Wladimir Antonio da Costa Garcia

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Wladimir Antonio da Costa Garcia o arrowiETj» e © b a\ i il a modernidade em Murilo Mendes Dissertação de Mestrado Departamento de Língua e Literatura Vernácula Pós-Graduação em Letras-Literatura Brasileira Orientador: Prof. Dr. Raúl Antelo Florianópolis 1990

Transcript of Wladimir Antonio da Costa Garcia

Wladimir Antonio da Costa Garcia

o a r r o w i E T j » e © b a\ i il

a modernidade em M u ri lo Mendes

Dissertação de MestradoDepartamento de Língua e Literatura Vernácula Pós-Graduação em Letras-Literatura Brasileira

Orientador: Prof. Dr. Raúl Antelo

Florianópolis1990

0 COMETA E O BAILARINO: a modernidade em Murilo Mendes

WLADIMIR ANTONIO DA COSTA GARCIA

Esta dissertação foi julgada adequada para obtenção do título de

MESTRE EM LETRAS

Especialidade Literatura Brasileira - e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação

. L f iS C. C . C — > - (vProf^ Dr§ Maria Lúcia de Barros Camargo Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Literatura Brasileira

r i- ( M a A

Prof. Dr. Raúl AnteloOrientador

BANCA EXAMINADORA

^ ~ à Ç . .C .\ C J / ’_____________

Pròf-i' Dr^ Maria Lúcia de Barros Camargo

memória de Murilo Mendes

A G R A D E C I M E N T O S

a Raúl Antelo, pela sua paciência e generosidade; pela sua grar^

deza,enfim;

a Alfeu, colega e interlocutor das primeiras horas;

a Ademir, colega e interlocutor das últimas horas;

a Marli, interlocutora-constante.

Agradecimento especial, a João e Ennovy, sempre presentes.

R E S U M O

Este estudo objetiva analisar a modernidade na obra e no

pensamento de Murilo Mendes, suas peculiaridades e ressonâncias,

desde uma visada "intra" e intertextual. Ab:orda, neste sentido,

em três momentos encadeados pelo referido desejo, o espaço, o tem

po e a linguagem, suas articulações em obras fundamentais, apon­

tando para uma teoria do texto muriliano.

R E S U M E

This study objectifies to analyse the modernity in the

work and in the thought of Murilo Mendes, their peculiarities and

resonances, since a "intra" and intertextual sight. It approa­

ches, in this sense, three moments linked with the refered desi^

re, the space, the time and the language, their articulations in

fundamental works, pointing at a "muriliano" text theory.

S U M Á R I O

Introdução ...................................................

I. 0 Poético e o Sagrado: o bailarino caracterizando uma"antropofagia sincrônica" ................. . .

A refuncionalização do catolicismo; o retorno do mesmo produzindo diferença; a religiosidade oblíqua constrói o moderno; a procura do estético na religião (atração e repulsão); a sacralização do poético (o sagrado e o prci fano); Ismael Nery; o trabalho com tensões; a ânsia un_i ficadora (Dionisos e Cristianismo; local e cosmopolita; tradição e modernidade); o poeta é um bailarino; o bal­let sincrônico e extraterritorial; as metástases muri- lianas; o poeta-bailarino como ator social; a crise co­mo valor.

II. Tempo e Memória: o cometa ................................A ruptura com os conceitos clássicos de espaço e tempo; a relativização do diacrônico enquanto evolução; a tra­dição lida em saltos; a é(sté)tica do movimento - o co­meta; a revisão de sua herança (os companheiros de dari ça); a memória seletiva e dialógica. —

III. Mundo: texto. Poeta: texto de textos ...................A crise do indivíduo, do discursivo e do lírico; o si­lêncio, o branco e a dança; o enfrentamento do enigma pela linguagem; Sintaxe-Convergência; a idéia de "Tex­to"; a realidade do texto; o poeta como texto de tex­tos; o universo-texto; a auto-referencialidade; a via­gem sobre a linguagem; o espetáculo ideográfico de uma crise; a criação de linguagens; o projeto construtivo; as rachaduras do concreto; a produção da crise; a per­manência.

IV. Anexos: Murilo Mendes no "Letras e Artes" (críticas, crônicas e relatos) .......................................

I N T R O D U Ç Ã O

No início de tudo, o texto. Frente ao texto, a leitura. Da

leitura à escritura: a alegoria da leitura, o texto do texto. E

aqui, uma introdução à alegoria da leitura do texto (meta-alego-

ria ?). 0 mais interno possível, a dobra. Talvez este o nosso tra­

balho: internalizar constantemente o texto, jogar com ele até a

sua ausência, o futuro.

Talvez o resultado deste processo não seja tão conclusivo.

0 texto resultante vinga-se contra o ponto final: é a procura inces;

sante da reflexão, da desconfiança frente ao objeto, e não a perse­

guição — consciente — a objetos ideais. Desconfiamos, assim, do nos

so próprio texto.

Fonte para Drummond ("bebo em Murilo"); para Manuel Bandeira,

"permanentemente em pânico e em flor"; para João Cabral "sua poesia

sempre me foi mestre"; para Jorge Lima, "o maior distribuidor de p£

esia que jamais conheci": Murilo Mendes. Murilo para Murilo Mendes:

"dinâmico na inércia, inerte do dinamismo". Setenta e quatro anos

de vida, quinze livros de poesia, quatro de prosa, nove inéditos,

crônicas, críticas, apresentações, resenhas, fragmentos. Dois li­

vros em francês, oito em italiano, esparsos em espanhol. Uma obra

imensurável que se abre para ser refletida (re-escrita?).

0 ato de escolha do autor já é um ato crítico. Escolher Mu­

rilo Mendes é escolher um discurso crítico, nutritivo. Um texto com

valor estrutural, capaz de provocar outras escrituras. Um texto ex­

citante, na medida que provoca outros textos nascidos do desejo.Des

sa forma, o sujeito da escritura aproxima-se do sujeito amoroso e

2

do sujeito místico. É essa afetividade que alimenta a teimosia do

projeto. Não encontramos outra palavra para definir a vontade de

produzir discurso acadêmico num contexto escasso e desmotivante, es_

te falar onde não se é chamado. 0 trabalho do leitor: definir ■códiL

gos ao sobrecodificar. A leitura produz, assim, a aventura da es­

critura. Em Murilo, insistimos, este processo é revitalizado; é

instigado. Somos tentados a des-co-brir o texto, cobrindo-o e a

cobri-lo, descobrindo-o. Valéry: a ilusão de descobrir o texto nos

anima. Talvez, com isso, corramos o risco de abstrações, até a sua

exasperação: o delírio. Contudo, inversamente, este obscurecimento

pode resultar num valor, num alargamento das nossas possibilidades.

Por isso mesmo, corremos o risco.

É óbvio que nos debruçando sobre o texto imprimimos a nos­

sa impressão. Toda interpretação é, de alguma forma, traição. Toda

leitura desloca; ata e desata. Toda leitura é uma produção. A nos­

sa: ler a modernidade singular de Murilo Mendes.

Talvez, muitas vezes, seja mesmo preciso esquecer de ler:

algo pode surgir do esquecimento.

Poeta esquivo, irredutível a qualquer rótulo, Murilo é mo­

derno no que a palavra tem de qualificação, sem pretensões em rel£

ção ao novo, já que tal conceito, há muito, perdeu sua validade.

Murilo é de um tempo que em que se assumiu a consciência da apro­

priação, da devoração discursiva. Neste sentido, visualizamos em

Murilo Mendes uma linha de modernidade que não rompe todos os pon­

tos com a tradição, antes a relê, mediante uma consciência crítica

e presentificadora.

Metodologicamente falando: não elegemos um texto ou uma o-

bra, na medida que lidamos com um processo que aponta para a confi^

3

guração do pensamento muriliano. Além do que, em Murilo Mendes,

um caso de extrema coerência em que pese os paradoxos assumidos,

um texto não cabe em si, dialogando constantemente com outros. Is

to caracteriza uma dinâmica "intra" e "inter"-textual.

Aliás, se é lícito pensarmos numa poética muriliana, esta

é marcada pelo signo do movimento, da transitoriedade, da supera­

ção das fronteiras espaciais e temporais. Contudo, giramos em to£

no de textos básicos: alguns poemas dos anos 30 e 40, os artigos

publicados no suplemento "Letras e Artes" (que resgatamos, em ane

xo), os aforismas de o Discípulo de Emaús (1945) e os poemas de

Convergência (1970).

Perpassado pelo desejo da procura de uma linha de moder­

nidade, apontando, desta forma, para a explicitação de uma teoria

do texto em Murilo Mendes, o projeto estrutural da tese constitui

se desta breve introdução seguida de três ensaios encadeados e iri

ternamente ligados pelo referido desejo. Os temas, enquanto racio­

cínio que retorna sobre si mesmo, envolvem, pela ordem, o espaço,

o tempo e a linguagem.

Elegemos dois signos para discutir o processo poético mu­

riliano, seu projeto (est)ético: o bailarino e o cometa. Indaga­

mos o que eles carregam de ruptura e transitoriedade. Inevitável,

neste sentido, pensarmos num eixo sincrônico, contextuai, estrutij

ral, interno, convergindo num eixo diacrônico, intertextual, ex­

terno, gerando tensão no tecido poético. Numa produtiva deforma­

ção do conceito, o espaço e o tempo. Ou, como veremos, o empenho

por uma poética sincrônica. 0 cometa e o bailarino: signos da mo­

dernidade muriliana.

4

No primeiro capítulo, procuramos caracterizar o poeta co­

mo um bailarino movimentando-se pelo espaço literário e social.

Mais que isto, o poeta criando o seu espaço. Debatemo-nos com aqui.

lo que, via de regra, procura-se diluir, esquecer ou caricaturi-

zar em Murilo: sua relação com a religião. Tomando como base tex­

tos publicados nos suplementos "Autores e Livros" e, principalmen­

te, "Letras e Artes" (quase cem artigos) dos anos 40, sincroniza­

dos com os aforismas de O Discípulo de Emaús, podemos acompanhar

as reflexões murilianas à luz de algumas teorias da modernidade.

Emerge, daí, uma visão que aponta para o catolicismo recontextuali^

zado, crítico, atormentado, cético frente às instituições, como um

mesmo que retorna produzindo diferenças.

Tal leitura favorece uma interpenetração entre o sagrado e

o profano, entre a religião e a arte. Murilo Mendes trabalha com

tensões (Dionisos e fé cristã; local e cosmopolita; tradição e mo­

dernidade), como num barroco redimensionado, num ballet barroco e

sincrônico que possibilita a produção de uma modernidade plástica

e singular. Pensamos numa ação extraterritorial que costura um es­

paço cósmico, universal, aproximando autores enquanto textos. En­

saiamos, neste ponto, uma reflexão sobre poesia e dança, não no

sentido de um ineditismo interdisciplinar, mas vendo dança na poe­

sia como, comumente, vê-se poesia na dança.

Interessante que ao procurar o outro, ao atuar no outro,

Murilo Mendes engendra um retorno do estético ao social extremamen

mente problematizador. Num tempo de crise da identidade, de um su­

jeito agônico, o poeta-crítico deslumbra em tal crise um valor,

trabalhando-o.

5

No capítulo dois, partindo de uma obsessão muriliana de

raízes cristãs, que passa pelo olhar de Ismael Nery, qual seja a

abstração do espaço e do tempo, tomamos este último — o tempo — cc)

mo problema, dialetizado com a memória na figura do cometa.

0 cometa que, como se sabe, é uma revelação poética para

Murilo Mendes, mostra-se como um signo plurívoco: ao atravessar e-

ras na velocidade-luz apresenta o passado ao olhar construtor ("ar­

mado") do presente. Descontrói-se, assim, a concepção de uma suces­

são contínua, pré-determinante, possibilitando a leitura da tradi­

ção por saltos. Se fosse possível, uma história pós-determinante,na

qual o presente reorganiza o passado.

Ao romper com o conceito clássico de tempo, Murilo Mendes

relativiza o diacrônico enquanto evolução, aproximando-se de uma cori

cepção de tempo bergsoniana. Empreende, a partir daí, a revisão de

sua herança mediante uma memória seletiva a presentificadora.

No terceiro e último capítulo, que se quer conclusivo, em­

bora haja, nitidamente, uma resistência quanto a isto (o texto ten­

de a retomar-se), abordamos um Murilo maduríssimo que procura ilurrú

nar suas próprias concepções seminais. Com efeito, o Murilo Mendes

de Convergência e da prosa poética agudiza a viagem pela linguagem,

textualizando a si e ao mundo.

A sua atenção sobre a linguagem faz-se presente desde a ação

do poeta-bailarino, que cria o seu espaço mítico, passando pela a-

ção transistórica do cometa, que viabiliza um dinâmico diálogo in-

tertextual, até o processo substantivador e lúdico da última poe­

sia. Não se quer, com isto, caracterizar uma trajetória evolutiva,

mas uma poética convergente que prima pela coerência.

Desde uma linguagem mallarmaica e frente a uma crise do in­

6

divíduo e do lírico que se radicalizam, constatamos que seus últi­

mos textos apontam para o enfrentamento do enigma pela linguagem.

Explora, a partir desta premissa, as virtualidades da mesma até a

sua ausência construtiva. Discute-se o silêncio, o branco e a dan­

ça.

Re-vendo a concepção de texto barthesiana, inquirimos um

Murilo Mendes que enfrenta criticamente seus próprios meios, refo_r

çando uma forte guinada da literatura contemporânea. 0 poeta estr£

la — enquanto ator — o espetáculo ideográfico de uma crise (Valeé

ry sempre presente).

Testamos, ainda, o diálogo muriliano com um projeto constru

tivista e com a Poesia Concreta. Talvez ele instale-se nas rachadu­

ras desta, desiludido com a idéia de progresso (no que denuncia aj>

pectos conservadores da modernização), com os grandes relatos da

contemporaneidade e com a cultura de massa. Sondamos, portanto, o

pós na modernidade de Murilo.

Seria óbvio demais, apontando com o dedo para a própria imjj

gem, dizermos que o poeta permanece — ainda que outro — nos seus

privilegiados devoradores.

O P O É T I C O E (Dl S /» G BR flft DD ffl) :

o bailarino caracterizando uma "antropofagia sincrônica".

"0 tempo é uma dimensão do espírito, o espaço é uma dimensão do corpo". Murilo Mendes, 0 Discípulo de Emaús.

8

Ao inquirirmos alguns fatos biográficos (grafia de vida)

de Murilo Mendes, transformados e operacionalizados aqui como fa­

tos literários, discursivos, constataremos uma tendência ao trans­

cendente, à linguagem. Do cometa de Halley em 1910, à leitura dos

amigos e do abstrato nos anos 50 e 60, passando pelo ballet de Njl

jinski em 1917, pelo mito Ismael Nery, pela "aparição" de Mozart,

no fundo gris com que dialoga, está o vínculo a um catolicismo e

interesse místico que precisam, por sua vez, ser vistos no teci­

do multicor de sua escritura, de seu projeto de vida, enquanto te.x

to. Longe de ser um mero limitador do pensamento muriliano, a rel L

gião, inversamente, pode ser tomada como um elemento articulador, e

lemento estratégico até, enquanto abertura para a humanidade, para

o cósmico e para os grandes deslocamentos que sua obra sempre pro­

pôs.

Se pensarmos na década de 30 e na pobre literatura neoposi^

tivista, fundada no liberalismo e nas utopias das esquerdas, nos

ativismos políticos, discursos estes conservadores, os quais redjj

ziam a literatura ao espaço de um otimismo dilacerado nas bases p£

las guerras produzidas justamente pelos grandes Estados Nacionais,

o niilismo, o pânico e o desvio resultantes da operação muriliana

emergem, no mínimo , modernos.

Seria preciso remetermo-nos aos textos do Murilo de então,

que explodem em imagens inusitadas enformando uma nova temática.

Há o risco de uma leitura apressada de tais textos reduzir uma po^

tura singular e operações discursivas a meros efeitos tradicionais

ou surrealistas.

Lemos aqui Murilo no interior de sua própria escritura, ú-

nico espaço possível para o escritor1 e seu texto como convergên­

cia de experiência, memória e sentido, este sempre reconstruído

9

na medida que leitura é montagem, vale dizer, o ato de escrever é,

sobretudo, leitura. Para lembrar Roland Barthes, "a leitura é ver­

dadeiramente uma produção".2

Tomando como ponto de partida esta premissa, procuraremos

resgatar alguns textos, produtos de análises murilianas dos anos

AO, especificamente no espaço transitório (e sequer transistórico)

do Suplemento Literário "Letras e Artes" do jornal A Manhã . Em­

presa fascinante na medida que possibilita o jogo, a montagem de

um passado corrompido pelo olhar do presente, o qual é determinado

pelo futuro. Murilo escrevia-lia sobre tudo e escrevia-lia todos.

Interessa-nos, portanto, o jornal como campo de debate, de entre-

cruzamentos discursivos e, principalmente, como veículo para a

transmissão das idéias murilianas sobre arte e religião. Arte na

religião, religião na arte.

Partindo da hipótese de que o mesmo pode produzir a dife­

rença quando recontextualizado e refuncionalizado — para lembrar

Jan Mukarovsky — 3, constatamos na base do incorfomismo moderno de

Murilo Mendes um catolicismo que vai ser definido, quer nos seus

textos críticos, quer nos seus poemas, como um catolicismo não dog

mático, universalista e ecumênico.

Com efeito, Murilo opera a deformação de certos valores

estético-religiosos mediante a tensão entre signos e fatos soci­

ais. Ele parece efetuar isto, especialmente, na série "Recordação

de Ismael Nery", dezessete artigos publicados no "Letras e Ar­

tes", em 19A8, série que, deixando de lado o teor miti-

ficante, a configuração heróica de Nery (afinal legítima, se acei

tarmos que tudo pode ser ficção), constitui-se num fértil documen­

to sobre a discussão aqui estabelecida. Diz Murilo: "A época em

que ele viveu era muito desfavorável ao catolicismo no Brasil ...

os intelectuais eram na grande maioria agnósticos, comunistas ou

10

comunizantes... a religião aparecia-nos como qualquer coisa de

obsoleto, definitivamente ultrapassada... nós éramos delirantemen 4

te modernos" .

Vale, aqui, procurar interlocutores para dialetizar tal

argumento. Emerge, nesse sentido, a crise de valores engendrada

por um capitalismo arruinado e a procura de novas fórmulas sociais.

Sendo assim, o privilégio do espiritual, mais do que estabelec^

mento de um pólo antitético, reafirma uma transgressão quer ao

conservadorismo liberal burguês quer ao ativismo partidário. "Por

que não acreditar em Deus, quando se acredita em regimes políti-5

cos?" , argumenta Nery naquilo que chamou Murilo seu "Testamento

Espiritual", em 1933. Sobre tal crise manifesta-se até mesmo um

crítico racionalista como Antônio Cândido, que, na época, escre­

vendo sobre o surrealismo, aponta-o, de uma forma um tanto dete£

minista, como sintoma de uma crise, como "um dos momentos agudos

da crise da consciência burguesa, desvairada entre o divórcio ca­

da vez mais profundo entre as ideologias e sua significação so-6

ciai" .

Opção da crise ou procura de uma atitude estética e ética

libertadora? Pelo que se conhece do desenvolvimento ulterior da

obra muriliana, um pouco de cada, mas não só. Fundamentalmente,

índice e fator de uma postura indagadora perante a arte, o homem

e a sociedade. Dos contatos com Nery, reconhece Murilo, advém uma

consciência crítica contra o capitalismo e contra os grandes sis­

temas autoritários. Antidogmatismo de base, o cristianismo para

Murilo surge como um discurso capaz de relativizar o tempo, com

suas relações sintagmáticas, e o espaço, com suas fronteiras." Foi

mesmo através da observação de Ismael que comecei a perceber a7

desumanidade do sistema capitalista" . Isto rendeu inúmeros poe­

mas nas décadas de 30 e 40, ainda contaminados pela atmosfera sur

11

realista, onde explodem imagens frente ao processo de desumanização

social, com fortes nuâncias apocalípticas, utópicas e dramáticas co­

mo veremos pela abordagem de alguns destes textos. Contudo, o olhar

de Murilo via Nery volta-se até mesmo contra os socialistas que,

segundo o teólogo, só defendiam a questão social, a qual estaria deri

tro da questão humana. Sobre a palavra participante, refletia Nery,

com o aval do articulista Murilo, ela estaria deturpada no seu uso

eminentemente político, quando a participação mais significativa se­

ria espiritual e "no" outro. "A participação no outro é um apelo da8

própria natureza" . Otávio Paz definiria mais tarde: "Poema: busca9

do tu" . Configura-se, assim, uma ação dramática existencial e, por

que não, social da figura de Nery, modelizado por Murilo como protó­

tipo do artista para nosso tempo, artista autônomo, "um grande ator

cristão com a consciência da suas múltiplas qualidades sabe o quanto10

é limitado pelas leis humanas — muito mais do que pelas divinas"

São essas leis humanas que, sincronicamente analisadas, vão

ser enfrentadas por Murilo. Num panorama modernista que transita e£

tre o heroísmo de 20 para o engajamento de 30, produzindo atores-

literatos que migram em massa para formas miméticas de arte — on­

de o grande protagonista na poesia brasileira parece ser Drummond — ,

Murilo entra num processo inverso de metamorfose: ele parte dos po£

mas-paródia de História do Brasil (que mais tarde ele vai excluir

de Poesias (1925-1955)) para elaborar um humanismo singularmente

cristão, contaminado pela filosofia ismaeliana (que ele chamaria

"Essencialismo") e pelas vanguardas européias. Neste sentido Murilo

sempre elegeu um espírito aberto para as estratégias de vanguarda,

ainda que apoiado numa forte base clássica. Isto, certamente, era

um enfrentamento corajoso, na medida que, desta forma, passa a red£

finir o sistema literário e interferir nele, reorganizando a bibli£

teca.

12

Murilo afirma que em torno de Nery, desde 1922, reuniram-

se artistas de áreas diversas, incluindo um antiquário, médicos

e arquitetos numa rede pluridiscursiva e interdisciplinar, que,

na sua maioria, não alcançou maior notoriedade. Vale citar Mário

Pedrosa, Jorge Burlamaqui, Antônio Bento, Aníbal Machado, Dante

Milano, entre outros, que, aparentemente (desde a ótica românti­

ca muriliana) não se ligaram a movimento nenhum, apesar do grupo

ter sido batizado, primitivamente, de Santo Graal. "Éramos contra

a publicidade e a industrialização do talento... A nota predomi-11

nante do grupo era, sem dúvida, o inconformismo" . Isto está de

acordo com a teoria do "franco atirador" que Murilo constrói ao

longo de sua vida, auto-imagem insistente, confirma a coerência

muriliana na diversidade. Sem dúvida, procurava-se em 20, sobretij

do, ir contra a esterilidade da arte e religião, o que, aliás, e-

ra comum à maioria dos modernos. A surpresa ficava por conta de

Nery: "inútil acrescentar que éramos todos anticlericais, exceto12

o avançado catolicismo de Ismael Nery" . Constatamos, neste sen­

tido, o que pensávamos no início: a refuncionalização do catoli­

cismo em 30 constitui-se num antivalor modernista. Frente aos

"preconceitos de ordem histórica", esse antivalor, adicionado às

suas equações poéticas ganha em modernidade. Ao invés da unilate-

ralidade das fórmulas, "deve-se considerar a multiplicidade de fa 13

tores" . Sem dúvida, o múltiplo é desejado por Murilo como vida

e arte.

Em outro lugar, o poeta crítico afirma, num extremo liri_s

mo,pela humildade intelectual e profundidade teórica,que Ismael14

Nery o "ensinou a ver" . Sobretudo, parece-nos que Murilo con­

segue racionalizar atitudes em Nery que fogem ao plano meramente

místico, para adentrar no especificamente literário. Em 30, ser

católico antidogmático era operacionalizar o escândalo e o choque

13

como estratégias alternativas e heterodoxas; criar um sistema a-

berto na radicalidade; engendrar o paradoxo como figura da moder^

nidade. Neste sentido, emerge certa tradição letrada, desvincu­

lada da dicotomia local e cosmopolita, como instrumento de cons-15

trução, de produção de novas formas (diferente de "fôrma" , di­

ria Murilo), de estabelecimento do antigo no novo e do novo no an

tigo. Murilo particulariza, enfatizando isto na obra-pessoa de Ne

ry: "Aproveitava todas as técnicas a seu alcance, antigas e mode_r

nas" ou, ainda, "Ninguém mais novo do que ele, ninguém mais anti- 16

go"

Neste horizonte, encontra-se a leitura da bíblia, inter-

texto na poesia muriliana desde Tempo e Eternidade, passando por

O Discípulo de Emaús,onde alcança densa estetização, até alguns

textos radicais de Convergência. Retomar a tradição é ensaiar o

salto histórico, reaproximar pólos e eras, Alfa e Ômega, biblica­

mente. Queremos explorar tal idéia em outra discussão mais centrji

da em textos ficcionais, mas, desde já, parece-nos vital perceber

que em Murilo estabelece-se uma linha de modernidade que, partin­

do da intensa relativização de base espiritual, cuja matriz é o

Cristo, revelado a partir da leitura e da experiência em Ismael

Nery, alcança altos vôos através da história de sua obra ao tra­

balhar com um conceito de texto que se deixa ler como palimpsesto,

fragmentação e intertexto. Murilo, com efeito, não admite a esta-

tização do criador, na medida que, investindo numa herança simbo-

lista, visualiza o homem cósmico, integrado num universo de real^

zações metamorfoseadas em texto. Convence-nos da mobilidade como

base da representação, atualizando autores e livros: "a localiza­

ção de um homem num instante de sua vida contraria uma das condi-17ções da própria vida que é o movimento" . Daí a força da série

"Recordação de Ismael Nery" enquanto espaço de conhecimento de

14

uma época, com fortes ressonâncias no atual quadro da literatu­

ra brasileira, levando-nos, por isso mesmo, a reconsiderar tais

textos.

Murilo Mendes em 40 está, efetivamente, frente ao próprio

enigma da modernidade, chegando mesmo a buscar em Baudelaire uma

conceituação. Murilo defende uma modernidade encadeada através

dos séculos, entendida como um processo. Em Ismael Nery, tal pro

cesso consistiria em captar o essencial através de sucessivas mu­

danças, sendo a observação e fixação destas mudanças o próprio18

fenômeno da modernidade . A palavra modernismo restringia a área

de um fenômeno, inaugurando, por outro lado, a modernidade entre

nós. Nesta linha, o passado emerge no presente, que destaca a mo­

dernidade de artistas do passado. Graças a este processo aberto,

surgem, ao longo da obra muriliana, referências inúmeras a moder­

nos primitivos, equação perfeitamente viável dentro de um sistema

que conspira contra o espaço-tempo, apontando para a própria ins­

tabilidade do homem, das classes e do universo.

Sendo assim, o evangelho aparece como surpresa numa época

"muito desfavorável ao catolicismo". Para Ismael-Murilo, o evange19

lho "não era.um livro velho e superado, mas fonte de vida" . Fon

te de arte e filosofia, poderíamos acrescentar. Com isso, Murilo

lança um olhar novo sobre a tradição católica, articulando um ti­

po de ação social crítica e revitalizante: "A maioria dos fiéis a

presenta a tradição como um símbolo inerte, incapaz de renovação

e participação às coisas vivas. Ismael mostrou-nos a fecundidade

da tradição católica e sua plasticidade dentro de certos princípi^20

os rígidos" . Puro mecanismo de apropriação, reflete, assim, um

cristianismo ativo que, direcionado em busca do essencial, deci­

frasse o sentido do universo e retomasse o fio do cotidiano. Des­

ta forma, trabalhando com categorias subjetivas e estéticas, o

15

poeta não deixa de ser, contudo, um ser radicalmente social, na me

dida que interfere no outro. Em algum laço interno, Murilo estar^L

a redimensionando e reorientando seu ecumenismo universalista. Ejs

sa reconciliação do poeta com o social pode ser vista, mais adian

te, a partir de uma análise textual. Mesmo assim, digamos que Mu­

rilo Mendes parece confiar ao ator Ismael Nery um papel análogo

de articulação social quando o constitui como um homem que, "prec)

cupado com o eterno, compreendia e sentia melhor do que ninguém a21

poesia do cotidiano"

Temos abordado aqui as nuâncias singulares do cristianij;

mo muriliano. De que forma se dá^esta singularidade? Por que cru­

zamentos passa o projeto essencialista encenado por Ismael e — a

posteriore — verbalizado por Murilo? Se há alguma estratégia dis,

cursiva saliente em Murilo, esta é o sistema de recorrências que

aponta para múltiplas faces de algumas obsessões. Entre estas,nos

textos de "Recordação", está a insistência no caráter dúplice do

catolicismo em Ismael. Cristianismo perverso, disse -/alguém. Se

não de üma maneira tão incisiva, certamente atravé^ de uma simbijD

se entre paixão e religião. Afinal, segundo o próprio Murilo, "o22

homem é um ser de espantosas contradições" . Com efeito, Murilo

surpreende a quem não o conhece ao elaborar proposições que reme­

tem à idéia do texto interdisciplinar, global e aberto, insinuan­

do a própria relativização de gêneros em texto^ posteriojres. "A

vida estética não opunha-se à vida filosófica e à religiosa. Rea

lizado o ideal grego, desenvolvido e ampliado'pela filosofia crijã 23 ■

tã" . Resgate do corpo, engendrando novas leituras do c^tolicis

mo onde o que é estabelecido é fundamentalmente a "união de Dion_i24 <

sos com a fé cristã" . Cristianismo de simbiose, Murilo abarca,• * A

•num neobarroquismo, a própria história da cultura. Através de um

+ *

i ^ * . T-

16

obsessivo ler-se no outro, parece se redefinir a cada instante, co

mo no relato do seu encontro com o jovem poeta Marcos Konder Reis

em 1944. Ao selecionar o autor afim, Murilo está, de fato, julgari

do para lembrarmos o conceito de Leyla Perrone Moisés. Decifrando

se enquanto enigma,Murilo vai construindo o poeta-Murilo, que t£

oriza a ficção ao ficcionalizar a teoria.

Com efeito, a relação do texto muriliano com a religião

não é pacífica. Antes encerra um paradoxo essencial: se por um la­

do define uma ação política, na medida que antecipa concepções

próprias ao que hoje entenderíamos como catolicismo revolucioná­

rio, sintomatizado numa "Teologia da Libertação", com nuâncias, à

época, antiliberalistas, por outro, a sua poesia aponta para um

antipragmatismo radical, marcado por uma dissonância imagética in

tensa. De qualquer forma, tal ambigüidade é consciente e servirá

para tensionar a postura política e poética do autor. Murilo, co­

mo vimos, ao eleger o desprezado, o residual, nos anos modernistas,

coloca do avesso um determinismo de base luckatiana. Parece dialo

gar, neste sentido, por este atalho da história, num salto inesp£

rado, com Adorno e Benjamim. Noutro aspecto, ao recuperar o barro-25co católico como estética da deformação — "a dispersão barroca" ,

tende para uma arte antipositivista, constituindo uma resposta

crítica ao liberalismo, a ideologia oficial e dominante então. Des

ta forma, Murilo coloca-se do lado de fora dos grandes sistemas

conclusivos da sua época. 0 poeta, com um discurso corrosivo, dardeja

incertezas e espanto para todos os lados, na medida que considera

a insuficiência do socialismo através do olhar de Ismael Nery,quem

"surpreende-se com socialistas e comunistas que esquecem de certos26

problemas filosóficos em prol da questão social" . A mesma idéia

17

aparece em 0 Discípulo de Emaús: "A doutrina comunista tira sua27

força de ser uma paródia do grande dogma da comunhão dos santos" .

A linguagem como paródia da linguagem. Relativiza-se, assim, o

sistema de certezas do neorealismo de esquerda, o que não deixa

de impugnar, explicitamente, valores burgueses de existência: "o

estilo de vida da sociedade capitalista é um atentado ao essenci^ 28

al" . Essa observação de Ismael Nery desdobra-se, mais uma vez,

em outro aforisma: "A libertação econômica do homem só poderá de

fato se operar quando ele resolver aceitar e seguir a vida es

sencialista ensinada no Sermão da Montanha. Tal libertação não po29

derá evidentemente ser operada dentro do sistema capitalista"

Esse desdobramento implica optar por uma linha oblíqua de catoli.

cismo, como veremos adiante, linha essa que desmitifica lingua­

gens inerentes ao sistema, como a separação corpo e espírito, por

exemplo. Afirma, entre outras coisas, que "o sistema religioso"

o "deixa frio" em "sua retórica e narcisismo", ao que contrapõe o

"discurso puro" de São Paulo, que o arrebata com sua "juventude,30

a novidade permanente"

Um catolicismo, como se vê triplamente transgressor: con­

tra o comunismo, contra a burguesia e contra ele próprio, um cat£

licismo que bascula entre "a boêmia espiritual num momento de pia31

nificação"e "a fé cristã num momento de descrença" . Murilo está

longe dos movimentos católicos burgueses, sendo, neste sentido,

moderno naquilo em que seria conservador. Sua religiosidade confi

gura-se como uma forma de marginalidade ou, sob outro ângulo de

visão, a procura de uma nova utopia (formulada no mesmo), a busca

de um novo absoluto, ainda que dessemantizado da variante "dogmá­

tico". Diz-nos no aforisma 1, de O Discípulo de Emaús: "0 absolu­

to é o primeiro motor de todas as relatividades". Se todo discur­

so é ideológico — o ideológico visto aqui, à maneira de Pierre

18

Bordieu, como um sistema abstrato de representações dominantes — ,

Murilo estaria almejando ser norma. "Toda construção pressupõe u-32

ma destruição" . Com efeito, ao afirmar que,apesar da antinorma-

tividade, era possível em 1930, ser "artista, homem moderno e ca­

tólico romano de confissão e comunhão", o poeta está inscrevendo-

se numa linha de modernidade inusitadamente universal e peculiar,

fatores esses, que, certamente, não se excluem. Tal tendência, den

tro do modernismo brasileiro vai demonstrar ser das mais profícu­

as, ou, pelo menos, aquela que conseguiu fazer uma ponte entre mo­

dernistas e vanguarda poética dos anos 50/60, entre o moderno e o

pós-moderno. Murilo afirma duplamente tanto o declínio do moderno

quanto sua presença como condição de superar a modernidade.

Murilo engendra, por outra lado, tal modernidade motiva­

do pela esquizofrenia e pela desconfiança quanto as dogmas soci­

ais, quanto aos regimes políticos ("Todos os movimentos políticos

modernos chegaram a este resultado: desconsolar o homem e tirar-33

lhe a razão da existência" ), quanto à esterilidade da igreja,

quanto à incultura produzida pelo nacionalismo populista. Exagero

situar Murilo Mendes fora da estrada, na contramão, como herói cul

tural? A consciência crítica do autor e a coerência da sua longa

produção parecem atenuar tal suspeita. Esta postura é (ad) mirada

em Lívio Abramo, em quem observa uma vigília constante que preser-34

va "as virtudes libertárias" frente à "engrenagem totalitária" . C(3

mo vemos, em Murilo desdobra-se o cansaço (de feições pós-modernas)

frente aos grandes relatos, configurando o poeta fora-da-lei anun­

ciado por Mário de Andrade, caracterização lícita se não dogmati­

zarmos. Em contrapartida, a sua positividade é marcada pelo "trans"

e pelo "multi": "Atraem-me a variedade das coisas, a migração das

idéias, o giro da imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fjj35

to" diria mais tarde em Poliedro, de 1972 , relendo a si mesmo,

numa dinâmica intratextual, uma vez que em 1948 já afirmava: "Não36

me inscrevo em nenhuma teoria"

19

Seu catolicismo é, portanto, recheado de tensões (e por is

so mesmo, moderno). Aponta para uma fuga das linearidades. A lin­

guagem muriliana, marcada por encontros poéticos inusitados ("Asis

to a um desdobrar de planos/ As mãos vêem, os olhos ouvem, o ceré37

bro se move..." ), flexibiliza a dureza mimética instituída. 0

escândalo da fé é operacionalizado como estratégia de choque. Nejs

te sentido, não seria absurdo aproximarmos Murilo Mendes de Machja

do de Assis e Mário de Andrade (insinuante aliteração) pois, a

partir de estratégias distintas, todos os três minam o determinis^

mo literário e a paranóica necessidade de engajamento do artista.

Diferentes, mas convergentes. A contrapelo da história, Murilo

não funde racionalismo e mobilização política. "Há muito acho a-

cadêmico discutir a participação dos artistas na luta social: quei

ra ou não queira,todo mundo hoje participa. Não é preciso entrar38

em nenhum partido político, basta entrar numa fila" . A esse res

peito, Mário de Andrade em sintonia com Murilo, ao tratar de sua

"arte de ação", esta confinada, contudo, ao "terreno da arte", já39

se definira como "sujeito visceralmente apolítico" . Tanto quan­

to a de Mário, a estratégia muriliana passa, portanto, não por u-

ma cooptação com processo social, mas pela instigação da História,

fundada numa negatividade crítica, ainda assim, construtiva. As­

sim sendo, queremos com esta leitura salvar o autor de rótulos in_

cômodos e incorretos como o de poeta surrealista, católico, cris­

tão, metafísico, socialista, o que seria abafar uma voz que bri­

lha pela polifonia.

Ora, é preciso considerar que para o pensador, para o po

eta-crítico Murilo Mendes, é possível chegar-se à realidade por40

vias irreais. Afirma Murilo: "o místico é o verdadeiro realista"

20

A realidade pode ser construída, o artificial pode ser natural,

desde uma perspectiva de que a linguagem pode operar estratégias

discursivas, montar, criar a realidade do texto. É o que descobre41

em Beethoven: a recusa em fazer música imitativa . Queremos in­

tuir o que Murilo verbalizou: "Quando se avança na aprendizagem do42

invisível, as idéias de ganho e de perda começam a caducar." De

resto, esta concepção, de que o real não é somente aquilo que se

vê, é retomada em princípios estéticos com conseqüências no plano

da realização poética do autor: o texto não é somente aquilo que

lemos, mas aquilo que está dobrado, o não dito, o em branco. Espja

lham-se, como dizíamos, versos que indicam esta postura teórica

frente ao real ao longo de seus textos: "Abalas as colunas da rea 43

lidade" e "pelo não reconhecimento da fronteira realidade-ireal^ 44

dade"

Diante da análise da religião ou, se quisermos, por outra

via, do sagrado frente ao poético em Murilo Mendes, somos levados

a pensar que a sua conversão é também uma conversão à linguagem,

ainda que isto se evidencie paulatinamente, numa lenta metamorfose

estrutural pelos seus vários livros até a culminância em Conver­

gência, culminância esta que o próprio título da obra indica. Tan­

to mais que tal é composto, entre outros, por "Murilogramas". É o

poeta que se inscreve, que se transforma em linguagem. Esta idéia

do "Murilograma" vem confirmar o que já mencionamos: a procura do

estético na religião através de um sistema de analogias com a mo­

dernidade que vai da diversificação no um (na multiplicação dos

pães ou no Cristo dado aos homens) até o Apocalipse como sintoma

máximo da crise do indivíduo e da arte, crise esta que inaugura a

modernidade e alimenta a obra muriliana.45

Ramón Xirau, em Dos Poetas y Lo Sagrado , ao analisar

dois poetas distantes e até opostos no estilo, Juàn Ramon jiménez

21

e Cesar Vallejo, os conjuga dentro de uma tendência à sacraliza-

ção que considera vital no mundo contemporâneo. 0 sagrado é visto

como um ausente-presente que retorna. A época em que vivemos é

tida como dessacralizada: a modernidade é desencantamento do mun­

do. Foi o que verificamos na cisão entre Murilo e a época em que

viveu, separação essa que o poeta tenta elaborar com sua atitude

frente ao sagrado, a qual possibilitou o retorno deste com uma for

ça inusitada.

"Para cualquier creyente, tanto si pensamos en las reli-

giones arcaicas como si pensamos en las religiones más perfectas,

el mundo es sagrado y lo sagrado sumo en ellas — especialmen-46

te em el judaísmo y el cristianismo — Dios mismo" . Esta afirma

ção de Xirau nos aproxima da posição de Murilo. 0 sagrado como "el

reino luminoso". A função deste espaço sagrado seria, retomando o

que abordávamos antes, dialetizar o real. Diz-nos Xirau: "La rea-

lidad puede aparecer como una no-realidad, como un 'caos' . El mun47

do sagrado es, em cambio, un 'cosmos'" . A fundação deste "cos­

mos" representaria a ânsia de viver um centro, ou como entendemos,

a saudade do "um" frente a um universo absolutamente descentrado,48

fragmentado. "A desproporção é a saudade da simetria" . Isto re­

mete a uma das tensões básicas da poesia muriliana nos anos 30

e 40 que é a tensão entre caos e unidade. É sintomático que uma

das principais obras deste período seja intitulada As Metamorfo 49

ses , o que remete às Metamorfoses, de Ovídeo e à Teogonia, de

Hesíodo, obras que introduzem a idéia do "caos". Tal saudade da

unidade perdida, como campo de utopias, como espaço de fecundação

de linguagens, surge em vários poemas do livro, através de ilumi­

nações e profecias, que configuram uma semiótica visionária ca­

paz de resgatar os sentidos do universo, como, por exemplo, em50

"0 poeta futuro" : "0 poeta futuro já se encontra no meio de vós/

22

Ele nasceu da terra/ Preparada por gerações de sensuais e místi­

cos:/ Surgiu do universo em crise, do massacre entre irmãos/ Ence£

rando no espírito épocas superpostas.../ Ele manifesta o equilí­

brio de muitas gerações". Em outros textos, em forma de apelo, de­

tectamos uma espécie de solidariedade na crise: "Suspendei de no­

vo no azul a gaiola dos anjos,/ Voltem de novo os lírios no lugar51

dos fuzis"

Interesssante observar, contudo, que o centro do sagrado

é flutuante — "esquadrilhas de mitos são enviadas para nos pro- 52

tegerem" — , podendo recair com freqüência numa cidade. É o ca-53

so do poema "Jerusalém" : "Jerusalém, Jerusalém.../ Em vez de si

nos festivos/Ouço sirenes de aviões/Em vez da Santa Eucaristia/Re

cebo granadas de mão,/ Os mitos do mal desencadeados sobre mim/

Me envolvem sem que eu possa respirar./ Jerusalém, Jerusalém,/ R£

colhe meu último suspiro". Menos que identificar a presença da

catástrofe, factualizada na II Guerra Mundial, parece-nos deci­

sivo perceber atitudes sacramentais que permitem a renovação do

universo: a morte, o inferno, o abismo como formas de metamorfo­

se à vida, o céu, o "cosmos", ou seja, um mundo renovado por

um tempo original. Como esclarece Xirau: "El universo sagrado lie

va consigo orden, renovación, puntos fijos que son núcleos refe-

renciales. Si se quiebra el axis mundi — lo qual sucede en nues-

tros dias — se pierde lo sagrado y nos encontramos, sea con

lo profano, sea más frecuentemente, com sacralidades menores y54

sustitutas" . Aí reside um ponto crucial na relação da visão mu

riliana frente ao sagrado. Se salientarmos o fato de sua poesia

indicar um retorno nostálgico ao atemporal, ao equilíbrio e à or­

dem, é preciso frisar igualmente, que isto se dá de uma maneira

intensamente dilemática na medida que incorpora a sua própria

negação. Em artigos sobre Bach, Murilo Mendes afirma que na ép£

23

ca em que viveu o músico alemão, "a vida profana, apesar da deca­

dência religiosa, ainda estava um tanto impregnada do conceito de55

sacralidade" . Ora, isto nos faz pensar com Xirau que as atitu­

des do poeta frente ao sagrado são de atração e repulsão ao mesmo

tempo. Em Murilo, o sagrado é sobretudo a construção de um espaço

mítico onde podem ser articuladas as tensões inerentes à sua obra.

Uma zona de enfrentamentos, um espaço onde, em última análise,

possa circular o poeta. A negatividade transpira em vários pon­

tos: "Eu sou terrivelmente do mundo.../Talvez liquidaremos a etei:56

nidade.../Intimaremos Deus..." . Sentimento religioso, centrípe­

to e centrífugo ao mesmo tempo, funciona como chamado e recusa.

Isto configura o paradoxo: a poesia deseja o que nega. Ou, textu­

almente, através de Ismael Nery: "Tenho uma formidável atração57

por aquilo que detesto" . 0 enfrentamento do mistério a que se

propõe Murilo produz situações díspares, como a certeza e o espaji

to. Digamos que ele crê por desacreditar. Assim, a linguagem equí^

voca ganha transparência. Frente ao vazio da revolução a saudade

da unidade perdida pode ser lida como a saudade da identidade per

dida, o que vai resultar na dispersão do eu. A luta entre a cria­

tura humana e o poder divino dá-se à custa de sacrifícios. 0 poe­

ta age como herói civilizador, forjando o mito prometeico. Eliot

nos relembra que a perda da identidade relaciona-se com a perda

de mitos e de Deus. 0 retorno a Deus permite o retorno a uma i-

dentidade, embora não idêntica.

0 lado profano ou perverso da religiosidade em Murilo re­

side, talvez, no fato de perseguir a conciliação dos contrários

que obedecem à dialética atração/repulsão, tais como racional/ir­

racional, concreto/abstrato/regional/universal. "E a separação entre o sa

grado e o profano é muito menor do que em geral se pensa", diz-58

nos . Isto, desde a ótica de Xirau, resulta na sacralização do

24

não-sagrado. Em Murilo, o poeta e a poesia... De uma forma muito

singular, o autor de AsMetamorfoses retoma o versículo bíblico

"sois deuses". Assim, ao menos, constrói a imagem do poeta como h£

rói-existencial: Ismael Nery. Murilo recupera o Narciso em Nery. É

sintomático, a esse respeito, que o próprio Nery se tomasse como

modelo em seus primeiros desenhos e tivesse o desejo de doar seu

cérebro para provar a grandeza de uma consciência. 0 poeta-crítico

efetiva, assim, a operação que tanto o seduziu: sintetizar Dioni-

sos com a fé cristã, desenhando a figura clivada da identidade mo­

derna. Desde uma perspectiva da humanização de Deus e da consequein

te divinização do homem, Murilo Mendes estende o espaço do sagrado

ao poeta e, em contiguidade,à poesia, dentro do processo já anali­

sado de recuperação estética dos princípios do catolicismo. "0 pr£59

blema de Deus não é só uma questão de fé, mas também de cultura" .

Tal processo estetizante é operado a partir do Cristo como unifica

dor poético contra o discurso vulgar das evidências, contra o tédi_

o do cotidiano: "retornar às epístolas é romper o nevoeiro de vul- 60

g ar idade atual" . De uma certa forma, ao negar o mundo e a felici

dade por ele produzida, Murilo, como Nery, está buscando a manifes^

tação de outras linguagens (a linguagem de Deus) transformadoras,

como afirmava Nery (o sofrimento como meio de realizações): " . . . t i_

rai-me cada vez mais a felicidade para que eu a deseje e não morra61

de tédio" . Uma reapropriação operada a partir da perseguição a

uma tradição milenar. Murilo abstrai a modernidade da religião na

medida que a lógica mimética não traz felicidade ao modernismo, c£

mo já tentamos demonstrar. Numa estratégia de inversões, o espíri­

to da religião é antítese do "espírito anti-poético". 0 homem plu­

ral do cristianismo é redimensionado no texto plural da modernida­

de. A bíblia emerge como hipotexto da literatura universal, para

lembrar Frye. A própria lição evangélica de perder os acessórios

25

do tempo para ganhar a vida espiritual pode ser tomada como des

pojamento da linguagem, a procura por um mundo substantivo, en­

saiada e concretizada progressivamente. Com efeito, a doutrina

essencialista, elaborada por Nery e apresentada num dos artigos62

da série "Recordação de Ismael Nery" , vem ampliar esta hipóte­

se. Nela detectamos a abstração do espaço-tempo como estratégi^

a intertextual (de que trataremos em outro capítulo); a seleção

dos elementos essenciais à existência, analogizada ao nível da

memória seletiva; a representação de noções permanentes que da­

rão à arte a universalidade; o Cristo como companheiro do cotidi^63

ano do homem, como criador de um "grande estilo de vida" . Uma

relação que tende à dinamização do processo artístico por meio

de uma troca de funções: o alto no baixo e o baixo no alto. Por

isso, por essa extensa gama de ressonâncias, Murilo setencia em64

"0 Próximo Cervantes" : "Não pode desparecer a cultura do Cris­

to". Uma cultura transfundida, insistimos, no plano estético.

