômenos sociopolíticos recorrentes em paísesperiféricos – com toda sua sorte de ismos (populismo, coronelismo, clientelismo,autoritarismo, personalismo) – manifestações de “atraso”, “subdesenvolvimen-to”, “excrescência” ou “perversão”, sempre em comparação à “moderni-dade ocidental”. Tais conclusões, cujos pressupostos ancoram-se em algunsdaqueles que Charles Tilly (1985) chamou de postulados perniciosos daSociologia Histórica – sobretudo o “desenvolvimentismo/evolucionismo”e a “modernização” –, foram por décadas dominantes no cenário das Ciên-cias Sociais e, em especial, nas suas áreas comparativas4. Da mesma forma,aparecem de modo mais sutil em análises que, embora percebam e reco-nheçam concretamente sua ocorrência – como é o caso relativo às influên-cias “iluminista”, “republicana”, “liberal” e “positivista” nos ideários ar-gentino e brasileiro do século XIX, assim como às artes nativas desde oinício da colonização –, não conseguem evitar a armadilha de julgá-las como“ideias fora do devido lugar”, e, portanto, “disfuncionais”, “anômalas”,“absurdas”, etc.

Em segundo lugar, surgem os problemas propriamente metodológi-cos e de caráter operacional ligados ao empreendimento analítico. Assim,se de um lado deve-se tentar apreender os princípios que regem os proces-sos de importação e exportação de modelos, filosofias e ideologias políti-cas, bem como suas complexas adaptações e readaptações, isto é, suas lógi-

4 Uma exposição detalhada e as respectivas críticas endereçadas a estas correntes podem serencontradas especialmente em Badie (1980, 1983), Badie & Hermet (1993) e Tilly (1985).

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cas de consumo, em contextos culturais diferentes dos de origem, de outrolado, como aponta Coradini (1996), há uma gama importante de questõesde metodologia que ainda estão por ser resolvidas. Incluem-se nelas as for-mas de se lançar luz sobre o conjunto de atores envolvidos nos processos deimportação e exportação, através da explicitação dos interesses em jogo edas lógicas de orientação da escolha dos bens envolvidos, e, principalmen-te, de se capturar com certa precisão os efeitos da importação desses benssobre as respectivas estruturações sociais importadoras. Quanto a essas di-ficuldades de operacionalização e de estruturação do objeto dentro da pro-blemática enfocada, não há dúvida de que, além da complexidade analíticaem que estão envolvidas, elas devem-se em larga medida ao próprio estágioainda inicial de sua apropriação por cientistas situados fora do eixo norte-americano e europeu5.

Algumas variáveis

Uma vez expostos, de modo muito sumário, o enquadramento cen-tral do tema e algumas questões pertinentes à construção do objeto, cabeagora tentar situá-los mais claramente dentro das perspectivas teóricas aci-ma apontadas. Ao mesmo tempo, indicam-se alguns níveis e variáveis deanálise a serem privilegiados.

Como foi sugerido acima, o ponto de partida para o exame dos pro-cessos de formação do Estado nacional no Brasil e na Argentina consisteprecisamente em considerar a condição periférica em que se desenvolveme, portanto, tomar em conta as diferentes possibilidades de criação, adapta-ção e hibridação encontráveis na constituição de um aparato político cen-tralizado e legítimo. Assim, se uma noção de “Estado”, de instituições po-lítico-administrativas “estatais” e de um léxico “político ocidental” estãopresentes tanto na Argentina quanto no Brasil, também a existência da IgrejaCatólica – parte dos empreendimentos colonizadores espanhol e portuguêsdesde seu início – deve ser apreendida em sua lógica peculiar de instituição

5 Podem-se mencionar alguns trabalhos produzidos no Brasil que incluem em sua análise ospressupostos centrais contidos nesta problemática de importação de bens simbólicos; em espe-cial, Coradini (1996), Anjos (2002) e Seidl (2010).

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ocidental estabelecida em um contexto exógeno. É exatamente nesse senti-do que se pretende aqui explorar algumas vias para o entendimento dopapel muitas vezes ambíguo desempenhado pela Igreja na construção dasnações argentina e brasileira, destacando sua atuação subordinada ao Esta-do como parte do aparato administrativo empenhado no trabalho de domi-nação social.

A longa manutenção da Igreja dentro da órbita do Estado naquelesdois países, garantida constitucionalmente através do regime de padroado,deve ser examinada em sua dimensão funcional como característica revela-dora dos problemas de institucionalização e legitimação de uma ordempolítica leiga. Quanto a este aspecto, seria necessário explorar comparati-vamente as funções específicas desempenhadas pela Igreja Católica – intei-ramente subordinada ao poder estatal, mas significativamente também partedele – nos trabalhos de dominação e de legitimação sociais (inculcação desímbolos, valores e ideais nacionais, consagração de grupos sociais e deprojetos políticos, etc.). Nesse mesmo sentido, seria pertinente introduziruma questão ainda pouco trabalhada pela bibliografia disponível: as rela-ções entre a formação de uma esfera política e o processo de institucionali-zação da Igreja pós-padroado por meio da expansão de uma rede escolarreligiosa responsável pela educação de grande parte das elites políticas e deoutros grupos dirigentes. Isto é, mais além das ligações formais entre ospoderes secular e espiritual, de exame sem dúvida necessário, isto consti-tuiria uma tentativa de apreensão da dinâmica de suas relações objetivasem sua maior abrangência.

Estado híbrido e dinâmica política

Como mostra amplamente a bibliografia dedicada à formação doEstado na Europa ocidental, este tem sua gênese em um lento processo decentralização do poder político em torno de um monarca que consegue,com maior ou menor êxito, eliminar gradativamente forças sociais e políti-cas concorrentes (exércitos e outras forças militares privadas, Igreja, forçascomerciais, etc.), extinguindo-as ou subjugando-as. Como apontam Badie& Birnbaum (1979, p. 159), entendido como produto de uma formaçãosocial precisa e determinada, o “Estado-nação se impõe naturalmente como

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uma fórmula política que traz a marca de uma cultura cuja importâncianão se poderia subestimar”, sendo sua “invenção controlada e materializa-da pelos modelos culturais próprios à Europa ocidental”. Especificamentequanto à Igreja e ao poder religioso, muitas são as indicações que ressaltamo peso da variável religiosa na explicação dos vários formatos estatais quetomaram corpo naquele continente. Contudo, em que pese a existência devariações internas consideráveis (recortes entre tradição católica e protestan-te, com suas variantes nacionais), a constituição de um centro político unifi-cador vai inevitavelmente de par com uma separação relativamente clara en-tre os poderes religioso e político, fenômeno este que também é mais amplo ese estende a outras esferas sociais, as quais vão progressivamente descolan-do-se e autonomizando-se umas frente às outras. De fato, o surgimento deuma esfera política autônoma como “modo privilegiado de resolução dastensões e dos conflitos” (Ibid., p. 159), acompanhada de um aparato burocrá-tico-administrativo especializado, implica, neste contexto, uma recomposi-ção do poder religioso, com perda de terreno na esfera social do político.

Autores como Bertrand Badie, Pierre Birnbaum e René Rémond, entreoutros, ressaltam o peso das relações entre o sistema político e o religiosono processo de dissociação de um nível propriamente “político”. Segundoesta perspectiva, “seria incontestável que o cristianismo desempenhou pa-pel decisivo na construção do Estado”, papel que “não cessou de crescer àmedida que a religião cristã proclamou a autonomia do poder espiritual emrelação ao poder temporal e desenhou assim, em negativo, os contornos deum campo político específico” (BADIE & BIRNBAUM, 1979, p. 160). Deoutro lado, se a história europeia de construção estatal nacional tem nasecularização da política um fator crucial para sua realização, a realidadedos países situados fora daquela órbita parece ser bastante distinta. Em pri-meiro lugar, cabe considerar as dificuldades nas tentativas de empreendi-mento de um aparato político-administrativo dentro de situações históricase de contextos sociais e culturais distintos do ocidental. Ou seja, não ape-nas as condições de dispersão do poder por vastos territórios nas mãos deproprietários fundiários geralmente armados (estancieiros, caudilhos, co-ronéis) – como são os casos brasileiro e argentino –, mas também a própriainexistência de um fenômeno de autonomização da esfera política e buro-crática conduziram a dinâmicas estatais.

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Diferentemente da história europeia de construção de uma ordemestatal, as dinâmicas estatais argentina e brasileira são fortemente marca-das por tendências centrífugas que atuaram em sentido contrário à institu-cionalização de uma ordem política centralizada. A fim de explicar as par-ticularidades das dinâmicas do poder político sobretudo no contexto lati-no-americano, muitos especialistas encontraram no conceito de neopatrimo-nialismo6 instrumento-chave na interpretação das constantes tensões resul-tantes da implantação de modelos híbridos de Estado. Com base nesse re-curso analítico, os sistemas políticos da América Latina são compreendi-dos como estruturados em torno da pessoa do chefe político (presidente,monarca, caudilho, latifundiário) e tenderiam a reproduzir um modelo dedomínio personalizado, orientado à proteção da elite no poder e limitandoao máximo o acesso da periferia aos recursos do centro.

Embora Argentina e Brasil possam ser enquadrados nestas condiçõesde dispersão e personificação do poder, alguns traços estruturais derivadosdo período colonial diferenciam seus processos de formação do Estadonacional ao longo do século XIX. Para Trindade (1985a, p. 64), dois aspec-tos devem ser observada inicialmente na comparação dos casos brasileiro eargentino. Primeiro, as diferenças na organização da economia, relativa-mente restrita na Argentina quando comparada às conexões mais amplasencontradas no Brasil. Segundo, o peso do legado institucional político-administrativo, que, no caso brasileiro, “era mais complexo, engendrou aformação de um estamento burocrático que transmitiu-se intacto em fun-ção da forma pacífica da transição para a independência”; no caso argenti-no, por sua vez, teve-se a “herança de um arcabouço institucional maissimples e descentralizado em função do tipo de controle metropolitano”,cuja estrutura foi totalmente alterada pelo longo e conflitivo processo deunificação nacional.

Ao lado desses fatores colocam-se, no exame empreendido por Trin-dade, três outras variáveis fortes para a compreensão dos diferentes padrões

6 De acordo com Badie & Hermet (1993), deve-se a Samuel Eisenstadt sua sistematização natentativa de compreensão dos fenômenos políticos em sociedades em desenvolvimento. NoBrasil, Raymundo Faoro (1958) renovou as reflexões sobre a constituição do Estado brasileiroao usar essa categoria e mostrar o peso do legado português dentro da história do país. Outrotrabalho apoiado nessa nessa vertente é o de Uricoechea (1978).

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de desenvolvimento político (em sentido não evolucionista) e do timing dosprocessos de estruturação de um aparato estatal nos dois países estudados.São elas: o perfil das elites políticas e o seu grau de autonomia frente àsclasses economicamente dominantes; o peso das forças armadas (Exércitoe, sobretudo, milícias civis ou guardas nacionais); e o grau de dissociaçãoentre o poder político e a Igreja. Na hipótese apresentada pelo autor, “asdiferentes formas de interação desses três fatores com o processo de cons-trução da ordem política, durante a segunda metade do século XIX, têminfluência decisiva no ritmo de implantação do Estado nacional” (Ibid., p.67) e podem explicar, em boa medida, a formação precoce de um centropolítico no Brasil em contraposição à construção tardia do Estado na Ar-gentina.

Igreja e Estado na formação de nações

Sem desconsiderar a importância da conjugação de todas as variá-veis apresentadas, cabe, a partir daqui, centrar o foco naquela que diz res-peito à relação da Igreja com o “político” e seu respectivo peso na elabora-ção de ordens sociais legítimas. Nessa pista, um primeiro ponto a ser nota-do no estudo comparativo da vinculação entre Estado e Igreja na Argenti-na e no Brasil é a inexistência de contrastes marcantes tais como percebidosem outros aspectos (formação das elites políticas e estruturação das forçasarmadas, por exemplo). De fato, ambos os países são originários de umahistória de colonização realizada por potências europeias de longa tradiçãocatólica e apresentam em seu desenvolvimento, desde muito cedo, fortepresença da Igreja em ambos os territórios, em especial com a atuação pio-neira dos jesuítas nas reduções indígenas. Desde o início, o empreendimen-to colonizador levado a cabo pelas Coroas ibéricas revelava-se uma “cruza-da na qual objetivos políticos estavam essencialmente misturados com ob-jetivos religiosos” (CORNEJO, 1972, p. 26), os quais, ao mesmo tempo emque contribuíam para a legitimação da dominação política através de sua“bênção divina”, valiam-se desta para garantir a continuidade e a penetra-ção da instituição encarregada do plano espiritual. Talvez com algumaspequenas variações, tanto o processo colonizador espanhol quanto o portu-guês na América Latina tiveram na Igreja um agente valioso.

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Com relação ao caso português, destaca-se a divisão de tarefas ocor-rida entre Estado e Igreja na manutenção do domínio colonial e em suaocupação efetiva, cabendo ao primeiro o papel fundamental de garantir asoberania portuguesa sobre a Colônia, dotá-la de uma administração, de-senvolver uma política de povoamento e resolver problemas básicos. Estatarefa pressupunha, de outro lado, o reconhecimento da autoridade do Es-tado por parte dos colonizadores que se instalariam no Brasil, seja pelaforça, pela aceitação dessa autoridade, ou por ambas as coisas. Nesse senti-do, o papel da Igreja era relevante, pois, ao ter em suas mãos a educaçãodas pessoas, o controle das almas na vida diária era um instrumento muitoeficaz para veicular a ideia geral da obediência e, em especial, a de obediên-cia em relação ao Estado.

A condição de baixa diferenciação entre Igreja e Estado e, sobretudo,de subordinação da primeira ao poder monárquico deve ser entendida den-tro do padrão de relações estabelecidas entre as Coroas espanhola e portu-guesa e a Igreja de Roma. A estratégia católica de conceder a ambas asmonarquias o direito de padroado real sobre sua instituição em todos os ter-ritórios descobertos, em troca da garantia de organização e proteção daIgreja nas novas terras, permitiu a estruturação de formas complexas derelacionamento entre os dois poderes. Há várias indicações de que as ten-sões e conflitos constantes que caracterizam suas relações, especialmenteno final do século XVIII e ao longo de todo o século seguinte, derivam daproblemática de um mau delineamento dos limites de competência de cadaesfera e da estreita submissão da Igreja ao poder temporal.

Ao contrário do processo secularizador ocidental de constituição dopolítico – objetivado na forma de Estado-nação –, no qual gradativamentevê-se um relativo distanciamento do poder espiritual frente às questões tem-porais e, em consequência, a afirmação de uma esfera pública cujo princí-pio de legitimação passa a ser buscado em outras mitologias sociais (“de-mocracia”, “bem comum”, “bem público”, “vontade geral”) –, a dinâmicade construção de uma esfera política nos contextos argentino e brasileiromostra-se menos dicotomizada. Se durante todo o período colonial o regi-me de padroado havia vigorado nos territórios conquistados, os processosde independência dos dois países não apenas não implicaram sua extinção,como acabaram por reafirmá-lo através de sua consagração nos textos cons-

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titucionais, fazendo da religião católica a religião oficial do Estado. Poroutro lado, se a manutenção da Igreja sob a tutela do Estado e como reli-gião oficial manifesta um interesse em legitimar o “político” com base emprincípios de outra esfera (espiritual), coloca-se em estreita conexão a estefato a possibilidade de utilização da instituição católica e de seus quadroscomo parte do aparato administrativo. Assim, se não eram poucas as dificul-dades de constituição de uma estrutura burocrático-administrativa ampla eprofissionalizada, dada a escassez de recursos e de instituições formadoras, aincorporação funcional dos serviços da Igreja ao empreendimento estatalobedecia à lógica patrimonialista de se valer, a um preço muito baixo, deestruturas não-profissionais (burocrático-racionais) de administração7.

Como já foi referido, por sua presença ao longo de grande parte doterritório dos países em questão, a Igreja Católica – assim como viria a sercom a Guarda Nacional no Brasil – podia simultaneamente levar a palavrade Deus e a palavra do Estado de modo mais homogêneo àqueles cuja obe-diência e crença eram fundamentais na criação de um sentimento nacionalunitário. Mais próximos dos indivíduos e da comunidade do que qualqueroutro agente público, não há dúvidas sobre o poder privilegiado de penetra-ção do clero em meio a uma sociedade altamente dispersa. No entanto, háque se ressaltar outros aspectos peculiares da presença eclesiástica nos con-textos estudados. O primeiro deles concerne à intensa atuação da Igrejanos movimentos de independência argentino e brasileiro, bem como emmovimentos revolucionários, sociedades secretas e academias entre o finaldo século XVIII e as primeiras décadas do século XIX (CARVALHO, 1996;CORNEJO, 1972; FARREL, 1976).

7 Exemplo significativo e bem-sucedido da utilização de “serviços litúrgicos” na construção deuma ordem social e política no Brasil é o caso da Guarda Nacional, criada sob o molde francêsem 1831. Para Uricoechea (1978, p. 304-305), “a contribuição da Guarda Nacional para acriação de um Estado burocrático moderno foi impressionante: a relevância das milícias noprocesso de construção do Estado reside, entre outras coisas, em sua participação – por vezesexclusiva – na criação e manutenção de uma rotina administrativa de governo local que erauma condição necessária para o desenvolvimento de uma ordem institucional além dos confinsda sociedade patriarcal”. Na visão do autor, da qual compartilha Trindade (1985a), o empregoda ordem prebendalista dessa milícia cívica constitui um fator explicativo do sucesso obtidopelo Estado brasileiro em sua constituição quando comparado com a Argentina e outros paíseslatino-americanos.

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O envolvimento expressivo de parte do clero (inclusive de alta hierar-quia) não somente nos movimentos independentistas, mas também em umasérie de outros mais amplos, não pode deixar de ser relacionado ao fato dea instituição religiosa representar uma porta de entrada privilegiada paraideias, filosofias e ideologias originárias de centros da Europa e dos Esta-dos Unidos. Com efeito, as maiores oportunidades de acesso à literaturailustrada e de contato direto ou indireto com o pensamento produzido nocontexto revolucionário europeu (e norte-americano) permitiram ao cleroexercer papel importante, no contexto colonial e posterior, na recepção,reelaboração e divulgação de ideários liberais e iluministas e de suas diver-sas interpretações. Ainda que referências à participação da Igreja nessesmovimentos sejam encontradas nas bibliografias relativas aos dois países, ésobre o Brasil que se dispõe de maior quantidade de informações. Por outrolado, há também indicações de que sua extensão tenha sido mais ampla nocaso brasileiro devido à melhor estruturação da Igreja, sobretudo pela maiorquantidade de seminários existentes8.

Em conhecido estudo sobre a elite política imperial brasileira, JoséMurilo de Carvalho compara algumas características contrastantes entremagistrados e clérigos e relaciona suas origens sociais e formação com umcomportamento diferenciado. Segundo Carvalho (1996, p. 167), “comomembros de uma burocracia ou como indivíduos, os padres se distinguiamdos magistrados” e, “apesar do Padroado, a burocracia eclesiástica era fon-te constante de conflitos potenciais com o Estado”, diferentemente da ten-dência estatista e conservadora incorporada pelos magistrados reais. E, se-gue o autor, “a formação do clero era menos nacional e menos estatista emseu conteúdo; a origem social do grupo como um todo era provavelmentemais democrática; as menores possibilidades de ascensão na carreira torna-

8 De qualquer modo, a realidade da Igreja nos dois países diferia muito pouco também nesseaspecto. O seminário de Buenos Aires esteve fechado de 1792 a 1865 e o de Salta, de 1813 a1852. No Brasil, os seminários dependentes dos bispos (episcopais) só surgiram a partir de1747, ainda sob os cuidados dos jesuítas. “Com a expulsão da Ordem, vários deles foram fecha-dos temporária ou permanentemente, tal sendo o caso dos seminários da Bahia, Paraíba, Ma-ranhão, Mariana, São Paulo, Pará. O único mais estável foi o do Rio de Janeiro, criado em1739, independente dos jesuítas. Após a expulsão, o único seminário episcopal a ser criado foio de Olinda, em 1800” (CARVALHO, 1996, p. 166). Destaque-se que os contingentes de sacer-dotes eram proporcionalmente muito semelhantes em ambos os países.

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vam o grupo eclesiástico menos coeso que o dos magistrados”; há aindaum aspecto a ser notado: “a atuação da maioria dos padres era muito pró-xima da população, tornando-os líderes populares em potencial, em con-traste com os juízes encarregados da guarda da lei e que permaneciam pou-co tempo em seus postos”.

Em relação ao comportamento dos dois grupos, é notável a partici-pação dos padres em praticamente todos os movimentos de rebelião desde1789 até 1842. Quanto ao fundamento de sua participação, sobretudo dosmais ilustrados, este era dado pelo “ideário das revoluções Francesa e Ame-ricana, notadamente no que dizia respeito ao combate ao absolutismo, àsliberdades políticas, à democracia. Essas idéias, que não atingiam Coim-bra, conseguiam chegar aos seminários brasileiros apesar da precariedadede seu ensino” (ibid., p. 167). Exemplos desse envolvimento são vistos naInconfidência Mineira – em que, entre nove padres julgados, cinco foramcondenados – e nas rebeliões pernambucanas de 1817 e 1824. No entanto,a participação do clero na política não se limitou a esse período mais turbu-lento da independência. Clérigos permaneceram em postos políticos, comintensa atividade nos debates das questões nacionais. Seu ponto alto foramos períodos em que Feijó assumiu o Ministério da Justiça (1831-1832) e foiRegente do Império (1835-1837), seguido de um retraimento da Igreja den-tro do espaço político brasileiro.

Entretanto, dadas as condições de estruturação do poder eclesiásticofrente ao poder político, a religião não tardaria a voltar ao centro das dis-cussões políticas tanto no Brasil quanto na Argentina. A origem da proble-mática era, no fundo, a mesma nos dois casos, tratando-se da redefiniçãoda postura da Igreja diante do Estado e da “política” e suas respectivasameaças sob a forma do “liberalismo secularizador” que chegava com aimportação de ideologias estrangeiras. A base de sua ação encontrava-seagora na reação corporativa e ultramontana ao regalismo da política impe-rial brasileira e à situação de ameaça dos governos liberais argentinos –representados por Mitre, Sarmiento e Rosas – às tradicionais prerrogativasda Igreja Católica.

De fato, o ultramontanismo de Pio IX (1846-1878) não fez senãoestimular uma questão desde sempre espinhosa na relação Igreja/Estadonos dois países, ou seja, a ampla subordinação e dependência da instituição

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religiosa definida pelo regime de padroado. Sendo assim, no momento emque a Igreja tenta reafirmar sua supremacia frente ao poder temporal, con-denando ao mesmo tempo a “modernidade” e todos os seus “vícios”, vol-tam a ser questionados os limites entre os dois poderes. De acordo comBarros (1971, p. 327), “tais idéias ultramontanas encontraram eco no Brasilalgum tempo antes do apostolado intransigente de D. Vital e de D. AntônioMacedo Costa, se não no seio do clero, pelo menos entre o laicato”. Porém,interessa mais que se tenha em conta o contexto de reações e reivindicaçõesliberais e republicanas desencadeadas pelo posicionamento do Vaticano eque acabaram desembocando na dramática Questão Religiosa no Brasil.Em suma, a tentativa da hierarquia católica de definir uma política autôno-ma frente ao Estado acabou levando-os ao choque concretizado na prisãodos dois bispos leais ao Papa9. Como indica Carvalho (ibid., p. 171), “aênfase na lealdade eclesiástica levava necessariamente ao conflito com alealdade ao Estado”. Este último seguia, portanto, sua lógica. Insistia ogoverno, ao longo do Império, em “não abrir mão do controle da Igreja,pois além de ser ela um recurso administrativo barato [...], possuía grandepoder sobre a população, de que o governo indiretamente se beneficiava”.

Na Argentina, o período que cobre a segunda metade do século XIXparece ter sido o de maior retrocesso para o poder católico. Depois de qua-se duas décadas de boas relações com o governo conservador e autoritáriode Rosas, a quem beneficiou em troca de proteção contra o anticlericalismodos unitários10, a Igreja teve seu espaço reduzido em larga medida pelaascensão de governos liberais menos preocupados em lhe garantir seu anti-go estatuto. Assim, à semelhança do que ocorreu no Brasil quase concomi-tantemente, a Igreja esteve na pauta da Assembleia Constituinte argentinacomo “o tema mais discutido” (sete sobre um total de treze), embora ape-nas três sacerdotes estivessem presentes, sintomaticamente “talvez a maisbaixa representatividade do clero em uma assembleia constitucional” (FAR-REL, 1976, p. 31). O resultado da emergência de forças políticas “liberais”neste cenário, no que tange ao religioso, concretamente foi a elaboração de

9 Sobre o desenvolvimento e desfecho da Questão Religiosa, consultar especialmente Barros(1971).

10 Segundo Cornejo (1972, p. 39), Rosas tinha como lema o grito “Religião ou Morte”.

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uma Constituição que “rompe com toda uma tradição do estatuto públicoda Igreja Católica. Todas as constituições anteriores [...] foram mais explí-citas no reconhecimento da Igreja. De outro lado, a Constituição consagraa liberdade de culto, mantém o Padroado e suprime o foro eclesiástico”(ibid., p. 31). Tal tendência anticlerical intensifica-se na década de 1880 eatinge seu auge com a série de medidas legais que retiram da Igreja direitosobre serviços públicos importantes, como é visto na subordinação dos tri-bunais eclesiásticos aos civis (1881), na proclamação da educação leiga(1884), no registro e o matrimônio civis (1884 e 1888) e na secularizaçãodos cemitérios (1888).

Ou seja, sem dispensar seu instrumento de controle sobre a hierar-quia e a atuação da Igreja, o Estado não mais mantinha a religião católicacomo única prática legalmente reconhecida, o que não deixava de repre-sentar ataque considerável ao poder da instituição. Porém, cabe lembrar,como faz Trindade (1985a, p. 82), que o período em questão enquadra-seem um contexto que previa amplo programa de imigração estrangeira (par-te do “projeto modernizador liberal”), no qual a liberdade de direitos civise religiosos era condição para sua realização. Mais uma vez a comparaçãocom o Brasil revela grande semelhança entre os dois países, pois tambémnessa época o “liberalismo nacional mais esclarecido, aliado ao cientificis-mo que ainda engatinha no País” (BARROS, 1971, p. 330), trata com clare-za do “problema da imigração” (igualmente como um “projeto de moder-nização”) e defende a liberdade de direitos, passando, pouco mais tarde, apropor abertamente a separação entre Igreja e Estado11. Graças aos “libe-rais avançados, republicanos ou não”, e aos “republicanos todos, liberaisou positivistas”, “a questão religiosa se transforma num libelo contra a situa-ção vigente” e envolve a Igreja e o Império.

11 “[...] Para o liberalismo de então a separação entre a Igreja e o Estado, se não era a única, era,contudo, a principal condição para tornar o País atrativo ao imigrante, sequioso de uma novavida, mas não ao preço de suas crenças. Nos anos da questão religiosa, os debates do Parla-mento e da imprensa giram com freqüência em torno deste tema: Saldanha Marinho, Cristia-no Otoni, Silveira Martins e outros muitos batem repetidamente na mesma tecla” (BARROS,1971, p. 331).

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Sistema escolar e formação de elites

Um último aspecto a ser aqui explorado dentro da problemática dasrelações entre Igreja e Estado e os processos de construção nacional naArgentina e no Brasil diz respeito ao papel da Igreja na estruturação dosistema escolar e na formação de elites políticas, intelectuais e outras. Comofoi referido inicialmente, trata-se de uma dimensão ainda pouco exploradapelas ciências sociais brasileiras (e, até onde se sabe, argentinas) e cuja ri-queza pretende-se pelo menos esboçar a partir de algumas pistas encontra-das na bibliografia.

Tendo em vista a organização dos sistemas educacionais nos doispaíses, o traço fundamental que os diferencia reside exatamente em suarelação com a instituição católica. Em que pese ambos terem um desenvol-vimento semelhante durante o período colonial – dependendo de modopraticamente exclusivo da administração católica do ensino –, o períodopós-independência na Argentina marca o início de tendência laicizante quenão encontrou paralelo no Brasil. Neste último, a grande maioria das insti-tuições de ensino permanece privada e nas mãos de grupos religiosos, ca-racterística que se estenderá até as primeiras décadas da República.

De fato, o peso do legado colonial católico na estrutura educacionalbrasileira do Império e da República deve muito à forte presença de ordensreligiosas dispersas pelo território, dentre as quais destacam-se os jesuítas.Com grande autonomia frente a Roma e à Coroa portuguesa, obedecendoa regras próprias à cada instituição e com políticas definidas em relação aquestões vitais da colonização, sua penetração e consolidação como pro-prietárias de grandes extensões de terras lhes permitiu desempenhar tarefasimportantes em um contexto de baixa institucionalização estatal. Quanto àtarefa propriamente educativa, sobressai o empenho dos padres jesuítas emestar presentes em diversas áreas da Colônia e de responder pelo forneci-mento de um nascente ensino formal, obviamente não desvinculado doobjetivo catequizador de seu empreendimento institucional. Assim, se porum lado sua preocupação, ao que parece, era menos com a educação doque com a “difusão de um credo religioso” – dado um ensino marcado pelodogmatismo e a abstração –, por outro lado há que se considerar o sucessode sua obra mais ampla. Quando foram expulsos do Brasil, “a obra que

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pretendiam realizar estava praticamente consolidada: o país estava unido emtorno de uma mesma fé, sob uma mesma coroa” (WEREBE, 1971, p. 366).

A expulsão dos jesuítas do território brasileiro representou desagre-gação ainda maior para o campo educacional, o qual passou a ser assegura-do de modo irregular por outras ordens religiosas e por leigos. A partir dasprimeiras décadas do século XIX, intensifica-se a participação religiosa noensino secundário12, ampliada com o retorno dos jesuítas, que retomamsuas atividades no setor educacional e fundam importantes colégios, taiscomo o de São Luís, em Itu (1867); o Colégio Anchieta, em Nova Friburgo(1886); e o Nossa Senhora da Conceição, em São Leopoldo (1870) (ibid., p.374). Em 1837, é criado o Colégio D. Pedro II, por muito tempo o únicoestabelecimento secundário oficial do país e que, apesar de público, teriaforte orientação religiosa, sendo em muitas ocasiões dirigido por religiosos.

Pelo lado argentino, como foi mencionado, percebe-se desde muitocedo em suas constituições a previsão de um sistema educacional de cará-ter público. Já nos textos de 1819 e 1826 impõe-se formalmente ao Con-gresso Nacional a “obrigação de formar planos uniformes de ensino públi-co, fazer construir escolas nacionais e prover e manter os estabelecimentosdeste gênero”. Os primeiros decretos tiveram por objetivo organizar o ensi-no superior. “Rivadavia havia feito vir da Europa professores hábeis quederam, sobretudo ao ensino das ciências, um poder e uma extensão desco-nhecidas até então nas Universidades da América espanhola” (HIPPEAU,s. d., p. 2). Com efeito, a este quadro vieram dar reforço as ideias contidasno “projeto modernizador liberal” impulsionado pela “geração de 80”, for-temente influenciada pelas ideologias “laicizantes” e “cientificistas” do li-beralismo europeu e, em particular, do francês. Como enfatiza Farrell (1976,p. 38), “o laicismo escolar era cópia do espírito laico reinante na Europa[...], cuja problemática será trazida para cá por Amadeo Jacques. A proble-mática europeia trasladou-se para o país, como uma antecipação do quevai ocorrer várias vezes na história posterior, por ideólogos da direita ou da

12 Em 1820, os padres lazaristas fundam o Colégio Caraça de Minas Gerais, segundo os moldestradicionais jesuítas, tornando-se uma das mais importantes escolas secundárias do Império.No final do período monárquico, surgem também as primeiras escolas secundárias vinculadasa grupos protestantes, sobretudo metodistas. Cf. Werebe (1971, p. 375). Sobre o período poste-rior, consultar Nagle (1977).

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esquerda”. Nesse sentido, a lei sarmentina de 1884 proclamando a exclu-são do ensino religioso das escolas públicas consagrava o esprit du tempsreinante que se coloca em nome do “Estado” ou da “nação”, isto é, da“política” entendida como “racional”, “moderna” e comprometida unica-mente com questões temporais.

À intensa ofensiva “liberal” sobre domínios da Igreja Católica naArgentina esta reagirá com a adoção de um plano de reorganização queimplica a criação de escolas em todos os níveis. Buscava-se, desta maneira,“formar, frente à elite liberal, uma elite católica que possa com o tempochegar aos níveis de decisão política e a partir daí cristianizar as instituiçõessociais, do modo como os liberais haviam-nas laicizado” (FARRELL, 1976,p. 62). O estabelecimento dessas escolas católicas, em sua maioria a cargode ordens religosas, fortalecia o prestígio da Igreja, ao mesmo tempo emque a aproximava tanto das classes médias emergentes quanto das classesaltas, temerosas frente ao fenômeno imigratório e ao novo movimento ope-rário que surgia. Compartilhando em larga medida esses temores, a Igrejaencontrava na aproximação com aquelas camadas sociais um caminho paratentar retomar sua antiga posição no espaço social e político argentino. Depar com essa tentativa de “cristianização” das elites dirigentes via sistemaescolar, a organização de um laicado e a criação de instituições católicas(“centros”, “círculos”, “movimentos”) que levavam a palavra da Igreja parajunto das camadas populares tiveram papel estratégico no processo de reor-ganização da instituição como força nacional relativamente autônoma ecapaz de difundir seus valores e princípios. A intensa atuação pastoral edoutrinária da Igreja no “mundo operário”, de um lado, e a formação deuma intelligentsia de dirigentes católicos detentores de recursos sociais im-portantes (revistas, jornais, notoriedade), de outro, permitiram à Igreja rea-dquirir gradualmente prestígio e influência na sociedade argentina do iní-cio do século, condição que foi reforçada pela ascensão do nacionalismo nadécada de 1930 e somente abalada pela perseguição empreendida por Pe-rón em 1954.

No que toca ao período posterior à separação entre Igreja e Estadono Brasil, o estudo de sua relações ao longo das primeiras décadas da Re-pública revela dinâmica não muito distinta daquela vigente no Império, emque pese a condição formalizada de distinção entre os dois poderes. Ou

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seja, mesmo sendo proclamada uma Constituição republicana que abole oregime de união entre Igreja e Estado – e, portanto, desvincula a instituiçãoeclesiástica do aparato burocrático-administrativo do país –, permaneceobjetivamente uma situação de interpenetração das esferas temporal e espi-ritual, com todas as disputas decorrentes dessa condição. De modo seme-lhante ao processo argentino de retomada de um projeto revitalizador pelaIgreja Católica após a ascensão de um “projeto liberal” que lhe era ofensi-vo, o caso brasileiro demonstra um momento fundamental de estruturaçãoda instituição sobre novas bases, as quais, mais do que nunca, passarão poruma estreita relação com o universo da “política” e seus determinantes.Vale dizer, se a dependência e subordinação da Igreja frente ao Estado eramagora extintas pelo novo regime, com a própria abolição do regime de pa-droado, nada permite afirmar que aquela tenha limitado sua atuação aoplano meramente espiritual de ação doutrinária. Pelo contrário, mantém-se e até mesmo acentua-se a presença cotidiana da Igreja na maioria doseventos sociais, notadamente os de caráter “político”, da “vida nacional”,fortalecida pela expansão de uma rede escolar católica.

Em pesquisa sobre as elites do clero católico na República Velha bra-sileira, Sérgio Miceli (1988) aponta para várias dessas questões. De formageral, sua obra consiste em demonstrar, de um lado, os condicionantes doprocesso de “construção institucional” da Igreja Católica após sua separa-ção do Estado e, por outro – em estreita conexão com esse processo –, amultiplicidade de determinantes sociais na formação da elite daquela insti-tuição e suas relações com outras esferas sociais, em especial a esfera política.Miceli tem um de seus focos postos no exame do estabelecimento e manuten-ção de estreitas conexões entre o clero católico e as elites políticas regionaisao longo da Primeira República. Ao evidenciar a simultaneidade do proces-so de autonomização da Igreja frente ao Estado após o declínio do governomonárquico e o consequente fim do regime de padroado – o que resulta noque Miceli chama de “‘estadualização’ do cenário eclesiástico”13 –, são abor-

13 Como demonstra Miceli (1988, p. 67),”ao brindar todos os estados brasileiros com pelo menosuma diocese, a Igreja passou a dispor de um sistema interno de governo que se pautava pelaslinhas de força que presidiram à montagem do pacto oligárquico [...]”. “A política de ‘estaduali-zação’ foi implementada através de estratégias diferenciadas conforme o peso político e acontribuição econômica de cada unidade federativa para a manutenção do pacto oligárquico

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dados não apenas a funcionalidade das trocas entre as altas esferas católi-cas e os membros das oligarquias locais, mas também os reflexos dessasrelações sobre os mecanismos de formação da elite do clero. Como se podeperceber com certa nitidez, se, de um lado, a estreita conexão das fraçõesmais altas da hierarquia católica com as elites dirigentes regionais foi fun-damental para a criação de uma estrutura institucional religiosa sólida –posto que esta se autonomizava frente ao Estado tanto no aspecto materiale financeiro quanto no organizacional e doutrinário –, de outro lado, oscritérios de ocupação de cargos de liderança não ficaram imunes às influên-cias determinadas pelos grupos detentores de recursos sociais significati-vos, tais como propriedades econômicas, um determinado capital político esocial e, ligado sem dúvida a estes trunfos, um capital de honorabilidade.

Outro aspecto para o qual o trabalho de Miceli e também os de ou-tros pesquisadores (DE BONI, 1980; TRINDADE, 1982) chamam a aten-ção diz respeito à constituição, com maior intensidade a partir do início doséculo, de um mercado de ensino fortemente dominado pelas escolas cató-licas, e que, de acordo com Miceli (ibid., p. 23), foi a “alavanca mais dinâ-mica e rentável dos empreendimentos eclesiásticos no período em apreço”.Por outro lado, se esta expansão da rede educacional sob o domínio daIgreja se deu em quase todo o país, parece ter sido no Rio Grande do Sul,como mostram De Boni e Trindade, que ela alcançou maior intensidade eimportância dentro da dinâmica social14. Diretamente relacionada à vindade padres e religiosos de várias ordens da Europa – iniciada já na metadedo século passado – à região de imigração daquele estado, a criação decasas de formação eclesiástica, noviciados, seminários e educandários viusurgir dos diversos estabelecimentos instalados uma elite que, “aos poucos,acompanhando a ascensão econômica da imigração, foi-se projetando no

e, consequentemente, em função da margem de influência e prestígio já conquistada pela Igre-ja, do grau de receptividade à sua contribuição por parte dos círculos dirigentes locais e dopotencial de mobilização dos católicos como grupos articulados de pressão a ponto de influirsobre as decisões governamentais suscetíveis de afetar as áreas vitais de interesse para a pró-pria organização eclesiástica”.

14 Uma lista extensa contendo os nomes das escolas, as ordens religiosas à que pertenciam e asdatas em que foram instaladas em Porto Alegre e no resto do Rio Grande do Sul é fornecidapor De Boni (1980, p. 246-247). Uma análise da dinâmica de implantação e expansão institu-cional católica naquele estado pode ser encontrada em Seidl (2003).

