Antonio Cremonese "revisitado"

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Antonio Cremonese “revisitado” Ricardo André Frantz novembro de 2013 atualizado em agosto de 2014 Indo direto ao assunto, acabo de fazer mais uma constatação do descaso assombroso com que nossas autoridades civis e eclesiásticas tratam um patrimônio cultural que é reconhecidamente de todos e que elas teriam a obrigação legal e moral de preservar. O atentado desta vez perpetrou-se no preciosíssimo Antigo Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, em Farroupilha, também conhecido como Capela dos Ex-Votos, um dos mais sofisticados e ricos exemplares da arquitetura da colonização italiana no estado do Rio Grande do Sul. Construído no final do século XIX pelas primeiras comunidades de imigrantes instaladas entre a Linha Palmeiro e a Linha Pedro Salgado da antiga Colônia Caxias, até a construção de uma nova e mais ampla Matriz nos anos 60, o Santuário centralizou a devoção a Nossa Senhora de Caravaggio no estado, irradiando- a depois para outras paragens, sendo desde sua fundação o centro de populosa romaria todos os anos, acumulando enorme acervo de ex-votos. Esta pequena joia da arquitetura colonial é rara tanto pelo relevo sociocultural que adquiriu na região, quanto por sua incomum riqueza decorativa, no contexto da sociedade colonial, que se caracterizou em geral pela pobreza, simplicidade e rusticidade de suas criações artísticas. 1 2 3 Faz parte dessa riqueza sua decoração em pintura, realizada em 1921 pelo italiano Antonio Cremonese (1890-1943), que deixou ornamentos, figuras e cenas em todas as paredes. Destacam-se no conjunto decorativo duas grandes cenas pintadas na capela-mor, representando milagres operados pela Padroeira. 4 5 Pois bem, agora começa a piada e a tragédia do dia. O templo, declarado Patrimônio Histórico e Cultural do Estado pela Lei 12.478 de 8 de maio de 2006, 6 recentemente passou por reformas, “revitalizando-se” as pinturas. Já deu pra entender? Quando ouço dizer que alguém vai “revitalizar” alguma coisa, em se tratando de restauro, me dá calafrios. Aqui aconteceu de novo. Li a notícia nos jornais, corri aos meus arquivos fotográficos, e dito e feito: a “revitalização” de fato “revitalizou” tudo, repintando inteiramente o original. Com o beneplácito das autoridades. E o produto foi recebido com entusiasmo, considerado um sucesso. 7 8 9 10 De público, pode ser. Tecnicamente, um total fracasso, e eticamente, um ultraje e um crime. 11 12 1 Schneider, Mônica & Santos, Marcia Maria Cappellano dos. Relações de hospitalidade na Romaria ao Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio – Farroupilha/RS: a ótica do acolhedor”. In Revista Hospitalidade, 2013; X (1): 28-53 2 Lopes, José Rogério & Silva, Adimilson Renato da. "Santuário de Caravaggio e a modernização de espaços sacralizados: notas etnográficas de uma romaria na serra gaúcha". In: Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, 2012; 14 (17):105-132 3 De Boni, Luis Alberto. "O Catolicismo da Imigração: Do Triunfo à Crise". In: Dacanal, José Hildebrando (org.). Rio Grande do Sul: imigração e colonização. Mercado Aberto, 1980, pp. 234-255 4 Gardelin, Mário & Costa, Rovílio. Os Povoadores da Colônia Caxias. Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, 1992. 5 Moreira, Altamir. A Morte e o Além: Iconografia da pintura mural religiosa da região central do Rio Grande do Sul (século XX). Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006 6 Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Lei 12.478 de 08 de maio de 2006 7 “Santuário Antigo em Caravaggio é aberto após restauração”. Estação FM 895, 26/08/2012 8 Theodoro, José. "Restauradora do Santuário de Caravaggio diz que pinturas revelam sensibilidade do artista". Rede Sul de Rádio, 25/08/2012 9 “Missa celebra revitalização de antigo santuário de Caravaggio, em Farroupilha”. Pioneiro, 24/08/2012 10 “Restaurado Santuário de Caravaggio, em Farroupilha (RS)”. Gaudium Press Brasil, 31/08/2012 11 11 ICOMOS - Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. Carta de Veneza. II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, maio de 1964