Com isto, o poético emerge sacralizado. Desde Stéphane

Mallarmé, os poetas contemporâneos têm buscado absolutizar suas

próprias obras. Xirau, cita, entre outros casos, "el 'poeta-dios'

de um Huidobro, este absoluto que se niega a si mismo..., union65

de los opuestos en el inconsciente, en el surrealismo" . Poderí^

amos incluir aí o "Poeta Nocaute"ou "0 Novíssimo Orfeu", murilia

ano. Nestes, a seus modos, o poético aparece como espaço de uma

nova subjetividade frente ao esfacelamento do indivíduo (pensa-66

mos, por exemplo, com Adorno , em Auschwitz, a própria barbá­

rie na época da velocidade). Em Murilo, a decadência do ritual

litúrgico deixa à arte este lugar. Daí o afundamento no barroco,

onde o artista-sacerdote funde religião e arte. Deste enfrenta-

26

mento, resulta a linguagem como mito (os mitos, por sua vez são

linguagens). Novamente Xirau: "La poesia... tende a sacralizar djj

bitativãmente, muchas vezes, la obra, el poema, el mundo creado67

por um poeta-dios o pequeno dios" . 0 mito órfico é retomado em

termos de militância poética: "Ajudo a construir/A poesia futura/68

Mesmo apesar dos fuzis"

A idéia do poeta-deus é operacionalizada em Murilo median

te a obsessiva fusão do eu-poético com o criador ("0 olhar do

poeta é vastíssimo: só ele percebe os inumeráveis crimes contra a 69

poesia") . A primeira pessoa verbal dos poemas de As Metamor­

foses, por exemplo, indica esta comunhão suprema: "A Poesia sou

eu/A poesia é Altair/A poesia somos todos" ou "Vou aonde a poesia 70

me chama" . É claro que ao falarmos da sacralização da poesia em

Murilo, estamos pensando em algo distinto da aura da obra de ar­

te edopoeta, esta sim, há muito dissipada pelo olhar benjaminiano.

Tomamos aura no sentido órfico mesmo da poesia enquanto rito, a

imortalidade através de ritos purificadores. A linguagem, portan­

to, é teofânica. Não existe nada fora da linguagem, fora do poema,

neste sentido, sacralizado. Ora, isto se aproxima da concepção de71

Paul Valéry, quando aponta para o início do caminho: a linguagem .

Valéry dá-nos uma idéia desta potencialização do poético

na medida que vislumbra a união entre palavra e espírito, median­

te o que chama de "encantamento": "Não deve duvidar-se de que a

forma poética tem estado adscrita durante séculos a serviço dos 72

encantamento" . É claro que isto, dentro da estética valeriana,

está vinculado ao desejo, à possibilidade de união entre som e

sentido, o que distingue o poético pela criação de um estado ra­

ro. Sendo assim, podemos aproximá-lo de Murilo, o qual sempre rei

27

vindicou o transcendente pela linguagem, contra as exigências da73

vida ("o poeta é o prático do espiritual" ou "No plano poético74

o espiritual é orgânico" ). Algo que "se opõe à simplificação75

crescente das formas verbais" , completaria Valéry. Esta dispo­

sição remete, contudo, não à inspiração pura de cunho irracionalij>

ta, mas, antes pelo contrário,ao que Murilo tantas vezes ressal­

va como "trabalho ordenador do espírito", que Valéry coloca em ter­

mos de "trabalho inteligente", "um trabalho desta espécie é o76

que cumpre o verdadeiro poeta" . Tal idéia é problematizada por

Murilo Mendes em vários aforismas: "0 anjo da guarda é proporcio- 77

nal" ; "0 conceito primordial da arte encerra a idéia de equili_ 78 79

brio " ; "0 difícil não é encontrar a verdade, é organizá-la" .

A ênfase no artificial, no trabalho humano construtivo, trabalho

com a linguagem, leva-nos a pensar com Valéry que "todo verdadei^80

ro poeta é necessariamente um crítico de primeira ordem" . Esta

relação reflexiva sobre o fazer poético que caracteriza o traba­

lho de Murilo Mendes o inscreve numa tradição de poetas-críticos

que inclui Valéry na esteira de Mallarmé e que deveria, certa­

mente, incorporar, também, Poe, Baudelaire, Eliot, Pound, Mário

de Andrade e Haroldo de Campos para pensarmos — com os dois últi.

mos — em casos mais próximos. Tal função — a do poeta-crítico—

parecia ser algo claro para Murilo há muito, quando, por exemplo,

em "Lasar Segall", propõe tal associação: "A revisão do processo

de pensamento, a mudança da atitude mental, o combate à rotina,

a aceitação de um universo em que se cruzam as múltiplas corren­

tes da cultura, eis alguns pontos de recuperação crítica que de­

verão ser apresentados a todos aqueles que desejam aperfeiçoar81

seus conhecimetnos de arte" . Uma reflexão que, como se lê, é

marcada pela pluridiscursividade e pelo processo de "recuperação"

ou devoração crítica.

28

De resto, tendo em vista a questão suscitada acima, o

cristianismo ocidental, com seu método expositivo, sempre traba­

lhou com a razão,o que anula, de certa forma , a contradição aqui.

Tal racionalidade é justamente o que fascina o crítico Murilo

Mendes em artigos sobre o apóstolo São Paulo, onde refere-se82

ao "gênio organizador" deste. Haroldo de Campos chega mesmo a83

falar em "retórica de Deus" , que, aliás, torna-se evidente na

leitura bíblica tendo em vista as tipologias do Cristo no "Velho

Testamento": Moisés, José, Jacó, Daniel. Não podemos esquecer

que na via dupla de comunicação entre o homem e Deus, é pelo di^

curso argumentativo que Moisés intercede pelo povo no "Êxodo" e

que Jacó interroga a Deus sobre a sua condição. A exploração do

"cosmos" aque se referia Xirau transita para a exploração da lin

guagem. Da ciência do coração para a ciência da fala, lembrando 84

Roland Barthes . 0 mestre francês mostra-nos, principalmente,

que a literatura moderna busca substituir a instância da realida­

de (ou referente) pela da própria escritura não como forma pu­

ra, mas como o único espaço possível para quem escreve. Neste

espaço, único e aberto, é que o poeta em Murilo se move, numa e£

tratégia que nos arremessa à imagem do bailarino — o poeta-bailji

rino — tornando inevitável a busca do movimento e de relações

articuladas no eixo sincrônico, o qual converge no diacrônico. É

dentro desta perspectiva que a relação, a ponte entre Valéry, Mu­

rilo e Roland Barthes torna-se plausível. Positivamente, a religi^

ão em Murilo Mendes é tomada enquanto experiência dilacerada, na

medida mesma que conclui pela ausência de desertos: o místico mo­

derno deve trabalhar em ambientes ruidosos e povoados. Tal exper^i

ência, que é de terror e afetividade, é produtora de transforma­

ções que se refletem no plano da arte. 0 sagrado é estetizado na

medida que o estético é sacralizado: "A plenitude poética

29

opera o refinamento e a transfiguração da condição humana" . Se

Nery é construído de uma forma autocentrada, na qual a sociedade

não o determina, é porque a fronteira entre real e irreal, entre

o místico e o não-mítico foi irreversivelmente transgredida.

Até aqui temos abordado o pensamento de Murilo Mendes e

suas conexões nos textos críticos. Vejamos como se dá esta rela­

ção entre o sagrado e o estético num poema dos anos 30, até mesmo

para ressaltarmos a coerência que envolve o projeto muriliano.

"Vocação do Poeta", poema sobre o qual nos debruçaremos,

aparece no livro Tempo e Eternidade, de 1935, escrito em parceria

com Jorge de Lima. Livro marcado pela partilha, traz consigo a

presença do diálogo e da reflexão de cunho metafísico-cristão. Nes

te sentido, aparece como uma abertura para outros espaços existen

ciais possíveis, logo para outros espaços poéticos. Parece-nos que

tal atitude é (con)figurada no tom de manifesto do poema escolhi­

do. Tentativa de explicar o poema? Propomo-nos ao menos indagá-lo

no seu leque de possibilidades, ainda que que tateando fragmentos.

Ou: uma tentativa de ler (-nos) (n)o poema.

Eis o texto tal como aparece em Poesias (1925-1955):

VOCAÇÃO DO POETA

Não nasci no começo deste século:

Nasci no plano do eterno,

Nasci de mil vidas superpostas,

Nasci de mil ternuras desdobradas

Vim para conhecer o mal e o bem

E para separar o mal do bem.

85

30

Vim para amar e ser desamado

Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos.

Não vim para construir minha própria riqueza

Nem para destruir a riqueza dos outros.

Vim para reprimir o choro formidável

Que as gerações anteriores me transmitiram.

Vim para experimentar dúvidas e contradições

Vim para sofrer as influências do tempo

E para afirmar o princípio eterno de onde vim.

Vim para distribuir inspiração às musas

Vim para anunciar que a voz dos homens

Abafará a voz da sirene e da máquina,

E que a palavra essencial de Jesus Cristo

Dominará as palavras do patrão e do operário.

Vim para conhecer Deus meu criador pouco a pouco,

Pois se 0 visse de repente, sem preparo, morreria.

Fere a atenção, de início, o ritmo obsessivo do poema, mar

cado por uma negação introdutória, em contraponto com a sucessão

de orações orientadas pela repetição do verbo "nasci", criando u-

ma expectativa confessional, logo subvertida pelo desconcerto do

múltiplo — "o plano do eterno"; "mil vidas superpostas"; "mil

ternuras desdobradas" — , que antes pulverizam o individual numa

cosmogonia do que propriamente o caracterizam enquanto sujeito de

gênese determinada. Na verdade, tal surpresa é caracterizada pela

própria negação — tônica no poema — do primeiro verso, onde o

poeta se lança no intemporal. Subversão do espaço ("nasci no pla­

no do eterno"), subversão do tempo ("não nasci no começo deste sj§

culo"). 0 texto instaura-se através de expressões semânticas do

31

múltiplo, base para o paradoxo plural, localizado no meio do poes

ma , paradoxo este que vale por todo um projeto estético-existen

ciai vinculado a uma linha de modernidade,vigorosa pós-baudelai-

riana: "Vim para experimentar dúvidas e contradições".

Com efeito, os dezozito versos restantes criam a falsa

idéia irônica de missão (e é difícil para nós, hoje, não enxer­

garmos uma ironia injetada nas veias do tom trágico e onisciente

do poema). 0 verbo "vim" é dez vezes repetido desenhando,

contudo, um quadro antitético e paradoxal. A seqüência de

antíteses — mal/bem; amar/desamado; grandes/pequenos; própria

riqueza/riqueza dos outros — engendram uma construção na negati^

vidade ("Não vim para construir minha própria riqueza") que não

define uma missão, mas direciona o "sentido" para o que podería­

mos chamar, por empréstimo, de uma inversão crítica, além de uma

estratégia barroquizante resgatada. Crítica da poesia, crítica

na poesia. Versos-conceitos que problematizam a realidade relati-

vizando os dogmas sociais ("nem para destruir a riqueza dos ou­

tro"), o espaço com fronteiras e o tempo linear, elementos da

norma. Se, de um lado o eu do poema coloca-se como "aquele que

reprime o choro formidável que as gerações anteriores transmiti­

ram", de outro, o poeta procura o diálogo com aquilo que rece­

beu, sustando a idéia de continuidade temporal linear, articulari

do o transtexto da modernidade. A seqüência de antíteses abertas

conduz à formulação do paradoxo que explode no décimo terceiro

verso do poema, preparando o humanismo essencial da última es­

trofe.

"Vim para sofrer as influências do tempo": sem dúvida,

tal verso, como aforisma ou fragmento, condensa uma teoria do pa­

radoxo poético, sendo complementado, antagonícamente, pela coor-

32

denada aditiva de mesmo sujeito: "E para amar o princípio eter­

no de onde vim". É notável a plurissignificação dos versos acima

citados.

Ao indagarmos o significado de "tempo", poderíamos tanto

pensar sincrônica ou diacronicamente, ficando, de qualquer forma,

implícita a ambigüidade que associa o contingente ao eterno. Is­

to está de acordo com "dúvidas e contradições" do verso anterior,

na medida que o texto re-lê um passado primordial, recupera-o,en

frenta-o,rearticulando-o na sua própria tessitura. Esta contém u-

mas historicidade intrínseca, através da qual são lançados dados

ao futuro, enquanto campo da utopia e da conspiração contra si mes

mo, previsível fim. Neste ponto, a figura do eu-prometeico, lír^

co e trágico, é fortalecida, assumindo a feição de distribuidor de

poesia, produtor e sacerdote ("Vim para distribuir inspiração às

musas"). Com efeito, ao confessar que veio para "sofrer as infl£

ências do tempo", o autor confirma a categoria do seu texto, tra­

mado intertextual e palimpsesto que solicita a construção de vá­

rias leituras.

Ao tematizar-se em "Vocação do Poeta", pensamos no poeta

Murilo como agente de uma modernidade, peculiar e universal, que

saindo do modernismo heróico, lança em 35 as bases para a constru-86

ção de uma "poética da mobilidade e do devaneio" , dialógica e

cosmopolita. Modernidade esta, dialeticamente oposta ao modernismo

progressista — a idéia vazia de um progresso infinito e totaliza-87

dor para lembrar Marshall Berman . Isto está embutido na função

poética definida nos versos dezessete e dezoito que mutuamente se

opõem: "Vim para anunciar que a voz dos homens"/"abafará a voz da

sirene e da máquina". 0 texto inscreve-se na resistência humanista,

superior aos esquemas sociais polarizadores, onde "a palavra essen

ciai de Jesus Cristo/dominará as palavras do patrão e do operá­

33

rio". A palavra essencial aqui remete às "mil vidas superpostas"

do início do poema, na medida que envolve a multiplicidade no Vej:

bo que é, ao mesmo tempo, início e fim. Salva-se a dignidade do

fragmento frente ao avanço do infinito, insuportável, se enfrentei

do "de repente e sem preparo". 0 poeta que quer conhecer "pouco a

pouco" é o mesmo que quer dizer pouco a pouco, construir sua poé­

tica transdiscursiva, não dogmática, instalada na crise, mas com

o olhar armado para a transcendência do circunstancial (o eterno

no contingente...).

Com efeito, a eternidade, aqui personificada na figura do

Verbo-criador — "que estava desde o princípio" — , é fundamento

estético para o enriquecimento da linguagem. A apreensão do to­

do, neste sentido, significaria a morte do poeta e da poesia, daí

o enfrentamento das fronteiras temporais, via visionarismo, que

anuncia, no fundo, o retorno a uma eternidade que transgride a

dicotomia passado/futuro. Por isso, o poeta prepara-se para ser88

lido em 45 quando afirmará que "só não é moderno quem não é antigo"

ou que"o verdadeiro poeta é conjuntamente um ser de circunstância 89

e eterno" . Prepara-se para ser lido pela aventura sintática e

convergente, verbal e fragmentária, de 70, num certo sentido trá­

gica, na medida que chega, por exemplo, a um sentido deslizante,

mas nem por isso incoerente, enquanto obsessivo na textualização

da experiência: "0 juízo final começa em mim/nos lindes da minha90

palavra"

Se o poema, num primeiro momento, parece ser um manifes­

to existencial, marcado pelas surpresas das afirmações transgrej;

soras, antidogmáticas, não logicamente domesticáveis e atemporais,

logo converte-se esteticamente num texto da modernidade, engen­

drando o enigma que permanece e se radicaliza no mundo substanti^

vo e conceituai de Convergência. Alimentando os paradoxos da mo­

34

dernidade, o poeta tem na dispersão do sentido a sua vocação,

voz que emerge da tensão entre tempo e eternidade, chamando para

um tempo marcado pela inexistência.

Visualisamos no poema a procura de um espaço sagrado,

construído pouco a pouco, forjado, conquistado, onde a voz sobre-

pujante do Cristo surge como suprema revolução, a extrema relati-

vização do factual, do discurso contingente. 0 enfrentamento da

crise se dá pela poesia. Todas as contradições são admitidas. Pa-

lembrar Roland Barthes, diríamos que o poeta exige a a possibili­

dade de viver plenamente a contradição de sua época, que pode fa-91

zer do sarcasmo a condição da verdade . A dialética da morte e

da vida se intensifica. 0 poema é construído no limite. A poe­

sia e o poeta são sacralizados enquanto espaços capazes de r e a H

zações, de utopias. Ao mesmo tempo, a linguagem aponta a sua más

cara com o dedo. Ela só lê e é lida pouco a pouco, fragmentaria-

mente. A linguagem não diz; ela é insuficiente ("Pois se o visse

de repente morreria"). E é justamente a sua condição lacunar que

a excita e produz.

Como vemos pela análise, a concepção do sagrado em Murilo

Mendes e sua relação com o estético é homóloga no crítico e no

poeta; mais ainda, dentro desta perspectiva, várias vezes, perce

bemos que a estratégia de leitura muriliana passa por uma articu­

lação das tensões que, segundo a crítica da modernidade, é um

dos seus principais motores. Murilo é obsessivo ao lidar com os

opostos, desde um percepção inicial de que "o homem é um ser de92

espantosas contradições" até a sua exasperação — "um grande a£93

tista deve conciliar os opostos" . Os textos murilianos remetem

a este enfrentamento no imaginário, com todas as suas inevitá-

35

veis conseqüências, residindo aí, talvez, a sua grandeza. Hugo

Friedrich — o qual Murilo leu na década de 50, conforme obra ano

tada na sua biblioteca e citação em texto de Poliédro — já nos

ensinava que a metáfora moderna "realiza o grande salto da diver­

sidade de seus elementos a uma unidade alcançável só no experimen

to da linguagem e, em verdade, de tal forma que busque a maior d_i

versidade possível, a reconheça como tal e, ao mesmo tempo, a a-94

nule poeticamente"

Defrontamo-nos nos escritos de Murilo, com cadeias de te£

sões que se multiplicam. Poderíamos pensar que são desencadeadas

a partir de Tempo e Eternidade, obra de 1935. A partir daí, seu

pensamento se desenvolve numa oposição dilemática entre o uno e

o múltiplo. 0 diverso das formas e do mundo frente ao universo

do indivíduo. Como vimos anteriormente, a multiplicidade de pla­

nos e ficções é dialetizada com a saudade do in-divíduo, da unida_

de esfacelada no "caos". Além disto, esta visão dupla interroga

outras dualidades como visível/invisível, real/utópico, tradição/

futuro, trágico/irônico, interno/externo, corpo/espírito. A obra

Poesia em Pânico, de 1937, vai acentuar tais dicotomias barrocas.

A sedução da vastidão das formas e idéias irá combater o tédio e

a monotonia, elementos estes paralizantes e estranhos à obra mu-

riliana, a qual é marcada pelo heterogêneo. Por outro lado, a pje

culiaridade de Murilo Mendes reside em situar-se "entre", aque-95

le "entre-lugar" de que nos fala Silviano Santiago com relação

à dialética do lá e do cá. Murilo instala-se entre a ruptura e a

crise, entre a adesão e a rejeição. Menos do que uma saída de e-

mergência para a nossa discussão, tal hipótese torna-se um dado

problematizador. A duplicidade aqui não dá acesso ao vago, mas ao

original. Mesmo a busca da unidade na obra de arte, mediante a

concepção do ensaio como biografia, que Murilo ressaltou no tex­

36

to-pessoa Ismael Nery, não significa algo estático, mas dinâmico:

uma relação de convergências e contradições que conspira contra o

equilíbrio, desejante e desejado. A tensão, em outras palavras, é

a ideologia da modernidade.

Configura-se, desta forma, no poeta, uma ânsia unificado^

ra. Extremamente instável, a rede ou cadeia de tensões, que men­

cionamos acima, passa pelo crivo da síntese, a qual não anula o

múltiplo, mas o pressupõe. Neste caso, a aventura conciliadora bjá

sica em Murilo, busca a "síntese; da modernidade com a ordem clá£

sica" que ele lê em Ismael Nery, ainda que o traia, de uma certa

forma, enquanto pulveriza o conceito para outros campos da cultu­

ra. 0 orfismo em Murilo dá-se desde uma articulação de Deus nos

homens e dos homens como deuses. Constrói-se, assim, desde um plu

rilingüismo heterogêneo, a imagem do poeta universal e solidário.

Projeto estético? Talvez, desde que corramos o risco da expressão,

pensando, com João Alexandre Barbosa, que "quando se fala em pro

jeto acerca de um poeta ou de uma obra poética é preciso acenttj

ar que não se trata de uma consciente racionalidade imposta à o-

bra seja pelo próprio escritor, seja por uma operação a posterio-96re da análise crítica" . Antes, projeto como a verificação "do

modelo de relacionamento entre dados sincrônicos e diacrônicos

que constituem o espaço do texto". Certa feita, o crítico Murilo97

Mendes depõe sobre "a tensão permanente" em Ismael Nery , ten­

são que fomentava o debate contínuo ("pois seu grande negócio 98

era pensar" ), o que por sua vez afastava os amigos mais acomodjj

dos no óbvio, e configurava, em resumo, uma personalidade "anti-

humana". Assim raciocinando, o escritor está definindo-se pelo99

"contínuo exame dos fatos por todos os ângulos" , instituindo o

múltiplo como categoria poética e filosófica.

Ao contrário do que se poderia pensar, tal ânsia unifica­

37

dora, o processo de síntese poética, não é algo fechado e re­

dutor, mas aberto e interrogatório. Encerra-se, na tese murili-

ana, portanto, a variedade na unidade. 0 processo de modernidade

em Murilo Mendes é clássico até a medula e — ao mesmo tempo — i_n

quieto, indagador e voltado para o futuro, com o espírito de

invenção que levou Haroldo de Campos a considerá-lo, no essen-100

ciai de sua produção, "um poeta inexoravelmente de vanguarda"

Murilo procura, nessa linha operativa, unir tradições heterogê­

neas. É o que , por exemplo, visualiza no Barroco Mineiro e Bai^a101

no. Em "Impressões da Bahia I" ,define a transculturação anotan

do que "a fusão da cultura católica com a sensibilidade africa­

na determinou um resultado de importância no plano social da ex­

pressão". Murilo interroga o evitado: a singularidade da religi£

sidade baiana, na qual arte e religião são cúmplices. Na leitura

das igrejas barrocas recupera o sentido e o contato com o mági­

co: "o entrelaçamento de uma religião semi-bárbara com outra evo 102 ~

luidíssima" , o que, se não produz uma nova forma, refunciona-

liza uma já existente, na fértil combinação de conceitos de ar­

te, explorando o que tais não disseram. É o que ele percebe no

surrealismo, que "opera combinações mágicas por via de elementos

opostos e dissonantes, o que dá ai impressão de inédito; mas, se

aprofundarmos o exame encontraremos ligações com a ordem clás- 103

sica" . Dessa síntese, resulta um valor moderno: "os melhores

defensores da verdadeira tradição brasileira são os pioneiros da104

arte moderna" . Com tal visada crítica, ele aponta para o me­

lhor, dobrando à esquerda da história oficial do modernismo (sem

pre lido em chave de ruptura, mas quase nunca analisado enquan­

to aderência), reportando-se para tanto, à obra de Mário de An­

drade, Villa Lobos, Di Cavalcanti. Esta mesma sensação de sínte­

se mágica, fatal e irresistível, é lida por Murilo em Manuel de

38

Falia, quem realiza "a síntese espiritual da Espanha grandiosa e105

indomável" : a aproximação de Oriente e Ocidente; a alma espa­

nhola oscilando entre a vida mística e a vida dos sentidos; o

encontro do espírito mourisco com o católico. Outro tanto verif^L

ca o crítico em Villa Lobos, numa dinâmica transcultural e inte^

disciplinar: a visão de Murilo não é localizada, mas "armada", a

barcando as variantes e planos que compõem o objeto artístico.

Assim, em Villa Lobos, o folclore é apresentado como trampolim

para realizações maiores, como, por exemplo, "a síntese dos mo-106

tivos brasileiros em Bach" , numa expressão que aponta para a

universalidade relativizadora do devir histórico. Murilo, como

estudaremos, é um mestre dos encontros além das fronteiras. Es­

sa mesma obsessiva fusão de popular e erudito é resgatada em Vil107

la Lobos, quem "eleva o Brasil do limbo à universalidade" , i-

déia que nos remete a Mário de Andrade, também organizador de um

grande acervo a partir de projeto que retoma o coeficiente brasi^

leiro para a riqueza universal.108

No memorável artigo "0 Próximo Cervantes" , novamente

esta sede de constituição do seu próprio projeto pela via do ou­

tro é enriquecida na leitura no "Don Quijote" do homem como "cam­

po de batalhas, de conflitos, de misérias, de abismos, de áspe­

ras grandezas". Neste personagem clássico atua o mecanismo de

síntese do visionário com o realista, a exemplo de Santo Inácio

de Loyola e Santa Tereza de Jesus, agentes culturais que "conci

liam no espírito o método de vida ocidental como fator de ação

e o Oriente como fator de contemplação". Dom Quixote é Sancho

Pança e Sancho Pança é Dom Quixote. Vale dizer, teoria é práti­

ca. Uma conciliação, portanto, que funda um pensar moderno: Dom

Quixote — Murilo conclui — "é o primeiro homem moderno".

Contudo, é em Ismael Nery que o escritor encontra um

39

forte paradigma para este dinâmico processo: "Nery conseguiu fa-109

zer uma síntese magnífica da modernidade com a ordem clássica"

Ao observarmos a reflexão muri liana a respeito desta máquina de

cruzamentos e sobreposições em que constituiu-se a obra de ar­

te moderna, é inevitável que façamos ligações com o bricolage ma-

cunaímico ou com o complexo erudito de Invenção de Orfeu, de Jor­

ge de Lima, entre outros projetos produtores do moderno. É o que

o crítico também observa em Lasar Segall, no qual a natureza bra­

sileira é transposta pelo "encontro da antiga cultura israelita

com a jovem cultura caótica de um país em regime de experiên-110 111

cia" . Se Ismael é "um portador e ampliador da tradição" ,

não seria esta incorporação um desejo de "ser pai", num sentido

perverso, o desejo de ensinar o pai, na medida que contém a trad^

ção e a enriquece?Sem dúvida que esta anotação paira no ar, reve­

lando um aspecto particular do pensamento muriliano por meio des­

te homem-conceito, Ismael Nery. É notável, neste sentido, a atra­

ção de Murilo por Mozart/Nery. Se Mozart foi genial desde a infân­

cia— e Murilo constantemente deixa-se hipnotizar pela geniali­

dade humana — , Nery teria se revelado pintor desde ..os quatro

anos, pela via da contemplação. 0 "ser pai"aqui está associado

à idéia de artista, paradoxalmente, independente e filiado, dis­

tribuidor de poesia e ladrão do fogo divino. A síntese, como di

zíamos, na sua aparência pacífica, conciliadora de opostos, po­

de ser lida, inversamente, como campo de contradições: o conce_i

to de artista é um conceito agônico.

0 referido processo de síntese, como dizíamos, vai se a-

gudizar na relação sexo/religião. Trata-se de uma recorrência

transgressora nos poemas, críticas e crônicas murilianas. É o

que abstrai da pintura de Nery, quando vislumbra que este "era

solidário por tendências opostas... Possuía uma consciência su­

40

perlativa da dualidade espírito-matéria, sabendo que a ampliação

do conflito dá riqueza à vida do homem em geral e do artista em

particular. Encarava a sexualidade como um dos meios mais próxi­

mos da realização da personalidade, uma plenitude, um coroamento

dos ímpetos iniciais da adolescência em que se confundem as no­

ções de erotismo e heroísmo. Acreditava na função religiosa do 112

sexo" . 0 trecho em questão é longo, mas parece-nos que vale a

transcrição pelo efeito catártico a que conduz. Ao desconstruir £

limpicamente o mito, ao superá-lo, Murilo alcança a autonomia n£

cessária para engendrar a sua construção dionisíaca: a função re­

ligiosa do sexo. Sendo assim, é a vertente baiana do Barroco que

atrai Murilo, justamente por conjugar religiosidade e sexualidade

e, desta forma, ao planificar abismos, ultrapassar a dicotomia

corpo/espírito na procura do prazer estético.

Murilo inclui, assim, o corpo na linguagem, o que vem re­

forçar a caracterização que pretendemos: o poeta como um baila­

rino. A poesia no corpo, o corpo na poesia. 0 poeta recupera o

frescor da experiência — "os ímpetos iniciais da adolescência" — ,

a face heróica da descoberta enquanto estratégia estética. Desen­

volve esta postulação em 1951, ao escrever sobre o então inédito

Invenção de Orfeu: "o erotismo é exposto à luz como elemento

positivo e grandioso na nossa formação. Eis o homem com todas as

suas grandezas e safadezas. Mas quem traçou os limites do homem

bom e do mau, da normalidade e da anormalidade? Somos heterogê-V 113

neos, somos complexos, somos maéria moldável..." . Ao relativi-

zar a norma, o poeta-crítico empenha-se numa aventura de limite

que conspira contra as fronteiras, aproximando Eros com Teos. Is­

to é desenvolvido poeticamente por um movimento ambíguo (dessacr£

.lizador-sacralizador) de erotização da natureza e dos dogmas ("A1 14

igreja toda em curvas avança para mim" ), partindo de um concei

41

to de animismo. Trata-se de uma recuperação do livro bíblico de

Cantares, de Salomão, onde a noiva-Igreja e o noivo- Cristo são

apresentados com formas e comparados com uma gazela, com um ga­

mo, os olhos com os olhos da pomba. Neste caso o amor, ainda que

analogizado no plano espiritual é, em primeira instância, cor­

póreo. Relação ambígua, pois o homem, para Deus, é feminino, na

medida que constitui a noiva, chamada de desposada, ao passo que

a expressão intemporal de Deus — nomeada em Murilo, diversas ve115

zes, como "Musa" — é "masculina como um guerreiro". Vale di

zer, o sexo, aqui, não é privatizado em gêneros, mas transitivo.

0 sexo é. forma.

A erotização a que nos referimos, manifesta-se para Mur.i116

lo, entre outros, no poema "Canto do Noivo" : "Eu verei tuas

formas crescerem pouco a pouco.../As sentirei no desenvolver das

tuas idades.../Ó minha mártir, forma que eu destruí, integrada

em mim". Dentro do plano constelar de comunhão de todos os ele­

mentos no espaço cósmico — e aqui uma raiz que vem da tradição

do simbolismo — torna-se possível esta animização, engendrando

versos coerentes com tal projeto, como os já citados, e estes:1 17

"A noite chega/remexendo os quadris" ; "A mulher de areia/Per^1 18

teia os cabelos de folhas de palmeiras" ; "0 rio da noite ba-119

nha /O alicerce das tuas pernas" ; "negra floresta, profun-120

da,/Adormece em teus pentelhos" . Murilo alimenta o signo Mu­

lher, como elemento fomentador de imagens — a poesia — , dinami­

zando, pela via da indefinição, o processo: "Em ti encon­

tro as idéias da criação: És pássaro e flor, pedra e onda variá^

vel.../E, mais que tudo, a nuvem que volta e se consome/Dormir,

sonhar — que adianta, se tu existes?/Se fosses forma somente!121

És idéia também" . Signo, como se vê, plurilinguístico e trans

temporal: o tudo em todos. Murilo, ao melhor sabor da modernidci

42

de resgata o corpo do totalitarismo amorfo e diluidor; investe

na imaginação; recupera a memória.

"Somente a idéia de Deus vindo exteriormente poderia res

gatar interiormente a idéia inata degenerada... A felicidade vem122

da harmonia entre o ritmo da vida exterior e da interior" . Deri

tro da perspectiva adotada de analogização dos princípios cris^

tãos desencadeada por Murilo Mendes, onde a vida estética não se

opõe à vida religiosa, antes há uma contigüidade, o externo sal­

va o interno e o interno transforma-se em externo... Isto equivéJ

le a pensar que a síntese ou o processo de hibridização corrosivo

no qual o poeta empenha-se, atinge a tensão entre o local e o

cosmopolita. Conforme temos observado, através da análise do peri

sarnento muriliano em seus esparsos e na sua poesia, há um alargja

mento das margens, uma subversão das fronteiras, o que torna-se

possível na medida que o estrangeiro é incorporado. Murilo leva­

rá isto às últimas conseqüências ao vivenciar, pragmaticamente

falando, o estrangeiro. Como é sabido, Murilo Mendes morou mais

de vinte anos na Europa, ficcionalizando esta experiência em

diversos textos, especialmente nas obras Tempo Espanhol e Sicili. 123

ana . A reflexão acerca da devoração do estrangeiro, o que ca­

racteriza um projeto antropofágico, é manifesta na leitura que

faz de Di Cavalcanti, quando salienta que a técnica de Paris é

transplantada para o terreno da pintura brasileira com "aguda

inteligência" pelo pintor que "assim coloca o nacional no plano

do universo, numa fecunda operação de síntese e fusão de valores124

tão constante no ambiente cultural de nossa época" . Aqui, Mjj

rilo, ao falar, consente. Adota uma posição universalista, extre

mamente coerente com o que já abordamos (crítica ao atraso,dese­

jo do "cosmos", pluralidade, etc.). Com isto, tensiona o sistema

literário brasileiro (ainda que isto não tenha sido enfatizado

43

pela tradição crítica), porquanto opõe-se aos nacionalismos em

voga à época. Visualizava nos desenhos de Ismael Nery, seguindo

a hipótese, "um contraponto em que se alternam motivos e temas

de países diferentes, fundidos na constelação superior do céu da

arte, acima das fronteiras da nacionalidade, provando a unidade125

espiritual do gênero humano através da variedade, dos detalhes"

Tal crítica antinacionalista é contextualizada frente à temática

da deseuropeização, sobre a qual, anota Murilo, tecia comentár^

os Mário de Andrade a Manuel Bandeira em 1925. Esta idéia — a

deseuropeização — vulgariza-se em muitos que procuram uma "cons

trução plástica baseada em dados específicos brasileiros". Muri^

lo Mendes duvida de um fazer brasileiro, opinando que nos dev£

ríamos construir no plano da universalidade, já que somos mistu­

ras de tendências e atitudes. Sua idéia de que somos "uma vas126

ta ópera desordenada" lembra, inequivocamente, a "Alquimia127

do Verbo" de Arthur Rimbaud, que afirma o mesmo . Essa concep­

ção, portanto, problematiza o folclore distanciado do crivo eru­

dito. Para tanto, toma como exemplos bem sucedidos de síntese pci

pular/erudito Villa Lobos e Di Cavalcanti. Sobre o primeiro, lem

bra o resgate que o autor das "Bachianas Brasileiras" faz dos

elementos locais à comunidade lírica, à herança cultural, a uma128

humanidade religiosa cantante e dançante

Frente ao decorativismo dos temas locais, que havia pr£

duzido, talvez, o pior do nosso romantismo,o qual fora, de certa

forma, retomado pelos movimentos "Anta" e "Verde-amarelismo" e

por muito do rotulado "Romance de 30", Murilo elege um espírito

aberto às várias tendências da arte moderna, tomando como inspi­

ração a síntese plástica de Ismael Nery. Diante da estranheza e

dos limites de certo nacionalismo que conduz perigosamente ao

clichê, à caricatura de identidade nacional, propõe a diferença

44

pela síntese. Neste sentido, Murilo Mendes lê, especialmente no

nacionalismo de cunho folclórico, uma forma de retenção cultural

sob a máscara da identidade, colocando-se à margem do populismo

getulista e do pastiche stalinista. 0 sociólogo Murilo constrói

na análise da postura de Nery, uma teoria da transcultura: é-se

nacional por ser internacional. "Se sou brasileiro, minha arte

refletirá, necessariamente, a psiquê brasileira; não adianta129

programa" , dizia Nery. Por outro lado, é bom ressaltar, ain­

da que esteja implícito naquilo que comentamos sobre Villa Lo­

bos e Di Cavalcanti (a síntese erudito/popular; nacional/univer­

sal), que é possível constatar um nacionalismo estético em Murilo

Mendes. Isto atinge grau intenso no grandioso Contemplação de Ou

ro Preto, livro em que o delírio imagético de Minas transpa-

ce em longos poemas que revelam a presença, além do tempo, do

permanente humano, o transitório no eterno, remetendo, de uma130

forma épica, a um sentido universal. No caso de Wagner , o

crítico entende, dentro da preservação da unidade cósmica do

gênero humano, que o nacionalismo exaltado do músico alemão

acaba atentando contra a sua própria modernidade técnica, confi­

gurando o paradoxo do moderno conservador.

0 que temos visto até aqui, leva-nos a pensar em concei­

tos que definem esta transgressão do espaço local — "sou cada131

vez mais universal e mineiro" , constata Murilo. Referimo-nos,

por exemplo, ao conceito de desregionalização que Mário de Andrja

de utiliza para definir o espaço nacional e — mais recentemente —132

ao conceito de extraterritorialidade, de George Steiner . De-

bruçando-nos sobre este último, talvez seja pertinente retomá-lo

aqui: Steiner ao tomar Borges e Nabokov como paradigmas, conce

be as formas linguísticas num "estado de potencialidade múlti-

plice". Coloca a idéia do poeta sem casa — o exílio na linguagem-,

45

vagabundo através de várias línguas, fora do espaço e do tempo —

o que coincide, em algum aspecto, com a versão essencialista de

Ismael Nery — , justamente pela sua extraterritorialidade. Em Mu133

rilo é plausível esta aproximação , ainda mais se levarmos em

conta que escreveu obras em francês, italiano, português e es­

panhol. 0 poeta como porta-voz do seu mundo. Vale dizer, não só a

linguagem é transeunte, mas o espaço também o é.

Os vários aspectos que temos abordado nos textos murili£

nos são generalizáveis num movimento sincrônico sobre um espaço

literário. Se o poeta é um bailarino em Murilo Mendes, como conce

bemos, ele procura neste espaço suas relações, suas figurações.

Procura, sobretudo, neste espaço criado, seus companheiros de dan

ça, mais que isto, deseja-os. Diante das tensões que o envolve, o

poeta-bailarino arregimenta forças para o salto. Toda expansão ad

vem de uma tensão, o que é um princípio básico na técnica de da£

ça contemporânea de, por exemplo, Marta Graham. Quanto maior a

tensão, maior o salto. 0 salto, como o salto virtuoso de Nijinski,

em 1917, que Murilo assistiu fugindo do internato, o salto rompe

fronteiras entre o eu e o tu, entre a vida e a arte, ente o homem

e o poeta. 0 salto, como vislumbra Maurice Blanchot, é o movimen-1 34

to-forma da inspiração . É neste sentido que pensamos num "ba.1

let sincrônico" através dos textos murilianos dos anos 30 e 40

principalmente. Esta rede de relações que nasce a partir do poe­

ta, o diálogo que estabelece com seus prediletos, leva-nos à i-

déia de uma ânsia devoradora na poesia e na crítica de Murilo

Mendes. Mais feliz que isto é a expressão "antropofagia sincrôni-

ca" que Raúl Antelo utiliza para definir a ação muriliana na cria135

ção de sua linhagem e expansão das fronteiras do literário . 0

46

poeta-bailarino ensaia seus movimentos no eixo sincrônico, mas

converge no eixo diacrônico, num signo transtemporal e presenti-

ficador: o cometa. Não queremos antecipar discussões, mas é cla­

ro que estamos pensando aqui com Haroldo de Campos quando este

chama a atenção para o caráter dialético do par sincronia/diacrc)

nia, onde "a partir de cortes sincrônicos sucessivos é possível1 36

fazer-se um traçado diacrônico renovado da herança literária"

Insistindo ainda sobre a noção de extraterritorialidade,

vemo-la implícita no pensamento muriliano e expressa em vários

momentos. Baseado na concepção de que a vida é "essencialmente 137

dinâmica" , o próprio Cristo, como Criador e Poeta, é apresen­

tado como destruidor da rotina, como pessoa que desceu na terra

e se movimentou entre os seus, expandindo-se nos crentes, num138

lance dinâmico e universal . É possível pensar, portanto, numa

estética do movimento em Murilo Mendes, o que se coaduna com os

signos de sua modernidade que norteiam a nossa análise: o cometa

e o bailarino, ainda que tal dinâmica possa conduzir ao silêncio

e ao branco produtivo. Positivamente, o crítico Murilo salienta,

em mais de uma ocasião, a tensão filosófica de Nery, o seu incori

formismo com os limites: "sempre quis transbordar dos quadros n£139

turais por achar a realidade restrita demais" . Em "Viagem ao

Recife", esta questão do espaço desregionalizado é apresentada

em termos concretos: "Não tenho preconceitos nem compromissos

bairristas, além disso, venho do país das Minas Gerais que não140

tem mar" . Neste sentido, Murilo é um escritor supra-nacional:

não pertence a nenhuma literatura. Transita pelo espaço estran­

geiro sem subordinar o nacional. Despreza, com isto, o estatuto

colonizador.

0 poeta-bailarino, na medida que dança, contextualiza e

converge sobre o texto. Expande, assim, o estatuto da própria pci

47

esia e, principalmente, da crítica literária, ao relativizá-la.

Circula sobre outras séries sociais, criando um espaço, através

da escrita, integrador. Relaciona artes e gêneros entre si, carac

terizando a obra como grande sistema de articulações num tempo

marcado pela crise da representação da realidade. É possível, des

ta forma, incluir Murilo Mendes no largo processo de ruptura de

gêneros na América Latina estudado por Haroldo de Campos, que

nos diz a respeito do papel do jornal dentro deste processo: "A

emergência da grande imprensa desempenha um papel fundamental nos

rumos da literatura. A linguagem descontínua e alternativa, ca­

racterística da conversação, vai encontrar na simultaneidade e

no fragmentarismo do jornal seu desaguadouro natural. A importar^

cia do jornal não escapou nem a Hegel, nem a Marx. Aquele refe­

ria que a leitura do jornal passava a ser para a nossa época, u-

ma espécie de oração filosófica matinal; este, refletindo sobre

a impossibilidade da épica, tal como a conceberão os clássicos,

em nosso tempo, usa de uma bela paranomásia para exprimir que,

diante da imprensa, a fala e a fábula, o conto e o canto... a mu

sa dos gregos enfim, cessam de se fazer ouvir. E Mallarmé, que

via na imprensa 1 o moderno poema popular ', uma forma rudimen­

tar do livro enciclopédico e último dos seus sonhos, inspira-se

nas técnicas de espacialização visual e titulagem da imprensa c£

tidiana, assim como nas partituras musicais, para a arquitetura141

do seu longo poema constelar ' Un Coup de Dés' " . 0 longo

trecho vem embasar teoricamente um dos instrumentos mais freqüen

tes de que nos valemos para analisar o pensamento de Murilo Men­

des: os seus textos no "Letras e Artes". Extrapolando a função

referencial, política e econômica, o jornal é tomado pelo poeta

como veículo para ficções, como campo do imaginário. 0 jornal: £

ma grande ficção. Especificamente no caso de "Letras e Artes",

48

Murilo constitui-se num discurso deslocado, na medida que o su­

plemento está eivado de tendências acadêmicas, na maioria dos

casos. Além disto, está centrado geograficamente no Rio de Jane_i

ro, com um perfil getulista. Sendo assim, Murilo flexibiliza o142

espaço em que se inscreve

Ao transitar pelo meio fugaz e transitório do jornal, o

poeta sonha o eterno (o eterno enquanto um tempo sincrônico, plu­

ral). Desdobra o ato crítico com maestria e erudição, interpondo

planos, cruzando disciplinas e autores, épocas e países. Seu ob­

jeto de crítica é tão múltiplo quanto produtivo. Música, religi­

ão, pintura, dança, literatura, ecologia, numa grande lavoura po

limorfa. Sua interdisciplinaridade é ativada mediante a aplica­

ção de princípios literários na interpretação de pinturas; de

princípios musicais na abordagem da poesia; de princípios plás­

ticos, na leitura da dança, e assim por diante. Alimenta-se da

reflexão crítica, numa metalinguagem generalizada. Devora: na

crítica busca o tu que possa montar a sua própria identidade que

tende à dispersão. A identidade parece-nos que passa aqui, sobre^

tudo, por um reconhecimento de alteridades. Diante do eu cindi­

do, duplicado, multiplicado, a reorganização que cria a ilusão

da unidade se dá via consciência construtiva. A sobreposição de

discursos é também a tentativa de achar uma dicção: um pacto da

f ala.

Se a literatura lê enquanto é lida, o poeta bailarino

dança enquanto é dançado (daí o aforisma.: "o verdadeiro dan-143

çarino é dançado" ), ou seja, o texto constrói-se

pela incorporação crítica do dado alheio. É o que temos visto ao

longo das inúmeras citações nas quais Murilo desenha um quadro

49

de modernidade pela visão — nunca objetiva — do outro: Ismael

Nery, Di Cavalcanti, Lasar Segall, Villa Lobos, Mozart, Bach,

de Falia, Jorge de Lima, Lívio Ábramo, Matisse... Uma constela­

ção. Há nesta incorporação um sentido dramático, de representa_

ção. Murilo cultiva sua figura de modernidade, a metástase, no

seu sentido inicial, qual seja, a figura pela qual o orador atri^

bui a outrem a responsabilidade de seu enunciado. Murilo vê pelo

olho alheio e, assim, multiplica-se. Isto, na medida que é seu

gozo, é também seu desespero, vale dizer, o choro do poeta atu­

al: ser outros, ser vários homens em vários tempos, numa angús­

tia do múltiplo. 0 bailarino gira, e neste giro produz a miragem

das várias pessoas numa só. 0 multi-homem. "0 homem é o grande144

assunto do homem" . Há nesta recuperação, terna e existencial,

um quê ecumênico filtrado pelo amor cristão. Murilo almeja a co­

munhão, não a massa, é preciso salientar.145

Em um aforisma , Murilo constata a falta de leveza ne­

cessária ao homem para perceber a matéria, vale dizer, perceber

o próprio homem. 0 poeta-bailarino vem suprir esse dado porquan­

to apresenta-se como corpo que procura outro corpo, que desenha

a sua dança entre os homens, costurando o espaço. Ele tem a po­

tencialidade do vôo. Ele voa. A dança, neste sentido, é retomada

enquanto ritual, "é um desdobramento da revelação poética; uma

confrontação plástica do homem com o destino; um ritual de encaji 146

tação" . 0 poeta-bailarino, como um menino experimental, int£

gra não só a matéria humana, mas confunde ser e objeto o que é

uma forma de conhecer Deus: "adora a corda, o revólver, a tesou­

ra, o martelo, o serrote, o torquês. Dança com eles. Conversa-147

os" . Assim, o poeta, menino e bailarino, anuncia, intratextu

almente, a definição de uma poética a realizar-se no porvir. Es­

tamos referindo-nos à última poesia muriliana, onde este proces­

50

so vai se substantivar como, por exemplo, em "Grafito para Má­

rio de Andrade", onde o eu do poema invade o outro do poema.148

Discursa por ele, amplia-se nele: "sofro de brasilite..." ,

A dança, portanto, na nossa figura, é, sobretudo, a possibili­

dade, alegre e tensa, de ser o tu; a possibilidade do múlti-149

pio. 0 poeta é ex-ergo : a disseminação do um no outro.

Há um fascíjénio neste ler-se constantemente no outro:

a des-coberta de princípios estéticos. Murilo Mendes declarou-

se um "franco atirador" nas artes; sua formação literária foi150

precoce e complexa . Misturava leituras, abrindo-se a todas

as correntes. Era seduzido por tendências antagônicas. Penetra_

va no estranho para encontrar o familiar. A propósito, Alcântjs151

ra Silveira, em homenagem a Murilo Mendes no "Letras e Artes" ,

compara-o justamente a um dançarino, "incapaz de executar duas

vezes o mesmo passo de um bailado, renovando-o e criando-o à

vontade". Talvez o artigo valha por esta observação (no nosso

caso, mais do que sintomática). A dança — e a hipótese compa­

rativa dança e literatura merece ser aprofundada além deste es

tudo — favorece esta concepção do profético e do mágico; ou

encantamento para Murilo. Ela sugere a reposição de vínculos e

relações insólitas; a articulação de tempos e movimentos dive£

sos, o que aponta para a condição intervalar do texto moderno.

0 poeta-bailarino enquanto criador de movimentos é o potencial

da vanguarda.

Nery, como Murilo, "lia no grande livro aberto dos ho-152

mens e da vida" . Esta estratégia de devoração que estamos

caracterizando, pela figura do poeta-bailarino, aponta para o

que tratávamos antes, ou seja, a questão da procura da iden­

51

tidade. Fala-nos Murilo que Ismael Nery admirava o papel do ci­

rurgião na medida que este intervém no outro, participando na

obra divina. Tal fato prosaico é elevado, como de resto tudo em

Murilo, a princípio estético e existencial. A escritura é sig­

no de signo: o mesmo só é o mesmo fingindo ser o outro, atuando

no outro. 0 mesmo só é o mesmo deixando de ser o mesmo. Daí a

idéia, aventada pela crítica da modernidade, da escritura como

suplemento do original, como cópia; da identidade como não-iden

tidade. É o que vê Murilo em Nery: uma discrepância entre os

planos e as possibilidades, a imaginação maior que o material.