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cenário estadual e nacional. Esta elite, na Igreja, assumiu posições relevan-tes de mando e liderança, com padres, bispos e cardeais de renome interna-cional” (DE BONI, 1980, p. 245).

Como parte de um projeto mais amplo de reorganização católicanaquele estado, que visava a atingir toda a vida social (incluindo, além dasparóquias, também sindicatos, organizações patronais, cooperativas, jor-nais, etc.), o controle de uma rede extensa de escolas (que culminaria com acriação de uma universidade na década de 40) espalhadas ao longo de todaa região permitia à Igreja uma influência de grande peso na formação inte-lectual daquelas camadas sociais que dispunham dos recursos necessáriospara desfrutar do ensino privado que lhes era oferecido. Um dos resultadosda forte presença católica no âmbito educacional e cultural no Rio Grandedo Sul, de acordo com as indicações de Trindade, foi a constituição nadécada de 20 de uma “geração católica” reunindo grande diversidade deelementos, a qual, “além de atuar no domínio do político, do científico, doreligioso e do universitário, trabalhou em todos os setores da atividade hu-mana desde o plano moral, que orienta diretamente na privacidade de cadaindivíduo, até a atividade profissional” (1982, p. 39). Formados principal-mente dentro de uma “rigorosa” tradição intelectual jesuítica15 – e em largamedida em oposição à “geração positivista” que se destacou até os anos 30–, seus integrantes lograram organizar-se em diversas instâncias do espaçosocial, como a esfera educacional (tanto nas escolas ginasiais quanto poste-riormente nas faculdades de maior prestígio, como Medicina, Engenharia,Direito e Filosofia) e a esfera política (Liga Eleitoral Católica).

Embora tal projeto de rearmamento institucional da Igreja Católica,como o chama Miceli (1979), pareça ter sido mais vigoroso no Rio Grandedo Sul, ele não pode ser desvinculado de uma estratégia que também englo-ba os grandes centros nacionais, onde terá maior repercussão. Como mos-

15 A presença da ordem dos jesuítas no Rio Grande do Sul, não considerando as primeiras mis-sões que foram expulsas, remonta à vinda de padres espanhóis em 1842. Suas atividades do-centes iniciaram-se em 1869, no Colégio Nossa Senhora da Conceição de São Leopoldo, jácom os jesuítas alemães, que, a partir do seu fechamento como externato em 1907, dedicaram-se intensamente ao Colégio Anchieta, em Porto Alegre, criado em 1890 e “principal responsá-vel pela formação da ‘geração católica’”. Para maiores detalhes, ver Trindade (1982) e Mon-teiro (2011).

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tra aquele autor, desde o início dos anos 20 a Igreja aferra-se ao “ideal deampliar suas esferas de influência política através da criação de uma redede organizações paralelas à hierarquia eclesiástica e geridas por intelectuaisleigos”. Deste modo, a instituição empenhou-se em “preservar e expandirsua presença em áreas estratégicas como o sistema de ensino, a produçãocultural, o enquadramento institucional dos intelectuais, etc.”, e, “em trocada manutenção de seus interesses em setores onde a intervenção do Estadose fazia sentir de modo crescente (o sistema educacional, o controle dossindicatos, etc.), a Igreja assumiu o trabalho de encenar grandes cerimôniasreligiosas das quais os dirigentes políticos podiam extrair amplos dividen-dos em termos de popularidade” (ibid., p. 51). Desta forma, a união, já nãomais legalmente formalizada, entre a “cruz e a espada” mostrava agora suafuncionalidade a ambas as partes. Não apenas Estado e dirigentes políticoseram auxiliados e legitimados no trabalho de organização do país, mas tam-bém a Igreja Católica adquiria espaço e estrutura próprios aos seus objeti-vos institucionais.

Quanto às relações entre Igreja e campo intelectual, duas instituiçõesde enquadramento intelectual receberam a incumbência de congregar onúcleo de intelectuais leigos que passaram a atuar como porta-vozes orgâ-nicos dos interesses da Igreja: a revista A Ordem (1921) e o Centro DomVital (1922). Ao criar centros de difusão doutrinária e de tomada de posi-ção sobre uma série de questões temporais, reunindo e formando uma inte-lectualidade socialmente reconhecida, a Igreja ampliava significativamenteseu espectro de atuação no espaço social16 e entrava com maior força nasdisputas pela definição e classificação das questões “sociais” e “políticas” aserem legitimamente tratadas.

Da mesma forma que outros grupos de intelectuais, o que incluíauma fração escolarizada do Exército, reivindicavam uma “vocação para

16 Entre as agremiações organizadas pela Igreja, destacam-se a Ação Universitária Católica, quemobilizava estudantes das grandes cidades, o Instituto Católico de Estudos Superiores (embrião dafutura Pontifícia Universidade Católica), editoras (Agir), além de organizações ligadas à esfe-ra literária, como a revista Festa (publicada no Rio de Janeiro). Cf. Sérgio Miceli,1988, p. 52. Demodo semelhante, também na Argentina é criada em 1928 a revista Criterio, a qual ganha relevonos anos 1930, subordinando-se às rígidas normas da Ação Católica e à censura eclesiástica. Cf.Fausto & Devoto, 2004, p. 219.

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elite dirigente”, como aponta Daniel Pécaut (1990), também os intelectuaisseduzidos pelo movimento católico organizado em torno do Centro DomVital manifestavam sua posição frente à “grande questão” da época: “comoorganizar a nação”. “[...] Leitores de Joseph de Maistre, Charles Maurras,Henri Massis, Léon Bloy, Jacques Maritain e outros – sonhavam com umacontrarrevolução católica. Jackson de Figueiredo (um dos principais expo-entes desse grupo e dirigente do Centro Dom Vital) acreditava que somentea religião poderia assegurar a base da nação”. Alceu Amoroso Lima, outrolíder intelectual católico e também dirigente do Centro, “transformou-seem guardião vigilante de uma ordem moral e, após 1930, em incansáveldefensor da tutela da Igreja sobre o ensino público” ( ibid., p. 28). Tomandoa própria “cultura” como seu veículo, a criação de meios variados de divul-gação do pensamento católico – simpatizante de um nacionalismo conser-vador – mostrou ser instrumento de peso na constituição da Igreja comoator social de primeira grandeza, um dos próprios pilares de construção danação.

Considerações finais

Como foi indicado inicialmente, o exercício de comparação aqui re-alizado não propôs respostas definitivas sobre o papel da variável religiosanos processos de construção nacional argentino e brasileiro. Sua funçãoconsistiu em trazer elementos para uma problematização coerente do temae, a partir daí, apontar possibilidades de construção de objetos de pesquisa.Dentro desta orientação, destacou-se a fertilidade analítica de abordagensda Sociologia Histórica que rompem com pressupostos deterministas, aomesmo tempo em que abrem um espectro de exame de fenômenos políti-cos e, dentro destes, dos processos de formação estatal em contextos ex-traeuropeus ou “periféricos”.

Dentro dos propósitos do estudo, a intenção principal com o uso detais enfoques foi tentar esboçar as especificidades dos fenômenos estatais e,de modo mais amplo, da própria dinâmica de construção do “político” emdeterminados contextos sociais e culturais, buscando-se, assim, escapar àscomparações tradicionais num suposto modelo ocidental. Noções como“importação”, “readaptação” e “hibridação” de modelos políticos e outros

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bens simbólicos servem, deste modo, como instrumentos analíticos valio-sos para pensar a constituição de uma esfera “política” interpenetrada poroutras esferas sociais em determinados meios culturais, como é o caso dassociedades latino-americanas.

Nessa direção, o exame das relações entre Igreja e Estado no períodode construção nacional argentino e brasileiro revela alto grau de imbrica-ção entre essas duas esferas, as quais inclusive permanecem por muito tem-po indistintas, servindo a Igreja como fonte privilegiada de serviços admi-nistrativos ao precário aparato estatal. Também dentro desta ótica deve serentendido o constante envolvimento direto do clero na política formal, ouentão, de modo ainda mais intenso, em movimentos políticos revolucioná-rios e em alianças com frações da elite dirigente, indicando a existência decontextos sociais nos quais a dimensão política é supervalorizada, isto é,contextos de hiperpolitização, como dizem Bertrand Badie e Guy Hermet.

Conforme visto, tanto a Argentina quanto o Brasil apresentam emseus processos de construção política um padrão de relacionamento entreIgreja e Estado que segue em larga medida os mesmos traços. Ambos ospaíses têm na longa subordinação da Igreja ao poder do Estado um ins-trumento funcional ao empreendimento de construção de uma unidade nacio-nal e, ao mesmo tempo, uma forma de cerceamento de poderes concorren-tes ao centro político. Sintetizando a discussão em linhas gerais, Fausto &Devoto (2004, p. 136) apontam que “as elites de ambos os países tinhamperseguido objetivos comuns de uma modernização que implicava reduçãodo espaço da Igreja Católica e a criação de um Estado laico”. Por outrolado, e de modo ambíguo, “também em ambos os países, as próprias eliteslimitavam o processo, ao combiná-lo com a ideia de utilidade da Igrejacomo mecanismo de controle e consenso social”.

Encarregado de levar a palavra da Igreja sem jamais deixar de ladoaquela do Estado, o clero católico difundiu por vastos territórios a ideia deobediência ao Estado, por menos clara que esta fosse, levando aos habitan-tes uma série de novas categorias identitárias e de lealdade, como “nação”e “nacionalidade”. Nesse aspecto, o peso da Igreja dentro do sistema esco-lar adquire especial relevância e se constitui, provavelmente, no principaltraço divergente entre as realidades argentina e brasileira, embora não secreia que ele possa explicar – sem ser conjugado com outras variáveis – as

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diferenças nos seus padrões de construção do Estado. De todo modo, este éum ponto que merece investigação comparativa sistemática que impliqueexploração de grande variedade de fontes.

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Poder, instituições e elites

Driblando escalas: nota sobre a comparaçãohistórica dos regimes batllista (Uruguai, 1903-1933)

e castilhista (Brasil: RS, 1891-1930)1

Flavio Heinz

Neste texto, analisamos certas características da trajetória social eintelectual das equipes dirigentes de dois partidos governantes, o PartidoRepublicano Rio-Grandense e o Partido Colorado (Uruguai), no final doséculo XIX e primeiras três décadas do século XX, a partir de duas variá-veis principais: [1] primeiro, a orientação intelectual dominante nos meiospolíticos e partidários em questão, focalizando a problemática da recepçãoe incorporação política e programática do “positivismo” entre os republi-canos castilhistas e do “krausismo” pelos colorados uruguaios sob a égidedo batllismo; [2] segundo, o impacto das origens sociais e da orientação inte-lectual e política dominante em cada grupo partidário na formação daspolíticas públicas e consequente definição dos perfis social e econômico doEstado nacional uruguaio e do RS. Busca-se verificar nestas elites elemen-tos que permitam explicar a convergência de práticas político-administrati-vas ao longo destes anos: ênfase no dirigismo econômico estatal; discipli-namento ideológico; direcionamento não oligárquico da ação estatal, in-corporação de novos grupos sociais e expansão em número e qualidade daspolíticas sociais. Para tanto, algumas questões orientam nossa reflexão:Quais as possibilidades e os limites da análise comparada quando oscila-mos entre casos de diferente grandeza, como este de tipo nacional/regio-

1 Este texto foi originalmente publicado em espanhol sob o título “Elites, estado y reforma enUruguay y Brasil meridional: castilhismo y batllismo en perspectiva comparada – El caso de laselites de Rio Grande do Sul en la transición del siglo XIX al XX”. In: REGUERA, Andrea. Losrostros de la modernidad – Vías de transición al capitalismo, Europa y América Latina, siglos XIX-XX.Rosario: Prohistoria Ediciones, 2006.

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nal? Como pensar a questão da circulação e recepção de ideias políticas nofinal do século XIX na região platina? Se pensarmos a disseminação depráticas e a implementação de políticas como oriundas do ambiente políticoe intelectual vivenciado pelas elites políticas, como entender que a partir decircunstâncias políticas e intelectuais diferenciadas em curso no Uruguai eno RS tenha sido possível o aparecimento de um modelo – em princípio –semelhante de intervenção pública e reforma social?

* * * * *

Este texto discute o papel das elites políticas do estado do Rio Gran-de do Sul, Brasil, e de seu ambiente intelectual – com a influência doutriná-ria do positivismo comtiano –, para a consolidação e disseminação de umaideia de intervenção estatal de caráter reformista e “modernizador” assu-mida pelos governos do Partido Republicano Rio-Grandense durante operíodo da República Velha (1889-1930). Nesta perspectiva, da ação daselites rio-grandenses resultariam políticas públicas que influenciaram forte-mente a definição do cenário econômico regional e que seriam, anos maistarde, a inspiração política e intelectual das políticas de regulação social eintervenção econômica postas em ação durante o 1º período Vargas (1930-1945). Ao longo de nossa apresentação, buscaremos oferecer elementos paraa comparação do caso em questão com o processo em curso no Uruguaidurante o período de intensa mobilização reformista econômica e socialdito batllista das administrações do Partido Colorado, entre 1903 e 1933.

Um estudo sobre as experiências de gestação e formação de políticaspúblicas na América Latina deveria necessariamente interessar-se pela óti-ca da ação de grupos/elites dirigentes e pela história do pensamento políti-co que orientou os processo de modernização do Estado latino-americanoem curso no começo do século XX. Assim, a comparação, por exemplo,das equipes governantes ligadas ao Partido Republicano Rio-Grandense(PRR), no período 1891-1930, sob a influência do castilhismo2, e do Partido

2 Por castilhismo entende-se o período de influência política das ideias de Júlio Prates de Casti-lhos (1860-1903), fundador do PRR, do jornal republicano A Federação e principal liderançarepublicana do Rio Grande do Sul. Castilhos foi deputado à Constituinte Nacional e autor da

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Colorado, no Uruguai, sob o batllismo3, mapeando traços intelectuais e ideoló-gicos e tentando perceber sua influência na ação política destes grupos nosrespectivos Estados, ofereceria algumas pistas para o entendimento das for-mas de produção do welfare state e/ou do estado nacional-desenvolvimen-tista no continente. Caracterizados pela relativa autonomia de suas iniciati-vas políticas em relação aos setores oligárquicos então economicamentedominantes no Rio Grande do Sul e no Uruguai, os grupos dirigentes emquestão marcaram suas ações pela implementação acelerada de políticaspúblicas agressivas de intervenção e modernização econômica ou de refor-ma social, definiram o padrão da presença estatal no desenvolvimento eco-nômico de suas regiões – que persistiria por boa parte do século XX – e anova configuração social dos centros urbanos, sobretudo pela incorporaçãosubordinada de novos grupos sociais urbanos – classes médias e operariado– ao campo político.

No que toca especificamente ao caso brasileiro, em um já clássicotexto sobre o surgimento da perspectiva desenvolvimentista e do Estado-providência no país, Alfredo Bosi indicava a presença, ainda em fins doséculo XIX, de uma matriz positivista no modelo desenvolvimentista brasi-leiro – antecipando-a, portanto, em muito à perspectiva cepalina – e a asso-ciava a ideias que à época circulavam nas capitais platinas e cuja incorpora-ção nos meios políticos e intelectuais era acompanhada por uma redefini-ção do papel atribuído ao Estado na regulação social e na intervenção na

carta constitucional do Rio Grande do Sul (Constituição de 14/7/1891), tendo dirigido o esta-do entre 1892 e 1897. Mesmo após sua morte, Castilhos seguiu sendo a principal referênciapolítica e moral dos republicanos do Rio Grande do Sul. Seu governo e, por analogia, seuperíodo de maior influência na política regional foram caracterizados pelo autoritarismo go-vernamental, intervencionismo econômico, disciplina férrea imposta aos militantes republica-nos, defesa ideológica das virtudes da ditadura científica positivista e pelo combate sistemáticoà dissidência e à oposição. Foi sucedido por Antônio Augusto Borges de Medeiros, herdeiro epropagandista de sua obra política. Borges foi constituinte em 1891, desembargador em 1892 echefe de polícia em 1895, e governou o Rio Grande do Sul entre 1897 e 1908 e entre 1913 e1928; daí a denominação do período em análise também como castilhista-borgista.

3 Por batllismo entende-se o longo período de influência de José Batlle y Ordoñez, duas vezespresidente, na vida política uruguaia. Para o nosso interesse neste artigo, limitar-nos-emos atratar o período conhecido como primeiro batllismo, entre os anos de 1903 a 1933. O termobatllismo será aqui utilizado para nos referirmos às ações e à obra governamental de caráter refor-mador empreendida pelo grupo político do Partido Colorado, liderado por Batlle durante todo operíodo, e não apenas durante seus dois mandatos presidenciais, i.e., 1903-1907 e 1911-1915.

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vida produtiva do país. Segundo o autor, a “historiografia política [apenas]começa[va] a aclarar os modos pelos quais um ideário importado [havia]podi[do] nutrir uma ideologia de longa duração capaz de legitimar a açãointervencionista do poder público em um contexto local e, depois da Revo-lução de Trinta, nacional” (BOSI, p. 277). No desenvolvimentismo brasi-leiro haveria, assim, a marca evidente do positivismo instrumentalizado emilitante que os dirigentes republicanos, isto é, pertencentes aos quadrosdo Partido Republicano Rio-Grandense4, haviam implantado regionalmente,no sul do país, em sequência ao golpe republicano, sobretudo a partir daConstituição Rio-Grandense de 14 de julho de 1891 e da vitória sobre osopositores federalistas5 na Revolução de 1893-1895. Se a chamada Consti-tuição do 14 de Julho inovava pela organização proposta para o Estado epelos dispositivos fiscais previstos, a vitória sobre os opositores marcava oinício de um período de hegemonia dos republicanos liderados por Júlio deCastilhos no cenário regional, situação que só seria brevemente ameaçadapor ocasião de um novo enfrentamento armado, em seguida à última recon-dução do mandato do presidente do Estado, Borges de Medeiros, em 1923.

Na mesma época, experiências sociais análogas se desenvolviam nafoz do Prata, o que permitia ver na experiência rio-grandense um viés maissistêmico, menos “exótico”. Com efeito, como notou Bosi, “não se trata[va],a rigor, de uma idiossincrasia local. As mesmas ideias informavam os pro-jetos estatizantes dos colorados uruguaios [...]6. O Rio Grande do Sul, o

4 Fundado ainda sob a monarquia, em 1882, o PRR foi a força hegemônica da política regionaldurante todo o período da República Velha, isto é, de 1889 a 1930, passando por contestaçõesepisódicas em 1891-92, pela guerra civil conhecida como Revolução Federalista, entre 1893-1895, e pela Revolução de 1923.

5 O Partido Federalista, criado em 1892, recuperou parte expressiva das antigas lideranças que,sob a monarquia, dirigiram o Partido Liberal e controlaram a política na Província do RioGrande. Durante praticamente todo o período, o Partido Federalista representou a principalforça política de oposição à hegemonia republicana no Rio Grande do Sul.

6 Do industrialismo utópico de Saint-Simon e do positivismo social de Comte emerge a primeira“vertente ideológica voltada para retificar o capitalismo mediante propostas de integração dasclasses a ser cumprida por uma vigilante administração pública dos conflitos”. Para Bosi, ainspiração profunda desta vertente é ética e, “tanto em Saint-Simon quanto em Comte, evoluiupara um ideal de ordem distributivista”. Assim, o positivismo social, “transferido quase emestado puro para o contexto republicano gaúcho (ou variamente combinado com o racionalis-mo krausista, no Uruguai colorado), deu à nova configuração econômica modelos de açãopolítica cuja coerência interna ainda impressiona” (BOSI, p. 282).

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Uruguai e a Argentina, ressalvadas as diferenças de escala, eram formaçõessócio-econômicas similares. Nas três, a economia pecuária e exportadora,firmemente implantada ao longo do século XIX, teve de enfrentar, desde osfins deste, a alternativa menor, mas dinâmica, da policultura voltada para omercado interno e das novas atividades urbanas de indústria e serviços.Agricultores operosos carentes de crédito oficial, industriais de pequeno emédio porte estabelecidos nas cidades maiores e uma crescente classe deassalariados vindos com as grandes migrações europeias passaram a cons-tituir polos de necessidades e projetos não raro opostos aos velhos estan-cieiros e ganaderos. [...] Daí terem-se formado, nas três regiões contíguas,grupos de pressão que demandavam políticas de estado resistentes, quandonão francamente contrárias ao laissez-faire propício ao setor oligárquico-ex-portador” (BOSI, p. 281).

Se é verdade que a ideia da origem rio-grandense e positivista do “de-senvolvimentismo” brasileiro não é partilhada pelo conjunto dos historia-dores brasileiros, torna-se, contudo, cada vez mais frequente o recurso àpista regional e à variável positivista para a explicação das origens da ideiada intervenção e da regulação social que caracterizaram o Estado brasileiropós-30 (CARVALHO, 2001, p. 111-112). Assim, a ascensão de Vargas aopoder em 1930, num quadro de cisão intraoligárquica, esconderia um sig-nificado importante, a saber, o deslocamento para o primeiro plano da cenapolítica do Estado brasileiro de uma perspectiva diversa daquela das elitesregionais envolvidas na condução política da república oligárquica que, noBrasil, sucedera a monarquia: as elites gaúchas, representadas na figura deGetúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda de Washington Luís e presidentedo Estado do Rio Grande do Sul, traziam ao centro do poder federal aexperiência administrativa e política da gestão do Partido Republicano Rio-Grandense, fortemente antiliberal nas práticas econômicas e doutrinaria-mente autoritário na esfera política. Este “ideário reformista, comum aostenentes e aos líderes do Partido Republicano Rio-Grandense, irá funda-mentar o programa da Aliança Liberal7 vitoriosa em outubro de 30” (BOSI,p. 280).

7 Nome dado à coalizão partidária encabeçada por Vargas nas eleições presidenciais de 1930.

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Alçado à presidência por uma coalizão envolvendo elites regionaisperiféricas – ou simplesmente não incluídas no pacto governativo federal –,dissidências políticas da elite paulista e tenentes – jovens oficiais do Exércitoque, nos anos 20, haviam angariado prestígio e simpatia junto à populaçãopor meio de ações armadas espetaculares e uma ambígua agenda políticareformista e antioligárquica –, Vargas era provavelmente o mais liberal dospolíticos rio-grandenses de estatura nacional, o que o credenciava para umadisputa presidencial nacional. Mas este membro da chamada “geração de1907”, testado nas posições diretivas do PRR e na presidência do Rio Grandedo Sul, era também um profundo conhecedor das possibilidades que a dire-ção centralizadora dos negócios do Estado e a prática política autoritáriaofereciam para governante (LOVE, 1975). Assim, na raiz das transforma-ções brasileiras pós-1930 estaria a experiência política e administrativa dequase 40 anos dos republicanos rio-grandenses, e o positivismo teria sido onúcleo intelectual e doutrinário desta experiência. “Parece indiscutível [...]que a mais tarde denominada ideologia desenvolvimentista foi gestada não nadécada de 1940, ou no pós-guerra, mas na década de 1920; e que sua raizencontra-se no positivismo8, o qual liberava-se de sua forma inicial para,através do crédito e do intervencionismo, afirmar seu princípio doutrinárioda busca da harmonia social” (FONSECA, 1988, p. 17).

Positivismo e krausismo

Lideranças intelectuais e políticas republicanas, ainda sob o Império,interessavam-se pelas possibilidades do discurso do “progresso dentro daordem”, perfeitamente ajustável às necessidades das elites brasileiras no

8 Para Bosi, o “termo développement no sentido forte de progresso material e social já compareceem Saint-Simon e no jovem Comte [que fora seu secretário particular]. Para estabelecer o siste-ma seria indispensável instaurar uma economia planejada que regulasse o desenvolvimento danação como um todo. A Lei interviria, se preciso, até o limite de abolir o instituto da herança,um dos maiores óbices criados ao progresso por manter privilégios individuais em detrimentoda solidariedade social. [...] Quanto aos ganhos pecuniários que a produção trouxesse para ocapital, poderiam ser redimidos de qualquer mancha egoísta pela instituição de uma sociedadealtruísta, termo cunhado então para designar um regime próspero e distributivo [...]. Nascia,deste modo, o ideal reformista do Estado-Providência: um vasto e organizado aparelho públicoque ao mesmo tempo estimula a produção e corrige as desigualdades do mercado” (BOSI, p.273-274).

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período. Assim, as “instituições imperiais deveriam ser abolidas, entre asquais a escravidão, e o ‘marasmo’ do Império deveria ser substituído porum governo disposto a enfrentar os grandes problemas do país, como o seuatraso: era preciso, pois, romper com a estagnação para alcançar o progresso”.No caso do Rio Grande do Sul, abandonar seu caráter exclusivamente pe-cuário e fomentar a policultura e a imigração, capacitando a economia lo-cal para ganhar o mercado nacional e enfrentar as crises com menor vulne-rabilidade. Assim, o progresso [...] não deixava de significar desenvolvi-mento das forças produtivas capitalistas [...]” (FONSECA, 1988, p. 14).

Ao se situarem doutrinariamente, através do positivismo, de formaantagônica ao liberalismo, os republicanos gaúchos aproveitaram para de-nunciar a incapacidade deste em fazer frente aos problemas administrati-vos, bem como sua propensão a gerar o caos político. O positivismo apare-cia aos olhos dos republicanos gaúchos como “uma doutrina científica quepossibilitava a organização da política e da administração do estado de umaforma verdadeiramente democrática, onde o bem geral, a incorporação doproletariado à sociedade e a administração pública voltada para os interes-ses das classes produtoras se realizava completamente. No positivismo oPRR encontrou um modelo para as instituições políticas autoritárias queimplantou no estado” e “através dele [...] construiu um discurso não-oli-gárquico e [...] apresentou estas instituições como as únicas capazes de res-ponder às necessidades da população” (PINTO, p. 108).

Paralelamente, a expansão da ideologia krausista9 em meio aos seto-res emergentes da elite política uruguaia – e também argentina –, em finsdo século XIX, também significou o atendimento a certas necessidades deafastamento e liberação do peso da tradição católica, de combate ao cienti-ficismo positivista (por demais representativo, nestes países, das pretensões

9 Relativo ao pensamento e à doutrina de Karl Christian Friederich Krause, nascido em Eisen-berg, em 1781, e morto em Munique, em 1832. Krause, que elaborou um sistema filosóficopróprio, o “racionalismo harmônico”, foi introduzido no espaço intelectual ibérico da décadade 40 do século XIX, através de traduções de obras de dois de seus discípulos, Heinrich Ahrense Guillaume Tiberghien. A disseminação da doutrina krausista entre intelectuais liberais espa-nhóis a levou, em seguida, ao conhecimento e incorporação ao ambiente político e intelectualde várias nações hispano-americanas, como o Uruguai e a Argentina. No Brasil, o pensamentokrausista ficou restrito às faculdades de Direito e pouco ou nenhum efeito teve no que concernea uma eventual incorporação pelas elites políticas.

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intelectuais da oligarquia) e, por fim, de incentivo à mobilização política.Segundo Monreal, a atração exercida pelo sistema krausista se dera por-que: (a) “en tanto que sistema amplio y armónico, el krausismo oferecíarespuestas o al menos vías de reflexión para todas las cuestiones que inqui-etaban el hombre del siglo XIX. En los numerosos libros escritos por Krau-se [...] aparecían concepciones metafísicas, religiosas, morales, pedagógi-cas acompañadas frecuentemente de propuestas para la acción”; (b) “setrataba de [...] un sistema espiritualista que reemplazaba la antropología yla cosmología cristianas pero que guardaba puntos de contacto con ellas.Las almas liberales se sentían liberadas del dogma católico y de los precep-tos de la moral cristiana, pero adherían a un deísmo fundado en la razón ya una moral del deber”; (c) “el krausismo se manifestaba también comouna filosofía que lanzaba a sus discípulos a la acción y los comprometía enla transformación de la sociedad. No se trataba solamente de comprender yde explicar el hombre y el mundo, sino de transformalos” (MONREAL, p.169-170).

Ainda às margens do Prata, a incorporação das ideias de Krause nãofoi menos significativa em meio à elite política argentina. Analisando ainfluência do krausismo na formação intelectual dos dirigentes da UniãoCívica Radical, nos primeiros anos do século XX, por exemplo, David Rockafirmou que a “ideología radical efectiva estaba fuertemente impregnadade un tono notoriamente ético y trancendentalista. Su énfasis en la funciónorgánica del Estado y en la solidaridad social presentaba un agudo contras-te con el positivismo y el spencerismo de la oligarquía, y a menudo teníanotables reminiscencias de Krause. La importancia de estas ideas, que ha-bitualmente se expresaban de una manera confusa e incoherente, era quearmonizaban con la noción de la alianza de clases que el radicalismo termi-nó por representar, y que habría sido mucho más difícil de alcanzar si hubi-era adoptado doctrinas positivistas” (ROCK, p. 63). É interessante notarque, embora contrastados no discurso, os sistemas de ideias presentes naregião, krausismo e positivismo, acabavam sugerindo uma percepção co-mum, não oligárquica e, em certa medida, solidarista, às elites políticasemergentes do Partido Colorado e do Partido Republicano Rio-Granden-se, e isso porque o positivismo [político] adaptado em sua variante sul-bra-sileira realçava muito mais os compromissos dos governantes com a inter-

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venção reguladora e harmonizadora no mundo social, ou ainda a necessi-dade de incorporação das classes, do que o tom cientificista e socialmentedeterminista que caracterizava sua apropriação pelas oligarquias platinas.

A ação política explicada pela ideologia

A perspectiva que vê na ação dos dirigentes do Partido RepublicanoRio-Grandense (PRR), formação política regional hegemônica na maiorparte do período que vai do golpe republicano de novembro de 1889 à as-censão de Vargas ao poder em 1930, uma intenção modernizadora e antio-ligárquica, sustentada pela disciplina partidária e coesão ideológica positi-vista, opõe-se a outra que percebe tal perspectiva exatamente como a re-sultante do trabalho de mistificação política e pregação doutrinária deste par-tido, armadilha ideológica à qual teriam sucumbido os historiadores atuais.Esta clivagem é aqui ilustrada pelas teses relativas ao Estado rio-grandenseno período da República Velha, com os trabalhos de Ronaldo Herrlein Jr.(2000), Luiz Roberto Pecoits Targa (2002) e Gunter Axt (2001).

Para Targa, amparado em vasta documentação de natureza econô-mica e fiscal, é no Rio Grande do Sul que se funda o Estado burguês brasi-leiro, muito antes deste esboçar-se no restante do país. O autor sugere que aanálise histórica e econômica influenciada pela perspectiva centro-periferiainvisibilizou o fato de que a revolução burguesa no Brasil se dera, primordial-mente, no Rio Grande do Sul, única região do país a substituir no início daRepública o Estado oligárquico-patrimonial a partir da realização de três“tarefas” fundamentais pela vanguarda republicana e positivista no poder:(a) a criação da autonomia do Estado em relação à classe dominante, obtidaatravés da derrota da “fração mais numerosa, militar e politicamente maispoderosa da classe dominante regional: a dos pecuaristas do Partido Libe-ral da fronteira sudoeste (Campanha)”, na revolução de 1893-1895; (b) arealização da separação entre esfera pública e esfera privada, entre 1895 e 1906,através da retomada e oferta à colonização de terras públicas ilegalmenteapropriadas pelas oligarquias rurais no período final do Império; e (c) arealização de uma reforma fiscal, abandonando a estrutura fiscal do Estadooligárquico, patrimonialista e mono-agro-exportador, substituindo-se oimposto de exportação pelo imposto territorial, gravando primordialmente

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a grande propriedade e tornando o erário menos dependente face às suasreceitas clássicas, i.e., impostos de importação e exportação (TARGA, 2003a,p. 7).

O Estado buscaria diversificar (ampliando os itens da base exporta-dora) e desonerar as exportações, diminuindo já em 1893 as taxas aplicadasàs exportações, variando de percentuais de 9, 10 e 13 durante o Impériopara 4, 6 e 10 naquele momento, segundo a mercadoria. Durante o perío-do, reduziu-se a participação das exportações no conjunto das receitas to-tais do Estado de 53,8%, em 1893, para 19,5%, em 1929. Se a pecuáriaseguia mantendo uma participação elevada (média de 53,2%) no valor totaldas exportações, sua taxa de crescimento foi de apenas 3,74%, enquantoque a uma taxa que é quase o dobro desta (6%), a participação dos produ-tos da região de povoamento e agricultura majoritariamente familiar foiem média de 32%. Em outra frente, o Estado se ocupa da criação de umimposto territorial em vista da substituição das receitas declinantes da ex-portação. A partir de 1902, instituiu a cobrança relativa ao valor venal daterra e à sua extensão, imposto que seria reformado em 1912 e 1913 (TAR-GA, 2003b, p. 9). Por outro lado, o imposto sobre exportações, que em1903 representava 38% das receitas, caiu para 10% em 1929; o impostoterritorial subiu de 10 para 12%; o imposto sobre a transferência de proprie-dades rurais caiu de 15 para 11%; o imposto sobre a indústria e profissõesmanteve-se estável; aquele sobre o consumo subiu de 6 para 16% do totaldas receitas. “Não por acaso, medidas similares de tributação da terra esta-va sendo tomadas pelo presidente Batlle no vizinho Uruguai em um corpo-a-corpo flexível e brioso com os ganaderos. O governo colorado não sótaxou os campos de gado como buscou recuperar para o patrimônio públi-co as tierras fiscales que estavam nas mãos de latifundiários grileiros. O para-lelo da política fundiária de Batlle com as intervenções de Castilhos e Bor-ges na retomada pelo estado das terras devolutas é flagrante [...]” (BOSI, p.285). Assim, os governos do Partido Republicano Rio-Grandense teriamdeliberadamente buscado reorientar o modelo de acumulação vinculado àsexportações pecuárias para um modelo voltado ao mercado interno e aoestímulo à produção das novas zonas coloniais. Ao operar esta mudança, oprojeto econômico do Estado associou-se à perspectiva dos novos agentessociais, desvinculados do latifúndio, que promoviam a diversificação da

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base produtiva estadual e conferiam dinamismo à economia regional. Deforma análoga, no caso uruguaio, afirma-se que, “para Batlle, o Estado deviaintervir nos problemas sociais e econômicos. Devia ser o árbitro entre o capi-tal e o trabalho, apoiando o mais fraco, o trabalho [...] No econômico deu umnovo papel ao Estado e neste sentido não era um liberal. Com sua estratégiade estatização e nacionalização desenvolveu as chamadas funções secundáriasdo estado. Apoiando-se em Ahrens, Batlle viu que o Estado não apenas deviacumprir o papel de ‘juiz e gendarme’, mas também proporcionar o desenvol-vimento econômico e o progresso social” (ARTEAGA, p. 139).

Os gastos públicos foram decisivos para a promoção das transforma-ções e da expansão da economia gaúcha, contribuindo para que se instau-rasse um círculo virtuoso, na medida em que o crescimento propiciava aampliação das receitas públicas. Para Ronaldo Herrlein Jr., levadas em contaas condições do período, a “postura ideológica conservadora e o carátergeral da intervenção econômica do Estado revelaram-se extremamente pro-gressistas, favorecendo o desenvolvimento integrado e harmônico da eco-nomia regional” (HERRLEIN, p. 82).

A explicação pela ideologia como mistificação

No extremo oposto, situa-se a perspectiva historiográfica que perce-be uma mistificação na leitura do processo político-econômico como resul-tante de um determinado ambiente intelectual e doutrinário. Para ela, odeclínio da política liberal de concessões de serviços e o alargamento dointervencionismo estatal verificados no Rio Grande do Sul, sobretudo nosanos 1900/1910, “nada têm a ver com eventuais determinações da cartilhapositivista”, mas derivariam de “respostas programáticas engendradas pelaelite dirigente e pela aliança dominante de frações de classe [...], no sentidode construção da hegemonia política e econômica [...], agregando valor ainteresses específicos, em detrimento de outros” (AXT, p. 413). Se algunsautores veem na ação política dos republicanos rio-grandenses uma intencio-nalidade modernizadora orientada pela ideologia positivista, aqui a perspecti-va é outra: a exitosa política fiscal do governo Borges de Medeiros, sobretu-do os aspectos concernentes ao imposto territorial, por muitos saudada comoimpulsionadora da diversificação econômica e da dinamização das expor-

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tações, é vista por um outro prisma, o da busca pura e simples do fortaleci-mento do aparelho estatal.

Com uma abordagem sofisticada que privilegia a reconstrução dopeso das tramas e ajustes políticos locais e postula a percepção do pragma-tismo político e da instrumentalização da doutrina como variáveis indis-pensáveis para o entendimento do espaço político regional, Axt incorporauma crítica de natureza eminentemente historiográfica à sua análise históri-ca. Diz ele: “O autor [Targa] diferencia a trajetória histórica paulista e gaú-cha, sustentando que a primeira foi ‘um produto da ordem econômica’, ao passoque a segunda foi ‘conduzida pelo primado do político’. Esta tese, que se colocana inteira contramão do marxismo, leva a extremos a ideia de especificidadedo Rio Grande do Sul em relação ao resto do Brasil. A insistência no desco-lamento do estado das injunções econômicas que fermentam o tecido social,investe o estamento burocrático de uma capa sacerdotal, capaz de convertera política em algo quase divino, na medida em que o discurso político é cap-tado como transformador da ordem social” (AXT, p. 15).

Não é nosso propósito aprofundar a discussão historiográfica subja-cente, mas sugerir indícios para pensar o possível papel do PRR e da influên-cia doutrinária do positivismo na percepção sobre o desenvolvimento econô-mico presente na política varguista pós-1930. Contudo, é interessante notarque os autores em questão tendem interpretar o debate e a posição de cadaum no debate a partir das questões postas pelos agentes históricos analisados.Assim, se Axt ironicamente identifica em Targa um “vigoroso paladino damissão renovadora do Estado”, Herrlein Jr., num longo comentário em ro-dapé onde relativiza e põe em perspectiva a associação ação/discurso, pontocentral da crítica de Axt aos autores que tendem a superestimar o caráterintencionalmente modernizador da “vanguarda” republicana, aproveita paracriticar Axt por assumir “figura simétrica ao discurso da oposição liberal contrao ‘inchaço’ e o arbítrio do Estado, de cujo controle fora excluída” (HERR-LEIN, p. 66, n. 13). Assim, de certa forma, a oposição político-histórica – eque se tornou “folclórica” – rio-grandense entre “chimangos” (republicanos)e “maragatos” (federalistas) parece encontrar eco entre os historiadores.10

10 Note-se que esta não é uma observação de menor relevância, uma vez que esta oposição é, detempos em tempos, recuperada na interpretação de outros aspectos e clivagens da vida política

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Sem descuidar das possíveis armadilhas ideológicas postas à análisehistoriográfica11, a perspectiva historiográfica aqui sugerida é aquela inicia-da por Bosi e desenvolvida, com maior ou menor grau de simplificaçãoanalítica, por Targa e Herrlein Jr. Ela percebe a agenda do Estado para osdiferentes setores como desvinculada de uma tradição liberal-oligárquica.Esta, primordialmente orientada para a satisfação e preservação da conti-nuidade dos interesses da principal elite proprietária, encontrava-se invaria-velmente assentada sobre a agroexportação e com franco acesso aos recur-sos do poder estatal. Gozando de ampla autonomia federal e possuindo osmecanismos para controlar o fortalecimento da oposição e evitar a compe-tição política, o PRR apresentava uma percepção própria sobre a naturezadas relações que deveriam existir entre as instituições públicas e as classessociais. O estímulo à expansão do mercado interno e a preservação de umacerta autonomia da autoridade pública face às demandas de grupos sociaise econômicos parecem melhor caracterizar esta política: “The state shouldbe self-sufficient, avoiding budget deficits and inflation […]. It should at all

e cultural do Rio Grande do Sul. O último episódio desta natureza talvez tenha sido o clima deextrema radicalização política que envolveu a sociedade regional quando da chegada ao go-verno estadual de Olívio Dutra, ex-prefeito de Porto Alegre, do Partido dos Trabalhadores,entre 1999 e 2002. Vários intelectuais ocuparam os espaços de mídia escrita e eletrônica, sejapara denunciar a polarização histórica que divide os gaúchos desde a Revolução Federalista,ou talvez, num recuo ainda maior, desde a Revolução Farroupilha, seja para identificar nosagentes políticos contemporâneos traços das identidades políticas do passado. Assim, se ogoverno petista era identificado pela oposição, na linha direta da tradição castilhista, como detipo autoritário, com “flagrantes” tendências ditatoriais, na melhor das hipóteses “estatizantee contra o mercado”; a oposição era, por sua vez, identificada pelo partido no poder como“desinteressada pela sorte dos demais grupos sociais, elitista, intolerante e rancorosa frente àlegitimidade popular do governo”, críticas gerais que caberiam perfeitamente no discurso deuma liderança do PRR sobre os oponentes federalistas!