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Antonio Cremonese “revisitado” Ricardo André Frantz

novembro de 2013 atualizado em agosto de 2014

Indo direto ao assunto, acabo de fazer mais uma constatação do descaso assombroso com que nossas autoridades civis e eclesiásticas tratam um patrimônio cultural que é reconhecidamente de todos e que elas teriam a obrigação legal e moral de preservar. O atentado desta vez perpetrou-se no preciosíssimo Antigo Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, em Farroupilha, também conhecido como Capela dos Ex-Votos, um dos mais sofisticados e ricos exemplares da arquitetura da colonização italiana no estado do Rio Grande do Sul. Construído no final do século XIX pelas primeiras comunidades de imigrantes instaladas entre a Linha Palmeiro e a Linha Pedro Salgado da antiga Colônia Caxias, até a construção de uma nova e mais ampla Matriz nos anos 60, o Santuário centralizou a devoção a Nossa Senhora de Caravaggio no estado, irradiando-a depois para outras paragens, sendo desde sua fundação o centro de populosa romaria todos os anos, acumulando enorme acervo de ex-votos. Esta pequena joia da arquitetura colonial é rara tanto pelo relevo sociocultural que adquiriu na região, quanto por sua incomum riqueza decorativa, no contexto da sociedade colonial, que se caracterizou em geral pela pobreza, simplicidade e rusticidade de suas criações artísticas.1 2 3 Faz parte dessa riqueza sua decoração em pintura, realizada em 1921 pelo italiano Antonio Cremonese (1890-1943), que deixou ornamentos, figuras e cenas em todas as paredes. Destacam-se no conjunto decorativo duas grandes cenas pintadas na capela-mor, representando milagres operados pela Padroeira.4 5 Pois bem, agora começa a piada e a tragédia do dia. O templo, declarado Patrimônio Histórico e Cultural do Estado pela Lei 12.478 de 8 de maio de 2006,6 recentemente passou por reformas, “revitalizando-se” as pinturas. Já deu pra entender? Quando ouço dizer que alguém vai “revitalizar” alguma coisa, em se tratando de restauro, me dá calafrios. Aqui aconteceu de novo. Li a notícia nos jornais, corri aos meus arquivos fotográficos, e dito e feito: a “revitalização” de fato “revitalizou” tudo, repintando inteiramente o original. Com o beneplácito das autoridades. E o produto foi recebido com entusiasmo, considerado um sucesso.7 8 9 10 De público, pode ser. Tecnicamente, um total fracasso, e eticamente, um ultraje e um crime.11 12

1 Schneider, Mônica & Santos, Marcia Maria Cappellano dos. “Relações de hospitalidade na Romaria ao Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio – Farroupilha/RS: a ótica do acolhedor”. In Revista Hospitalidade, 2013; X (1): 28-53 2 Lopes, José Rogério & Silva, Adimilson Renato da. "Santuário de Caravaggio e a modernização de espaços sacralizados: notas etnográficas de uma romaria na serra gaúcha". In: Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, 2012; 14 (17):105-132 3 De Boni, Luis Alberto. "O Catolicismo da Imigração: Do Triunfo à Crise". In: Dacanal, José Hildebrando (org.). Rio Grande do Sul: imigração e colonização. Mercado Aberto, 1980, pp. 234-255 4 Gardelin, Mário & Costa, Rovílio. Os Povoadores da Colônia Caxias. Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, 1992. 5 Moreira, Altamir. A Morte e o Além: Iconografia da pintura mural religiosa da região central do Rio Grande do Sul (século XX). Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006 6 Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Lei 12.478 de 08 de maio de 2006 7 “Santuário Antigo em Caravaggio é aberto após restauração”. Estação FM 895, 26/08/2012 8Theodoro, José. "Restauradora do Santuário de Caravaggio diz que pinturas revelam sensibilidade do artista". Rede Sul

de Rádio, 25/08/2012 9 “Missa celebra revitalização de antigo santuário de Caravaggio, em Farroupilha”. Pioneiro, 24/08/2012

10 “Restaurado Santuário de Caravaggio, em Farroupilha (RS)”. Gaudium Press Brasil, 31/08/2012

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ICOMOS - Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. Carta de Veneza. II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, maio de 1964

À esquerda: depois da revitalização, e à direita, a pintura original.