Vale frisar, é preciso sair de si mesmo para ser o outro e ser

o eu-mesmo. É o que revela também um poema publicado no "Letras

e Artes" em 1948 e que mais tarde aparecerá no livro Parábo-153

las : Quem um dia dançou os pés de outro?/Todos os que da£

çam, todos/Apenas dançam seus próprios pés.../Quem se sente

poeta pelo que não o é?".

Ora, a relação do eu com o outro que se vê em Murilo

Mendes leva-nos a idéia da literatura contemporânea enquanto

transmodelizações. Entende-se, principalmente após Jorge Luís

Borges, que não se cria a partir do nada. Trabalha-se com mode­

los. Isto não significa plágio, na medida que plagiário é aque­

le que digere mal os outros. Contudo, se a literatura é, efeti­

vamente, desde a concepção valeriana, uma questão de estômago,

no caso do nosso poeta, Murilo Mendes, temos pela força de sua

obra, uma digestão bem feita. A exemplo do ápice macunaímico,

onde configura-se uma rede de conexões intertextuais, delibera­

da ou inconsciente, em Murilo Mendes as referências sucendem-se,

num processo seletivo que vai ser decisivo no tecido poético dos "Muri154

logramas", dos "Grafitos" e dos "Retratos-relâmpago" . A aproximação de Mu

rilo com Borges é plausível na medida que ambos trabalham com materiais

heterogêneos, numa atitude de inversão da fonte cultural. NSo se trata, contudo, de

52

mera apropriação, mas de transformação de cânones, de montagem de

textos. Com efeito, dentro desta perspectiva, a idéia de roubo £

merge. 0 asalto é impune: ao fragmentar textos, ao lidar com re­

síduos do antigo saber, o poeta da modernidade distribui estes

traços em novos textos. Como dizíamos, o texto é transeunte. Ele

existe enquanto circula, de mão em mão. Ou de olhar em olhar. Mij

rilo parece ter plena consciência disto enquanto afirma que "a

pintura não pertence apenas aos pintores, pertence a toda humani

dade. De resto, quando um pintor termina um quadro não é mais

seu: como ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, ninguém olha

de duas maneiras iguais o mesmo quadro. Um quadro é recriado inú155

meras vezes..." . Aqui, o leitor borgeano manifesta-se. Ainda

que tratando de pintura, a basculação de categorias plásticas pa

ra a literatura em Murilo é algo estrutural.

Radicalizando: todo texto pode ser violado ; o poeta, na

medida que dança, que visita, rouba. Ser o eu é ser o outro. Co£

tudo, a devoração não esquece a diferença, pois, por trás da in­

clusão, há atos de exclusão do que não é digerível. A literatu­

ra, segundo entende a crítica mais lúcida, esquece porque não pc}

de lembrar e lembra porque esquece. Mais do que simples jogo de

palavras, isto é um dado decisivo na identificação de certa es­

tética da modernidade pela qual transita Murilo. 0 eu que se de_s

loca no outro é um eu que procura se identificar pela diferença.

Diz-nos Murilo. "As influências são úteis e necessárias aos espí_

ritos fortes que sabem transformar os moldes recebidos, e criar156

generosamente novos tipos de expressão"

Nos textos de "Letras e Artes", não restam dúvidas, o

grande companheiro de dança, o grande devorado, é Ismael Nery. A

construção hiperbólica deste ator cristão, capaz de desempenhar

53

vários papéis — humanista, arquiteto, desenhista, pintor, poe­

ta, filósofo, teólogo e, não por acaso dançarino ("Era, por exem157

pio, dançarino notável" ) — , a construção deste ator alimenta

o arcabouço teórico muriliano e define estratégias textuais da

poesia dos anos 30 e 40. A sobreposição de imagens, os encontros

inusitados de feições surrealistas, a transgressão da ordem espa-

cio-temporal, por exemplo, são discussões engendradas que vão eri

contrar em Nery o interlocutor inquieto. É sintomático que Muri­

lo nos diga que Ismael era um escultor-destruidor de seus pró­

prios trabalhos: criador prolixo, desenhava por cima de outros d£

senhos, manifestando, aí, a idéia do palimpsesto, bem mais tarde

estudada por Gerard Genette. A configuração, desta maneira, de

Ismael Nery, desenha o artista como herói e suicida. 0 improvisa-

dor que escreve no mundo nomeia o universo, desde uma concepção

adâmica, engendrando uma segunda natureza, isto é, avança na cons

trução do imaginário. 0 ator re-presenta, mas nesta devolução,

revoluciona; reorganiza; destrói. Isto, de alguma forma, pode ser

o germe da empresa construtivista em que Murilo Mendes vai envol­

ver-se na sua última poesia.

Mas insistamos na questão do ator e do mundo como teatro.158

"Em Apontamentos" , o autor de Poesia em Pânico informa-nos so­

bre a importância que assume para ele, desde a adolescência, o

lado teatral da existência. Murilo Mendes superlativiza, neste

sentido, a elucidação de São Paulo quando diz que "somos ofereci­

dos em espetáculo para o mundo, aos homens e anjos", definindo o

mundo como texto e cenário onde desenrola-se o drama da existên­

cia. "Somos todos atores no grande espetáculo do universo", diria

Nery. "Todo teatral é humano e todo humano é teatral", completa-159

ria Murilo. . Sendo assim, com base no próprio rito litúrgico

(a crucificação consentida), o sentido trágico da existência é as

54

similado pelo poeta Murilo, orientando sua obra em direção ao eri

frentamento exterior/interior, a indagação do ser contraditório,

tendo em vista "a vocação transcendente do homem", máxima ismaeLi

ana incorporada pelo pensamento de Murilo. Ao retomar o teatral,

o dramático, convergindo-o no lírico, o poeta, numa hibridização

de gêneros, investe na concepção de que a vida é um sistema de

ficções. A ficção cria a realidade e não o contrário. 0 real to^

na-se contemporâneo ao texto (ou posterior até). A natureza é

ficcionalizada e o próprio homem enquanto texto, também o é. A

natureza é operacionalizada em cultura e o real elevado a um se­

gundo grau.

Desta forma, Nery retorna ao social como ator. Para cieji

tistas sociais como Alain Tourraine, a imagem da unidade do mun­

do está rompida. 0 sujeito moderno declina em direção à cisão, à

crise. Neste sentido, o poeta-bailarino é um ator social, agente

resubjetivador num palco vazio de atores. 0 ator, em Nery e Mu­

rilo, herda a rebeldia baudelairiana: é um refratário quanto as

mudanças da urbe em transformação contínua. Questiona a velocidjj

de, enquanto tecnologia do poder, num viés surpreendentemente pójà

moderno (Murilo se afirmava antitécnico). 0 ator marginaliza-se

num contexto marcado por um número reduzido de personagens. Ele é

avesso à publicidade por isto. Sua forma de ação interioriza-se160

frente ao mundo da massa para lembrar a reflexão de Baudrillard

Enfrentam-se aqui o valor poético da individualidade e o valor

político da massa. A velocidade, vale dizer, atuando aliada ao

poder, acelera o fluxo que transforma o sujeito em massa. Curio­

so lembrar que, nos anos 40, Murilo, numa visada ecológica, la­

menta os arranha-céus no Rio de Janeiro e a pressa urbana que im161

pede a conversa ou, em outras palavras, impede a contracenação

0 crítico Murilo antecipa, assim, uma discussão que só agora pa­

55

rece atingir a proporção trágica conferida então: 0 Rio de Ja­

neiro transformado numa "arena entre a nova técnica e a natureza

bárbara., testemunho de desajustamento cultural, espiritual e po­

lítico do homem brasileiro. Lugar dos mais violentos contrastes;

a capital burguesa da angústia e da injustiça social; sede de um162

drama de enormes proporções..." . 0 ator social resiste, no pia:

no da cultura, à hegemonia d.o sistema modernizador. Saliente-se

que, hoje, não se pode mais confundir modernidade com moderniza­

ção, uma vez que, a exemplo de Murilo-Nery, podemos ter agentes

modernos não modernizadores. Antes, a modernidade pode ter uma v_i

são crítica do progresso, conflito, aliás, que a constitui.

Nery mantém-se na pista da catástrofe, experimentando o

atrito das coisas. Sua ação isolada aponta, justamente, para a cri.

se da modernidade, se lembrarmos,ainda, a leitura de Alain Tour-

raine, quem denuncia o abalo contemporâneo das formas de ação co­

letiva. 0 ator instala-se na crise e vive seu paradoxo: ao mesmo

tempo que é agente da modernidade depara-se com seu colapso. Por

outro lado, esta concepção revela otimismo na medida que postula

a criação de atores sociais. A modernidade é vista como duração,

processo que cria seus sujeitos. Na base desta perspectiva está

o alargamento do espaço e do tempo mediante a incorporação do imj3

ginário, do corpo, do cérebro. 0 bailarino dança, o ator age. 0

poeta, enquanto sujeito, produz. Recupera formas de ação coletiva

numa espécie de religiosidade ecumênica, embora, esta participa­

ção, em Nery, dê-se mais no plano cósmico. Nery procurava restau­

rar a poesia em Cristo, a idéia da grande família universal, apoi^

ado no dogma da unidade do gênero humano. Sendo assim, via no ca­

tolicismo uma construção harmônica. A abstração não era oposta à

realidade. "Aspirava os malabarismos orgíacos de um Nietzsche na163

clara visão de um S. Tomas de Aquino" , o que levava Murilo a

56

observar que "jamais conheci um homem tão social quanto este grja

de universalista". Dentro desta linha de conduta, Nery estava,

de fato, opondo-se ao conservadorismo católico, definido como

tradição morta, inerte, "incapaz de renovação e participação nas

coisas vivas". É o que Alain Touraine identifica na igreja con-164

servadora da América Latina : a vida pública e a vida privada

não estão separadas, sendo que a "Teologia da Libertação", como

teoria renovada da modernidade, procura combinar universalismos

e particularismos. Isto está expresso também no projeto de Leo­

nardo Boff que visa integrar a fome de Deus com a fome de pão.

Contudo, se, por um lado, é possível estabelecer víncu­

los da ação do ator-cristão Ismael Nery com o recente processo

de renovação social do catolicismo, por outro, pela análise fei­

ta do processo estetizante por Murilo Mendes, desde Ismael, é

preciso frisar que as concepções ismaelianas passam ao largo de

certas conotações da Teologia libertária, como a ligação desta

com movimentos nacional-populares e nacional-revolucionários. No

Brasil, a concepção libertária da teologia encerra, como observa

com pertinência Touraine, um movimento social duplo, de mobili­

zação e, ao mesmo tempo, de recusa de integração. É alimentada

menos por um marxismo racionalista do que por categorias à mar­

gem do processo de mudanças sociais, reunindo intelectuais, mas,

principalmente, excluídos.

De qualquer forma, interessa-nos, sobretudo, apontar a-

qui um processo discutido por Touraine e que está inserido na

escritura muriliana, no seu legado: o contexto de crise da modej:

nidade. Se Nery viveu o "pré", Murilo apontou para o "pós". Des­

de a filosofia do progresso que move a modernização no século

XV, não seria o "fervor religioso", ismaeliano e muriliano, um

sinal do seu esgotamento? Esta pista está implícita no raciocí­

57

nio de Touraine. Mostra-nos o sociólogo francês que o triunfo da

tecnologia conduziu-nos ao reino do interesse, concorrência e po­

der. Daí, um desencanto pós-moderno, um palco esvaziado. Uma pe­

ça lacônica silenciosamente encerrada diante do término do modelo

racionalizador. 0 bailarino dança o silêncio. A crise da moderni­

dade é uma crise de expectativas e aspirações frustradas que re­

forçam o seu dilaceramento. Contudo, o paradoxal é que tal crise

que, de resto, passa pela questão da identidade, da evolução e,

em última análise, da palavra, solicita uma nova ação social, um

novo texto, gerando novos atores. Neste período de incertezas, o

discurso comunitário cristão, de Nery e Murilo, por exemplo, on­

de se misturam desconfiança em relação à política e compaixão pe­

lo sofrimento humano, teve e tem, uma força perturbadora. Com e-

feito, o ator Ismael provava sua militância no dia-a-dia, passan-165

do em revista os problemas da humanidade de todas as noites , co166

mo um ator prometeico. "Um teólogo que dança" , confirma Muri­

lo .

Esta concepção existencialista do sujeito como ator soci­

al é detectada por Murilo Mendes na obra de Camus. Neste, ressalta

a atitude de artista heróico, antitotalitarista, "contra a hiper­

trofia política", pelo "auxílio mútuo no plano da resistência in- 167

ternacional" . Em que pese a sua filosofia do desespero, trata-

se de um ator que se nega a descrer nos homens e na sua "possi­

bilidade de libertação".

Na concepção trágica muriliana, o teatro desperta terror

e piedade, sendo estes os pólos onde a vida se desdobra. Contudo,

desde o antigo mundo grego, o sentido da metamorfose, que tem i-

gualmente raízes do cristianismo, é introduzido: tudo se transfo_r

mará. Se as instituições são precárias, se o texto é transeunte,

se a forma é provisória, resta a idéia de que as máscaras venham

58

a cair e surja a forma definitiva assumida diante do Criador

A configuração da crise relaciona-se com o Apocalipse,

tema tão fundamental no pensamento muriliano. "0 espírito do ho­

mem moderno caracteriza-se pelo cansaço das experiências inú-169

teis... não há mais coletividade, predomina o heterogêneo" , a

firma Murilo, num tom de manifesto, apontando para um tempo con

vergente, de reconhecimento da crise. Por isso, é sintomático

que, em 1921, Nery se preocupasse com a desintegração do átomo.

Andava na pista da catástrofe, efetuando a conjugação de fenôme­

nos fora do tempo. Uma interpretação trágica da existência que170

apontava para o suicídio coletivo ou retorno a Deus . Vale di­

zer, ensaiava a ligação do fim e do princípio, na ânsia de abar­

car o múltiplo, na vontade de respirar unidade onde só existia

fragmentação. Acreditava numa imensa transformação próxima, apo­

calíptica, onde a idéia de Deus seria instaurada em novas bases.

Alimentava-se de um utopia só possível, mediante um processo ca-

tártico. Talvez fosse difícil aceitar que no seu tempo o frag­

mento é a totalidade. Contudo, o maior mérito desta figura múlti^

pia do poeta como bailarino, menino ou ator, talvez seja o reco

nhecimento da crise como um valor. Na medida que instala-se na

crise, produz e constrói o texto clivado da modernidade. É den­

tro desta perspectiva que Murilo lê outro dançarino em Invenção

de Orfeu, como um texto em que transparece cansaço. Daí, uma o-

bra com acentuado caráter teatral, com muitos poemas que podem

ser atos dramáticos; uma obra com a representação de vários pa­

péis; uma obra que, apesar do rigor, ao tematizar a queda, "en­

cerra uma dominante anárquica", apontando, contudo, para a tran^

figuração. 0 seu mérito é enfrentar os abismos (a crise como va­

lor...). Neste sentido, Murilo sugere outro título ao livro: "R£171

trato do homem poeta miserável e transfigurado"

168

59

A relação, portanto, em Murilo Mendes, do sagrado com o

poético aponta para o enfrentamento de tensões, para a aceitação

das contradições inerentes ao ser humano, sendo isto estabeleci­

do nas dobras do texto. Daí emerge uma visão moderna, fundamenta^

mente se tomarmos o moderno como entidade tensa e instável que

pressupõe a crise, gerada de uma disfunção do sistema, da cisão en

tre homem e natureza; política e sociedade. Sendo assim, a cri­

se emerge como um valor, como produtora de problemas que encer­

ram o cruzamento de múltiplas relações. A modernidade em Murilo

Mendes envolve uma dialética irresolvida de destruição e constrjj

ção, de morte e vida, solucionadas somente pela via do paradoxo.

Seu texto é aberto. Parece-nos que, desta forma, o poeta aceita

o desafio da modernidade, qual seja, a explicitação de conflitos

para serem vividos no corpo do texto. 0 poeta-bailarino dança zo

nas obscuras da poesia, residindo, aí, talvez, sua maior força e

grandeza.

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C A P Í T U L O 1 - n o t a s

BARTHES, Roland. 0 Rumor da Lingua, trad. Mário Laranjeira. São Paulo, Brasiliense, 1988.

IDEM, ibidem.

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MENDES, Murilo. "Recordação de Ismael Nery I", in "Letras e Artes", Suplemento de A Manhã, Rio de Janeiro, 6 jun. 1948, pág. 7.

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CÂNDIDO, Antônio. Brigada Ligeira. São Paulo, Martins, s/d.

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Idem, ibidem.

PAZ, Octávio. Signos em Rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo, Perspectiva, 1976.

"Recordação de Ismael Nery IX", in "Letras e Artes", op. cit., 15 ago. 1948. pág. 5.

"Recordação de Ismael Nery VII", ibidem, 1 ago. 1948, pág. 5.

Idem, ibidem.

"Música de Camera", ibidem, 19 maio 1946, pág. 7.

"Recordação de Ismael Nery VIII", ibidem, 8 ago. 1948, pág.5.

Idem, ibidem.

Idem, ibidem.

Recordação de Ismael Nery X", ibidem, 22 ago. 1948, pág. 5

Recordação de Ismael Nery XII" , ibidem , 12 set . 1948, pág. 5.

Recordação de Ismael Nery II", ibidem, 13 jun. 1948, pág. 5.

Recordação de Ismael Nery IX" , ibidem, 15 ago. 1948, pág. 5.

Recordação de Ismael Nery II", ibidem, 13 jun. 1948, pág. 5.

Recordação de Ismael Nery XV" , ibidem, 10 out. 1948, pág. 5.

Recordação de Ismael Nery XI" , ibidem, 5 set. 1948, pág. 5

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61

"Marcos Konder Reis", ibidem, 21 dez. 1947, pág. 7.

Idem, ibidem.

"Recordação de Ismael Nery IX", ibidem, 15 ago. 1948, pág. 5.

"Aforisma 303". in 0 Discípulo de Emaús. Rio de Janeiro, Agir,1946, pág. 59.

"Recordação de Ismael Nery IX", in "Letras e Artes", op. cit., 15 ago. 1948, pág. 5.

"Aforisma 557". in 0 Discípulo de Emaús, op. cit., pág. 104.

"0 Apóstolo São Paulo I", in "Letras e Artes", op. cit., 1 fev.1948, pág. 5.

"Marcos Konder Reis", ibidem, 21 dez. 1947, pág.7.

"Recordação de Ismael Nery V", ibidem, 11 jul. 1948, pág. 5.

"Aforisma 477". in 0 Discípulo de Emaús. op. cit., pág. 92.

"Lívio Ábramo", in "Letras e Artes", op. cit., 29 abr. 1951. pp. 1 e 10.

"Microdefinição do Autor", in Poliedro. Rio de Janeiro, José Olympio, 1972.

"Mapa", in "Letras e Artes", op. cit., 14 nov. 1948, pág. 5.

"Somos Todos Poetas", in A Poesia em Pânico. Rio de Janeiro, Cooperativa Cultural Guanabara, 1938, pág. 49.

"Formação de Discoteca XIII", in "Letras e Artes", op. cit.,19 set. 1948, pág. 5.

ANDRADE', Mário de. Cartas para Murilo Miranda. Notas de Raúl Antelo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.

"Recordação de Ismael Nery XV" , in "Letras e Artes", op. cit., 10 out. 1948, pág. 5.

"Formação de Discoteca VII", ibidem, 18 ago. 1946, pág. 7.

"Aforisma 521". in O Discípulo de Emaús. op. cit., pág. 99.

"0 Homem, a Luta e a Eternidade", in Poemas (1925-1929), in Poesia (1925-1955). Rio de Janeiro, José Olympio, 1959, pág. 28. ■

"Microdefinição do Autor", in Poliedro, op. cit. pág. XIX.

XIRAU, Ramón. Dos Poetas y lo Sagrado. México, Cuadernos Joa quin Moritz, 1980.

IDEM, ibidem, pág. 12.

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IDEM, ibidem, pág. 13.

"Aforisma 321". in O Discípulo de Emaús. op. cit., pág. 62.

As Metamorfoses (1938-1941). in Poesias (1925-1955). op. cit.

"0 Poeta Futuro", ibidem, pág. 201.

"Pastoral", ibidem, pág. 200.

Idem, ibidem.

"Jerusalém", ibidem, pág 198.

XIRAU, Ramón. Dos Poetas y lo Sagrado, op. cit., pág. 16.

"Bach", in "Letras e Artes", op. cit., 9 jun. 1946, pág. 11.

"0 Poeta Nocaute'.' in O Visionário, in Poesias (1925-1955). op.cit., pág. 114.

" Recordação de Ismael Nery VIII", in "Letras e Artes", op. cit., 8 ago..1948, pág.5.

"Aforisma 434". in 0 Discípulo de Emaús. op. cit., pág. 85.

"Aforisma 307". ibidem, pág. 60.

"0 Apóstolo São Paulo I", in "Letras e Artes", op. cit., 1 fev. 1948, pág. 5.

"Recordação de Ismael Nery X", ibidem, 22 ago. 1948, pág. 5.

"Recordação de Ismael Nery VII", ibidem, 1 ago. 1948, pág. 5.

"Recordação de Ismael Nery IV", ibidem, 4 jun. 1948, pág. 5.

"0 Próximo Cervantes", ibidem, 19 out. 1947, pág. 7.

XIRAU, Ramón. Dos Poetas y lo Sagrado, op. cit., pág. 20.

ADORNO, Theodor W. "Educação após Auschwitz", in THEODOR W. ADORNO. "Coleção Grandes Cientistas Sociais". Trad. Flávio R. Kothe, Aldo Onesti e Amélia Cohn. São Paulo, Ática, 1986.

XIRAU, Ramón. Dos Poetas y lo Sagrado, op. cit., pág. 21.

"Orfeu". in As Metamorfoses, in Poesias (1925-1955). op. cit., pág. 227.

"Aforisma 210". in O Discípulo de Emaús. op. cit., pág. 43.

"Novíssimo Orfeu". in As Metamorfoses, in Poesias (1925-1955).op. cit. , pág. 248.

VALÉRY, Paul. Variedad II: Ensayos casi Políticos; Teoria Poé­tica e Estética; Memórias dei Poeta. Trad. Aurora Bernárdez e Jorge Zalamea. Buenos Aires, Losada, 1956. pág. 167.

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IDEM, "Poesia e Pensamento Abstrato", ibidem, pág. 189. Ten tamos aqui uma tradução.

"Aforisma 729". in 0 Discípulo de Emaús. op. cit., pá. 132.

"Aforisma 377". ibidem, pág. 71.

VALÉRY, Paul. Variedad II. op. cit., pág. 190.

IDEM, ibidem, pág. 192.

"Aforisma 32". O Discípulo de Emaús. op. cit., pág. 17.

"Aforisma 17", ibidem, pág. 15.

"Aforisma 6", ibidem, pág. 14.

VALÉRY, Paul. Variedade II. op. cit.

"Lasar Segall", in "Letras e Artes", op. cit., 20 maio 1951, pág. 1.

"0 Apóstolo São Paulo I", ibidem, 1 fev. 1948, pág. 5.

Expressão usada em exposição no 1 1 Congresso de Associação Brasileira de Literatura Comparada, Belo Horizonte, agosto de 1990.

BARTHES, Roland. "Escrever, Verbo Intransitivo", in 0 Rumor da Língua, op. cit., pág. 38.

"Aforisma 181". in O Discípulo de Emaús. op. cit., pág. 38.

Cf. BARBOSA, João Alexandre. "Convergência Poética de Muri­lo Mendes", in A Metáfora Crítica. São Paulo, Perspectiva, 1974, pp. 117-136.

BERMAN,, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aven­tura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioratti. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.

"Aforisma 350". in O Discípulo de Emaús. op. cit., pág. 67.

"Aforisma 200". ibidem, pág. 41.

"Texto de Consulta", in Sintaxe, Convergência. São Paulo, Duas Cidades, 1970, pág. 209.

BARTHES Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino e Pedro de Souza. São Paulo, Difel, 1985, pág. 8.

"Recordação de Ismael Nery XV", in "Letras e Artes", cp. cit., 10 out. 1948,p.5.

"Recordação de Ismael Nery II", in "Letras e Artes", op. cit., 13 jun. 1948, pág. 5.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. Trad. Maria M. Curioni e Dora F. da Silva. São Paulo, Duas Cidades, 1978, pág. 207.

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SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos: ensaios so bre dependência cultural. São Paulo, Perspectiva, 1978.

BARBOSA, João Alexandre. A Metáfora Crítica, op. cit.

"Recordação de Ismael Nery", in "Letras e Artes", op. cit.,20 j'un. 1948, pág. 5.

Idem, ibidem.

Idem, ibidem.

CAMPOS, Haroldo. "Murilo e o Mundo Substantivo", in Metalin guagem. Petrópolis, Vozes, 1967.

"Impressões da Bahia I", in "Letras e Artes". op. cit., 10 abr. 1949.

"As Artes na Bahia", ibidem, 04 dez. 1949, pág.7.

"Recordação de Ismael Nery XIII", ibidem, 19 set. 1948, pág. 5.

"Impressões da Bahia II", ibidem, 8 maio 1949, pag. 7.

"Formação de Discoteca XXI", ibidem, 24 ago. 1947, pág. 5.

"Formação de Discoteca XXII", "Villa-Lobos", ibidem, 21 set. 1947, pág. 5.

"Formação de Discoteca XXIII", ibidem, 28 set. 1947, pág. 3.

"0 Próximo Cervantes", ibidem, 19 out. 1947, pág. 7.

"Recordação de Ismael Nery XIII", ibidem, 19 set. 1948. pág. 7.

"Lasar Segall", ibidem, 20 maio 1951, pág.1.

"Recordação de Ismael Nery XIII, ibidem, 19 set. 1948, pág. 7.

"Recordação de Ismael Nery XI", ibidem, 5 set. 1948, pág. 5.

"Os Trabalhos do Poeta", ibidem, 24 jun. 1951, pág. 3.

"Igreja Mulher", in A Poesia em Pânico, in Poesias (1925- 1955), op. cit., pág. 183.

"A Musa", in Tempo e Eternidade, ibidem, pág. 128.

"Canto do Noivo", in Poemas, ibidem, pág. 40.

"A Noiva, in 0 Visionário, ibidem, pág. 85.

"A Mulher do Deserto", ibidem, pág.92.

"A Filha do Caos", ibidem, pág. 93.

Idem, ibidem.

"Mulher", in A Poesia em Pânico, ibidem, pág. 169.

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122) "Recordação de Ismael Nery IV", in "Letras e Artes",op. cit.,4 jun. 1948, pág. 5.

123) Tempo Espanhol. Lisboa, Morais, 1959; Siciliana, in Poesias (1925-1955). Rio de Janeiro, José Olympio, 1959.

124) "Recordação de Ismael Nery XIII", in "Letras Artes", op. cit.,19 set. 1948, pág. 7.

125) "Formação de Discoteca XXII", ibidem, 21 set. 1947, pág. 7.

126) Idem, ibidem.

127) RIMBAUD, Arthur. Uma Temporada no Inferno e Iluminações.Trad. Ledo Ivo. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1985, pág. 68.

128) "Formação de Discoteca XXII", in "Letras e Artes", op. cit.,21 set. 1947 , pág. 7.

129) "Recordação de Ismael Nery XIII", ibidem, 19 set. 1948, pág. 5.

130) "Formação de Discoteca XI", ibidem, 13 out. 1946, pág. 11.

131) "Flash", ibidem 15 maio 1949, pp. 8-9.

132) STEINER, George. Extraterritorial: ensayos sobre literatura y la revolución lingüística. Trad. Francisco Rivera. Barcelo na, Barrai, 1973.

133) De fato, Raúl Antelo, em "Murilo Mendes (le tamanoir à Rome)", inédito, já o fez. Diz-nos o crítico: "... nosso poeta é um extraterritorial. Com efeito, Murilo Mendes desterritoriali- zou seus afetos primários (Minas Gerais, coração do Brasil) para investir na linguagem ecumênica a partir de Roma, um ponto externo que flagra o íntimo barroco do poeta".

134) BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de .Janeiro, Rocco, 1987.

135) Já mencionamos até aqui três leitores da modernidade em Mur i10 Mendes: Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa e Raúl Antelo. A estes cabe acrescentar uma predecessora: Luciana Stegagno Picchio no seu memorável "Itinerário Poético de Mu­rilo Mendes", in Revista do Livro, ne 16, Rio de Janeiro, dez. 1959, pp. 61 a 74. A esses mestres devo pistas seguras para o desenvolvimento deste projeto.

136) CAMPOS, Haroldo. "0 Samurai e o Kakemono", in A Arte no Hori. zonte do Provável. São Paulo, Perspectiva, 1977, pág. 215.

137) "Recordação de Ismael Nery V", in "Letras e Artes", op. cit.,11 jul. 1948, pág. 5.

138) "Recordação de Ismael Nery IV", ibidem, 4 jun. 1948, pág. 5.

139) "Recordação de Ismael Nery VI", ibidem, 18 jul. 1948, pág. 5.

140) "Viagem ao Recife I", ibidem, 13 mar. 1948, pág. 5.

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141) CAMPOS, Haroldo. Ruptura dos Gêneros na Literatura Latino- Americana . São Paulo, Perspectiva, 1977, pág. 16.

142) É sabido que Murilo Mendes teve uma contribuição intensa em jornais, suplementos, revistas literárias, catálogos de Arte, no Brasil e na Europa. Podemos lembrar de pronto, a contribuição nos suplementos do jornal A Manhã, do Rio de Janeiro: "Pensamento da América", "Autores e Livros" e "Le tras e Artes"; em A Lanterna Verde; na Revista Letras Bra­sileiras; no Estado de São Paulo; no Boletim de Ariel; e até no jornal 0 Estado, de Santa Catarina, entre tantos.

143) "Aforisma 627". in 0 Discípulo de Eamús. op. cit., pág. 115.

1 4 4 ) "Aforisma 610", ibidem, pág. 113.

145) "Aforisma 328", ibidem, pág. 63.

146) "Aforisma 636", ibidem, pág. 116.

147) "0 Menino Experimental", in Poliedro. Rio de Janeiro, Jo­sé Olympio, 1972, pág. 77.

148) "Grafito para Mário de Andrade", in Convergência, op.cit. , pág. 12.

149) Cf. ANTELO, Raúl. "Concisão e Convergência". Literature d' América. Rivista Trimestale, Bulzoni, Anno V.n. 23, Esta­te, 1984.

150) "Marcos Konder Reis", in "Letras e Artes", op. cit., 21 dez.1947, pág. 5.

151) SILVEIRA, Alcântara. "Murilo , o Mágico", ibidem, op. cit.,3 ago 1947, pág. 3.

152) "Recordação de Ismael Nery I", ibidem, 6 jun. 1948, pág. 7.

153) "Quem", ibidem, 19 dez. 1948, pág. 5.

154) Os primeiros têm sido largamente citados. Retratos Relâmpa­go foi publicado pelo Conselho Estadual de Cultura, Impren sa Oficial do Estado de São Paulo, 1973.

155) "Matisse", in "Letras e Artes", op. cit., 12 out. 1948, pág. 5.

157) "Recordação de Ismael Nery II", ibidem, 13 jun. 1948, pág. 5.

158) "Apontamentos", ibidem, 19 maio 1951, pág. 7.

159) "Impressões da Bahia II", ibidem, 8 maio 1949, pág. 5.

160) BAUDRILLARD, Jean. À Sombra das Maiorias Silenciosas. Trad. Suely Bastos. São Paulo, Brasiliense, 1985.

161) "Recordação de Ismael Nery VIII", in "Letras e Artes", op. cit., 8 ago. 1948, pág. 5.

162) "Lívio Ábramo", ibidem, 29 abr. 1951. pp 1 e 10.

67

163) "Recordação de Ismael Nery IX", ibidem, 15 ago. 1948, pág. 5.

164) TOURAINE, Alain. Palavra e Sangue. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo, Trajetória Cultural/UNICAMP, 1988, pág. 132.

165) "Recordação de Ismael Nery I", in "Letras e Artes", op.cit., 6 jun. 1948, pág. 7.

166) "Recordação^ de Ismael Nery XI", ibidem, 5 set. 1948, pág. 5.

167) "Camus", ibidem, 7 ago. 1949, pág. 5.

168) "Apontamentos", ibidem, 11 jul. 1948, pág. 5.

169) "Recordação de Ismael Nery V", ibidem, 11 jul. 1948, pág. 5.

171) "A luta com o Anjo", ibidem, 17 jun. 1951. pág. 3.

cometa .

"A; memória é uma construção do futuro, mais que do passado".Murilo Mendes, 0 Discípulo de Emaús.

69

0 contato com o pensamento de Murilo Mendes e o desenvo_l

vimento orgânico de sua obra levam-nos, inevitavelmente, à refl£

xão sobre o espaço, o tempo e a palavra, linhas que estruturam

te estudo. Desde os escritos iniciais como, por exemplo, o sinto

mático Tempo e Eternidade, de 1935, esta tensão é ativada, redi^

mensionada e obsessivamente tratada.

A temática do divino, enquanto ordem transtemporal, marca

da pela mobilidade - o estar em todos, em todas as épocas -, con

duz à problematização dos conceitos de espaço e tempo, à sua rel£

tivização. A abstração do espaço e do tempo é chave para o conhj;

cimento do todo, de Deus. Ela conecta-se com a idéia do vôo, é pljs

taforma para a elevação mística. Com efeito, para Murilo, "o místi^

co, segundo uma concepção moderna, vence as ilusões criadas pelas

perspectivas de espaço e de tempo"1. Subrepticiamente, invoca-se a

idéia da liberdade, questão sempre presente na reflexão murilija

na e que, aliás, é um dos princípios da filosofia essencialista

de Ismael Nery: a libertação do tempo e do espaço para atingir a

essência íntima e permanente das coisas; a exasperação dos linú

tes; o princípio e o fim t o c a n d o - s e 2 .

Uma vez que o tempo é abstraído, é refutado, tal negação

correlaciona-se com o mundo dramatizado, sonhado, que vimos no cja

pítulo anterior. Se, por um lado, nega-se a realidade — a do ej>

paço físico e do tempo como sucessão — aponta-se, por outro, a

uma irrealidade construída na linguagem. Vale dizer, a realidade

das ficções.

Se não existe tempo, contudo, existe uma fluência da memó

ria. E aqui, a concepção bergsoniana de tempo como duração, d.iss£

ciada da idéia de tempo físico, emerge. Bergson^ — que Murilo cer

tamente lia, como atesta sua biblioteca — nos diz que o tempo es;

capa às matemáticas, sua essência é a mobilidade; sua duração é vi

70

vida. 0 movimento do tempo é um instantâneo tomado por nosso eri

tendimento na continuidade do movimento e da duração, servindo

às exigências da linguagem, embora seja uma recomposição artif_i

ciai. Não que Murilo seguisse a concepção bergsoniana dogmaticja

mente, mas, com certeza, esta o alimentou. Queremos dizer com i£

to que, ao negar o tempo e o espaço, inevitavelmente, criaoutros:

o espaço convergente do seu texto e o tempo mítico (o tempo da d_i

vindade), que existe na forma indivisível da duraçãobergsoniana.

Ao negar o tempo, vale observar, Murilo está ligando-se a uma l_i

nhagem de poetas e filósofos que, dentro de propósitos específi

cos, também o fizeram: de Platão a Borges, passando por Mallarmé.

Outro aspecto que tal ruptura com os conceitos clássicos

de espaço e tempo (este, obviamente, interessa-nos mais aqui), é

que tal estratégia viabiliza a expansão do múltiplo. E recorrente

a idéia na obra muriliana do homem em todos os lugares e tempos.

0 próprio conceito de eterna-idade favorece a multiplicidade de

tempos e textos: todos os tempos, todos os textos. Trata-sedeuma

excitante viabilidade teórica que estabelece um diálogo, inclusi^

ve, com um crítico atual como Augusto de Campos^, quem nos diz

que "o problema é superar a noção de tempo ... chegar ao espaço-

tempo", apontando, contudo, para o drama material da impossibil_i

dade, diante do tempo consciente, das palavras serem sobrepostas

umas as outras, conceito que o conduz, inevitavelmente, ao campo

do experimento. Diz-nos Murilo Mendes em 0 Discípulo de Emaús: "0

tempo e o espaço são duas categorias anacrônicas que o homem deverá abstrair

se quiser conquistar a poesia da vida"'*. Categorias anacrônicas na

medida que a apropriação aponta para, como vimos, conceitos filosó

ficos que embalam a modernidade. A poesia da vida, é, sobretudo,

uma poesia convergente que potencializa o presente do texto.0pr£

sente como acontecimVito filosófico, a única situação de que dispo

71

mos: o passado é uma hipótese e o futuro uma utopia.

Em outro aforisma tal reflexão sobre o tempo e o múltiplo

avança: "A comunhão dos santos é o dogma não só da cooperação, co

mo da extensão espiritual. Por meio dele, nossa personalidade de£

dobra-se e multiplica-se, ultrapassando as fronteiras e os limites,

e se investe na posse dos tesouros que pertencem a todos, e que

circulam independentemente do espaço e do tempo"^. Aqui, o poeta

esclarece-nos sobre a participação numa herança cultural e unive£

sal. Tal circulação de bens simbólicos é liberada mediante, justa

mente, o furto do tempo físico. Circulação: círculo. Com efeito, a

idéia de círculo no ritual religioso, e que aparece, não raramente,

em forma de dança 7 , com concepção cênica, reforça o sentido de

comunhão transtemporal que o poeta deseja e estabelece. Isto con

firma a eleição de um signo obliquamente diacrônico em nosso estu

do: o cometa. "Agarrados na cauda de um cometa percorremos a erijaO

ção", diz-nos o poeta numa bela imagem dos anos 30. Decisivamen

te, a visão do cometa de Halley em 1910 assume, para Murilo, um va

lor profético e textual que vai ser, como percebemos, saliente em

sua estética. Paul Valéry, em 1935, tem uma reflexão análoga. Diz-

nos o poeta-crítico f r a n c ê s ^ que, no século anterior, a continuidja

de reinava nos espíritos, o presente era um desenvolvimento tempcD

ral evidente dos acontecimentos produzidos no passado. Contudo, na

sua época "o homem encontra-se assaltado por uma quantidade de

questões que, até agora, nenhum homem havia sonhado ...". As car

tas estão embaralhadas em todos os assuntos humanos. Isto remete-

nos a idéia de um tempo embaralhado, produzindo textos híbridos. 0

espaço e o tempo são livres. Comunicam-se. A trajetória circular

do cometa conota um tempo análogo. Positivamente, ao vermos o come

ta estamos vendo o passado com os olhos do presente, na medida me:s

ma que a sua velocidade anos-luz o situa no futuro. 0 cometa dese

72

nha uma cosmovisão que situa o passado no presente, dirigindo-se

ao futuro. Se o passado é lido pelo olhar do presente, chegamos à

concepção de que o novo forma o velho e o futuro é pré-visto. 0

tempo não é, portanto, um espaço mecânico, mas é duração. 0 cometa

enquanto signo, significa. É o elo, desregionalizado, que presenti^

fica a tradição. "Só não é moderno quem não é antigo"-*-0? reflete

Murilo. A memória está em cada palavra-*--*-.

Em um poema de O Visionário (1930-1933), Murilo Mendes e s

creve: "Minha boca está no presente, / 0 meu olhar, no passado,/

Meu ventre está no futuro ..."-*-2 . Ora, a idéia sintoniza com a

leitura que Walter Benjamin faz do anjo da história de Paul Klee

(não por acaso, Murilo vai ler deslumbrado Klee em suas memórias:

"este é um dos máximos informadores do nosso tempo"-*-3): o furacão

empurra o anjo enquanto este olha para trás; a alternativa de futuro

surge pela recuperação do passado. Esta concepção sub-versiva, no

sentido mais literal, de algo por baixo da versão oficial,na qual

o passado determina o presente, constrói-se a partir da idéia dé

que algo está no passado, mas ainda não foi feito. 0 passado v_i

rá. Há um desafio aqui no sentido de que ele seja des-coberto:c£

da um prepara seus predecessores. Eu me defino nà medida que es.

timulo ser lido. Emerge, assim, a questão da tradição. Esta, como

vimos, é retomada por Murilo Mendes - especialmente a católica -

através da única maneira possível: a traição. Para lembrarmos 0^

wald e Mário de Andrade, pelo desvio da tradição, evita-se a ca

ligrafia. Postula-se portanto, uma origem posterior. Ou Deleuze

que lê Bergson-*-^: o passado não determina o presente, mas este d_e

termina o passado. 0 presente é passado: não há evolução que não

implique numa involução. Tal idéia alimenta um paradoxo essencial,

qual seja, o fato filosófico do passado ser contemporâneo do pr£

sente que, no entanto, já foi. A duração bergsoniana não é, por conse

73

guinte, sucessão, mas coexistência.

Ao negar o conceito tradicional de tempo, Murilo Mendes,

juntamente com outros pensadores da modernidade, está de fato,

negando o conceito de história enquanto sucessão, a idéia, por e

xemplo, de uma periodologia literária. A História da Literatura

está centrada numa concepção finalística. Murilo desconfia disto,

propondo uma leitura fragmentária e descontínua: só não existe o

que não pode ser imaginado. Se existe história, ela é parcelada

e individual. Vale dizer, toda a história é transitória. 0 poeta

organiza o seu fluxo: não regresssivo, mas retrospectivo. Lê o

velho no novo. A periodologia literária esconde a defasagem num esque

ma determinístico, um contínuo histórico. Murilo rejeita este concei^

tó quando afirma: "A aceitação sistemática de certos esquemas crí

ticos conduz, muitas vezes, a um ponto fixo que contradiz a ver

dade estética em favor de preconceitos de ordem histórica"-*-5, Se

o tempo da modernidade é descontínuo, isto possibilita uma alta

rotatividade na qual o texto pode mudar de função, como objetos

descontextualizados. É o que se nota, por exemplo, na revitalizja

ção que Murilo, como Oswald, faz do aforisma, nos várijls vezes

citado O Discípulo de Emaús. Nestes textos, há, justamente, uma

metaforização da passagem, proporcionando a imagem do retorno no

cometa, uma vez que contém tendências estéticas iluminadas pelas últ L

mas obras, a passagem para o mundo substantivo, como viu Haroldo

de Campos. Há uma dinâmica copresença de elementos emergentes, dorrú

nantes e residuais como a concepção de evolução literária de Tynianov e as

análises de Raymond Williams porão em destaque. Se flexibiliza^

mos o raciocínio, não dogmatizando o processo, poderíamos pensar,

com Foucault, que a história é inventada na medida que o corte, a

ruptura, é contingente. Daí uma arqueologia do saber no lugar da

história. Cresce, desta forma, a tensão entre história e ficção, marca

74

da modernidade. Conclui-se que não há verdade histórica, mas va

lidade histórica: o passado não é dado, mas definido a todo injs

tante. 0 futuro define o passado. Neste sentido, ao redefinir-se o

historicismo, abre-se a possibilidade, paradoxal e descentrali^

zada, de uma história aberta do futuro.

Se relativizarmos o diacrônico enquanto evolução, admitil

mos, por outro lado, que a tradição é lida por saltos. 0 salto a

próxima o distante e articula a viagem atemporal que Murilo Meri

des deseja. 0 salto é o instantâneo do corte e instaurador da des

continuidade. É o ato mesmo do bailarino realizado pelo cometa ejn

quanto figura que integra espaços e eras. 0 bailarino converge no

cometa. Vale dizer, o sincrônico converge no diacrônico. Haroldo

de Campos caracterizou tal articulação como uma "poética sincrÍD

nica"-*-6 . Ele realiza uma manipulação livre da dicotomia saussu

riana, dialetizando o critério histórico e o estético - criativo.

Considera que o crítico diacrônico aceita a "média" evolutiva da

tradição, "o gráfico historicizado que esta lhe subministra quan

to à posição relativa dos escritores nos vários períodos", caberi

do à poética sincrônica a função, justamente, crítica e retificja

dora das coisas julgadas pela poética histórica. Trata-se, po£

tanto, de um processo de escolha e reinterpreta.ção à luz de n£

vas tendências. Isto é, o passado se ilumina a partir do preseri

te, etc. Vale dizer, a possibilidade de inventar-se uma tradição,

tornando-se herdeiro da mesma. Retoma, assim, Ezra Pound, quando

este afirma que se conhece a qualidade de um crítico não por seus

argumentos, mas pela escolha. Postula-se, portanto, "a colocação

em perspectiva diacrônica (histórico-evolutiva) de quadros sin

crônicos sucessivos"-*-^, ou, inversamente, a verificação de elementos

75

descritivos (sincrônicos) incrustados na abordagem histórica (di

acrônica).

Neste sentido, a partir de uma visada poundiana, as várias

idades são consideradas contemporâneas, onde muitos mortos podem

ser justapostos aos que ainda não nasceram. Num lance supratempo

ral e transregional, "Homero é coevo de Pound, Propércio fala p£

la voz de Laforgue, os andaluzes Gôngora e Garcia Lorca dão-se

as mãos, Sá de Miranda conversa com Fernando Pessoa, Novalis e

Hölderlin confraternizam com Rilke, Maiakóvski tira Púnchin de

seu pedestal e dialoga com ele Interessante, mas não

surpreendente encontrar uma concepção análoga em Murilo Mendes

nos anos 40. Interessante porque percebemos um diálogo vivo e u

niversal entre dois poetas-críticos como Pound e Murilo, não su£

preendente em se tratando de um poeta que sempre se demonstrou a

lerta às discussões teóricas de seu tempo. Efetivamente, a obra

muriliana é "work in progress", processo mesmo inacabado e produ

tivo, uma vez que o limite da construção teórica é o limite do

construtor como lembra Raúl Antelo.

A partir destas considerações, Murilo Mendes, escrevendo

sobre Bach-^', lamenta os que conservam-no no plano puramente hi^

tórico, valorando sua obra tão somente no desenvolvimento da mús L

ca. Em outras palavras, Bach pode ser atual. Mais que isto, "é o que melhor

corresponde às necessidades do homem atormentado de nosso tempo",

na medida que reúne contradições (íntimo e coletivo; rígido e

fantasista). Em outro lugar, afirma que "se continuarmos a suje_i20

tar a arte ao critério de tempo, a confusão será geraJ" . Isto a

ponta para uma crítica fundada sobre uma universalidade capaz de

sincronizar passado, presente e futuro. Reforça-se, com esta v_i

são, uma formulação central da poética muriliana, que ora tratjí

mos, qual seja, a abstratação do espaço e do tempo, conceito que afunda

76

raízes no cristianismo. Pondera Murilo, em outro lugar, retoman

do Baudelaire, a existência de uma modernidade através dos tem

pos; a retenção do essencial através de sucessivas mudanças. 0 e

terno no provisório. Abrem-se, daí, releituras dinamizadoras quando

cita, por exemplo, "a modernidade em Bosch, surrealista do sécu

lo XV"; "Arcimboldo, precursor de Dali"; "a modernidade patente

em El Greco"2-*-. 0 artista situa-se dentro do tempo e fora do tem

po. Tal enfoque é retomado até mesmo na última colaboração de Mij

rilo Mendes no "Letras e Artes", o poema inédito "A Jorge de L^

ma", quando escreve: "A mesa te sentaste com os cimeiros/ Dante,

Luís de Gôngora, 0 Lusíada/ E Lautreámont, jovem sol negro/ Que

inaugura nosso tempo"22 (ou quando comenta o quadro de Nery da

mãe com o filho no colo, mas este já é velho). Murilo, com outros,

antecipa-se a questão tão presente da intertextualidade.

Se concluímos que a literatura se modifica não linearmen

te, mas por saltos, estes, não apenas representam o corte instau

rador de uma descontinuidade temporal, mas potencializam o discuj:

so do fragmento. 0 texto passa a ser visto, desde uma concepção

foucaultiana, como um nó numa rede, onde cruzam-se linhas hetero

gêneas. Abole-se a idéia de um centro que irradia conhecimento,

mas este advém pelo fragmentário. Com isso, iluminam-se elementos

marginalizados e desapercebidos da história. H o que marca, por e

xemplo, a linhagem buscada pelos poetas concretos, especialmente

Haroldo e Augusto de Campos. Ou Murilo, que revelava seu apreço

pelos suicidas, amantes, derrotados, "doidos bem doidos", tranjà

figurados ,..2-5. Efetivamente aceitamos que a literatura ociden

tal é uma rede de relações, onde o velho pode estar próximo e o

novo distante. Sendo assim, o sistema literário é redefinido cons

tantemente, como no caso de Murilo que, pela estratégia do salto,

funde tradições. Tal possibilidade não escapara a Mário de Andrade que

77

afirmou em "A escrava que não é Isaura": o amor esclarecido ao

passado e o estudo da lição histórica dão-nos a serenidade. A

tradição entendida aqui não como acumulação de fatos, mas como

construção. De onde retornam os paradoxos murilianos. "A condiçãoo /,

para ser moderno é ser antiqüíssimo"Z4. 0 poeta, neste sentido,

atua como um operador discursivo, um leitor-produtor. Contudo, o

salto também é um signo ambíguo. Ao mesmo tempo que ele rompe, con

duz o poeta ao trabalho nos limites, à beira do abismo: o que p£

de ser ligado, o que pode, em última análise, ser des-coberto? 0

poeta debate-se, desta forma, com a dialética inclusão/ exclusão.