11 Com efeito, parece haver por vezes certo exagero – para não dizer clara ausência de cautelametodológica – na convicção com que Targa trata a vinculação ideologia/ação política:“L’intervention de l’État dans l’économie gaúcha avait un caractère doctrinaire. Elle ne s’estpas traduite dans un discours creux, puisque les Positivistes l’on vraiment pratiqué pendant 37ans (1893-1930) durant lesquels ils restèrent au pouvoir au Rio Grande do Sul. Elle n’avait rienà voir avec une pratique squizofrenique d’intervention économique accompagnée de la défen-se verbale des principes du laissez-faire, qui a caracterisé la démarche de l’élite paulista.Au Sud, il n’y avait pas de contradiction entre idéologie et les pratiques d’intervention del’État. Celui-ci était envisagé comme responsable de la régulation de l’économie et de la soci-été et était donc chargé de corriger la direction perverse que pouvait prendre l’économie demarché. L’intervention de l’État s’accordait parfaitment à cette représentation de son rôle,dans la mesure où il cherchait à socialiser les services publiques, à éviter la formation demonopoles, à promouvoir le bien-être social et à ne jamais favoriser un seu secteur ou groupede capital” (TARGA, 2002, p. 407).

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costs avoid unnecessary intervention in the economy, particularly when suchintervention favored certain groups at the expense of others. Ideally thestate should face an economy made up of independent producers engagedin free competition, its proper role being the maintenance of the conditionsnecessary for such competition. It should also abstain from interfering inclass conflict originating from the regular operation of capitalism. […] [T]hestate had its own needs and imperatives which should not be sacrificed tothe demands of classes and groups” (BARETTA, p. 55-56).

Contraponto: alguns traços do reformismo batllista

Uma série de reformas foram incluídas na agenda do Estado uru-guaio sob a influência de José Batlle y Ordoñez. Segundo nos sugere JoséClaudio Williman, retomando algumas conclusões de Nahum e Barrán,entre os “temas do reformismo” batllista encontram-se a percepção de queos problemas centrais do país (desigualdade, pobreza, monocultura, debili-dade financeira do Estado) resultavam de uma estrutura centrada no lati-fúndio pecuarista. O questionamento do latifúndio levou o “reformismo” aquestionar a propriedade privada como direito absoluto, não para negarlegitimidade à propriedade, mas, fundamentalmente, para invalidar certosabusos, e a maneira com que este questionamento operou foi semelhanteàquele verificado no sul do Brasil: a defesa da recuperação das tierras fiscalesindevidamente tomadas pelos latifundiários (em discussão já no primeirogoverno Batlle) e o estabelecimento de um Cadastro de Terras (a partir de1908) (WILLIMAN, p. 68-69). Também, os governantes do batllismo vi-ram na expansão da agricultura, tanto em área plantada como tecnológica,a fonte principal para a reforma de um mundo rural marcado pela pecuáriae social e culturalmente relacionado à oposição política do Partido Nacio-nal. A expansão da área agrícola já existente ou a introdução de novosprojetos de colonização apresentavam-se aos olhos das lideranças batllistascomo alternativas à frequente instabilidade social das áreas de pecuáriaextensiva, esteio da mobilização do Partido Blanco.

Tal como no caso rio-grandense, a política fiscal constituía a base daação reformadora do batllismo nas áreas rurais. “El régimen tributario cons-tituyó para el ‘reformismo’, el instrumento por medio del cual pretendió

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enfrentar las características negativas del latifundio pastoril y promover elcambio en los procesos de explotación, con esperanzadas repercusiones enel orden social” (WILLIMAN, p. 70). A contribuición inmobiliaria passou aser calculada sobre um preço médio regional de venda das terras12 diminuídode 20%, e os ingressos de receita daí produzidos permitiram ao Estado de-sonerar parte dos salários dos funcionários da administração pública, eli-minando alguns descontos previstos em lei e impulsionando um crescimentoda renda destes setores. Ainda, algumas iniciativas do período, como a im-posição aos latifundiários com área superior a 300 ha do cultivo agrícola depelo menos 5% da área, obtiveram pronta oposição dos setores proprietári-os e nunca foram aprovadas na Câmara de Deputados.

Se as medidas impositivas são inegavelmente as mais espetaculares,também a criação de uma infraestrutura mais adequada à dinamização daeconomia agropastoril passou a ser objeto da ação do governo, sobretudocom a expansão do crédito e a interiorização do sistema bancário, atravésdo Banco de la República e do Banco Hipotecario del Uruguay, e a expansão damalha viária, sobretudo com melhoramentos para a navegação fluvial. Poroutro lado, medidas de proteção a indústrias locais iriam se multiplicar nosprimeiros anos do período e culminariam com a Lei de 12 de outubro de1912, que desonerou importações de matérias-primas e insumos industriais.Segundo Marcos Alves de Souza, “as principais modernizações empreen-didas pelo batllismo foram de âmbito econômico e social, principalmenteas que revisaram a relação Estado/economia, bem como o processo deindustrialização, as políticas agropecuárias e fiscais, além das políticassociais e da legislação trabalhista”. Além das estatizações e nacionaliza-ções generalizadas em alguns setores de serviços (bancos, setor de seguros,ferrovias, por exemplo), houve ampliação do protecionismo aduaneiro, es-timulando a indústria, e um número crescente de questões incorporadas àagenda social13 do Estado. Ainda, é necessário citar a expansão do ensinopúblico e laico, primário14 e secundário, ainda no primeiro período de pre-

12 Na verdade, foram estabelecidos preços médios para cada uma das 140 zonas fiscais do país.13 Por exemplo, em seu segundo mandato presidencial, a partir de 1911, Batlle coloca em pauta

a regulação das relações de trabalho, com a fixação de jornadas de oito horas diárias, descansoremunerado, sistema de aposentadoria, previsão de indenizações por acidente ou demissão einterdição do trabalho de menores.

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sidência, e a melhoria de condições gerais de saneamento, pavimentação ehabitação durante a primeira década do batllismo (SOUZA, p. 48-49).

Na origem das transformações acima citadas, o batllismo encontrarano racionalismo krausista a base ideológica inspiradora de sua ação políti-ca: “Con base en el espiritualismo, el racionalismo y el krausismo (la vidaen armonía, que es la expresión de la armonía divina) que le animaban,Batlle desarrolló su humanismo con creencia de que el hombre es un sujetocapaz de llevar adelante los cambios sociales dentro de una estructura libe-ral y democrática. Para eso era necesario alentar la participación de todoslos ciudadanos en la vida política. Batlle pensaba que el Uruguay, comosociedad nueva, podía evitar los errores del viejo continente y convertirseen una especie de laboratorio social, de ‘país modelo’” (ARTEAGA, p.139). Como bem afirma Susana Monreal, a política fundada nos princípiosdo direito era, para Krause e seus seguidores, a doutrina dos princípios edos meios da reforma do Estado e da sociedade (MONREAL, p. 180).

A elite republicana e a elite batllista

Numa obra clássica sobre a política gaúcha no cenário da RepúblicaVelha, O regionalismo gaúcho e as origens da Revolução de 1930, Joseph Lovereferia-se às lideranças republicanas do Rio Grande do Sul como perten-cendo a um novo eixo político assentado nas relações Serra – Litoral, e nãomais Campanha – Litoral15. Embora Love não tenha se dedicado à elabora-

14 Reformas nesse sentido fora introduzida primeiramente em 1877, no Governo Varela.15 Província sob a monarquia e Estado da federação sob a república, situado no extremo meridio-

nal do Brasil, o Rio Grande do Sul pode ser dividido, para efeitos explicativos, em quatrograndes regiões: (a) a Campanha, correspondendo à metade sul do território, incluindo toda aárea de fronteira com o Uruguai e, em certa extensão, com a República Argentina, é região deexcelentes campos naturais e concentra historicamente as grandes propriedades de terra e aatividade pecuária tradicional do Estado; (b) a Serra é a designação genérica da metade nortedo Estado, incluindo a região das Missões e do Planalto próximas ao Estado de Santa Catari-na, abrigando uma pecuária economicamente menos importante que aquela do sul, bem comoalguma atividade agrícola; (c) a Zona Colonial compreende áreas da encosta da Serra Geral eda própria Serra, a leste e ao norte da capital. A Zona Colonial concentrou a parte substancialdas correntes imigratórias de origem europeia (basicamente de origem alemã ou italiana) doséculo XIX no sul do Brasil e foi, a partir da segunda metade daquele século, o centro de umaprodução agrícola rica e diversificada, baseada numa estrutura tipicamente camponesa e vol-tada para o mercado interno regional; (d) o Litoral compreende a costa atlântica e o sistema daLagoa dos Patos, incluindo as grandes cidades comerciais do Estado, como a capital, PortoAlegre, e a cidade portuária de Rio Grande.

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ção de um perfil social dessas lideranças, ele retomou a perspectiva já pre-sente na obra regional clássica de Sérgio da Costa Franco, Júlio de Castilhose sua época, de que a cisão entre republicanos e federalistas revelava umcorte no interior da classe proprietária entre aqueles estancieiros da regiãoda Campanha, defensores intransigentes dos privilégios de classe e da pri-mazia de seus interesses na agenda do Estado, e aqueles da Serra, menosabastados e menos vinculados ao circuito econômico exportador da pecuá-ria regional e, portanto, mais inclinados a atender às demandas oriundasdas classes médias e do espaço social da pequena propriedade de origemimigrante. Ainda, os laços destes proprietários serranos com os comercian-tes do Litoral estariam na origem de um novo equilíbrio tendente a colocarem destaque as preocupações de uma gama ampla de setores econômicos eindicar a impossibilidade de permanecer-se atrelados a uma agenda centra-da no atendimento exclusivo dos interesses dos grandes proprietários daCampanha. Esta nova configuração afastaria a elite dirigente ligada à “aris-tocracia” fundiária do sul do Brasil e representada nas fileiras do PartidoLiberal, durante a monarquia, e do Partido Federalista, durante a Repúbli-ca, do centro do poder regional. Esta percepção, contudo, avança pouco,uma vez que sugere uma “excepcionalidade da política gaúcha”, isto é, apresença de uma cisão no seio da elite rio-grandense, como resultante deum certo determinismo geográfico e econômico. Assim, estancieiros da Serracomporiam as fileiras do Partido Republicano, enquanto os estancieiros daCampanha representariam a base social dominante do Partido Federalista,derivando daí tomadas de decisão em boa parte “autoexplicativas”. Trata-se daquilo que Gunter Axt chamou de ‘matiz marxista-mecanicista’ ou “ti-pológico” da explicação histórica sobre o estado gaúcho na República Ve-lha, embora pouca ou nenhuma vinculação com o materialismo históricopossa ser observada nos autores referidos (AXT, p. 11, 16-17).

Por sua vez, numa tese defendida na Universidade de Pittsburgh em1985, Sílvio Baretta analisou comparativamente propriedades sociais delíderes republicanos e federalistas16 e encontrou certa consistência nas in-

16 A amostra investigada incluiu 29 inventários que puderam ser recuperados sobre um total de148 líderes republicanos e outros 25 inventários sobre um total de 111 líderes federalistas.

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formações generalizadas anos antes por Franco e Love a partir de dados dealgumas lideranças políticas: lá estavam a maior presença de lideranças fe-deralistas na região da Campanha, a localização da origem de vários líde-res republicanos na região da Serra e, por fim, a presença da classe médiaurbana e de intelectuais nos quadros do Partido Republicano. Contudo, ainvestigação encontrou uma surpreendente indiferenciação entre os padrõesde fortuna de federalistas e republicanos.17 Para o autor, o Partido Republi-cano “was in its core a party of urban intellectuals. But urban should not beconstrued here as meaning that these intellectuals, who had gone to thebest universities Brazil had to offer, were opposed in principle to ranchersand to landowners. On the contrary, the most important among them –Júlio de Castilhos, Assis Brasil and Demétrio Ribeiro, for instance – wereranchers themselves. […] What distinguishes them from the Federalista cat-tle-raisers is that the Republicans were also professionals and intellectuals,and saw themselves as such. It is because they saw their identity, at leasttheir political identity, in broad ideological terms that they were able tobridge the gap between landowners and the rising urban classes – merchants,small industrialists and bureaucrats, among others. Ultimately, loyalty tothe party and to Republican ideas mattered more than social origins. Thisand the demands for political and economic democratization made repu-blicanism compatible with urban aspirations” (BARETTA, p. 211).

Também, comparativamente às lideranças federalistas, mais concen-tradas na região de Bagé e em alguns poucos municípios da Fronteira eapresentando vínculos familiares entre si, os republicanos talvez fossementre si menos “parecidos” como grupo. O equivalente republicano ao clus-ter ‘vizinhança’ para os federalistas era o fato de que muitos haviam sidocolegas na Faculdade de Direito de São Paulo: “Their common educationand common ideological environment shaped their party in the same wayas familiy and neighborhood ties shaped the Federalistas” (BARETTA, p.

17 Há que referir-se aqui ao problema da sobrerrepresentação da fortuna “legal” presente nosinventários, sobretudo no que tange às lideranças federalistas, geograficamente concentradasna região de fronteira com o Uruguai. Possivelmente, como de hábito na elite proprietária daregião, parte das lideranças investigadas deveria possuir propriedades e ativos substanciais nopaís vizinho, o que evidentemente “desaparece” na análise dos inventários.

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210). Esta aproximação em virtude de uma formação comum pode ser per-cebida num levantamento pioneiro efetuado por Walter Spalding, onde, de30 lideranças republicanas cuja formação profissional pôde ser identifica-da, 2/3 aparecem como tendo estudado na Faculdade de Direito de SãoPaulo. Ainda, o fato de mais da metade de um total de 37 líderes republica-nos cuja idade pôde ser confirmada ter nascido no período 1855-1864 suge-re o entendimento da adesão ao movimento republicano também por umviés geracional.

Numa amostra de 69 altos funcionários (secretários de Estado, dire-tores, vice-diretores e chefes de seção) atuantes em três secretarias de Esta-do no período 1891-1930, reencontramos um perfil caracteristicamente ur-bano: 20 de 52 altos funcionários cuja localidade de nascimento foi possí-vel recuperar eram originários da capital; de 48 funcionários com formaçãouniversitária, 22 eram formados em Direito, 11 em Engenharia e 7 erammédicos. Entre estes altos funcionários, o tempo médio de permanência emum cargo de secretário de Estado (na Secretaria do Interior e Exterior) foide 6,8 anos; de um diretor geral, 5,6 anos; dos diretores da 1ª , 2ª e 3ªdiretorias, respectivamente, de 5,5, 6,6 e 5 anos em média. Esta média ele-vada de permanência em um cargo de chefia aponta para uma possívelestabilidade da carreira administrativa.18

Mas se os trabalhos que buscam investigar o perfil social das elitespolíticas regionais ainda são incipientes no Brasil, oferecendo à análise oconhecimento de apenas algumas poucas propriedades sociais das lideran-ças, no caso uruguaio há pelo menos uma grande investigação de tipo pro-sopográfico permitindo extrair significativos traços coletivos das direçõesbatllistas. Referimo-nos ao estudo de José P. Barrán e de Benjamin Nahum

18 Dados de uma pesquisa em curso sobre o perfil prosopográfico das lideranças do PartidoRepublicano Rio-Grandense. Numa ampliação desta amostra, reunindo agora 392 funcionáriosdas mais variadas atividades, nas três secretarias – excluindo apenas tarefas administrativa-mente pouco especializadas, como porteiros e estafetas – encontramos médias ainda maiselevadas: 8,4 anos na Secretaria do Interior e Exterior; 7 na Secretaria de Obras Públicas; e 9,8na Secretaria da Fazenda, perfazendo uma média geral de 8,4 anos de dedicação ao serviçopúblico. Se é possível que esse número não impressione se comparado a algumas longevascarreiras públicas verificadas durante a monarquia, o fato é que o quadro de ampliação acele-rada de serviços e, portanto, de incorporação de novos funcionários sugere mais uma vez, faceàs médias assinaladas, uma situação de estabilidade de carreira destes funcionários.

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no terceiro tomo da obra Batlle, los estancieros y el Imperio Británico. Nahum eBarrán trabalharam sobre uma amostra de dirigentes batllistas organizadaa partir de duas listagens originais: a primeira de 81 ministros, chefes polí-ticos ou representantes eleitos ao Senado e à Câmara de Deputados e cujosmandatos tiveram duração de nove ou mais anos, entre 1905 e 1913; a se-gunda, de 24 dirigentes batllistas (altos funcionários, dirigentes de institui-ções autônomas e membros do serviço diplomático) ingressados na ativi-dade pública entre 1911 e 1914 e com presença média no cargo de 5 anoscada. Do total de 105 dirigentes, os autores obtiveram dados biográficos19

para 66. Sobre o perfil obtido para este grupo, apontamos a seguir algunstraços gerais.

Uma primeira constatação é a longevidade, logo a representativida-de do grupo em questão, com 14 anos em média de atuação política comolegisladores, chefes políticos, ministros e presidentes, entre 1879 e 1933.Por outro lado, destaca-se o caráter precoce de seu ingresso na vida políti-ca, com uma idade média de 36,5 anos ao incorporar-se ao grupo dirigente,idade que cai para 34,5 anos quando tomamos apenas o grupo que ingres-sou entre 1911 e 1915, período de maior avanço do processo reformista, oque permite sugerir uma associação entre juventude e radicalização refor-mista. Por outro lado, o caráter urbano do movimento é inegável: 68,5%dos líderes estudados haviam nascido em Montevidéu, isso quando a capi-tal do país não chegava a representar 30% da população. Descontados aque-les nascidos em outros países, o interior uruguaio não contribuía com maisque 26,5% das lideranças batllistas. A elite batllista é também uma eliteextremamente bem “escolarizada”, com 77,2% dos dirigentes incluídos naamostra possuindo título universitário. A Faculdade de Direito era a ori-gem mais comum destas lideranças com formação superior: 59% dos diri-gentes estudados formaram-se ali (o que corresponde a 76% de todas as

19 As 19 variáveis incluídas no estudo foram: ano de nascimento; idade ao ingressar na vidapolítica; idade ao aderir ao batllismo; local de nascimento; nacionalidade dos pais; se foi diri-gente estudantil; se realizou viagem de estudos à Europa; se o pai tinha atividade política; sepossuía militância anticlerical notória; se buscou ingressar na Escola Elbio Fernández; núme-ro de anos de atividade política; se participou na Revolução do Quebracho; se participou dogrupo colorado na guerra de 1904; se foi empregado público antes de assumir o cargo político;se teve emprego público posterior ao cargo; se possuía título universitário; se era jornalista; e,por fim, se era escritor profissional.

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lideranças com título universitário). Outros 7 dirigentes eram médicos (11%)e 5 engenheiros (8%) (NAHUM e BARRÁN, p. 101-102).

Em relação à origem social das lideranças batllistas, Nahum e Barránencontram 16 líderes – entre eles o próprio Batlle – filhos de dirigentes e ho-mens de Estado do século XIX e que, enfim, eram membros do “patriciado”,“pertenecían a los estratos sociales superiores pero raramente a las clases eco-nomicamente altas” (NAHUM e BARRÁN, p. 98); outros 26% eram conside-rados de origem humilde, enquanto que 6% originavam-se nos estratos econô-micos superiores do país; 17% eram filhos de imigrantes, o que sugere tambéma origem entre os estratos “humildes” ou médios da população; por fim, em 18casos ou nos restantes 27% da amostra não foi possível indicar a condiçãosocial de origem das lideranças, embora a constatação de que existe entre elesuma esmagadora maioria de titulados universitários sugira também uma ori-gem social nos setores médios. A origem imigrante é também um dado interes-sante, uma vez que sugere a presença de um componente socialmente inclu-dente na política uruguaia e, particularmente, nos meios batllistas, no início doséculo XX: 24 casos ou 36% do total descendiam de pai ou mãe (ou ambos)estrangeiro, enquanto 17 ou 24% eram confirmadamente filhos de pai e mãeuruguaios; os demais 25 não puderam ter identificada a origem dos pais, em-bora apresentem, em muitos casos, sobrenomes de origem claramente italiana.

De qualquer forma, ainda que considerássemos apenas o percentual“seguro” de 36% de origem estrangeira, o dado é surpreendente se compa-rado ao caso brasileiro. Embora não tenhamos dados para o Rio Grande doSul, o que constitui o foco de nosso interesse, dados disponíveis para outrasregiões do país sugerem um contraste impressionante com a experiência deincorporação e ascensão de filhos da imigração no campo político no Bra-sil. Referimo-nos ao trabalho, empreendido por Joseph Love e Bert Barick-man, de análise e nova tabulação de dados sobre três elites políticas regio-nais no período 1889-1937, logo contemporâneas à elite dirigente rio-gran-dense analisada neste artigo, e que haviam sido objeto de três estudos im-portantes20 realizados nos anos 1970: as elites de São Paulo, Minas Gerais e

20 Os estudos originais são as teses de doutoramento de WIRTH, John. Minas Gerais in the BrazilianFederation, 1889-1937. Stanford: Stanford University Press, 1977; LEVINE, Robert M. Pernambu-co in the Brazilian Federation, 1889-1937. Stanford: Stanford University Press, 1978; e LOVE, Jose-ph L. São Paulo in the Brazilian Federation, 1889-1937. Stanford: Stanford University Press, 1980.

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Pernambuco. Nele, a partir de uma amostra de 753 ocupantes de altos car-gos dos poderes executivo, legislativo e judiciário, nos níveis nacional e re-gional, constata-se que “menos de 1% da elite política nasceu no estrangei-ro, e apenas 4% tinha ao menos um dos pais nascidos no exterior”! E, com-pletam os autores, “this is striking, given the mass immigration Brazil expe-rienced in this period. Moreover, there was little difference among the sta-tes. Despite the fact that São Paulo received half of all Brazil’s immigrantsfor the period studied, its elite contained only one foreign-born member(N=239) – Miguel Costa, who accompanied his parents to Brazil fromArgentina as a child” (LOVE e BARICKMAN, p. 9). Estes dados sugeremuma maior permeabilidade do campo político para as populações oriundasda imigração no caso uruguaio, bem como o acesso franqueado à vida pú-blica para as classes subalternas ou setores médios, em clara dissonânciacom o que se passava no Brasil à época, onde o sistema partidário da Pri-meira República simplesmente inviabilizava o ingresso na vida política decandidatos situados fora das redes sociais dominantes em cada estado. Con-tudo, e embora não tenhamos dados produzidos para o caso do Rio Gran-de do Sul no que tange à incorporação das populações oriundas da imigra-ção na cena política regional, acreditamos que, mesmo sem apresentar nú-meros semelhantes ao uruguaio, uma maior incidência de participação depopulações de origem imigrante pode ter se verificado, sobretudo se levar-mos em conta a intensa participação das regiões de imigração (Zona Colo-nial) nas disputas que marcaram a política regional “intraelites”, como aRevolução Federalista (1893-1895) e a Revolução de 1923.

Considerações finais

Este artigo apresenta uma proposta arriscada, a de expor o caso daação das elites governantes no Rio Grande do Sul tendo como pano defundo a comparação entre duas realidades históricas e políticas de diferenteescala: o próprio caso gaúcho, sob a República Velha, e o caso do Estadonacional uruguaio. A regra da cautela metodológica sugere não se misturarlaranjas e maçãs, mas, face às flagrantes assimetrias sugeridas pela simplesconfrontação de um caso regional a outro nacional, impõe-se uma sérieimpressionante de similitudes nas práticas e resultados obtidos ao longo

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dos períodos. As elites governantes em Montevidéu e Porto Alegre puse-ram ênfase no dirigismo econômico estatal e orientaram a ação públicanum sentido não oligárquico, visando diversificar a base econômica e dire-cionar o investimento público a setores outros que a grande propriedadefundiária. Buscaram promover a incorporação de novos grupos sociais(como o proletariado urbano, por exemplo) e expandiram em número equalidade as políticas sociais. Mesmo que os resultados não sejam comple-tamente equivalentes, os aspectos comuns não podem ser ignorados: ba-tllistas e republicanos castilhistas representaram, em certa medida, a ma-nifestação, no sul da América do Sul, de uma tendência reformista “mun-dial” em curso nas primeiras décadas do século XX.

De certa forma, a peculiar formação do federalismo brasileiro desdeo declínio da presença militar no centro do poder republicano e da tomadade controle do núcleo do poder federal pelos representantes da elite paulis-ta, a partir de 1894, associada à pactuação da política de governadores,garantiu um grau bastante amplo de autonomia às elites políticas regionaiscapazes de mobilizar recursos políticos – e este era o caso no Rio Grandedo Sul. Prova disso, se necessário fosse, seria o fato de ter vigido no estado,durante quatro décadas, e em completo desacordo com a Constituição Fe-deral brasileira, a carta constitucional “castilhista-positivista” do 14 de Ju-lho de 189121. Assim, a elite republicana gaúcha pôde exercer, como eliteregional, um poder normalmente exercido por governos nacionais, seja naestruturação de um complexo sistema fiscal regional e na formulação depolíticas de proteção e estímulo a diferentes setores produtivos, seja, numregistro menos nobre, na perseguição formal e institucional da oposiçãopolítica.

Se sugerimos que práticas intervencionistas e políticas reguladorasoriginam-se no ambiente político e intelectual vivenciado pelas elites políti-cas, como entender que a partir de circunstâncias políticas e intelectuaisdiferenciadas, como aquelas em curso no Uruguai e no Rio Grande do Sul,tenha sido possível o aparecimento de um modelo – em princípio – seme-

21 Simbolismo da data à parte, o caráter algo jacobino da ação dos republicanos gaúchos, jáanalisado por Hélgio Trindade, aparece também entre os reformistas batllistas.

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lhante de intervenção pública e reforma social? Ora, o autoritarismo e odisciplinamento ideológico positivista das elites governantes gaúchas nãose aproximavam do racionalismo krausista, em tudo uma experiência inte-lectual mais liberal e tolerante. Não obstante, nos dois casos as elites tive-ram como estratégia a formulação de agendas públicas de desenho seme-lhante. É possível imaginar que não se trata aqui de uma simples coincidên-cia: positivismo, krausismo, georgismo eram sistemas de ideias popularesentre grupos letrados em fins do século XIX e veiculavam proposições coe-rentes com as necessidades de modernização e de incorporação social dosdiferentes atores de um mundo urbano radicalmente novo e complexo. OEstado pensado pelas elites em análise é, oscilando-se dos matizes maisliberais aos mais autoritários, e na confluência das prédicas positivista ekrausista, um Estado próximo, que intervém, provê, acolhe e planeja.Este Estado se tornara indispensável aos olhos de uma parte expressiva daselites intelectuais e políticas, emergentes e contemporâneas à fase de esgo-tamento das instituições liberais e oligárquicas de fins do século XIX.

Mas talvez encontremos no timing dos processos uma diferença im-portante entre a experiência republicana rio-grandense e a experiência ba-tllista. Assim, enquanto os resultados das políticas gestadas sob o batllismose fizeram sentir na vida econômica e social uruguaia já nas primeiras dé-cadas do século, com um extraodinário empuxe no conjunto da atividadeeconômica nacional e uma melhoria acentuada nos indicadores sociais – eisso sobretudo pelas maiores e melhores possibilidades de utilização de re-cursos que só uma administração nacional, não submetida a qualquer cons-trangimento jurídico-institucional superior, era capaz de mobilizar –, omesmo não ocorreu no Rio Grande do Sul. No caso rio-grandense, os efei-tos das políticas devem necessariamente ser analisados no longo prazo. Comefeito, apesar dos indicadores econômicos e sociais favoráveis, a vitalidadedas políticas dos republicanos gaúchos só parece poder ser medida plena-mente na perspectiva de seu sentido histórico: o Rio Grande do Sul casti-lhista e positivista não como um fim em si mesmo, mas como laboratórioda era Vargas, como espaço de gestação de uma perspectiva intervencionis-ta, centralizadora e reguladora que seria, a partir de 1930, estendida aoconjunto da federação e da sociedade brasileiras. Nas palavras de um histo-riador regional, “como administrador e como político, é fundamental vê-lo

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[a Vargas] como um representante típico do castilhismo” (FRANCO, 1993,p. 18). De fato, Vargas, que se lançara na política sob a proteção e o apadri-nhamento de Borges de Medeiros, conhecia perfeitamente as possibilida-des oferecidas a uma gestão de conflitos patrocinada pelo Estado e enten-dia como poucos as virtudes da centralização das políticas do Estado e dacontenção forçada dos grupos de oposição.

Nesse sentido, como se daria a transição do universo regional, logorestrito da experiência republicana sulina para esta sociedade que estavacontribuindo para gerar? É sabido que, embora a adesão doutrinária dosdirigentes republicanos pudesse sugerir uma atitude de abertura e estímuloà intervenção em situações de desequilíbrio dos agentes produtivos ou dedesarmonia social, a doutrina impunha, em certos casos, elementos restriti-vos ao desenvolvimento econômico “puxado” pelo Estado, como a ênfasedada à moralização e ao orçamento equilibrado. “Como instituição maisevoluída da sociedade, o Estado deveria dar o exemplo, não gastando de-masiadamente, recorrendo o mínimo a empréstimos e seguindo à risca anorma das finanças sadias; ao contrair déficit ou recorrer a empréstimos, oEstado dava mau exemplo, ao gastar o que não era seu. E, ao priorizardeterminados setores, regiões ou classes, feria seu princípio de Estado Neu-tro: em tese, não haveria por que dar crédito à indústria, por exemplo, semque no mesmo montante fossem atendidos os anseios da agricultura” (FON-SECA, 1988, p. 15).

Estes princípios, embora seguidos pela elite dirigente republicana comempenho desigual, segundo circunstâncias históricas e conveniências polí-ticas, permitem mostrar as dificuldades que a aplicação da doutrina acaba-va por oferecer ao desenvolvimento econômico. Mesmo que advogandomaior intervenção sobre o mercado e sobre a sociedade, o positivismo, “ape-sar de representar a gênese do desenvolvimentismo”, apresentava limita-ções concretas ao desenvolvimento capitalista. Este necessitaria, para alémde maior intervenção e planejamento, de “meios mais eficazes para conse-gui-lo”, como, por exemplo, através do fortalecimento da indústria face aosetor agrícola. “Ausência de crédito, orçamento equilibrado e Estado Neu-tro são propostas inconsistentes com qualquer projeto de crescimento capi-talista a longo prazo.” Com a chegada de Vargas à chefia do Estado rio-grandense, em 1928, verifica-se uma inflexão na rigidez positivista em al-

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guns dos itens centrais da política econômica do governo borgista, a saber,o equilíbrio orçamentário, a questão do crédito e os empréstimos externos.“O saneamento financeiro como objetivo primordial do governo cederiaespaço, mesmo que timidamente, à proposta de que a tarefa do Estado erapromover o desenvolvimento econômico [...]” (FONSECA, 1988, p. 15-16)[grifo nosso].

Concluindo, enfatiza-se aqui que, desde sua ascensão ao poder, ogoverno Vargas incorporou à agenda pública uma perspectiva desenvolvi-mentista que, na sua origem, derivava da peculiar apropriação do positivis-mo comtiano no seio de uma elite política regional emergente, e isso numquadro de transição política nacional e de superação do modelo político-administrativo monárquico pela experiência republicana. Neste quadro, areconfiguração do campo político regional, precipitada pela dinâmica doprocesso político nacional, desalojara a principal elite regional, hegemôni-ca econômica e politicamente durante o Império – os proprietários/criado-res da região da Campanha outrora reunidos no velho Partido Liberal –, eabrira caminho para um realinhamento de forças políticas em torno de umgrupo de jovens lideranças republicanas não vinculadas àquelas tradicio-nais regiões. De certa forma, contrariamente ao mainstream do movimentorepublicano nacional, que herdara o caráter não conflitual das práticas po-líticas sob a monarquia e cuja transição para o liberalismo político de feiçãooligárquica se fizera de forma “natural” e suave, o republicanismo gaúcho,em contestação aberta por parte de uma elite com sólidos e históricos laçoscom o poder central e regional, buscou numa maior coesão e disciplinaideológica a chave para o enfrentamento e execução de seu projeto político.

A política econômica dos republicanos rio-grandenses ganhou den-sidade e sua experiência ajudou a consolidar a posição estratégica do Esta-do gaúcho no concerto político nacional ao longo da Velha República. Aoincorporar esta experiência, uma vez na chefia do Estado brasileiro após aRevolução de outubro de 1930, Vargas reconhecia talvez melhor do queninguém as virtudes do modelo regional e suas limitações.22 “[...] O desen-

22 “O sentimento de que as indústrias locais e o mercado interno mereciam prioridade e proteçãose reavivaria toda vez que os positivistas se defrontassem com a questão abrangente do desen-volvimento nacional. [...] [O] discurso industrialista, com maior ou menor ênfase antiimperi-alista, só receberia acolhimento oficial ao longo do consulado getuliano [de Getúlio Vargas]

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volvimentismo nasceu em plena ‘república oligárquica’, ainda sob a hege-monia da burguesia agrária e comercial, e por influência do positivismo.Ao ganhar autonomia enquanto proposta de organização econômica e so-cial, entretanto, romperia, mesmo paulatinamente, com alguns princípiosbásicos do positivismo.” Fomentando o crédito, ampliando a captação deempréstimos externos e mesmo chegando a aceitar a possibilidade de défi-cits, deixava-se em segundo plano a austeridade e lançava-se na busca docrescimento, negando-se, de certa forma, a própria prédica positivista. “Estanegação implicaria, em última instância, a consciência de que a economiacapitalista diferia da economia mercantil, ou mesmo da economia domés-tica: o desenvolvimentismo desde logo supunha capitalismo, embora não o explici-tasse” (FONSECA, 1988, p. 18).

Quadro comparativo

Batllismo Castilhismo/borgismo

Periodização 1903-1933 1889-1930

Líderes políticos José Batlle y Ordoñez Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros

Modelo socioeconômico Agroexportador pecuarista Agroexportador pecuaristadominante

Sistema de ideias Krausismo/Liberalismo/Cientificismo Positivismo (político)Positivismo (não político)

Forma de organização Aparece como facção do Partido Colorado Aparece como movimento republicano soboriginal a monarquia para transformar-se depois no

Partido Republicano Rio-Grandense

Possibilidade de dissidência Sim Nãono partido governante

Oposição política Partido Nacional – Blancos Partido Federalista

Episódios de violência Sim Simpolítica e guerra civil

Liberdade de imprensa Sim Sim, relativa

que foi incorporando, lenta e pragmaticamente, as sugestões aventadas pela ala marchante dosnossos empresários. O dirigismo estatal e o progressismo burguês encontrariam, a partir dosmeados da década de 30, uma zona de intersecção de que ambos se beneficiariam. [...] [O]pendor industrializante dos homens de 30 era temperado por um respeito, igualmente comtia-no, pelo ideal do equilíbrio orçamentário. [...] [A] práxis republicana no Rio Grande, amplia-da pelo grupo que subiu ao poder na Revolução de Outubro, interferia no processo de acumu-lação da burguesia ora mediante instrumentos fiscais, tributando ou isentando, ora mais dire-tamente, pela encampação de redes de transportes segundo o lema da socialização dos servi-ços públicos” (BOSI, p. 292-294).

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Vitória militar sobre a Guerra Civil (1904) Revolução Federalista (1893-95) eoposição Revolução de 1923

Possibilidade de livre Não, na maior parte do período Não, nuncacompetição eleitoral paraa oposição

Sistema político dominante Democracia representativa com Ditadura republicanaexclusivismo colorado

Perfil social dominante da Setores médios urbanos Elites rurais “não centrais” e setoresequipe dirigente médios urbanos

Peso da imigração na Sim Nãoorigem das lideranças

Perfil social das lideranças Elites rurais Elites rurais (majoritariamente dade oposição região da Campanha)

Relação com movimento Incorporação/conciliação Incorporação/conciliaçãooperário

Intervenção e regulação Sim Sim, mas limitada em função dasocial legislação maior (federal)

Intervenção e regulação Sim, ampla Sim, parcialeconômica

Instrumento mais comum Política fiscal Política fiscalem política econômica

Protecionismo econômico Sim Sim, mas limitado em função dalegislação maior (federal)

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Poder, instituições e elites

Encontros e desencontros docooperativismo na Argentina (Buenos Aires)

e no Brasil (Rio Grande do Sul)

Alba Cristina Couto dos Santos1

Marluza Marques Harres2

O cooperativismo constitui uma prática associativa com grande desta-que nas sociedades latino-americanas. A tradição desse associativismo, for-mada ao longo de todo o século XX, tem revelado uma profunda capacidadede adaptação a diferentes contextos e crises. Dificilmente poderíamos falarde um modelo universal de cooperativismo, embora se possam encontrar,nas mais diversas experiências, um fundo comum, que pode ser traduzidonos ideais de um humanismo social que persiste orientando a prática desseassociativismo. Existe uma pluralidade de estruturas e métodos, cujo desen-volvimento tem desafiado, de modo positivo e inovador, a preservação dosvalores e princípios cooperativistas. Privilegiando valores como a democra-cia e a participação igualitária, o cooperativismo configura-se, ao mesmotempo, como associação de pessoas e como empresa econômica, represen-tando a construção de uma inserção diferenciada. Neste artigo, apresenta-mos os resultados parciais de uma pesquisa que viemos desenvolvendo nosúltimos anos objetivando investigar e analisar comparativamente importanteperíodo do cooperativismo rural no Rio Grande do Sul (Brasil) e na Provín-cia de Buenos Aires (Argentina), abrangendo as décadas de 1950, 1960 e

1 Licenciada em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2009/2) e mestranda emHistória na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

2 Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande Sul. Professora e pesquisadorado Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

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1970.3 Sistematizamos, no texto ora apresentado, alguns aspectos da trajetó-ria do cooperativismo nos dois países, em especial a questão legal, a monta-gem da rede de cooperação, a interação com o Estado e a preocupação coma política cultural-educativa das cooperativas nas décadas destacadas acima.