É inglório atuar na área do patrimônio no Brasil. Casos como este se repetem aos montes, e não parece haver sinais de que a coisa vai mudar tão cedo. Só no nosso estado, a repintura de estatuária barroca na Igreja Matriz de Triunfo, a reforma e repintura de estatuária de Pietro Stangherlin e Tarquinio Zambelli,13 14 outros artistas pioneiros da região italiana, a mutilação do púlpito da Catedral de Caxias do Sul, a substituição das janelas originais da Casa Canônica na mesma cidade, a extensa redecoração da Catedral de Nossa Senhora da Oliveira em Vacaria, que está em andamento agora mesmo entre um verdadeiro escândalo público,15 são páginas deploráveis de arbítrio e ignorância que se multiplicam no livro dos atropelos patrimoniais contemporâneos. Súplicas às autoridades usualmente caem no vazio, como sei por experiência própria, e vemos a toda hora mais pedaços de nossa memória serem apagados entre palmas e foguetório. Enquanto isso, vão-se perdendo documentos históricos e artísticos inestimáveis como as pinturas de Cremonese, um artista que trabalhou em diversas cidades na região colonial e foi estimado nas comunidades pelas suas criações sensíveis às demandas da devoção popular, sendo ele mesmo um artista ingênuo que falava a língua do povo.

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Ministério de Instrução Pública, Governo da Itália. Carta do Restauro. Circular nº 117 de 6 de abril de 1972 13

Damasceno, Athos. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Globo, 1971 14

Lazzari, Nátali Cristina. Escultura Religiosa na Colônia Caxias: um estudo sobre a obra de Pietro Stangherlin e Tarquinio Zambelli. TCC de Artes Visuais, orientadora: Paula Viviane Ramos. UCS, 2013 15 Finco, Fabiano. “Reforma na Catedral resulta em inquérito no Ministério Público de Vacaria”. Pioneiro, 06/05/2014

Essa sua verdade não pode ser apagada em “revitalizações”, pois as revitalizações pretendem embelezar, e não se manterem fiéis ao original. Em termos de conservação de patrimônio histórico, ali está o grande erro das revitalizações, todas elas, sem exceção. Os testemunhos pictóricos e arquiteturais do passado são documentos históricos, assim como é um texto num raro pergaminho antigo. Faria sentido darmos uma “embelezada” na história que ele narra, tirando algumas passagens que achamos de mau gosto e antiquadas, e colocando outras em seu lugar ao nosso próprio gosto, com o critério único da fantasia, e não da ciência da restauração, mas deixando lá embaixo a assinatura de outro artista? Quem vier depois e observar a pintura, sem saber que ela foi “revitalizada”, pensará que o seu estilo foi aquele que vê. Mas não foi, como as fotos que trago comprovam. Isso, para quem não se deu conta ainda, é uma fraude, e em vários níveis: na história, na arte, na educação, na lei e na ciência. Ah, a propósito, a “repintora” teve o cuidado de repintar a assinatura do artista também. Foi a cereja do bolo, sinceramente... Sendo fraudes, é inadmissível que tais intervenções ocorram. E é inadmissível também porque vai contra a lei, se sabermos que vai contra o simples bom senso não bastar. Quando um determinado bem é reconhecido e declarado oficialmente como patrimônio histórico, passa a ser regido por legislação específica, que orienta como devem ser feitas as intervenções nos bens protegidos. Neste caso, as orientações técnicas atuais foram completamente ignoradas.