"A localização de um homem num instante de sua vida con

traria uma das condições básicas da própria vida que é o movimej2

to"25# Temos enfatizado que o trânsito pelo tempo e espaço confi^

guram uma estética do movimento em Murilo Mendes. Aqui isto é e^

plicitado mediante a transposição de um dado biológico para o pia

no estético e filosófico. Reforça esta dinâmica a subversão tem

poral que atualiza a tradição tomada como um totem a ser violado.

0 próprio pastiche, enquanto devoração construtiva, não rechaça

o passado. A tradição é retomada e ampliada com a experiência do

presente. Murilo lê conforme um esboçado construtivismo: polifo-

nicamente. Cria,através de fragmentos, entrecruzados discursos no

redemoinho da memória. "Vivemos dos restos de um mundo antigo"^6.

A operação de conhecimento é, por conseguinte, tributária de uma

operação de montagem. Conhecer é operar com fragmentos. Assim, t£

da leitura é um corte, uma fragmentação, evanescendo-se as reljí

ções contextuais. 0 leitor devora. Destrói e constrói, num proce^

so simultâneo de criação e suicídio. Murilo lê a si próprio. Textualiza-se

e, enquanto tal, alimenta-se de textos.0 poeta é texto de textos.

78

Luciana Stegagno Picchio, com a intimidade de quem já percorreu

as entranhas da obra muriliana, fala-nos deste processo que trji

tamos: "uma antropofagia de espécie superior, mas consubstanciai,

a do primitivo comendo ritualmente o corpo do adversário para ad

quirir as suas qualidades... uma contínua tensão dirigida à capta

ção do Outro, à sua deglutição..."27# Desta forma, Murilo acumu

la experiência, uma experiência estética, que constitui o seu te

eido poético. 0 texto se forma na sua recepção. 0 texto é inte_r

texto. Há outros textos no texto; lê-se um pelo outro; lê-se

dois em um. É o que faz Murilo, principalmente na sua prosa, ou

seja, o estabelecimento de um diálogo intersubjetivo. Há, desta

maneira, uma potencialização do processo de incorporação que a

ponta para o caráter compósito do texto, envolvendo muitas vozes.

"De quantas vidas fazemos parte!"28 Contudo, transcria-se, não

transcreve-se. A combinatória do texto é única: fundamenta-se na

diferença.

Murilo Mendes, nos seus textos, faz, de fato, uma revisão

constante de sua herança, dos seus companheiros de dança. Revisar

a sua herança é interpretar os papéis, as máscaras assumidas. Não

é por menos que, desde os anos 30, esta consciência do duplo a

fronta na poesia muriliana. Em A Poesia em Pânico, no exemplar

que possuímos, autografado a Fernando Carneiro, a dedicatória diz:

"Com o abraço do meu duplo, Murilo Mendes". "Duplo" é, também,

um dos poemas do livro: "A edição que circula em mim pelas ruas/

Foi feita sem o meu consentimento/ Existe a meu lado um duplo/

Que possui um enorme poder..."29 Mais tarde, em "Grafito no Pão

de Açúcar"^^ esta indecibilidade vai ser dissipada mediante a

definição de um "paideuma", aprofundando uma visão arqueológica :

"Daqui pude aferrar/ Picasso/ Mallarmé/ Stravinski". Murilo Men

des reorganiza sua herança, a sua bibilioteca: uma espécie de es

79

pelho em que o distante reflete o próximo. Neste reajuste, ef£

tua uma ação poética seletiva e presentificadora; nesta auto - in

serção, ultrapassa o sistema literário brasileiro, que poderia

ser personificado em Drummond enquanto poeta oficial, e mergulha

numa linhagem, talvez baudelairiana ou mallarmaica. De Baudelaire

nós temos a inteligência crítica associada à virtude da poesia,

numa tradição que vem, por sua vez, de Poe, onde misticismo e

cálculo, para Valéry3-*-, são fundidos. Baudelaire, como Murilo, é

um poeta-crítico, selecionador, que não cessa de investir em com

binações da linguagem. Neste caso, temos a transposição de formas,

uma trans-forma (pode-se cogitar, neste sentido, uma historiadas

formas?). A linguagem é construída com a linguagem. Em Mallarmé,

Murilo bebe na concepção de sua última poesia. Ela é igualmente

espacial, voltada para si mesma, com certo idealismo na linguagem

nomeadora, na dialética palavra/silêncio.

Interessante observar que Murilo Mendes está constante^

mente selecionando, na medida que (embora fosse, como confessou,

desde cedo aberto a todas as correntes artísticas) admite pref£

rências. "Contudo, é preciso fazer uma seleção, deixando de lado

o documentário"32. Ao citar pintores, enumera Portinari, Pancetti,

Cícero Dias, Ismael Nery, Di Cavalcanti, Guignard, Djanira33: jus

tamente sobre quem escreveu, constituindo-se esteticamente.

"0 homem é um ser individual, plural e coletivo, daí a

nossa necessidade de comunicação"34 Murilo é incisivo no tocante

à questão do diálogo que temos visto aqui, sobretudo, como trama

de linguagens. Decorrente disto, o exercício comparativo é produ

tor de conhecimento. Paul Valéry: "Todo o conhecimento é hoje um

conhecimento comparado"3^. Neste sentido, mais do que uma proeu

ra de semelhanças, a literatura comparada (e a arte comparada,

80

de resto) produz peculiaridades, diferenças (conforme Murilo, o

homem é um ser individual, além de coletivo). Mencionamos tal

idéia para descaracterizar, neste ponto, o sistema de influências

da filologia e do comparativismo tradicional. Comparar é sondar

o hipertexto. A literatura comparada quer transposições e transtem

poralidade; ela se contrói diacronicamente e se constitui sincro

nicamente3^. Procura a diversidade na unidade, tal como o projet

to muriliano. É dentro deste âmbito de produção a partir de con

trastes que a modernidade parece recuperar o Barroco. Esquecendo-

se do velho e do novo, a modernidade consegue ser moderna. Compra

rativismo e modernidade são, pois, sinônimos. Neste sentido,

Murilo é um comparativista que age contemporaneamente em relação

à sua teoria. Tarefa constante de leitura oblíqua, mistura, como

já mencionamos, artes e autores, numa constelação dinâmica. Lem

bra coreografias, a grafia do grupo que seleciona. Provoca, des;

te modo, o leitor a reconstruir a biblioteca labiríntica em que

resulta o seu texto. Ao escrever sobre Camus, por exemplo, pro

blematiza-o em relação a Tolstoi, ao Sermão da Montanha, a

Kierkegard, a Dostoievski, a Unamuno, a Kafka. Em outro texto, in

terdisciplinariamente, compara o quarteto musical com o soneto.

De resto, sua própria obra poética dos anos 30 e AO pode ser ana

lisada musicalmente: em Murilo, ao contrário de outra corrente

modernista que optou pela exploração do folclore e do ritmo pejr

curssivo "afro", como Murilo Araújo, Ascenso Ferreira ou até mejà

mo o Jorge de Lima dos Poemas Negros, há, como dizíamos, uma apro

ximação com o ritmo camerístico das sonatas mozarteanas, beiran

do, muitas vezes, o ritmo orquestral e exultante dos salmos bí

blicos (ou seja, o poeta-bailarino dança Mozart e Salomão). Com

efeito, as relações interdiscursivas em Murilo Mendes levam à £

quisição de uma informação filosófica de natureza interdisciplinar.

81

Em mais de uma ocasião, ao lado do olhar circular que a

barca o múltiplo, Murilo protege a questão das predileções pes

soais. Pode-se ver tudo, ou ser tudo, mas não se gosta de tudo.

"As preferências são naturais e necessárias"-57. Isto aponta para

o fascinante estudo da recepção em Murilo Mendes^®. Uma visita à70

biblioteca parcial do poeta em Juiz de Fora-^ e pode-se ter uma

dimensão das suas leituras. Muitos dos livros que lá se encon

tram são autografados pelos escritores (o que testemunha a rede

de amigos congeniais de Murilo Mendes) e contém anotações preci£

sas feitas por Murilo: grifos a lápis,rastros significativos de

leituras que dão margem a uma arqueologia que este estudo não pre

tende, mas registra. Vale a listagem de alguns autores e livros

(em francês, espanhol, inglês, português) que atestam a erudição,

o ecletismo e o bom gosto de Murilo. De poetas franceses como

Baudelaire, Mallarmé, Laforgue, Lautréamont, Eluard e Valéry até

o muito admirado René Char (declamado por Murilo a Camus em sua

visita ao Rio), e Breton; críticos como Maurice Nadeau, Bastide,

Bataille e Blanchot; os russos dos formalistas a Jakobson; pensja

dores de Rousseau a Sartre, passando por Nietzsche e Bergson;pin

tores como Klee, Kandinsky e Chagall; estudiosos da estética co

mo de La Torre, Umberto Eco, o Barthes de Le degré zero de l'é

criture e o Pound de ABC of reading; Eliot, Rilke, Joyce, Poe,

Vallejo e Artaud e os modernos italianos, junto com os espanhóis

de Gôngora a Dámaso Alonso, sem esquecer os brasileiros de

Alphonsus Guimarães a seus amigos Mário e Oswald de Andrade,

Jorge de Lima, Lúcio Cardoso, e os novíssimos Afonso Avila,Marcos

Konder Reis, bem como o Haroldo de Campos de Noigrandes. Acre^

cente-se à lista um número enorme de biografias de santos ou a£

tistas, .como a de Mozart, por Alfred Einstein, e uma relação a\ **•

lentada de catálogos e álbuns de arquitetura e artes plásticas.

82

Ao rever os companheiros de dança, vale mencionar suas pi

ruetas com os surrealistas — parceiros preferenciais. Sem dúvida,

que tais poetas fazem parte de sua herança, mas daí a considerá-

lo como "poeta surrealista" é uma distância considerável. Decisi^

va já foi a análise de Luciana Stegagno Picchio a respeito, reda£

gflindo uma impressão de época de Mário de Andrade: "Nada mais ine

xato. Murilo Mendes não é surrealista, como não é surrealista

Kafka, como todos os que, embora de uma forma elíptica e obscura,

manifestam verdades para eles fulgurantes"40. Parece-nos que o

vital aqui é a "forma elíptica e obscura" que Luciana menciona.

Trata-se, ao nosso ver, de uma transposição de formas, como a

"imprevista e absurda aproximação de elementos não conciliáveis"

("0 abismo bate palmas/A noite aponta o revólver"41, porexemplo).

Tal prática foi, inegavelmente, desenvolvida e ampliada pelos au

tores franceses do Movimento Surrealista. Contudo, para aqueles,

este procedimento técnico está incluído dentro de um arcabouço

maior que inclui, efetivamente, uma ética, que os distancia do

antiescolástico Murilo Mendes. Ora, o próprio poeta tinha plena

consciência da sua relação intertextual com o Surrealismo, prcj

blematizando-o: "0 surrealismo, teoricamente inimigo da cultura,

tornou-se num segundo tempo, um fato de cultura; e muitos surre£

listas, superando a técnica do automatismo, dispuseram a trabjaA O

lhar com um método planificador" . Com efeito, em que pese en

contrarmos no Murilo Mendes dos anos 30 e 40, uma descarga imagé

p tica intensa e uma dissonância semântica, ele próprio coloca-se;,

formalmente, distante de certos procedimentos técnicos do citado

movimento, quais sejam a escrita automática e o relato de sonhos.

0 nosso poeta tende, numa coerência espantosa, para a planificja

ção, para a construção. É o que percebe Luciana Stegagno Picchio

ao afirmar que "as proposições 'surrealistas' de Murilo Mendes

83

são todas suscetíveis de destrinçamento, de clarificação". 0 que

é aparentemente, em Murilo, desordem, dando a sensação de automji

tismo na incorrespondência entre os termos, como em "A curva nos

olhos, / 0 mar na janela, / A mulher que despe a rua. / 0 grande

poeta futuro cai do velocípede", de fato, constitui a dialética

caos/unidade, enformando a ânsia unificadora já tratada. Isto den

tro de uma perspectiva de captação sensorial do universo, proje

to este expresso no próprio título do poema do qual extraímos os

versos citados: "Telegrama"45. Em outro lugar, o poeta confirma

tal discrepância: "Em última análise, esta desarticulação dos ele;

mentos, resulta em articulação. 0 movimento surrealista organizou

e sistematizou tendências esparsas no ar desde o começo do mundo"44.

Por um lado, há uma devoração crítica do Surrealismo, por

outro,certa paixão. Na leitura, por exemplo, que faz de Breton, o germe de a

narquismo que Murilo considerava fundamental para a obra de arte,

encontra forte empatia: "A revolta permanente de Breton, recusan

do a cumplicidade com o sistema corrente do mundo, é exemplar

Com efeito, a figura de Breton causava-lhe "alternativamente atração e repul

sa". Irritava-lhe "a dureza do espírito". Talvez porque Murilo t e

nha explorado o que, para Breton, foi uma falha do Movimento, ou

seja, certa abertura para o místico. Tanto é que os surrealistas

rejeitaram a proposta do grupo "Le Grand Jeu", que procurava auai

dade perdida em Deus. Murilo investe numa concepção análoga ao

registrar que o "surrealismo, tentando ultrapassar os limites da

razão humana, aproxima-se, às vezes, consideravelmente, da místi^

ca"46 (polemiza, neste sentido, com Breton, ao escrever em "Le

tras Brasileiras", na década de 40, refutando a colocação do poe

ta francês sobre Rimbaud e Baudelaire, rechaçados por aquele co

mo católicos). De resto, a queda da parede entre o consc^

ente e o inconsciente; a poesia como forma de co

84

nhecimento; a tradição rimbaudiana do poeta-vidente, ladrão-de -

fogo; as múltiplas metamorfoses; as ruínas da causalidade e da ló

gica ("encontrei amigos deliciosos que geralmente não crêem qúe

2+2=4"47), são estratégias interdiscursivas que, não dogmatizan

do nada, estão mais do que presentes nos textos murilianos. Con

clui o poeta-devorador: "Claro que pude escapar da ortodoxia.

Quem, de resto, conseguiria ser surrealista em 'full time'? Nem

o próprio Breton. Abracei o surrealismo à moda brasileira, toman

do dele o que mais me interessava: além de muitos capítulos de

cartilha inconformista, a criação de uma atmosfera poética b£

seada na acoplagem de elementos díspares. Tratava-se de explorar

o subconsciente; tratava-se de inventar um outro "frisson noveau",

extraído à modernidade; tudo deveria contribuir para uma visão

fantástica do homem e suas possibilidades extremas ... mas não

resta dúvida que, num primeiro momento, a rigidez do método da

escritura automática provocou inúmeros mal-entendidos"4®.

Para esclarecer essa reflexão sobre tempo e escritura,

analisaremos'um murilograma que interpretamos como inscrição la£

çada ao futuro, mensagem batendo na vidraça, como diria Breton:

MURILOGRAMA A HERACLITO DE ÉFESO49

Polémos pantor patér

Pelo idêntico princípio reversívelTudo marcha

progressivamentepara a paz

EkpyrósisPressupõe diakósmesis

85

Sim:

Panta rheiTodas as coisas fluem

corremdecorrem

Sob o sol grão Sob o sol grande Que nem pé de homem

Heráclito de Éfeso:Tudo flui T ransforma Se trans-forma

De ti Heráclito Pai antigo descendem

o méson o eléctron o próton

Heráclito de Êfeso Tudo flui Deflui No devirTudo devirá devém

. ar

. água

. terra

. fogo

Tudo devém visa devisa

Heráclito de Éfesomove mente pai movimento

86

Humanos todos nós desaramos desaguamos desterramos desfogamos

Ar texto água texto terra texto fogo texto com texto

nouniversocontexto

Roma 1964

0 instinto de liberdade muriliano de que nos fala o po£

ta em A Idade do Serrote, quando comenta a sua tendência obsessi^

va em abrir gaiolas, orienta-se aqui no sentido de soltar o pájs

saro da história. Ao retomar um pré-socrático, Murilo estabelece

no poema um canal comunicativo transistórico entre o pensador que

viveu a 500 anos antes de Cristo, entre sua obra Quatro Elementos,

de 1935, e o presente dinamizador do texto. Combate a rotina ao

conceber um "universo cruzado por múltiplas correntes de cultu

ra"50. o presente torna-se, portanto, convergência do passado e

do futuro. Com efeito, o último Murilo, dos murilogramas, por

exemplo, torna-se o mais jovem, na medida que recicla o seu hu

manismo universalista, mesclando-o com uma operação desconstruti^

va de e sobre a linguagem.

Ao retomar uma aforisma (n2 5 3 ) de Heráclito, Murilo ins

taura uma estrutura dialógica no seu texto, pois, "se a guerra é

o pai de todas as coisas", a cosmovisão apocalíptica muriliana é

87

retomada bruscamente, ativada desde o seu cerne, desde Tempo e

Eternidade, num movimento que, estrategicamente, inicia o poema

pelo fim, apontando para o "contexto", última palavra deste muri^

lograma que inscreve-se, adquire função dialetizante, justamente

no texto. Se a frase é escrita em grego primitivo, ancestral, pj3

terno, isto só vem favorecer o sentido plurilingüístico do proj£

to muriliano. Constrói-se, forja-se o paradoxo básico da marcha

para a paz. Não há cultura sem barbárie, diria Benjamin; não há

texto sem sedução. "Ekpyrósis/ pressupõe diakósmesis". "A dejs

truição do mundo pelo fogo pressupõe a ordenação do universo" £

ponta para o dilema inaugural muriliano entre caos e unidade utó

pica. Sim: todas as coisas passam, etc.

Se ao ativar uma memória poética seletiva, presentific£

dora e sistematicamente descontínua Murilo traz à tona o discuj:

so benjaminiano, ao privilegiar o fragmentário como forma de co

nhecimento está intuindo Adorno, seu contemporâneo, num movime£

to de "antropofagia sincrônica". Com efeito, o Murilo assintáti^

co de Convergência é, sobretudo, dança, principalmente se pensajr

mos que o movimento da dança contemporânea flui de um contrapon

to entre contração e expansão. Movimento que metamorfoseia nja

tureza em cultura, na medida que inspirado na ação da água, ar,

terra e fogo, elementos do mundo contemplado pela visão do po£

ma-ensaio e dançado pelo poeta-bailarino. "Heráclito de Éfeso/

tudo flui/ deflui/ No devir/ Tudo devirá devém/• ar/- terra/ - água/

• fogo". Aqui é a palavra que é tensionada para em seguida explcD

dir em significados, sobretudo se pensarmos que os murilogramas

são poemas predominantemente nominais onde é resgatada a dialéti^

ca interna da palavra que excita outras.

Se a evolução da palavra de Heráclito a Murilo configura

um salto, este mesmo movimento é o tema do poema, que se auto-re^

88

ferencia enquanto analogia de si mesmo. 0 verdadeiro bailarino é

objeto da dança, vale dizer, com Murilo, que o verdadeiro dançar_i

no é dançado. Heráclito de Éfeso, ar, terra, água, fogo. A pa£

tir dos elementos que configuram a formação da matéria, Murilo

tece a "sua" matéria poética, elegendo um pai-movimento e reorga^

nizando a circularidade transistórica onde o bailarino dança djs

lirantemente ao lado de seus companheiros, onde significado e

significante se alternam e se procuram. Neste círculo, são invei:

tidas as funções, negados os fluxos anteriores. Veja-se, por £

xemplo, o processo reiterativo do uso do prefixo de negação"des"

em desaramos/ desaguamos/ desterramos / desfogamos, onde os no_

mes viram ações desconstrutivas para, então, operada a metamorfc)

se, confluírem em texto: "Ar texto/ água texto/ terra texto/ fo

go texto/ com texto".

Temos que, da apropriação do outro, via relativização do

tempo, num movimento subversivo da lógica, o poema aponta para a

construção da sua matéria discursiva, através da trans-forma, va

le dizer, forma (aforisma, no caso) refuncionalizada. Tal matéria

é dinamizada no presente do texto por uma operação poética de

transleitura desautomatizadora de uma percepção já saturada, pe

la exploração das possibilidades fônicas e jogos semânticos, ge

rando o texto: a palavra "nasce-me". 0 poema é convergência de

textos. Um texto dobra-se em outro: não há, entre eles, linhas

retas, mas vergadas. 0 texto é palco-círculo onde o poeta — ele

próprio, texto — ensaia seus movimentos de vida. Porque morrer —

como diria o mesmo Murilo — seria perder o texto.

Esta reflexão que empreendemos acerca do tempo subverti^

do no pensamento de Murilo Mendes, facultando encontros transijs

89

tóricos, leva-nos a pensar em uma imagem recorrente em setores

da crítica literária contemporânea, qual seja o vampirismo. An

tropofagia e/ou vampirismo? Maria Lúcia de Barros Camargo em lei' 51tura da poesia de Ana Cristina Cesar^ , salientando a ambigüidja

de do mito (morto-vivo, espelho sem imagem, prazer e culpa,

etc.), discute a questão: "Ao sugar gêneros, frases e palavras

para nutrir-se, dá-lhes outra vida. Dá-lhes o seu próprio modo

de ser. Identificam-se apesar das diferenças. A 'vampiragem' é,

assim, diferente de 'antropofagia1: os modelos (vítimas?) não

precisam ser destruídos na paródia. Não há necessidade de deglu

tição total, de devoração"-^. Digamos que em Murilo a relação é

de complementariedade, o "e" (especialmente porque tomamos "an

tropofágico" mais como atitude de apropriação, a exemplo do uso

que faz Luciana Stegagno Picchio, do que no sentido específico

parodístico oswaldiano), na medida que pela empatia gera a dife

rença, sugando o que lhe define no outro. Resguarda, porém, a

dicção do sugado.

Chama-nos a atenção — e daí a indicação da plausibilida^

de da referência — o dado de que o vampiro, enquanto personagem

da cultura literária, atravessa as épocas, como ente transi(s)tóri(c)o

e sedutor. Com efeito, se pensarmos no texto muriliano como texto

aberto, que dialoga com o passado, respondendo a este, vamos no

tar que neste beber outras linguagens há um exercício de sedução,

de posse do corpo do outro, enquanto texto. 0 que é curioso, e

que, de uma certa forma, carrega de ambigüidade o signo, é que a_l

go análogo é abstraído do próprio dogma cristão: "a participação

na vida do próximo ... em todas as eras"-5-5. Isto, coerentemente,

é trazido por Murilo para o plano estético quando observa em

Isamel Nery: "Aproveitava todas as técnicas ao seu alcance, técni^

cas antigas e modernas"^. Vale dizer, a idéia do poeta que pe£

90

corre as eras, sugando a vida da arte, interferindo no destino

das obras e autores, como uma "Vamp": "A dama chegou no tufão/

Vestida de dominó/ A dama de dominó/ Despe o dominó/ Tem quatro s sbraços/ Traz a vertigem/ Esta com febre/ Me pega o amor . .

A relativização ,do passado se dá, evidentemente, pela

via da memória. Ela é o suporte da inteligência. Inscreve-se no

texto, visto como máquina de produzir cruzamentos; como documen

to que indica um capital simbólico acumulado. Talvez seja este o

sentido máximo dos grafitos murilianos: o passado contemporanei^

zado e contemporizado na medida que dele só nos restam inscri^

ções. 0 texto-memória é construído, assim, mediante uma dialét^

ca produtiva que envolve o velho e o novo. Aquele, marcado pelo

olhar carregado das experiências deste (a psicanálise, a sociolo

gia, as teorias do texto). Uma dialética, vale dizer, da plurali^

dade. Só assim, Isamel Nery pode emergir como uma experiência

textualizada e articulada.

Exemplo disto é uma obra como Poliedro^, onde Murilo

Mendes emprega um método construtivo por meio da memória na cap

tação de um universo simbólico. Obra na linha de Rua de Mão Üni.

ca,-57 de Walter Benjamin, espécie de ensaio memorialí stico, en

gendrado caleidoscopicamente através de frases que recuperam a

experiência inicial. Como em "Palmeiras": "As palmeiras gonça_l

vinas com estrelas gorjeando exportadas para Coimbra, importadas

em Roma por Ungaretti. / As palmeiras a transbordar do mangue.

As palmeiras infinitas entre bicicletas da Rua Paissandu. As palS Rmeiras palmerinas. As palmeiras e suas ventarolas ... Conjs

telação de signos, ou signo que se desdobra incessantemente atrj[

vés de um olhar — análogo a uma câmera — que percorre o tempo e

transgride territórios para realizar uma fusão só possível no

texto. Transformado, por isso mesmo, em arma.

91

Pela via da lembrança — e do esquecimento — temos o tr£

balho que faz viver em nós o que existe. Paul Valéry: "A memória

é a substância de todo o pensamento"-^. 0 poema contrói-se, ne£

te sentido, insistimos, entre seleção e corte; entre presença e

ausência; entre o lembrado e o esquecido. A memória contrói a

cultura: esta "é o resultado da investigação, da comparação e da

filtragem". Em Murilo Mendes, a memória é, por definição, selet^i

va e dialógica. Converge e presentifica a experiência dos homens,

apontando, cada vez mais intensamente, para o prazer da palavra,

que volta-se, insistente, para si mesmo: "Saborear o sumo de to

das as coisas somadas. 0 sumo do universo, o saber do sabor, o

sabor do saber"6 0 .

92

C A P I T U L O n o t a s

1) MENDES, Murilo. "Recordação de Ismael Nery XV", in "Letras e Artes", Suplemento de A Manhã, Rio de Janeiro, 10 out. 1948, pág. 15.

2) "Recordação de Ismael Nery XIV", ibidem, 3 out. 1948, pág. 5.

3) BERGSON, Henri. Memória y V i d a . Textos escogidos por Gilles Deleuze. Trad. Mauro Armínio. Madrid, Alianza, 1977.

4) CAMPOS, Augusto. "Mallarmé: o poeta em greve ". in Mallarmé. São Paulo, Perspectiva, 1974.

5) MENDES, Murilo. "Aforisma 54". in O D i s c í p u l o de Emaús. Rio de Janeiro, Agir, 1946, pág. 20.

6) "Aforisma 235", ibidem, pág. 48.

7) As coreografias contemporâneas de Maurice Bejárt, notadamente a do B o l e r o , de Ravel, exploram o círculo como in-tensa troca de figuras.

8) Cf. As Met a mo r f o s e s , in P o e s i a s (1925-1955). Rio de Janeiro, José Olympio, 1959.

9) VALÉRY, Paul. V a r i e d a d II-Ensayos casi Políticos; Teoria Poé­tica e Estética; Memórias dei Poeta. Trad. Aurora Bernárdez e Jorge Salamea. Buenos Aires, Losada, 1956, pág. 15.

10) "Aforisma 350". in O D i s c í p u l o de Emaús. op . cit., pág. 67.

11) VALÉRY, Paul. V a r i e d a d II. op. cit., pág. 188.

12) "Mulher em Três Tempos", in O V i s i o n á r i o , in P o e s i a s (1925- 1955). op. cit., pág. 67.

13) MENDES, Murilo. "Berna", in T r a n s i s t o r , antologia de prosa (1931-1974). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, pág. 250.

14) DELEUZE, Gilles. in BERGSON, Henri. Memória y V i d a . Textos es­cogidos por Gilles Deleuze, op. cit.

15) "A Dignidade da Música", in "Letras e Artes", op. cit., 26 maio 1946, pág.11.

16) CAMPOS, Haroldo. "Poética Sincrônica". in A A r t e no H o r i z o n t e do P r o v á v e l . São Paulo, Perspectiva, 1977, pág. 205.

17) IDEM, "0 Samurai e o Kakemono ". op. cit., pág. 213.

18) IDEM, ibidem,pág. 208.

19) "Bach", in "Letras e Artes", op. cit., 9 jun. 1946, pág. 11.

20) "Formação de Discoteca XII", ibidem, 20 out. 1946, pág. 11.

93

21) "Formação de Discoteca VII", ibidem, 18 ago. 1946, pág 7.

22) "A Jorge de Lima", ibidem, 24 ago. 1952, pág. 12.

23) "Mapa", ibidem, 14 nov. 1948, pág. 5.

24) "Aforisma 327". in O Discípulo de Emaús. op. cit., pág. 63.

25) "Recordação de Ismael Nery x", in "Letras e Artes", op. cit.,22 ago. 1945, pág. 5.

26) "Aforisma 327". in O D i s c í p u l o de Emaús. op. cit., pág. 63.

27) PICCHIO, Luciana Stegagno. "Prosas de Murilo Mendes", intro­dução a Transistor , antologia de prosa (1931-1974). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.

28) "Aforisma 710". in 0 Discípulo de Emaús. op. cit., pág. 130.

2 9) MENDES, Murilo. A P o e s i a em P â n i c o . Rio de Janeiro, Cooperat^ va Cultural Guanabara, 1 9 3 8 , pág. 8 3 .

30) MENDES, Murilo. "Grafito no Pão de Açúcar", in C o n v e r g ê n c i a . São Paulo, Duas Cidades, 1970, pág. 10.

31) VALÉRY, Paul. Variedad I. Estúdios Literários; Estúdios Filo­sóficos. Trad. José Carner. Buenos Aires, Losada, 1958, pág. 112.

32) "Apontamentos", in "Letras e Artes",op.cit.,13 maio 1951, pp. 6-7.

33) "Formação de Discoteca VIII " ibidem, 8 set. 1946, pág.11.

34) "Aforisma 331". in O Discípulo de Emaús. op. cit., pág. 64.

35) VALÉRY, Paul. Variedad I . op. cit.

36) MARINO, Adrian. Comparatisme e t t h é o r i e de l a l i t t é r a t u r e . Paris, Puf Écriture, 1988.

37) "A música e os Intelectuais", in "Letras e Artes", op.cit.,12 maio 1946, pág. 7.

38) Raúl Antelo já o realizou no tocante às leituras em espanhol do poeta (artigo citado no cap. 1 deste estudo).

39) Quando consultamos os referidos livros em setor especial na Biblioteca Central da Universidade Federal de Juiz de Fora, em 1988, contamos com atenção do diretor da mesma, Rafael Ces taro. 0 responsável pelo acervo, então, era o artista plástico Arlindo Daimbert, estudioso e divulgador da obra muriliana.

40) PICCHIO, Luciana Stegagno. "0 itinerário poético de Murilo Mendes". R e v i s t a do L i v r o . Rio de Janeiro, INL, ano 4, n9 16, dez. 1959, pp. 61-74.

41) "Aproximação do Terror", in P o e s i a L i b e r d a d e , in Poesias (1925- 1955). op. cit., pág. 324.

94

42) "Magritte". in Retratos-Relâmpago 1§ série, in Transistor ,antologia de prosa (1931-1974). op. cit., pág.189.

43) "Telegrama", in As Metamorfoses, in Poesias (1925-1955). op.cit., pág. 245.

44) "A Pintura em Pânico" , prefácio a um livro de Jorge de Li­ma, in "Autores e Livros", suplemento de A Manhã, Rio de Ja­neiro, 14 fev. 1943, pág. 96.

45) "André Breton". in Retratos-Relâmpago 13 série, in Transistor,antologia de prosa (1931-1974). op. cit., pág. 168.

46) "Aforisma 58". in 0 Discípulo de Emaús.op. cit, pág. 20.

47) "Vivo em Roma", in T e x t o sem Rumo, in T r a n s i s t o r .op. cit. pág. 401.

48) "André Breton", in T r a n s i s t o r , op. cit. pág. 170.

49) "Murilograma a Heráclito de Éfeso". in C o n v e r g ê n c i a , op.cit., pág. 120.

50) "Lasar Segall", in "Letras e Artes", op. cit., 20 maio 1951 , pág. 1.

51) CAMARGO, Maria Lúcia de Barros. A t r á s dos Olhos P a r d o s , uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar, Tese de Doutoramento na área de Teoria Literária e Literatura Comparada, Universi­dade de São Paulo, 1990.

52) IDEM, ibidem, pág. 148.

53) "Recordação de Ismael Nery IX", in "Letras e Artes", op. cit.,15 ago. 1949, pág. 5.

54) "Recordação de Ismael Nery VIII", ibidem, 8 ago. 1948, pág. 5.

55) "A Vam'p". in 0 V i s i o n á r i o , in P o e s i a s (1925-1955). op. cit., pág. 97.

56) MENDES, Murilo. P o l i e d r o . Rio.de Janeiro, José Olympio, 1972.

57) BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Ú n i c a . Obras escolhidas Vol. 2. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barb£ sa. São Paulo, Brasiliense, 1987.

58) "Palmeiras", in P o l i e d r o , op. cit., pág. 53.

59) VALÉRY, Paul. V a r i e d a d I. op. cit., pág. 188.

60) "Aforisma 307". in 0 D i s c í s p u l o de Emaús. op. cit., pág. 52.

INI OD INI DO OD : t e x t o . P i E f 1 : t e x t o d e t e x t o s .

"O universo é um vasto signo concreto que se move"Murilo Mendes, O Discípulo de Eamús.

96

Se fosse possível fazer uma história da modernidade esta

seria uma história onde, certamente, circulariam negatividja

des como perda, cisão, desarticulação, fragmentação, crise, desen^

canto,categorias estas, diante das quais o escritor do nosso tem­

po, evidentemente, não ficou incólume. Para lembrar Foucault, um

tempo de abandonar as sínteses preconcebidas: tradição, influên­

cia, desenvolvimento, teleologia, estilos de época, numa liquida­

ção do "literário". Estrategicamente, para sobreviver, é preciso

colocar-se antes do início do jogo. 0 conceito de jogo, que pres­

supõe tensão, surge, justamente, para substituir a precariedade

das totalizações, do etnocentrismo, num tempo marcado pelo inten­

so embate de contradições.

É certo que o conceito de modernidade é derrapante e se

não temos respostas unívocas, nem tampouco elas nos interessam,po

demos detectar formas de manifestação desta modernidade. Não há

novidades, mas peculiaridades, que são, insistimos, formas de so­

brevivência. E aí entra Murilo Mendes. E Benjamin: toda constru­

ção é uma destruição e por trás de toda a barbárie podemos resga­

tar um sentido positivo. A cultura se organiza. A crise permite

transpor o passado e libertar-se de suas recorrências. Mergulhe­

mos, contudo, na crise.

A crise do discursivo e da poesia moderna implica, de fa­

to, numa crise do sujeito e da realidade. Benjamin dialetiza Bau-

delaire e Paris, o poeta e a cidade: uma relação ambígua de admi­

ração e estranhamento daquele frente a uma nova situação social.

0 crescimento da urbe abalou a unidade homem e natureza,, vale di­

zer, abalou a identidade. Com isto, a poesia que pressupunha a re

ferida integração é afetada na sua medula, a linguagem. 0 sistema

que se organiza e desorganiza o eu é negado desde uma tradição r£

mântica, de William Blake, passando porPoe, até Baudelaire. 0 mo

97

vimento e o brilho da cidade seduzem e repugnam, e o poeta, ao ne

gar, busca as técnicas da mesma. 0 horror da cidade grande conduz

à saudade do perdido; à dispersão do eu, à reminiscência da unida^

de, o que em Murilo é básico.

Com efeito, a própria expressão "modernidade" surge do o-

lhar do poeta sobre a cidade. Baudelaire aplicou-a, neste senti­

do, desde 1859, justificando a necessidade (e a novidade) do seu

uso para expressar o particular do artista moderno, como indica

Hugo Friedrich: "a capacidade de ver no deserto da metrópole não

só a decadência do homem, mas também de pressentir uma beleza mis1

teriosa, não descoberta até então" . Um conceito de modernidade,

como se vê, inicialmente, negativo, que, contudo, tornar-se-á al­

go fascinador na figura do decadente, do noturno, do absurdo. Ou

seja , a evasão do real tecnicizado para uma irrealidade construí^

da, paradoxalmente, com rigor e técnica, descortinando a magia

das palavras. A relação poeta e cidade é analogizada, portanto,

ao nível da construção poética. 0 poeta esgrimista,ao lutar com

as palavras, nutre-se da sociedade que rejeita. A cidade apresen­

ta-se como analogia do textual: ruas que se cruzam, textos que se

cruzam. A cidade como um texto que fervilha discursos abre-se pa­

ra ser lida. 0 poeta na rua constrói a rua comunicante do seu tex_

to, sitiado entre recusa e aceitação. Isto desdobra-se em Mallar-

mé, onde em "Um Lance de Dados" (desde a tradução de Haroldo de

Campos) declara-se em greve com a sociedade, numa crise de repre­

sentação, associando, contudo, a este ceticismo os recursos vi­

suais dos jornais, símbolos do poder da técnica. A partir do con­

flito com o mundo, o poeta da modernidade engendra estratégias p£

ra a poesia: fragmentação, sobreposição de discursos, superposi­

ções de imagens.

Mundo e sujeitos dilacerados; linguagem distanciada, pala

98

vras em órbita. A procura de sentidos diante da perda da identi­

dade na multidão, da dispersão de certezas, da ausência de reco­

nhecimento. Novos movimentos solicitando uma nova dança. A crise

da sensibilidade desperta o sentimento da forma, motivado pela

liberdade de corte e associação. Em Murilo, este sujeito lírico

é múltiplo, encerrando tradição e contradição. Mas é um sujeito

crepuscular, que atua consciente da sua condição, avesso, desde

uma linha de rebelião da poesia francesa, à arrogância da doxa.

Daí a rede de paradoxos que produz. Estes paradoxos denunciam a

exaustão do lírico e remetem à função metalingUística da poesia,

meta-estética, metapoética. 0 texto estabelece seu espaço, idealis^

ticamente autônomo (ainda que isto possa levar ao vazio), espaço

de circulação que dinamiza funções, ou seja, desfuncionaliza e

refuncionaliza. 0 sujeito e os grandes relatos morrem, mas so­

bram os fragmentos. De Orfeu a Orfeles, a identidade se disper­

sa. 0 eu, como vimos em outro lugar, deixa de ser eu, invade ou­

tros. 0 sujeito deixa de ser sujeito e identifica-se na sua negja

ção. Pinta-se um quadro pós-moderno onde não há lugar para o

sujeito, muito menos para o autor. Numa época sem possibilidades

chega-se ao silêncio, que pode ser visto, inversamente, como o

máximo de tensão, a exemplo do caminho da música contemporânea:

da dialética tensão/repouso à ausência de repouso.

0 que é inusitado é que esta agonia do lírico, da pala­

vra, do sujeito (potencializando a figura do leitor), este esva­

ziamento dos sinais, poder tornar-se mesmo um valor para certos

escritores: matéria poética. 0 caos pode levar ao silêncio produ

tivo. Se constata-se que a linguagem é equívoca e morreu enquan­

to informação (a palavra sempre exclui, não diz), descrê-se ne­

la. Contudo, ao procurar ler o não dito da linguagem, ao movimen

tar-se pelo intervalo do texto, o poeta está desejando o absolu­

99

to da linguagem. Esta a sua angústia — e a sua convergência não2

pacífica. A linguagem encerra, vale dizer, com Roland Barthes ,

uma guerra. Defrontam-se a linguagem triunfante da doxa e a lingua

gem armada, fora do sistema de certezas, para-doxal, cortante,

ruptiva. A frase fechada, organizada hierarquicamente, depara-se

com a frase enigmática, obscura, incompleta, definindo a desorga­

nização do sujeito. Esta frase lacunar é tomada como valor em Mu­

rilo Mendes e outros. A poesia torna-se não-assimilável, é anor­

mal, atua na tensão entre palavra e silêncio, evocando o branco.

Não há música — ou há música calada — , mas há dança.

Concordamos com Roland Barthes quando este afirma que vi­

vemos num século marcado pela exploração do espaço e da lingua- 3

gem . Proposição de conotação ampla, bastaria olharmos ao nosso

redor, os prédios, a cidade e a poluição informacional, para ter­

mos uma dimensão de tal fato. A própria linguagem é explorada en­

quanto espaço. Um espaço, desde Mallarmé, que acolha as virtualidja

des da linguagem. Neste sentido, parece-nos lícito aproximar cat£

gorias sonoras, visuais e espaciais. A própria crise da linguagem,

o reconhecimento da impotência em dizer o absoluto, leva-nos a

questionar os limites do livro. Em Murilo Mendes, como veremos, há

um interesse crescente pelo abstrato que se alimenta do concreto:4

"0 texto é objeto concreto/abstrato/ou concretoabstrato? " Uma

certa abertura para o plástico: o visual e o literário são irre­

versivelmente associados.

Tentemos algumas considerações, a partir de reflexões con­

vergentes neste tão escorregadio terreno. Sempre é audacioso es­

crever sobre a linguagem, pois implica numa filosofia "da", tare­

fa empreendida pelos mais fecundos pensadores. Em Murilo Mendes

100

este é um alvo constante.desde H i s t ó r i a do B r a s i l , 1932, onde, pa

la paródia,retorcia textos, estabelecendo tensões. "A poesia é a5

pobreza" , dizia-nos nos anos AO. A palavra é ausente, apontando

para o espaço convergente do silêncio. Isto está de acordo com a

idéia — presente — da condição lacunar do texto, ou seja, este

diz mais nos seus intervalos, na sua incompletude, do que no seu

projeto orgânico. Em se tratando de poesia, isto é potencializja

do. Conjuga-se como o prévio: a virgindade do papel, a liberdade

do branco desafiando o poeta, ocasionando a angústia da criação

literária. Neste espaço — aparentemente restrito — a escritura é

essencialmente experimental. Pode-se ali jogar tudo, dançar tudo.

A dança, a propósito, pode ser definida assim: o experimento do

espaço, sem necessariamente ter um fim, ir a algum lugar. 0 espa­

ço emerge como experiência. É o que faz mais tarde, a poesia con­

creta: articulações no plano ótico, certa ruptura com o espaço

("certa" porque a palavra ainda é o instrumento, talvez o novo

centro), vale dizer, uma intervenção crítica neste. 0 lacunar é

produtivo. Trata-se de construções perversas, na medida que o es­

paço é descontínuo e indagador.

Reconhece-se esta conquista do espaço em Mallarmé. Não é

nosso interesse fazer aqui uma análise de "Um lance de Dados", o

que já foi feito com maestria por Paul Valéry, Walter Benjamin e,

para pensar em exemplos recentes e próximos, Augusto e Haroldo de

Campos. Valemo-nos, contudo, das reflexões destes para desenvol­

ver esta análise. "No ápice de todo um processo evolutivo da poe­

sia, Mallarmé começa por denunciar a falácia e as limitações da

linguagem discursiva para enunciar no "Lance de Dados", um novo6

campo de relações e possibilidades do uso da linguagem..."

Vale dizer, a conquista de um espaço onde são projetadas constela

ções de palavras que revertem o poema sobre si mesmo. Neste pro­

101

jeto estrutural, para pensarmos no conceito tal como é adotado7

por Augusto de Campos , há uma procura por novos espaços e

a criação de um leitor refinado e também construtor. 0 próprio

silêncio, o espaço vazio da página são lidos, numa dialética en­

tre o branco e os signos gráficos. Isto certamente só é possível

num con-texto de crise do discursivo e do lírico. Paul Valéry,

discípulo e mestre de Mallarmé, já teorizava a respeito, no iní­

cio do século, sobre suas impressões iniciais frente a "Um Lance

de Dados" ("creio que fui o primeiro homem que viu aquela obra e^ 8

traordinária" ) : no mesmo vazio interconsciente coexistia a pala­

vra, como "se houvesse aparecido uma constelação que por fim sig-9

nificasse algo" . 0 poema é visto como invenção intelectual onde

o essencial é a disposição gráfica. Irresistível, na nossa refle­

xão, a imagem de um palco vazio numa dialética gráfica e dinâmica

com o corpo dos bailarinos. 0 texto mallarmaico remete-nos, pela

leitura de Valéry, a conceitos que abordávamos em Murilo Mendes,

reforçando o intertexto. Diz-nos o poeta-crítico francês, em chai

ve analógica com o céu resplandescente de constelações (que vira

na noite em que Mallarmé o levava para a estação), que "Um Lance

de Dados" é um texto de claridades e enigmas; que fala e não fa­

la; um tecido de múltiplos sentidos; que proclama Deus e o nega;

que contém em seu conjunto imaginável, todas as épocas... Dados

estruturais na poética muriliana com raízes, portanto, em Mallar­

mé. A dialética do branco e do negro transfere a página — unidade

visual — à potência de céu estrelado. A própria tipografia distijn

ta favorece o conhecimento comparado, estrutural. No último Muri­

lo, desde Mallarmé, reforça-se o modo de concepção do poema, a

sua construção, a linguagem que produz linguagens, como nesta cas

cata paranomásica:

102

da

cia

ra

to,

FORMIDÁVEL

FORMIDÁVEL

FORMADÁVEL

FORMADÔVE

F ORMADÔVO

FORMADÓVEL

FORMIDÁBLIU

FORMIDÁCTIL

FORMITÁCTIL

FORMIDANÇA

FORMIDEDO

FORMIDENDO

FORMIDADO

FORMIDOIDO

FORMIDÜÍDO

FORMIDONDO

FORMÓFILO

FORMÓFOBO

FORMIAUDÍVEL

FORMIVÁVEL

FORMIGÁVEL

FORMIDÁVEL

10

0 isolamento do

e ao silêncio. Ao aca

-se à constelação pre

do acaso. Como diz-no

fadada por definição

poeta frente à barbá

so que, numa contrad

sumível, ou seja, à

s Haroldo de Campos:

, à falência , entrev

rie o conduz ao na-

ição dialética, asso-

disciplina controlad£

"A procura do absoljj

ê um êxito possível . . .

103

a obra-constelação, evento humano, experiência viva e vivifican-1 1

te" . Há uma composição, portanto, na negatividade; uma pressão

sobre os recursos lingüísticos na ultrapassagem do espaço metafó­

rico tradic'onal. A linguagem é arma e terreno da atividade poética.

Com efeito, Murilo converge, aqui, em Mallarmé: se tomarmos o pu­

lo como procura pelo absoluto em Murilo e o silêncio como revela­

ção intervalar produtiva em Mallarmé, podemos ler o silêncio nos

pulos de Murilo e os pulos no silêncio de Mallarmé. A própria lei

tura torna-se intervalar, na medida que leva o leitor a atos des­

contínuos, a construir com o poeta o poema.12

Diz-nos Murilo: "silêncio: roda em movimento" . Temos a-

qui abordado o silêncio como contraponto produtivo. Talvez fosse

possível vê-lo como face heróica da vanguarda. De qualquer forma,13

segundo o raciocínio de Ramón Xirau , estar em silêncio não é

necessária nem fundamentalmente calar-se. 0 silêncio não é mutis­

mo nem nudez. Contudo, há um "silêncio essencial" na própria paléj

vra, um silêncio que expressa, que torna-se, inversamente, falar.

A palavra, portanto, contém o silêncio. Um silêncio construtivo,

explorado por poetas como Mallarmé, que sabem da perda da palavra

e de seu significado e, por isso mesmo, indagam-na criticamente a

té na sua ausência.

Em outro aspecto, o silêncio pode ser visto. "Branco é

luz domada: dinâmica da nossa contemplação/. Branco sobre branco:

silêncio absoluto agindo," reflete Murilo no seu fundamental "Te><1 A

to Branco" . Como se percebe neste, a concepção muriliana apon­

ta para uma ação no silêncio e na sua manifestação poética, o bran

co. "0 branco mistura, separa, elimina. Corrige o temperamento do

artista que tende a sobrepor-se à obra de arte". 0 branco enquan

to ausência presente numa função metapoética. "A energia branca"

resgata o abstrato contido no concreto, engendrando um processo

104

construtivo bás'ico para a poesia muriliana.