A abordagem comparativa, inspirada na perspectiva de Marc Blochde buscar comparar sociedades próximas em termos espaciais e temporais,abertas a influências mútuas e sujeitas ao compartilhamento de traços deorigens e condicionamentos comuns, amplia a capacidade de identificar ecompreender o peso das particularidades e diferenças nos fenômenos estu-dados. Concordamos ainda com as colocações de Mancuso a respeito daexistência de três pontos perceptíveis no estudo comparativo da História: ode contribuir para que o estudo histórico seja construído e através dele sur-jam novas questões para cada caso estudado, o resgate de relações que atéentão não eram identificadas e o auxílio para compreender as transforma-ções dos espaços temporais (MANCUSO, 2005, p. 272).

Presença de imigrantes

Na Argentina o cooperativismo, como experiência associativa, apa-rece já no século XIX, com os imigrantes europeus. No Brasil, encontra-mos, também no século XIX, a difusão do ideal cooperativista e algumasexperiências pioneiras, mas somente no início do século XX temos registrodas primeiras cooperativas agrárias, o que ocorreu em áreas de colonizaçãoalemã e italiana. A respeito da imigração, cabe destacar que, a partir doprocesso de independência, esses países passaram a receber de modo ex-pressivo imigrantes de diversas partes da Europa. No Brasil, uma das polí-ticas adotadas no que se refere à recepção de imigrantes foi a povoação dasprovíncias do Sul, ou seja, as regiões fronteiriças e conflituosas do país.Este movimento ganhou força nas décadas de 1820 e 1830 e caracterizou-

3 Este texto apresenta resultados parciais da pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Gradua-ção em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos intitulada “Cooperativismo Rural.Estudo comparado: o Rio Grande do Sul e a Província de Buenos Aires (1950-1970)”, realiza-da no período entre 2008 e 2010 por Marluza Marques Harres, com apoio dos bolsistas deiniciação científica Alba Cristina Couto dos Santos e André Ricardo de Andrade. A ele agrade-cemos pela leitura e sugestões apresentadas a este texto.

SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

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Poder, instituições e elites

se como uma imigração centralizada, organizada e subsidiada pelo Estado;ou seja, os imigrantes receberam terras concedidas nas províncias do RioGrande do Sul e de Santa Catarina.

Na província de Buenos Aires, a promoção de uma política de colo-nização se deu no início da década de 1820, oferecendo terras e crédito aosimigrantes. Contudo, as colônias de imigrantes não floresceram na Argen-tina em função de dificuldades econômicas referentes à comercialização,ao tipo de terras, aos locais de instalação e ao tamanho das unidades deexploração. Segundo Fausto & Devoto (2004), nenhuma das colônias so-breviveu. A imigração espontânea teve mais sucesso e foi significativa paraesse país. Desde 1810 estava estabelecida na Argentina, através da PrimeiraJunta de Governo, a liberdade de imigração, o que favoreceu a entrada decomerciantes europeus, ingleses e franceses, que se beneficiaram tanto dasliberdades comerciais quanto do fim do monopólio colonial. A imigraçãoeuropeia para a Argentina se intensificou a partir da década de 1830 porconta do vazio demográfico que as guerras de independência e civis deixa-ram no Litoral. Iniciou-se o povoamento em cidades e vilas da região, bemcomo em algumas zonas rurais, sobretudo do sul de Buenos Aires4.

As cooperativas agrícolas passaram a integrar a lógica econômica,introduzidas, principalmente, pelos imigrantes; mas, com o tempo, passa-ram a ser instrumentalizadas pelos governos, o que aconteceu tanto na Ar-gentina quanto no Brasil. Compreendemos cooperativa como “sociedadesde pessoas, organizadas em bases democráticas, que visam não só a suprirseus membros de bens e serviços como também a realizar determinadosprogramas educativos e sociais” (PINHO, 1965, p. 8).

Como ideal de cooperação solidária, a prática cooperativista pene-trou no Brasil nos finais do século XIX. Sua institucionalização estaria li-gada aos problemas de abastecimento, provocados pelo crescimento doscentros urbanos e industriais. Surgiu como uma proposta para eliminar,mesmo que parcialmente, a crise, sendo apoiada primeiramente por gruposde produtores mercantis e, após a década de 30, pelo Estado. Segundo

4 Ver mais sobre o estudo comparativo da população de Argentina e Brasil em: Fausto, Bóris;Devtoto, Fernando J. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002). SãoPaulo: Ed. 34, 2004. p. 40-50.

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Mendonça (2002, p. 17), desde 1910 um projeto de cooperativização agrí-cola já era defendido por quadros ligados ao Ministério da Agricultura,sem, contudo, redundar em medidas efetivas. O fato é que a presença e aexperiência dos imigrantes alemães e italianos na região Sul e dos japone-ses na região Sudeste ajudaram a consolidar o movimento, incialmente comcompleta independência em relação à estrutura estatal.

Segundo os autores Lauschner & Lens (1969), o Rio Grande do Sul foium dos estados do Brasil que mais contribuiu para o desenvolvimento docooperativismo no Brasil, embora se encontrem experiências em outros esta-dos já no final do século XIX.5 Especialmente em relação ao cooperativismoagrário, a experiência gaúcha foi decisiva, primeiro nas zonas de colonizaçãoalemã, com as “Caixas Raiffeisen”, e depois na zona italiana, com as primei-ras cooperativas vinícolas. A introdução e difusão dessa forma de organizaçãocontaram com o apoio de algumas lideranças, como o Pe. Teodoro Amstad,cuja atuação se destacava na área de colonização alemã, e Stéfano Paternó, ogrande mentor do cooperativismo na área de colonização italiana.

Na Argentina, uma primeira experiência de busca de cooperação embases associativas surgiu em 1898 no meio rural. Imigrantes franceses pro-venientes de Aveyron (França) se instalaram na localidade de Pigué, Pro-víncia de Buenos Aires, onde decidiram criar uma sociedade que suprisseos danos causados pelo granizo nas plantações. Esta sociedade recebeu onome de “El Progreso Agrícola” e, para muitos, não pode ser consideradauma cooperativa rural por excelência, pois seu objetivo era apenas assegu-rar um seguro à lavoura (IZQUIERDO, 1972). A Liga Agrícola Ganadera,fundada em 1904, em Junín, Província de Buenos Aires, representa inte-gralmente uma cooperativa agrária, oferecendo aos associados diversos ser-viços relativos à qualificação da lavoura e comercialização das colheitas.As cooperativas fizeram com que os agricultores argentinos não dependes-sem mais dos armazéns de ramos gerais, pois ofereciam o que os produto-res precisavam para seu trabalho e distribuíam a renda de forma justa, eli-minando intermediários.

5 No ano de 1891 surgiu, em São Paulo, a Associação Cooperativista dos Empregados da Com-panhia Telefônica na cidade de Limeira, e, em 1895 foi fundada, em Pernambuco, a Coopera-tiva do Proletariado Industrial de Camaragibe.

SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

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Poder, instituições e elites

A primeira comparação que estabelecemos diz respeito à forma comoo cooperativismo foi criado nas duas regiões, na Província de Buenos Airese no Estado do Rio Grande do Sul. Em ambas, foi fundamental a presençade imigrantes originários da Europa, sendo uma marcada por programasde colonização subsidiados e outra por forte presença de imigração espon-tânea. No Estado do Rio Grande do Sul, a marca da colonização permane-ce até hoje, e foi neste meio que o cooperativismo floresceu. Nesta encon-tramos a vontade e perseverança de lideranças, uma delas religiosa, moven-do e fomentando o cooperativismo, enquanto na Argentina o que se desta-ca é a vontade coletiva, caracterizando um estilo e motivações diferentes.

Legislação e políticas públicas até 1949

O cooperativismo no Brasil surgiu sem um marco jurídico preexis-tente, e os primeiros decretos não afetaram a independência do movimentoassociativista que estava em andamento. A orientação legal da década de1930 apresentou outras características, conformando efetivamente umapolítica estatal cooperativista, e o Decreto-lei nº 22.239 de 1932 tem sidoreconhecido por muitos estudiosos como o marco jurídico do cooperativis-mo. Esta legislação se apresenta com um traço bastante paternalista, quecomprometeu a autonomia das associações. O mérito principal deste De-creto foi definir as cooperativas como sociedades de pessoas e não de capi-tais, acrescentando tratar-se de uma forma jurídica sui generis. A Lei incor-porou também, pela primeira vez, a figura do retorno das sobras proporci-onalmente às operações, sem vinculá-lo ao capital. Para Pinho (1965), apromulgação da Lei de 1932 desfez confusões, até então frequentes, entrecooperativas e outras sociedades, como sindicatos. Entretanto, os dispositi-vos apresentam algumas falhas consideradas imperdoáveis, como “limita-ção do valor das quotas-partes de cada associado; quorum de funciona-mento e deliberação das assembleias; indivisibilidade do fundo de reserva;e singularidade pessoal do voto” (LIMBERGER, 1982, p. 13).

A década de 1930 é um período de grande relevância para o coopera-tivismo brasileiro, pois este passou a integrar a estratégia econômica e polí-tica do poder público para o campo. As cooperativas foram instrumento dedesenvolvimento rural, especialmente no âmbito da pequena propriedade,

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organizando os produtores rurais e a sua produção, transferindo-lhes alémdo crédito e da renda, tecnologia para processar o produto e acelerar a in-dustrialização no campo.

Na Argentina, como já indicado, muitas cooperativas rurais surgi-ram nas primeiras décadas do século XX, inspiradas pelos ideais de Roch-dale. Porém estas cooperativas rurais encontravam-se num estado de isola-mento, representavam os sócios em determinadas localidades e raramentese relacionavam umas com as outras. Esta barreira seria quebrada com osurgimento das Federações, cooperativas de segundo grau que representa-vam pessoas jurídicas, ou seja, as cooperativas, e eram constituídas por de-terminadas categorias de cooperativas, podendo ser rurais, de seguros agrí-colas e urbanas. As Federações rurais defendiam os interesses comuns en-tre as cooperativas associadas, representando-as diante dos poderes públi-cos, difundindo os ideais do cooperativismo, promovendo a educação, faci-litando a exportação.

A Federação pioneira no território argentino surgiu no ano de 1922,na localidade de Rosário, com o nome de Asociación de Cooperativas Ru-rales Zona Central. Inicialmente contou com dez cooperativas associadasnas Províncias de Santa Fe e Córdoba. Em 1927, esta Federação mudouseu nome para Asociación de Cooperativas Argentinas (ACA) e, em 1944,sua sede central foi transferida para a Província de Buenos Aires. Esta é,sem dúvida, a Federação com maior destaque no movimento cooperativis-ta argentino, devido ao fato de acompanhar ativamente toda a evolução docooperativismo rural argentino,

Com o crescimento que o cooperativismo argentino alcançou, tor-nou-se importante normatizar nacionalmente o funcionamento das coope-rativas. No dia 20 de dezembro de 1926, foi aprovada a Lei nacional nº11.388 sobre o Regime Legal das Sociedades Cooperativas. Esta Lei possi-bilitou o reconhecimento do cooperativismo como uma organização de-mocrática com finalidade socioeconômica. A Lei 11.388 também aceitouos princípios dos Pioneiros de Rochdale6 e expressou um forte sentido dou-

6 Os 28 tecelões em situação de greve e de demissão em massa começaram a esboçar, desde finsde 1843, o que em dezembro do ano seguinte se traduziria na cooperativa de consumo, que, nasobriedade operária, surgiu pequena e modesta, e desenvolveu-se ininterruptamente até nossosdias (SCHNEIDER, 1994, p. 10).

SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

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trinário, destacando a neutralidade política, étnica e religiosa e o desenvol-vimento da educação. Após esta lei ser sancionada, surgiram muitas outrasfederações e, com elas, o processo de difusão dos princípios de ajuda mútuae solidariedade entre os sócios que se tornaram valores culturais fortemen-te predominantes.

No Rio Grande do Sul, o avanço das cooperativas foi crescente, massomente na década de 1950 surgiram as primeiras Federações de CooperativasAgrícolas, com o propósito de representação administrativa e econômica, ouseja, com as funções estabelecidas pela Associação Internacional de Coopera-tivas. As primeiras federações foram: a Federação das Cooperativas do Vinhodo Rio Grande do Sul Ltda. (FECOVINHO), em 1952; a Federação das Coo-perativas de Arroz do Rio Grande do Sul (FEARROZ), em 1953; a Federaçãodas Cooperativas Tritícolas do Rio Grande do Sul Ltda. (FECOTRIGO), em1958; a Federação das Cooperativas de Lã do Rio Grande do Sul Ltda.(FECOLAN), em 1959; e a Federação das Cooperativas de Carnes do RioGrande do Sul Ltda. (FECOCARNE), no ano de 1969.

Examinando os dois casos, fica claro que, na década de 1920, a Ar-gentina já apresentava uma organização de cooperativas de segundo graugerenciando os interesses agrários dos cooperados. Neste mesmo período,o cooperativismo no Brasil estava caminhando a passos lentos. Como des-tacado anteriormente, a primeira legislação que contribuiu definitivamentepara o sistema cooperativo foi o Decreto-Lei de 1932, mas, ao mesmo tem-po, feriu muitos dos princípios cooperativos. Em relação ao movimento deorganização e ao respaldo jurídico observa-se um grande descompasso: ocooperativismo argentino estruturou-se bem antes do brasileiro. Outra di-ferença fundamental se refere aos princípios de autonomia e autogestão docooperativismo argentino. O que se percebe na experiência do cooperati-vismo no Rio Grande do Sul é, incialmente, a presença e influência religio-sa e, depois, uma forte intervenção do Estado, centralizando o poder admi-nistrativo e burocrático no Ministério da Agricultura.

Intervenção estatal, legislação e políticas públicas

No Brasil, as normas legais para o cooperativismo sofreram váriasalterações, dificultando a formulação e aplicação efetiva de uma política

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cooperativista. Este breve histórico legislativo serve para que entendamosas barreiras que o cooperativismo sul-rio-grandense enfrentou.

Em 1933, o Decreto nº 23.611 revogou o Decreto de 1932 e trouxeconsigo os chamados consórcios profissionais-cooperativos, ou seja, corpo-rações sem comprometimento com as características básicas do cooperati-vismo. Em 1934, institui-se o cooperativismo sindicalista com o Decreto nº24.647. Em 1938, o Decreto nº 581 revigorou o de 1932, assumindo, dealguma forma, a ortodoxia rochdaleana. A legislação de 1938 dispôs sobreo registro, fiscalização e assistência das cooperativas. Os registros seriamentregues no Ministério da Agricultura por duas razões: a primeira, por setratar, na maioria dos casos, de cooperativas rurais; e a segunda, por sereste ministério o mais antigo e, por isto, o mais aparelhado. A década de1940 avançou na preocupação com o crédito, sendo criada a Caixa de Cré-dito Cooperativo (CCC) por meio do Decreto-Lei nº 5893/1943, temposdepois transformada em Banco Nacional de Crédito Cooperativo (BNCC)através da Lei nº 1.412/1951.

A tentativa de regulamentação e controle ampliou-se com o Conse-lho Nacional do Cooperativismo (CNC), criado por meio do Decreto nº46. 438/1959. Este conselho ficou responsável pelo “estudo, recursos, con-sulta, articulação, interpretação, definição de princípios econômico-sociaise diretrizes técnico-doutrinárias e educativas, planejamento, difusão cultu-ral, investigação socioeconômica e legal do cooperativismo brasileiro” (LIM-BERGER, 1982, p. 20). A composição do Conselho era formada por repre-sentantes de diversos órgãos: Ministério da Agricultura, Ministério do Tra-balho, Ministério da Indústria e Comércio; Ministério da Educação e Cul-tura; Ministério da Fazenda; Banco do Brasil, BNCC; Serviço Social Ru-ral; Conselho Nacional de Estudos Cooperativos (CNEC) e União Nacio-nal de Associações Cooperativas (UNASCO), que era uma entidade de re-presentação nacional do cooperativismo criada em 1956.

Na medida em que o governo aprofundava a política de cooperativi-zação, fez-se necessário constituir formas de organização nacional das coo-perativas, revelando-se logo as dissenções e rivalidades também nesse meio.Desde 1956, o movimento cooperativo era dividido em duas alas de repre-sentatividade nacional: União Nacional de Associações Cooperativas(UNASCO) e Associação Brasileira de Cooperativas (ABCOOP). Por con-

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ta das divergências internas das duas organizações, tornou-se difícil o aten-dimento tanto das necessidades das próprias cooperativas como das políti-cas econômicas do Estado que demandavam a participação das cooperati-vas. Em 02 de dezembro de 1969, no IV Congresso Brasileiro de Coopera-tivismo, em Belo Horizonte, foi criada a Organização das CooperativasBrasileiras (OCB). Essa nova instituição surgiu como resultado da decisãodo então governo militar de encerrar os desentendimentos internos das re-presentantes nacionais do cooperativismo, correspondendo também à von-tade dos cooperados, que se sentiam desassistidos. Com essa medida, ogoverno militar pôde: concentrar o poder e o controle do Estado sobre ascooperativas; inviabilizar as representações democráticas e a possibilidadede participação e decisão das sociedades cooperativas em sua estrutura derepresentação, ou seja, na OCB; usar os recursos públicos do cooperativis-mo numa estrutura superior controlada, sem beneficiar diretamente a auto-nomia das organizações de base, entre outras providências (FERREIRA,2006, p. 01).

No Regime Militar, a política de modernização agrícola encontroudificuldade para manter-se. As cooperativas com expressividade estavamno campo e possibilitaram assim, o apoio necessário para o desenvolvi-mento dos planos econômicos. Com a implementação de um novo modelopolítico, a agricultura empresarial articulou-se com a indústria, imprimin-do uma nova visão baseada no cultivo intensivo do solo, na utilização deinsumos químicos e no emprego de máquinas industrializadas.

Essa mudança na política para o campo teve impacto sobre o coope-rativismo. O Decreto-Lei nº 59/1966 revogou expressamente nove instru-mentos legais, considerados conquistas do movimento cooperativo, que atéentão estavam vigentes. Em meio à crise financeira aberta com a retiradabrusca das isenções tributárias e a carência de recursos, as deficiências noquadro operacional das cooperativas apareceram de maneira mais expres-siva, agravando as dificuldades. No exame desse contexto crítico são enfa-tizadas “a ausência de educação cooperativista dos associados e dirigentese a falta de capacitação técnico-administrativa e empresarial dos dirigentese técnicos” (LIMBERGER, 1982, p. 22).

Lauschner & Lens (1969, p. 180) realizaram um estudo sobre estacrise. Dentre as 173 cooperativas canceladas durante o período 1960-1969,

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102 o foram nos últimos dois anos e meio. “Mostra tal fato o corte violentoque foi feito no processo rápido de surgimento de cooperativas e a totalinversão de tendência do processo, após a introdução do ICMS (Impostosobre Circulação de Mercadorias e Serviços).

Na Argentina, as relações do cooperativismo rural com o Estado ocor-riam por meio da representação feita pelas federações e pela confederação.O cooperativismo rural argentino defendia a ideologia da não intervençãoestatal, porém, durante o período estudado, manteve constantes relaçõescom o Estado, visando à defesa dos seus interesses.

Durante o governo do general Juan Domingo Perón, uma politica desacrifícios para o setor rural resultou do I Plano Quinquenal de Governo(1947-1951), cuja principal fonte de financiamento vinha do Instituto Ar-gentino de Promoción del Intercambio (IAPI). Esse órgão tinha como fun-ção intervir e controlar as importações e exportações realizadas pela Ar-gentina, tomando parte direta nas transações de compra e venda dos pro-dutos agropecuários, o que acabou gerando saldos positivos para o governo(LATTUADA, 1986, p. 86).

O desenvolvimento veio com o Segundo Plano Quinquenal (1953-1957) na medida em que foram sendo aplicados múltiplos incentivos eco-nômicos. De modo geral, o programa previa: uma política de colonização ede reordenamento do uso da terra; o aumento da mecanização para a pro-dução agropecuária; a capacitação técnica para os produtores; a fixaçãoantecipada dos preços visando a uma melhor remuneração para os agricul-tores; o fomento da indústria agropecuária regional, e preferentemente co-operativa, entre outras providências indicadas. Este Segundo Plano reser-vava um papel importante para o cooperativismo, estabelecendo como meta:“fomento especial para la organización cooperativa de los productores agro-pecuarios, las cuales deberán transformarse en las unidades básicas de laeconomía social-agraria, que progresivamente participarían de la coloni-zación, comercialización interna e externa e industrialización de la producciónagropecuária” ( LATUADA, 1986, p. 99).

Perón também teve uma preocupação especial com o crédito, um gran-de aliado de sua política, alavancando o crescimento econômico no meiorural. Um dos principais agentes de crédito era o Banco de la Nación Ar-gentina, que desde a década de 1930 já operava neste sistema. Em 1946, o

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Consejo Agrario Nacional passou a atuar juntamente com o Banco de laNación, registrando, no mesmo ano, vínculo com 70% das 600 cooperati-vas agrárias que existiam na argentina (BLACHA, 2006, p. 29). A políticaadotada por Perón pretendeu atender a todos os segmentos, pequenos,médios e grandes produtores, por meio do crédito ágil e barato. Facilitou oacesso ao crédito para assistência técnica, introdução de máquinas agríco-las, novas ferramentas de trabalho e sementes para que os trabalhadoresrurais pudessem produzir, acelerando, assim, o processo capitalista.

Outro instrumento forte de poder que o presidente argentino utilizoufoi o discurso, por meio do rádio, da televisão ou diretamente ao público.Nos discursos, Perón falava de uma sociedade ideal, uma nova Argentinaque precisava da ajuda do produtor rural, e para isso seria fornecido todo omaterial de trabalho de que este precisasse. Para sensibilizar o setor rural,nos discursos o presidente procurava demonstrar os benefícios que sua po-lítica agrária trazia (LATTUADA, 1986, p. 92).

Algumas federações, como a Asociación de Cooperativas Argentinas(ACA), conseguiram entrar no sistema de créditos fornecidos pelo Bancode la Nación. Visando ao incremento da venda de grãos das cooperativassócias, a ACA pediu, no ano de 1950, a ampliação do crédito para financiaras operações de venda da produção dos associados para o Instituto Argen-tino de Promoción del Intercambio – IAPI (BLACHA, 2006, p. 33). Pormeio da compra de grãos efetuada pelo IAPI, a ACA passou a ser a princi-pal Federação de venda de grãos, como também efetuou uma espécie detroca de favores com o Estado. Enquanto o Estado fornecia crédito porintervenção de Perón, a ACA vendia seus produtos para o órgão autárqui-co. Em 1952, o Banco de la Nación passa a ter uma Gerência Departamen-tal de Cooperativas, revelando a importância destas na política governa-mental, por um lado facilitando-lhes o crédito, mas por outro ampliando ocontrole sobre as mesmas, e incentivando inclusive o surgimento de novasagências representativas.

Em março de 1950, autoridades nacionais e provinciais se reuniramna Primeira Conferência de Cooperativas Agrárias, ato que constituiu umanova associação de cooperativas. Esta recebeu o nome de Asociación deCooperativas Agrarias Bonaerenses e agia sob total intervenção do Estado,sendo beneficiada pelo mesmo. Segundo Mateo, “esta nueva federación se

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beneficia con la primera adjudicación de 125 máquinas agrícolas que lle-gan al país a mediados de 1950 y con envases necesarios para la cosecha”.Após saber deste fato, as duas maiores federações de cooperativas da Pro-víncia de Buenos Aires, FACA e ACA, não permaneceram caladas e semanifestaram. A ACA afirmava não ter intenção nenhuma de estabelecerum conflito com o Estado, mas posicionou-se contra todo apoio que o go-verno ofereceu preferencialmente para a Asociación de Cooperativas Agra-rias Bonaerenses, pois não considerava adequado o governo instalar umaoutra entidade na mesma zona onde já funcionava uma deste gênero (MA-TEO, 2002, p. 12). Além disso, neste mesmo ano também foi fundada aAsociación de Cooperativas Agrarias Ltda. (ADCA), que também tinhasua sede na Província de Buenos Aires, possuindo um grande número decooperativas filiadas. O principal objetivo desta federação era a produçãode grãos dos seus associados.

O crítico período do pós-guerra se configurou como um contexto deforte intervenção nos dois países. Os primeiros 40 anos de história do coo-perativismo agrário argentino serviram para formar uma estrutura firme-mente constituída, que seria um dos pontos de apoio da política agráriadurante a presidência de Perón. O quadro de relações na Argentina guardadiferenças, pois já existia uma cooperativa de terceiro grau, uma Confede-ração Intercooperativas Agropecuárias que congregava a maioria de fede-rações (PINHO, 1965, p. 74).

Nas duas regiões, as políticas públicas demonstraram interesse em fo-mentar e articular com as cooperativas uma estratégia de ação econômica. Comdécadas de crise e de apoio à industrialização, a atração pelas cidades cresceusignificativamente, fazendo com que os governos federais também voltassemseus olhares para o campo, a fim de evitar o êxodo rural e assegurar o aumentoda produção de bens agropecuários, especialmente para exportação.

Renovação na década de 1970

A Argentina teve uma importante mudança no início da década de1970. No ano de 1971, a Secretaría de Estado de Agricultura y Ganaderíapassou a integrar o Ministério de Economía y Trabajo, estando o coopera-tivismo representado no Consejo Asesor de Política Agropecuária. Neste

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Conselho, o cooperativismo tinha a representação da CONINAGRO, quedefendia os interesses dos produtores rurais e todo assunto que possuíssealguma relação com o movimento cooperativista rural argentino. Nestemesmo ano, foi criado, pela Lei 19.219, o Instituto Nacional de AcciónCooperativa (INAC), que passou a autorizar, controlar e fomentar as coo-perativas naquele país. Em 1972, foi aprovada a Lei 19.550, que reformula-va o regime das sociedades comerciais, de alguma forma presente desde1889 no Código do Comércio. Esta lei teve relativa importância, pois criouum artigo onde estabelecia o cooperativismo como parte específica, umasociedade que não visava a lucros. Percebendo a necessidade de criar umanova lei nacional de cooperativas que reformulasse a antiga, o cooperativis-mo passou a organizar-se rapidamente e propôs uma nova lei no ano de1973, que se concretizaria na Lei 20.337.

Durante 47 anos, a Lei 11.388 foi um exemplo de doutrina do coope-rativismo argentino, sendo uma iniciativa anterior ao caso brasileiro. Alémdisso, a nova Lei 20.337/73 manteve os princípios cooperativos proclama-dos anteriormente, detalhando, adaptando e renovando novos aspectos. Omodo como o cooperativismo cresceu exigiu uma lei que se adaptasse anova realidade do movimento.

Nesta mesma época, no Brasil presenciaram-se mudanças e a criaçãode novos órgãos estatais, como o Instituto Nacional de Colonização e Re-forma Agrária (INCRA) no Decreto-Lei nº 1.110, que substituiu o Institu-to Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) e o Instituto Nacional de Desen-volvimento Agrário (INDA). A regulamentação veio em 1971 pelo decretonº 68.153. Este instituto era responsável pela fiscalização das cooperativas epor dar continuidade à política de cooperativas de reforma agrária iniciadapelas instituições IBRA e INDA. A reformulação da máquina estatal foi acen-tuada com o INCRA, introduzindo outro sentido para a reforma agrária.

A fase de renovação da legislação cooperativa surgiu com a Lei nº5.764, de 1971, a qual foi gestada com plena participação das próprias inte-ressadas. Esta importante lei considerou muitos pontos problemáticos doMovimento Cooperativo Nacional referentes à estrutura econômica; à na-tureza associativa; ao cunho organizacional; à área operacional; aos meiose às cooperativas de caráter misto. Por essa lei, o Ministério da Agriculturadeterminou ao INCRA que promovesse um maior incentivo ao cooperati-

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vismo rural, pois o governo federal entendia que esta era a melhor forma denormalizar o abastecimento, reduzir os conflitos fundiários e promover odesenvolvimento agrícola. Para Perius (1994, p. 24), a lei carregava as mar-cas da interferência do Estado na vida das cooperativas, mas cabe tambémdestacar que abriu as portas para a educação cooperativista ao destinar 5%das sobras líquidas das cooperativas para serem investidos em um Fundode Assistência Técnica, Educacional e Social.

Neste contexto, evidencia-se que, tanto na Argentina quanto no Bra-sil, obtiveram-se renovações nas estruturas cooperativas. No entanto, a in-tervenção estatal brasileira se fez mais presente que na Argentina, marcan-do o período de forte centralismo estatal.

Experiência com a juventude cooperada

Na Argentina, o envolvimento da juventude nas cooperativas agráriasde primeiro grau foi frequente, o que ocorria de diversas formas. Já na dé-cada de 1930, encontram-se o incentivo e a fundação de clubes agrários,contando estes com apoio e orientação do conselho de administração dacooperativa. O trabalho realizado afirmava os valores culturais do coopera-tivismo, como solidariedade, ajuda mútua e participação responsável.

A Associação de Cooperativas Argentinas (ACA) incentivava a for-mação de centros juvenis nas cooperativas primárias, para que os jovenspudessem desenvolver suas atividades regionalmente também. O incentivoà participação ativa dos jovens surgiu como uma forma de renovar a ener-gia, aperfeiçoar e ampliar o movimento cooperativista. Em 20 de maio de1944, partiram do interior da Argentina as delegações juvenis, conduzidaspelo presidente e membros do conselho administrativo desta Associação,para um Congresso Agrário em Olavarría, onde foram recebidas pela ju-ventude agrária cooperativista local e por representantes de outros centrosdo sudeste e sudoeste de Buenos Aires. Tal congregação resultou na decla-ração de princípios das juventudes cooperativistas agrárias e no incentivo àinstitucionalização dos grupos juvenis em todas as cooperativas. Por meioda criação de um Consejo Central se tentou aglutinar as Juventudes Agrá-rias Cooperativistas (JAC) com o objetivo de capacitação e elevação daqualidade de vida no meio rural (MATEO, 2006, p. 69 e 70).

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A Escuela Cooperativa Móvil, fundada pela Asociación CooperativaArgentina (ACA), passou a funcionar a partir de 1963, levando às coopera-tivas filiadas os princípios do cooperativismo. Itinerantes, instalavam-se nasdependências das cooperativas filiadas, ali permanecendo por uma sema-na, com uma equipe de profissionais qualificados ministrando cursos e pa-lestras sobre o cooperativismo, sua organização, economia, contabilidade,legislação e comercialização (CRACOGNA, 1968, p. 119), além de abor-dar temas como a ecologia, a cooperativa frente à globalização, evoluçãode serviços, administração e como funciona a juventude agrária cooperati-vista. Muitos jovens, após a conclusão do curso, aderia à causa adotadapelo movimento militante cooperativista.

El cooperativismo, por su doctrina y organización democrática, se transfor-ma en un verdadero sistema socio-económico corrigiendo los abusos de lossistemas capitalistas y colectivistas y facilitando un mejor desarrollo de lasrelaciones de justicia e igualdad entre los hombres. El cooperativismo pre-tende crear así una nueva sociedad basada en el respecto mutuo y la demo-cracia (ACA, 1984, p. 17).

A Escuela Cooperativa Móvil busca divulgar a filosofia cooperativis-ta e formar pessoas aptas e capacitadas. Leva seus programas a distintoslugares do país, sejam povoados rurais ou cidades com estrutura urbana.Atua com os centros juvenis de cooperativas associadas, juntamente com aACA. O ensino é aberto para jovens, estudantes e docentes do ensino pri-mário, secundário e universitário, fornecendo conhecimento sobre a dou-trina econômica e social cooperativa.

Desde sua fundação, o movimento juvenil cooperativista argentinotem seu trabalho voltado para a difusão da cultura entre os trabalhadoresrurais, demonstrando capacidade de informar os associados, promover aajuda mútua, tornando o campo um espaço em que podem ser praticadosvalores coletivos e educação.

No Rio Grande do Sul, este incentivo para uma educação cooperati-va surgiu através de convênios entre os governos federal e estadual e ascooperativas. A primeira experiência foi a dos Clubes 4S (Saber, Sentir,Saúde e Servir). Este movimento juvenil iniciou no Brasil no ano de 1952,no Estado de Minas Gerais, através do apoio ao Serviço Público de Exten-são Rural. No ano de 1956, o movimento surgiu em São Lourenço do Sul,no Estado do Rio Grande do Sul. O projeto de extensão rural foi o princi-

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pal patrocinador dos Clubes 4S e fundamenta as razões de criação destesclubes no estado. Sua filosofia é: “capacitar os jovens para a produção agrá-ria competente e eficiente administração do lar”. Baseados no princípio “apren-der fazendo”, os jovens do campo aprendiam novas técnicas de agropecuária;serviços domésticos; noções de saúde e de alimentação, além de desenvolve-rem o associativismo e o espírito de liderança (RIZZO, 1989, p. 34).

Em 1959, foi firmado convênio entre a prefeitura de Porto Alegre, ogoverno do Estado, na ocasião sob o comando de Leonel Brizola, e a Asso-ciação Sulina de Crédito e Assistência Rural – ASCAR.7 A sua finalidadeera a execução de um amplo programa de extensão articulado com as enti-dades já existentes no município. A prefeitura comprometeu-se a cooperarfinanceiramente com as ações da ASCAR no campo: auxílio aos agriculto-res na organização e aproveitamento dos seus recursos naturais; orientaçãotécnica; promoção do desenvolvimento comunitário; assistência econômi-ca às famílias; incentivo à criação de clubes agrícolas juvenis 4S.

Diante desta notícia, podemos perceber a expansão do programa eda implantação dos Clubes 4S, inclusive implantados na capital do estado,a fim de atender a sua zona rural. Segundo Rizzo (1989, p. 34), os objetivosprincipais destes clubes foram dar oportunidade ao jovem de conhecer eexperimentar tecnologias agropecuárias de gerência, bem-estar social e ad-ministração do lar; viabilizar a participação da juventude em cursos profis-sionalizantes, dirigidos aos diversos setores da economia; desenvolver oespírito crítico, criativo e prático do jovem; e desenvolver o espírito associ-ativo e de liderança comunitária.

Os clubes recebiam apoio das cooperativas associadas, por meio dofornecimento de insumos e da comercialização de sua produção. A assis-tência técnica lhes era proporcionada pelos extensionistas rurais (engenhei-ros, agrônomos e técnicos), e tinham acesso aos meios de comunicaçãoatravés da igreja local.

O Estado do Rio Grande do Sul recebeu também o projeto-pilotodenominado Centro Cooperativo de Treinamento Agrícola (CCTA). Esteprojeto foi apresentado em 1954, no III Congresso Nacional dos Municípios,

7 Correio do Povo, Porto Alegre, 3/01/59, p. 7.

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em forma de tese, pelo engenheiro agrônomo Francisco Gago Lourenço Fi-lho. Após esta experiência, criou-se um CCTA para todo o país, mostrandoque a estrutura do Centro era eficaz no atendimento ao jovem filho de agri-cultor. Os CCTA provocaram o interesse das Caixas Rurais, prefeituras ecomunidades que almejavam a instalação dos centros em seus municípios.

Em 1958, a notícia intitulada “Novos Centros Cooperativos de Trei-namento Agrícola” indicava a implantação do CCTA no estado, que deve-ria responder pela intensificação da educação rural, conforme projeto doConselho Nacional de Educação Rural (CNER). O objetivo do CNER eratreinar os jovens filhos de agricultores, sob o regime cooperativista, em téc-nicas agrícolas e pecuárias para despertar-lhes e firmar o interesse pelo meioonde viviam, evitando o êxodo rural.8

As cidades do Rio Grande do Sul que ganharam o CCTA com oauxílio das Caixas Rurais foram: Dois Irmãos e Cerro (1959); São Francis-co de Assis e Panambi (1960) e Júlio de Castilhos (1961).

No ano de 1965, um novo acordo foi firmado entre o Ministério daEducação e Cultura, juntamente com o Instituto Nacional do Desenvolvi-mento Agrário (INDA), e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul,representado pelo Instituto Gaúcho de Reforma Agrária e pela Secretaria daEducação e Cultura, buscando a reformulação e dinamização dos CCTAs.Entre os objetivos constavam: (1) Melhorar a adaptação do homem ao meiorural, organizar um plano que tivesse atividades práticas agrícolas e zootéc-nicas, desenvolver um programa entrosado no trabalho do campo, semprecom práticas, tentando civilizar o homem e o meio e elevá-lo cultural eeconomicamente. (2) O regime cooperativista pretendia dar capacitaçãoprofissional aos jovens filhos de agricultores e criadores, ou ainda àquelesque tinham uma tradição no meio rural. Sempre perseguindo os objetivos,capacitá-los a melhorar tecnicamente os métodos de produção e criação.Além deste treinamento, dar ensinamentos e assistência aos adultos, cursosrápidos para moças e esposas de agricultores nas lides domésticas. (3) Oscentros tinham ainda como objetivo orientar a energia e a inspiração cria-dora dos jovens, em favor de suas comunidades, renovando-lhes as condições

8 Correio do Povo, Suplemento Correio Rural, Porto Alegre, 19/09/1958, p. 19.

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gerais, individuais e sociais, despertando no jovem a capacidade de lideran-ça, para que desenvolvesse a comunidade rural a que pertencesse, de modo aintegrá-la no desenvolvimento rural brasileiro (CORRÊA, 1969, p. 155).

Em primeiro lugar, fica clara a pretensão do CCTA de evitar o êxodorural destes jovens através dos estudos, fazendo com que eles se sentissemintegrados na comunidade rural e no país. Além disso, estimulava o desen-volvimento da região a que pertencessem, através da viabilização das técni-cas agrícolas. E mais, não podemos deixar de destacar a importância destescentros na divulgação do sistema cooperativo através da educação; mesmoque visassem no primeiro momento à promoção financeira dos envolvidos,desenvolvia também a capacidade de liderança e decisão do jovem coope-rativado, exercitando a democracia e autogestão.

O processo educativo se dava por meio de três modalidades de treina-mento. No Treinamento Integral, o jovem passava por todas as atividadesdo projeto, principalmente, as que se apresentavam relacionadas com a cul-tura e criação da região. Daí a importância das atividades serem significati-vas para a região. Deveriam ter idade entre 15 e 20 anos, com instruçãomínima da quinta série do Ensino Fundamental. No Treinamento em Ati-vidades Específicas, o jovem permanecia no centro somente o tempo neces-sário (não ultrapassava três meses) para adquirir conhecimentos técnicos epráticos sobre aquilo que queria aprender especificamente. Durante a suapermanência no CCTAs, poderia receber e executar tarefas, cooperar emoutros projetos, conforme sua capacidade e interesse. Por fim, havia o Trei-namento em Atividades Restritas. Este treinamento não era direcionadosomente para jovens. Por ser intenso e de curta duração (cinco dias), serviatambém para os agricultores e suas esposas, dependendo do curso. Alémdos Treinamentos, participavam de outras atividades educacionais: reali-zando encontros educacionais informais com os agricultores, para discuti-rem problemas da região, transmitiam-se informações técnicas e tantosoutros assuntos que interessavam ao meio. Dentre eles estava o cooperati-vismo. Participavam desses encontros os técnicos, assistentes sociais, edu-cadoras sanitárias, técnicas em nutrição e técnicas em recreação.