Milagre de N. S. de Caravaggio. Acima, depois da intervenção, e abaixo, a pintura original

Os testemunhos devem ser preservados em sua mais completa autenticidade, é indispensável à correta leitura e ao entendimento do significado da obra, e precisam ser restaurados, quando necessário, por quem entenda do assunto. O restauro, diferente do que foi feito aqui, é um processo fundado no respeito pela obra original, em que suas características distintivas são mantidas exatamente como são para poderem dizer o que têm a dizer, cumprindo seu papel de documento autêntico e legível, sem intervenções inteiramente arbitrárias como esta, que falsificam o que alegam preservar.16 17 Diz o Documento de Nara sobre a Autenticidade, publicado sob a chancela do ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios):

“É da maior importância e urgência que, dentro de cada cultura, seja estabelecido o reconhecimento da natureza específica dos seus valores culturais, bem como da credibilidade e da veracidade relativas às fontes de informação [...] É uma absoluta necessidade o aumento da consciência entre o público desta dimensão fundamental do património para se conseguir chegar a medidas concretas para a salvaguarda dos vestígios do passado. Isto significa o desenvolvimento de maior compreensão dos valores representados pelas próprias propriedades culturais, assim como o desenvolvimento de maior respeito pelo papel que tais monumentos e sítios representam na sociedade contemporânea.”. 18

Os Princípios para Conservação de Estruturas Históricas de Madeira, do ICOMOS, que se aplicam igualmente aqui, esclarecem o ponto:

“O objetivo básico da preservação e da conservação é manter a autenticidade e a integridade histórica do patrimônio cultural. Cada intervenção, portanto, deve estar baseada em estudos e avaliações adequados. Os problemas devem ser solucionados de acordo com as condições e necessidades mais relevantes, respeitando-se, devidamente, os valores estéticos e históricos e a integridade física da estrutura ou sítio histórico”. 19

A revitalização do Santuário de Caravaggio significou uma repintura completa dos originais. Toda a textura das pinturas foi alterada, inúmeros detalhes foram acrescentados, outros suprimidos, as cores mudaram seus tons, os volumes e contornos já são outros. Na verdade, estamos diante de uma cópia, e muito mal feita, pois do original só restou, efetivamente, a composição geral. Todo o efeito é o de uma obra nova, embora se pareça à que lhe deu origem. Significativamente, uma das manchetes que noticiou a reinauguração proclamou: Velho Santuário está novo.20 Não poderia ter sido mais exata. As autoridades competentes e proprietários legais deviam aproveitar para restaurarem é a seriedade no tratamento de bens históricos, protegidos pelo próprio poder público, como este foi, a fim de que suas características sejam conhecidas como elas são e possam desfrutadas integralmente por todos, os de agora e os do futuro, e possam ser estudadas pelos especialistas sem eles terem de abrir caminho entre essa selva de especulações pictóricas caprichosas e sem fundamento científico nenhum que agora vemos apresentadas como se fossem a recuperação das verdadeiras intenções do autor! Isso não é preservar a História, nem é conhecer o estilo verdadeiro ou entender a estatura e o contexto de um artista que participou da fundação de uma cultura toda original na serra gaúcha. Isso é um telefone-sem-fio, é uma má tradução e uma paráfrase em arremedos de estilo que não pode absolutamente proporcionar educação de qualidade. Na verdade, estudar arte e história a partir de testemunhos adulterados em tamanha extensão é aprender

16 ICOMOS - Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. Carta de Veneza. II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, maio de 1964. 17

ICOMOS - Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. Carta sobre o Patrimônio Vernacular Edificado. 12ª Assembléia Geral do ICOMOS, México, outubro de 1999 18

ICOMOS - Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. Documento de Nara sobre a Autenticidade, 1994 19

ICOMOS - Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. Princípios para Conservação de Estruturas Históricas de Madeira. 12ª Assembléia Geral do ICOMOS; México, outubro de 1999. 20 Machado, Gabriela, “Velho Santuário está novo”. Pioneiro, 27/08/2012