As aproximações neste ponto são muitas, contudo, quem lê 15

"Manifesto Branco" , 1946, de Lúcio Fontana, refletindo com suas

experiências de exploração do espaço e com seus comentadores, não

pode deixar de entender aí, ainda que parcialmente, um sentido mij

riliano ou vice-e-versa. Para Lúcio Fontana, a arte é uma empresa

do humano. Anota em seu manifesto uma crescente representação do

espaço na arte moderna unido ao tempo, em direção a uma "estética

do movimento orgânico". 0 espaço é tratado como um lugar ambigua­

mente mental, na medida que é construído, mas, ao mesmo tempo, e_x

perimentado nos seus famosos "conceitos espaciais", interrogando

as virtualidades do mesmo. 0 vazio (silêncio) da superfície su­

põe, a exemplo do que vimos em Murilo-Mallarmé, uma ausência pre­

sente; o corte, ao negar, afirma. Não espaço em branco, mas espa­

ço branco, um branco-signo do espaço. Aqui, intervém, Haroldo de

Campos, quando,ao escrever sobre Murilo Mendes,deslumbra, em Tem-16

po E s p a n h o l , o espaço branco do papel reduplicando-se visualmeni

te e comunicando-se assim também ao nível não verbal. Exemplifica

tal processo no poema "0 Dia do Escoriai", onde se lê: "0 espaço

o espaço o espaço aberto (com claros na linha separando

a palavra à medida que se repete)". Aliás como Mallarmé, capaz

de "ler na constelação de palavras pontos de luz no céu de Val-

vins", para Murilo de Tempo Es p anh o l há também "um céu legível,

texto de diamante". Para Lúcio Fontana tal dialética se faz pre­

sente. A luz é, igualmente, signo do espaço. Nas suas experiênci­

as, o espaço emerge como superfície física atravessada por cor­

pos estranhos como, por exemplo, furos na tela. Vale dizer, o es­

paço é representado e construído; é potencializado e ambiguamente

abstrato: ainda que não haja alusão ao sujeito, é a própria ins­

tância do homem. A sua exploração e conquista — que envolve o

branco da tela, o branco da página e o silêncio do poeta — cons­

105

titui-se na interpelação de uma nova sensibilidade, na constitu^

ção de um novo leitor. Neste sentido, interessadamente, questiona

Murilo: "A página branca indicará o discurso ou a supressão do17

discurso?

Novamente a dança: se retomarmos a imagem do poeta-bai-

larino, este dança o silêncio do texto, o branco da página, ou se

ja, a linguagem explora a sua ausência construtiva. A dança gera

seu espaço onde o signo bailarino projeta-se numa alternância de

tensão e repouso. Um articulando-se no outro. A figura produz seu

trajeto. A forma antecipa-se e procura seu sentido: signos em ro­

tação. Bailarino: intersigno. Com efeito, música e poesia estão

intensamente ligados ao gesto e a dança. Todos tem origem na en-

cantação mágica dos ritos religiosos e sociais. Encantar e can­

tar, aliás, vêm da mesma raiz. A propósito, um dos inovadores da

dança contemporânea, Merce Cunningham, reflete: "a música não

serve de suporte para a dança... as duas atividades acontecem ao 18

mesmo tempo" . Quanto à poesia, as figuras convergem em si o rit

mo estabelecido no palco-papel.

Dança: "sistemas de atos mas que tem um fim em si mes- 19

mos", diz-nos Valéry . Isto produz uma forte abstração na medida

que o movimento não vai a nenhum lugar. A dança, aponta o filóso­

fo francês, não persegue objetos ideais, mas estados, arrombamen­

tos, extremos de vida. Diríamos que a dança representa a si mesma.

Ela está além da monotonia da marcha; encerra a nova seqüência, o

novo arranjo, permitindo uma "infinidade de criações e variações20

de figuras" . A dança é a poesia. Retornamos, assim, com Valéry,

ao início do caminho: a linguagem.

Tomando as reflexões critico-poéticas do último Murilo,

106

constatamos uma herança que, de resto, revitaliza as experiências

anteriores, qual seja, o terreno do texto. Se "nós" somos prono­

mes pessoais no verso marioandradiano, em Murilo isto se dá por

um deslocamento do problema: da reflexão metafísica à reflexão

metalingüística que, em última análise, contém aquela. Sonda-se

o inconsciente da linguagem. Do jogo antitético da poesia atormein

tada dos anos 30 — "Meu outro eu angustiado desloca o curso dos

astros, atravessa os espaços de fogo e toca a orla do manto divi- 21no" — passamos ao deslizamento do significante pela paranomási-

a dos anos 60, concretizando "Metamorfoses" — "Astronave/Astrone-22

ve/Astronovo/Astronuvem/Astronável..." , estratégia na qual inves^

tem também Mário de Andrade, Drummond, Oswald de Andrade e até Ca£

siano Ricardo. De fato, uma problematização da linguagem da qual

um poeta moderno não pode escapar. Em Murilo, a referida questão

surge como projeto desde, por exemplo, para não ir mais longe, Si-

ciliana, 1955: "A Términe Imerese eu vim,/ De Términe Imerese eu23

vou/ Pesquiso a forma no caos/ Pesquiso o núcleo do som" . Conju­

gando som/sentido, experimenta outras formas de humanismo pela con

cisão vocabular.

0 enigma do ser com o qual Murilo Mendes debate-se é en­

frentado pela linguagem, num itinerário que rompe pela interdiscuj:

sividade, alcançando a nudez dos versos até a diluição em impulsos

poéticos, como substantivos inventados sem conexão semântica pré­

via: "Ardêmpora neclauses/ Bisdrômena guevolt/ Canéstrofa trapes^24

so..." . A palavra é potencializada dando ritmo e estrutura ao

poema. Diante da dúvida semântica do seu tempo, o poeta interroga

significados novos, resgatando a dialética interna da palavra, a

qual emerge como um plurissigno. 0 poema apresenta-se como dialeto

lírico servido por muitas dicções. Tomando figuras, Murilo Mendes

coloca-se num estado nascente e produtivo da linguagem. Empreende,

107

assim, a aventura literária na qual estende as propriedades da

linguagem.

"Nossa vida é uma contínua alusão a uma realidade supe­

rior que nos escapa na sua totalidade, mas da qual percebemos to

dos os dias indícios e centelhas. Nem tudo nos é revelado, mas25

nem tudo ignoramos" . Desta forma refletia Murilo nos anos 40.

Ou seja: o enigma ainda que enfrentado pela linguagem permanece.

Conhece-se fragmentariamente. Tal parcialidade aponta fatalmente26

para o futuro, afinal "Ninguém esgota o azul e seus enigmas"

0 conhecimento é pela alusão contínua, a irrefreável leitura.

Neste sentido, a linguagem fundamenta a distinção do fato e não

o próprio fato. A linguagem é dúplice. Ela está, desde uma concep

ção barthesiana, junto com o homem. Este não preexiste: consti-

tui-se por ela. Com efeito, Murilo Mendes, seguindo uma linha­

gem mallarmaica, aproxima a literatura da linguagem, a qual é o

veículo para penetrar os enigmas da existência, empenho natural

do poeta heróico.

É claro que uma literatura nestes termos dificulta a leitju

ra lógico-discursiva tradicional. Há uma certa aversão ao fácil

e ao explícito, desafiando o leitor. A linguagem evita os signi­

ficados usuais das palavras, voltando-se para si mesma na busca

de estados poéticos não verbalizados: poemas. As palavras são,

desta forma, redefinidas constantemente. Tal desarticulação da

linguagem literária permite trabalhar com a loucura da linguagem,

permeando a intromissão do leitor provocado. Ao negar a referen-

cialidade, a literatura torna-se ambiguamente intransitiva, na

medida que remete a si mesma e, contudo, abre-se para o enfrentai

mento da leitura, para o puro exercício filosófico. Como se vê,

não se trata de alienação, pois o estético atua sobre a ativida­

de humana; participa na atitude, do homem frente ao mundo. A lin­

108

guagem é pensamento.

Murilo Mendes constitui-se como escritor na medida que

escritor é aquele para quem a linguagem torna-se problema. Aqui,

como de resto nos pensadores da modernidade, o obscurantismo tem

propósitos: é proposital. São escritores que dançam, que jogam,

e o jogo é sempre escandaloso. Este evita o .previamente controla^

do, ainda que encerre uma estrutura. Novamente o dilema mallar-

maico. Para lembrar Benjamin, obscurecer o objeto, o enigma,

num sentido não fortuito, qualifica a obra de arte. Isto tem res

sonâncias no século XX: o estranhamento formalista, o fantásM

co, o absurdo, o distanciamento brechtiano... Em tais projetos,

temos, sobretudo, a desautomatização da percepção, a densidade produzin­

do prazer estético. Em Murilo Mendes, o texto mostra-se contemp£

râneo justamente porque libera linguagem. Envolve direitos cole­

tivos de apropriação, proliferando sentidos. Em sua última obra,

Convergência, 1970, atesta a morte do poema, mas aponta para a

sua ressurreição por meio do agenciamento de uma construção abe_r

ta,constituída por resíduos, concretos e substantivos.

Já temos abordado aqui a obra Convergência, de Murilo

Mendes, que embasa as relexões deste capítulo. Caberia, neste

ponto, deter o olharem alguns pontos para indagarmos, posterior­

mente, a concepção de texto em Murilo Mendes, seu processo cons­

trutivo. Já temo-nos referido que tal obra empreende uma supera

ção da linearidade discursiva, engendrando imagens imprevisíveis,

enumerações em cascata. Os jogos semânticos são dinamizados medi^

ante as criações vocabulares. Tal estratagema é gerado, sobretjj

do, pelo deslize paranomásico — "Girafel. Girafel. Girabol. G_i 27rassol" — , estabelecendo-se um inter-relacionamento ao nível

109

das palavras e não dos versos. 0 significante nômade articula si­

gnificados que tendem à dispersão. Há um processo latente e prodjj

tor mediante a montagem e desmontagem de palavras, formando ondas

sonoras e significantes — "0 lume da aveJã. A lã do averlume./28

A vela da avelã. Ave, lã da avelã./O lunarve./ 0 larvume" . As

palavras chamam, com efeito, a atenção sobre si, entrecruzando-

se, num festim de signos. Estabelece-se, assim, uma inter-signi-

ficação que alimenta o concreto, atingindo o cerne da linguagem.29

Exemplo disto é o "Grafito numa cadeira" ,onde a palavra cadeira

é despida do significado da palavra cadeira, para, desta forma,

desnuda, "Anônima", tornar-se eterna, num elo súbito com a pala­

vra Van Gogh. Tal processo, desconstrutor, dessemantizador, apon

ta para um obscurecimento positivo que desautomatiza uma perce£

ção já saturada.

Tentemos, portanto, abordar dois poemas ("grafitos") es­

critos em Juiz de Fora, 1964. Visualizamos nestes textos uma a-

bertura para as experiências radicais dos seguintes que, de uma

certa forma, estão embutidos na produção anterior do poeta. Re­

lação intratextual dinamizada através da postura crítica do au­

tor em relação à sua linguagem, a materialidade da poesia e de

sua inscrição na modernidade. Devemos concordar, pois, com João

Alexandre Barbosa quando este afirma que "a modernidade de um

poeta é traço de definição bem mais complexo que a simples dema.r

cação temporal... a modernidade pode ser pensada como a conver

gência de elementos que caracterizam uma realização poética esp£

cífica", vale dizer que a própria expressão "indica uma certa30

qualidade de poesia"

Grafito: inscrição ou desenho de épocas antigas, tosca-

1 10

mente riscada à ponta ou a carvão em rochas, paredes, vasos, etc. A es­

crita através do mineral. Grafito: sintoma do residual, potência

lização do fragmento enquanto discurso, transfiguração em ma­

téria poética.

"GRAFITO NA PEDRA DE MEU PAI"

Tu foste

Casa feita/paz/ternura

Aberta para o mundo.

Santo-e-senha distribuías

A pobre, amigo ignoto

Irônico/repentista/malincônico

Eis tua marca maior: hombridade

Essa cabeça ovalbranca

De mineiro gentilhomem

(Belo)

Sinais emitia célere

De soaveforte comando

À tribo de songamongas

Tu e Maria José

Montanha generosa

Repartiam entre os oito

0 coração em fatias

Teu filho pródigo

Polêmico giróvago

Giralivros

Anárquico alicaído

Insoferente do século

Acolhes preparando

Perdão virtualha & serenim:

0 Brasil

A Bíblia

Betelgeuse

Maria da Saudade

Mozart

Dante

Paul Klee

0 amor da liberpaz

A página branca

A Espanha

Trabalhador da vida. Homem de aço.

& seda, sinto ainda pulsar

Teu coração

ecumênico

Juiz de Fora, 1964

Dividido em quatro partes, o poema ao construir

dro do pai, especificamente na primeira e quarta partes,

111

o qua-

aponta

112 '

para a construção do múltiplo no filho. 0 pai é a "casa feita...

aberta para o mundo". Vale dizer, a abertura para uma linguagem

que engloba a experiência. 0 título sugere, desde já, a leitura

da pedra, do morto, do imóvel que vai, paradoxalmente, oferecer

os dados para a elaboração do presente, do vivo e do dinâmico dis

curso plural. Pluralidade esta expressa na construção constelar de

palavras soltas, separadas por barras como "Casa feita/paz/ternu-

ra" e "Irônico/repentista/malinccnico". Estrategicamente, uma cos

mogonia forjada a partir do eu e do pai do eu, complexa relação

entre criador e sua imagem.

Há no poema o desejo de uma linguagem que, sobretudo, se­

ja soprada pela liberdade de associação e de corte temporal. Exp£

riências são sobrepostas, reforçando o espectro semântico da lem­

brança do pai como, por exemplo, em "Essa cabeça ovalbranca" e

"repartiam entre os oito/o coração em fatias". Por redundantes

que sejamos, a arte aqui é empresa humana, aventura intelectual

que coloca em xeque toda a leitura discursiva. Se o poeta é aque­

le que produz estados poéticos no outro — e, logo, provoca — a31

leitura de Murilo não retorna impune, mas produtora . 0 texto com

põe sua própria realidade, seu próprio espaço. Uma constelação,

pensando em Mallarmé, forjada pela linguagem do poema, atravessa­

da por palavras-cometa: "0 Brasil/A Bíblia/Betelgeuse/Mozart/Mar^

a da Saudade/Dante/Paul Klee", intertextos constitutivos de sua

poética.

Quanto ao tempo, cabe lembrar a reflexão de Valéry sobre

a velocidade das transformações materiais, onde as cartas têm si­

do embaralhadas em todos os assuntos humanos. A possibilidade da

contemporaneização de passado e presente fascina e seduz o texto

muriliano: Mozart, Dante, Paul Klee... engendrando um discurso

híbrido e transistórico. 0 pai, neste sentido, é também produtor.

0 poema forma-se na infinidade de cortes possíveis, no acaso do

jogo entre ausência e presença, entre o lembrado e o esquecido. 0

silêncio, o branco, passam a ser relevantes, lidos no grafismo ^

nerente da linguagem, louvado nas conquistas do filho: "o amor da

liberpaz/a página branca/A Espanha".

Desfilam ao longo do texto, as palavras construídas, es­

pecialmente na auto-caracterização do filho: "Teu filho pródigo /

polêmico/giróvago/Giralivros/Anárquico alicaído/insoferente do s£

culo/Acolhes preparando/perdão virtualha & serenim". Mas não só:

ovalbranca, gentilhomem, soaveforte, liberpaz. Muito mais do que

mera aventura léxica, tal atitude, que se espalha ao longo de

todo o livro até explodir nas "Palavras inventadas (em forma de

Tandem)", é um processo compositivo que está isomorficamente ligja

do ao processo de reconstrução da linguagem,de significantes nô­

mades em busca de resíduos semânticos dispersos. Sem dúvida, em

Murilo, a poesia cria a sua prórpria teoria; teoria e prática não

estão separadas. De uma singular estratégia vale-se Murilo Mendes

para compor seu grafito, qual seja, da tensa e escorregadia rela­

ção entre palavra e memória. A palavra potencializada torna-se

um centro dinamizador do discurso, torna-se poema. Ato típico Mu-

riliano, o um fala pelo outro, o filho pelo pai, "o trabalhador

da vida/Homem de aço e de seda", e sente o seu coração ecumênico.

Ecumenismo que alarga o campo da linguagem, na medida que recupe­

ra o tempo e o espaço como experiência. Sendo assim, Juiz de Fo­

ra não é uma cidade, mas texto.

Se Juiz de Fora é um texto, este permite, a partir de uma

visitação datada (1964), a leitura de outros tempos simultaneizja

dos por um presente seletivo — logo criativo — e crítico. E o

1 13

114

poema torna-se crítico na medida que opera leituras que transgri^

dem o mero sentido remissivo do olhar. 0 "Grafito na Pedra de

Minha Mãe"é, sobretudo, a leitura do processo criador frente ao

tempo relativizado:

A pedra abre os olhos mansos de Colomba

Morte polêmica

Morte que separa homem & sombra

rosa & espinho

Catapultou-me da esfera do teu ventre

Para este território ásperoanguloso

Onde soou no espaço

A primeira ruptura, tempo subtraíndo-se,

História em mito permutada

Eletronicamente.

Bela/jovem/magnética

Talhada para canto & clavicímbalo

Te eclipsas no limiar do século

que cedo iria me absorver

Extraindó-te de mim

Fechando-te magnólia móbile

selenocêntrica

Elisa Valentina minha filha unigénita

Tornaste-me

Espiritado esdrúxulo;

Goraste

Minha cosmogonia

Juiz de Fora, 1964

1 15

"Colomba" abre os olhos para desvendar uma gênese, um

descobrimento que, inversamente, aponta para um não-nascimento,

para uma morte polêmica, textual. Tal morte é fundada na inseri^

ção do poeta, lançado neste "território asperoanguloso/onde so­

ou no espaço a primeira ruptura: tempo subtraindo-se". A positi-

vidade desta morte, por outro lado, é tensionada pela negatividja

de da ruptura primeira, a ação tirânica do tempo.

Veja-se, então, que o que está-se buscando é a arqueolo­

gia de uma cosmogonia. 0 texto é redundante na caracterização de

uma pergunta: a irracionalidade da existência, inserida no absur;

do do tempo. A orientação estética do texto reforça este jogo en

tre tempo e existência, como no verso 11, onde os adjetivos se­

parados por barras apontam para a caracterização constelar e des

contínua da mãe: "bela/jovem/magnética".

"Talhada para canto e clavicímbalo/Te eclipsas no limi­

ar do século/Que cedo iria me absorver/no seu contexto polêmico" .

0 texto surge como contexto e o poeta como palavra assimilada

por este, o que nos leva ao próprio empreendimento do poema: a

leitura do tempo, sua afirmação e morte. Um diálogo, portanto, do

poeta com a sua própria negação.

Há, com efeito, no poema a latência de um processo de

desenraizamento e reversão, na medida que a morte extrai a mãe

do filho. Potencializa-se um processo de releitura do passado pe­

lo texto presente: "Elisa Valentina minha filha unigénita . 0

presente que produz o passado. Idéias que giram, imagens que mi­

gram, assim é o poema muriliano: texto produzido desde a instaura

ção de uma cosmogonia dinamizada, mas, por natureza, irresolvida.

0 que é particularmente relevante aqui é que isto confi­

gura-se como o Murilo que se lê, que procura o seu sentido, o

116

seu duplo. Se o universo é um vasto signo que se move, podemos

caracterizá-lo como um hipertexto que envolve os signos em ince£

sante rotação.

Interessante observar que este escrever por fragmentos,

ou por aforismas, em Murilo Mendes, caracterizando uma concep­

ção constelar de poema, indica a ação transitória do texto. 0

deslocamento contínuo dos signos excita a possibilidade de vir-

se a ocupar outros espaços, outros textos. Ambiciona-se o movi­

mento: o texto migra. Por outro lado, como temos visto, o texto

é atravessado por linguagens: ele é também passagem. 0 texto,

portanto, insere-se em um mutismo, produzindo, incessantemente,

sentidos. "0 texto será reescrito/pelo tipógrafo/o leitor/o crí-33

tico;/Pela roda do tempo?" , sugere Murilo. Trata-se de um sig­

no plurívoco, onde realizam-se operações discursivas a partir da

tensão entre operador e leitor, num trabalho contínuo de trans­

formações. 0 texto, desta forma, distribui a língua. Articula e

desarticula.

É evidente que, ao constatarmos isto, aproximamo-nos do

conceito de texto do último Roland Barthes. Difícil não lembrá-

lo mesmo que se queira esquecê-lo. Com efeito, o mestre francês

permanece ainda pelo seu sabor (na indicação da discípula Leyla

Perrone Moisés). Mais do que isto, como reconhece um crítico lú­

cido como Augusto dos Campos, Roland Barthes é um escritor próxi^

mo da arte criativa do seu tempo. Por isso mesmo, vale retomar­

mos algumas concepções barthesianas dos anos 70.34

Em "Da Obra ao Texto" , Roland Barthes teoriza sobre

uma palavra — texto — que tende a tornar-se suspeitamente moda.

Contudo, não evita o termo, antes o agudiza. Ao analisar o desiti

117

ze epistemológico que a idéia de obra sofre, demonstra que es­

ta é um fragmento de substância, ocupa um lugar no espaço. 0 tex

to, por sua vez, é um campo metodológico, mantém-se na linguagem.

Seu movimento é a travessia. 0 Texto coloca-se além da doxa: é

paradoxal e, por isto mesmo, moderno. A obra fecha-se sobre o s^

gnificado; o campo do texto é o significante, remetendo à idéia

de jogo. Ele joga e desafia que seja jogado. Solicita do leitor

uma colaboração prática, sem o policiamento do Autor (o Texto p£

de ser quebrado). Ficaria, assim, eliminada a distância entre a

escritura e a leitura: ambas tornaram-se ligadas numa mesma prá­

tica significante. Também o texto é plural, o que significa que,

além de admitir vários sentidos, estes são disseminados. 0 Texto

possui uma combinatória única, fundamenta-se na diferença. Isto

indica que "o intertextual" difere do buscar filiações, mas con­

siste em assumir vozes, citações sem aspas.

Com efeito, estabelece-se um diálogo teórico entre Muri­

lo Mendes e o pensamento barthesiano. As inquietantes definições

de Roland Barthes ("0 Texto é..."), parecem responder ao "Texto

de Consulta" muriliano: "Existe um texto regional/nacional/ou

todo texto é universal?/Que relação do texto/com os dedos? Com

os textos alheios?" ou "0 texto deriva do operador do texto/Ou35

da coletividade-texto?"

Em Murilo Mendes, a concepção de texto é ativada, espec_i

almente se o tomarmos como produção livre (que não respeita o

todo — lei — da linguagem, diria Barthes). Isto supre a necessi^

dade contemporânea de questionamento dos poderes hegemônicos. No

Texto, não há sentidos prévios: eles surgem da escritura que

inaugura a sua própria realidade. "A palavra cria o real?/0 real

cria a palavra" ou "Toda palavra é adâmica/Nomeia o homem/Que ncD36meia a palavra" . Vale dizer, a palavra poética reconstrói o

1 18

mundo: a realidade do texto.

A poesia muriliana, na medida que propicia o jogo, convi.

dando o leitor a re-escrevê-la, converge no prazer do texto bar-

thesiano (o que seria incluir o corpo no texto; o corpo enquanto

texto). A sedução da leitura conduz à sedução da escritura numa

prática onde circula o desejo. Murilo Mendes realiza o que Bar-

thes conclui: teoriza o texto, trabalhando-o, produzindo-o. A

teoria do texto só pode coincidir com uma prática da escritura...

"0 poema é o texto? 0 poeta?/0 poema é o texto + o poeta?/37

0 poema é o poeta - o texto?" . É notável na obra muriliana a

questão da textualização do universo e do próprio poeta. 0 mundo

é o contexto no qual insere-se o poeta: texto de textos. Dentro

desta semiose generalizada, tudo significa (até o insignificante).38

Murilo Mendes: "Tudo encerra um significado" . 0 mundo é um sig­

no equívoco no qual os signos dançam.

Esta textualização do autor está de acordo com o que nos

dizia Roland Barthes: o autor "torna-se, por assim dizer, um au­

tor de papel; a sua vida não é mais origem das fábulas, mas uma

fábula concorrente com a obra; há uma reversão da obra sobre a vi39

da (e não mais o contrário)" . É a partir da obra que se torna

possível ler a vida do autor como um texto. 0 autor passa a ser

lido como uma bio-grafia, no sentido etimológico do termo. Dilui-

se, desta forma, a sinceridade da enunciação, e a figura do autor

como presença externa, teológica. É a linguagem que fala, não o

autor: nasce o leitor.

Desta forma, os homens são inscritos nos seus textos, Mu-40

rilogramas.Baudelaire: "Sofre de modernidade ou de ser B?" ou41

Mallarmé: "incólume glória te assume/Mallarmé sibilino nome"

1 19

Enquanto nomes, os autores geram processos, verbalizam-se: "Nos.42

sa lírica/se manuelizou" . 0 próprio poeta é permeado por ho-

mens-palavra: "Eu tenho a vista e a visão: soldei concreto e a-

bstrato/Webernizei-me. Joãocabralizei-me./ Franciscopongei-me.43

Mondrianizei-me" . 0 escritor é trazido para o interior da es­

critura, agindo dentro do plano cultural, enquanto sistema geral

de símbolos.

Ganha atenção a tessitura do texto. A poesia torna-se a-

bstrata e física, no sentido em que se busca a materialidade da

linguagem. Murilo Mendes intertextualiza-se, neste ponto, com

ão Cabral de Mello Neto, em quem ressalva o "Descobrir o ovo, a44

raiz/o núcleo, o germe do objeto" . Nesta verticalização na 1 ijn

guagem, sonda-se o som da forma ou, por outro lado, a estrutura

do silêncio: "Tento operar com violência esta coluna vertebral,

a linguagem./Esquadrinho nas palavras/Meu espaço e meu tempo ju£ 45 46

tapostos" . Chega-se a "Estudos da letra V" ("lá vai a letra47

V/Lá vai a letra V voando") ou "0 Erre" ("os erres do erro . 0

erre da culatra/o erre do erpe. 0 erre do tambor"). 0 dentro do

dentro.

Há em Convergência um fascínio pelas palavras-coisas. 0

processo de nomeação das coisas — ato dinâmico — favorece uma

integração cósmica entre sujeito de objeto. Tudo é textualizado.

"Ar texto/água texto/terra texto/fogo texto/no universo/contex- 48

to" . Neste universo-contexto, o poeta inclui-se como tal49

("sou da terra e do ar enquanto textos") e como tal o tomamos,

lendo-o.

Como vimos acima, com Murilo Mendes a palavra é obsessi­

vamente buscada, ainda que na sua intermitência. Chega-se a for­

120

mação de palavras, vale dizer com Murilo, a palavra nasce-se. E

la torna-se anterior ao seu significado. Por isso mesmo, é abe_r

ta. 0 texto apresenta-se como exteriografia: emergem formas sem

fundo, favorecendo uma polifonia. A linguagem constrói-se em au

to-referencialidade. É claro que isto não significa exatamente

o novo. Antes trata-se do antigo pluralizado (o novo é filial):

rouba-se tudo desde uma idéia de palimpsesto ploriferante.

Retoma-se aqui ojpue já abordávamos antes: para pensar

com Adorno, a chave para ler a obra de arte está no seu "como",

na sua técnica. A arte da modernidade torna-se auto-centrada co

mo uma forma de resistência frente ao utilitarismo da sociedade

industrial, o que lembra o "asco pelo real" baudelairiano. Recu

sando a linguagem referencial da sociedade, a arte mantém-se

dentro de seu espaço próprio. 0 moderno, neste sentido, estaria

condenado ao futuro. Dentro desta perspectiva de auto-reflexibi^

lidade, a crítica sobre a arte insere-se na própria arte. Há

uma consciência presente indagadora do papel daquela.

Para lembrar a reflexão valeryana a partir de Mallarmé,

os versos têm necessidade de criar a si mesmos, eles se fazem

com palavras, não com idéias. A poesia não "serve a", no que

resgata-se a sua dignidade. A poesia invoca inteligências li­

vres. Delinea-se, aqui, a concepção borgeana da literatura como

arte independente de signos, que reorganiza a biblioteca, rei­

vindicando alguns textos e expulsando outros. 0 texto, frisando,

como mosaico de citações, como um tecido. Ora, esta idéia do ob­

jeto auto-construído frente à fratura entre sociedade e arte,

que toma o passado como campo de operações retóricas, num forte

sincretismo, lembra preceitos de uma performance pós-moderna,

especialmente a partir do pensamento de Jean-François Lyotard.

Reconhece-se também na dança contemporânea certo simultaneísmo:

121

a dança enlouquecida de todas as danças; uma relação de ligação

e despregamento da terra.

Murilo Mendes: "Construção/proparoxítona/estruturada /na50

auto-forma da fôrma" . 0 texto invoca a alegoria da sua pró­

pria leitura. 0 texto cinde, metamorfoseia-se,e isto permite ir

adiante na sua modernidade, a qual desenvolve-se nas fronteiras

(talvez o caso muriliano). Murilo é autor de transição, um poeta

que atua no limiar. Sua estratégia antidiscursiva, livre dos ex­

tremos da racionalidade, é a montagem dos fragmentos que lhe res

taram do absoluto. Sua experiência de reflexão é também uma exp£

riência de reconstrução crítica.51

"Todo verdadeiro poeta é um crítico de primeira ordem" ,

lembra Valéry. Neste sentido o poeta busca combinações através

de um trabalho inteligente, humano, artificial. Trabalha-se a

partir de uma consideração geral das formas; produz-se por trans^

formação. 0 poema surge como um objeto de cruzamentos textuais;

como signo de signos. A escritura — que opera com a memória — é

suplemento por 5excelência. Suplemento do suplemento, o que equi­

vale a pensar na questão do simulacro: o mesmo só o é o mesmo

fingindo ser o outro. Para ler o texto de vanguarda é preciso

ler seus intervalos, ou seja, outros textos. A exemplo de Bor­

ges, onde anula-se a distância entre o original e a cópia, num

hipotexto que abole a realidade. 0 texto é o mundo. Neste, todos

os estilos podem existir. A mistura de formas resulta em formas

parciais. Neste agenciamento de objetos em Murilo, configura-se

a idéia de construção, uma vez que o próprio sentido é construído52

com o poema. "A palavra nasce-me/fere-me/mata-me/ressuscita-me"

A conjugação de crise, aprofundamento da relação com a

122

linguagem e vanguarda leva-nos a pensar na literatura muriliana

como palco do espetáculo ideográfico de uma crise. A idéia de u-

ma dramatização verbal que infere a representação coreográfica

da dança: estratégia espacial de distribuição de signos a partir

de cortes não-ingênuos. A noção de um teatro de significantes

onde simulam-se representações. Ou a releitura da constelação

de signos de Mallarmé (a idéia de um céu lido já aparece em Mu-53

rilo no poema "Céu", dos anos 40 ), que aponta inevitavelmente,

para a criação de linguagens, projeto mesmo da vanguarda. Con­

tudo, modernidade não é vanguarda. Esta pressupõe o ataque: não

há vanguarda domesticada. Quando absorvida, deixa de sê-lo: é

vanguarda velha. Ela é a posição heróica, o posto avançado. A m£

dernidade seria a sua continuação, uma vez que a aceleração da

vanguarda produziria massa, não indivíduos. Contudo, outra pers­

pectiva sobrepõe-se à modernidade: o pós-moderno. Difícil deli­

mitar uma fronteira entre modernidade e pós-modernidade. 0 pró­

prio termo é escorregadio e encerra um risco na medida que carre

ga uma idéia de periodicidade. Talvez a modernidade hoje seja

pós-moderna. Se tomarmos o pós-moderno como uma condição que en

cerra a crise da idéia de progresso,produzindo uma literatura da

exaustão, do esgotamento, num esvaziamento de fronteiras; se ad­

mitirmos a grande liquidação de nossa época, onde tudo é comentjá

rio de algo feito (onde o simulacro antecipa-se à realidade), tal

vez possamos pensar que em Murilo Mendes toda a pós-modernidade

deva ser moderna. Se fosse possível o paradoxo, diríamos que na

medida que o poeta recupera formas antigas, retendo a tradição,

numa re-apresentação do presente, temos em Murilo um classicis­

mo pós-moderno. Este ao desconfiar dos grandes relatos e da tec.

nologia, instaura a fé num simbolismo cósmico único. Murilo Men­

des: "0 espírito do homem moderno caracteriza-se pelo cansaço

das experiências inúteis" . 0 poeta toma de Ismael Nery a convic­

ção da instabilidade das instituições. Um texto, portanto, que

subverte (vanguarda) e seduz (clássico). Neste sentido, a sociedja

de modernizante será conservadora. Ao trazer em si a crise, a mor

te, Murilo assume-se pós-modernista. Assim ele se define em con­

fronto com o modernismo por aprofundamento das tensões. "Em vez55

da palavra modernismo prefiro a palavra modernidade" , visuali­

zando "o choque e a crise" como elementos desta, a partir do con

ceito baudelairiano.

A literatura muriliana culminante transita, inquestionave^L

mente, por um projeto construtivo e dialoga com o Concretismo. Co­

mo nestes, há um obscurecimento da percepção para aprofundar a ex­

periência. 0 poeta artificial divide o público provocando-o. Con­

tudo, estamos diante da primazia do leitor: o lugar da estereoti-

pia, do cruzamento, do não-valor. Busca-se a conversão do consumi­

dor em produtor, um produtor-leitor, onde a dissonância é essen­

cial. Luta-se contra a natureza da obra e sua atividade instantâ­

nea. A contradição é a regra. Neste sentido, a obra cria seu pú­

blico e é criada por ele. Com a invenção intelectual — que é o cerne

de um projeto construtivo — , com a constelação construída pela

linguagem do poema, procura-se um leitor refinado. Tal leitor é e><

citado por exercícios semióticos anticonvencionais. Não seria pro­

priamente transgressão, mas agressão à expectativas. 0 leitor é

convidado a jogar com o texto; entediar-se é admitir que não se

pode fazê-lo.

Em Murilo Mendes, a palavra construção é antiga. Desde os

anos 30 e 40, em suas colaborações para o Letras e Artes, há a re­

corrência do termo, transferido do plano existencial para o esté­

tico. Sublima o fazer, a produção, o ato criador. A própria vida

de Ismael Nery, por exemplo, é apresentada como uma "construção

123

54

124

grandiosa" ou, em outro lugar: "A vida é uma construção que se

inicia com o nascimento e finda com a morte... A vida não éoutra57

coisa senão uma fornecedora de elementos construtivos" . A "vi­

da" como um texto. Tal concepção, essencialemte crítica, faz co­

ro com Valéry quando este observa mais a construção das obras do

que elas mesmas. A poesia como arte da linguagem, das combina­

ções de palavras e espaços produzindo emoção estética, desde,

no caso muriliano, uma indefinição deliberada disseminadora de

leituras.

Seria, portanto, necessário ver os pontos de contato, de

interpenetração e de diferenças, sobretudo, entre o projeto cons

trutivo muriliano e o concretismo. Em ambos, o poema é um jogo e

a estratégia par/nomásia, enquanto figura da vanguarda, está pr£

sente. 0 que equivale a pensar num sentido à deriva. Retornando

a 1951, Murilo escreve: "Entre o ímpeto de construção e destrui­

ção a natureza balança. De um lado, o princípio anárquico de de­

sarticulação de elementos, de outro as volições de ordem calma

e beleza (a perfeição do número, a grandeza proporcional da abs-58

tração, o gozo arquitetônico da simetria)" . Com efeito, há na

base de seu construtivismo — singularizando-o — a presença de

uma linguagem do incoé^iciente junto a um racionalismo concre­

to, distante, portanto, do mecanismo ortodoxo. Isto constitui u-

ma negatividade em relação ao funcionalismo concretista. Murilo

Mendes coloca-se do lado de fora: além da informação visual e do

exercício estético insiste no olhar sobre o ato mesmo da viagem

pela linguagem. A leitura de seus textos, por isso mesmo, nunca

será ingênua, mas contaminada e interventora.

Se no projeto construtivo dos anos 60 há a premissa da

participação da arte na realização do novo ambiente, isto é, a ar_

te produzindo o social, parece-nos que em Murilo Mendes há menos

56

125

esse messianismo do que um projeto de arte que redimensiona o pas

sado através de um registro descontínuo, transcendendo os dados

do imediato. 0 emergente é produzido em meio à crise do sujeito

cindido: sua arte, antes que cooptada, é problematizadora do pro­

cesso social. Instalado na crise da linguagem, Murilo resite a

uma estabilização lúdica, ultrapassando o construtivismo engajado

e comprometido (enquanto vanguarda) com a técnica.

Curioso observar que Murilo aproxima-se do concretismo

no que ambos não são: debatem-se frente à poética convencional sL

logístico-discursiva; frente ao psicologismo e subjetivismo conte

udístico; frente ao intuicionismo. Contudo, se a Arte Concreta

sintoniza a contemporaneidade, no sentido , normalmente, associa­

do ao desenvolvimento tecnológico, Murilo é mais saudosista, na

medida que cultural e aberto às vertentes heterodoxas da moderni­

dade. Talvez Murilo tenha-se instalado nas rachaduras do concreto,

para usar uma expressão de Silviano Santiago. Após os anos JK,

anos de otimismo construtor fundado na ética do fazer — montagem,

controle, síntese,seriação — , houve uma interiorização da negati-

vidade, um desencanto. Contudo, o concretismo permaneceu na sua

busca do máximo no mínimo, no nominalismo; à espera do não esperjj

do (o desesperado); a não expectividade.

Murilo Mendes engendra, a seu modo, um poema pós-utópico.V'/',

Résite frente ao retorno à literatura miyíetica dos anos da repres^

são. Se a vanguarda concreta, por outro lado, insistia em ser

vanguarda, pelo manifesto, pela militância, Murilo já não podia

iludir-se com a utopia construtivista. Decreta o juízo final nos

lindes de sua palavra. Talvez fosse possível pensar que a mídia,

com o avanço da sociedade industrial, digeriu o concretismo via

tropicalismo, embora seus representantes, evidentemente, não. Sig­

nificam hoje, quem sabe, uma das vertentes mais produtivas da cu L

126

tura nacional. Contudo, em relação ao movimento em si é fácil ob­

servar que a pureza estética se institucionalizou perdendo em fun

ção crítica. Da provocação ao conhecimento público. Integrou-se

aos meios de comunicação de massa. Murilo, por sua vez, parece-

nos que foi menos integrado do que apocalíptico. Em jogo: a mode£

nidade. Talvez o viés pós-moderno tenha sentido por aí: nem nega­

ção, nem nostalgia. 0 passado como experiência desfrutada no pre­

sente, como procedimento de citação recorrente.

Talvez Murilo Mendes seja pós naquilo que sempre foi pecu

liar: o desencanto com as vanguardas como morte das revoluções.

Talvez sua religiosidade funcione como pós frente ao concretismo,

último reduto da racionalidade. Talvez seja o desejo de ser eter­

no. Murilo instala-se numa crítica da suspeita. A crítica como

crise, desconfiada. Sua poesia — especialmente a última — é, por

isso, substantiva e substancial. Retoma a mesma idéia que concluiu59

em Ismael Nery: "um homem voltado para o futuro" . Uma poesia

que diminui o papel do letrado e aponta para o visual como literjj

tura do futuro. Para isso, mais do que nunca, reafirma uma tradi­

ção clássica, no sentido de alimentar a sua modernidade, em nada

obscurecendo a idéia de modernidade.

Difícil concluir. Concebido como um texto que não foi pe£

dido, Murilo Mendes não morreu. 0 eco é forte e se mantém mais

vivo. 0 poeta é fundamental por essa singular dissidência moder­

nista, por sua modernidade insubmissa ao conceito de original,

tal como acabamos de discutir. Talvez seja preciso relê-lo. Rees­

crito pelos seus leitores, Murilo Mendes é contemporâneo de si

mesmo, um texto presente, vale dizer, ativo em sua própria devorja

ção.

127

C A P Í T U L O 3 - n o t a s

1) FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica moderna. Trad, de Marisa M. Curioni, São Paulo, Duas Cidades, 1978, pág. 35.

2) BARTHES, Roland. "Guerra de Linguagens", in O Rumor da Lín­gua. Trad. Mário Laranjeira. Brasiliense, 1988, pág. 126.

3) IDEM. "Por que gosto de Benveniste". op. cit., pág. 179.

4) MENDES, Murilo. "Texto de Consulta". in Convergência. São Paulo, Duas Cidades, 1970, pág. 206.

5) "Poema Nu", in Metamorfoses, in Poesias (1925-1955). Rio deJaneiro, José Olympio, 1959, pág. 255.

6 ) CAMPOS, Augusto. "Mallarmé: o poeta em greve", in Mallarmé. São Paulo, Perspectiva, 1974, pág. 26.

7) IDEM. "Poesia, estrutura", op. cit., pág. 177. Estrutura é de finida aqui como um processo "onde o todo é mais do que a so­ma das partes, ou de que o todo é algo qualitativamente di­verso de cada componente, jamais podendo ser compreendido co­mo fenômeno aditivo", mas dinamizado por um processo de asso­ciação de imagens.

8) VALÉRY, Paul. "Le Coup de Dés". in Variedad I. Trad. Aurora Bernárdez y Jorge Zalamea. Buenos Aires, Losada, 1956, pág. 143. Tentamos aqui uma tradução.

9) IDEM,•ibidem.

10) "Formidável", in C o n v e r g ê n c i a , op. cit., pág. 174.

11) CAMPOS, ^Haroldo. "Lance de olhos sobre um lance de dados" , in Ma l l a r mé , op. cit., pág. 177.

12) "Grafito para Hokusai", in Convergência, op. cit., pág. 32.

13) XIRAU, Ramón. "Palavra e Silêncio", in Ensaios Críticos e Fi­losóficos. São Paulo, Perspectiva, 1970, pág. 174.

14) "Texto Branco", in A Invenção do Finito, in Transistor. op. cit., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, pág. 371.

15) FONTANA, Lúcio. "Manifesto Branco", in Fontana-El espacio co­mo exploracidn. Madrid, Ministério de Cultura, Direccion Gene ral de Bellas Artes, Archivos y Biblioteca, 1982. Reproduzido em BELLUZZO, Ana Maria Moraes (org.). Modernidade: Vanguar - das Artísticas na América Latina. São Paulo , Memorial da Améri^ ca Latina/UNESP, 1990.

16) CAMPOS, Haroldo. "Murilo e o Mundo Substantivo", in Metalin- guagem, São Paulo, Cultrix, 1967.

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"Texto de Consulta" in Convergência, op. cit., pág. 205.

Entrevista concedida à Folha de São Paulo, 7 ago. 1990, pág. E-2.

VALÉRY, Paul . Variedad II. Trad. Aurora Bernárdez e Jorge Zalamea. Buenos Aires, Losada, 1956, pág. 184. Tentamos aqui uma tradução.

IDEM, ibidem.

"Natal", in Tempo e Eternidade, in Poesias (1925-1955). op. cit., pág.119.

"Metamorfoses (11)". in Sintaxe, Convergência. op. cit., pág. 199.

"Canção de Termine Imerese". in Siciliana, in Poesias (1925- 1955). op. cit., pág 476.

"PALAVRAS INVENTADAS (EM FORMA DE TANDEM)", in Sintaxe, Con­vergência, op. cit., 190.

"Aforisma 329". in 0 Discípulo de Emaús. Rio de Janeiro, A- gir, 1946, pág. 63.

"Elegia de Taormina", in Siciliana, in Poesias (1925-1955) .op. cit. , pág. 477.

"Metamorfoses (1)". in Sintaxe, Convergência, op. cit. pág. 170.

Idem, ibidem.

"Grafito numa Cadeira" ibidem, pág. 9.

BARBOSA, João Alexandre. As Ilusões da Modernidade. São Paulo, Perspectiva, 1986, pág. 97.

Cf. VALÉRY, Paul. Variedad I. op. cit., pág. 15.

IDEM. Variedad II. op. cit., pág. 188.

"Texto de Consulta", in Sintaxe, Convergência, op. cit., pág.206 .

BARTHES, Roland. "Da Obra ao Texto", in 0 Rumor da Língua, op. cit., pp. 71-78.

"Texto de Consulta", in Sintaxe, Convergência, op. cit., pág. 206.

Idem, ibidem.

Idem, ibidem.

"Recordação de Ismael Nery VIII", in "Letras e Artes", supl£ mento de A Manhã, Rio de Janeiro, 8 ago. 1948, pág. 5.

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BARTHES, Roland. "Da Obra ao Texto". in 0 Rumor da Lingua, op. cit. , pág. 76.

"Murilograma a Baudelaire", in Convergência, op. cit., pág. 72.

"Murilograma a Mallarmé", op. cit., pág. 76.

"Murilograma a Manuel Bandeira", op. cit., página 88.

"Texto de Informação", op. cit., pág. 129.

"Murilograma a João Cabral de Mello Neto". op. cit., pág. 102.

"Texto de Informação". Op. cit., pág. 130.

"Estudos da Letra V". op. cit., pág. 153.

"0 erre", op. cit., pág. 159.

"Murilograma a Heráclito de Éfeso". op. cit., pág. 122.

"Grafito segundo Kafka", op. cit., pág. 35.

"Grafito para Anton Pevsner", op. cit., pág. 49.

VALÉRY, Paul. Variedad II op. cit., pág. 192.

"Texto de Consulta", in Sintaxe, Convergência, pág. 205.

"0 Céu", in "Letras e Artes", op. cit., 14 mar. 1948, pp. 6-7.

"Recordação de Ismael Nery V", ibidem, 11 jul. 1948, pág. 5.

"Recordação de Ismael Nery XIÍ", ibidem, 12. set. 1948, pág. 5.

"Recordação de Ismael Nery IX", ibidem, 15 ago. 1948,pág. 5.

"Recordação de Ismael Nery V", ibidem, 11 jul. 1948, pág. 5.

"Apontamentos", ibidem, 13 maio 1951, pp. 6-7.

"Recordação de Ismael Nery XVII", ibidem, 12 dez. 1948, pág. 7.

E B I B I L I f l D G H R Ä f t F I / »

131

a) Obra publicada no Brasil:

Poemas. Juiz de Fora, Dias Cardoso, 1930.

História do Brasil. Rio, Ariel, 1932.

Tempo e Eternidade (com Jorge de Lima). Porto Alegre, Globo, 1935.

A Poesia em Pânico. Rio Coop. Cult. Guanabara, 1938.

0 Visionário. Rio, José Olympio, 1941.

As Metamorfoses. Rio, Ocidente, 1944.

0 Discípulo de Emaús. Rio, Agir, 1944.

Mundo Enigma. Porto Alegre, Globo, (inc. Os Quatro Elementos).

Poesia Liberdade. Rio, Agir, 1947

Contemplação de Ouro Preto. Rio, MEC, 1954.

Poesias. (1925-1955). José Olympio, Rio, 1959 (inc. Parábolas; Bum

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Convergência (inc. também Sintaxe). São Paulo, Duas Cidades, 1970.

Retratos Relâmpago. 1§ Série. Roma, 1965-66, São Paulo, Conselho

Estadual de Cultura, 1970.

Poliedro. Rio, José Olympio, 1972.

Murilo Mendes — Antologia Poética (Org. por João Cabral de Mello

Neto). Rio, Fontana/MEC, 1976.

Transístor. Antologia de Prosa (1931-1974). Rio, Nova Fronteira,

1980.

O Visionário (reed.). São Paulo, Roswitha Kempf, 1984.

Tempo Lisboa, Morais, 1964.

b) Obra publicada na França:

Office Humain. Paris. Coll. Autour du Monde. Seghers. Poèmes tra­

duits par Dominique Braga et Maria da Saudade Cortesão, 1957.

132

Janela do Caos. Paris, 1949. Imprimerie Union. Avec Six Lithogra­

phies de Francis Picabia.

c) Obra publicada na Itália:

Siciliana. Palermo, Sciacia, 1959. Edizione bilingue. Traduzione

di A. A. Chicchio. Prefazione di Giuseppe Ungaretti.

Finestra del Caos. Milão, Scheiwiller, 1961. Edizione bilingue.

Traduzione di Giuseppe Ungaretti.

Poesie. Milão, Nuova Accademia. Antologia italiana a c u r a di A.

A. Chicchio, Ruggero Jacobbi, Luciana Stegagno Picchio, Giuse-

pe Ungaretti.

Le Metamorfosi. Milão, Lerici, 1964. Ed. bilingue a cura di Rug­

gero Jaccobi (Coll. "Poeti Europei").

Poesia Liberta. Milão, Accademia Sansoni Editori, 1971. Ed. Bilin

gue a cura di Ruggero Jacobbi.

Italianissima (7. Murilogrammi). Milão, Scheiwiller, 1965.

Marrakech. 6 acqueforti di G. I. Giovanlo, all'lnsegna del Pesce

d'Oro. Milão (su testo poético de Murilo Mendes), 1974.

Mondo Enigma. Turim. Einaudi, 1976. Trad. it. di C. V. Cattaneo,

pref. di Ruggero Jacobbi.

Ipotese. Milão, Guanda, 1977. Introd. e note di Luciana Stegagno

Picchio.

d) Obra publicada na Espanha:

"Siete Poemas Inéditos". Madri. Revista de Cultura Brasilena, 1961.

Trad, e notas de Dámaso Alonso e Angel Crespo.

"Poemas de Murilo Mendes". Madri. Revista de Cultura Brasilena,

1962. Trad, e notas de Dámaso Alonso.

"Poemas Inéditos de Murilo Mendes". Madri. Revista de Cultura Bra.

silena, 1965. Trad, e notas de Dámaso Alonso e Angel Crespo.