Desta forma, o jovem se instruía e vivenciava a realidade de umacooperativa educacional, desenvolvendo um relacionamento íntimo com osistema cooperativista.

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É através da educação cooperativista e pela experiência que adquirem naprática de uma entidade deste tipo, como sócio ou como membro de suadiretoria, que preparamos os jovens para o futuro, organizando os produto-res de sua zona a juntos promoverem a defesa de seus interesses (CORRÊA,1969, p. 160).

Encontramos a presença da igreja através da Frente Agrária Gaúcha(FAG), a partir de 1968, fomentando a educação juvenil e associativa nomeio rural. Outras iniciativas surgiram na década de 1970, iniciativas de al-gumas cooperativas isoladas, como da Cooperativa Agropecuária Alto Uru-guai (COTRIMAIO), que passou a realizar cursos de formação voltadospara os jovens a partir de 1979. A Cooperativa Tritícola de Panambi Ltda.(COTRIPAL), em conjunto com a Secretaria Municipal de Ensino e Cultu-ra, desenvolveu um programa de educação nas escolas – entre as disciplinasestava o cooperativismo – nos municípios de Panambi, Pejuçara e Condor.9

No Encontro Gaúcho de 1978, chamava-se a atenção para as motiva-ções externas que conduziam o movimento cooperativista gaúcho, necessi-tando, assim, reforçar o caráter solidário e integrado do sistema.

O fortalecimento e autonomia do Movimento Cooperativista só se darão,portanto, a partir de um processo de desenvolvimento dos recursos huma-nos em consonância com tais objetivos, considerando-se não apenas os qua-dros diretivo e funcional, mas também o corpo associativo, como recursoshumanos a serem permanentemente desenvolvidos em número e qualidadecrescente (MARQUES, 1978, p. 1).

Mesmo nos movimentos culturais e doutrinários, percebe-se a forteintervenção do Estado no Brasil, sendo muitas vezes o fomentador da edu-cação nas cooperativas em âmbito regional. Na Argentina, esta iniciativacoube às Federações, que, muito cedo, na década 1940, passaram a investirem programas de educação voltados para os jovens do campo. A educaçãopermanente para os recursos humanos revigora o sistema frente às necessi-dades cambiantes da realidade, o que não acontece com os treinamentosesporádicos de técnicas e mecanismos de desenvolvimento.

Não evidenciamos no Brasil uma declaração de princípios da juven-tude, como aconteceu na Argentina. A preocupação com os jovens, desde o

9 Para saber mais sobre a presença da juventude e as experiências cooperativas, ver: VâniaRizzo, 1989.

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primeiro momento, era com a contenção do êxodo rural, estimulando, as-sim, a educação, o conhecimento e o bem-estar no meio rural. Já na Argen-tina, este trabalho foi direcionado para o ensinamento e fortalecimento dosistema cooperativo.

Considerações finais

Tanto no Rio Grande do Sul como na Argentina, as origens do co-operativismo remontam ao final do século XIX e vinculam-se às experiênciastrazidas pelos imigrantes europeus. Para a Argentina, “el crecimiento delnúmero de cooperativas fue progresivo en todo el país, especialmente en laregión central, y tuvo su momento de mayor expansión entre mediados dela década de 1940 y 1950.”10 Entretanto, um exame do número de associa-dos revela uma forte expansão do cooperativismo até o início dos anos de1970. Algumas associações foram particularmente importantes no desen-volvimento do movimento cooperativo argentino, como Agricultores Fe-derados Argentinos, criada em 1932 por iniciativa da Federação AgráriaArgentina, que impulsionou, a partir dos anos de 1950, a criação de Cen-tros Cooperativos Primários em diversas localidades, incluindo o norte deBuenos Aires. A Federação Agrária Argentina estimulou a criação, em 1947,da Federação Argentina de Cooperativas Agrárias (FACA), que chegou àdécada de 1970 como a mais importante empresa cooperativa de comerciali-zação de grãos do país. A Associação de Cooperativas Argentinas (ACA)foi a primeira cooperativa das cooperativas agrárias que funcionou nestepaís, estando em funcionamento na atualidade.

Para o Rio Grande do Sul, os períodos de destaque pela expansãoexpressiva das cooperativas e federações de cooperativas são as décadas de1950 e 1970. Segundo José Odelso Schneider, em 1961 eram apenas três asCooperativas Centrais, chegando a sete em 1978. Quanto às Federações deCooperativas, havia cinco em 1961, num total de 11 em todo o país, e oitoem 1981, com destaque, no âmbito rural, para a FECOTRIGO, FECOVI-

10 LATTUADA, Mario. El cooperativismo agrário ante la globalización. Buenos Aires: Siglo XXI,2004. p. 25.

SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

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Poder, instituições e elites

NHO, FEARROZ, FECOLÃ, FECOERGS, FECOCARNE. No Rio Gran-de do Sul, a propaganda e a cultura do associativismo cooperativo encon-traram outras formas de difusão, como o sindicalismo rural influenciadopela igreja e também os movimentos sociais rurais, que foram os grandesestimuladores e orientadores para a organização dos pequenos e médiosprodutores rurais em cooperativas. Talvez seja pertinente examinarmos,para o caso gaúcho, os incentivos e a contribuição representada pelas orien-tações e promoções destas outras associações para a formação de uma cul-tura cooperativa.

Nas duas regiões, Província de Buenos Aires e Rio Grande do Sul, ocooperativismo foi um importante fator para o desenvolvimento econômi-co, responsável pela integração dos produtores rurais nos moldes de produ-ção capitalista, embora sem perder, pelo menos em termos de princípios, apercepção da capacidade alternativa oferecida por esse sistema de produ-ção e relação comercial. A organização cooperativa, especialmente quan-do pensamos nos pequenos e médios produtores, abriu canais para o diálo-go com o poder público, estabelecendo novas formas para negociações erepresentações de interesses.

Talvez na atenção à educação, especialmente na Argentina – em mãosda própria rede de cooperativas e organizada operacionalmente no âmbitodo sistema cooperativo agrário –, ainda tenham permanecido vivos muitosdos princípios inspiradores do cooperativismo, no sentido de buscar cons-truir outras relações econômicas. Isso não impediu, entretanto, a estrutura-ção de um sistema agrário cooperativo aberto ao mundo dos grandes negó-cios, atuando e funcionando na lógica do capitalismo Neste sentido, a es-truturação do cooperativismo rural nas duas regiões em nada diferiu. Emrelação ao Rio Grande do Sul, há que aprofundar a reflexão sobre o queexatamente significava a diferença, em termos doutrinários, representadapela influência do catolicismo que caracterizou parte expressiva da expe-riência cooperativista no estado sulino.

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Poder, instituições e elites

“Um império de cruzes, togas e espadas”Notas comparativas sobre as elites políticas do

Rio Grande do Sul, do Ceará e da Bahiano período monárquico

Jonas Vargas

Nos últimos anos, alguns estudos contribuíram significativamente parauma nova visão acerca da história da construção do Estado imperial brasi-leiro. Neste sentido, cada vez mais os pesquisadores vêm se interessandopelo papel das elites regionais no interior do sistema político oitocentista.1

Tradicionalmente vistas como forças centrífugas ou obstáculos a serem der-rotados pelos estadistas da Corte2, atualmente estas elites também são estu-dadas como importantes protagonistas ao longo deste processo, tendo in-fluído nos ritmos e na própria forma em que a mesma monarquia se conso-lidou. O presente estudo segue o caminho destas novas pesquisas.

Desde que o Brasil se tornou independente de Portugal, as provínciasviram-se no direito de escolher seus representantes políticos na Corte, tantona Câmara dos Deputados quanto no Senado. Além disso, a partir de 1834,também foram criados órgãos legislativos em nível provincial, o que se cons-tituiu num verdadeiro divisor de águas no arranjo institucional herdado doperíodo colonial. Estas Assembleias Legislativas serviriam como espaçoprivilegiado das elites provinciais ao longo de toda a monarquia, não sendoextintas pelo chamado Regresso conservador (DOLHNIKOFF, 2005). Por-tanto, além de terem conquistado o direito de legislar sobre questões pro-vinciais de ordem tributária, policial, de infraestrutura, entre outros seto-

1 Ver, por exemplo, Graham (2001), Dolhnikoff (2005), Martins (2007), Dantas (2009), Gouvêa(2008).

2 Sobretudo, nas teses de Carvalho (2003) e Mattos (1990).

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res, estas elites ainda participaram ativamente do governo central por meioda sua atuação na Câmara e no Senado – importantes espaços de represen-tação nacional e que, sendo eletivos, refletiam a expressão política das eli-tes regionais.

Entretanto, a complexidade deste sistema político não se esgotava naseparação das esferas de atuação dos cargos que o compunham. Quando setomam as famílias como unidade política de análise, observa-se que sena-dores e deputados gerais estavam vinculados por laços de parentesco tantoaos deputados provinciais quanto a importantes lideranças nas localida-des.3 Além do mais, o exercício de funções legislativas num âmbito nacio-nal não vetava o compromisso dos deputados e senadores com seus interes-ses regionais e até mesmo locais. Na prática, as razões de Estado, entendi-das como politicamente superiores, não se chocavam diretamente com asredes clientelísticas mantidas pelos mesmos agentes e que os conectavamcom as suas regiões de origem. Era na realização destas últimas que muitosaspectos das primeiras acabavam se concretizando. Conforme Graham, estetipo de relação “não conflitava com o crescimento do poder central, pois asautoridades local e central coexistiam numa relação recíproca” (GRAHAM,2001, p. 41). O pertencimento de ambas as autoridades a um mesmo parti-do sedimentava estes vínculos. No interior destas redes de relações que en-volviam os parlamentares na Corte, os recursos materiais e imateriais transa-cionados reuniam agentes da sua própria base eleitoral, ou seja, favoreciamsuas regiões de origem. Tudo isto resultava num verdadeiro mosaico deinteresses políticos e econômicos que compunham o Legislativo da Corte,pois o perfil sociológico das elites provinciais que ocupavam tais cargosrefletia naturalmente as singularidades de cada região. No entanto, haviauma convergência de interesses e opiniões políticas entre muitos membrosdestas elites, sendo a permanência da monarquia e da escravidão algumasdas mais notáveis.

Portanto, as diversidades econômicas e socioculturais de cada regiãoinfluíam na diversidade do perfil socioeconômico das elites políticas, e, numolhar mais macroanalítico, que vai além das histórias dos gabinetes e dos

3 Como demonstraram Martins (2007) e Vargas (2010a), entre outros.

VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

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Poder, instituições e elites

debates parlamentares, é possível capturar culturas políticas regionais nalonga duração. Estas podiam ter raízes profundas no período colonial eapresentar traços permanentes no período republicano. Neste sentido, en-tendo que a unidade política do Império, entre outros fatores, foi mantidapela ação de ricas e influentes famílias em diferentes níveis de poder políti-co, das suas paróquias até a Corte, que agiam em cada um deles por meiode seus membros mais qualificados e possuíam interesses regionais diver-sos, mas também muitos interesses em comum. Estes foram defendidos emmomentos cruciais da história do Império, como na Independência e nasua consolidação, no combate às revoltas regenciais, na participação daseleições com suas clientelas sustentando a maioria parlamentar necessáriapara a governabilidade, na defesa da permanência da escravidão, no con-trole social local por meio da Guarda Nacional e demais cargos paroquiaisque mantinham a ordem social em suas regiões, entre outros.

Entretanto, no interior destas famílias somente alguns indivíduospossuíam a capacidade de adentrar o círculo político restrito da Corte, ne-gociar alianças, encaminhar pedidos e obter ganhos para suas regiões deorigem sem deixar de atuar em causas de caráter mais nacional. Eram ho-mens que entendiam os dois mundos pelos quais transitavam e foram fun-damentais para intermediar os interesses do governo central e os das lide-ranças políticas regionais. Ao realizarem tais tarefas, eles constituíram-seem mediadores, tornando-se peças-chave no interior de todo o sistema. Por-tanto, antes de iniciar a análise, é necessário fazer algumas consideraçõessobre estes indivíduos.

O “mediador”

A distância física e temporal que separava as províncias do mundo daCorte constituía-se num obstáculo por onde somente alguns poucos indiví-duos conseguiam transitar com distinção e obter ganhos dele. Os “media-dores” (brokers) eram pessoas que possuíam características diferenciadasdentro da sua “aldeia” e eram responsáveis por vincular a sua comunidadecom o mundo exterior, defendendo interesses ligados à sua região de ori-gem, à sua facção política e aos seus clientes, sem deixar de compartilharde parte dos interesses mais nacionais com os governantes dos principais

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centros de poder político e administrativo. Portanto, o mediador possuía aschaves de acesso aos poderosos do centro decisório de um sistema maior, eo poder de realizar esta conexão o transformava num chefe político empotencial.

Os mediadores estão presentes em todas as sociedades agrárias e pré-industriais onde um centro político incorpora e administra outras localida-des outrora mais autônomas ou independentes – muitas vezes consideradasas periferias de um sistema político e/ou econômico. A análise do seu pa-pel nestas sociedades foi estudada por muitos antropólogos, historiadores esociólogos. Para Sydel Silverman, o mediador é um tipo específico de inter-mediário, responsável por estabelecer uma conexão entre um sistema locale outro nacional, estando aquele necessariamente inserido neste. Seria comoum município dentro de um estado ou uma aldeia dentro de um reino, porexemplo. No entanto, para uma melhor utilização do termo, Silverman deixaclaros alguns aspectos fundamentais. Primeiro, o mediador é um indivíduoque reúne em si (portanto, trata-se de atributos exclusivamente pessoais enão transmissíveis) a habilidade de interagir tanto com o sistema local quantocom o nacional. Além disso, o seu poder na comunidade local está susten-tado exatamente na sua capacidade exclusiva de atingir o mundo exterior edele trazer recursos e informações necessárias para a segurança e o desen-volvimento do sistema local (SILVERMAN, 1977, p. 293-304).

Neste sentido, o mediador também funcionaria como uma espécie de“patrão” de uma determinada comunidade, cujos membros podiam consti-tuir parte de sua clientela e ser disputados por outros mediadores em potencial.Conforme Carl Landé, uma relação patrão-cliente é uma “aliança diádicavertical”, uma vez que envolve duas pessoas “de status, poder ou recursosdesiguais que acham útil ter como um aliado alguém superior ou inferior a simesmo”. O membro superior nesta aliança é o patrão e o inferior, o cliente.Esta relação é baseada na lealdade e confiança pessoal e tem como principalfinalidade a troca de favores e a ajuda mútua em caso de necessidade. Porserem de camadas sociais diferentes, os benefícios trocados também são di-versos. Conforme Landé, geralmente os patrões fornecem favores “materiaisem espécie”, “assistência econômica” e “proteção física em tempos de emer-gência”, enquanto os clientes lhes retribuem com mão de obra, apoio políti-co e, quando necessário, serviços militares (LANDÉ, 1977, p. 19-20).

VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

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Poder, instituições e elites

Os diálogos interdisciplinares entre historiadores e os demais cientis-tas sociais favoreceram a utilização da ferramenta analítica do “mediador”(broker) nas análises históricas, sobretudo em sociedades agrárias e pré-in-dustriais.4 Ao estudar a aproximação da elite navarra com a Corte espanho-la, por exemplo, José Maria Imizcoz identificou que os mediadores ocupa-ram um papel central neste sistema político. “As relações de patronagementre a Corte e as províncias e comunidades locais foram um elementoimportante da articulação política e social, tanto no Antigo Regime comono século XIX”. Neste jogo, “os governantes buscavam apoio na Corte paraconseguir mercês e privilégios vantajosos em favor de suas famílias e desuas comunidades”. O mediador utilizava suas “relações privilegiadas nãosomente para promover os seus, mas também para ocupar-se do governo”. O“seu importante capital relacional e seus conhecimentos lhe conferiam umacapacidade de ação e de consecução de objetos notáveis, que fazia dele umhomem necessário e buscado pelos membros da comunidade para moverseus assuntos”. Conforme Imizcoz, pessoas de fora o procuravam para inter-vir dentro da comunidade e pessoas da comunidade procuravam-no para inter-vir fora dela. Isto “reforçava sua posição ante as outras famílias de notáveis,que podiam necessitar sua mediação para ascender a certas instâncias ele-vadas e obter determinados favores” (IMIZCOZ, 2001, p. 248-250).

Portanto, como o papel do mediador estava bastante ligado às relaçõesde intermediação entre o centro e a periferia, é necessário destacar que emregiões cuja extensão geográfica é bastante ampla não há apenas um “tipo”de mediador, uma vez que, conforme Patrícia Genovez (2003, p. 187-188),não existem apenas um centro e uma periferia. Esta relação depende muitoda escala em que se observa, pois um centro pode ser a periferia de outrocentro e assim por diante. Neste sentido, as características básicas da funçãode mediador são as mesmas, mas os atributos reunidos pelos indivíduos paraexercer este papel se distinguem de região para região. Os seus poderes polí-ticos e a sua capacidade de influir nos diferentes sistemas dos quais fazemparte dependem de uma série de fatores que envolvem o seu capital relacio-nal, a sua posição econômica e social na comunidade e o tipo de ligação

4 Ver, por exemplo, Ladurie (s. d.), Uricoechea (1978), Levi (2000). Para uma boa síntese do usodo conceito entre os micro-historiadores italianos ver Lima Filho (2006).

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realizado. Num país continental como o Brasil, estas variações de atributosmateriais e imateriais tendem a ser mais diversificadas ainda.

Tendo em vista o que foi escrito até aqui, é possível afirmar que aanálise dos agentes que compunham as elites políticas provinciais e umacomparação entre diferentes regiões podem auxiliar na compreensão dofuncionamento do sistema político monárquico, acrescentando fatores atéentão pouco considerados pelos analistas. Este exercício teórico-metodológi-co pode revelar que tipo de recursos materiais e imateriais favorecia a vitóriaeleitoral de um político no Ceará, na Bahia ou no Rio Grande do Sul oito-centista, quais as semelhanças e as diferenças entre ambos e se havia varia-ções conforme a importância dos cargos. Em suma, eles oferecem um refe-rencial analítico para entender melhor como as elites provinciais atuavampoliticamente no interior do sistema político monárquico compartilhandotanto dos códigos políticos das regiões que representavam quanto dos códi-gos políticos do mundo da Corte, algo necessário para a estabilidade do pró-prio sistema.

Rio Grande do Sul, Ceará e Bahia

Desde os anos que se sucederam à Independência, o Ceará e o RioGrande do Sul constituíram-se em províncias com uma representação polí-tica inferior à da Bahia. No início da Regência, o Rio Grande possuía trêsdeputados, enquanto o Ceará tinha quatro parlamentares. Nas últimas le-gislaturas do período monárquico, o Ceará apresentou oito vagas na Câma-ra dos Deputados e o Rio Grande seis. Na mesma época, por exemplo, osbaianos possuíam 14 cadeiras, ou seja, mais que o dobro dos rio-granden-ses. Com relação aos lugares no Senado, a diferença era praticamente amesma. Enquanto o Rio Grande do Sul possuía três senadores e o Cearáquatro, a Bahia tinha sete representantes, ficando somente atrás de MinasGerais, que possuía 10 cadeiras. Estas vagas foram fixadas pela Constitui-ção de 1824, e, ao longo da monarquia, buscou-se equilibrá-las de acordocom o aumento populacional, mas, conforme Dolhnikoff (2005), estasmedidas não foram seguidas rigorosamente. O fato é que as províncias commais parlamentares possuíam maiores chances de fazer valer seus interes-ses políticos e econômicos, gerando certa discórdia entre os representantes.

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Poder, instituições e elites

Uma das reclamações dos rebeldes farrapos, em 1835, foi exatamente comrelação às poucas cadeiras que os sul-rio-grandenses possuíam na Câmara.

Ceará, Bahia e Rio Grande do Sul também se diferenciavam quantoàs suas estruturas socioeconômicas. A economia cearense destacou-se, so-bretudo, pela pecuária e, em menor medida, pela agricultura de alimentosvoltada para o abastecimento das principais vilas. Desde o século XVII, apecuária cearense esteve fortemente vinculada ao porto de Recife e ao abas-tecimento dos engenhos pernambucanos. Importantes vilas cearenses, comoAracati, que possuía uma significativa produção de carne-seca, dependiamdas conexões com comerciantes pernambucanos tanto para remeter suaprodução para outras regiões quanto para obter sal, escravos e demais mer-cadorias. Na passagem do século XVIII para o XIX, o cultivo do algodão eda cana-de-açúcar encontrou certo desenvolvimento, mas não chegou aacompanhar a importância da criação de gado ao longo do oitocentos. Noentanto, estas atividades foram recorrentemente afetadas pelas secas. Se ade 1777 foi prejudicial à economia regional, a de 1791-92 praticamenteinviabilizou o desenvolvimento das charqueadas cearenses, dizimando seusrebanhos. No século XIX, as secas de 1825 e 1845 também foram notáveis,trazendo enormes perdas para os criadores de gado. Mas foi a de 1877 queafetou duramente a economia provincial, provocando a migração de ho-mens ricos e pobres para as áreas urbanas, acelerando a saída de cativospara os cafezais do sudeste, o que veio a contribuir decisivamente para oprecoce abolicionismo da mão de obra escrava na província.5

No Rio Grande do Sul, nas primeiras décadas do século XIX, o cul-tivo do trigo encontrou um importante desenvolvimento, mas entrou emdeclínio ainda na década de 1820. A economia pecuária praticada nas es-tâncias da fronteira e o complexo charqueador no vale do Jacuí, mas, sobre-tudo, em Pelotas lideraram as exportações por décadas. Esta produção eradestinada basicamente para o mercado interno, mas também se destacoupelas vultosas remessas de couros para a Europa e, em menor medida, docharque para Havana e Lisboa.6 Na segunda metade do século XIX, o de-

5 Para uma análise mais aprofundada Girão (1982), Paiva (1978), Pinto (1984), Oliveira (1984).6 Ver Osório (1999), Silva (1979), Corsetti (1983).

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senvolvimento dos municípios de colonização alemã, principalmente nasdécadas de 1850 e 1860, provocou uma transformação econômica notável.A sua produção agrícola encontrou um importante mercado consumidorna Corte, dinamizando as atividades produtivas e mercantis da província.Nesta mesma época, o Rio Grande do Sul viu-se envolvido diretamente emconflitos belicosos com os vizinhos platinos, sendo a Guerra do Paraguai(1864-1870) o mais importante. A perseguição das autoridades uruguaias aosproprietários rio-grandenses com terras naquele país e a consequente dificul-dade dos mesmos em trazer o seu gado para este lado da fronteira estiveramentre os principais motivadores das guerras. Na década de 1880, o complexocharqueador-escravista de Pelotas entrou em franca decadência.7

A Bahia distanciava-se deste quadro socioeconômico. Apesar dasépocas de declínio, a economia açucareira do Recôncavo não encontrouuma grande crise até os anos 1860. O complexo açucareiro estava intima-mente vinculado à produção de farinha para o abastecimento dos engenhose da capital e às lavouras de fumo, produto que também ocupava o topo dasexportações da província. Estas atividades concentravam a maior parte daescravaria, mas, após 1850, começaram a perder mão de obra em larga es-cala para o sudeste cafeeiro. Em contrapartida, as vias de comunicação quelevavam até o sertão da província eram muito precárias, colaborando paraque aquela região estivesse economicamente mais conectada com outrasprovíncias vizinhas do que com a própria capital baiana e o seu Recôncavo.Salvador, por sua vez, constituía-se num importante centro mercantil res-ponsável pela entrada de cativos e outros produtos, como o charque sul-rio-grandense, destinado principalmente à alimentação dos escravos.8 Politica-mente, como já foi dito, a Bahia distanciava-se da posição ocupada peloCeará e pelo Rio Grande do Sul. Mesmo que, a partir da década de 1830, asexportações de café já houvessem superado de vez as de açúcar, a aristocra-cia do Recôncavo continuou com grande peso na política nacional. Ao lon-

7 Sobre a produção agropecuária ver Zarth (1997) e FarinattI (2007), para a integração da produçãocolonial ao mercado carioca, Graça Filho (1992), para os fatores políticos e econômicos regionaisque provocaram a Guerra do Paraguai, Vargas (2010b).

8 Para uma análise mais completa ver Chaves (2001), Mattoso (1992), Ximenes (1999), Neves(2000), Barickman (2003).

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Poder, instituições e elites

go da monarquia, os baianos compuseram cerca de 20% do total de minis-tros de Estado do Império. O fato de 50% dos presidentes dos Conselhos deMinistros da década 1880, ou seja, quando a economia açucareira já estavaem crise, serem baianos demonstra sua força e proximidade maior com ogoverno central (CARVALHO, 2003).

Todos os fatores aqui mencionados acabaram se refletindo na consti-tuição das respectivas elites políticas, como demonstrarei. A comparaçãorealizada a seguir envolve as elites políticas das três províncias menciona-das. Para tanto, além dos dados que coletei sobre a elite política rio-gran-dense (VARGAS, 2010a), utilizei as pesquisas de outras duas historiadoras.Kátia Mattoso (1992) estudou a Bahia no século XIX e Maria Paiva (1978)a elite política do Ceará no mesmo período. Além dos deputados gerais edos senadores, também analisarei o perfil sociopolítico dos deputados pro-vinciais, amplamente estudados pelas autoras. A comparação apresentadapossui um limite metodológico, pois Mattoso analisou o período entre 1822e 1889 como um todo, ou seja, não dividiu o quadro político estudado emsubperíodos para buscar perceber as mudanças e permanências ao longo doséculo, como fez Paiva. Na comparação realizada a seguir, busquei investi-gar questões relativas à concentração de mandatos, ao perfil socioeconômi-co das respectivas elites, os principais setores profissionais que compunhamo grupo, o que as diferenciava e as assemelhava. Por fim, destaco traçossingulares relativos ao topo da elite política e os recursos necessários paraingressar no mesmo, oferecendo uma demonstração empírica do papel domediador no interior do sistema político monárquico.

Analisando os dados

Uma das características comuns a muitas elites políticas eleitoralmenteconstituídas é a concentração dos mandatos nas mãos de poucos indivíduos.Neste sentido, as três províncias apresentaram índices semelhantes, commínimas variações. Começando pelos deputados provinciais, é possível ve-rificar que, na Bahia, 80% deles exerceram três mandatos ou menos noparlamento regional (1835-1889). No Rio Grande do Sul; este índice che-gou a 81%, e no Ceará ele alcançou 85%. A província meridional revelou-se a mais instável para os estreantes no seu parlamento, pois, analisando osnúmeros relativos aos deputados que exerceram somente um mandato, tem-

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se 44,6% para a Bahia, 48% para o Ceará e 50,6% para o Rio Grande doSul. Combinando estes indicadores com o dos deputados que mais acu-mularam mandatos provinciais, é possível considerar que houve uma maiorconcentração de poder na elite rio-grandense. Enquanto no Ceará os deputa-dos provinciais que ultrapassaram os sete mandatos chegaram a 2%, na Bahiaeles somaram 2,4% e no Rio Grande do Sul 4,8%. Os dados revelam que oparlamento provincial rio-grandense se caracterizou por um diminuto grupode deputados (5,6% do total) que concentrou 22% dos mandatos na casaentre 1835 e 1889. Um deputado rio-grandense chegou a acumular 14 man-datos. Tais números revelam que os “concentradores” do topo da elite rio-grandense pareciam bloquear a reeleição dos estreantes no parlamento.

Analisando os deputados gerais, verifica-se uma tendência diversa.Como o acúmulo de mandatos entre os deputados gerais era menor, poishavia poucas cadeiras disponíveis e os mandatos eram de quatro anos e nãode dois, a reeleição nas províncias que possuíam menos cadeiras, como oRio Grande do Sul, era difícil.9 Por isso, nesta província, os parlamentaresque se elegeram somente uma vez atingiram 62,5%, enquanto na Bahia,que possuía mais que o dobro de cadeiras, eram 43,5%. O Ceará, por suavez, atingiu 57,5% para os estreantes que nunca retornaram à Câmara. Notopo, enquanto no Ceará e na Bahia 20% dos deputados haviam acumula-do quatro mandatos ou mais, no Rio Grande do Sul este feito foi realizadopor somente 9,3% dos parlamentares. Portanto, nesta casa parlamentar osrio-grandenses não conseguiram impor a mesma capacidade de concentra-ção que apresentaram em nível provincial. Mesmo que o menor número decadeiras ajude a explicar este fenômeno, ele também parecia ser resultadoda maior intervenção que os ministros de Estado realizavam nas eleiçõesgerais, pois os mesmos dependiam da maioria na Câmara para governar.Nestas investidas, eles buscavam favorecer seus correligionários, inviabili-

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9 Os parlamentos provinciais rio-grandense e cearense possuíam 28 cadeiras quando foram ins-talados em 1835. Em meados do século XIX, eles possuíam 30 cadeiras. Portanto, havia amesma possibilidade de acúmulo de mandatos para ambos os grupos de políticos. Mas naCâmara, o Ceará possuía oito cadeiras contra seis dos rio-grandenses. Em contrapartida, aBahia possuía 40 cadeiras no parlamento provincial e 14 no parlamento geral. É interessanteobservar que mesmo oferecendo maiores espaços para os políticos baianos acumularem man-datos, a Bahia não revelou os índices de concentração rio-grandenses, o que reforça mais aindaa concentração de poder no interior da elite rio-grandense.

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Poder, instituições e elites

zando que políticos dos partidos opostos conseguissem acumular muitosmandatos sequencialmente, o que dificultava aos rio-grandenses manter osseus padrões de concentração regional na Câmara.10

A análise do local de nascimento dos membros da elite política indi-ca que regiões estavam mais propensas a formar líderes políticos regionaise nacionais e onde estavam as famílias mais influentes da província. Para aBahia, Kátia Mattoso localizou tais dados para 63% dos deputados provin-ciais, entre 1835 e 1889. Os números revelam que 70% dos deputados eramnaturais de Salvador e 15% do seu Recôncavo. Entre os deputados gerais, aconcentração na Capital e no Recôncavo foi ainda maior (92%), e, commenor intensidade, o mesmo se verificava entre os senadores (73%). Istoreproduz a pouca integração econômica de Salvador e do Recôncavo comoutras regiões, como o sertão, por exemplo. Os 70% alcançados por Salva-dor constituem uma nítida sobrerrepresentação dos deputados nascidos nassuas paróquias, pois, em 1872, elas somavam 28% do total da população daprovíncia (MATTOSO, 1992, p. 110). No Ceará, por sua vez, os deputadosprovinciais distribuíam-se muito mais pelas regiões da província, não haven-do um nível de concentração tão alto como na Bahia. Aracati foi o municípiocom o maior índice de deputados (14%), seguido por Fortaleza (8%), sendoque o restante estava dividido entre 42 municípios da província. No entanto,Paiva afirma que os deputados que ficavam mais tempo na carreira eram dosmunicípios economicamente mais importantes (PAIVA, 1978, p. 196). Aautora não apresentou dados para os deputados gerais e senadores.

O Rio Grande do Sul estava mais próximo do Ceará do que da Bahia.Entre 1868 e 1889, reuni dados sobre a naturalidade para 68% dos deputa-dos provinciais. Destes, 34% haviam nascido em Porto Alegre, Pelotas eRio Grande – principais polos econômicos e mercantis da província. Pelo-tas constituía-se no maior núcleo charqueador e era vizinha de Rio Grande– único porto marítimo regional e que escoava a produção de charque ecouros para o exterior. Porto Alegre também tinha importância por con-centrar boa parte da burocracia da época, além de oferecer maiores oportu-

10 Isto se torna mais notável ao se perceber que os maiores concentradores de mandatos parla-mentares provinciais pertenciam ao Partido Liberal rio-grandense. Este foi hegemônico naprovíncia, controlando a Assembleia Legislativa em muitas ocasiões, inclusive quando os con-servadores estavam no poder, como de 1873 a 1877.

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nidades para os profissionais liberais. Outros 18% haviam nascido na re-gião da campanha (fronteira sudoeste) – onde predominavam os grandescriadores de gado. Somente 6% eram naturais das regiões do planalto norteda província. No total tem-se 22 municípios diferentes, sendo Porto Alegreo local de nascimento de 17,5% e Pelotas de 13%. Entre os deputados ge-rais e senadores, o Rio Grande do Sul também apresentou uma maior con-centração no eixo Pelotas-Rio Grande-Porto Alegre, mas nada que chegas-se aos índices baianos. Entre os deputados gerais, os nascidos nestes trêsmunicípios somavam 38%, e entre os senadores, 50%.

No interior da elite política também havia espaço para indivíduosnascidos fora da província. No Ceará, cerca de 10% dos deputados provin-ciais eram naturais de outras províncias, mas no Rio Grande do Sul, entre1868 e 1889, este índice chegou a 19%. Muitos destes deputados eram ofi-ciais militares e magistrados removidos para quartéis e comarcas do RioGrande do Sul, onde ingressavam na política. Merecem destaque cincodeputados nascidos na Alemanha e que notabilizaram-se regionalmente oupela sua vinculação com as regiões de colonização europeia ou pelo seupapel na área dos negócios financeiros, sendo que um deles também foi umimportante jornalista. Sua eleição só ocorreu após 1881, quando a Lei Sa-raiva ampliou os direitos políticos aos estrangeiros naturalizados. KátiaMattoso não apresentou dados a este respeito para a Bahia.

É sabido que os elementos que compunham as elites políticas monár-quicas pertenciam, na sua grande maioria, às camadas mais abastadas dasociedade. Neste sentido, a origem social dos membros das elites aqui ana-lisadas pode ser avaliada a partir da ocupação econômica dos seus pais. Noentanto, estas informações são muito difíceis de reunir. Kátia Mattoso loca-lizou-as para apenas 25% dos deputados provinciais baianos. Destes, 66,5%eram filhos de senhores de engenho. O restante dos pais distribuía-se entreproprietários do sertão, comerciantes ricos, altos magistrados e profissio-nais liberais. Para o Ceará, Maria Paiva não analisou profundamente estesindicadores, mas destacou que os grandes políticos cearenses pertenciamaos principais “clãs” da província, nos quais os ricos proprietários de fazen-das de gado se destacavam.

Para o Rio Grande do Sul também localizei informações seguras so-mente para 25% dos deputados provinciais entre 1835 e 1889. Destes 85

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deputados, 38% eram filhos de estancieiros, 13% de comerciantes e 9% decharqueadores. Portanto, somadas estas três atividades econômicas, nota-damente as principais da província, têm-se 60% da ocupação dos pais aquiinvestigados. Outro grupo de significativa importância foi o dos militares,que reuniu 17% e evidencia a imbricação dos senhores da guerra com a elitepolítica rio-grandense. O restante estava composto por homens ligados à bu-rocracia, como os magistrados e os empregados públicos, e às profissões libe-rais, como os advogados e os médicos. Cada um destes detinha 4% da amos-tra. Entre os deputados gerais não há muitas diferenças. Dos 29 indivíduosque assumiram este cargo entre 1868 e 1889, têm-se 10 filhos de estancieiros,três de charqueadores e dois de comerciantes, grupo que, assim como entreos deputados provinciais, compunha mais da metade dos parlamentares ana-lisados. Outros quatro eram filhos de militares e um de magistrado. Já entreos 11 senadores que exerceram seus mandatos entre 1826 e 1889, quatro eramfilhos de militares, três de estancieiros e dois de comerciantes.11

A educação superior foi algo que também distinguiu as elites políti-cas em todo o Brasil oitocentista (ADORNO, 1988; CARVALHO, 2003).As faculdades de Direito e Medicina e os cursos de Engenharia foram im-portantes centros de formação não apenas profissional, mas também políti-cas. Neste sentido, um diploma era condição quase necessária para que oseu portador galgasse mais altos postos. Mas a maior ou menor presença depolíticos diplomados oscilou dependendo da época analisada, dos locais deorigem e dos cargos ocupados. No Ceará, por exemplo, 53,4% dos deputa-dos provinciais eleitos entre 1835 e 1889 possuíam diploma de curso supe-rior. Entre os deputados gerais, o índice de políticos com formação entre1823 e 1889 chegou a 81%, e entre os senadores o mesmo atingiu 89%. Atendência do nível de formação educacional acompanhar a importância do

11 É importante destacar que o fato dos indivíduos aqui mencionados serem classificados comomembros da burocracia ou das profissões liberais não exclui a ligação dos mesmos com asatividades econômicas de esfera mercantil e agropecuária. Não foi raro aos membros daselites oitocentistas dedicarem-se a mais de uma atividade econômica, podendo combiná-lacom o exercício de uma profissão. Além do mais, muitos eram filhos ou genros de grandesproprietários, vindo a defender os seus interesses no parlamento. Portanto, a classificação dosmembros das elites políticas por critérios socioprofissionais não diverge de outra que buscacaracterizá-los por sua ocupação econômica. Para um exemplo de uma análise integrada eque tem nas famílias o objeto principal de investigação ver Vargas (2010a).

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cargo político eletivo também foi verificada na Bahia e no Rio Grande doSul, no mesmo período. Entre os deputados provinciais baianos, apenas40,5% possuíam formação superior, enquanto que para os deputados ge-rais este índice era aproximadamente de 89%, e para os senadores, 96,3%.No Rio Grande do Sul, para os mesmos cargos, têm-se respectivamente50,5%, 88% e 91%, o que confirma a tendência geral. Portanto, a desigual-dade nos níveis de formação dos cearenses era a menor, enquanto que entreos baianos constituía-se na maior. Estes números acompanham a mesmadiferença verificada anteriormente na distribuição geográfica dos deputa-dos, quando o Ceará ofereceu maiores espaços a indivíduos de diversosmunicípios, enquanto a Bahia concentrou sua elite em Salvador e no seuRecôncavo.

Mas tais índices não foram homogêneos ao longo de todo o período,apresentando variações, sobretudo no que diz respeito aos deputados pro-vinciais. Como Mattoso não analisou a presença de deputados provinciaisdiplomados por períodos, é possível comparar somente Ceará e Rio Gran-de do Sul. Na província meridional, o grande aumento no número de de-putados diplomados deu-se a partir na década de 1840, ou seja, após otérmino da Guerra dos Farrapos (1835-1845). Se na década de 1830 esteíndice foi de pouco mais de 30%, a partir da década de 1850 em diante eleatingiu mais de 60%, tendo uma leve queda nos últimos decênios. O Ceará,por sua vez, também apresentou um maior crescimento na década de 1840,quando ultrapassou os 50%, chegando a ter 78% em uma legislatura dadécada de 1850. No entanto, a partir da década de 1870, a presença deindivíduos com formação superior começou a diminuir, chegando a apre-sentar somente cerca de 1/3 dos parlamentares nas últimas legislaturas dadécada de 1880. Trata-se de um fenômeno interessante, pois esta diminui-ção divergia da tendência corrente entre os deputados gerais cearenses. Paraestes, o aumento dos deputados com formação superior após a década de1850 foi notável, e a partir deste período os deputados com diplomas soma-ram 100% em quase todas as legislaturas até o final da monarquia.