coisas falsas que levam a conclusões enganosas e disparates. Isso não é educar, isso não é documentar os fatos corretamente, é criar uma realidade artificial. Esse conhecimento desvirtuado acaba se multiplicando, cria tradição e passa a ser uma História mais verdadeira do que a verdade autêntica que fizemos questão de esconder sobre camadas de pintura “criativa”, mesmo que isso possa ter sido feito na melhor das boas intenções e na maior das ingenuidades. Cabe notar que, segundo notícia veiculada no Farroupilha online em 23/05/2008, a “restauradora”, Marinês Gallon, se apresentou estranhamente como “terapeuta”, formada pela Universidade de São Paulo. Mas teria experiência de 30 anos com restauro propriamente dito.21 Ok... eu também não sou restaurador com preparo formal, mas participei de uma equipe que restaurou o Salão Nobre do Solar dos Câmara em Porto Alegre, e depois trabalhei com conservação de acervos por muitos anos na chefia do Núcleo de Acervo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em íntimo contato diário com restauradores bem credenciados e mesmo supervisionando muitos aspectos técnicos dos processos de documentação e restauro de obras do museu. Mesmo assim, eu não estaria qualificado para prestar sem supervisão serviços profissionais práticos de restauro. Ela, no entanto, diz que tem as capacidades e conhecimentos necessários, que lhe valeram até contratos para intervenções em várias igrejas, apesar de seu nome praticamente só aparecer em buscas na internet em associação com as obras de Farroupilha. E é sobre o produto deste alegado preparo que eu lanço minhas críticas. Agora o estrago está feito. Sabe lá o que restou do original por baixo de tanta boa intenção. Um dia talvez ele possa ser resgatado, se sobrou qualquer coisa e tudo não foi raspado antes. Procedimentos como este são formalmente condenados pelo consenso internacional de especialistas no campo do restauro. Até a posição oficial do Vaticano sobre seu patrimônio artístico e histórico, expressa em sua Carta Circular 121/90/20 de 1992,22 concorda comigo, embora muitas e muitas vezes o que se veja na prática seja isso. Tentei localizar a restauradora para obter esclarecimentos, mas o contato que encontrei não deu retorno. Duvido que este protesto resulte em alguma coisa, assim como outros que já fiz não deram em nada. Sequer a Arquidiocese, de quem se esperaria um acolhimento fraterno de ovelhas desgarradas como eu, deu ouvidos às minhas queixas. E o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado, onde está, que não dá um basta nessa ciranda desenfreada de amadorismo tão pernicioso aos interesses públicos? Enquanto isso, nosso governo veta a regulamentação da profissão de conservador/restaurador porque o livre exercício da profissão “não representa risco de dano à sociedade”.23 Que meigos.... Aqui se prova que representa sim. Para completar, neste exato momento outras obras do mesmo Cremonese estão em risco de serem repintadas na Catedral de Vacaria, que é também imóvel tombado. Suspeita-se que o novo crime já tenha sido perpetrado, mas o caso está rodeado de grande polêmica e ninguém sabe exatamente o que se passa. Lamentável tratamento que recebe um patrimônio que pertence a todos e não apenas a certos grupos. A empresa responsável pelas obras, ARS Arte Sacra Ltda., tem um longo currículo de realizar intervenções semelhantes em outros templos históricos do estado. E ninguém faz nada. Quer dizer, é pior, todos parecem achar lindo e continuam contratando a dita empresa, e o IPHAE, sentado, só olhando tudo acontecer e, com sua omissão, aprovando o escândalo... No século XXII não haverá um único monumento do estado em suas condições originais, pois temos esse hábito de reescrever a história ao nosso bel prazer. Deixo o desabafo, e permanece o sabor de tragicomédia nessa insidiosa desfiguração cotidiana que nossos bens patrimoniais mais preciosos vêm enfrentando, mas que vem sendo recebida pelas pessoas com a maior naturalidade, e muito provavelmente sequer está sendo percebida em sua natureza e alcance. Depois, quando a gente fica com vontade de sair dando voadoras nas autoridades, ninguém entende a razão da brutalidade e os vândalos somos nós...

21 "Ex-votos ganham capela no Santuário". O Farroupilha online, 23/05/2008 22

Vaticano. Carta Circular 121/90/20 de 15 de outubro de 1992 23

Executivo veta projeto de regulamentação da profissão de conservador/restaurador”. Associação Brasileira de Encadernação e Restauro, 19/09/2013

Milagre de Nossa Senhora de Caravaggio, antes e depois do "restauro". Note-se que a assinatura do artista

também foi repintada.

Milagre de Nossa Senhora de Caravaggio, antes e depois do "restauro”

O autor agradece a Lorete Mattos, conservadora/restauradora de livros e documentos da Biblioteca Central da UFRGS e presidente da ACOR-RS, por um comentário oportuno sobre a regulamentação da profissão.