133

e) Livros Inéditos:

Carta Geográfica (1965-1967), Espaço Espanhol — prosa sobre Es­

panha (1966-1969), Janelas Verdes — prosa sobre Portugal; Re

tratos-Relâmpago, 2§ série (1973-1974); Conversa Portátil —

miscelânia em prosa e verso (1931-1974); Texto sem Rumo (1964-

1966); A Invenção do Finito (1960-1970); L'0cchi de Poeta —

textos sobre artistas italianos e outros contemporâneos; Papi-

ers — textos em prosa e verso, em francês.

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146

A D V E R T Ê N C I A

Este apêndice contém a transcrição dos textos críticos,

crônicas e relatos de Murilo Mendes, publicados no Suplemento D£

minical "Letras e Artes" , do jornal A Manhã, do Rio de Janeiro,

entre 1946 e 1951. 0 referido material foi colhido da coleção paj:

ticular de Jorge Lacerda, cedida pela família por empréstimo ao

Arquivo Público Municipal de Florianópolis. Adotamos como norma

a atualização da ortografia e da acentuação gráfica, bem como a

correção de alguns erros notadamente da tipografia do jornal, pr£

cária, como constata, várias vezes, o próprio Murilo em notas.

Quanto à virgulação, mantivemos conforme o original, visto suspei^

tarmos nela um uso livre do autor.

147

LETRAS E ARTES, domingo, 12 maio. 1946, página 7.

M U S I-.C A

A MÚSICA E OS INTELECTUAIS

Infelizmente, a prática tem mo feito convencer da falsidade da sentença que pretende que todo o mundo goste da música. Desconfio muito das pessoas que "adoram" a música. Adorar a música é o modo mais fácil de se desembaraçar dela, rendendo-lhe com aquelas palavras, por uma espécie de preconceito ou respeito humano, o mais vago e inútil de todos os cultos. De fato, gostar de música é uma obrigação a que nenhuma pessoa de "bem" poderia se furtar. Mas parece que, na realidade, um grande número de pessoas não topam mesmo essa coisa de música.

0 dono de uma das mais famosas casas de música desta cidade — não apenas um comerciante mas um amador de gosto, um conhecedor de alta classe — disse-me umà vez que entre certos profissionais da música existia um acentuado desinteresse pela dita. A música é para eles, um posto de sacrifício, é apenas o instrumento de seu ganha-pão, e fora das horas obrigatórias de trabalho nem querem ouvir falar no assunto musical.

Existe também uma variedade muito curiosa da fauna: os amadores que só topam um determinado compositor. Confiou-me ainda aquele referido amigo que entre os clientes de sua casa figura um velho professor universitário que só admite a obra de Wagner. Para ele,não há salvação fora de "Lohengrin", de "Tanosbaüser", de "Tristão e Isolda" e do "Crepuscúlo dos Deuses". Quando o dono da casa,homem pitoresco e malicioso, aproxima-se dele com um disco de Haydn ou de Debussy, sugerindo-lhe delícias inefáveis produzidas pelo gênio daqueles mestres, o velho professor consulta o relógio, coça a cabeça, e, encabulado, levanta-se: "Adeus meu caro, tenho um encontro agorinha mesmo..."

Evidentemente as preferências são naturais, e, direi mesmo, necessárias. Meus amigos conhecem minhas decididas e marcadas preferências por Bach e Mozart, aos quais vêem se juntar, com pequenas diferenças de oscilação, Beethoven e Haendel, formando o grupo maravilhoso do que eu gosto de chamar "os quatro grandes da música". 0 que nem de longe me impede de cair muitas vezes em êxtase diante de uma página de Scarlat, de Palestiina, de Chopin, de Schumann, de Stravinsky, de Debussy, de Villa-Lobos, dos já citados Haydn e Debussy — a todos acendo vela, nos meus altares — ou até mesmo de Listz, Berlioz ou Ravel. 0 que não é possível é gostar, no mesmo plano, de Bach, Mozart, Tschaikovsky, Grieg, Francisco Rodrigues e Ricardo (esses dois últimos, autores de tangos argentinos).

148

É com tristeza que observo no meio intelectual deste país um interesse, muito pequeno pela música. Diante Andrade Muricy e Renato Almeida — crítico de carreira — , os dois Bandeira (Manuel e Antônio Rangel), Guilherme de Figueiredo, Antônio Bento, e mais três ou quatro — é raro se encontrar nos concertos, ou reunidos em palestras sobre temas musicais, os escritores brasileiros. Tenho mesmo notado em alguns deles — e não dos menos importantes — um secreto desdém pela música, que julgam uma arte não intelectual. A arte que inspirou tratados, ensaios ou artigos da maior significação e importância, a Platão, a Santo Agostinho, a Leibniz, a Nietzsche, a Jean-Jacques Rousseau, a Baudelaire, a Pierre Jean Jouve, a André Gilde, a arte na qual Schopenhauer via uma representação direta da vontade, é tida por tais escritores como uma atividade secundária da inteligência humana; admitem-na, não como uma necessidade diária e fundamental, no nosso espírito, mas como uma espécie de sobremesa aos domingos e feriados — coisas para retratar nossos parques populares...

Se se fala em Beethoven, por exemplo, é claro que qualquer deles mencionará com entusiasmo a quinta ou a nona; Beethoven, para eles, é a Sinfonia, mas quanto aos trios, aos quartetos, as últimas sonatas para piano... silêncio glacial.

Quanto a Bach, conheceram-no através da versão do Sr. Stokovski. De Mozart, a malfadada "Júpiter"! Eis o que lhes é servido, do universo mozarteano...

Meus amigos, se torcem como parece, por um mundo melhor — saiam dessa indiferença, cultivem a música, amem a música. (0 cronista, para consolar-se do pouco amor em que a música é tida pela maioria dos escritores brasileiros, dirige-se à eletrola e põe os discos do "Concerto Grosso ne 11,. op. 6", de Haendel, executado pela The Boyd Nell String Orchestra).

149LETRAS E ARTES, domingo, 19 maio 1946, página 7.

MÚSICA DE CÂMERA

A aceitação sistemática de certos esquemas críticos conduz muitas vezes a um ponto fixo que contradiz a verdade estética, em favor de determinados preconceitos de ordem histórica.

Lemos, por exemplo, em muitos manuais de música, que a música de câmera desenvolveu-se nos fins do século XVIII devido à influência das idéias políticas trazidas pela Revolução Francesa (esquecem-se, aliás, de falar na Revolução Inglesa). Os temas da autonomia do indivíduo, da liberdade de expressão, das idéias políticas, etc., criaram no espírito do artista tendências para a elaboração de formas musicais que afirmariam a consciência pessoal do homem e sua independência em face do Estado. Atribuem-se as diferenças entre Mozart e Beethoven, do fato de um ter se desenvolvido antes, e o outro depois da Revolução Francesa: esquecendo-se de que Mozart é, apesar de seu triunfo inigualável na ópera, um músico intimista não menos significativo de que Beethoven. As diferenças são menos de ordem histórica, do que determinadas por profundos antagonismos de formação e temperamento dos dois grandes músicos. Do ponto de vista puramente histórico, de resto, os mais categorizados musicólogos da atualidade não hesitam em situar as raízes de Mozart e de Beethoven em Carlos Felipe, Emanuel Bach, no tocante à apropriação e desenvolvimento da forma da sonata moderna, que havia de gerar — trabalhada pelo gênio ordenador de Haydn — a sinfonia de nossa época.

Minha desconfiança do esquema, repito, provém do receio de aceitar a unilateralidade e cristalização das fórmulas. No que diz respeito à interpretação das grandes obras de arte, ou da figura pessoal dos artistas marcantes, há que considerar a multiplicidade de fatores de toda espécie que entram na formação do conjunto.

É muito instrutivo notar que a nossa época, por excelência coletivista, observa, não digo uma volta, mas uma continuação da tendência ao cultivo da música de câmera. Quase toda a obra de Debussy é camerística. Uma boa parte da de Stravinski, Prokofieff, Manuel de Falia, de Bela Bartok, de Hindemith.

Os compositores mais representativos da Inglaterra moderna — um Arthur Bliss, um Vaughan Williams — voltam-se de novo para os pequenos conjuntos escrevendo quintetos para clarinete ou sonata para viola. 0 músico típico da Rússia coletivista Shostakovich, nos lazeres que lhe dá seu ofício de compositor para filmes cinematográficos, não se esquece da música de câmera: aqui ou ali, no catálogo de suas obras, notamos um trio, um suíte para piano, uma sonata para piano e violoncelo, um quinteto.

150

E — o que é mais extraordinário de tudo — fundaram-se no Rio de Janeiro duas sociedades para execução de música de câmera.

Na verdade, irredutível, não existe antagonismo entre a música de câmera e a sinfônica, assim como não existe antagonismo entre a pintura mural e a de cavalete. Existe concorrência apenas. 0 pintor que melhor exprimiu o gênio da nossa época não é um muralista: Picasso é por excelência um pintor de cavalete. Os pintores mexicanos (os grandes), são muito interessantes, mas não souberam evitar o escolho do cartaz — o que não aconteceu a Picasso.

Já se tem dito e repetido que o quarteto constitui a essência da música. De fato, pela compreensão dos meios técnicos, pela sobriedade das formas (que Beethoven, com seu gênio impetuoso, de certa forma abalou), com sua organicidade e qualidades próprias, o quarteto torna-se para o músico uma experiência semelhante à do soneto para o poeta. 0 quarteto clássico ultrapassou o conceito de experiência; em Haydn e Mozart tornou-se uma constante (uma representação de vida pessoal e de grandeza técnica, de sabedoria)que eles volta e meia retomavam.

0 quarteto beethoveneano,se bem que oficialmente como todo clássico, leva uma explosão romântica, e em muitas passagens supera os quadros intimistas, conduzindo à expressão sinfônica (não é à toa que se notam, nos últimos quartetos, vestígios de temas da "Nona").

0 único quarteto de Debussy, embora compusto em época muito distante de sua morte (aos 30 anos), constituiu seu testamento, o ponto mais sublime de sua aliança conosco, seus admiradores; o que ele deixou sobre sua fascinante personalidade. É um marco decisivo da história da música.

Infelizmente não pude ouvir o quarteto n^ 7 de Villa-Lobos: espero que seja de novo executado em breve. Anuncia-se também um quarteto do compositor Luiz Cosme, autor bastante retraído do público.

No Brasil as coisas chegam tarde, mas acabam chegando. Parabéns aos amadores: já se pode ouvir aqui, diretamente, a música de câmera — grande consolo para esta vida chata, convite à meditação, supremo prazer estético e intelectual. Sim, intelectual, repito, para os numerosos são tomés deste país.

151LETRftS E ARTES, domingo, 26 maio 1946, página 11

A DIGNIDADE DA MÚSICA

Sempre me impressionou o fato do Redentor não ter escrito, nem pintado,nem esculpido, mas de ter cantado. 0 Cristo, narra o Evangelho, cantou no próprio dia da sua prisão. Com isto, Ele conferiu à música uma dignidade especial; e a Igreja, recolhendo a lição, sempre deu a maior importância ao cultivo da música, que, como se sabe, desenvolveu-se no Ocidente à sua sombra.

Infelizmente (inclusive dentro mesmo da Igreja) nem todos compreendem e respeitam essa principal dignidade da música trabalhando muitos para seu descrédito e deformação.

Os vociferadores jamais clamarão suficientemente contra os golpes de que a divina arte (divina arte, escrevo com frieza), tem sido vítima neste século, principalmente por parte das companhias que exploram o rádio.

Deus me livre de falar mal de uma invenção maravilhosa que põe ao nosso alcance o conhecimento da obra dos grandes mestres da música, de maneira privilegiada, como não a puderam gozar ou ouvintes de outras épocas. Qualquer amador de hoje, por exemplo, poderá conhecer muito melhor as obras de Haendel, Bach, Mozart, etc., do que os melômanos do século XIX. 0 volume da produção é colossal e a facilidade de transmissão instantânea. Estou certo de que um homem como como Stendhal que gostava tanto de Mozart, a ponto de incluir o nome dele n^ seu auto-epitáfio, só conheceu do seu ídolo, as óperas mais importantes, e algumas sinfonias e conceitos. De resto, tanto na "Vie de Rossini", como até mesmo em "La Chartreux de Parme", ele se queixa de que as sinfonias de Mozart são estropiadas na Itália. Não teve portanto, a felicidade, que nós temos, aqui, neste remoto e bárbaro Brasil, de ouvi-las magistralmente interpretadas por um Bruno Walter ou por um Sir Thomas Beecham, ou por um Fritz Busch. Felicidade que o rádio proporciona a muitos amadores de música que, não podendo comprar discos,dela seriam privados, se não houvesse o rádio.

0 que é preciso vociferar sempre é contra a organização descuidada dos programas, contra o excesso de anúncios, contra a funesta manta de se enxertar anúncios entre um e outro movimento de uma obra musical, e contra essa verdadeira praga que é a rádio-novela. A rádio-novela é, com efeito, um magnífico instrumento da incultura, um incomparável método de cretinização do nosso pobre povo. Que o mesmo aparelho que transmite cantatas de Bach, concertos de Mozart, baladas de Chopin, prelúdios de Debussy, blues de Duke Ellington, possa também transmitir esses monumentos da imbecilidade humana que são as rádio-novelas, eis aí uma

152

coisa que às vezes nos dá arrepios. A rádio-novela deforma, não só a mentalidade das chamadas classes inferiores da sociedade, como também a de uma sensível porção da classe média, afastando-a da boa música e do teatro, que, entre, nós, se não é excelente, é pelo menos muito superior à rádio-novela.

Acho que os escritores devem apelar incessantemente para os homens de boa vontade e cultura que estão à testa da administração pública no sentido de um saneamento dos programas de rádio e eliminação da monstruosa máquina de deformação cultural do nosso povo, que á a rádio-novela.

Mas a dignidade da música é também atingida de outras maneiras, mais sutis e subreptícias. Há dias, por exemplo,li, com grande espanto na seção de música de um dos mais importantes matutinos desta infeliz cidade, o elogio da "condensação da música", abominável e sinistra invenção que — será preciso acrescentar — nos vêm da América do Norte.Com efeito, as seleções não se contentam mais com o domínio da literatura: passaram agora para o da música. É provável que essa coisa pegue no Brasil pois temos o hábito de imitar somente o que os ianquis têm de pior. Com este novo método, uma sinfonia, um concerto, um quarteto, cuja execução dura normalmente, digamos, meia hora, serão comprimidos, condensados, reduzidos a pílulas, podendo durar a uns oito ou nove minutos. "É uma maravilha". Pasmem, senhores e senhoras! A "Nona Sinfonia de Beethoven" na versão original, é uma estopada; gasta uma hora e vinte minutos de execuçã mas condensada pelo novo sistema, dura apenas dezessete minutos! 0 cavalheiro faz a barba, veste-se, e no final da operação a sinfonia também acaba! É prático, cômodo, confortável. Reserve hoje mesmo a "sua" condensação.

0 artigo que me refiro, elogiava a compreensão de duas das mais famosas sonatas de Beethoven — a dita "Ao Luar" e a "Patética", reduzidas a um só movimento, e arranjadas para trio de piano, violino e violoncelo — . Não ouvi e não gostei. Detesto essas profanações.

Houve é poca em que as transcrições e arranjos tiveram sua razão de ser. Sabemos que Bach trabalhou dezoito concertos de Vivaldi; que Mozart transcreveu para quarteto de cordas várias fugas para cravo de Bach As condições históricas eram diferentes.a música ainda não tinha as imensas possibilidades de divulgação que tem hoje. Bach e Vivaldi eram espíritos afins profundamente religiosos, e mestres do contraponto. E Mozart, ao fazer aquelas transcrições, teve em mira chamar a atenção para a obra do seu grande predecessor, obra que se achava então sepultada, tanto que ele, Mozart, só veio a conhecê-la já aos vinte e seis anos, quando passou por Leipzig. Também Busoni e Liszt adaptaram ao piano diversas peças de Bach para órgão e cravo — numa época em que tinham desaparecido os bons cravistas e organistas — o que não se dá mais hoje.

153

Transcrições e arranjos podem ser admitidos em princípio, mas só feitos com arte e sabedoria. Condenamos, por exemplo, as transcrições do Sr. Stokosvski, principalmente este assassinato que é a sua versão para orquestras da "Tocata e Fuga em Ré menor". E quanto a condensações, que Deus nos livre delas. Chega de infelicidade! A não ser que reduzam a pílulas musicais de um ou dois minutos, os abacaxis de Dvorak, Sineatana, Sibelius & Cia . . .

154LETRAS E ARTES, domingo, 9 jun. 1946, página 11

M U S I C

B A C H

Há vários anos um conhecido professor e musicólogo norte- americano de passagem pelo Rio, surpreendeu-me com a declaração de que a música de Bach só pode ser compreendida pelos protestantes. Só mais tarde pude decifrar o enigma contido para mim em semelhante afirmativa.

É que a obra de Bach tem sido alvo dos mais diversos conceitos de interpretação. Conforme a sensibilidade dos povos, ou a de certos grupos que representam determinadas tendências, ou ainda a de certos indivíduos que se colocam a priori num único ângulo de visão (ou melhor, de audição) a obra de Bach, muda de aspecto e de significado.Alguns críticos, conservando-se num plano puramente histórico, chegam a restringir a importância de Bach no panorama geral do desenvolvimento da música; por exemplo, o nosso caro Mário de Andrade pôde escrever que "Bach viria saudosista e anacronicamente apontar para trás o passado". Ora se ficarmos firmes dentro deste critério de exclusivo aperfeiçoamento técnico teremos que restringir ainda muito mais à importância de Beethoven, Chopin, Schumann e tantos outros, que já encontraram o terreno mais do que preparado, apesar das "inovações" que fizeram...

Outros tendem a considerar Bach unicamente como músico religioso, pondo sua arte a serviço da comunidade protestante (ou, algumas vezes, a serviço da Igreja Católica, como no caso das Missas para a corte de Dresden). Esqueceu-se de que naquela época a vida profana, apesar da decadência religiosa, ainda estava um tanto impregnada do conceito de sacralidade. Bach com todo seu profundo misticismo, foi um homem enraizado na vida temporal, pai de vinte filhos, sempre à turras com o Reitor da Escola de Leipzig e com outras renitentes autoridades. Mas, insisto, o conceito de vida não era ainda separado do de religião. Aquela gente, de resto, é que estava certa; religião é vida, e não negação de vida.

Há uma corrente que encara a obra do autor das "Paixões" dentro de um critério de puro formalismo, como se fugisse à interpretação, como se a fantasia estivesse ausente dela. Montados em tal opinião, conferem a Bach o título de clássico 100 por cento, e mais do isto, rígido e escolástico 100 por cento.

Outros, pelo contrário, aceitam-no somente como poeta romântico, procurando extrair dos Prelúdios, das Fugas e dos Corais todo o subjetivismo que possam conter. E exultam diante da "Fantasia Cromática e Fuga", mãe de toda a música romântica, peça onde talvez já se encontre o germe de Liszt... "hélas!".

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Sempre achei que nós, aqui no Brasil, estamos em ótima posição histórica, geográfica e temperamental para julgar a arte, os artistas, a cultura, a vida em geral, no plano da universalidade. Este método da universalidade consiste antes de tudo, em que o indivíduo deve procurar manter-se na vida como se fosse o centro dela, para que possa ter sempre a perfeita relação das idéias e dos fatos. Tal método conduz o homem a uma filtragem dos elementos construtivos, cambatendo a desproporção e a unilateralidade do temperamento.

Ora, a única tradição verdadeiramente grande que, apesar de tudo, temos no Brasil, é a católica, isto é, uma tradição de universalidade. Os sinos das igrejas não testemunham apenas o passado, chamam para o futuro, chamam-nos para Aquele que se definiu a própria Vida. E, repito,é à luz dessa universalidade que devemos procurar comentar e julgar, comparando-as fora de um critério apenas histórico — embora admitindo as coordenadas trazidas pelo tempo, — as obras que chegam ao nosso conhecimento. À luz dessa universalidade, Bach aparece-nos como o supremo educador pela música, nos tempos modernos. É clássico, romântico e atual. Une o passado,o presente e o futuro. Se "historicamente", examinando com frieza sua obra, verificamos o conflito entre o contraponto e a melodia, entre o estilo instrumental e o vocal se podemos afirmar, sem medo de engano, que seu maior valor consiste em ter fixado o "temperamento igual", não insistamos nesses pontos que escapam, afinal,à nossa competência: não somos técnicos nem cientistas. Simples poetas...

Bach, repetimos, é por excelência o Educador, isto é, o homem integral, o homem que combate a desproporção e conquista a unidade, tema fundamental da cultura e base da própria vida. É o educador, não só de alunos de música, como dos adultos, dos grupos humanos de toda a espécie, que se acham fora dos conservatórios. É o músico que congrega os homens das mais diversas tendências. Desperta a religiosidade escondida no mais íntimo do ateu (?), desenvolve e aperfeiçoa a religiosidade do crente. É severo e infantil, é rígido e fantasista. É íntimo e coletivista. Luterano e universal. É mesmo o modelo do cristão, do homem total que venceu as forças exteriores pela contemplação dos mistérios do Salvador. É um resultado da encarnação vivida, continuada, repetida e desenvolvida, musicalmente, até ao máximo, no espírito, no coração, no ser todo de um europeu existindo em pleno século XVIII. Sua pedagogia (convencemo-nos mais uma vez disto, há poucos dias, por ocasião do recital do pianista Borovsky) é fruto de um espírito não só muito refinado, como absolutamente simples. Bach é sem dúvida o músico que melhor corresponde às necessidades do atormentado homem do nosso tempo. Num mundo que perdeu a disciplina e levou ao apogeu o cultivo dos "estados de alma" ele é o ordenador, o construtor por excelência. É absurdo negar-lhe sentimento; o que ele — graças

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a Deus! — não tem, é sentimentalismo. Nunca poderia dizer o quanto lhe devo. Terei testemunhado do meu fervor se afirmar que êle me é tão necessário como Mozart — se levarmos em conta sua carreira fulminante e seu incomparável dom de improvisação — é possivelmente mais genial; mas Bach é máis importante. Que o universo inteiro incline um dia os ouvidos à sua música, já que Deus o criou para a educação de todos...

Esta crônica foi inspirada pela audição das "Trinta variações Goldberg" de J.S. Bach, para cravo, na interpretação de Vanda Landocka.

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LETRAS E ARTES, domingo, 16 jun. 1946, página 11

FORMAÇAO DE DISCOTECA

I

Já que o disco se tornou a mais prática e rápida forma de divulgação da música, principalmente numa cidade como o Rio de Janeiro, onde os bons concertos são raros, a formação de uma discoteca não é assunto que se possa desdenhar numa seção de jornal dedicada à música.

Não me refiro a discotecas de instituições, no momento só quero mencionar as possibilidades de discotecas para amadores.

É claro que não se pode, nem se deve, obedecer a um critério fixo. Aqui só poderão falar as preferências pessoais, se bem que se pretenda obter uma síntese de bom gosto e de interesse geral.

Tomemos o caso de um amador que não disponha de grandes recursos financeiros, mas que deseja formar uma discoteca pequena e bem selecionada. Admitamos que ele cultive a música clássica, romântica e moderna. Seria necessário uma orientação, principalmente se reside no interior e não tem muitas facilidades de informação com os entendidos.

Se ele dispõe de uma uma margem financeira para adquirir, digamos, trezentos discos, precisa antes pensar e seguir um certo plano, a fim de que sua discoteca se torne um instrumento de cultura, e não um simples passatempo para auxiliar a digestão.

Como é natural, a preocupação com os clássicos impõe-se logo de saída. Nos últimos anos antes da guerra intensificou-se na Europa e nos Estados Unidos a produção de discos de música. Não aludimos somente a música do século XVIII, que marca o apogeu do classicismo.Não queremos nos apegar ao conceito muito espalhado de que Bach é o "pai da música". Poderíamos dizer o mesmo de Palestrina, de Henrique Schimitz, de Victória, ou dos monges que fixaram as formas do gregoriano. Esta parte da música a que poderemos chamar, por comodidade, de "música antiga", deve figurar, necessariamente em síntese, na formação de uma discoteca, mesmo pequena. Antigos cantos religiosos, ou profanos, cantos populares, cantos de trabalhadores, de peregrinos, de remadores, estão hoje fixados em discos. Por enquanto quero me referir somente a discos que se possam encontrar no mercado, ou mandar vir do estrangeiro. Porque

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há discos da maior importância cultural, mas infelizmente esgotados.Duas coleções da "Columbia", intituladas "2.000 Anos de

Música", e a"História da Música, pelos ouvidos e pelos olhos" oferecem um panorama rápido mas de grande interesse; trata-se de discos representativos,cuidadosamente escolhidos, com ótimos conjuntos; possuindo o defeito de em geral apresentar só trechos de cada composição. Através destes discos trava-se conhecimento com a antiga música grega, a antiga música judia, o gregoriano, a polifonia, as escolas flamenga, italiana e alemã da Renascença. Na coleção "2.000 Anos de Música" é digno de nota um disco de canto de peregrinos a Santiago de Compostela (Século XII).

Do século XIV é indispensável o conhecimento da maravilhosa "Missa da Coroação", de Guillaume da Machauth; e do século XVI, a não menos maravilhosa "Missa do Papa Marcelo", de Palestrina , da qual estão gravados pelo menos os trechos mais significativos.

A iniciação ao canto gregoriano pode ser feita através dos discos gravados na Abadia de Sotesmes. Ainda a versão mais autorizada, se bem, que, na opinião dos especialistas, precise de certos expurgos. Poderão ser encontrados dois álbuns com doze discos; mas o amador que não possuir algum espírito místico, dificilmente os aceitará, pois as combinações do gregoriano são as mais simples e pobres que se pode imaginar, sendo os sons sempre iguais como duração e como intensidade.Quem pretender se divertir ou "passar o tempo" com a audição do gregoriano est|^frito, pois nele o tempo não passa. Estou certo de que alguns incautos me agradecerão o aviso. Mas os de boa vontade não se arrependerão, já que o gregoriano representa, na opinião de musicólogos categorizados, a solução mais perfeita até hoje encontrada pela música européia, solução do famoso problema da união da palavra e do som.

Quatro grandes músicos, quatro grandes criadores que nasceram antes de Bach, se impõem à nossa atenção, não podendo deixar de ser representados numa discoteca e por menor que seja:os italianos Palestrina e Monteverdi, o alemão Henrique Schütz e o espanhol Victoria.

Com relativa facilidade poderão ser encontrados discos gravando hinos religiosos e madrigais profanos de Palestrina, de Monteverdi, além de outros, são dignos de menção os discos de célebre madrigal "Lagrima d'amante al sepolcro dell'amata", composto em memória de sua amiga, a cantora Catarinuccia Martinelli — um dos mais prodigiosos contos de amor, e morte que a história da música registra. Quem não ouvir esse madrigal não é musicalmente batizado...

De Vitória e não Vittória, como parece por aí, com o nome italianizado, aconselho a audição, entre outras peças dos "Responsórios

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da Semana Santa".Quanto a Henrique Schütz, criador da ópera, fixador,

com Carissimi, da forma do oratório, e precursor das "Paixões" de João Sebastião Bach, podemos mencionar alguns discos de sua Missa Alemã, e de motetes religiosos.

Como o espaço não dá mais, prometo voltar ao assunto em outras crônicas.

LETRAS E ARTES, domingo, 23 jun160

1946, página 11.

M U S I C A

FORMAÇÃO DE DISCOTECA

II

A formação de uma discoteca levanta, conforme assinalei na crônica anterior, problemas de escolha e opção. É preciso distinguir o amador esclarecido de música do colecionador de discos. Lembro-me de ter sido convidado há alguns anos atrás, a visitar uma discoteca parti cular famosa. No fim de duas horas eu estava exausto, com raiva do colecionador, dos fabricantes de discos e quase até da música.0 homenzinho, implacável, possuidor de nada menos de 4.000 discos, fazia questão de mostrar todas as maravilhas da sua coleção, em que havia de tudo, um sortimento completo, inclusive dezenas dos mais banais tangos argentinos. A música de salão recebia as mesmas homenagens devidas a Bach, Mozart e Beethoven. Era alucinante. Quase foram necessários os socorros da Assistência.

Há certa peças musicais — e das maiores — cuja audição perde muito a meu ver, dentro de um pequeno aposento, para uma, duas ou três pessoas. "A Paixão Segundo São Mateus", de Bach, o "Messias", de Händel, a "Nona Sinfonia" de Beethoven, por exemplo. São obras de expressão coletivista e monumental, obras destinadas a produzir contágio de idéias e sentimentos elevados entre os homens; requerem a atmosfera de uma igreja, de um auditório, de um teatro. Entretanto, o amador que possui uma pequena discoteca poderá comprar duas ou três peças destacadas de cada uma, se bem que eu, pessoalmente, seja, em princípio, contra a mutilação das obras musicais. Mas, na verdade dentro da agitada vida moderna como arranjar tempo para ouvir sempre a "Paixão Segundo São Mateus" cuja execução dura três horas e meia?...

0 problema da hierarquia, de uma prioridade de valores e de preferências, coloca-se inevitavelmente diante de toda a pessoa que inicia a formação de uma discoteca com 200 ou 300 discos. 0 critério mais certo, consiste em começar pelos músicos essenciais, fundamentais: Palestrina — Bach — Händel — Mozart — Beethoven — aos quais vem se juntar, entre os modernos, Debussy.

Por exemplo: Mendelssohn, Liszt, Tchaikovski, são bons músicos, mas trazê-los para casa, e deixar de lado Bach e os outros que apontei, será um abominável "sacrilégio".

0 critério de universalidade choca-se com o de ecletismo. Confesso que posso passar perfeitamente sem Mendelssohn, Liszt,

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Tchaikovski e tantos outros; mas sem o "pão cotidiano" de.Bach ou Mozart, a vida torna-se quase irrespirável... Agora, todo o indivíduo que pretende fazer sua instrução e educação musical, terá que conhecer aqueles músicos secundários,muitos outros, mesmo inferiores. Mas isto já é outra história.

Da outra vez citamos algumas peças importantes da música clássica. Desta vez quero chamar a atenção dos amadores de boa vontade para a obra de dois músicos da época clássica inglesa: Willian Byrd e Henry Purcell. A Inglaterra, que é tão fértil em grandes poetas, não o é em grandes músicos. Mas os dois nomes citados asseguram-lhe, por si sós, um posto de honra entre os países que contribuem para a música mundial. De vez em quando, aparecem por aqui discos com trechos de missas, com "chaconnes", pavanas e "gagliardas" de Willian Byrd. Comprem, srs. amadores, comprem tudo que encontrarem! Serão transportados de novo a esse lugar de inocência que tanto amam as crianças, os santos e os poetas; a esse "evert paradis des amours enfantines, l'innocent paradis, plein de plaisirs furtifs" que Baudelaire celebrou num poema para sempre famoso, e que a música nos reconstitui melhor que nenhuma outra arte, dando-nos uma antecipação da Promessa.

Na minha opinião, uma das coisas mais belas que existem em música é "Dido e Eneas", de Purcell. Essa espécie de oratório ou ópera, como quiserem é uma das mais perfeitas "reussites" do gênero. Alto lirismo e força de expressão dramática,riqueza de conteúdo, representação da paixão amorosa, um senso exato da economia de proporções da ópera, que já anuncia Mozart — com o qual possui Purcell mais de um ponto de contato -, tudo isto faz de "Dido e Eneas" uma peça da mais alta importância, que não deve faltar na discoteca de um amador esclarecido — já que, felizmente, para nosso prazer, ela está gravada.

Ainda de Purcell poderá ser encontrada com relativa facilidade, a célebre "Golden sonata", para dois violinos e cravo.

E por falar em cravo, convém tomar nota da obra dos cravistas franceses,principalmente Conperin e Rameau. A influência destes dois grandes homens sobre músicos consideráveis está hoje definitivamente estabelecida, sobretudo a influência de Conperin sobre Bach, e a de Rameau sobre Debussy — o que não é falar pouco...

Voltarei ao assunto em crônicas posteriores.

P. S. — Na crônica do domingo passado escaparam vários erros. Além de outros, assinalo os seguintes: em vez de Schmitz, leia-se Schütz; em vez de Schütz, criador da ópera, leia-se criador da ópera alemã; em vez de Vitória, leia-se Victoria, etc.

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LETRAS E ARTES, domingo, 30 jun. 1946, página 7

FORMAÇÃO DE DISCOTECA

III

Chegará para o amador o dia em que êle terá de abordaro catálogo das obras gravadas em disco, de Bach,Händel, Mozart e Beethoven. De resto, uma discoteca contendo discos escolhidos, representativos do espírito e das tendências principais destes quatro grandes mestres da música, já será qualquer coisa de importante como instrumento de cultura.

Começando por Bach, uma dificuldade logo se impõe: sua obra-prima, o "Cravo bem temperado", não poderá ser encontrada agora na interpretação original.

0 único recurso será adquirir alguns prelúdios e algumas fugas em versão para piano, aqui e ali, até raiar o dia bendito em que a obra completa seja regravada. Aí então o amador feliz abrirá diariamente êsse álbum, que conterão não só o resultado máximo das experiências contra-pontísticas de muitos séculos mas também os mais altos motivos de contemplação e compreenderá que a música é uma chave do conhecimento do universo, como a religião ou a ciência. Seu espírito vestirá os véus da contingência e ele penetrará o alto mistério que se esconde atrás do número e dos ritmos.

Insisto que o amador procure de preferência as versões originais. Transladação ao piano das peças de Bach, escritas originalmente, para cravo, é hoje universalmente aceita. De resto, Bach interessou-se muito pelo novo instrumento, que só chegaria a amadurecer, como se sabe, muito tempo depois, sob Beethoven. Mas há certas versões que não me parecem nem de longe convincentes. Por exemplo, a "Passacaglia", a "Tocata e Fuga em Ré menor", a "Chaconne" da Partita n? 2, em piano, perdem muito do seu conteúdo, ganhando enfeites que Bach não previra. Há, entretanto, transcrições de Busoni, aceitáveis. Mas, pelo amor de Deus, fujam do sr. Stokovski... Infelizmente, no momento, é difícil obter as "Cantatas", que formam com o "Cravo bem temperado" e a "Paixão segundo São Mateus", o grande momento da arte bacheana. Esperemos tempos mais propícios...

Muitos conhecem a famosa "Chaconne" somente na transcrição para piano. Tratem, pois, de adquirir a já citada "Partita ne 2 em Ré menor", para violino solo, da qual faz parte a "chaconne", e que é um monumento incomparável da literatura violinística. Comprem tudo que encontrarem em matéria de sonatas para violino, para cravo e violino, para cravo e flauta, suítes para orquestra, suítes para violoncelo, etc. E, apesar de hoje bastante popularizados, não convém esquecer os "Concertos de Bandeburgo"; e se não puderem comprar os seis, indicaria o n^ 1 e o ns 5 entre os mais belos.

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Diante de Händel esbarramos com outra dificuldade apontada n crônica anterior: suas obras de maior vulto, os "Oratórios", especialmente D Messias" e "Judas Macabeu", não se prestam "et pour cause", a jdições contínuas. Entretanto, certos trechos destacados, constituem, por1 sós, perfeitas obras musicais. Podem ser escolhidos ao acaso, pois ada é indiferente ou medíocre nessas obras monumentais.

Também os "Concerti Grossi", modelos do gênero, podem ser scolhidos no escuro. Porque na organização e distribuição das massas onoras Händel, não só rivaliza, como talvez ultrapasse em certas soluções próprio Bach. A questão das enormes afinidades e das enormes diferenças

2 temperamento e natureza entre Bach e Händel, será sempre um assunto oaixonante para todos os que se ocupam a sério de música. 0 célebre jsicólogo Paul Bekker procurou as razões dessa diferença no que ele nama de caráter fundamental da sensação sonora: o homem pode sentir o om vocalmente, e pode senti-lo instrumentalmente. Nos dias de hoje, a redominância da sensação instrumental determina de nossa parte uma iminuição, ou pelo menos parcialidade, da nossa faculdade de percepção onora. Segundo ainda Bekker, Händel é o músico da sensação vocal, e Bach o a sensação instrumental.

Além dos já citados, "Concerti Grossi", não esqueçamos os oncertos para órgão e orquestra (particularmente o ne 1 1 em sol menor, e o9 13, em fá maior), as sonatas para cravo e oboé, para cravo e viola de amba, etc.

Não podemos, antes de chegar a Mozart e Beethoven, deixare lado Gluck.

Apesar dos terríveis epigramas que lhe dirigiu o nosso caro ebussy na sua famosa "Lettre ouverte ao Chevalier Gluck", que alude às pretendidas relações entre a música de Gluck e a arte grega", e declara ameau muito mais grego do que êle — apesar das reações desfavoráveis que ue a pompa de seu dramatismo provoca em muitos — Gluck deve ser contado ntre os grandes. Na verdade, não lhe perdôo ter escrito textualmente que a música deve ser reduzida à sua verdadeira função, a de secundar a oesia" (por onde logo se vê que ele se opõe nitidamente a Mozart), mas e coloco na eletrola um disco de "Orfeu", ou de "Ifigênia em Aulida", prevenção desfaz-se como por encanto; justifica-se o entusiasmo de

ousseau, quando escreveu: "Já que se pode ter um tão grande prazer durante luas horas, admito que a vida preste para alguma coisa".

Corre mundo uma bem feita síntese de "Orfeu", na persuasiva nterpretação de Alice Raveau no papel principal; aconselho-a aos amadores.

Da próxima vez falaremos da importante escolha de discos de lozart e Beethoven, o que levanta, como se verá, certos problemas de opção.

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-ETRAS E ARTES, domingo, 14 Jul. 1946, página 13.

M U S I C A

O CASO ARNALDO ESTRELLA

0 pianista Arnaldo Estrêlla, embora ainda moço, conquistou jm lugar de relevo entre os músicos da atual geração brasileira. Creio não ;xagerar afirmando que ele se tornou um nome nacional. Não vejo, não :onheço entre nós quem possa no momento disputar-lhe a palma de pianista.>e bem que fuja da publicidade, sendo mesmo discreto e retraído, Estrêlla 'mpôs-se pelo seu valor considerável. Não resta a menor dúvida que é um caso Je autêntica vocação musical. Todas as vezes que o ouvi tocar, compreendi ]ue o piano é, para Estrêlla, o meio mais real e mais próximo de atingiri Revelação desejada por todos os artistas, o verdadeiro agente intermediário jntre sua individualidade e a face expressiva dos fenômenos. Trata-se, a ieu ver, de um romântico de alta classe; diria quase, de um clássico do ■omantismo.

Creio que nunca me esquecerei da sua interpretação, há ilguns anos atrás, de duas belíssimas sonatas de Cimarosa (autor que ninguém ;e lembra, aqui no Brasil...). De fato, marquei Arnaldo Estrêlla, a partir iesse dia. Parecia-me ouvir sonoridades novas (Estrêlla possui um grau idiantado a consciência da sonoridade); além disto, o seu fraseado evestia-se de uma tal nobreza e dignidade — que ia ao encontro da poesia... endo ouvido Estrêlla mais algumas vezes, pensei comigo mesmo: "Positivamente, ;ste moço acha-se situado no centro do próprio debate moderno, entre o :spírito e a letra da música, entre interpretação e execução... Seu emperamento, além do mais, talvez o incline para os românticos; mas, sejai partitura romântica ou moderna, êle saberá conciliar letra e espírito, o |ue o nivelará dentro de alguns anos aos pianistas mais representativos da iossa época..."

Ainda há poucas semanas, ouvia-o tocar a parte de piano lo Quarteto em sol menor, K. 478, de Mozart. Ao meu lado um seu amigo e dmirador confiava-me: "Ele toca admiravelmente, mas dá um Mozart muito omântico. . .". Ora, aquela página famosa da música de câmara pode ser itada como precursora do romantismo: e não foià toa que Chopin preferia lozart acima de tudo, nos últimos anos de sua vida. 0 fato é que Estrêlla judou a reconstituir a atmosfera sombria do Quarteto, própria a tonalidade le sol menor.

Ainda está na lembrança de muitos o concurso promovido pela Columbia", em que Arnaldo obteve o primeiro lugar, tendo ido em onseqüência à América do Norte, onde recebeu os mais significativos estemunhos de admiração, entre os quais o do nosso ilustre e querido runo Walter, com o qual colaborou em memorável concerto.

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Diante de Händel esbarramos com outra dificuldade apontada n crônica anterior: suas obras de maior vulto, os "Oratórios", especialmente D Messias" e "Judas Macabeu", não se prestam "et pour cause", a jdições contínuas. Entretanto, certos trechos destacados, constituem, por1 sós, perfeitas obras musicais. Podem ser escolhidos ao acaso, pois ada é indiferente ou medíocre nessas obras monumentais.

Também os "Concerti Grossi", modelos do gênero, podem ser scolhidos no escuro. Porque na organização e distribuição das massas zinoras Händel, não só rivaliza, como talvez ultrapasse em certas soluções próprio Bach. A questão das enormes afinidades e das enormes diferenças

s temperamento e natureza entre Bach e Händel, será sempre um assunto oaixonante para todos os que se ocupam a sério de música. 0 célebre usicólogo Paul Bekker procurou as razões dessa diferença no que ele nama de caráter fundamental da sensação sonora: o homem pode sentir o om vocalmente, e pode senti-lo instrumentalmente. Nos dias de hoje, a redominância da sensação instrumental determina de nossa parte uma iminuição, ou pelo menos parcialidade, da nossa faculdade de percepção onora. Segundo ainda Bekker, Händel é o músico da sensação vocal, e Bach o a sensação instrumental.

Além dos já citados, "Concerti Grossi", não esqueçamos os oncertos para órgão e orquestra (particularmente o n^ 11 em sol menor, e o2 13, em fá maior), as sonatas para cravo e oboé, para cravo e viola de amba, etc.

Não podemos, antes de chegar a Mozart e Beethoven, deixare lado Gluck.

Apesar dos terríveis epigramas que lhe dirigiu o nosso caro ebussy na sua famosa "Lettre ouverte ao Chevalier Gluck", que alude às pretendidas relações entre a música de Gluck e a arte grega", e declara ameau muito mais grego do que êle — apesar das reações desfavoráveis que ue a pompa de seu dramatismo provoca em muitos — Gluck deve ser contado ntre os grandes. Na verdade, não lhe perdôo ter escrito textualmente que a música deve ser reduzida à sua verdadeira função, a de secundar a oesia" (por onde logo se vê que ele se opõe nitidamente a Mozart), mas e coloco na eletrola um disco de "Orfeu", ou de "Ifigênia em Aulida", prevenção desfaz-se como por encanto; justifica-se o entusiasmo de

:ousseau, quando escreveu: "Já que se pode ter um tão grande prazer durante luas horas, admito que a vida preste para alguma coisa".

Corre mundo uma bem feita síntese de "Orfeu", na persuasiva nterpretação de Alice Raveau no papel principal; aconselho-a aos amadores.

Da próxima vez falaremos da importante escolha de discos de lozart e Beethoven, o que levanta, como se verá, certos problemas de opção.

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.ETRAS E ARTES, domingo, 14 Jul. 1946, página 13.

M U S I C A

O CASO ARNALDO ESTRELLA

O pianista Arnaldo Estrêlla, embora ainda moço, conquistou jm lugar de relevo entre os músicos da atual geração brasileira. Creio não :xagerar afirmando que ele se tornou um nome nacional. Não vejo, não :onheço entre nós quem possa no momento disputar-lhe a palma de pianista.>e bem que fuja da publicidade, sendo mesmo discreto e retraído, Estrêlla .mpôs-se pelo seu valor considerável. Não resta a menor dúvida que é um caso le autêntica vocação musical. Todas as vezes que o ouvi tocar, compreendi lue o piano é, para Estrêlla, o meio mais real e mais próximo de atingiri Revelação desejada por todos os artistas, o verdadeiro agente intermediário :ntre sua individualidade e a face expressiva dos fenômenos. Trata-se, a ieu ver, de um romântico de alta classe; diria quase, de um clássico do •omantismo.

Creio que nunca me esquecerei da sua interpretação, há ilguns anos atrás, de duas belíssimas sonatas de Cimarosa (autor que ninguém ;e lembra, aqui no Brasil...). De fato, marquei Arnaldo Estrêlla, a partir lesse dia. Parecia-me ouvir sonoridades novas (Estrêlla possui um grau idiantado a consciência da sonoridade); além disto, o seu fraseado evestia-se de uma tal nobreza e dignidade — que ia ao encontro da poesia... endo ouvido Estrêlla mais algumas vezes, pensei comigo mesmo: "Positivamente, :ste moço acha-se situado no centro do próprio debate moderno, entre o spírito e a letra da música, entre interpretação e execução... Seu emperamento, além do mais, talvez o incline para os românticos; mas, sejai partitura romântica ou moderna, êle saberá conciliar letra e espírito, o ]ue o nivelará dentro de alguns anos aos pianistas mais representativos da iossa época . . . "

Ainda há poucas semanas, ouvia-o tocar a parte de pianolo Quarteto em sol menor, K. 478, de Mozart. Ao meu lado um seu amigo e dmirador confiava-me: "Ele toca admiravelmente, mas dá um Mozart muito omântico. . .". Ora, aquela página famosa da música de câmara pode ser itada como precursora do romantismo: e não foià toa que Chopin preferia lozart acima de tudo, nos últimos anos de sua vida. 0 fato é que Estrêlla judou a reconstituir a atmosfera sombria do Quarteto, própria a tonalidade e sol menor.

Ainda está na lembrança de muitos o concurso promovido pela Columbia", em que Arnaldo obteve o primeiro lugar, tendo ido em onseqüência à América do Norte, onde recebeu os mais significativos estemunhos de admiração, entre os quais o do nosso ilustre e querido runo Walter, com o qual colaborou em memorável concerto.

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Mas a coisa não pára aí: um dia vim a saber das notáveis qualidades pedagógicas de Arnaldo Estrêlla. Muitos amigos me diziam: "Êle se acha naturalmente indicado para reger a cadeira de piano da Escola Nacional de Música. A novíssima geração de alunos teria nele um guia inteligente, que rasgaria caminhos novos e combateria a rotina".

Pois bem, abriu-se o concurso, Estrêlla realizou-o, foi classificado em 12 lugar...e agora, pretendem nada menos do que anular o concurso! Sim senhores, anular o concurso!... Mas como? É o que passarei a historiar, em rápidos traços — para edificação do Brasil.

Em Dezembro de 1945 realizou-se o concurso na Escola Nacional de Música. Foi a banca constituída de dois professores da Escola: Antão Soares e Orlando Frederico, e três professores de Minas, Recife e Natal.

De acordo com a lei, foram dados 10 dias para que os candidatos se manifestassem a respeito da banca, antes da realização do concurso. Não houve nenhum protesto. Realizaram-se as provas normalmente, sem nehuma reclamação.

Procurado o resultado imediatamente, no prazo de 10 dias oós-concurso concedido por lei, uma candidata requereu a anulação do mesmo, urotestanto irregularidade na constituição da banca, isto é, num ato oraticado antes da realização do concurso e contra o qual ela poderia ter orotestado dentro do prazo concedido pela lei — o que não fez.

Essa candidata é uma professora que ocupa interinamente jma das cadeiras. Conhecia pessoalmente os professores da Escola que foram escolhidos para a banca, sabia da sua situação legal. Nenhum protesto apresentou antes da realização do concurso. Se vencesse, certamente não consideraria a banca ilegal...

0 concurso foi aprovado unanimimente pela congregação da íscola Nacional da Música. 0 recurso de anulação foi recusado unanimimente oela mesma congregação; enviado, ao Conselho Universitário depois de muitos debates, foi recusado. 0 processo seguiu para o Ministro da Educação, que :onforme é de justiça, deverá homologar aquelas decisões. Mas até o momento oresente, tal não se deu.

A candidata recorrente chama-se Isa de Queiroz Santos. É Drofessora interina da Escola Nacional da Música. Foi classificada em terceiro lugar. Arnaldo Estrêlla foi classificado em 1 2 lugar, em 22 a Drofessora Yara Coutinho, em 42 o professor Roberto Tavares, e em 52 a Drofessora Lubelia Brandão.

As vagas são duas. Enquanto o caso não se decide, a candidata recorrente continua ocupando, como interina, o cargo e percebendo os respectivos proventos. Aliás, ela impetrou um mandato de segurança, visando nanter-se no lugar, caso Arnaldo Estrêlla seja nomeado.

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Não acreditamos que o Sr. Ministro da Educação queira inaugurar sua administração iniciada, sob bons auspícios, mandando anular um concurso realizado normalmente, e aprovado por unanimidade pela Congregação da Escola.

0 que todos nós, poetas, escritores, musicistas, críticos, artistas em geral, o que todos nós desejamos é que seja feita justiça a Arnaldo Estrêlla. Esperamos também que o Sr. Ministro não se deixe impressionar pelos argumentos baseados na oposição ideológica da pianista (posição, de resto, da qual respeitosamente discordamos). Arnaldo Estrêlla não irá para a Escola Nacional de Música fazer política; irá ensinar piano; e ilustrando sua cátedra, ilustrará a cultura brasileira.