Estes indicadores possibilitam algumas considerações. A partir delesé possível verificar que as famílias com melhores condições econômicas doCeará estavam enfrentando dificuldades para continuar a investir nos estu-dos superiores de seus filhos e que o declínio do número de bacharéis estava

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afetando o perfil da elite política cearense. Comparando as estatísticas rela-tivas aos alunos formados na Faculdade de Direito de Recife, entre 1832 e1889, é possível verificar que, entre as décadas de 1860 e 1880, o Ceará foia província nordestina que apresentou os piores índices relativos ao núme-ro de formandos. De acordo com a Tabela 1, apesar de possuir 17% dapopulação livre das províncias do Nordeste, o Ceará reunia, no mesmoperíodo, somente 7,6% dos bacharéis formados em Recife. Províncias queapresentavam índices inferiores ao Ceará entre 1832 e 1859, como Sergipe,Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, melhoraram a sua situação noperíodo seguinte. A grande diminuição no número de formandos cearensesse deu na década de 1870 e 1880.12

Tabela 1 - Relação entre os bacharéis em Direito formados em Olinda/Recife e a população livre das províncias do nordeste, por períodos

% População livre % Bacharéis % População livre % Bacharéisdo Nordeste formados do Nordeste formados

(1823) (1832-1859) (1874) (1860-1889)

Alagoas 6,29 3,6 7,7 7,0

Bahia 30,39 28,6 27,7 18,1

Ceará 12,59 7,7 17,0 7,6

Maranhão 4,74 7,4 7,0 6,3

Paraíba 7,16 7,9 8,4 9,7

Pernambuco 23,09 37,8 18,6 39,4

Piauí 5,59 2,4 4,4 3,4

R. G. do Norte 3,95 2,1 5,4 2,8

Sergipe 6,16 2,2 3,4 5,4

Totais 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: Beviláqua (1977), Conrad (1874, p. 345), Carvalho (2003, p. 73).

12 A primeira turma de formandos é de 1832. Analisando somente os bacharéis cearenses verifi-ca-se que na década de 1860, formaram-se 41 bacharéis, que perfaziam 10,5% do total denordestinos. Na década de 1870, os mesmos índices eram de 41 bacharéis e 7% do total, acu-sando uma grande queda. Nos anos 1880, apesar do aumento do número de bacharéis para66, o índice sofreu nova queda para 6,1%, ou seja, diminuiu 42% desde a década de 1860(BEVILÁQUA, 1977).

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As estatísticas de 1874 também demonstram que o Ceará era a pro-víncia do Nordeste com o menor percentual de escravos entre a populaçãototal, somando 4,4%.13 É provável que a diminuição do número de bacha-réis também fosse resultado do declínio econômico da província nas últi-mas décadas da monarquia. A seca de 1877 influiu profundamente na eco-nomia regional, acentuando mais ainda este processo. Segundo Paiva, elaprovocou a migração de muitos fazendeiros e homens livres pobres paraoutras regiões e áreas urbanas, provocando alterações significativas emmuitos projetos familiares. Não foi coincidência que, em 1884, o Ceará foia primeira província brasileira a abolir totalmente a escravidão em seu ter-ritório.

Esta sub-representatividade de bacharéis cearenses merece ser desta-cada pelo simples fato de que advogados, juristas e magistrados, desde ostempos coloniais, possuíam um espaço de alta proeminência no interiordas elites políticas e administrativas (SCHWARTZ, 1979). Estes percentuaismenores se refletiram na composição das elites políticas aqui estudadas,pois a presença de bacharéis em Direito entre os deputados provinciais ce-arenses também foi muito inferior ao Rio Grande do Sul e à Bahia. En-quanto 65% dos deputados com formação superior na província meridio-nal haviam estudado Direito e 68% compunham o mencionado índice en-tre os baianos, o Ceará apresentou somente 28%. Nesta província, os depu-tados com formação eclesiástica reuniam 19% do grupo dos formados, ouseja, muito próximo dos bacharéis em Direito.

No entanto, se os cearenses são pouco representados entre os bacha-réis em Direito, é possível supor que eles ocupassem uma posição de desta-que no Seminário de Olinda. A lista dos alunos matriculados na instituiçãono ano de 1828 revelou a presença de 29 pernambucanos, 10 cearenses,oito paraibanos, cinco norte-rio-grandenses, três alagoanos e um baiano,formando “uma comunidade representativa de todo o nordeste, cujo terri-tório correspondia ao da própria diocese de Olinda” (ARAÚJO, 1992, p.

13 Em 1836, este índice era de 12,5% (OLIVEIRA, 1984, p. 67). Conforme José Marcelo Pinto,de 1854 a 1865, o Ceará perdeu 3.652 cativos para o tráfico interprovincial. O mesmo mercadocapturou 7 mil escravos cearenses, entre 1871 e 1881. O destino da grande maioria deles foramos cafezais do Sudeste (PINTO, 1984, p. 122).

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275). É sabido que a manutenção de um aluno num Seminário ou numaAcademia Militar era menos custosa do que nas Faculdades de Direito eMedicina. Mas a escolha do encaminhamento dos filhos não deve ser vistasomente como reflexo das possibilidades financeiras dos pais. Importantesfamílias cearenses possuíam padres políticos entre seus membros e investi-am em tal formação educacional, provavelmente porque valorizavam asfunções clericais na sociedade local, atribuindo certo status às mesmas. ORio Grande do Sul também não ocupava uma posição privilegiada no índi-ce de bacharéis por habitantes.14 Em compensação, de acordo com CelsoCastro, era uma das províncias com mais alunos matriculados na EscolaMilitar do Rio de Janeiro, onde os nordestinos também ocupavam um pa-pel de destaque (CASTRO, 1995, p. 30-31).

Estes dados relativos à formação educacional acabaram se refletindono perfil sócio-ocupacional e profissional das elites políticas das três pro-víncias. Os números para a Bahia são os mais incompletos. De acordo comKátia Mattoso, magistrados, funcionários, eclesiásticos e advogados cons-tituíam a maior parte dos deputados provinciais, entre 1835 e 1889. Noentanto, a autora não especificou os números exatos. Mas, ao mencionarque 225 dos 554 deputados provinciais possuíam formação superior, Mat-toso destacou que 152 eram formados em Direito, 42 em Medicina e 19eram eclesiásticos. Portanto, a partir destes dados é possível saber que pelomenos 19 deputados eram padres (somando 3,4% do total) e 42 provavel-mente eram médicos ou professores da Faculdade de Medicina de Salvador(somando 7,5%). Entre os formados em Direito não é possível deduzir aprofissão, pois os mesmos podiam ser magistrados, advogados ou emprega-dos públicos, mas os dados permitem verificar que eles compunham a maio-ria dos deputados provinciais com formação superior, devendo o restanteser formado por grandes proprietários, comerciantes, professores, milita-res, entre outros.

14 Teotônio Simões (1983), ao estabelecer uma relação entre o número de bacharéis por provín-cias e a sua respectiva população, encontrou dados interessantes. Entre eles, observa-se que oRio Grande do Sul, apesar de ser a sétima província mais populosa do Império e uma das maisimportantes economicamente, apresentava-se em 13.° lugar (entre 20 províncias) na relaçãonúmero de bacharéis a cada 100 pessoas, atrás de províncias menores como Alagoas, Paraíba,Sergipe e Piauí. O Ceará ocupava a 11º posição (CASTRO, 1995, p. 30-31).

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Entre os deputados gerais, em que o índice de indivíduos diplomadosfoi muito maior, o número de médicos ou professores de Medicina foi de12%, o de padres foi de 3,4% e o de engenheiros de somente 2%. Cerca de92 destes parlamentares eram formados em Direito e pelo menos 40 delesforam magistrados, ou seja, 27% do total dos deputados gerais entre 1823 e1889. A presença significativa dos magistrados, ou seja, juízes de direito edesembargadores, na elite política baiana cresce em importância quando seobserva a profissão dos senadores. Dos 28 baianos que exerceram este car-go entre 1826 e 1889, 21 (75%) eram magistrados, sendo que 16 haviamestudado em Coimbra. A forte presença destes burocratas de toga no topoda elite política baiana também esteve presente em outras províncias, mas aBahia foi de longe a que mais teve senadores magistrados, o que será co-mentado adiante.

No Rio Grande do Sul, os dados são mais completos. Até a décadade 1850, os membros da burocracia, como os magistrados, os padres e osmilitares, formaram a maioria da Assembleia provincial, oscilando entre35% e 41% dos deputados. A partir desta mesma década, os profissionaisliberais ultrapassaram este grupo, chegando a somar 47% do total dos de-putados nas duas últimas décadas, com destaque para os advogados, queatingiram quase 1/3 do total. Na Câmara dos Deputados é possível verifi-car a mesma tendência, com um predomínio ainda maior dos advogadosnas últimas legislaturas. Entre 1826 e 1856, os magistrados e os militaressomavam 50% dos deputados gerais, com os padres e os empregados públi-cos reunindo 25%. Mas de 1857 a 1889, os advogados sozinhos somavam57%, sendo que na última década eles perfaziam 72% dos deputados. Nestemesmo período, os magistrados e militares somavam somente 10,5%. Ospadres, desde a década de 1830, haviam sido banidos do cargo. No Senadorio-grandense, os advogados continuaram com força. Dos 11 senadores rio-grandenses, três foram advogados e outros três foram magistrados. No en-tanto, os advogados só estrearam na Câmara na última década da monar-quia, certamente movidos pela maior importância política do cargo nestaépoca. Mas sua presença não surpreende tanto, pois foi comum às demaiselites políticas do período. A singularidade rio-grandense diz respeito aosmilitares. Eles ocuparam 1/3 das cadeiras senatoriais rio-grandenses noSegundo Reinado. Neste período, a província foi a que teve mais oficiais do

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Exército no Senado. Sua influência política foi tão alta que eles consegui-ram eleger-se após a lei eleitoral de 1855, que cerceava a possibilidade dassuas candidaturas.15

A elite política do Ceará apresentou um perfil diverso. Entre os depu-tados provinciais, os magistrados e os padres somados atingiram índicesque oscilavam entre 30% e 45% das cadeiras do parlamento de 1835 até adécada de 1870. Nas últimas décadas, eles continuaram com força, mas osempregados públicos, os fazendeiros e os negociantes também se fizeramrepresentar com percentuais aproximados. O destaque é que, ao contráriodo Rio Grande do Sul e da Bahia, os advogados poucas vezes passaram dos5%, ao contrário dos rábulas, que, na década de 1880, chegaram a ocupar20% das cadeiras numa das legislaturas.16 Na média geral, os padres são ogrupo que mais acumulou mandatos na Assembleia, somando 16,1% dasrepresentações. Ao todo, cerca de 78 padres conseguiram tomar assentonesta Casa.

Entretanto, quando se sobe para outro nível de poder político, o per-fil desta elite sofre algumas alterações. Entre os deputados gerais cearenses,até a década de 1850, os padres rivalizavam com os magistrados e os milita-res na representatividade; entretanto, a partir da década de 1850, os milita-res perderam espaço e, nos anos 1860, os padres começaram a dar lugar aogrupo dos profissionais liberais. Nas últimas décadas, professores, médi-cos, engenheiros, jornalistas e advogados somavam mais da metade dosrepresentantes. Neste espaço de poder político, os advogados formados su-biram em importância e os rábulas se elegeram muito pouco. Analisando oSenado cearense, percebe-se que os padres também tiveram importância notopo desta elite política. Apesar de 30% dos senadores cearenses terem sido

15 A Lei eleitoral de 1855 buscava dificultar a eleição dos magistrados e dos militares proibindoque os mesmos se elegessem nos seus distritos de jurisdição, tendo que buscar seus votos emoutro distrito mais distante no interior da província. Um dos motivos da lei foi investir maisfortemente na profissionalização de ambas as carreiras burocráticas; para isto, acreditava-seser necessário afastá-los da vida política.

16 Os rábulas eram os advogados sem diploma e que conseguiam licença para exercer esta profis-são junto às câmaras municipais. É interessante notar que o aumento da importância políticadeles é inversamente proporcional à diminuição do número de bacharéis em Direito na socie-dade cearense nas décadas de 1870 e 1880, conforme descrevi anteriormente.

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magistrados, o Ceará foi a província que teve mais senadores padres noImpério, somando três políticos.17

Comparando o Ceará com o Rio Grande do Sul, foi possível perce-ber uma notável ascensão dos profissionais liberais na segunda metade doséculo XIX. Embora no Rio Grande o predomínio dos advogados na Câ-mara tenha sido mais marcante, as elites cearense e rio-grandense seguirama tendência ocorrida na elite política imperial estudada por José Murilo deCarvalho (2003), ou seja, do predomínio dos profissionais liberais sobre osmembros da burocracia nas últimas décadas da monarquia. Outro ponto aser comentado sobre as três elites comparadas é que, se entre os deputadosprovinciais era possível os indivíduos sem formação superior atingirem oparlamento, entre os deputados gerais seu acesso era muito dificultado – oque revela que estava em jogo um outro tipo de recrutamento político. Cer-tamente, era uma condição imposta pelo caráter mais elitista do cargo, quetransformava o seu portador num mediador político entre a sua província ea Corte e exigia um maior refinamento sociocultural. Além disso, em todasas províncias, a presença dos bacharéis em Direito entre os deputados ge-rais e senadores foi marcante, pois era mais uma exigência da Corte paraque seus súditos pudessem frequentar os mais importantes espaços de po-der do que uma simples escolha das elites provinciais. Neste sentido, coubeàs famílias ricas adaptar-se a este processo de formação dos jovens candida-tos, o que não deixou de ser uma escolha permeada por uma estratégiafamiliar complexa (VARGAS, 2010a).

Estes dados podem indicar que certos ofícios e profissões atraíammais alguns grupos de famílias do que outros, que alguns grupos sociopro-fissionais conseguiam converter mais facilmente seu prestígio social em votose que certos espaços de formação superior estavam restritos para determi-nados grupos de famílias. A presença marcante de padres no Ceará até ofinal do Império e a sua total ausência no Rio Grande do Sul apenas acen-tuam as diferentes formas de recrutamento político e os diferentes atributoscarismáticos e de prestígio social existentes nas províncias. Destaca-se ain-

17 Assim como o Ceará, a província de Minas também teve três padres. No entanto, o Ceará teve19 senadores ao longo da monarquia contra 45 mineiros, o que revela a maior proporcionali-dade dos padres no interior da elite política cearense.

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da a total ausência de militares e padres entre os senadores baianos, quan-do os mesmos conseguiram ocupar os principais postos no Rio Grande doSul e no Ceará. Outro fator interessante foi a enorme ausência de advoga-dos formados entre os deputados provinciais cearenses, ao contrário da Bahiae do Rio Grande do Sul. Se pensarmos na eficácia das redes de relaçõessociais dentro do mundo da alta política e em como as academias as molda-vam e reforçavam, isto pode ajudar a explicar a pouca representatividadeda elite cearense dentro da Corte nas últimas décadas do Império e a ascen-são do Rio Grande do Sul no final da monarquia e durante a República.Mas ainda é preciso tecer algumas considerações finais sobre os padres ce-arenses, os magistrados baianos e os militares rio-grandenses...

Considerações finais

Cada uma das elites políticas aqui analisadas apresentou um gruposocioprofissional que se destacou mais do que os outros, sobretudo entre ossenadores. Na Bahia, os magistrados dominaram as cadeiras senatoriais.No Rio Grande do Sul, os militares se constituíram num grupo socioprofis-sional importante, enquanto que no Ceará o Senado apresentou um signifi-cativo número de padres. Uma análise dos senadores de todas as outrasprovíncias do Brasil confirma a existência de tais singularidades numa com-paração mais ampla. A Bahia foi de longe a província que mais teve sena-dores magistrados durante a monarquia. O Ceará, por sua vez, empata nonúmero de padres senadores com Minas Gerais. No entanto, como Minaspossuía mais que o dobro do número de cadeiras no Senado, os três padrescearenses ocupam um percentual muito maior do que os padres entre osmineiros. Com o Rio Grande do Sul acontece o mesmo. A província tevetrês senadores militares, perdendo somente para Pernambuco, que teve qua-tro. No entanto, os três senadores rio-grandenses compõem um percentualbem maior que os militares entre os pernambucanos, província onde havianove senadores magistrados, por exemplo.

A existência destes perfis sociais distintos revela que os recursos ne-cessários para que um candidato vencesse as eleições parlamentares envol-viam uma série de fatores comuns a todas as regiões, mas também traziamcomponentes distintos, de acordo com a província analisada. Um dos indí-

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cios desta diversidade era a alta capacidade eleitoral que o exercício de cer-tas ocupações profissionais fornecia aos seus portadores em determinadasprovíncias. Na Bahia, por exemplo, os juízes de direito, mas, sobretudo, osdesembargadores, eram um dos grupos socioprofissionais portadores de talprestígio social e, notadamente, os mais competentes em converterem esteprestígio em capital político. Tal fenômeno possui explicações históricasque devem ser buscadas desde os tempos coloniais. A Bahia foi a sede doprimeiro Tribunal de Relação do Brasil, criado em 1609. Composto por de-sembargadores com larga experiência jurídica, o mesmo permaneceu comoúnico tribunal de segunda instância no Brasil até o período pombalino.

Estudando este grupo de elite, Stuart Schwartz (1979) considerou-ocomo um dos principais agentes administrativos da colônia nos séculos XVIIe XVIII. Ele formava uma elite de letrados distinta do grosso da populaçãoformada de degredados, escravos, livres pobres, comerciantes e senhores deengenho. No exercício de suas funções judiciárias, os desembargadores re-produziam na colônia todas as idiossincrasias corporativas alimentadas nametrópole. Mas, ao mesmo tempo em que serviam à Coroa, eles gozavam deautonomia suficiente para estabelecer alianças matrimoniais e de compadriocom as famílias mais ricas da Bahia, notadamente a elite açucareira. Confor-me Schwartz, com o tempo, os magistrados fizeram de seu cargo um suportede status social. Os aposentados mantinham o título e continuavam influindonas decisões de seus pares, além de serem respeitados por toda a populaçãolocal. Esta posição foi habilmente manejada por muitos desembargadoresque enfeixaram grande poder em suas mãos e buscaram sempre influir paraque seus familiares permanecessem no tribunal nas gerações sucessoras. Umoutro número significativo de desembargadores também foi provedor da SantaCasa de Misericórdia, estreitando seus laços com a Igreja. O abrasileiramen-to dos desembargadores, nas palavras de Schwartz, integrou-os de tal formaà sociedade colonial que muitos se tornaram senhores de engenho, fazendei-ros e até comerciantes de açúcar e de escravos. Em consonância com estesprojetos, havia senhores de engenho que se esforçavam para atraí-los comogenros, podendo, desta forma, usar a sua influência administrativa e judicialpara obter ganhos políticos (SCHWARTZ, 1979, p. 246-257).

Portanto, os desembargadores na Bahia oitocentista pertenciam a umcírculo burocrático com uma secular tradição colonial. Entre os senadores

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baianos existiam magistrados que eram filhos de outros desembargadoresda Relação, como José Carlos Pereira de Almeida Torres, o visconde deMacaé. O entrelaçamento com famílias proprietárias do Recôncavo forne-cia aos mesmos o poder econômico necessário para se impor regionalmen-te como elite. O fato de 75% dos senadores baianos serem magistrados indi-ca que seu status social e seu prestígio político permaneceram fortes ao lon-go do século XIX. Além disso, 15 senadores eram formados em Coimbra.José Murilo de Carvalho (2003) demonstrou a hegemonia dos políticos for-mados em Coimbra na primeira metade do oitocentos; e isto ajuda a expli-car por que a Bahia foi a província que forneceu mais ministros ao Império.Como a Bahia foi a província que mais teve ministros de Estado e a segun-da maior bancada no Senado, não é possível desconsiderar o papel de seuslíderes políticos na condução do processo de Independência e nas primei-ras décadas do Império.18 Mas, além desta explicação fundada na herançado prestígio colonial, é necessário considerar que, até 1873, somente a Bahia,o Rio de Janeiro, o Pernambuco e o Maranhão possuíam tribunais de se-gunda instância, ou seja, as outras províncias não tinham desembargado-res, mas somente juízes de direito.19

No Rio Grande do Sul, por sua vez, os militares conseguiram umaproeminência política notável. Assim como na Bahia, a explicação destefenômeno tem raízes coloniais. A província foi erigida sob quartéis e acam-pamentos militares, convivendo constantemente com a ameaça espanhola,concretizada na invasão da vila de Rio Grande, em 1763. Depois de anosde combate, foi somente em 1776 que os luso-brasileiros reconquistaram oterritório, expulsando os invasores. A partir deste episódio, outras guerrasmarcaram a história da região até o início do século XX. Tratava-se de umasociedade de fronteira, e boa parte da sua população acostumou-se com

18 Conforme Mattoso, “os quinze senadores que estudaram em Coimbra pertenciam ao pessoaladministrativo e político do Antigo Regime. Haviam servido ao Estado português, sobretudocomo magistrados e, em seguida, a Dom Pedro I, que os brasileiros sempre consideraramcomo um monarca português. Depois da Independência, a maior parte deles integrou o cír-culo dos altos funcionários que assumiram responsabilidades ministeriais no novo Estado”(MATTOSO, 1992, p. 281).

19 Em meados do século XIX, a Bahia também era a província com mais número de comarcas e,portanto, possuía um número ligeiramente maior de juízes, o que também favorecia o seusucesso no mundo da política.

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esta endemia belicosa e que tinha nos estancieiros e militares os mais in-fluentes nas localidades. Estes líderes sustentaram a guerra civil mais lon-ga da história do Brasil (1835-1845) e usaram o seu prestígio militar tantopara barganhar com o governo central quanto para exercer autoridade so-bre a população provincial, mantendo a ordem social.

Na década de 1880, o Rio Grande do Sul concentrava 31,13% do con-tingente total do Exército brasileiro. Para o comando e a administração dasforças armadas em nível nacional, os rio-grandenses também obtiveram cer-to destaque. Durante todo o período imperial, a província teve 13 ministrosde Estado. Destes, sete ocuparam a pasta da Guerra, o que indica que osmembros da elite política da província eram mais lembrados e recrutadospara a Corte quando os assuntos eram desta competência. A pasta da Guerrafoi a única repartição do governo central em que o Rio Grande do Sul conse-guiu impor alguma tradição com relação às outras províncias. Entre 1832 e1889, 52 homens ocuparam o Ministério da Guerra, sendo 11 da Corte, setedo Rio Grande do Sul, sete de Portugal e sete baianos, apenas para citar asprincipais regiões representadas (o restante estava distribuído pelas outrasprovíncias). Este protagonismo no ministério se manteve na República, pois,entre 1889 e 1930, os rio-grandenses tiveram sete dos 22 ministros.20

Portanto, no Rio Grande do Sul a política e a guerra sempre estive-ram intimamente ligadas. A província teve o maior número de soldados nacampanha contra os paraguaios (1864-1870) e um número significativo delideranças militares e paisanas comandadas por oficiais rio-grandenses.21 Opapel dos mesmos nas batalhas foi reconhecido pela Coroa, que os consa-grou com uma enxurrada de títulos de nobreza. Foi durante esta Guerra, porexemplo, que o general Osório recebeu os títulos que o fizeram Marquês doHerval. Osório era o chefe do Partido Liberal na Província, em 1877 ele-geu-se senador e em 1878 foi escolhido ministro da Guerra. A sua popula-

20 Para maiores detalhes, ver Carvalho (2003, p. 203-205), Galvão (1894) e Lyra (1978).21 O Rio Grande do Sul foi a província que mais contribuiu para o contingente militar na Guerra,

enviando cerca de 34 mil soldados para os campos de batalha, ou seja, 17% da populaçãomasculina da província e 27,45% de todo o efetivo brasileiro. Apenas para se ter uma compa-ração, a Corte, que mandou 11.461 homens, ou 8% da sua população masculina, e a Bahia,que enviou 15 mil soldados (2% de sua população masculina), foram os únicos que chegaramperto dos índices rio-grandenses (Vargas, 2010b).

22 Sobre sua trajetória ver Braga (2008) e Neto (2009).

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ridade entre os militares e milicianos que participaram da Guerra do Para-guai não possuía rivais (VARGAS, 2010b). Mas, assim como ele, outrosoficiais também exerciam notável influência política e eleitoral na provín-cia, como, por exemplo, o Conde de Porto Alegre, que foi chefe do PartidoProgressista na província, e o Barão de São Borja, que foi chefe do PartidoConservador na década de 1870. Este capital político adquirido pelos milita-res rio-grandenses permaneceu forte na República Velha, pois, além dos mi-nistros da Guerra, o Rio Grande atingiu a presidência da República por meiodo marechal Hermes da Fonseca (1910-1914). Tendo em vista o conhecidopapel dos militares rio-grandenses, ligados a Getúlio Vargas, na Revoluçãode 1930, e a própria presença de presidentes da República nascidos no RioGrande do Sul, durante os governos militares pós-1964, é possível considerarque a relação dos militares gaúchos com a política, que marcou a geração dovelho general Osório, manteve-se forte, mesmo muitos anos depois.

Finalizando, é necessário tecer considerações sobre a importância po-lítica dos padres no Ceará. Investigando a ocupação socioprofissional de to-dos os deputados gerais do Império, verifiquei que o Ceará não apenas foi aprovíncia que proporcionalmente teve mais padres senadores, como tambémfoi a que reuniu mais deputados gerais do clero. No entanto, uma análisemais minuciosa revela que este era um traço mais regional do que provincial.O Nordeste somou 52,3% de todos os padres deputados gerais, entre 1826 e1889. Reunindo somente os dados relativos ao Ceará, Pernambuco, Alagoas,Rio Grande do Norte e Paraíba, têm-se 40% do total dos padres deputadosgerais. Trata-se de uma concentração notável, visto que estas cinco provín-cias tinham apenas 25% da população da época. Mas como explicar a proe-minência política dos clérigos destas províncias? A explicação mais plausívelexige uma nova viagem até o período colonial. Estas cinco províncias estive-ram fortemente vinculadas à Revolução Pernambucana de 1817, tambémconhecida como a “Revolução dos Padres”, e, anos depois, o território foi ofoco central da Confederação do Equador (1824), movimento que teve a di-reção intelectual e política de Joaquim do Amor Divino, o frei Caneca.

Conforme Gilberto Carvalho, para que o movimento de 1817 fosseefetivado, foi necessária uma “longa e paciente doutrinação, que partia doseminário de Olinda, refugiava-se nas Academias secretas e era levada aosmais longínquos recantos do sertão pela cadeia viva de informação e cate-

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quização formada pelos vigários”. Neste processo, tanto os alunos quantoos padres formados no Seminário e os próprios professores da instituiçãotiveram um papel proeminente. O Seminário, fundado em 1800, formoupraticamente todo o clero do Nordeste e ficou conhecido por ser um espaçode propagação das ideias liberais, anticolonialistas e consideradas subversi-vas na época. O movimento de 1817 teve como protagonistas o padre JoãoRibeiro e o padre Miguelinho, mas reuniu mais de 70 membros do clero emsuas fileiras. Dela também participaram o mencionado frei Caneca e o pa-dre Souto Maior, sempre liderando com seus bem treinados guerrilheiros.Outros membros do clero foram encarregados de levar a Revolução de Recifepara as províncias vizinhas, sendo o padre Damasceno dirigido para o RioGrande do Norte, o padre Roma para Alagoas, o padre Antônio Pereira paraa Paraíba e o padre Alencar para o Ceará. Em 1824, o frei Caneca teve acompanhia dos freis João de Santa Miquelina, Antônio Veras, Alexandre daPurificação, além de outros 40 sacerdotes. No Ceará, a liderança, em 1824,coube ao padre Mororó (CARVALHO, 1980, p. 32-35; 52-57; 63-67).

A família do padre Alencar, que participou de ambos os movimen-tos, possuía sua base socioeconômica, no Crato e ele estava ligado por pa-rentesco com outros membros do clero provincial. Na década de 1830, ocu-pando uma posição mais moderada, Alencar presidiu o Ceará e, anos maistarde, elegeu-se deputado geral e senador pela província. Conforme LuísViana Filho (1979, p. 20-36), Alencar manteve estreita relação com deputa-dos e senadores das províncias do Sudeste e constituiu-se no político maisinfluente da região norte no período. Chefiou o Partido Liberal no Ceará, eum de seus filhos foi o conhecido romancista José de Alencar.

É importante mencionar que a formação eclesiástica também foi umasaída para famílias empobrecidas, e, portanto, é plausível que as origenssociais de muitos padres cearenses fossem mais modestas que a dos bacha-réis em Direito, aproximando-os mais da população. Este elemento ajuda aentender por que a distribuição geográfica dos deputados provinciais cea-renses era muito mais diversificada que a da Bahia, como demonstrei ante-riormente. Padres de todas as paróquias cearenses conseguiam eleger-se,tornando o perfil geográfico da sua elite política mais plural. Na maioriadas províncias do Nordeste, os padres tiveram uma maior propensão a atuarna política e encontraram no eleitorado regional uma importante base de

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Poder, instituições e elites

apoio que legitimava o seu papel no interior do sistema político. Ao olharpara a República Velha, é possível verificar que esta tradição do clero entreos políticos cearenses continuou viva. Um exemplo disto foi a ascensãopolítica do padre Cícero, que chegou a ser vice-governador do Ceará, eestava fortemente ancorada na liderança religiosa que exerceu na região ena capacidade em transformar as suas relações sociais locais em votos eapoio político, como seus antepassados já haviam feito.22

Portanto, a análise comparativa das elites políticas do Rio Grande doSul, do Ceará e da Bahia durante o período monárquico revelou traçossociopolíticos regionais distintos e possíveis de serem estudados numa di-mensão temporal não exclusiva ao século XIX, pois, além de evidenciaremtraços herdados do período colonial, os indicadores apresentados mostramque os mesmos permaneceram fortes no século XX. Se no interior das eli-tes regionais havia regras de ascensão política singulares, na Corte outrosrequisitos também eram necessários. Cada região possuía característicasculturais, políticas e econômicas que ofereciam um potencial eleitoral adeterminados setores da sociedade em detrimento de outros. Geralmente,famílias que possuíam um acesso mais qualificado a estes recursos materiaise imateriais estavam mais propícias a formar estes políticos.

Ora, iniciei este texto argumentando exatamente que os “mediado-res” acumulavam seu poder no interior do sistema político por possuíremuma maior capacidade de conectar espaços de atuação política distintos,jogando com diferentes códigos de comportamento. Estes traços revelavama existência de culturas políticas regionais distintas, mas que na Corte for-mavam um “todo” que, se não era harmônico, oferecia importantes espa-ços de negociação com as províncias e foi fundamental para a manutençãoda estabilidade do sistema político monárquico. Portanto, determinadasregiões favoreciam uma melhor conversão de um certo tipo de capital rela-cional para o capital político necessário para tornar-se senador. Ao seremescolhidos na lista tríplice, eles revelavam que possuíam tanto o reconheci-mento dos eleitores da província, que compunham o mundo da paróquia,quanto do próprio imperador. O arranjo institucional garantia a autono-mia regional e amarrava as elites provinciais, comprometendo-as com astarefas de construção do Estado, da manutenção da ordem e da permanên-cia da estabilidade do sistema político.

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Poder, instituições e elites

Os founding fathers do Parquet – um ensaiocomparativo entre as elites do Ministério Público

de São Paulo e do Rio Grande do Suldurante o Estado Novo

Marcelo Vianna

“A velha tradição não se explica sem os fundadores, umainstituição não existe sem founding fathers.”

Plínio de Arruda Sampaio em entrevista concedidaa Rogério Bastos em 07.07.1995

(ARANTES, 2002, p. 19)

Foi durante o Estado Novo (1937-1945) que o Ministério Públicopaulista (MPP) e o Ministério Público rio-grandense (MPRS) obtiveramuma série de vantagens legais que se tornaram base para o crescimentoinstitucional que segue até os dias atuais. De “primos pobres” do campojurídico, o MPP e o MPRS se tornaram pioneiros em formar suas associa-ções de classe e revistas jurídicas (tabela 1), sendo veículos importantespara o discurso de autonomia, mobilização e afirmação nos meios jurídi-cos. Em termos legislativos encontravam-se adiantados: os dois tinham re-formado seus códigos legais (o chamado “Código do Ministério Público”),que davam organicidade, definiam critérios e limites de atuação de seusmembros no meio jurisdicional. Nesse sentido, esses códigos ressaltavam oemprego dos concursos públicos – ou seja, aplicavam o critério merito-crático por meio de provas – e estabeleciam a carreira de promotor públi-co criando critérios de remoção e promoção às comarcas. Assim, busca-vam garantias à atuação do promotor público a salvo de interferências po-líticas.

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Tabela 1 – Avanços no processo de institucionalização (1936-1945)

Instituição MPP MPRS

Organização base legal Decreto-lei n.º 10.000, de 24.02.1939 Decreto n.º 564, de 24.06.1942

Associação de classe 26/11/38 – “Associação Paulista do 08/10/41 – “Associação do MPRS”MP” (APMP) (AMPRGS)

Revista de classe Junho de 1939 – Justitia Novembro de 1941 – Revista do MP

1.º concurso público 20/04/36 05/03/41

Fonte: Revista do MP; Revista Justitia.

Por sua vez, a memória institucional atual dessas instituições, per-ceptível em depoimentos, publicações e lugares de memórias oficiais, aorevisitar esses processos, evoca um grupo de indivíduos, “articulados” e“reconhecidos” por seus pares, que atuaram durante (e “apesar”) do Esta-do Novo. Um termo pode ser utilizado para designá-los: founding fathers,expressão utilizada por Plínio de Arruda Sampaio, ao rememorar a atua-ção de um grupo de agentes do MPP nos anos 1930 e 1940 – entre eles seupai, João Batista de Arruda Sampaio – que “começaram a adquirir o senso dadignidade do que faziam, o senso de que não eram instrumentos do Governo, o sensode que eram instrumentos da lei, e, portanto, foi se criando uma doutrina”1 embusca da consolidação da carreira de promotor público. De maneira seme-lhante, há rememorações de membros do MPRS sobre seus antecessoresque estiveram à frente desse processo. Uma dessas evocações é referente aAbdon de Mello, procurador-geral entre 1941 e 1947, visto como um “ho-mem abnegado”, dotado de “um sentimento de urgência, a urgência de dotar oRio Grande de um órgão vitorioso, permanente, aguerrido e independente”.2 Nãohá dúvida de que os reconhecimentos, sobretudo a partir dos anos 1980,momento em que o MP experimentava grande fortalecimento no cenário

1 Plínio de Arruda Sampaio foi promotor público em São Paulo entre os anos de 1955 e 1959.Foi eleito deputado federal pelo PDC em 1962, mas acabou cassado pelo AI-1 em 1964. Noprocesso de redemocratização, voltou a ser eleito deputado federal pelo PT e foi um dosdefensores das garantias institucionais ao MP na Constituinte de 1988. Entrevista de Plínio deArruda Sampaio ao Projeto Memória do MPRS em 07 de agosto de 2002, p. 4. Disponível em:<http://www.mp.rs.gov.br/memorial/noticias/id12392.htm>. Acesso em: 20.01.2010.

2 Discurso de Ladislau Fernando Röhnelt, ex-procurador do MPRS e desembargador do TJRS.Réplica, n. 16, ano VI, junho/julho 1987.

VIANNA, M. • Os founding fathers do Parquet – um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público...

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Poder, instituições e elites

nacional3, acabavam reforçando os mitos de origem das instituições e for-mando seus panteões, modelos a serem seguidos pelos membros contem-porâneos (GRIJÓ, 2008).

No entanto, o objetivo desse ensaio não é consagrar os “pais funda-dores” e reforçar uma visão de vitória da “cidadania” contra o “autoritaris-mo” ao gosto das memórias institucionais, mas propor um ensaio compa-rativo através desses indivíduos rememorados que estavam envolvidos nasiniciativas de autonomia do MP no Estado Novo. Nesse aspecto, a compa-ração histórica4 pode trazer novos elementos para a discussão desses pro-cessos de institucionalização, por permitir abordagens originais sobre umobjeto de pesquisa (COHEN, 2001) e proporcionar um eye opening-effect so-bre as duas instituições e seus agentes, de maneira a superar uma visãoprovinciana sobre esse processo (KOCKA, 2003).

Assim, para entender as ações e efeitos sobre os founding fathers doMPP e MPRS, vale a pena procurar pelos capitais e recursos de que essesdispunham para reconvertê-los5 para suas instituições frente aos contextosda época. Nosso ensaio, assim, propõe apresentar as condições para essacomparação, identificar os founding fathers das duas instituições e seus capi-tais e recursos, e, por fim, apresentar César Salgado e Abdon de Mello,indivíduos que ocupavam posições-chave nas instituições paulista e rio-gran-dense respectivamente, de maneira a entender pontos de convergência edivergência do processo de institucionalização que envolveu o MPP e oMPRS.

3 Como grandes conquistas estão a Lei Orgânica do MP (Lei Federal Complementar nº 40/81)em 1981, Lei de Ação Civil Pública (Lei Federal nº 7347/85) em 1985 e o Capítulo IV, Seção Ida Constituição de 1988 (artigos 127 a 130), que consolidaram o MP como responsável pelafiscalização da lei e defesa da sociedade em seus direitos individuais indisponíveis e coletivos.

4 Conforme Marc Bloch: “Antes do mais, no nosso domínio, o que é comparar? Incontestavelmenteo seguinte: escolher, em um ou vários meios sociais diferentes, dois ou vários fenômenos queparecem, à primeira vista, apresentar certas analogias entre si, descrever as curvas de suaevolução, encontrar as semelhanças e as diferenças e, na medida do possível, explicar umas eoutras. São, portanto, necessárias duas condições para que haja, historicamente falando,comparação: uma certa semelhança entre os fatos observados, ‘o que é evidente’, e uma certadessemelhança entre os meios onde tiveram lugar” (1998, p. 120-121).

5 “As reconversões são o conjunto de ações e reações permanentes através das quais cada gruposocial se esforça em manter ou mudar sua posição na estrutura social, e se traduzem emdeslocamentos no espaço social de atores ou de grupos de atores, provocados por grandestransformações políticas [...], ou mais estruturais [...], com o abandono de posições estabelecidase o ingresso em novos setores” (SAINT MARTIN, 2008, p. 64).

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As condições da comparação

Os processos de institucionalização do MPP e MPRS se coadunamcom a profissionalização do campo jurídico paulista e rio-grandense emcurso nos anos 1930. Nesse processo, no qual magistrados e bacharéis rei-vindicaram e constituíram um espaço próprio, de saber especializado e pro-gressivamente refratário às interferências político-partidárias (BONELLI,2002; ENGELMANN, 2001), há duas causas que merecem destaque: adesvalorização do diploma e a redefinição do campo político e do própriocampo de poder durante o Estado Novo. No tocante à primeira, o aumentode diplomados em Direito leva a conflitos em diferentes perspectivas, comoa persistência do bacharelismo e a expertise jurídica, o rábula e o diploma-do, e os cargos jurídicos em disputa por sua primazia no campo jurídico, oque obriga os agentes do campo jurídico a controlar o ingresso de novosbacharéis na profissão jurídica e obter maiores garantias/regalias pela rela-ção com o Estado (MICELI, 2001; COELHO, 1999).

A outra está ligada à redução das possibilidades de articulação daselites, grupos dirigentes, agentes políticos, para dentro das novas estruturasestatais, estas marcadas pela eliminação dos partidos políticos, centraliza-ção de poderes e modernização conservadora (SOUZA, 1990). Assim, comomostraram os estudos de Adriano Codato para a elite política do EstadoNovo em São Paulo e Sandra Amaral para a elite gaúcha, houve uma re-definição das possibilidades de inserção no Estado pelas vias políticas tradi-cionais, com a própria redução das posições de poder, concentradas noscargos de interventor, secretário e membros do Departamento Administra-tivo do Estado de São Paulo (DAESP) e do Rio Grande do Sul (CODATO,2009b; AMARAL, 2006). A nosso ver, essa restrição da participação políti-co-partidária coincidiu com a criação de novas instâncias de poder ou suaremodelação, com os devidos insulamentos burocráticos e corporativismosque marcariam o Estado Novo, de maneira a acomodar parte das elitesregionais e suas práticas clientelísticas (DINIZ, 1999; ABREU, 2007). Des-se modo pensamos o MP: os agentes interessados no fortalecimento daatividade de promotor público se mobilizariam frente ao contexto da épocapara transformar o cargo na promotoria, visto então como um estágio parauma carreira política ou jurídica, para uma carreira construída em torno deuma instituição em crescimento no campo jurídico.

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Poder, instituições e elites

Devemos recorrer aos contextos políticos regionais, sobretudo ao re-memorar a posição de controle que o Executivo ainda tinha sobre o MPnos anos 1930 e 1940, demonstrável pelo próprio cargo de procurador-ge-ral do Estado (de livre nomeação do chefe do Poder Executivo). No caso deSão Paulo, desde a Revolução de 1930, há um conflito entre os integrantesda “orgulhosa elite paulista” (CODATO, 2009b) e de seus integrantes como governo federal, onde as administrações estaduais – com a exceção deArmando Salles – não lograram estabilidade política. No entanto, as ma-nobras de Vargas para subverter a elite política paulista imersa na disputaentre “armandistas” (Partido Constitucionalista – PC) e “perrepistas” (Par-tido Republicano Paulista – PRP) resultou na escolha de Ademar de Barros(um membro menor do PRR) para interventor federal, em abril de 1938(LOVE, 1982; CODATO, 2009a). A boa relação dos membros da institui-ção com o interventor se revelou frutífera, à medida que o interventor tam-bém prestigiou membros que haviam militado no PC, incluindo os procu-radores-gerais Vicente de Azevedo e Renato Paes de Barros.

Nessa lógica de apoio – Ademar de Barros buscando conquistar no-vas bases e os promotores paulistas almejando maior autonomia – o MPPtornou-se a instituição mais avançada em termos organizacionais e associati-vos, buscando até mesmo influenciar na construção do novo Código Penalde 1940. Em que pese à alternância de procuradores-gerais no cargo, apa-rentemente o MPP pôde continuar seu processo de autonomia. Um exem-plo foi em junho de 1942, quando os founding fathers do MPP organizaramo I Congresso Nacional do MP – evento importante pela discussão e apro-vação dos pontos a serem seguidos pelas demais instituições em busca daautonomia dos MP no Brasil, em muito inspiradas nos avanços do MPP.6

O cenário rio-grandense era também de rivalidades, mas que foramneutralizadas a partir do colapso do governo Flores da Cunha (1937), quandoo governo federal impôs seus interventores de fora da elite política rio-gran-

6 Destacaram-se a reivindicação de harmonia e independência entre Magistratura e órgãos doMP no exercício das respectivas funções; a recomendação para que os Estados organizassemcódigos funcionais garantidores de um plano de carreira, obrigatoriedade de concurso para ingresso,promoções mediante critério de merecimento e antiguidade, vencimentos nunca inferiores a doisterços daqueles percebidos pelos juízes, proibição de remoções não solicitadas, direito a fériasremuneradas, etc.; e, finalmente, a recomendação para que a classe fundasse em todos os estadosassociações como as de São Paulo e do Rio Grande do Sul” (AXT, 2003, p. 41).

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dense (CORTÉS, 2007; ABREU, 2007). Porém, a repressão que se seguiuaos partidários de Flores da Cunha manteve a instabilidade nos quadros doMPRS e do próprio posto de procurador geral do Estado, que, entre 1934 e1939, já havia trocado de mãos sete vezes. Duas depurações ocorreram noMPRS, uma por ocasião da Revolução de 1932 (contra membros do PartidoRepublicano Rio-Grandense – PRR e Partido Libertador – PL) e outra nosprimeiros anos do Estado Novo (contra membros floristas). Apenas com aposse do ex-integralista Anor Butler Maciel em 1939 houve o início da esta-bilização, com a reorganização administrativa e a realização do primeiroconcurso para promotor público em março de 1941. A partir daí, com a pos-se de Abdon de Mello na chefia institucional em maio de 1941, haveria siner-gia suficiente para seguir as iniciativas paulistas, incluindo a formação de umgrupo similar aos founding fathers do MPP.

Origens e trajetórias dos founding fathers do MPP e MPRS

Os founding fathers7 (tabela 2) eram os indivíduos que, além de com-partilharem uma doutrina jurídica que garantisse aos promotores públicosa estabilidade, independência de atuação e rendimentos “dignos” em co-mum, encontravam-se em uma posição privilegiada dentro das duas insti-tuições (MPP e MPRS), eram altamente especializados (pelo saber jurídi-co) e detinham condições de propor (ou pelo menos intencionar propor)uma série de mudanças para legitimar seu campo de atuação. Eles ocupa-vam os postos-chave da instituição entre os anos de 1937 a 1945: o cargo deprocurador-geral do Estado e os cargos de subprocuradores. Dos demais, amaior parte gravitava nos cargos diretivos na APMP e AMPRGS ou nos

7 Os dados sobre os founding fathers foram obtidos principalmente nas seguintes fontes: Banco deDados do MPRS, Revista do MP, Justitia, Martins (1978), DHBB (2001), Félix (2001) e Heinz(2005). Para os membros do MPP, a revista Justitia preocupou-se, nas décadas de 1960 emdiante, em preservar a história da instituição e publicou biografias de seus membros,contemplando os founding fathers do MPP. Também foram utilizados trabalhos diversosdisponíveis on-line, como artigos acadêmicos e sites institucionais, como o material elaboradopela prefeitura municipal de São Paulo que fornece breves biografias sobre os “patonos [sic]”de suas escolas municipais. Disponível em: <http://arqs.portaleducacao.prefeitura.sp.gov.br/patonos/>. Acesso em: 10.09.2011.

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Poder, instituições e elites

órgãos “culturais” que eram as revistas.8 Nesse sentido, para efeitos de com-paração, formariam as respectivas elites institucionais – embora se reco-nheça, no caso do MPRS, uma fragilidade desse grupo, por possuir umaorganização mais recente (1941) e singela, centrada apenas no procurador-geral do Estado Abdon de Mello, o único da instituição investido de pode-res de sanção e promoção sobre a classe.

Tabela 2 – Os founding fathers do MPP e MPRS

Founding Father MPPA Posição Founding Father MPRSA Posiçãopartir de 1938 partir de 1941

Vicente de Paula Vicente Procurador-geral do Estado Abdon de Mello Procurador-geral do Estadode Azevedo (13.08.1934 a 13.12.1938) (27.05.1941-31.03.1947);

Vice-presidente APMP Membro fundador AMPRGS (1941);Diretor Justitia Presidente de honra AMPRGS

Renato Paes de Barros Procurador-geral do Estado Álvaro de Moura e Silva Presidente AMPRGS(21.12.1938 a 19.01.1940) Subprocurador-geral do Estado

Antônio da Costa Neves Júnior Procurador-geral do Estado Dámaso Vieira Rocha Diretor Revista do MP(“Nevezinho”) (30.01.1940 a 20.06.1941)

Benedito Costa Neto Procurador-eral do Estado (01.07.1941 a 29.05.1943) José Corrêa da Silva Presidente AMPRGS (1941; 1944)

Sebastião Nogueira de Lima Procurador-geral do Estado Octavio Alfredo Pitrez 2.º secretário AMPRGS(29.05.1943 a 22.11.1943)

Synésio Rocha Procurador-geral do Estado José Clímaco de Mello Filho 2.º subprocurador-geral(19.01.1944 a 26.10.1945)

José Augusto César Salgado Presidente APMP (1938-1945); Luiz Lopes Palmeiro Diretor Revista do MPDiretor Justitia; Vice-presidente AMPRGSSubprocurador

João de Deus Cardoso Melo Comissão editorial Justitia; Ney Muzzell Câmara Secretário MPRS;Subprocurador-geral Secretário Revista do MP

Mário de Moura e Albuquerque Secretário Justitia Henrique Fonseca de Araújo 1.º secretário AMPRGS“Churchill do MP”

Álvaro de Toledo Barros Subprocurador-geral Gabriel Mesquita da Cunha Secretário MPRS;Tesoureiro AMPRGS

João Batista de Arruda Sampaio Secretário APMP Ernani Thé Coelho Membro fundador AMPRGS

Miguel de Campos Júnior 2.º Vice-presidente APMP; Júlio Marino de Carvalho Membro fundador AMPRGSRedator Justitia

Antônio de Queiroz Filho Comissão editoral Justitia Paulo Pinto de Carvalho Membro fundador AMPRGS(“Baby”)

Raphael de Oliveira Pirajá Redator Justitia Hélio Carlomagno Membro fundador AMPRGS

Nilton Silva Diretor Justitia Floriano Maia D’Ávila Membro fundador AMPRGS

Renato Petrocchi Tesoureiro/Diretor Justitia Pedro Soares Muñoz Membro fundador AMPRGS

José Antônio de Paula Santos Secretário APMP Favorino Bastos Mércio Membro fundador AMPRGSFilho

Odilon da Costa Manso Tesoureiro APMP Mário Machado Rosa Membro fundador AMPRGS

Frederico José Marques Redator Justitia

Flávio Queiroz de Moraes Tesoureiro Justitia

João Paulino Pinto Nazário Vice-presidente APMP

Fonte: vide nota 7.

8 Essa opção aproxima-se do critério posicional proposto por Wright Mills para definição de elite(1962).

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Como founding fathers do MPP foram identificados 21 indivíduos apartir da fundação da APMP em 26.11.1938. Seis ocupariam o cargo deprocurador-geral do Estado: Vicente de Azevedo (PC), Renato Paes de Bar-ros (PC), Antônio da Costa Neves Junior, Benedito Costa Neto (PRP), Se-bastião Nogueira de Lima (PRP) e Synésio Rocha (PRP), com um manda-to médio de 1,5 anos. Renato Paes de Barros, Benedito Costa Neto e Syné-sio Rocha eram estranhos à carreira do MPSP; eram bacharéis nomeadospelo interventor. Para o MPRS, 18 indivíduos foram identificados comofounding fathers, incluindo todos que participaram da Revista do MPRS e daAMPRGS, como membros fundadores ou ocupantes de cargos a partir daformação dessas instâncias em outubro de 1941. Eles eram liderados porAbdon de Mello; além de chefe institucional, era presidente de honra daAMPRGS (1944).

Deve-se observar também que os founding fathers se orientavam poruma ação “desinteressada”, na qual o objetivo não visava meramente aoeconômico ou material (BOURDIEU, 2001). Assim, em seus artigos e dis-cursos, apresentavam o MP como “defensor da sociedade”, “fiscal da lei”,“uno e indivisível” frente a autoridades. Isso não era apenas um recursoestratégico para se fortalecerem ou fortalecer a instituição, mas uma parti-cipação sincera no jogo do campo jurídico, o que acabava reforçando ereproduzindo os capitais simbólicos das instituições. Assim, os founding fa-thers eram aqueles que melhor incorporaram (illusio) esses conceitos pormeio de discursos e ações, reuniam o ethos profissional desejável aos de-mais promotores públicos e lograram construir um reconhecimento, tendoem vista as evocações feitas por membros da classe posteriores.

As tabelas 3 e 4 a seguir dão conta de parte dos dois grupos e possibi-litam exercitar as comparações. Christophe Charle e Monique Saint Mar-tin observam que os integrantes das elites estatais desfrutam de origens fa-miliares notáveis e formação superior em instituições tradicionais, que permi-tem desenvolver capitais culturais (por exemplo, conhecimento jurídico) ede relações (redes de amizades, contatos políticos), de maneira a fortalecersuas capacidades de reconversão para carreiras na burocracia ou na política(CHARLE, 2008; SAINT MARTIN, 2008). Isso não foi diferente no casodos founding fathers do MPP e MPRS. Ambos desfrutaram de formaçõesacadêmicas nos espaços de sociabilização das elites, como a Faculdade de

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Poder, instituições e elites

Direito de São Paulo e Porto Alegre (ADORNO, 1988; GRIJÓ, 2005), sal-vo exceções (como Abdon de Mello na Faculdade de Direito de Pelotas,essa mais restrita à elite de Pelotas e seu entorno), e tiveram a possibilidadede militar politicamente, em especial os paulistas.

No entanto, a comparação revela um maior acúmulo de capitais erecursos por parte dos founding fathers do MPP, como as origens familiares,militâncias políticas e incursões no campo literário/acadêmico, em compa-ração com os membros do MPRS. Os founding fathers integravam famíliasnotáveis (“quatrocentões”) com maiores relações com os meios políticos,tinham, em boa parte, uma experiência de militância política, atuaram emcargos além das promotorias (mas relacionáveis, em boa parte, com o Di-reito Penal, como a Polícia), tinham maior produção literária e acadêmica(incluindo aí dois futuros membros da Academia Paulista de Letras e do-cências na Faculdade de Direito de São Paulo) e apresentavam trajetóriasmais dinâmicas no pós-Estado Novo, tanto no domínio dos cargos de che-fia do MPP quanto na carreira político-partidária. Isso não significa que osrio-grandenses não tivessem seus trunfos e não tivessem uma origem apre-ciável e capacidade de reconverter seus capitais para o MP ou carreiraspolíticas no RS, mas representavam uma elite regional “menor” frente àpaulista.

Se os rio-grandenses não apresentavam maior militância e acesso aoscargos burocráticos antes do Estado Novo, também pesou o fato de seremuma geração mais nova – em média 32,5 anos de idade comparada aos 40,5anos dos founding fathers do MPP –, o que os impediu de participar e adqui-rir maiores experiências no campo político tradicional. Isso foi o efeito dacrise do MPRS nos anos 1930; parte dos futuros founding fathers do MPRSacabou substituindo os depurados. Embora não se negue que processo se-melhante tenha ocorrido em São Paulo, não foi o suficiente para constran-ger a participação dos futuros founding fathers do MPP no campo político ena instituição ao ponto de conseguirem organizar concursos públicos a par-tir de 1936 e organizar a APMP em 1938.

A supremacia dos founding fathers do MPP pode ser percebida nassuas incursões no jornalismo e em atividades literárias. Essa experiência foiválida para as revistas Justitia e Revista do MP, pois incorporaram indivíduosque dominavam essas práticas em cargos de direção: o paulista Miguel de

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Poder, instituições e elites

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Campos Júnior, de Justitia, era visto como “jornalista experimentado, se-nhor de larga cultura literária e jurídica”9, enquanto o gaúcho Dámaso Rochahavia sido diretor de jornais (Correio da Noite, Jornal da Manhã e A Nação)além de poeta modernista “aspirante” (VIANNA, 2011). Todavia, os foun-ding fathers paulistas demonstraram um acúmulo de produções jurídicas eliterárias, como Sebastião Nogueira, Antônio de Queiroz Filho, Vicente deAzevedo, César Salgado, Paes de Barros, entre outros, que lhes davam mai-or expressividade no campo jurídico e até literário, visto que Vicente deAzevedo e César Salgado alcançaram a Academia Paulista de Letras nosanos 1960. Os founding fathers do MPRS concentravam-se em Dámaso Ro-cha e Abdon de Mello, este com obras mais específicas ao MPRS. HenriqueFonseca de Araújo teria participação na Associação Rio-Grandense deImprensa e seria, nos anos 1950, diretor do jornal libertador O Estado doRS.

Outras distinções estão no pós-Estado Novo. Muitos founding fathersreingressaram no campo político-partidário a partir do final do regime var-guista em 1945: no caso do MPP, oito tiveram alguma incursão no campopolítico, assumindo cargos no Poder Executivo e Legislativo; para o MPRS,sete deles tiveram algum tipo de ingresso nesse campo. Mencione-se que opróprio Estado Novo não significou o corte do envolvimento político: te-mos Renato Paes Barros como membro do DAESP em 1941, SebastiãoNogueira como secretário da Educação e secretário da Segurança Públicade São Paulo a partir de 1943, e Dámaso Rocha como chefe de gabinete daSecretaria de Interior no governo rio-grandense em 1944.

Novamente os founding fathers do MPP tiveram maior sucesso, incur-sionando em cargos de destaque no Executivo ou elegendo-se para o Legis-lativo, tanto em nível estadual quanto federal. Assim, Antônio de QueirozFilho, após militância nos movimentos católicos, tornou-se membro do PDCem 1950, elegeu-se deputado federal em 1954 e integrou o secretariado dosgovernos Jânio Quadros e Pinto Carvalho, além de ter alcançado a presi-dência nacional do partido em 1961. No caso dos founding fathers do MPRS,também tiveram seu sucesso em eleições ao Legislativo, mas com repercus-

9 Justitia, v. 7, n. 16, p. 412, jan.-jun. 1944.

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Poder, instituições e elites

são menor do que a de seus colegas paulistas: Dámaso Rocha foi o repre-sentante da classe na Assembleia Nacional Constituinte de 1946, eleito peloPartido Social Democrático (PSD), no rastro da máquina eleitoral construídapela interventoria. Henrique Fonseca de Araújo (PL) e Hélio Carlomagno(PSD) tornaram-se deputados estaduais, sendo o último presidente do par-lamento gaúcho em 1961.

Por fim, nas carreiras em suas instituições os founding fathers do MPPforam mais efetivos. Embora apenas cinco se dedicassem exclusivamente àcarreira após o Estado Novo, eles e os demais founding fathers continuarama dominar os postos-chave da instituição, associação e revista, quando es-tas duas últimas foram reorganizadas. Dos oito procuradores-gerais entre1945 a 1965, quatro eram founding fathers e acumularam 13 anos de chefianesse período. Além de César Salgado, Mário de Moura e Albuquerquefoi escolhido para dois mandatos como procurador-geral (em 1956 e 1964),sendo pela primeira vez escolhido pela classe de promotores em lista trí-plice.

No caso do MPRS, a constituição de uma elite propriamente dita apartir da organização do Conselho Superior do MPRS em 1948 incorpo-rou parte dos founding fathers, mais exatamente oito membros. Dois alcan-çariam o cargo de procurador-geral: Henrique Fonseca de Araújo em 1955e Floriano Maia D’Ávila em 195910; três atuariam como procuradores-ge-rais substitutos – Abdon de Mello (novamente), Álvaro de Moura e Silva eLuiz Lopes Palmeiro alternaram-se em substituições ao procurador-geralao longo da década de 1950 e início de 1960, quando se aposentaram. AAMPRGS se desarticulou e apenas seria retomada em fins dos anos 1950,sem founding fathers no comando. Já na Revista do MP, que circulou até1951, os founding fathers mantiveram a editoria com Gabriel Mesquita daCunha e Luiz Lopes Palmeiro. O último a permanecer no MPRS foi JúlioMarino de Carvalho, que se aposentou em 1969.

10 O envolvimento de Floriano Maia D’Ávila como procurador-geral no governo Brizola (1959-1962), atuando no processo de encampação da ITT (Companhia Telefônica Nacional) e naCampanha da Legalidade (1961); contribuiu para que fosse cassado pelo AI-1 e aposentadodo serviço público em 08.10.1964.

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Tabela 5 – Origens, recursos, trajetórias founding fathers MPP e MPRS

Comparações Founding Fathers MPP (N=21) Founding Fathers MPRS (N=18)

Antes do MP

Origens (família) Família tradicional, cafeicultores (6) Família tradicional, mais diversificadose/ou políticos (5), juristas (1), militar – estancieiros (3), comerciantes (2),(1) (N=10*)*acumulam cargos profissionais liberais (médico, advogado),

promotor (2), tabelião (1), professor (1),militar (1). Apenas 1 caso de destaquepolítico (N=12*)*acumulam cargos

Nascimento 3 São Paulo 5 Porto Alegre13 Interior RS11 Interior SP1 Rio de Janeiro (N=14)

MP pré-Estado Novo

Média de idade de ingresso 25 anos 25 anosna instituição

Militância político-partidária 11 (61%) (N=18) 7 (39%)identificada 4 PD/PC + 7 PRP 3 PRL (Partido Republicano Liberal)

(dissidência) +3 Frente Única Gaúcha(2 PRR + 1 PL) + 1 Ação IntegralistaBrasileira

Cargos burocráticos/políticos 9 (50%) (N=18) 3 (17%)identificados

MP Estado Novo

Média de idade em posição 40,5 anos 32,5 anosde destaque (founding fathers)

Média de idade ocupação 1,5 anos (6 casos entre os anos 6 anos aprox. (1 caso entre os anoscargo de procurador-geral 1934-1945) 1941-1947)

Presidentes Associação 1 1 (+ 1 de honra)

Diretores revista de classe 3 2

Procuradores-gerais oriundos 3 1da carreira

Outras experiências a partir de 1930

Incursões no campo 7 (39%) (N=18) 4 (22%)literário/jornalístico

Docência (superior) 7 (39%) (N=18) 5 (28%)

Ingresso Tribunal de Justiça 3 (17%) (N=18) 2 (11%)

Atividade exclusiva na 5 (28%) (N=18) 9 (50%)carreira (não inclui docência)

Procuradores-gerais 4 (13 anos) 2 (7 anos)pós-Estado Novo

Identificação político- 7 (39%) (N=18) 7 (39%)partidária pós-Estado Novo

Cargos políticos Estado 8 (44%) (N=18) 7 (39%)Novo e pós-Estado Novo

Fonte: vide nota 7.

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Poder, instituições e elites

Dois protagonistas do MP – César Salgado e Abdon de Mello

Nesse sentido, acreditamos que o pioneirismo do MPP frente as de-mais congêneres está no fato dos founding fathers do MPP terem uma associa-ção mais densa e de maior “qualidade” de capitais e recursos comparadosaos founding fathers que integravam o MPRS, além de um contexto inicialmais favorável. Contudo, como os founding fathers podiam fazer as recon-versões para suas instituições? Para isso, vamos comparar duas trajetórias:César Salgado (MPP) e Abdon de Mello (MPRS). Ambos estiveram naliderança dos processos de conquistas institucionais, embora tenham apre-sentado estratégias diferenciadas para obter as vantagens requeridas peloMP. Ao mesmo tempo, suas atuações consignavam prestígio com os inte-grantes da classe e do campo jurídico, uma estratégia de ascensão institucio-nal. César Salgado trabalhou para chegar ao cargo de procurador-geral doEstado, que ocuparia após o Estado Novo; Abdon de Mello, por sua vez,faria um trabalho de manutenção desse cargo, passando por quatro gover-nos até entregar o posto em março de 1947.

a) César Salgado, homem forte do Parquet paulista11

José Augusto César Salgado nasceu em 21.12.1894 no município dePindamonhangaba. Suas origens eram ilustres, compatíveis com as de seuspares durante o Estado Novo – ele era filho do comendador Augusto Mar-condes Salgado12, este sobrinho de Francisco de Paula Rodrigues Alves,presidente da República entre 1902 e 1906 (EUGÊNIO, 2009, p. 38); CésarSalgado também era sobrinho do general Júlio Marcondes Salgado, herói

11 Informações obtidas nas biografias disponíveis em Justitia, v. 10, jan.-mar. 1952; v. 51, 4º trim.1965; v. 57, 2º trim. 1967; v. 105, 2º trim. 1979, entre outras. Serão indicadas as fontes quandonão referentes à Justitia.

12 Era tesoureiro do Santuário Episcopal de Aparecida, função herdada de seu sogro. Estima-seque o ambiente familiar religioso estimulou a relação especial que César Salgado tinha com ocatolicismo, mas também revela o trânsito que seu pai tinha com o episcopado. Também foimuito ativo na emancipação de Aparecida, o que demonstra o prestígio de seu cargo e suaimportância para um município voltado à adoração religiosa. O pai foi tesoureiro de 1900 até1946, ano de seu falecimento. Em vida foi agraciado com a comenda da Ordem de São Silvestree era Cavaleiro de Capa e Espada (MOURA, 2002, p. 253).

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da Revolução de 1932.13 Sua formação se deu em uma escola jesuítica (Co-légio São Luiz), e, posteriormente, tornou-se bacharel pela Faculdade deDireito de São Paulo em 1917.

Após breve atuação como advogado, ingressou no MPP em 1918.César Augusto atuou nas promotorias de Ataliba e Socorro, e, em 1925, setornou oficial de gabinete da Chefia de Polícia. Em 1927 foi convidadopelo presidente do Estado para assumir como interino na promotoria deSão Paulo; em 1929, já era titular, permanecendo no cargo até 1940, quan-do foi alçado a 2.º subprocurador-geral do Estado.

Embora atuasse no Conselho Superior do MPP, sua grande instânciade atuação era a APMP. Ele foi presidente da associação desde a sua funda-ção em 26.11.1938 até sua desarticulação em fins de 1945. Desenvolveuum grande poder mobilizador em prol das reformas do MPSP e se valeu dapublicação Justitia, pertencente à APMP, para fazer constar atas, manifes-tos, discursos, pareceres e outras publicações de interesse aos membros.Conforme recordou Plínio de Arruda Sampaio, sua qualidade estava emser “um homem muito hábil, com boas ligações políticas”.14 Não por aca-so, sua atuação como promotor na capital permitiu expandir suas relaçõescom o meio político, e, após breve experiência na Revolução de 1932, quan-do participou do batalhão de seu tio e chefiou um setor de defesa territorialda capital paulista, foi eleito deputado estadual pelo PRP em 1935. Comodeputado de oposição, dentro do contexto de embates entre PRP e PC nogoverno paulista, promoveu discursos favoráveis à autonomia do MPP.

Certamente, deter esse capital lhe possibilitou dialogar com o PoderExecutivo, tendo a habilidade em incorporar os procuradores-gerais às ideiaspregadas pela APMP. Isso aparentemente foi bem-sucedido, e as distinçõespolítico-partidárias ficaram em um segundo plano em prol de um discursoe prática de institucionalização do MP. Um indicador disso são as cerimô-nias de posse ou despedida dos procuradores-gerais; embora essa ritualiza-

13 Sua importância residiu na reorganização da Força Pública para a guerra. Não morreria emcombate, mas em um acidente no campo de testes. Um canhão explodiu, soltando estilhaços eatingindo-o mortalmente. Foi promovido post mortem, sendo alvo de espessas homenagens.

14 Entrevista de Plínio de Arruda Sampaio ao Projeto Memória do MPRS em 07 de agosto de2002, p. 3. Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br/memorial/noticias/id12392.htm>.Acesso em: 20.01.2010.

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ção possa trazer a falsa impressão de ausência de conflitos, há uma preocu-pação em consolidar uma unidade desse grupo em prol de uma instituiçãoem formação15. As boas relações com Ademar de Barros, que prestigiou osfounding fathers com um almoço no Palácio dos Campos Elísios por ocasiãodo Código do MPP de 1939, colaboraram para o feito. Nessa ocasião, Cé-sar Salgado saudou sua amizade com Ademar de Barros como “compa-nheiro de lides legislativas, a quem se sentia vinculado por laços de velha econstante amizade”.16

Da mesma forma, César Salgado usou sua experiência política paraarticular o I Congresso Nacional do MP em São Paulo no ano de 1942 etentou se contrapor a interferências políticas no MPP, como no Projeto deReforma Judiciária em 1942, sob análise do DAESP. Tal projeto previa aprerrogativa do interventor federal de nomear promotores adjuntos na ca-pital paulista, por livre escolha, sem concurso e sem respeito aos critériosde ascensão na carreira, conforme o Código do MPP de 193917. Isso levouCésar Salgado a protestar contra a mudança em ofícios dirigidos ao secre-tário do Interior, ao interventor Fernando Costa e posteriormente ao mi-nistro da Justiça Alexandre Marcondes Filho e ao presidente da RepúblicaGetúlio Vargas contra a mudança.18 A mobilização resultou em que Mar-condes Filho desautorizasse o governo estadual a impor a medida.19

Posteriormente, no pós-Estado Novo, foi escolhido procurador-gerale designou dois founding fathers para fazer lobby durante os trabalhos consti-tuintes, garantindo os privilégios alcançados pela instituição. Ele seria es-colhido em mais duas oportunidades procurador-geral do Estado (1951 e1957) e se constituiria como o maior nome do MPP, alcançando o título de“Promotor das Américas”, por sua atuação no II Congresso Interamerica-no do MP em 1955. Vale observar que a APMP fomentou um espaço de

15 Um exemplo está nos discursos por ocasião da saída de Benedito Costa Neto (Justitia, v. 6, n.14, p.430-435, maio-ago. 1943).

16 Justitia, v. 1, p. 179, set.-out. 1939.17 Justitia, v. 4, p. 581-583, maio-set. 1942; Justitia, v. 6, n. 15, p. 767, set.-dez. 1943.18 Justitia, v. 51, p. 28. Nesses ofícios previa-se a revisão do Código Judiciário de São Paulo

(Decreto n.º 11.058, de 26.04.1940) que criou o Conselho Superior do MP. Esse órgão, queprevia a participação do procurador-geral e de três subprocuradores, tinha poderes para proporremoções e promoções, organizar concursos e fiscalizar a atuação dos promotores públicos.

19 Justitia, v. 51, p. 28.

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debate e pressão sobre as autoridades na condução de César Salgado e,quando o mesmo conseguiu o cargo de procurador-geral, houve uma de-sarticulação da APMP nos anos seguintes.20 Festejado pelos seus pares, CésarSalgado participou de um grande número de eventos jurídicos no exterior eatuou em diversos órgãos, como o Instituto Latino-Americano de Crimino-logia e a Associação Interamericana do MP. Integrou o Instituto Históricoe Geográfico Paulista, exerceu forte militância nos movimentos católicosjesuíticos, além de colecionar homenagens e postos honoríficos. Em 1965,se aposentaria do MPP e, um ano depois, se tornou membro da AcademiaPaulista de Letras. Faleceu em 08.04.1979, com expressas homenagens dosintegrantes do campo jurídico paulista.

b) Abdon de Mello, o articulador do processo institucional do MPRS

Abdon de Mello nasceu em 18.06.1898 em Encruzilhada do Sul. Eleera filho do paraibano Francisco Antônio de Siqueira Mello, oficial do Exér-cito ali radicado no final do século XIX21. O pai esteve envolvido nas Revo-luções de 1893 e 1923 respectivamente ao lado dos federalistas e chiman-gos, mas não alcançou uma alta patente – aposentou-se major. Também eramembro da maçonaria, o que lhe dava, em tese, trânsito entre parte da elitelocal. A mãe de Abdon de Mello, por sua vez, era filha de um diretor daMesa de Rendas de Santana do Livramento.

Ao contrário do irmão Nélson de Mello, que teria destaque no cam-po político-militar, culminando no cargo de ministro da Guerra em 1962 earticulação no Golpe Militar de 1964, Abdon de Mello teve uma trajetóriamais modesta até alcançar relativo reconhecimento no meio jurídico rio-grandense. Aos 16 anos, tornou-se professor público em São Borja e, em

20 Apenas em 1950 é que a APMP voltaria a atuar, sob a presidência de João Batista de ArrudaSampaio.

21 A família era originária de Mamanguape, Paraíba. “O avô deles [Manuel Antônio de SiqueiraMello Filho] era um grande senhor de engenho. Quando morreu, dividiram as terras. Depois,também morreu o pai deles, meu avô, e papai resolveu ingressar no Exército. Engenho é muitobom quando está só com um. Papai, então, foi ser cadete, que era um posto herdado daMonarquia” (Entrevista do Mal. Nélson de Mello ao CPDOC/FGV em 08.06.1978, p. 7).Pela entrevista, traduz-se a estratégia de conversão do prestígio familiar de Francisco Mellopara se manter frente à decadência. A vinda para o Rio Grande do Sul cortou os laços familiarescom a Paraíba.

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1920, formou-se pela Faculdade de Direito de Pelotas e foi nomeado pro-motor público da sua cidade natal. Fez sua carreira como promotor, embo-ra como partidário do PRR fosse nomeado eventualmente para outras fun-ções, como juiz distrital em Santiago em 1924; por dois anos também atuoucomo subchefe de polícia da 5.ª região (Cachoeira do Sul, 1927-1928). Em1929, passou a ocupar a 3.ª Promotoria de Porto Alegre. O ápice de suacarreira política, ou melhor, incursão política, foi após a Revolução de 1930,quando chegou a intendente em Bento Gonçalves e logo se indispôs com ospartidários do PL, deixando o cargo para voltar à promotoria da capital.

A partir dali manteve-se por quase oito anos, sem grandes sobressal-tos em meio aos conflitos políticos dos anos 1930, até alcançar a promoçãopara subprocurador em 1938. Ali começou a publicar trabalhos referentesao MP, como Promoções cíveis e criminais em 1931, o que lhe trouxe prestigiono campo jurídico e na carreira institucional. Desde que havia assumido ocargo de subprocurador até janeiro de 1939, atuou como procurador-geral,cargo vago entre abril de 1938 a janeiro de 1939. Nessa qualidade, encami-nhou o projeto de um novo regulamento para o Ministério Público para asFaculdades de Direito de Porto Alegre e Pelotas, como forma de legitima-ção, que resultou em comentários positivos da classe jurídica (ENGEL-MANN, 2001, p. 66-67).22

Se, para Abdon de Mello, o projeto idealizava “um verdadeiro ma-gistrado, obediente apenas aos imperativos da sua consciência jurídica”23,sua própria atuação parecia destoar desse ideal, conforme as críticas dealguns contemporâneos. Abdon de Mello era considerado “[...] um tiposubmisso, era, como se diz, fiel aos princípios da política local”. O alegadocomportamento subserviente talvez fosse estratégia para não se indisporcom o Executivo visto antigos embaraços, como o caso das 10 mil librasesterlinas no início de 1938, que lhe custou a possível ascensão ao cargo deprocurador-geral no mesmo ano.24 Essa precaução devia-se ao passado de

22 Além do concurso público como recrutamento meritocrático e como garantia de estabilidadeao promotor público, o projeto previa o ingresso de estagiários e acesso via concurso paraqualquer entrância. Justiça, 1938, p. 637-653.

23 Justiça, 1938, p. 637.24 Em início de 1938, Abdon de Mello havia negado oferecer denúncia contra Flores da Cunha

no caso do desvio de 10.000 libras esterlinas, um dos vários procedimentos legais abertos pelainterventoria contra o ex-governador. Se isso rendeu prestígio ao ponto de publicar um livreto

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grande instabilidade nos primeiros quatro anos do Estado Novo, pontua-dos por demissões, passagens efêmeras de procuradores ligados ao PRR(Conrado Wagner e João Soares) e conflitos nos bastidores referentes à atua-ção de Anor Butler Maciel25.

Entretanto, essa atuação subserviente através de pareceres favoráveisao governo foi o suficiente para conduzir o processo de institucionalizaçãodo MPRS.26 Seu projeto lograria êxito em 1942, com algumas modifica-ções, e resultaria no novo Código do MPRS, substituindo o de 1920. Feztambém um regulamento interno da instituição (1943), publicou um novolivro de pareceres (1944) e uma obra referente à história institucional doMPRS (1943), além de participar com grande número de trabalhos na Re-vista do MP. Abdon de Mello foi escolhido para permanecer à frente doMP no pós-Estado Novo e apenas deixou o cargo com a posse de WalterJobim como governador do Estado em 1947.

Seu prestígio começou a declinar a partir daí. Abdon de Mello semanteve como 1.º procurador do Estado até o final da carreira, mas atuoupor longos períodos como procurador-geral substituto.27 Sua atuação nãofoi inconteste, sofrendo resistências de membros do Conselho Superior doMPRS (CSMP). As disputas entre Abdon de Mello e os colegas de CSMP(alguns deles founding fathers) sobre promoções, punições e licenças de pro-motores levaram a seu isolamento na instituição e posterior afastamentodo CSMP. Mesmo eleito para mais um mandato de conselheiro em 1954, oque pelo menos revelava respaldo dos promotores do interior, Abdon de

pela Globo especialmente sobre o caso e declarações de solidariedade sobre a independênciada instituição, custou-lhe o cargo de procurador-geral (MELLO, 1938; Diário de Notícias,03.02.1938; Correio do Povo, 05.02.1938).

25 O desembargador Solon Macedônia, que era amigo de Abdon de Mello, acusou Anor ButlerMaciel de numerosas irregularidades, o que levou este a rebater caso a caso, acusando SolonMacedônia de ter pleiteado o cargo de procurador para si e não ter sido escolhido. Isso poderiaser reflexo da ascensão católica e da resistência de positivistas no campo jurídico.Correspondência expedida pelo procurador-geral do Estado Anor Butler Maciel ao secretáriode Interior Miguel Tostes em 20.05.1940 – Unidade de Arquivo do MPRS.

26 Um exemplo está na omissão na investigação dos abusos de autoridades (delegados de polícia)contra os descendentes de alemães e italianos no RS.

27 Os procuradores-gerais que se seguiram, João Bonumá (1947-1951) e Ajadil de Lemos (1951-1955), tiveram de se afastar temporariamente da chefia do MPRS – o primeiro por motivos desaúde, o segundo por uma viagem de estudos aos EUA.

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Mello acabou se afastando por motivos de saúde. Aposentou-se em 1955 enão teve mais nenhuma ligação conhecida com a instituição. Apenas porocasião de seu falecimento seu nome reapareceu, em 1969, em discretashomenagens.28 A memória de Abdon de Mello começaria a ser recuperadaapenas nos anos 1970 (D’ÁVILA, 1974), mas de certo modo o ex-procura-dor-geral manteve-se, salvo a lembrança do seu nome e de seu “legado”,um indivíduo pouco conhecido pelas novas gerações do MPRS.

Considerações finais

Pode-se dizer que os founding fathers do MPP seguiam o caminho deingresso na elite política, mas foram colhidos pelas transformações dos anos1930, culminando no Estado Novo e no constrangimento das vias tradicio-nais de acesso político. Por outro lado, pelo fato de ser uma geração maisnova, os founding fathers do MPRS tinham menos capitais e recursos neces-sários para impor suas ideias e ficaram, desta forma, submetidos à lideran-ça de Abdon de Mello. Mas isso pode ser visto como vantagem, pois, aomanter um low profile, escaparam das depurações ou puderam ocupar olugar dos depurados diante da desorganização inicial do MPRS no iníciodo Estado Novo.

O caso de César Salgado ilustra um acúmulo de capital político con-vertido para a defesa do novo campo institucional, tornando-se um articu-lador dos demais founding fathers e incorporando os procuradores-gerais doestado ao grupo para atender as demandas da classe. O uso da APMP comoórgão de mobilização e da revista Justitia como órgão de divulgação funcio-nou e conseguiu garantir, ainda em fins dos anos 1930, as conquistas insti-tucionais do MPP, possibilitou a manutenção mesmo em episódios comdivergências do DAESP e manteve os founding fathers ocupando cargos dechefia até 1965.