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LETRAS E ARTES, domingo, 21 jul. 1946, página 7.

FORMAÇÃO DE DISCOTECAIV

Mozart é um dos autores mais gravados em discos. É verdade que deixou uma obra enorme, e ainda falta muita coisa importante dele a ser reproduzida na cera. Mas o fato é que o amador que se dispuser a iniciar sua "mozarteana" não poderá deixar de se sentir muito embaraçado.

Porque Mozart fascina de maneira singular, todos os que penetram esse universo que é o seu espírito musical, onde tantas são as moradas.

Das suas óperas, 4 da maior importância, ciúmes do drama lírico, estão gravadas: "Don Giovanni", "A Flauta Mágica","Bodas do Figaro", e "Cosi fan tutte". Se me pedissem para escolher entre as 4, eu escolheria "Don Giovanni". Não que seja mais perfeita que as "Bodas", por exemplo; é que representa no conjunto das obras de Mozart, uma experiência grandiosa, de proporções verdadeiramente cósmicas. É ouvindo, sentindo e assimilando esse incomparável drama, "dramma giocoso", que se poderá melhor compreender a verdadeira natureza de Mozart, que teria ouvido todos os segredos do céu e do "inferno". Stendhal escreveu que, para ouvir "Don Giovanni, não hesitaria em caminhar duas léguas atolado na lama — o que ele mais detestava no mundo — . Eis um dos belos pensamentos sobre Mozart: "La science de l'Harmonie peut faire tous les progrès qu'on vondra supposer, on verra toujour avec étonnement que Mozart est allé au bout de toutes les routes. Ainsi, quant à la partie mécanique de son art, il ne será jamais vainou".

Quem não poder comprar os discos das 4 óperas citadas, contentem-se com as aberturas e algumas árias.

Resolvida a questão da escolha das óperas (ou de trechos das mesmas), acha-se o amador diante de uma lista imensa de discos de música de câmara e música sinfônica, de Mozart: quintetos, quartetos, concertos de piano e orquestra, sinfonias, missas, trios, divertimentos,concertos e sonatas para diversos instrumentos, enfim... é um mundo de

4/sugestões que se abre diante do pobre cidadão, alucinado com tanta música, tanta grandeza, tão grande variedade de aspectos num único homem, num único artista.

Guiando-o nessa complicada via, indicarei ao amador mais ou menos por ordem de importância, as seguintes obras, todas representativas em algum grau, do grande Wolfgang. Os quintetos resumem a intimidade, por

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assim dizer, do espírito mozarteano: quinteto para cordas em dó maior K. 515; em sol menor, K. 516; em ré maior, K. 593; quintetos para clarinetes e cordas, em fá maior, K. 581. Infelizmente não se acha gravado o famoso "quintetos dos pássaros" (em mi bemol, K. 614); mas,, se por um feliz acaso, souberem amanhã da sua existência em discos, atirem-se a ele com furor...

Vem a seguir a imortal série de obras prima os SEIS QUARTETOS DEDICADOS A JOSEF HAYDN (em sol maior, K. 387; em ré menor,K. 421; em mi bemol, K. 428; em si bemol, K. 458; em lá maior, K. 464; e em dó maior, K. 465).

0 amador que adquirisse somente estas seis obras — nada mais de vinte discos — poderia estar certo de possuir um monumento definitivo da arte mozarteana, e de toda a arte musical. E se eu tivesse de escolher dois dentre os seis quartetos, decidir-me-ia pelo segundo, em ré menor. K. 421 — e o n.6 — em dó maior, K. 465, também chamado "dissonante". É verdade que a partitura do quarteto em lá — K. 464 — foi copiada pela mão do próprio Beethoven que escreveu à margem: "Eis uma obra. Eis um homem. Eis o que Mozart poderia dar sempre ao mundo — se este o quisesse". Enfim, qualquer dos seis poderá ser comprado no escuro, pois todos são admiráveis.

Da extensa lista das sinfonias, é obrigatório a citação das 4 últimas: em ré maior, K. 501 — "Praga"; em mi bemol, K. 543, em sol menor, K. 550, em dó maior, K. 551 — "Júpiter". Das de minha preferência pessoal oscila entre "Praga" e "Sol menor"; se bem que o final prodigioso de "Júpiter"... Das outras sinfonias de menores proporções, indico a em si bemol maior — K. 319, obra de encanto raro, de segurança matemática; e a sinfonia — serenata em ré maior — K. 385.Mas passemos depressa aos concertos de piano, refúgio da fantasia poética mais refinada, diálogos prodigiosos, entre o piano e a orquestra, fonte perene de surpresas e de deslumbramentos! Indico estes três maravilhosos concertos de câmera — em lá maior, K. 414, em mi bemol, K. 449, em sol menor K. 453. Entre os de maiores proporções, o concerto em dó maior —K. 467, e o em dó menor — K. 491. Mas como deixar de lado essas três "feéries", que se ouvem sempre com um prazer único — os concertos em fá maior, K. 459, lá maior — K. 488 e em mi bemol, para 2 pianos, K. 365?... Entre as sonatas de piano, cumpre salientar a sonata - fantasia em dó menor (K. 475 e K. 457), e a lá menor (K. 310). Entre os concertos de violino, indico o ns 3 — em sol, K. 216. Entre as sonatas de piano e violino, as em si bemol, K. 378; em mi bemol, K. 380, e em lá maior, K. 526.

Os "divertimentos" se estendem durante muitos anos da produção de Mozart. Entre os mais importantes, é digno de menção o Divertimento para 6 instrumentos, em si bemol, K. 287. E se eu tivesse de indicar uma única obra, representativa, em alto grau de espírito, do

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coração e da técnica musical de Mozart, esta seria o divertimento em mi bemol maior para trio de cordas — K. 563. É uma peça incomparável de • princípio a fim, como beleza de idéias e desenvolvimento temático. Na música de câmara há poucas coisas que se lhe possam comparar.

No domínio da música religiosa, é forçoso a citação do "Requiem" (K. 626) e da Missa em dó menor (K. 427). Em outros setores não podemos, de forma alguma, deixar de lado o extraordinário "Adágio e Fuga em dó menor" (K.546) e a fantasia para piano solo em dó menor, K. 396.

Quem quiser saber mais a respeito de Mozart, pode me consultar pelo Correio, pois o espaço do jornal não dá para mais nada... Até domingo, se Deus quiser.

170LETRAS E ARTES, domingo, 28 jul. 1946, página 7.

FORMAÇAO DE DISCOTECA (V)

0 grande Haydn merece todo o carinho e atenção ao tratarmos da escolha de seus discos. Pela sua maravilhosa inteligência ordenadora, pela sábia elaboração de seus quartetos e sinfonias, pela rara generosidade de sua natureza, pela influência poderosa que exerceu na formação de músicos como Mozart e Beethoven; por ter fixado de acordo com o ideal moderno, antigas formas musicais, determinando mesmo, segundo pensam críticos autorizados, a transição entre a época clássica e a romântica, conforme atestam seus quartetos de 1773, denunciadores de uma verdadeira crise de romantismo — por tudo isto, e por mais outros motivos — Haydn ocupa um lugar de relevo entre os mais importantes criadores musicais.É preciso insistir neste aspecto da força ordenadora e reguladora de sua inteligência, pois anda por aí, bastante espalhada, a lenda de "bobice" de Haydn. Ele teve muito tempo para trabalhar: sua produção, enorme,se estende durante uns sessenta anos; mas sua primeira sinfonia conhecida foi escrita já aos vinte e sete anos. Essa fabulosa produção caracteriza-se por uma ânsia constante de aprimoramento dos meios técnicos. Alfredo Einstein, o eminente musicólogo, assim se refere a respeito dos métodos haydnianos: "Havia nele força e gravidade; suas criações surgem da experiência de acontecimentos vividos, são figuras de um programa secreto" .

0 lado vienense, o lado humour da natureza de Haydn oculta aos olhos (e aos ouvidos...) de muitos sua grandeza e profundidade. 0 mesmo aconteceu ao seu amigo Mozart. "Suas criações surgem da experiência": na verdade Haydn acumulou experiência sobre experiência no vasto laboratório do Palácio Esterhazy. De suas façanhas, não foi a menos ilustre a que conduziu ao desenvolvimento do trabalho temático para maior extensão das partes da forma-sonata. E quanto ao quarteto, Haydn inventa uma nova aplicação do contra-ponto, produz um desdobramento temático que confere maior riqueza e independência aos membros da composição, ao mesmo tempo que lhe confere maior unidade. Tendo se elevado muito acima de seus antecessores no quarteto, sob o ponto de vista da dignidade da linguagem musical e da amplitude das formas.Haydn abre as portas a Mozart e Beethoven, que atingiram o máximo na realização do quarteto... se bem que um enriquecimento dessa forma musical se tenha ainda verificado, com o único exemplar do gênero,

saído muitos anos depois da peça genial de Debussy!

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Gostaria de despertar no espírito de alguns que ainda não a conhecem o interesse pela música de Haydn, que nunca, é deprimente; ao contrário, é exaltante e emprega diversas vezes a linguagem do fogo. Seu "humour", repito, não o impede de ser grave e severo em muitas ocasiões.

Quanto aos discos, no momento não é muito fácil encontrá- los por aqui, salvo no que diz respeito a sinfonias, Das cento e vinte, mais ou menos reconhecidas como autênticas, é com renovado prazer que sempre ouviremos qualquer destas, que se acham gravadas: "Milagre"— n° 96 _ em ré maior; "Salomão" ns I; ns 98, em si bemol; ne 100 ("Militar"), em sol maior; no 10 1 ("Relógio"); ns 102 em si bemol; ns 104 ("Londres").

Dos quartetos menciono qualquer um das séries op. 20 e op. 33; e também o último, n9 83, op. 103. Qualquer dos"quartetos russos" poderá igualmente ser adquirido sem medo.

Indico ainda a admirável sonata para piano ns 1, em mi bemol — na bela interpretação de Horowitz — e o Concerto de Cravo, op. 21, magnificamente executado na parte do solo, por Wanda Landowsks.0 que aí está apontado, basta para dar uma idéia bem nítida da grandeza de Haydn.

Beethoven é hoje, depois de Chopin, o músico mais conhecido e difundido no mundo inteiro. Talvez, por isso, fosse supérfluo fazer aqui a indicação de discos do grande mestre. Mas de qualquer maneira, não se pode deixar de mencioná-los, mesmo porque, se Beethoven é, definitivamente, um dos maiores, o critério de preferências está longe de ser fixo. 0 amador comum atira-se vorazmente às Sinfonias: não o criticarei por isto. As sinfonias já passaram em julgado e já se sabe que são obras das mais importantes da música no plano de uma discoteca de 300 ou 400 discos, eu não aconselharia a compra da Terceira ou Nona, por exemplo: além de terem proporções muito vastas, o que dificulta sua audição contínua, são obras que pela sua natureza própria, exigem contágio coletivo, além disto são continuamente transmitidas pelo rádio. Indicaria antes a Quarta, em si bemol, op. 60, ou a Oitava em fá op. 93.

Das sonatas de piano, o amador comum voa longe para a "Apassionata", a dita "Ao luar" ou a dita "Aurora", e ainda aqui lhe dou razão, pois se trata, é claro, de obras-primas. Mas, dos que não as conhecem, aponto algumas sonatas mais "escondidas"; por exemplo, em fá, op. 54; e outra também em fá, op. 78, esta, injustamente taxada de insípida por Vincent d'Indy. Ao amador de grande classe será preciso lembrar as últimas, op. 109, 110 e 111, ou esse prodigioso poema de

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solidão e despojamento que é a sonata em si bemol maior. Op. 106 ... (Confesso minhas preferências por esta "Hammer Klavier sonata"). E será preciso relembrar também as extraordinárias "33 variações sobre uma valsa de Diabelli, op. 124 ...".

Dos cinco concertos de piano, apesar da merecida fama, do majestoso e batizado "Imperador", minhas preferências inclinam-se para o ne 4, em sol maior, op. 58. 0 terceiro concerto é também soberbo.

Não se esqueça o incomparável trio em si bemol, op. 97 "ao arquiduque", uma das obras mais representativas do gênio de Beethoven.

Propositadamente deixei para a próxima crônica as refe­rências às produções mais elevadas e sublimes de Beethoven, as menos populares: OS QUARTETOS.

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LETRAS E ARTES, domingo, 11 ago. 1946, página 7.

FORMAÇAO DE DISCOTECA

(VI)

Conta-se que certa senhora, após ouvir, num salão,Beethoven tocar uma de suas sonatas, dirigiu-se ao maestro e perguntou-lhe como ele próprio interpretava aquela obra, isto é qual a significação que lhe atribuía. Beethoven dirigiu-se outra vez ao piano e tornou a tocar a sonata, acrescentando no fim: "Eis a interpretação que lhe dou".

Relembrei este episódio a propósito dos Quartetos de Beethoven, cuja significação é tão discutida. Na verdade esses Quartetos — cumes da música universal — espantam os auditores comuns que já têm o espírito previnido pelo que leram em manuais de música. 0 amador comum vê em qualquer Quarteto de Beethoven um autêntico papão musical. Alguns, mais corajosos, declararam: "chegarei até, mas v. compreende... é preciso iniciação". De fato, para tudo é preciso iniciação...

Criou-se em torno dos Quartetos de Beethoven uma aura de hermetismo, uma atmosfera de penumbra que no fim de contas só vem servir aos teósofos. Muitos críticos afirmam esse hermetismo mais por hábito e espírito de rotina. Os Quartetos de Beethoven participam, sem dúvida do hermetismo que é próprio a muitas obras de arte tidas como claras e acessíveis a qualquer pessoa. Se quisermos carregar na interpretação, se quisermos esmiuçar o conteúdo de uma obra, poderemos extrair, por exemplo, das "baíadas" de Chopin, aparentemente tão fáceis, três ou quatro sentidos — inclusive o metafísico.

Evidentemente se o nosso propósito fosse o de Degas — o de "décourager les arts" — poderíamos insistir no hermetismo dos Quartetos, e de muitas outras importantes produções musicais. Mas o nosso propósito, se bem que modesto, é o de ajudar alguns a se elevarem; e ajudar os elevados a se elevarem mais ainda. Diremos,pois, que a linguagem sonora dos Quartetos de Beethoven é a linguagem universal do indivíduo cultivado, isto é, saiu da individualidade complexa e poderosa de Beethoven, e, como tal, marca uma fisionomia, que é própria do grande mestre; e ao mesmo tempo pode servir a todos os homens cultivados no esclarecimento de seus mais íntimos e mais fortes problemas morais e espirituais. Ouvindo-os, meditando-os e assimilando-os, não só participareis das lutas, dos sofrimentos, das derrotas e da esperança de Beethoven, como também Beethoven, participará de vossos

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sofrimentos, vossas lutas, vossas derrotas e vossas esperanças. 0 homem de mediana cultura que não encontrar, em certas passagens dos Quartetos, muito de si mesmo, de seus problemas, de suas dúvidas e afirmações, é um homem para quem a vida é um acidente casual e não pode ter profunda e transcendente significação que de fato tem; é um homem que não viveu e passa como uma sombra.

Abordar os Quartetos de Beethoven é um dever precípuo de todo homem que deseja elevar seu nível cultural. Que, o amador comum, isto é, o leigo, não só espante nem desanime com a lenda de hermetismo que se estabeleceu em torno deles, ao contrário do queescreveu Pierre Jean Jouve, não vemos em Beethoven apenas o homem da Revolução Francesa, o filho espiritual de Rousseau. Sua linguagem sonora parece-nos particularmente própria (sobretuto nos Quartetos) a exprimir a vida moral e espiritual do homem da nossa época, comprimido entre guerras e revoluções, com os nervos à flor da pele diante das contínuas notícias que chegavam (chegam...) sobre campos de tortura, gritos de terror, existências sufocadas, legiões de homens em marcha para as trevas, o desconhecido, o abismo.

Nos Quartetos de Beethoven, muito mais do que nas sinfonias, sonatas e concertos, observa-se o abandono das concessões, a perda dos detalhes decorativos. Apesar do aparente transbordamento, na verdade a matéria sonora adquire uma gravidade de que apenas se tem a antecipação em certos Quartetos muito maduros de Haydn ou de Mozart.É preciso acentuar, para encorajar os desanimados, que os processos técnicos de Beethoven, em última análise, obedecem em princípio às disposições clássicas; isto é, seguem o tipo da antiga forma-sonata, exceto no Quarteto op. 131; a diferença mais sensível reside no desenvolvimento temático, quando surgem em combinação três idéias diversas, ao invés da antiga forma cujo desenvolvimento era muito menos amplo.

Ao amador que se interesse em conhecer e cultivar os Quartetos de Beethoven, recomendo o livro especializado de J. de Marliave, ilustre militar que se imortalizou com essa obra extraordinária de carinho, compreensão e amor; monumento imperecível erguido à glória do grande Mestre.

Quanto aos discos, cumpre assinalar que se acham gravados todos os Quartetos de Beethoven. 0 amador poderá começar pelos seis da primeira série op. 18, que guardam relação mais próxima com os de Haydn e Mozart. 0 melhor é mesmo seguir os Quartetos pela ordem cronológica. Depois de "ruminar" como dizia Santo Agostinho, os seis primeiros, o amador tomará conhecimento dos três dedicados ao Príncipe

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Rasumovski: op. 59, n s 1, 2 e 3. Nunca poderei dizer qual deles é o melhor. 0 amador será arrastado no turbilhão do ns 1, deter-seá no sublime adágio noturno do ne 2, no andante do n^ 3 com seus famosos "pizzicatti", em que parece pulsar o coração de Beethoven, isto é, do próprio homem...

Como 0 espaço está minguado completarei as notas sobre os Quartetos na próxima crônica.

P.S. — Na crônica anterior lia-se "33 variações sobre a valsa de Diabelli, op. 124", ao invés de"33 variações sobre a valsa do .Diabelli, op. 120", como consta do original.

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LETRAS E ARTES, domingo,18 ago. 1946, página 7.

FORMAÇAO DE DISCOTECA(VII)

Insisti na crônica anterior, sobre a alta categoria dos Quartetos de Beethoven, preferindo situá-los, antes de tudo, no plano, da pura musicalidade, já que sua interpretação pode ser marcada "ad libitum", desde que se compreenda a atmosfera de gravidade e transcendência em que todos eles se situam; atmosfera, repito, que é própria, mais do que a qualquer outra, à nossa geração. Porque na verdade nós herdamos de nossos maiores a angústia, o desajustamento entre o interior e o exterior, que se acentuaram nos últimos três séculos, e que chegou a culminância no momento que vivemos. Por isso, participamos vivamente da consciência de Beethoven, embora ele muitas vezes nos oprima com essa atmosfera especial de terror e desconsolo, pelo que procuramos os caminhos de libertação de Bach, Mozart , Händel ou Debussy, menos duros a pessoas já naturalmente castigadas pela vida como todos nós agora.

0 que não se deve é particularizar a interpretação dos Quartetos. 0 próprio Beethovem já advertia os posteros a respeito de sentido da Sinfonia Pastoral: que ninguém procurasse ali uma cópia da natureza; "deixo ao ouvinte o cuidado de achar a situação..." Se nessa Sinfonia, onde se poderia descobrir sem dificuldade uma intenção pictórica, Beethoven se recusa a fazer música imitativa com muito menos razão encontraremos intenções didáticas nos Quartetos. 0 que eles querem dizer, cada um captará de acordo com os elementos próprios, que recebeu, certo, entretanto, a priori, de que eles se inscrevem sob o signo da gravidade da condição humana.

Assinalemos, também, que o amador disposto a ouvir e assimilar todos os Quartetos, estará mais apto a abordar a música moderna, essa pobre música moderna de que se fala tanto mal, e que no fim das contas não é moderna: é música. Se continuarem a sujeitar a arte ao critério do tempo, a confusão será geral...

Continuando a passar em revista, embora muito sucintamente, Os Quartetos, chegamos a uma das produções mais atraentes do segundo período de Beethoven: o Quarteto em mi bemol maior, op.74, também chamado "Quarteto das harpas". Entretanto, não se cuide que Beethoven teve em mira imitar, pelos "pizicati" dos instrumentos próprios do Quarteto, o som da harpa. Terá sido mera coincidência. Mais

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uma vez, devemos nos precaver dos perigos da arte imitativa.Este Quarteto, embora afirmativo e forte, não possui a

violência dos demais do segundo e terceiro períodos. Desenvolve-se numa atmosfera especial de lirismo, e em muitas passagens a sombra de Mozart se interpõe até chegarmos às maravilhosas variações do último movimento.

0 Quarteto em fá menor op. 95, composto em 1810 — encerra o terceiro período. Quarteto de menores proporções que os outros, mas, talvez por isto mesmo de uma trama cerrada, apresentando uma visível compreensão da matéria sonora. 0 famoso primeiro movimento "alegro con brio" por si só constitui um retrato espiritual de Beethoven, enérgico e violento; o homem atacando seu próprio destino, na consciência da força do seu antagonista. Mais uma das muitas explosões desse grande Espanhol que é Beethoven!...

Durante quatorze anos o mestre não produzira Quartetos.J á o terceiro período vai adiantado... e aqui fazemos um pequeno parêntese. A teoria de W. de Lenx é hoje mais ou menos aceita em toda a parte; entretanto, é possível que sofra revisões; pois uma obra como o Quarteto "Rasumovski" n9 3, pelo seu espírito, poderia talvez figurar dignamente na lista do terceiro período... Mas não estamos aqui para discutir teorias musicais. Segue a música. Dizíamos que já o terceiro período ia adiantado, quando Beethoven subitamente retorna aos Quartetos, com o extraordinário Quarteto em mi bemol maior, op. 127. Meu reino (ou um pão!) por este Quarteto, ai meu Deus! Se não existisse o 131... 0 Quarteto op. 127 logo de início abala o ouvinte, preparando-o para o sublime "adágio ma non troppo e molto contabile", oração musical com o seu tema que é um eco do "Benedictus da Missa Solene”.

Passamos ao Quarteto em si bemol maior op. 130, que Vincent d'Indy chama de monumental — como se os outros também não o fossem. Chamo a atenção para o andante deste Quarteto, aparentemente monótono, mas que contém expressões que é lícito julgar das mais íntimas de Beethoven.

0 Quarteto em dó sustenido menor op. 31, é uma das obras mais elevadas do espírito humano, e representa uma síntese prodigiosa de toda a arte de Beethoven, sendo o mais revolucionário de todos, pois — exceto num único movimento — foge à antiga forma — sonata. A um amador que desejasse ter um só dos Quartetos, e a obra talvez mais representativa do gênio de Beethoven, eu indicaria este sem hesitação. 0 adágio inicial, é, segundo Wagner, a página mais melancólica que jamais foi escrita. Mas a desforra vem no incomparável

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final, verdadeira dança de furor, entusiasmo, terror sagrado, sofrimento, sei lá mais o que...

0 Quarteto em lá menor, op. 132, tornou-se famoso na literatura, devido ao romance "Counterpoit" de Huxley. É no terceiro movimento que se encontra o "Canto de áção de graças a Deus, por um convalescente", onde o espírito religioso de Beethoven atinge talvez o seu momento máximo.

A Grande Fuga op. 133 é o primitivo final do Quarteto op. 130. Todo o drama da nossa época está contido nessa página extraordinária, que às vezes nos produz um terrível mal-estar.

0 último Quarteto, em fá menor, op. 135, não apresenta a mesma grandeza dos precedentes. É visível a repetição do processo, o cansaço do mestre. Mas isto não quer dizer que não contenha passagens admiráveis, dignas dos outros quanto aos intérpretes dos Quartetos, mencionaremos,pela ordem de nossas preferências pessoais: Quarteto Busch, Quarteto de Budapest, Quarteto Lener.

(0 cronista dirige-se à eletrola e faz passar o disco do extraordinário QUARTETO EM FÁ MAIOR, OP. 59 N° 1 — "RASUMOVSKI" N° 1 — , pelo Quarteto Busch).

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LETRAS E ARTES, domingo, 25 ago. 1946, página 11

CAMINHO DE MÚSICA

Interrompo hoje a série de crônicas que venho escrevendo sobre formação de discoteca, a fim de chamar a atenção de todos os amadores de música, para um livro de real valor que acaba de surgir dos prelos brasileiros: o "Caminho de Música", de Andrade Muricy.

A posição de Andrade Muricy é de fato privilegiada no nosso meio musical, pois que na sua qualidade de escritor ele bem sabe a que alturas pode ser elevado o exercício da crítica, quando se desenvolve num plano de superior equilíbrio. Tal é o seu caso. Andrade Muricy conseguiu este paradoxo de isolar-se e de ir ao mesmo tempo a todos os concertos. Há muitos anos que trabalha. É um bicho de conta e é um homem sociável e cordial. Construiu uma sólida cultura, literária e musical, mas não a estratificou. Antes desenvolveu-a, clarificou-a; e, como ele próprio adverte na nota liminar, no seu caminho surgem também as "discordantes fanfarras polêmicas". Mas essa polêmica processa-se sempre num plano de elevação, porque o Autor não visa diminuir pessoas, e sim compreender os valores que a música registra, e ajudar os outros a compreendê-los. Embora ferindo a sua modéstia, apraz-me recordar aqui o que em substância, disse de Muricy um artista do renome e da responsabilidade de Artur Rubinstein: "é um crítico musical, que honra qualquer país culto do mundo".

Na verdade a crítica musical nos últimos cem anos evoluiu a tal ponto, que basta, deixando de lado os nomes de críticos especializados, lembrar os de músicos eminentes que a ela se consagraram, dando-lhe uma nova vitalidade, inserindo-a nas modernas correntes de pensamento social: Belioz, Schumann, Liszt, Wagner, Debussy e outros mais. Não hesitarei em afirmar que os próprios músicos muito ganharam, enriquecendo e ampliando seus dons de criação, com o exercício contínuo da crítica, com os debates em torno dos problemas estéticos e musicais. Para detalhar um só exemplo — e não das menos ilustres — recordarei o que foi para Schumann o manejo da pena de jornalista, principalmente ao tempo da NEVE ZEITSCHRIFT FUR MUSIK, em Leipzig. Ora como "Eusebins", ora como "Florestan", o homem prodigioso dos "Amores do Poeta" e dos "Trios" anunciava nada menos que a formação de um novo estilo musical. Estudos recentes sobre Schumann, revelam que esse período polêmico ajudou-o a equilibrar sua saúde constantemente ameaçada, como se sabe.

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Relembrando esses nomes e esses fatos gloriosos, quero apenas insistir em que a crítica musical não se apresenta como um trabalho secundário na imensa oficina da cultura, desde que o crítico compreenda a grandeza da música e a complexidade da sua tarefa; porque, de fato, hoje mais do que nunca, a música está intimamente ligada ao processo social da vida, acentuando-se dia a dia sua missão de consolar e restaurar uma vida que se perdera.

0 livro de Andrade Muricy começa bem, pois começa com um artigo sobre Bach. Não posso me furtar ao prazer de transcrever uma de suas opiniões sobre o grande "Cantor", já que em livros de críticos categorizados ainda se perde tempo em falar do "anacronismo" de Bach:

"Bach não estiliza propriamente; antes "deforma" e isso com indescritível liberdade, servindo-se da mais prodigiosa capacidade técnica, e de realização de que há memória. Dispondo de todos os elementos de expressão, recebidos das eras homófona e polifônica, ele pôde, ao mesmo tempo, prever os da música atual, e, quem sabe, os da música porvindoura. Para ninguém o material sonoro assumiu tamanha plasticidade e tal virgindade. A música de Bach parece, até nos momentos de maior rigor de construtividade, emocionantemente livre. Bach não encontrava obstáculos. As suas peças mais "construídas", repousando sobre a mais escolástica substrutura, parecem ir sendo improvisadas senhorilmente, tão desembaraçados são os movimentos. Assim como a mecânica do universo é regulada por leis estritas da matemática, assim a grande vitalidade da música de Bach não se ressente das suas fortes, inabaláveis fundações técnicas".

Por esta pequena amostra já terá o leitor percebido a independência da posição de Muricy, a familiaridade com que ele aborda problemas importantes de estética musical, fora de qualquer preconceito acadêmico ou academizante.

Quantos assuntos de interesse este livro registra, sempre com uma nota pessoal, apresentando conceitos marginais que são, muitas vezes, pequenos resumos de longas experiências! 0 verdadeiro espírito de Chopin; a arte como instrumento de conhecimento; a terminologia musical em língua portuguesa; os contrastes, grandezas e lacunas de Schumann; o moderno conceito de intérprete; a música mecânica; o paralelo entre Manuel de Falia e Villa-Lobos; a música pura; a situação do Wagnerismo; a superioridade da música de câmara, e muitos e muitos outros problemas de alta relevância, são debatidos neste livro, sempre com acuidade, bom gosto e largueza de visão, isto é, com um grande senso da interdependência das culturas. Só em poucas passagens deixa o autor transparecer o caráter improvisado do artigo de jornal.

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Morto Mário de Andrade, creio ser Andrade Muricy o homem naturalmente indicado para realizar esta obra significativa para a cultura musical contemporânea; o levantamento do catálogo temático e cronológico das obras de Villa-Lobos.

Ele teria sobre Koechel, a vantagem de não precisar de retificações ao seu catálogo mozarteano, como temos aí, bem vivo e forte, graças a Deus, o nosso grande músico, o trabalho de Muricy seria muito facilitado, prestando-nos, e aos pósteros, um serviço inestimável.

E com esta sugestão termino estes ligeiros comentários à margem do seu útil e oportuno livro.

P.S. — Na crônica anterior lapsos verificam-se alguns de revisão: desejo retificar o seguinte: ao invés do "Quarteto de dó sustenido menor op. 31 "leia-se "Quarteto em dó sustenido menor op. 131", como consta do original.

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LETRAS E ARTES, domingo, 8 set. 1946, página 11.

FORMAÇAO DE DISCOTECA

(VIII)

Schubert, se não é um caso de preciosidade tão notável quanto o de Mozart, pois começou a compor aos quatorze anos, é um caso de genialidade que o aproxima do autor da "Flauta Mágica". Tendo morrido aos 30 anos, deixou uma obra espantosamente grande, sabendo-se que escreveu mais de 600 "lieder" afora uma quantidade de peças para piano, quartetos, trios, quintetos, sinfonias, etc. A importância histórica de Schubert consiste em ter dado o mais amplo desenvolvimento à forma particular da canção alemã, que ele conseguiu elevar à universalidade. Mas em Schubert não existe apenas sentimento, graça e fantasia: existe por vezes uma força dramática de rara intensidade, trágica mesmo, como por exemplo nas "Canções do moleiro", na "viagem, invernal", na trágica sinfonia em dó (ns 7), etc. A importância de Schubert como compositor é tal que se pode afirmar que a harmonia de Schumann e de Liszt provêm diretamente dele. Na qualidade de compositor instrumental, a crítica dá-lhe um lugar logo atrás de Beethoven, sendo um músico dotado, sendo de grande riqueza melódica.

Schubert reflete o lado mais simpático da alma alemã, o lado sonhador e visionário; e nos seus "lieder" realizou um verdadeiro equilíbrio entre fantasia e sentimento. 0 valor de sua experiência espiritual e humana pode ser bem aquilatada nos admiráveis "lieder" que chamaremos em versão aproximada para nossa língua: "Olhar distante, supremo, magnífico", "Cronos", "Pôr de sol", "Nostalgia do lar", "Tu não me amas", e que em alemão se chamam respectivamente "Weite hobe, herrliche Blick", "Schwager Kronos", "Abendrot", "Heimvch", "Du lielst mich nicht".

Recomendo também ao amador interessado qualquer destas obras de elevada categoria artística; quartetos em lá menor e em ré menor; os quintetos para corda e piano; os trios com pianos, em si bemol e em mi bemol; a já citada Sinfonia ns 7 em dó, e a "Inacabada" em si menor, que, embora popularíssima, é de primeira ordem, com um lançamento do tema sinistro, digno de Beethoven.

Creio que poderia me dispensar de falar sobre discos de Chopin, tal é o conhecimento que todos tem de sua obra, difundida, martelada e deformada até o excesso, até o crime por milhões de pessoas. Mas, como é possível que haja algum amador que ainda não tenha resolvido

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o "caso Chopin" do ponto de vista de seleção de discos, quero registrar - aqui uma sugestão: aquele que não quiser comprar Chopin às toneladas escolha uma obra representativa do seu gênio, e não a toque de manhã à noite, para não acabar enjoando... Escolha por exemplo o monumento dos 24 PRELÚDIOS, ou então os Scherzi, ou as 4 Baladas, ou as 2 Sonatas.Entre os inumeráveis Estudos, como decidir, se todos são admiráveis?E as Mazurcas de incomparável beleza e refinamento? (De passagem, indico um pequeno disco maravilhoso. Mazurca em dó sustenido menor, na interpretação de Vladimir Horowitz, disco Victor 1327).

A propósito de Chopin, há o difícil problema da eleição do pianista. Os amigos já devem ter percebido que não acendo velas a Brailovski — o que não quer dizer que lhe negue grandes qualidades. Apenas acho, que seu Chopin é mais brailovskiano do que chopineano...Qual intérprete, portanto, escolher?

É preciso notar que só me refiro a discos que se tenha probabilidade de adquirir no momento. Indicaria, portanto, Cortot, Rubinstein, Horowitz, Louis Kentner, que chegue o dia Kentner, até que chegue o dia milagroso que o nosso prezado André Gide se resolva a gravar para a cera, já que, segundo nos revelou em um de seus livros, ele é o único intérprete autorizado de Chopin que existe neste mundo...

Qual o critério que deve presidir à confecção de uma antologia? Apesar dos pesares, com todos os defeitos e falhas que surgem, ainda o critério de gosto pessoal é o que prevalece — "et por cause..." no caso da organização desta antologia sonora que é uma discoteca, o leitor já deve ter notado que omiti muitos nomes, e nomes ilustres. Quero pois, frisar, que além de motivo de gosto e inclinações pessoais, encarei a hipótese de uma discoteca particular de proporções nada vastas — digamos entre 300 e 500 discos. Previsto este plano, como encaixar certos autores que tem importância na história geral da música, mas que não incluímos no primeiro plano do nosso agrado? Não desconheço, por exemplo, o papel histórico de Weber, no desenvolvimento da ópera alemã; sei muito bem que ele deu (hélas!) a mão de Wagner, sei que em "Freichutz" e "Oberon" há passagens deliciosas; mas confesso que posso passar perfeitamente sem Weber. Como posso passar muito bem sem o correto Mendelssohn, se bem que encontre grandes belezas no oratório "Elias", no "Octeto" op. 20, nos "Romances sem palavras" e em outras obras significativas de literatura pianística, como as peças de op. 7 e op.54 , etc.

Também não me diz muito o fato de Berlioz ter grande importância histórica devido a ter inaugurado a música de programa; o que não quer dizer que não reconheça o grandioso plano da concepção da "Sinfonia Fantástica" e de certos trechos da "Danação de Fausto" e

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de outras óperas. Se vamos por esta caminho, até em Carlos Gomes encontraremos alguma coisa muito boa...

Não. A tal discoteca deverá ser muito selecionada, e o lado "documentário" não lhe interessará muito. Pensamos principalmente nos músicos fundamentais. Agora, no caso de uma discoteca pública para fins de divulgação da histórica geral da música, é claro que seria imperdoável a exclusão, por exemplo, de Leoncavallo, Mascagni e "tutti quanti"...

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LETRAS E ARTES, domingo,15 set. 1946, página 11.

FORMAÇÃO DE DISCOTECA

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Schumann! Poucos músicos haverá que nos invoquem tanto como o autor do "Estudos Sinfônicos", o criador dessa atmosfera especial que lhe é própria, gerada talvez pelo seu perpétuo conflito entre a razão e o sentimento, o pródigo inventor de tantas peças poéticas em que transparece em muitas passagens o gênio; Schumann, o anunciador de um novo estilo musical... Entretanto, é bom não confundir: se essa bizarra atmosfera schumanniana, como a de Chooin agrada tanto aos poetas, não é só pelo dado "estranho"; é pela sua intensa musicalidade. 0 que faltou a Schumann... e aqui dou a palavra ao meu amigo, o ilustre crítico Andrade Muricy, no seu livro "Caminho de Música" sobre o qual há dias falei aqui:

"0 que faltou a Schumann, foi a íntima interpetação das suas altas faculdades, que, se tivesse ocorrido teria feito dele um criador sólido e eterno, como João Sebastião Bach, a mais perfeita personificação do equilíbrio vivo das faculdades criadoras. Naquela grande personalidade houve paralelismo do espírito e do instinto, da razão e da fantasia. Paralelismo, pois a fusão dos elementos só se dava em momentos breves e paroxístico".

Não se poderia dizer melhor. Falta a Schumann o fator decisivo de vitalidade construtiva, que dá a supremacia a Bach, e dá a Mozart a preeminência sobre Chopin, no juizo lúcido e insuspeito de George Sand.

Mas, incompletado ou não, Schumann consegue muito mais do que nos emocionar: consegue nos tirar fogo do espírito — tudo o que Beethoven exigia da música. É, sem dúvida, por vezes mórbido, enervante e deprimente — mas é também exaltante e tônico, como no "Carnaval", na "Sinfonia Renana", etc.

A vida de Schumann comporta episódios de singular grandeza. 0 seu amor a Clara Wieck, os obstáculos que teve que superar para conquistá-la, depois a harmonia, firmeza e gravidade de sua união, inscrevem-se entre os fatos gloriosos da história do homem. Roberto e Clara Schumann (se o mundo durar, já se vê, o que parece meio problemático...), Roberto e Clara Schumann, com o perpassar dos tempos, serão transfigurados pelo espírito alegórico dos povos; passarão um dia à categoria dos amantes imortais, como Dante e Beatriz, Romeu e Julieta, Fausto e Margarida... E se falo em Romeu e Julieta, Fausto e Margarida,

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é que eles têm para mim uma existência histórica ainda mais patente que a de João e Maria da Silva...

Outro aspecto exemplar da grandeza de Shumann consiste em ter tomado consciência do seu profundo desequilíbrio, e ter-se esforçado por dominá-lo: procurando sempre organizar sua vida material, ao mesmo tempo que organizava sua vida artística e que atacava a rotina do meio ambiente, exercendo intensa atividade crítica e jornalística. Com o estudo acurado da obra de Bach, procurou suprir o equilíbrio que, devido a um defeito original, lhe faltava. Aparentemente a desordem triunfou, pois, como é sabido, Schumann tentou afogar-se e terminou sua vida numa casa de alienados: mas sua biografia e sua própria música elucidam sua luta patética pela conquista da unidade.

Schumann declarou mais de uma vez em seus escritos que, para ele, a relação entre a música e o fato poetizado é indiscutível; e que a idéia poética é o natural ponto de partida da composição. Com isto ele protegeu a "priori" todos os que se alimentam da poesia da sua música, contra a rígida ortodoxia de certos críticos que consideram a poesia da música um simples fenômeno de literatice.

A crítica universal coloca — e justamente — acima de tudo, no conjunto da produção, de Schumann, as peças para piano solo. Nunca é demais se recomendar a audição contínua dessas obras-primas de inspiração e fatura que se chamam "Carnaval", "Kreisleriana","Cenas de crianças", "Novelletten", "Estudos Sinfônicos", "Carnaval de Viena", e tantas outras. Mencionamos também o seu único e maravilhoso concerto para piano e orquestra, em lá menor, op. 54. Mas é preciso não esquecer as Sonatas para piano, op. 11, op. 14, op. 22, além das pessoalíssimas Fantasias, op. 12 e op. 17.

Chamo entretanto a atenção dos amadores para duas extraordinárias obras-primas: o "Quinteto para piano e cordas", em mi bemol, op. 44 e o "Trio para piano, violino e violoncelo", em ré menor, op. 63. Qualquer das duas representa em alto grau o melhor do espírito schumanniano, qualquer das duas constitui uma síntese das tendências de Schumann.

Também, de grau de importância é a série de "lieder", muitos dos quais sobre poesias de Goethe, Schiller, Heine. A produção de "lieder" de Schumann, se não é tão vasta quanto a de Schubert aparenta-se à deste pela sua qualidade musical e pela atmosfera, dramática e sonhadora, própria do romantismo alemão.

0 amador interessado não deixa, portanto, de adquirir a imortal série de "lieder" — dezesseis — que se chama "Dichterliebe"— "Os Amores do Poeta". Existe uma gravação excelente em disco, com

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Lotte Lehmann ajudada por Bruno Walter ao piano. Imaginem, que dupla! Lotte Lehmann — Bruno Walter!

Schumann escreveu três quartetos para cordas (Op. 41, ns. 1, 2 e 3), e um quarteto para piano, op. 47. A crítica em geral não põe essas composições no mesmo plano da obra para piano, ou dos "lieder". 0 mesmo se dá com suas quatro sinfonias, que padecem da incompletação a que se referiu anteriormente, isto é, falta de unidade linear.

Confesso entretanto que me agradam esses Quartetos, especialmente o já mencionado com piano. É verdade que a atmosfera dos três Quartetos é particularmente abafada e angustiosa; entramos no clima do Hölderlin,das poesias mais fechadas, ou melhor, de certas novelas de Haffa.

Pessoalmente considero-os muito mais herméticos que os de Beethoven, e muito mais modernos do que românticos. Não são, evidentemente, obras para o grande público. Mas é possível que eles encerrem a terceira intimidade de Schumann, o Santo dos Santos do seu espírito.

Quanto às sinfonias, todas elas têm belos trechos, cintilações geniais; ei-las, pela ordem do catálogo: n.1 — em si bemol, op. 38 ("Primavera"); n. 2, em dó maior, op.61; n. 3, em mi bemol, op.97 ("Renana"); n. 4, em ré menor, op. 120. Se querem saber, minhas preferências inclinam-se para a n. 3: parece-me a mais orgânica de todas.

(0 cronista dirige-se à eletrola e faz passar os discos do QUINTETO EM MI BEMOL, op. 44. de Schumann, na execução do Quarteto Busch, com Rudolf Serkin ao piano).

188LETRAS E ARTES, domingo, 6 out. 1946, página 11

FORMAÇÃO DE DISCOTECA(X)

A palavra virtuosidade tornou-se hoje suspeita nos meios musicais eruditos se bem que disponha ainda de prestígio perante o grande público. Na verdade, ela é hoje empregada mais em sentido pejorativo do que na sua acepção.

0 fato é que a virtuosidade, no início do romantismo, não queria dizer qualidade imitativa, mas qualidade criadora. Nós sabemos que os magos da virtuosidade, Liszt e Paganini, eram espíritos criadores. Oficialmente atribui-se a esses dois músicos a inauguração da virtuosidade; mas — se conforme Paul Bekker e, outros eminentes musicólogos — a virtuosidade consiste principalmente no dom de improvisação, Mozart já poderá ser considerado um perfeito virtuose.Os documentos da época testemunham do seu fabuloso dom de improvisador; entre inúmeros episódios, ficaram famosos o do concerto em Praga, na época do lançamento de "Don Giovanni", em que ele improvisou ao piano durante hora e meia, sobre motivos de "Nozze de Figaro" e o do concerto de órgão em Leipzig, quando improvisou com tal grandeza e majestade que Doles, o discípulo de Bach, exclama, deslumbrado: "João Sebastião ressuscitou! "

A virtuosidade é, pois, uma concentração da força, uma exploração dos recursos da sonoridade instrumental; é a técnica a serviço da concepção unitária e espiritual da obra, e não a finalidade desta.

Já tenho observado pessoas reagirem diante de Liszt, como se se tratasse de um músico preocupado apenas com efeitos exteriores e brilhantes. Neste ponto, ele se acha tãoprejudicado quanto Chopin — quero dizer, prejudicadopelo abuso de pianistas que martelam interminavelmente rapsódias, tarantelas, "La Campanella" e não sei mais quantos números de êxito assegurado diante do público, e contra os quais projetei mesmo uma vez, fundar uma companhia de seguros.

Entretanto, em muitas de suas obras Liszt atinge um nível artístico superior. Basta lembrar os "Doze estudos de execução transcendentes", as admiráveis sinfonias corais "Fausto" e "Dante", os poemas sinfônicos "Os Prelúdios", "Prometeu", a "Missa de Grau", o oratório "Cristus", e — "last but not least" — a prodigiosa "Sonata em si menor".

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É sabido que Schumann tinha dado primitivamente à sua sonata para piano em fá menor ops.14, o título de Concerto em orquestra. Dedicando sua sonata a Schumann, parece que Liszt o acompanharia na mesma intenção. De fato, o plano grandioso da obra, a amplitude de suas proporções (que talvez não tenha sido ultrapassada nem pelo próprio Beethoven) dão-lhe o aspecto de um Concerto — e de fato o é, com muito mais razão, pelo menos, do que o Concerto Italiano de Bach, que é uma Sonata clássica bem típica.

A Sonata em si menor sempre provocou em mim — em diversas vezes que me foi dado ouvi-la por pianista de passagem pelo Rio — uma

emoção e um interesse especiais. Sua gravidade, a atmosfera de noturna poesia e áspera inquietação, conduzem o ouvinte à sugestão de que se acha diante de um drama metafísico, aumentando-se ainda tal convicção pela unidade orgânica da obra, que anuncia de longe as famosas intenções cíclicas de Cesar Franck e até mesmo o descobrimento de novas sonoridades. Poucas obras musicais, na verdade, me tem dado esta forte sensação do pensamento trabalhando sobre si mesmo e voltando sempre a um ponto nuclear, o que oferece um testemunho a mais desta grande proposição: a de que o homem, desde o princípio, recebeu um germe que se desdobra em tempos diversos e quer sempre dizer a mesma coisa, que não é outra se não afirmar o verbo.

Segundo críticos ilustres, a situação de Liszt como compositor será sempre sujeita a flutuações. A personalidade do homem Liszt, de resto, é tão maravilhosa e tão forte, que chega, às vezes, a predominar a do músico. De qualquer maneira, não se pode negar que obras como "Sonata" ou como sinfonia coral "Fausto" possuem elementos de permanência, elementos de grandeza suficientes para atravessarem os tempos.

Assistimos nestes últimos anos a este espetáculo extraordinário, e imprevisto: um dos maiores da nossa época, aquele que encarnou o gênio da invenção, o homem que praticou experiências musicais de toda espécie — o Picasso da música — , assistimos Stravinsky, no seu livro "Poétique Musicale", onde se reúnem suas conferências, dadas na Universidade de Harvard, tomar posição contra Wagner, a favor de Verdi !

0 autor de "Sacre du Printemps" denuncia no sistema Wagneriano a tendência arte-religião, a retórica pseudo-mística e guerreira, o mal-entendido que procura fazer do drama um composto de símbolos, e da própria música um objeto de especulação filosófica.Declara que existe mais substância musical e mais invenção verdadeira na simples ária "La donna e mobile", que na retórica e nas

vociferações da "Teatrologia".Eis aí um sinal típico do declínio da "religião

wagneriana'', friso, mas não da música wagneriana, que não pode morrer assim de um momento para outro...

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Não é à toa que o esplendor do movimento wagneriano coincide com a decadência religiosa do século XIX. Concebeu-se então o drama lírico como a reunião de todas as artes — o que de fato a Igreja Católica já realizara; isto provocou de Mallarmé um ensaio admirável, em geral cuidadosamente escondido: "Cérémonials". Citarei algumas passagens do mesmo, devido à relação que tem com o assunto em foco: "Quelle représentation, le monde, y tient...", e: "Jai le sentiment, dans ce sanctuaire, d'un agencement dramatique, exact, comme je sais que ne le montra autre part jamais séance constituée pour un tel objt". E esta notável observação: "Contrairement par exemple aux usages d'opéra: ou tont advient, pour rompre la celest liberté de la mélodie, sa condition, et l'entraver par la vra semblance du développement régulier humain". ("Vers et Prose", Librairie Perrin & Cie, 18^ éd., pags. 195-215).

Esse ensaio denuncia claramente a insuficiência do cerimonial leigo. Ora, é evidente que Wagner quis realizá-lo, na ópera. Sentiu-o, antes de ninguém Baudelaire: é o que transparece no seu célebre estudo sobre "Richard Wagner", publicado em 1861, na "Revue Européenne". Na próxima crônica faremos um pequeno comentário a respeito.

(0 cronista dirige-se à eletrola e faz passar os discos da "Sonata em Si menor", de Liszt, na execução de Vladimir Horowitz)

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LETRAS E ARTES, domingo, 13 out. 1946, página 11

FORMAÇAO DE DISCOTECA

(XI)

0 famoso artigo publicado em 1861, na "Revue Européenne", Baudelaire declara os motivos de seu entusiamo por Wagner. Elogia-o pela sua valorização do mito, por ter compreendido admiravelmente o caráter sagrado, divino, do mito. Tendo ido buscar em antigas lendas a matéria para seus dramas líricos, Wagner elevou de nível a música, que tornara a cair na superficialidade e na frivolidade.