O processo de institucionalização do MP contou com outra estraté-gia. Com Abdon de Mello, ela se daria por baixo, através do desenvolvi-mento de uma doutrina nos anos 1930 e certa subserviência ao Poder Exe-

28 Ata do CSMP nº 151, de 06.05.1969. Arquivo do MPRS.

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cutivo no Estado Novo. A desorganização da instituição diante dos conflitospolíticos e um baixo capital político colaboraram para isso. Os founding fa-thers do MPRS detinham menos recursos, o que constrangia inclusive a atua-ção da AMPRGS, que pouco se fez notar durante o Estado Novo. Isso nãosignifica que não houvesse mobilização dos founding fathers do MPRS, mashouve um controle maior por parte de Abdon de Mello, que acabou por con-centrar boa parte das iniciativas. Henrique Fonseca de Araújo, em que pese oreconhecido domínio das lides jurídicas, apenas ascenderia ao cargo de pro-curador-geral por participar do campo político tradicional através do PL.

Isso abre a última questão que merece maiores reflexões: a existênciade casos de founding fathers incursionando no campo político no pós-EstadoNovo. Mais do que trazer benefícios posteriores ao MP através de legislaçõesfavoráveis, o fortalecimento da instituição serviu para situá-la como um cam-po de “salvaguarda”29, uma reserva do indivíduo capacitado de recursos paratransitar em diferentes campos; em poucas palavras, quando encerrado ummandato político e sem expectativa de nova oportunidade, o MP estaria dis-ponível como campo independente, estável e de pleno reconhecimento porparte dos demais campos. De fato, não só os founding fathers, mas tambémnumerosos membros do MPP e do MPRS alternavam cargos políticos comretornos à carreira nas instituições, algo que ocorre até os dias atuais. A má-xima dessas reconversões foi bem definida pelo procurador Ruy Rebello Pi-nho, em discurso pela aposentadoria de César Salgado em 1965: “Ninguémdeixa o MP quando passa a servir noutros setores. Apenas leva a outros cam-pos as virtudes que buscamos cultivar aqui.”30

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29 Na visão de Christophe Charle, uma “rede de proteção cômoda para realocar as vítimas dosacasos do sufrágio universal” (2008, p. 21).

30 Justitia, v. 54, n. 158, p. 254, 1992.

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Poder, instituições e elites

Ampliando os horizontes das pesquisasem história da saúde:

a comparação em estudos sobre aatuação da Fundação Rockefeller

Ana Paula Korndörfer

Marc Bloch escreveu, em 1928, o texto que é, ainda hoje, referênciafundamental nos debates e discussões sobre a história comparada. Em Parauma história comparada das sociedades europeias (Pour une histoire comparée dessociétés européennes), Bloch pretendeu demonstrar que o método comparati-vo é “um instrumento técnico de uso corrente, maleável e susceptível deresultados positivos” (BLOCH, 1998, p. 120). O autor buscou, assim, preci-sar a natureza e as possibilidades de aplicação da “boa ferramenta” que é acomparação e, por meio de exemplos, indicar o que possível esperar dométodo, além de sugerir meios práticos para facilitar seu uso.

Logo de início, Bloch definiu o que é comparar em História:

[...] escolher, em um ou vários meios sociais diferentes, dois ou vários fenó-menos que parecem, à primeira vista, apresentar certas analogias entre si,descrever as curvas da sua evolução, encontrar as semelhanças e as diferen-ças e, na medida do possível, explicar umas e outras. São portanto necessá-rias duas condições para que haja, historicamente falando, comparação:uma certa semelhança entre os factos observados – o que é evidente – euma certa dissemelhança entre os meios onde tiveram lugar (BLOCH,1998, p. 120-121. Grifos meus).

O processo de comparação pode, ainda segundo Bloch, ter duas apli-cações totalmente distintas em princípios e resultados. A primeira aplica-ção é a comparação entre “[...] sociedades separadas no tempo e no espaçopor distâncias tais que as analogias observadas de um lado e do outro [...]não possam, com toda a evidência, explicar-se por influências mútuas oupor alguma comunidade de origens” (BLOCH, 1998, p. 121). Esta aplica-ção da comparação, a analogia, possibilita o preenchimento de lacunas de

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documentação, ajuda a explicar sobrevivências e pode sugerir novas dire-ções para a investigação.

Para Bloch, porém, o método comparativo mais rico cientificamenteé o mais limitado em seu horizonte: “[...] estudar paralelamente sociedadesa um tempo vizinhas e contemporâneas, incessantemente influenciadasumas pelas outras, cujo desenvolvimento está submetido [...] à acção dasmesmas grandes causas e que remontam, pelo menos em parte, a uma ori-gem comum” (BLOCH, 1998, p. 122-123).1

Abordando o trabalho prático da comparação, o autor afirma queesta “[...] só terá valor se se apoiar em estudos de facto, pormenorizados,críticos e solidamente documentados” (BLOCH, 1998, p. 143).

Em outro texto, intitulado Comparação, de 1930, Bloch sintetizou quaiseram, a seu ver, os resultados possíveis do método comparativo: sugestãode pesquisa; explicação das sobrevivências; interpolação das curvas; buscade influências; filiação (revelação de parentescos insuspeitos) e semelhan-ças e diferenças do processo (BLOCH, 1998, p. 111-118) .

Mas a história comparada teve, e ainda tem, um status minoritário nosestudos históricos, como afirmou Jürgen Kocka em artigo publicado em 2003.2

1 Boris Fausto e Fernando Devoto, na Introdução de Brasil e Argentina: um ensaio de história compa-rada (1850- 2002), afirmam que Marc Bloch foi o historiador que “mais influenciou a disciplinaquanto ao uso do método comparativo” (FAUSTO; DEVOTO, 2004, p. 13). Comentando asdificuldades e as vantagens da segunda aplicação da comparação, considerada a mais rica cien-tificamente por Bloch, os autores destacam, entre as dificuldades, “[...] distinguir os fenômenosque poderiam ser explicados autonomamente dos que deviam ser entendidos em conjunto comos da outra sociedade estudada; ou de dominar com a mesma profundidade os dois ou maiscampos pesquisados; ou, ainda, de traduzir os diferentes códigos e vocabulários empregadospelos historiadores de cada lugar” (FAUSTO, DEVOTO, 2004, p. 14). Passando a discutir asvantagens desta aplicação da comparação, Fausto e Devoto afirmam que “[...] eram muitograndes, sempre que a pesquisa fosse realizada com o devido cuidado. Assim, seria possívelperceber influências mútuas e buscar explicações para os diversos problemas para além dascausas internas; identificar as falsas causas locais e diferenciar as verdadeiras das gerais; encon-trar vínculos antigos e perduráveis entre as sociedades; fornecer sugestões e novas pistas para ainvestigação. Para Bloch, a comparação não dizia respeito somente à busca de semelhanças,mas também, e especialmente, à das diferenças. Desse modo, a história comparada servia tantopara melhor formular as questões sobre cada caso quanto para explicá-lo” (FAUSTO, DEVO-TO, 2004, p. 14).

2 Para uma breve discussão sobre as dificuldades suscitadas pelo binômio história comparada, verHeinz, Flavio; Korndörfer, Ana Paula. Comparações e comparatistas. In: HEINZ, Flavio (Org.).Experiências nacionais, temas transversais: subsídios para uma história comparada da AméricaLatina. São Leopoldo: Oikos, 2009, p. 9-20.

KORNDÖRFER, A. P. • Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde

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Poder, instituições e elites

Em Comparison and Beyond, Kocka afirma que a comparação em estudoshistóricos é “discutir sistematicamente dois ou mais fenômenos históri-cos no que se refere às suas semelhanças e diferenças buscando certospropósitos intelectuais” (KOCKA, 2003, p. 39).3 Apontando as principaisfunções que abordagens comparativas cumprem em estudos históricos,Kocka afirma que a comparação permite identificar questões e problemasque poderiam passar despercebidos, ser negligenciados ou simplesmentenão elaborados de outra maneira (heurística); ajuda a esclarecer os perfisindividuais comparando-os com outros (descrição); é indispensável paraperguntar e responder questões causais (análise) e, finalmente, a aborda-gem comparativa ajuda o historiador a se distanciar do caso que melhorconhece, proporcionando uma “ampliação de horizontes”, um “novoolhar” sobre a história que lhe é mais familiar (paradigma) (KOCKA,2003, p. 40-41).

Destacadas estas questões sobre a história comparada, minha pro-posta neste texto é apontar algumas possibilidades da comparação em estu-dos sobre a atuação da Fundação Rockefeller na área da saúde em diferen-tes países da América Latina e Caribe na primeira metade do século XX apartir dos estudos de Armando Solorzano (1994) – The Rockefeller Founda-tion in Revolutionary Mexico: Yellow Fever in Yucatan and Veracruz, e StevenPalmer (2010) – Launching Global Health: The Caribbean Odyssey of the Rocke-feller Foundation. Ao final, apontarei algumas possibilidades da compara-ção para o estudo da atuação da Fundação Rockefeller no campo da saúdeno Brasil das primeiras décadas do século XX.

A Fundação Rockefeller, instituição filantrópica norte-americana4,foi criada em 1913 e incorporou as instituições pertencentes à famíliaRockefeller: Rockefeller Institute for Medical Research, General Education Board

3 “For the purposes of this comment I want to stress that comparing in history means to discusstwo or more historical phenomena systematically with respect to their similarities and differen-ces in order to reach certain intellectual aims” (KOCKA, 2003, p. 39. A tradução é minha).

4 Maria Gabriela Marinho define da seguinte maneira a filantropia científica da Fundação Ro-ckefeller: “De modo geral, o conceito de filantropia pode ser definido como a destinação derecursos privados para atuação em atividades de interesse público. No caso específico da filan-tropia científica, há destinação de recursos privados para a produção de conhecimento científi-co” (MARINHO, 2001, p. 14).

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e Sanitary Commission for the Eradication of Hookworm Disease.5 Os trabalhosaqui destacados analisam atividades desenvolvidas pela divisão internacio-nal de saúde da Fundação Rockefeller. Esta divisão de saúde chamou-seInternational Health Commission (IHC) entre 1913 e 1916, International HealthBoard (IHB) entre 1916 e 1927 e International Health Division entre 1927 e 1951e, ao encerrar as suas atividades em 1951, havia estado presente em mais de 80países do mundo, incluindo todos os países da América do Sul.6 Entre as ativi-dades desenvolvidas pela divisão internacional de saúde da Fundação Rocke-feller estavam campanhas de combate à ancilostomíase7, à febre amarela e àmalária, a fundação e o investimento em instituições de ensino e pesquisa naárea da saúde e a distribuição de bolsas de estudos para treinamento de profis-sionais em saúde pública, medicina e enfermagem no exterior.8

É comum encontrarmos, nos estudos mais recentes sobre a presençae a atuação da Fundação Rockefeller em diversos países, a afirmação, acer-

5 O Rockefeller Institute for Medical Research (1901) era um Instituto voltado para o desenvolvimen-to da medicina experimental. O General Education Board (1903) tinha como objetivo o desenvol-vimento de um amplo projeto educacional voltado principalmente para a região sul dos Esta-dos Unidos. A Sanitary Commission for the Eradication of Hookworm Disease (1909) atuou no com-bate à ancilostomíase nos estados do sul norte-americano num projeto de cinco anos (ETTLING,1981; FARIA, 2007). Analisando a atuação da Fundação Rockefeller em termos globais demaneira geral, Lina Faria firma que é possível identificar dois momentos distintos importantes.Segundo Faria, “o primeiro, iniciado em 1913, dava ênfase à medicina e a ações em saúdepública. Durante as décadas de 20 e 30, a Rockefeller direcionou suas atividades para pesquisae controle de doenças infecciosas como a ancilostomíase, a febre amarela e a malária. Umsegundo momento, que se consolidou em fins dos anos 40, mais precisamente com o fim daSegunda Guerra Mundial, ligou-se ao desenvolvimento do ensino médico, das ciências físicase biológicas e da agricultura” (FARIA, 2007, p. 78-79).

6 Diversos países contaram com a cooperação da Fundação Rockefeller a partir de 1913, entre osquais México, Brasil, Equador, Argentina, Colômbia, Chile, Paraguai, Peru, Uruguai, Vene-zuela, Costa Rica, Cuba, Guatemala, Haiti, Nicarágua, Panamá, El Salvador, Jamaica, Trini-dad e Tobago, Granada, Canadá, Ceilão, Índia, Malásia, Coréia, Tailândia, China, Japão,Iraque, Turquia, Israel e Líbano. Alguns países africanos e europeus também receberam apoioda Rockefeller. Entre os países europeus, podemos citar Inglaterra, França, Espanha, Portugale Albânia (FARIA, 2007, p. 59). Para informações sobre a presença e a atuação da FundaçãoRockefeller na área da saúde na América Latina, ver trabalho de Marcos Cueto: CUETO,Marcos (Ed.). Missionaries of Science: The Rockefeller Foundation & Latin America. Blooming-ton: Indiana University Press, 1994.

7 A ancilostomíase é uma verminose conhecida popularmente no Brasil como amarelão ou opi-lação.

8 John Farley discute a história da divisão internacional de saúde da Fundação Rockefeller em:FARLEY, John. To Cast Out Disease: A History of the International Health Division of theRockefeller Foundation (1913-1951). Nova York: Oxford University Press, 2004.

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tada, de que a Fundação precisou “adaptar-se” aos contextos encontrados.Diego Armus (2005) destaca, em Legados y tendencias en la historiografía sobrela enfermedad en América Latina moderna, texto cujo objetivo principal é apon-tar as direções que estão tomando as pesquisas sobre a história da doença,que a chegada da medicina europeia e norte-americana à América latina eo papel de agências internacionais como a Fundação Rockefeller têm sidoum ponto importante de estudos e discussões e que estes são, em grandemedida, uma reação contra interpretações que assumiam uma postura derecepção passiva – transplante e importação – de conhecimentos e práticasarticuladas no exterior. Em estudos e discussões mais recentes, segundoArmus, a ênfase está no processo de seleção, reelaboração e adaptação des-tes conhecimentos e práticas a contextos culturais, políticos e institucionaisespecíficos.9 Em outro texto, intitulado Disease in the Historiography of Mo-dern Latin America (ARMUS, 2003), Armus afirma, sobre as missões daFundação norte-americana em países da América Latina, que

[the] missions’ technical-elitist approach had to be adapted to the localpopulation’s idiosyncrasies and perceptions of disease, something the foun-dation representatives found as difficult, and did as badly, as most of thenative doctors. The relations between national and foreign medical groupswere complex, at times involving subordination, cooptation, alliance, prag-matism, conflict or mutual adaptation. In both rural and urban areas themission officers faced the unavoidable problems of when to interfere inpeople’s everyday routines and customs and when to leave them alone, andwhen to use persuasion and when to resort to coercion in order to achievepublic health goals (ARMUS, 2003, p. 10).

Poucos são, porém, os estudos que analisam em perspectiva compa-rada os diferentes contextos em que a Fundação atuou, o que nos permiti-ria perceber mais claramente os processos de seleção, reelaboração e adap-tação da agenda, das propostas e das ações da instituição norte-americanaem diferentes países, bem como compreender melhor os contextos históri-cos, especialmente no que se refere à saúde, destes mesmos países. Os tex-tos de Armando Solorzano (1994) e Steven Palmer (2010) são dois dessesestudos.

9 Sobre a atuação da Fundação Rockefeller no Brasil, por exemplo, Lina Faria afirma que “aquino país, para lograr êxito, a Rockefeller teve de adaptar seus objetivos e modelos de atuação àscondições históricas, culturais e sanitárias locais” (FARIA, 2007, p. 80).

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Como veremos, Solorzano e Palmer apresentam propostas distintasde análise comparativa não apenas pela escala adotada – Solorzano enfocaduas regiões de um mesmo país, o México, enquanto Palmer discute seispaíses da América Central e do Caribe – , mas também pelo enfoque, poisenquanto Solorzano propõe uma análise mais política, Palmer apresentaum estudo orientado pela história social e cultural da medicina.

Armando Solorzano propõe-se a analisar, em The Rockefeller Founda-tion in Revolutionary Mexico: Yellow Fever in Yucatan and Veracruz, o papeldesempenhado pela Fundação Rockefeller nas campanhas contra a febreamarela em Yucatán e Veracruz, duas províncias mexicanas.10

Segundo Solorzano, havia, quando o texto foi elaborado, a acertadapreocupação metodológica em analisar os programas da Fundação de acor-do com as condições econômicas, políticas e sociais dos países em que estaatuou. Contudo, segundo o autor, não havia a preocupação em analisar taiscondições em uma escala menor, o que parecia indicar a suposição de queo desenvolvimento de uma nação seja uniforme e homogêneo (SOLOR-ZANO, 1994, p. 52).

Justificando as escolhas de Yucatán e Veracruz para sua análise, So-lorzano afirma que estas províncias são particularmente interessantes, poisa intervenção da Fundação Rockefeller ocorreu durante um período deagitação política – a Revolução Mexicana – e também porque estas regiõesrefletiam uma propagação desigual do capitalismo norte-americano, expe-riências revolucionárias distintas, bem como atitudes diferentes de partedas elites médicas mexicanas com relação às campanhas da Fundação. Oestudo de Solorzano também leva em consideração, segundo o autor, osesforços do México para melhorar a saúde da população no início do sécu-lo XX e a emergência de um aparato nacional de saúde pública (SOLOR-ZANO, 1994, p. 52).

Para Armando Solorzano, seu estudo dá respaldo à hipótese de queos objetivos e técnicas da campanha contra a febre amarela da Fundação

10 As campanhas contra a febre amarela no México também foram analisadas mais recentemen-te por Anne-Emanuelle Birn (BIRN, Anne-Emanuelle. Marriage of Convenience: RockefellerInternational Health and Revolutionary Mexico. Rochester: University of Rochester Press,2006).

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Rockefeller eram determinados pelo nível de investimento econômico nor-te-americano na região, bem como pelas condições políticas da RevoluçãoMexicana. Além disso, a campanha da Fundação modificou, segundo oautor, a revolução de maneira significativa, alterando o sentimento antia-mericano da população de Veracruz, ao ajudar a estabilizar e legitimar oEstado mexicano, e criando as bases para a influência no desenvolvimentoinstitucional da medicina e saúde pública no México pós-revolucionário(SOLORZANO, 1994, p. 53).

Veracruz, primeira província analisada, era um dos mais importan-tes enclaves econômicos norte-americanos na América Latina em 1910 (in-vestimentos, produção para o mercado dos EUA, monopólio da indústriapetrolífera, aquisição de terras por concessão). A Revolução Mexicana foipercebida pelos investidores norte-americanos como uma ameaça aos seusinteresses e, em 1914, Veracruz foi ocupada pelos U.S. Marines. Um inci-dente envolvendo marinheiros norte-americanos intensificou um sentimentoantiamericano já existente. Com a retirada do exército dos EUA, o presi-dente Venustiano Carranza tornou Veracruz uma importante base revolu-cionária (SOLORZANO, 1994, p. 53).

O incidente em Veracruz foi, segundo Solorzano, um dos principaismotivos para a demora no início das operações da Fundação Rockefellerno México. A Fundação tentou iniciar campanhas de saúde pública no paísentre 1911 e 1920, mas sem sucesso. Segundo o autor, eram três os fatores:a forte oposição do presidente Carranza, o sentimento antiamericano gera-do pela invasão de 1914 e a desconfiança dos governos mexicanos em rela-ção às organizações norte-americanas (SOLORZANO, 1994, p. 53).

As condições políticas começaram a mudar no final da década de1910 e início da década de 1920, quando os líderes revolucionários, apósanos de conflito, começaram a reconstruir o país, buscando estabilidade,crescimento econômico e melhores relações com os Estados Unidos. Coma chegada de Alvaro Obregón ao governo, na década de 1920, foi assinadoum acordo com a Fundação Rockefeller para a realização de campanhacontra a febre amarela. O programa concentrar-se-ia em Veracruz, regiãoque sofria com a doença desde o século XIX e era considerada um dosmaiores focos endêmicos da doença. Diferentemente dos esforços mexica-nos anteriores no combate à doença, a Fundação buscava a sua erradica-

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ção, não o seu controle. O antiamericanismo dificultou o início da campa-nha em Veracruz, pois a Fundação estava associada, aos olhos da popula-ção, aos interesses econômicos na região. A situação política na província –oposição à Fundação e ao presidente Obregón, visto como apoiador dosEUA – também dificultava a ação da Rockefeller, percebida como uma pre-paração para uma futura invasão norte-americana. O pessoal da Fundaçãoalocado para trabalhar em Veracruz enfrentava condições muito difíceis detrabalho, sem a colaboração da população, de políticos, comerciantes oumesmo dos médicos locais. As questões políticas e a relação de apoio daFundação ao presidente Obregón são destacadas por Solorzano (SOLOR-ZANO, 1994, p. 53-57).

A campanha da Fundação Rockefeller contra a febre amarela iniciouem 1921 e, de acordo com o autor, em dezembro de 1921, os casos da doen-ça haviam sido reduzidos em 85%. Em 1923, a doença havia sido “erradi-cada” (SOLORZANO, 1994, p. 58).

No final de 1922, segundo Solorzano, observou-se uma mudança deatitude da população de Veracruz com relação ao pessoal da Fundação eao governo mexicano, motivada pelo trabalho desenvolvido pela Fundaçãojunto à população. Controlada a epidemia, a Rockefeller anunciou sua reti-rada da região, e a população exigiu que o governo mexicano assumisse acampanha e passou a demandar programas de saúde pública. Ficou suben-tendido que o sucesso da campanha contra a febre amarela foi uma vitóriada administração mexicana: “as a result, the Mexican state gained legiti-mation in the eyes of the Veracruz population. In addition, the RF benefi-ted substantially, in that future work in public health was made easier” (SO-LORZANO, 1994, p. 60). Para F. F. Russel, presidente do InternationalHealth Board, os sentimentos da população de Veracruz haviam mudado,inclinando-se ao pró-americanismo.

Destacadas estas questões sobre a atuação da Fundação Rockefellerno combate à febre amarela em Veracruz, Solorzano afirma que, para apreciar-mos a magnitude da mudança trazida pela Fundação à província, é precisocompará-la com a campanha contra a febre amarela implementada pela Fun-dação em Yucatán, outra província mexicana (SOLORZANO, 1994, p. 60).

Diferentemente do que ocorreu Veracruz, a população de Yucatánpermaneceu indiferente à revolta nacional, pois a província atravessava um

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bom momento econômico. Idéias de regionalismo e separatismo estiverampresentes entre a população de Yucatán desde o período pré-revolucionário.A distância da província com relação ao México central e a resistência dapopulação em fazer parte da Revolução influenciaram, segundo Solorzano,o trabalho da Fundação Rockefeller na região (SOLORZANO, 1994, p. 61).

Chegando a Yucatán apenas em 1915, a Revolução, introduzida pelogeneral Salvador Alvarado, adquiriu um outro perfil na província, constitu-indo-se numa versão local do movimento socialista. O autor nos informa,porém, que isto não significou um antiamericanismo. Nenhuma outra re-gião do México apresentava, segundo Solorzano, um sentimento mais fa-vorável aos Estados Unidos do que Yucatán, cuja população, em 1914, ex-pressou sua vontade em fazer parte dos Estados Unidos (SOLORZANO,1994, p. 61).

Apesar deste sentimento favorável aos Estados Unidos, importantesinvestidores norte-americanos não confiavam em Alvarado ou em CarrilloPuerto, associado do primeiro e governante de Yucatán, e exigiam a inter-venção do governo dos Estados Unidos na região. A proteção aos negóciosnorte-americanos oferecida pelo governo dos EUA foi a proteção contra afebre amarela, uma ameaça ao país, que poderia ser atingido pela doençaatravés das exportações de Yucatán para os Estados Unidos. A FundaçãoRockefeller também estava interessada em erradicar a doença da região,um dos mais antigos núcleos endêmicos no continente (SOLORZANO,1994, p. 62).

Em 1920, a Fundação iniciou os trabalhos em Yucatán, a partir deum acordo firmado com o governo mexicano. Como nenhum caso da do-ença havia sido registrado na região desde o final de 1919 (o departamentode saúde mexicano havia realizado campanhas anteriores para controlar adoença), a Fundação decidiu concentrar-se em prevenir a reintrodução dadoença. A febre amarela afastava investimentos e também impedia a pre-sença de grandes contingentes do exército federal na província, desejadapelos norte-americanos (controle da influência bolchevique) e pelo presi-dente Obregón (estender a influência do governo nacional e combater arevolução socialista na região), mas ameaçada pela febre. As condições detrabalho da Fundação em Yucatán eram muito favoráveis, diferentementede Veracruz (SOLORZANO, 1994, p. 62-64).

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A campanha contra a febre amarela iniciou, efetivamente, em feve-reiro de 1921 e concentrou-se na prevenção e na proteção dos não imunes.As ações para proteger os soldados enviados pelo governo federal forambem-sucedidas, assim como as ações para proteger a população em geral.Necessitando de pouco pessoal e contando com o apoio da população, dosprofissionais médicos e dos governantes, a campanha da Fundação Rocke-feller em Yucatán alcançou, segundo Solorzano, grande êxito (SOLORZA-NO, 1994, p. 64-66).

Em suas conclusões, Armando Solorzano afirma que a análise daatuação da Fundação Rockefeller em Veracruz e em Yucatán permite tra-çar algumas conexões entre as campanhas contra a febre amarela e a situa-ção revolucionária no México. Segundo ele, a instabilidade social, políticae econômica, que ameaçava aos interesses norte-americanos no país, foi aporta de entrada da Fundação no México e na Revolução. A Rockefeller foium importante componente na legitimação do Estado mexicano, como épossível observar nas análises de Solorzano sobre as duas províncias, ondea atuação da Fundação foi muito significativa para a consolidação da posi-ção de Obregón e do governo mexicano como provedor de melhorias nascondições de saúde da população. O papel da Fundação no financiamentode programas de saúde pública e de saneamento básico de algumas áreastambém é destacado pelo autor. As campanhas também tiveram implica-ções para a influência norte-americana no desenvolvimento posterior dosserviços de saúde no México (SOLORZANO, 1994, p. 67-68).

A análise de Armando Solorzano sobre a atuação da Fundação Ro-ckefeller na campanha contra a febre amarela em duas províncias mexica-nas – Veracruz e Yucatán – aponta uma importante questão: é possível ana-lisar a atuação da Fundação Rockefeller no México de forma ampla e emlinhas gerais, mas, numa proposta de análise que adota uma escala menordo que a nação, Solorzano demonstra que esta atuação não ocorreu damesma forma nas diferentes regiões de um mesmo país.

O projeto de Steven Palmer é mais ambicioso em termos comparati-vos. Em Launching Global Health: The Caribbean Odyssey of the Rockefeller Foun-dation, a proposta do autor é analisar comparativamente a atuação da divi-são internacional de saúde da Fundação Rockefeller no combate à ancilos-tomíase em seis países da América Central e do Caribe: Nicarágua, Pana-

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má, Costa Rica, Guatemala, Trinidad e Guiana Britânica, com ênfase nosquatro últimos, entre os anos de 1914 e o final da década de 1920.

Apesar das diferenças11, os “mundos” da América Central e do Cari-be britânico eram convergentes em termos geopolíticos e econômicos. Du-rante o curso do século XIX, os quatro territórios – Guatemala, Trinidad,Guiana Britânica e Costa Rica – compartilharam a experiência de se inseri-rem no sistema capitalista mundial através da exportação agrícola e, emcada um dos casos, o boom exportador foi financiado principalmente pelocapital britânico e a produção tinha o mercado europeu como destino. Noinício do século XX, porém, os quatro territórios estavam na órbita de in-fluência dos Estados Unidos.

Neste texto, é o próprio autor quem destaca a ausência de estudoscomparados sobre o tema, indicando que há pesquisas sobre as campanhascontra a ancilostomíase realizadas em parceria com a Fundação Rockefellerem países como Austrália, Brasil, Colômbia, México, sul dos Estados Uni-dos, entre outros, mas, surpreendentemente, quase nenhum trabalho decomparação foi realizado. Segundo Palmer, estes recentes estudos realiza-dos sobre as campanhas em países individualmente analisados sublinha-ram que a agenda e as propostas da Fundação poderiam ter aplicações dis-tintas em cada um dos locais de atuação e sofrer importantes transforma-ções como resposta a preocupações e condições locais, mas que não háuma apreciação sobre o grau de diferenciação em questão. Assim, Palmerafirma que a análise comparativa dos seis programas institucionalmenteiguais, desenvolvidos no mesmo tempo histórico e no mesmo espaço geo-político, demonstra o quão diferentes podiam ser o desenvolvimento dosprogramas e seus resultados (PALMER, 2010, p. 3).12

Orientado pela história social e cultural da medicina, mas valendo-setambém de estudos elaborados na área das ciências sociais e das aborda-gens institucionais que têm analisado a saúde internacional, Palmer discu-

11 A Costa Rica e a Guatemala eram dois estados da América Central hispânica, Trinidad e aGuiana Britânica eram duas colônias do Caribe britânico e a Nicarágua e o Panamá, doispaíses sob a influência norte-americana.

12 “The following comparative worm’s-eye view of six institutionally identical programs, de-ployed in the same historical time and geopolitical space demonstrates how distinct eachprogram’s development and outcome could be […]” (PALMER, 2010, p. 3).

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te a história da ancilostomíase em cada um dos países antes da chegada daFundação Rockefeller (a Costa Rica, por exemplo, já possuía programa decombate à doença); analisa as relações entre os representantes da Funda-ção, os governos e outros grupos locais, como os médicos; aborda a relaçãodas populações locais com a doença e com as práticas de cura e, consequen-temente, com o método de combate à ancilostomíase proposto pela Funda-ção, entre outros aspectos. Para exemplificar o trabalho comparativo reali-zado por Palmer, comento rapidamente a análise do autor sobre a compo-sição das equipes locais de trabalho que realizavam as atividades de camponas campanhas contra a ancilostomíase realizadas em parceria com a Fun-dação norte-americana.13

Os diretores norte-americanos da divisão internacional de saúde daFundação Rockefeller trabalhavam com pessoal local, que deveria ser sele-cionado, organizado e treinado de acordo as orientações da Fundação. Estetrabalho em conjunto com a população local teria como vantagem o fato deestar inserido na vida e nas tradições da localidade. Para Palmer, não háexpressão mais ponderosa do quanto dinâmicas sociais e políticas preexis-tentes definiram a natureza das missões de combate à ancilostomíase queas marcadas diferenças no perfil e na composição das equipes de trabalho.14

Na Guiana Britânica e em Trinidad, o grupo de trabalho era com-posto por sujeitos étnica e linguisticamente ecléticos que compunham asclasses trabalhadora e média coloniais. Na Guiana Britânica, muitos dossujeitos que compunham a equipe possuíam experiência na área da saúdecomo técnicos sanitários. Em Trinidad, por sua vez, a equipe contava commuitos professores e nenhum médico. Já na Guatemala, o grupo era com-posto por muitos estudantes de medicina ou médicos criollos, membros defamílias importantes do país. Na Costa Rica, homens de classe média ede diversas origens raciais, muitos com diploma em farmácia, compu-nham a equipe.

13 Capítulo 3 – Local Material: Social and Political Character of the Missions (PALMER, 2010,p. 89-114).

14 “There is no more powerful expression of the degree to which preexisting social and politicaldynamics defined the nature of hookworm missions than the stark differences in the characterand composition of the staff from one area of operation to the next” (PALMER, 2010, p. 90).

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As equipes de trabalho eram compostas, em geral, por grupos de 10 a15 homens e, com frequência, contavam com um pequeno grupo de mulhe-res. Os sujeitos que compunham as equipes eram hierarquizados e estratifi-cados por distintas combinações raciais, étnicas e de nacionalidade, bemcomo por casta, classe e gênero. Estas clivagens, segundo Palmer, tinhamimportantes repercussões nas relações entre as equipes de trabalho e a po-pulação, no grau de comprometimento dos sujeitos que compunham asequipes e nas escolhas feitas pelo diretor norte-americano no desenvolvimentodo trabalho. As relações entre os sujeitos que compunham estas equipes po-diam ser de conflito ou de colaboração, mas, de qualquer maneira, a dinâmi-ca era crucial para o caráter/perfil das missões. O isolamento do diretor nor-te-americano e a sua necessidade de improvisar soluções fizeram com queeste dependesse de aliados locais e de seu pessoal, com destaque para o “nú-mero dois”. O segundo homem no comando podia variar, de acordo com aanálise comparativa de Palmer, em título, função e autoridade (PALMER,2010, p. 91). Na Guiana Britânica, por exemplo, o segundo homem no co-mando da missão era o microscopista chefe, enquanto na Guatemala e naCosta Rica eram médicos locais. A análise comparativa realizada pelo autortambém demonstrou que as motivações dos sujeitos que trabalhavam nasmissões da Fundação Rockefeller podiam ser distintas. Em Trinidad, porexemplo, o trabalho era visto como possibilidade de mobilidade social.

Longe de apenas seguirem um manual de instruções elaborado e re-digido no escritório da Fundação Rockefeller em Nova York, as equipes detrabalho constituídas por pessoal local tinham o poder de determinar o su-cesso ou o fracasso das campanhas contra a ancilostomíase analisadas porPalmer. Nas palavras do autor:

As we turn to look at the way the hookworm campaigns developed on theground, we must keep the mission staff in sight, not as an inert instrumentof the Rockefeller will but as a force of its own, often driven by rivalry, race,and rank but also always in pursuit of political, social and cultural objectivesthat may or may not have coincided with those of International Health (PAL-MER, 2010, p. 114).

Ao comentar os trabalhos de Solorzano e Palmer, busquei apontardois exemplos do que é possível com o “método” comparativo nos estudossobre a atuação da Fundação Rockefeller na área da saúde em diferentespaíses, em diferentes contextos.

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Contudo, a presença e a atuação da Fundação Rockefeller na área dasaúde no Brasil no início do século XX também permanecem um temapraticamente inexplorado em termos comparativos.

O Brasil foi o país do continente americano em que a Fundação Ro-ckefeller investiu a maior soma de capitais. Segundo Lina Faria, “de cercade 13 milhões de dólares, aplicados em programas sanitários e de educaçãoem países deste continente, US$ 7 milhões foram direcionados para o de-senvolvimento do ensino médico, de pesquisas científicas e campanhas sa-nitárias no Brasil” (CASTRO SANTOS, FARIA, 2003, p. 67). A FundaçãoRockefeller realizou, através da sua divisão internacional de saúde, campa-nhas contra a ancilostomíase, a febre amarela e a malária em parceria como governo federal e governos estaduais. Segundo levantamento realizadopor Marcos Cueto (CUETO, 1994, p. xi), o Brasil foi o país da AméricaLatina que mais recebeu bolsas de estudos entre 1917 e 1962, num total de443 (o México, segundo colocado, recebeu 359 bolsas no mesmo período).A Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, o Instituto de Higiene,o Instituto Oswaldo Cruz e a Escola de Enfermagem Ana Nery são exem-plos de instituições brasileiras que contaram com auxílio financeiro e pro-fissional da Fundação Rockefeller.

Estudos comparativos entre as atividades desenvolvidas pela Funda-ção no Brasil e em outros países, como as campanhas contra a febre amare-la realizadas no Brasil (1923-1940) e no México (1921-1924), por exemplo,certamente trariam alguns dos benefícios da comparação apontados porMarc Bloch e Jürgen Kocka, como a possibilidade de analisar as semelhan-ças e diferenças nos processos e identificar questões e problemas que, deoutra maneira, poderiam passar despercebidos.

Luiz Antonio de Castro Santos, ao apresentar “uma primeira incur-são” à sua proposta de análise comparativa da atuação das missões médi-co-sanitárias e educacionais da Fundação Rockefeller no Brasil e na China,e que teria entre seus objetivos “entender o modo pelo qual as diversas tra-dições médicas teriam influenciado a forma de operação e os princípiospedagógicos da Rockefeller e, inversamente, teriam sido por ela influencia-das”, afirma que a comparação é “[...] um procedimento a um só tempoanalítico – ao clarificar as experiências nacionais contrastantes pelo ‘jogode espelhos [...] e metodológico – ao operar, pela análise dos casos contras-

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tantes, com o mecanismo lógico de prova ou refutação de hipóteses ou con-clusões” (CASTRO SANTOS, FARIA, 2003, p. 188).15

Mas a atuação da Fundação Rockefeller na área da saúde no Brasilnão é área fértil para comparações apenas em termos nacionais. As campa-nhas contra a ancilostomíase no Brasil, entre 1916 e 1923, foram realizadasa partir de acordos de cooperação entre a Fundação e estados brasileiros.

Cabe lembrar aqui que, a partir da proclamação da República no Bra-sil, em 1889, as questões relativas à saúde pública passaram a ser tratadasde forma descentralizada, obedecendo a Constituição de 1891, que estabe-lecia a autonomia dos estados. Encarregados dos serviços sanitários, os es-tados respondiam pela saúde pública e repassavam aos municípios as ques-tões relativas à higiene. Apenas o Distrito Federal e a vigilância dos portospermaneceram sob responsabilidade do governo federal. Os problemas desaúde eram considerados regionais, e intervenções federais não previstaspodiam ser interpretadas como questionamento do pacto federativo. A le-gislação referente à saúde sofreu modificações durante o período da Pri-meira República brasileira (1889-1930), mas é importante sublinhar que ocuidado com a saúde da população coube aos poderes locais durante esteperíodo (HOCHMAN, 1998).

Campanhas contra a ancilostomíase foram realizadas, a partir dacooperação entre a Fundação Rockefeller e os governos estaduais, em di-versos estados brasileiros: Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Minas Ge-rais, Maranhão, Santa Catarina, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Bahia,Alagoas e Espírito Santo, além do Distrito Federal. Uma análise superficialbaseada nos raros estudos sobre a presença da Fundação Rockefeller emestados brasileiros e as campanhas de combate à ancilostomíase realizadasno país durante a República Velha indica aspectos interessantes para umaanálise comparada que ainda está por ser realizada, como, por exemplo, as

15 Luiz Antonio de Castro Santos e Lina Faria também são autores de CASTRO SANTOS, LuizAntonio de; FARIA, Lina Rodrigues de. Os primeiros centros de saúde nos Estados Unidos eno Brasil: um estudo comparativo. Teoria e Pesquisa, n. 40 e 41, p. 137-181, jan./jul. 2002. LinaFaria é coautora de outro estudo comparativo referente à Fundação Rockefeller: FARIA, Lina;COSTA, Maria Conceição. Cooperação científica internacional: estilos de atuação da Funda-ção Rockefeller e da Fundação Ford. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 49, n.1, p. 159-191, 2006.

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relações entre a Fundação Rockefeller e a Igreja Católica em Minas Gerais(MARQUES, 2004), as elites do café em São Paulo (BRANNSTROM,2010), e entre a Fundação e o governo estadual do Rio Grande do Sul, que,orientado pelo positivismo, defendia a liberdade profissional, princípio quese refletia diretamente sobre a saúde e o exercício da medicina.16

A análise comparativa destas campanhas, realizadas em estados quepossuíam diferenças políticas, econômicas, sociais e culturais, certamentetraria contribuições à discussão sobre o grau de transformação e adaptaçãoque a agenda e as propostas da Fundação Rockefeller poderiam sofrer comoresposta a preocupações e condições locais. A comparação também pode-ria enriquecer a análise sobre como as propostas da Fundação foram selecio-nadas, reelaboradas e adaptadas por agentes locais – governos e médicos,por exemplo –, permitindo uma maior compreensão da organização e dofuncionamento da saúde em diversos estados brasileiros no período da Pri-meira República.

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