Entusiasmou-se também Baudelaire pelo fato de Wagner compreender o sentido das analogias, das correspondências cuja doutrina ele estabelecera (segundo as teorias de de Swedenborg) num soneto célebre. Seria surpreendente que o som não pudesse sugerir a cor, que as cores não pudessem sugerir uma melodia, e que o som e a cor fossem impróprias para traduzir idéias; as coisas tendo-se exprimido sempre por uma analogia recíproca, desde o dia em que Deus proferiu o mundo como uma complexa e indivisível totalidade .

Segundo ainda o autor de "Les Paradis Artificieis", nenhum músico como Wagner para "pintar" o espaço e a profundidade, materiais e espirituais; e para traduzir tudo o que existe de excessivo, de imenso, de superlativo, na alma e no espírito do homem. E acrescenta elucidativamente que, escutando essa música despótica, encontrava de novo as vertiginosas concepções do ópio.

Na comovedora carta que dirigiu a Wagner em 1860, um ano antes da publicação do artigo que nos ocupa, Baudelaire confessa que, de música,só conhecia alguns trechos de Weber e de Beethoven. E já estava entrando nos 40 anos!

A uma distância de quase um século do movimento romântico, estamos entretanto longe de desprezar certas teorias e certas reações das figuras do Romantismo que conhecemos melhor.

Se adotamos o conceito de música pura, poderemos, talvez sorrir das complicações estéticas de Baudelaire e de Wagner, que, entretanto, são bem inocentes se as compararmos a tudo o que têm experimentado os músicos dos nossos dias. Basta compulsar um manual de música moderna para ver a que excesso de teorias e de pesquisas os músicos atuais são arrastados: o que é próprio, de resto, do espírito da nossa época, época polêmica, inquieta, agressiva e insone.

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A predominância do timbre leva os compositores até usarem o serrote (que já ouvimos de resto, aqui no Rio), além da infinidade de sistemas de atonalidade e de emprego de elementos extra-musicais como colocação de luzes, cartazes berrantes com letras disparatadas indicando os "valores" atonais de cada movimento da composição, etc. Não se pode mesmo acusar os escritores atuais de gostarem da música "literária" já que os músicos — inclusive músicos de gênio — são os primeiros a fazerem-na.

Com isto quero apenas acentuar que os românticos eram ainda uns inocentes do ponto de vista "literário", e que não devemos portanto acusá-los de incompreensão da música pura...

Pensando bem, a reação de um simples amador de hoje, sem responsabilidade diante da crítica, nem compromisso com os teóricos de todas os matizes, pensando bem, sua reação diante da música de Wagner talvez não seja muito diferente da de Baudelaire. . .

Existe de fato, na música de Wagner, um elemento de feitiçaria. (Há muitos anos atrás já observávamos isto, o tocador de fagote Evandro Pequeno, e eu). Tais elementos, obtidos sobretudo por um conhecimento quase incrível dos recursos da orquestra, seriam utilizados depois pelo seu discípulo Ricardo Strauss, mas, evidentemente, sem o gênio do mestre, Wagner seria uma técnica moderna a serviço de um pensamento medievalesco. É impossível deixar de vê-lo no gabinete do Dr. Fausto, sem alusão, de resto, ao Wagner comparsa do drama goetheano...

Ele mesmo declarou que suas obras são "fatos musicais tornados visíveis". Para ele os sons tornam-se atores; a harmonia é uma ação que se representa; ao contrário o cantor visível é um som que se tornaria verbo e a ação cênica é uma ilustração do acontecimento harmônico.

Ainda segundo Paul Bekker, a atual oposição de Verdi a Wagner (que não estranhamos em muitos mas sim em Stravinsky) provém menos do contraste de concepções musicais, do que dos meios empregados, que por sua vez dependem do caráter nacional de cada compositor. Wagner coloca na orquestra o centro de gravidade do acontecimento musical, ao passo que Verdi faz da voz humana o refletor desse acontecimento.

Na admirável carta que dirigiu a Berlioz, Wagner revela como encontrou no drama da Grécia Antiga o princípio do seu ideal artístico. É interessante notar que Mallarmé se inspirou na mesma concepção, ao escrever o ensaio sobre o Cerimonial, a que aludi na crônica passada. De resto, Mallarmé celebrou Wagner em prosa e verso.

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Não esqueçamos também este detalhe importante: na mesma carta Wagner assinala que se preocupa em elevar o nível artístico do público — o que não será um pequeno motivo de glória. Imagine-se agora, com o recuo do tempo, o que não terá sido sua luta, sobretudo na Paris de 1860, em que predominam a canção ligeira, a opereta, o espírito do "music-hall"!

Mas... não se pode disfarçar o lado antipático de Wagner: o seu ideal de universalidade (baseado na grandeza do mito) chocou-se com o seu nacionalismo exaltado. Como perdoar ao homem que escreveu na frontal da sua casa, em Bayreuth: "Eu faço música para o povo alemão."?

Que o artista queira se inspirar em motivos nacionais, está certo; mas fazer arte só para seu povo... conduz à negação do espírito internacional e atenta contra o próprio princípio indiscutível da unidade do gênero humano. Que diferença de Mozart, que aos 22 anos, escrevia a seu pai: "Creio estar em condições de honrar qualquer país que seja. Se a Alemanha, minha cara pátria, de que me orgulho, não me quer acolher, será preciso, por Deus, que a França ou a Inglaterra se enriqueçam com mais um hábil alemão — e isto, para vergonha da nação alemã".

0 fato é que, principalmente durante a guerra, quando ouvíamos Wagner pelo rádio, nos enervávamos. "Excessivamente alemão e belicoso", — era nossa sensação imediata. 0 músico predileto de Hitler".

De qualquer forma, uma discoteca, mesmo modesta, não pode dispensar os Prelúdios das óperas — e não só os Prelúdios do 12 ato. Para estes maravilhosos trechos da música wagneriana é que vão as minhas predileções. Se bem que páginas como o "Idílio de Siegfried", "A Viagem de Siegfried ao Reno", o "Encantamento de Sexta-Feira Santa" e os Coros de Parsifal, além de outros, sejam fonte eterna de deslumbramento.

(0 cronista dirige-se à eletrola e faz passar o disco de PRELÚDIO DE LOHENGRIN, na execução da NBC Symphony Orchestra, sob a regência de Arturo Toscanini).

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LETRAS E ARTES, domingo,20 out. 1946, página 11

FORMAÇAO DE DISCOTECA

(XII)

É falso enxergar na música moderna um processo de reação contra a música clássica. Na verdade, essas etiquetas — clássico, romântico, moderno — obedecem mais a um critério de comodidade de referências do que um critério permanente filosófico ou estético. Tal método é baseado na observação do tempo; divide-se cronologicamente a produção musical, quando melhor fora que se estudassem os estados de espírito, não só do grupo social, como individual.

A chamada música moderna, ainda mais que a pintura moderna, tem sido alvo de incríveis calúnias e incompreensões. Ainda há poucos dias uma pessoa mais ou menos culta perguntava-me muito a sério, se é verdade que Villa Lobos escreve música mesmo; se usa o pentagrama e observa as claves conhecidas.

Não existe de fato oposição entre a música moderna e a clássica: existe apenas o desenvolvimento lógico de um processo artístico que se acelerou nos últimos cinqüentas anos, em correspondência com o aceleramento do processo da própria existência atual e das novas condições e meios técnicos criados.

0 germe da música moderna vem de longe. Não cuidem os céticos que somente Debussy, Stravinsky, Schonberg ou Schostakovich tiveram ou tem que sustentar batalhas contra os conservadores:Palestrina, Montevera, Gluck, Mozart, Beethoven e muitos outros introduziram novidades técnicas em suas obras, abrindo caminho aos "loucos" de hoje.

0 primeiro quarteto piano e cordas de Mozart (K . 478) foi recusado pelos editores. Já em pleno romantismo um crítico famoso propôs que se "corrigissem" os compassos iniciais do quarteto em dó maior (K. 465) do mesmíssimo Mozart.

Eis o que diz sobre o assunto o grande musicólogo moderno vai por mau conhecedor e divulgador da música clássica:

"Uma opinião muito espalhada é de que a música moderna vai por mau caminho. Faz-se a sua comparação com a música de Bach,Haydn, Mozart e Beethoven. Como se reconhecia que esta música era bela e a música moderna soa de uma maneira inteiramente diferente, tira-se a conclusão lógica de que a música moderna não é bela. Não se toma em consideração a influência da lei do menor esforço do ouvinte, esquece-se que se deve contar com a relatividade da idéia de beleza e

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e com a variabilidade dos elementos que a compõem. Esquece-se que Bach, Haydn, Mozart e Beethoven eram tão modernos para o seu tempo como os compositores de hoje para o nosso. Esquece-se que não é arbitrariamente mas por necessidade, que os músicos jovens fazem uma música diferente.Esta necessidade provém do fato de serem homens diferentes dos seus antepassados; outro amálgama de sensações germina e vive neles e a força criadora da vida age precisamente sobre esta mentalidade diferente".

Conheço homens aos quais não se pode de forma alguma negar o dom da musicalidade, e que entretanto resistem com toda a energia à penetração da música moderna. Parecem-me mesmo inconversíveis. Como explicar um tal fenômeno? Por um preconceito oriundo de hábitos de rotina, por uma espécie de cristalização das faculdades estéticas. Evidentemente nem tudo é bom e digno de ser retido na vasta produção musical moderna, como de resto nem tudo é bom, na produção clássica: e quanto à romântica, nem é bom falar... Mas o que nos espanta é a reação diante do princípio, diante dos novos critérios de valor estético em que se baseia a música moderna.

Parece impossível que um amador de música que compreende, sente e ama Bach, Mozart ou Beethoven não se comova diante do "Quarteto" ou dos "Noturnos" de Debussy; diante de "Petrouchka" ou da sinfonia dos salmos de Stravinsky; diante da "Bachiana ne 5" ou do "Choros 10" de Villa Lobos; ou do "Concerto n? 2 para violino" de Prokofieff. Compreenderá esse amador as audácias e novidades introduzidas por Chopin, Liszt, Schumann, Wagner, cujas composições ele ouve — e com razão — em êxtase?... Saberá ele que o velhíssimo canto gregoriano é um depositário de germes revolucionários que se entesouram através dos séculos, tendo tido influência sensível sobre a mentalidade de muitos músicos modernos e não dos menores?...

É fácil observar que uma das acusações mais correntes que se fazem à música moderna é que ela teria abandonado ou desprezado a melodia passando para o primeiro plano outros elementos de ordem secundária, como seriam o ritmo e harmonia.

Tal acusação provém de uma concepção estratificada da melodia e do seu papel no plano da composição. É difícil, de resto, definir o que seja melodia: o que se pode afirmar é que existe mais de um conceito de melodia, e que, sobretudo, a melodia, que é conhecida no seu sentido mais geral, isto é, a de elemento preponderante na ópera italiana do período decadente (século XIX) não pode mais exercer somente a seu modo uma influência tirânica, pois não corresponde mais às necessidades orgânicas da vida atual.

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Por motivos que seria longo e fastidioso examinar e expor aqui, pode-se afirmar que na verdade os compositores modernos— pelo menos os de maior envergadura — libertaram a melodia da prisão das estafadas fórmulas oitocentistas; e como, declara o eminente musicólogo português Fernando Lopes Graça — "a melodia contemporânea reencontrou a variedade, a riqueza e a mobilidade estrutural da melodia gregoriana e da dos velhos polifonistas, com a sua magnífica expansão linear".

A reprodução infindável de modelos, mesmo, ilustres, conduz sem dúvidas a um esgotamento do interesse artístico que compromete a própria vitalidade das obras de arte, incapazes depois de períodos de repetição, de produzirem a chama necessária à circulação da vida espiritual.

Voltaremos ao assunto na próxima vez.

(0 cronista dirige-se à eletrola e faz passar os discos de uma das últimas composições de Prokofieff, a SONATA Ne 7 , OP. 83, na execução de Wladimir Horowitz. Esta Sonata foi tocada, também magistralmente, no Rio, há poucos dias, pelo novo e extraordinário pianista Willian Kapell).

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LETRAS E ARTES, domingo, 2 nov. 1946, página 11.

FORMAÇÃO DE DISCOTECA

(XIII)

Estou convencido de que os amadores que não se deixam penetrar pela música moderna assim o fazem em grande parte porque não ouvem os autores atuais com a mesma assiduidade com que ouvem os clássicos, e os românticos. No Brasil, na validade, o ambiente não é favorável, pois não possuímos ainda organizações culturais capazes de educarem os interessados no assunto — apesar do esforço isolado de alguns verdadeiros heróis.

Há dias, pregava o conhecido crítico musical Sr. Eurico Nogueira França a necessidade de se fundar aqui uma Sociedade de Música Moderna. Só poderemos aplaudir semelhante idéia, que desejamos se torne em breve concretizada, — se bem que pessoalemte achemos — conforme assinalamos em crônica anterior — que a etiqueta moderna obedeça mais a um critério prático de referência, do que a uma realidade estética e filosófica.

De fato, poderemos chamar, por exemplo, Debussy, de músico? Ele já é para nós um clássico. E que é clássico no nosso conceito? Clássico é o autor que permanece, cuja obra se transmite de geração a geração, com interesse e valor sempre renovador e universal. Não resta dúvida que Debussy "fica". Portanto, é um clássico. Não devemos observar os códigos convencionais de classificação segundo época: Bach, por exemplo, é clássico, porque permanece; e é também moderno porque produz vastas ressonâncias no homem de hoje: é mais moderno do que Sibelius, por exemplo, que ainda está vivo.

Os recalcitrantes precisam abandonar a falsa concepção de que a música moderna foi feita da noite para o dia, por meia dúzia de malucos que só se preocupam com exterioridades e sensacionalismo, fazendo barulhos com elementos do "jazz" ou espantando o burguês com dissonâncias ásperas. A música moderna, ao contrário, só pode ser compreendida por quem aprofundar o espírito da velha música, da polifonia e da música romântica.

Duas restrições, aliás com base certa, podem ser feitas à música moderna: 1 2 _ corresponde a uma fase de transição social, aceleração da luta de classes e diminuição do papel histórico do indivíduo; 2e-apresenta um excesso de pesquisas e de complicações teóricas, perdendo em ingenuidade, ou espontaneidade.

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Estas restrições, repito, têm base na realidade: — mas o fato é que nenhum compositor moderno tem a culpa disto, individualmente. Sempre achei, e continuo a achar, que o indivíduo (sobretudo o indivíduo de força criadora) reage sobre a sociedade; mas não há dúvida que modernamente o grupo social pesa demais sobre a formação e as reações do indivíduo: tal fenômeno de fácil observação,

K.influi poderosamente sobre a criação artística.

A tragédia social envolve de todos os lados a pessoa mais inatenta e distraída do mundo; a tragédia social força a consciência dos inconscientes e desencadeia possibilidades adormecidas em períodos de maior tranqüilidade coletiva. É por isso, que de há muito acho acadêmico discutir a participação dos artistas na luta social: queira ou não queira, todo mundo hoje participa. Não é preciso entrar em nenhum partido político, basta entrar numa fila...

Quanto à perda da espontaneidade ou da ingenuidade: isto é devido a um encadeamento de motivos muito complexos, que certamente não iremos desembrulhar aqui; mas basta refletir no caráter excessivamente polêmico da nossa época, época de agressão e de incomparável mal-estar social, para ver que as duas restrições procedem afinal da mesma origem.

Existem, entretanto, muitas tentativas de recuperação da simplicidade, isto é, da captação do que existe de essencial e permanente na alma humana; de que são testemunhos as sucessivas "voltas" a Bach, a Scarlatti, a Mozart, a Pergolesi, etc. Tentativas estas, de resto, não isentas de perigos, visto os compositores se apegarem muitas vezes a pesquisas de laboratório que podem redundar num artificialismo indesejável, por mais refinadas que sejam suas

intenções.

No seu curto, mas substancioso ensaio sobre a história da música, assim escreve o musicólogo Percy C. Buck:

"A batalha que presentemente se trava é um desafio à velha concepção da tonalidade; começou, como era lógico, por um desafio à dominante concepção do acorde como unidade da tonalidade, e foi por via da França que pela primeira vez se soube que o desafio não era uma simples e vã afirmação pessoal de revolucionários, mas .que os compositores tinham verdadeiramente aberto caminho numa nova e almejada região".

Quando ele escreve "por via da França", refere-se evidentemente a Debussy e ao seu papel histórico na libertação da música do impasse em que se achava, depois do movimento wagneriano, com as tremendas experiências retóricas de Ricardo Strauss, Max Reger e outros que tais.

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Logo depois de Debussy, o mencionado musicólogo enumera os nomes ilustres de Schonberg, Scriabine e Strávinsky como "os três grandes sacerdotes da religião da música moderna". Schonberg, segundo ele, é sobretudo um doutrinário; Scriabine, apesar de seu "sentido da beleza e enorme energia", não deixou escolas; a Strávinsky pertence a maior capacidade de ressonâncias, pela extraordinária influência que exerceu na carreira de Goossens, de Artur Bliss, dos músicos do "Grupo dos Seis", de Paris, e de Prokofieff — um dos maiores compositores da nossa época — além de outros.

P.S. — Na última crônica desta série, a citação truncada é de um livro de Paul Bekker.

LETRAS E ARTES, domingo, 10 nov. 1946, página 11

FORMAÇÃO DE DISCOTECA

(XIV)

NO PÓRTICO dos tempos modernos a figura de Debussy ergue-se cercada de uma aura de lenda, que começou a se formar ainda em vida do músico, e que continua a crescer através dos anos. Não há dúvida, que se trata de uma das individualidades mais fascinantes, de toda a história da música.

Quem poderá compreender na sua totalidade o enigma que encerra a obra de um grande criador de arte? Incorre-se sempre — por maior que seja a admiração que se lhe dedica — incorre-se no perigo de se ver uma das faces da sua fisionomia, o perigo de não penetrar as suas intenções mais secretas. Relativamente aos músicos máximos, o véu que encobre, não só o sentido de tantas criações maravilhosas, como também o de tantas existências profundas, tem sido descerrado, em parte por intensivos trabalhos de exegese e biografia. Mas certos aspectos significativos permanecem ainda semi-velados. Quase nada se sabe, em geral, a respeito da parte profana do espírito de Bach, já que toda a atenção tem sido voltada para o seu misticismo. A religiosidade, a gravidade do espírito de Mozart têm sido ocultadas pelas sua face profana e quase bufa. 0 Beethoven eufórico de tantas sonatas e concertos cede o passo do Beethoven zangado e agressivo de certos sinfonias e dos quartetos. E assim por diante.

Quanto a Debussy, podemos ver nele apenas o agente supremo da reação a Wagner, o fundador do impressionismo musical,do naturalismo musical, ou um criador de dissonâncias que desesperam os ouvidos acadêmicos habituados a rotina clássica? Não, isto é rotina, é muito pouco.

Os paralelos em geral são perigosos. Uma certa crítica quis compará-lo a Chopin, que como ele inventou audácias de harmonia, e também pela importância de sua obra pianística; ou então a Mozart, pelo extremo refinamento do seu espírito. Ora ele não apresenta, nem a morbidez do primeiro nem a envergadura do segundo, do qual diverge do resto, num aspecto de primeira importância: Mozart é uma sensibilidade 100% musical, ao passo que Debussy é também uma sensibilidade literária e pictural. Mas não há dúvida que ele se aparenta aos dois pela figura do lirismo. Quanto a Stravinsky, é mais pesquisador que Debussy. A unidade de espírito deste é mais acusada: de "La Damoisell Elue " até a sonata de piano e violino, sua última produção, nota-se a continuidade de um espírito que, através de todas as invenções, permanece sempre o mesmo.

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Como criador de uma nova linguagem sonora, o lugar de Debussy é sem igual na história da música; pode-se mesmo dizer que ele divide os tempos. Depois dele, nenhum compositor marcante deixou de estudá-lo recebendo a influência sensível do seu gênio personalíssimo.

É verdade que os russos, e em particular Mussorgski, tiveram a intuição de uma nova técnica musical; é sabido, que a partitura de "Boris Godvinov", e uma viagem à Rússia, decidiram o destino de Debussy. Mas este não só teve a intuição, mas a consciência plena de que os novos tempos tinham chegado, e que os antigos moldes de expressão iam ser, não destruídos, mas refundidos, porque, na verdade, não existe tábua rasa completa. E Debussy, se foi um inovador, e dos maiores, trouxe a sua contribuição poderosa para a restauração da ordem clássica: seu amor aos grandes mestres do cravo, principalmente a Rameau, deu-lhe o gosto da medida da clarificação dos planos sonoros; mas uma medida que nunca perturbou o lirismo, pelo contrário, descobriu-lhe novos ângulos, alargando consideravelmente os domínios da matéria musical, que adquiriu maior plasticidade e fez do colorido, não um elemento exterior e decorativo — como se observava, de modo geral, nos russos — mas um elemento importante da própria substância da obra.

A magia do Oriente, pois que se manifesta de maneira um tanto superficial em muitos ocidentais agiu sobre Debussy para enriquecer seu espírito de tendências pagãs, cujas dominantes

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principais seriam a sensualidade e o amor à natureza. Mas, repetimos, foi na antiga tradição francesa que ele encontrou a chave ordenadora das suas tendências. Porque Debussy foi antes de tudo uma inteligência reguladora. Escutai por exemplo o "Quarteto", o prodigioso Quarteto, uma de suas obras-primas: sem dúvida o ímpeto é violento, digamos mesmo selvagem (nota-se de modo quase físico a presença do Oriente), mas não espereis transbordamentos retóricos nem preocupações onomatopaicas: a linguagem é ao mesmo tempo áspera e polida, rebelde e e suave; comigo mesmo, sem interferências de opiniões críticas alheias penso: eis o romantismo domado... sem que deseje atribuir a Debussy a etiqueta clássica, a não ser no sentido a que me referia na crônica anterior: é clássico porque suas obras apresentam virtudes de permanência.

É muito curiosa a reação de Debussy diante da figura de certos músicos. A Gluck, por exemplo, não perdoou o ter aberto o caminho para Wagner. No seu precioso livro "Monsieur Crochê Antidilettante" ele opõe Rameau e Mozart a Gluck. Entre outras coisas, eis algumas impertinências que ele diz do autor de "Alceste", numa "Carta aberta":

"Fizestes predominar a ação dramática sobre a música... será isto admirável?... Em todo caso, prefiro Mozart, que vos esqueceu

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completamente — Mozart, o audaciosíssimo — e não se preocupou com outra coisa anão ser com a música".

Quanto a Beethoven, admirou-o durante toda a sua vida, embora lhe censurasse o descriterismo da "Sinfonia Pastoral". Acha que em outras páginas de Beethoven existe uma muito mais per feita transposição sentimental do que é invisível na natureza.

Voltaremos a Debussy na próxima crônica.

(0 cronista dirige-se à eletrola e faz passar os discos do QUARTETO EM SOL MENOR, OP. 10 de Debussy, pelo Quarteto de Budapest).

P.S. — Na crônica anterior, além de outros descuidos, lê-se o seguinte: "De fato, podemos chamar, por exemplo, Debussy, de músico?"em vez de "De fato, poderemos chamar, por exemplo, Debussy de músico moderno?", como está no original.

203LETRAS E ARTES, domingo, 8 dez. 1946, página 14.

M U S I C A

FORMAÇAO DE DISCOTECA(XV)

Evidentemente não é possível colar em um artista do porte de Debussy uma etiqueta apenas de chefe da escola e caracterizá-lo como fixador do impressionismo musical. Porque ele é, não só o criador de uma nova linguagem sonora como o intérprete refinado e sutil de certas emoções e certos estados muito íntimos da alma humana, pelo qual ele se aparenta com Chopin, cuja escrita pianística de resto, com suas audácias de harmonia, ele conseguiu ainda aprimorar.

Debussy criou também uma atmosfera própria, uma atmosfera de magia nunca antes percebida; mesmo os críticos menos "literários", não podem fugir ao sortilégio, pois que tal atmosfera banha numa poesia verdadeiramente inigualável.

Debussy, criou "uma escrita baseada, no equilíbrio das ressonâncias naturais de um acorde e na independência dos sons harmônicos considerados como eflorescências naturais e necessárias do som". E note-se fez isto sem nenhum espírito de anarquia, antes procurando libertar a escrita clássica de um grande número de imposições arbitrárias e convencionais.

Se me perguntassem qual a obra representativa de Debussy,a mais digna de figurar numa discoteca sintética e de alto gosto, eu».indicaria logo os dois cadernos de "Prelúdios". Existem deles as admiráveis interpretações gravadas de Walter Gieseking .

Mas naturalmente, ainda para piano, poderíamos escolher as "Estampes", as "Images", ou ainda, "Children's Corner", nas interpre'taçôes já hoje clássicas, do citado Gieseking, ou de Alfred Cortot e Rubinstein.

Da obra para orquestra, se quisermos indicar as peças mais belas, só teremos o embaraço da escolha. A menção do "Prélude à l'Après — midi d'un faune" é obrigatória, apesar da popularidade dessa magnífica obra, que foi gravada de maneira persuasiva por Walter Straram e sua orquestra. (Deixem de lado a interpretação empolada e retórica do Sr. Stokowski).

No momento, poderão ser encontrados ainda com relativa facilidade os três prestigiosos "Nocturnes", bem como "La Mer" e "Ibéria", peças de uma rara beleza orquestral, que devem ser colocadas

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entre as grandes páginas da musica sinfônica. Infelizmente, é impossível obter agora as poucas partes gravadas de "Le Martyre de Saint Sebastien", obra de vasto interesse metafísico, que demonstra a profundidade do espírito de Debussy, capaz de dar o pulo e abraçar os dois mundos.

Não esqueçamos entretanto essas pequenas obras-primas que são as composições para canto, em que os grandes poetas da França, começando por Charles d'Orléans, Tristan, L' Hermite François, Villon, passando por Baudelaire, até Mallarmé e Verlaine, tiveram o seu incomparável ilustrador musical.

Existem, de várias dessas peças para canto,"charme" incomparável, discos que gravaram a conhecida interpretação de Maggy Teyde, com Alfred Cortot ao piano.

Uma bela coleção de discos na inteligente e sensível transmissão de Artur Rubinstein, é a que reúne, seis das mais famosas peças para piano de Debussy, tiradas, salvo uma, de "Estampes" e "Images" a saber: "Soirée dans Grenade", "Jardins sous la pluie","Reflets dans l'eau", "Hommage à Rameau", "Poissons d'or", e "La plus que lente — valse".

Aconselho-a vivamente a todos os amadores que se queiram iniciar nos mistérios da arte de Debussy.

É necessário destruir a confusão que se estabeleceu no espírito de muitas pessoas, que vêem em Debussy uma espécie de literato da música. Tais pessoas são levadas a isto porque se impressionam com os títulos preciosos e rebuscados de muitas peças do mestre das "Estampes".

Na verdade o que se deu em Debussy resulta da qualidade especial de seu gênio, pronto a assimilar todas as tendências de sua época; na literaturaena pintura de seu tempo ele encontrou outras zonas de ressonância que seu espírito procurava: daí essa adequação admirável do seu gênio musical que, sem o gigantismo próprio de Wagner, procurou e encontrou a unidade. A extensa e profunda assimilação feita por Debussy, de várias correntes e estilos, longe de resultar num ecletismo decorativo, resultou nessa coisa prodigiosa,fenômeno sem par, superior a todas as pesquisas feitas por ele no mundo impressionista e no simbolista: o debussysmo. Porque a revolução de Debussy foi mais importante que a de Wagner. Wagner foi um ponto de chegada, Debussy foi um ponto de partida. A nova era, musical não se abriu sobre o signo de indigestas mitologias nórdicas que celebrariam o ideal guerreiro, abriu-se sob o signo da liberdade, das mitologias eternas, do amor e da natureza, mais atentas ao indivíduo do que aos nacionalismos.

Na galeria das figuras supremas da música, o autor de "Pelléas et Mélisande" (de que infelizmente não podemos mencionar,

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por agora,gravações) levanta-se aos nossos olhos, ao ladp de Mozart e Chopin, como um tipo de artista particularmente grato aos poetas — aos poetas que deveriam ser todos os homens.

206LETRAS E ARTES, domingo, 16 fev. 1947, página 5.

FORMAÇAO DE DISCOTECA

(XVI)

A carreira de Igor Stravinski acha-se intimamente ligada ao desenvolvimento do próprio processo estético da nossa época, época de pesquisa e do apogeu do espírito de laboratório. Os bocós (inclusive bocós muito lidos e ilustrados) pasmam diante da versatilidade de Stravinski; não podem nem de longe compreender que as suas diversas "fases" apresentam aspectos diversos de um espírito inquieto e multi­forme que procura, afinai, o que todo o grande artista procura: a unidade. Sem precisar lembrar os três famosos períodos de Beethoven, mencionaremos a carreira de Mozart, sua passagem do estilo galante para a severidade do contraponto e fuga, que inicia com os seus quartetos dedicados a Josef Haydn, e depois uma volta do estilo galante misturado com a fuga, que caracteriza sua produção de três ou quatro anos antes da morte. Mas evidentemente o século XVIII não continha os germes de inquietação que o século XX contém (Mozart morreu no começo da Revolução Francesa).

Assim a carreira de Stravinski, semelhante em muitos pontos à de Picasso, é altamente representativa do espírito da nossa época, não querendo com isto dizer que o autor de "Noces" seja apenas um observador do nosso tempo: porque ele mostra, com as suas incursões nos diversos estilos dos mestres de séculos passados, que a cultura, quando elevada a um plano superior, revela a ansiedade do espírito humano procurando, através de técnicos diferentes, a perfeição do conhecimento. Mostra as variadas fases da cultura encadeada umas às outras, em diversos tempos e em diversos países: e que pode contemplar, como do alto de uma montanha, este espetáculo soberbo, compreenderá e aceitará a unidade dos espírito humano.

Assim Stravinsky, nesse afresco prodigioso que é "Le Sacrè du Printemps", assiste, através dos ritos dos antigos Citas, a própria formação da terra, até chegar, passando por "Edipus Rex" ou "Apollo Musagete", a vida de salão dos nossos dias, com as magníficas dissonâncias de "Le Jeu de cartes".

De resto, estes famosos saltos de estilo operados por Stravinsky recebem antecipadamente aprovação da parte daquele que os manuais apresentam como o músico clássico por excelência — Mozart.

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De fato, numa extraordinária carta a um amigo, o autor de "Don Giovanni" confessa ter a cabeça fervendo de idéias musicais: e, se achava em outros músicos o molde para aquela idéia, apropriava-se do mesmo e o refundia, pois assim ganhava tempo para passar a outra operação, já que o seu "demônio" não podia deixá-lo sossegado.

É claro que nem todas as realizações de Stravinsky oferecem o mesmo interesse e uma perfeição igual. Em todo o caso, mesmo nas obras muito impregnadas do espírito de laboratório adivinham-se marcas de um artista poderoso. É fácil observar que Stravinsky é um gênio pesquisador. Mas não sabemos se a posteridade ratificará o juízo de certos críticos atuais que acreditam ter emitido um parecer definitivo, o de que Stravinsky não é um criador de música. Quanto a nós que não temos nenhuma responsabilidade de crítica, não podemos disfarçar e confessamos que ao ouvir "Petrouchka", ou "Le Sacre du Printemps", ou "Noces" ou "La Symphonie des Psaumes", ou mesmo esse inefável e caluniado "Apollo Musagete", sentimos nele um espírito gerador de alta emoção musical: pois aquelas obras nos despertam um gozo estético do mesmo nível das grandes páginas dos mestras do passado. Esta é a chave da questão — e não a absurda e infantil preocupação de torneio de valores — a preocupação de saber se Stravinski é grande como Haydn ou maior do que Schumann...

0 fenômeno Stravinsky é um fenômeno de intercorrência de culturas, que também caracteriza a nossa época. Nesse ponto, frisamos, deve ser louvada. A intercorrência das culturas só pode produzir resultados favoráveis no desenvolvimento e progresso harmônico da intelectualidade de Schumann.

Stravinsky é um artista obcecado pela dança. Stravinsky é uma fabulosa mistura de bárbaro e civilizado; é uma personalidade riquíssima de contrastes, sendo inútil procurar na sua obra o que ela não quer nem pode dar — uma impossível coerência, uma monotonia e uma insipidez que a obra de Grieg, por exemplo, oferece com tanta generosidade.

A ciência da combinação de instrumentos atinge em Stravinsky um grau supremo; ciência essa que foi comprometida em Ricardo Strauss, pelo seu mau gosto e excessivo peso de erudição alemã.Em Stravinsky a utilização de certos elementos, como a bateria, é sempre feita com um senso inigualável da distribuição de valores; sopro, cordas e metais recebem um tratamento de igual carinho, sendo este um dos principais motivos de prazer intelectual que esta obra produz. Obra que nos apresenta uma contemplação do universo rica em timbres especiais, em motivos de dança e música que conduzem a uma

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espécie de glorificação que se me afigura de tendência religiosa: o que seria resumido pelo grande final da "Symphonie des Psaumes", louvação do Criador e da criatura.

Quanto aos discos, infelizmente não se encontra agora muita coisa de Stravinsky. Mas, numa discoteca reduzida como a que planejei, os álbuns de "Petrouchka", "Le sacre du Printemps", "La Symphonie des Psaumes" e "Apollo Musagete", poderão representar dignamente três fases significativas da produção de Stravinsky.

Mais popularizado, "Petrouchka", até hoje, depois da primeira audição que conheci — lembro-me bem em 1924 — guarda para mim, passados tantos anos, o seu encanto próprio, o perfume maravilhoso do seu lirismo. É uma "réussite" realmente extraordinária. "Petrouchka" não cansa nunca e sempre mostra novas surpresas. Ouvindo-o de vez em quando, nos aproximaremos desta fonte perene de renovação e reeducação, que é a música.

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LETRAS E ARTES, domingo, 2 mar. 1947, página 11.

FORMAÇAO DE DISCOTECA

(XVII)

Romola Nijinsky, no seu livro sobre a vida do grande dançarino conta-nos o que foi a estréia em Paris do ballet "Le Sacre du Printemps", a 20 de Maio de 1913. 0 depoimento é pitoresco, e vale a pena transcrever algumas passagens: "...sim, na verdade, a agitação, os gritos tinham chegado ao paroxismo. As pessoas assobiavam, insultavam os atores e o compositor, gritavam, riam. Monteux lançava olhares desesperados a Diaghileff que, sentado no camarote de Astruc, lhe fazia sinais para que continuasse a tocar.Astruc nesta barulheira indescritível, deu ordem para que se iluminasse a sala. Uma dama magnificamente vestida levantou-se no seu camarote para esbofetear um moço que estava a assobiar no camarote vizinho. Sua comitiva levantou-se e os cavalheiros trocaram entre si os cartões de visita. No dia seguinte, houve duelo. Outra dama da sociedade escarrou na cara de um dos manifestantes. A Princesa de P. abandonou o seu camarote, exclamando:

— Tenho sessenta anos, mas é a primeira vez que alguém ousa fazer pouco de mim.

Neste momento, Diaghileff, lívido, no seu camarote,gritou:

— "Por favor, deixem terminar o espetáculo".

Fiz questão de citar este episódio histórico para nosso próprio consolo, quando topamos com as incompreenções que a música moderna desperta. Afinal, se em Paris a reação assumiu tais proporções, seria justo que aqui no Rio tomasse mesmo aspectos de catástrofe, entretanto, aqui, apesar da efervescência tropical, a coisa não se passou assim. Tudo se processa num ambiente morno, entre vizinhos e cochichos. Lembro-me bem dos dois concertos que Stravinsky regeu aqui, no Teatro Municipal, há alguns anos atrás. Lembro-me da pequena palestra inicial que ele fez, estabelecendo os limites entre a inspiração propriamente dita e o trabalho do artesão, lembro-me do seu comentário antes da execução do magnífico concerto, para dois pianos, que ele ia tocar com seu filho Sulima: o concerto, de tendência francamente clássica, apresentava na sua segunda parte um "noturno":"Não espereis, disse o compositor, um noturno à maneira de Chopin, mas sim à maneira dos velhos mestres italianos". Pois bem, depois da execução desse concerto magistral, um músico da nova geração brasileira,

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que devia andar, pelos 28 ou 30 anos, vira-se para mim e me diz muito seriamente: — "Não gosto; isto é puro futurismo."

A execução de "Persephone", obra estranha e sugestiva, em que Vitória Ocampo, vestida com uma túnica grega, se desincumbiu da parlenda (texto de André Gide) não obteve maior êxito. A ilustre escritora argentina não cantava, não trilava, não enfunava o peito, não dava guinchos, o que evidentemente chateava a maioria do auditório com, saudades da "Traviata", da "Norma" e de outras maravilhosas parecidas. Os concertos resultaram num insucesso absoluto. 0 mestre que regendo lembra um dançarino, manejava a deficiente orquestra do Municipal (cheia , aliás, de verdadeiros heróis) e apresentava a interpretação de textos musicais que exigem um afinamento da sensibilidade, uma adequação maior da inteligência ao fenômeno de ajustamento entre o fundo e a forma, a meditação de uma cultura que os séculos ocuparam e que combate a facilidade de expressão, combate a preguiça intelectual.

Mas, em todo o caso, não houve a gritaria e o tumulto que a mulher de Nijinsky registrou para a posteridade — uma nova batalha de "Hernani", desta vez, musical. Foi pena. Antes tivesse havido barulho. Porque então talvez o gênio de Stravinsky tivesse despertado maior interesse, e o próprio mestre poderia retirar-se com melhor impressão do Brasil, ao contrário do que ele mesmo nos confessou, depois de sacar do bolso a sua cruz grega que beijou com fervor...

A divisão, que se costuma fazer, da produção de Stravinsky em dois períodos: o russo e o europeu, o primeiro se estende até 1918, e o segundo alcançando os anos posteriores, é um tanto arbitrária, como de resto o é a classificação dos três estilos de Beethoven. Na verdade, é fácil observar na obra de Stravinsky a aliança das tendências slavas com as propriamente européias; existe de resto, como na pintura, uma Escola de Paris da música. De Paris, como do alto de um observatório Stravinski estudou as diversas correntes que travam batalha no campo artístico da Europa há séculos; e vista (ouvida, principalmente) sob este ângulo, sua obra apresenta o caráter de uma Suma de conhecimentos musicais. Não foi à toa que seu destino se decidiu em Paris, centro assimilador e distribuidor de correntes de cultura. É por isso que se pode afirmar ser Stravinsky o músico atual por excelência culto.

0 refinamento de seu espírito atingiu o nível mais elevado, só podendo ser comparado ao de Mozart na época clássica. Se, às vezes, diante de certas passagens de sua obra, temos a sensação de coisa bárbara, diante do conjunto teremos que concluir se tratar de uma barbárie domada. Não nos referimos entretanto ao lado oriental de sua obra, mas sim ao elemento bárbaro que dorme no fundo da alma dos mais civilizados: o próprio elemento natureza, o que vem da terra, o que é

muito bem significado pela desmoralizada e indispensável palavra telúrica. Cremos que melhor que nenhuma outra da nossa época a obra de Stravinsky manifesta este choque entre o instinto da terra e a cultura, que assume nele, às vezes, proporções épicas, como nesta prodigiosa sinfonia, que é "Le Sacre du Printemps". Mas o Oriente e o Ocidente não são, de maneira rigorosa, nem bárbaros nem civilizados: são humanos, são conflituosos, com tudo o que de anti-humano e de catastrófico encerra este comprometedor e espectral vocábulo: humano . Muitas vezes, nesta obra perturbadora, sinto a presença do Minotauro; Stravinsky, também tem sua Guernica. 0 elemento civilizador, entretanto, procura dominar o convite da destruição: já não mais dança de sangue, dança sexual, dança guerreira— mas Apoio consciente da sua claridade, serenamente branco, conduz as Musas no ballet inefável. A cultura venceu, polindo as armas espirituais para o combate que se esboça de novo na ante-manhã, combate em que surgem novas tendências e novas possibilidades de transformação e desdobramento do espírito humano e do seu "demônio" artístico - vida nova, ritmos novos, uma nova manifestação do Espírito do mundo.

P.S. — Na crônica anterior (16-2-47) sobre Stravinsky, esqueci-me de citar, entre as suas obras que podem ser no momento encontradas o "Capriccio para piano e orquestra", o "Divertimento sobre motivos de Le Baiser de la Fée", e a, "Históire du Soldai", esta na edição argentina, gravação em geral defeituosa.

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FORMAÇRO DE DISCOTECA XVIII

Ao iniciar esta série de crônicas sugeri um plano para formação de uma pequena discoteca que poderia comportar, digamos, trezendos ou quatrocentos discos. A medida que iam surgindo as crônicas notei uma das dificuldades principais da organização, tantas são as peças de música que podemos considerar fundamentais, que só mesmo uma escolha de acordo com as preferências pessoais resolveria o problema.Devo entretanto advertir aos interessados — sobretudo aos amadores do interior do país que me distinguem com suas consultas, e aos quais respondo aqui coletivamente na quase impossibilidade de fazê-lo em separado — devo advertir que todas as peças que aconselho nestas crônicas são obras de primeira categoria, assim reconhecidas universalmente, e que honrarão a mais selecionada e mais perfeita de todas as discotecas. Quanto à outra grande dificuldade existente, não está em minhas mãos superá-la: refiro-me à falta de discos no mercado atual. É de amargar. A invasão de música americana de salão bem como a invasão das óperas de terceira ordem, são fatos incontestáveis: sem falar na substituição de discos por geladeiras, o que vai se tornando um fenômeno alarmante. Não há dúvida que numa cidade tórrida como esta, os gelados são necessários, mas nem só de gelados pode viver o homem carioca... 0 ideal seria mais cultura e mais refrigeração.

Solicitam-me também que publique uma lista de cinqüenta discos considerados dos melhores, para início de uma discoteca de modestas proporções. Prometo fazê-lo na crônica de encerramento desta série.

Se lançarmos uma vista d'olhos pelo catálogo da produção moderna, logo nos impressionaremos não só com a quantidade das obras como também com a diversidade de tendências e correntes de toda a espécie. Nesse vastíssimo caos, é fácil imaginar os apuros de um pobre amador que possui alguma iniciação, que compreende que a música não pode parar em Beethoven ou Wagner, que tem boa vontade e desejo de incluir algumas peças de música moderna na sua discoteca, mas... como se orientar nesse labirinto? Mais uma vez fala aqui o critério de preferência pessoal, esperando, entretanto, que tal critério se harmonize com o de

uma boa parte da opinião mais categorizada da crítica musical. Entre os nomes principais do movimento pós-Wagneriano, até hoje, creio que será lícito apontar os de Debussy, Stravinsky, Ravel, Manoel de Falia,

LETRAS E ARTES, domingo, 20 jul. 1947, página 5.

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Prokofieff, Bela Bartok e Villa-Lobos. Dezenas de outros nomes, evidentemente, nos emergem à lembrança; mas somos forçados a deixá-los de lado, já que consideramos o vulto modesto da discoteca que sugerimos.E não apenas por este motivo: é que nada encontraremos no mercado, de um Erik Satie— de cuja obra, infelizmente, tão pouco se gravou — de um Paul Hindemith, de um Arnold Schonberg ( deste apareceu há pouco tempo uma das obras menos significativas). Resta-nos, portanto, uma solução: apontar algumas obras de aquisição mais ou menos fácil, escolhidas na lista dos nomes universalmente ilustres a que me referi.Em crônicas anteriores indiquei alguns discos de DebussyC lembramos aos amadores que apareceu de novo, o Primeiro Livro dos Prelúdios, na interpretação magistral de Walter Gieseking) e de Stravinsky. Ocupar-nos-emos agora de outros autores consideráveis.

0 "Bolero" de Ravel espalhou-se pelo mundo com espantosa rapidez, sendo, hoje tão conhecido e tão célebre como o "Rêve d'amour" ou qualquer valsa de Chopin. Ë inegável a sedução do "Bolero", como, de resto, a de toda a música de ballet que evoque a Espanha ou o Oriente. A insistência do tema do "Bolero" produz um enervamento que transmite ao ouvinte uma estranha sensação de fatalidade. Mas o "Bolero" não é a mais significativa e importante produção de Ravel. Daríamos a prioridade aos dois maravilhosos concertos para piano e"orquestra, e à música para ballets "Daphnis etChloé" e "La Valse". De vez em quando aparecem por aqui estas quatro peças prestigiosas da moderna produção musical. Os dois concertos — um para a mão esquerda e o outro em sol maior — resumem tendências vitoriosas da música moderna: apesar do emprego constante do timbre, nota-se uma economia de meios, um aprofundamento da matéria sonora, que os aparentam à música clássica. De resto, as reduzidas dimensões materiais dos Concertos já deixam transparecer a intenção do autor em filiá-los à grande tradição de câmara.

0 concerto em sol maior para piano e orquestra pode ser encontrado em notável gravação; é magnificamente interpretado por Madame Marquerite Long com orquestra sinfônica regida por Maurice Ravel. 0 adágio deste concerto é uma peça culminante, podendo ser colo cado, pela sua perfeita estrutura clássica(note-se a sábia combinação do piano com instrumentos de sopro), de par com os mais belos adágios de Bach, Mozart ou Haydn. Diante de uma tal criação não é possível um minuto de dúvida: estamos diante de um grande mestre da música. Toda a carreira de Ravel, acha-se de resto ilustrada com múltiplos exemplos que revelam um artista consciente de seu ofício, num esforço contínuo de aprofundamento e exploração dos mistérios da matéria sonora. A nobreza da sua figura impõe-se dia a dia.

Devemos notar também a beleza da sua obra para canto,

da que se destacam as três célebres "chansons madécasses".

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is P.S. -No final do meu artigo sobre Mozart, publicado no último número deste jornal, saiu impresso o seguinte :"...Tais indicações são preciosas para a sensibilidade : não tanto para os que,como nós,jamais duvidaram da grandeza da dimensão mozarteana, mas para os que enxergam em Wolfgang Amadeus Mozart um dos espíritos culminantes da humanidade— apenas um músico delicado e amável , embora às vezes lhe reconheçam gênio...", quando do original consta o seguinte: "Tais indicações são preciosas para a sensibilidade moderna: não tanto, para os que, como nós, jamais duvidaram da grandeza da dimensão mozarteana, mas para os que enxergam em Wolfgang Amadeus Mozart— um dos espíritos culminantes da humanidade — apenas um músico delicado", etc. Como se vê, a supressão de um simples traço baralhou completamente o sentido.

23 p.s. -0 poeta e cronista musical Antônio Rangel Bandeira sugere a criação de Festivais de música brasileira. Só podemos apoiar, por todos os motivos, tal idéia. 0 poeta está trabalhando no sentido de convocar em breve aqui no Rio uma mesa redonda, para organizar os programas e tornar a idéia uma realidade,que esperamos seja fecunda para o conhecimento e mesmo para o desenvolvimento da música brasileira, essa grande desconhecida.

215LETRAS E ARTES, domingo, 27 jul. 1947, página 5.

FORMAÇAO DE DISCOTECA

(XIX)

Acrescento algumas linhas às notas da crônica anterior na passagem concernente à Ravel, pois o espaço de que dispunha não me permitia completá-las.

0 Quarteto em fá maior de Ravel é uma das obras mais importantes da moderna música de câmara, como, de resto, seu Trio. Infelizmente, este último não é encontrado no mercado de discos.

A pessoa totalmente leiga tem, ouvindo o quarteto, a impressão de se achar diante de Debussy: ora, os dois mestres são muitos diferentes, como muito diferente é a escrita musical de cada.

ü Quarteto de Ravel mergulha numa atmosfera dupla, de mágica e de ironia, talvez o espírito francês tenha atingido ali um de seus momentos culminantes; a perfeição da forma torna-se compatível com uma espécie de ácido espiritual muito familiar aos que conhecem e freqüentam a moderna poesia francesa.

De baixo de uma aparência de finura e elegância, o Quarteto de cordas de Ravel nos faz penetrar em uma zona rica de mistério sonoro. Percorram-no de vez em quando, e sempre acharSo surpresas. Parece que o quarteto é mesmo o texto supremo da força de criação de um músico, isto é, da força domada e regulada pela inteligência... Debussy só escreveu um Quarteto: Ravel também. Entretanto, na obra de um como de outro, os Quartetos assumem uma importância considerável. Há mais de um crítico categorizado que dá ao Quarteto de Debussy a primazia na sua obra, pondo-se à parte, naturalmente,"Pelléas et Melisando".

Assim, pois, quem adquire o Quarteto ou um dos dois Concertos para piano e orquestra de Ravel, pode estar certo de que adquiriu uma obra representativa, em alto grau, deste mestre e de toda a música moderna.

Ainda de Ravel se encontra com facilidade os discos da curta, mas notável peça "introduction et Allegro" para harpa, piano, clarinete e quarteto de cordas, onde mais uma vez o autor de "Bolero" realiza um transposição de motivos do Oriente, esse Oriente espiritual que comanda a criação de tantos poetas e tantos músicos.

A personalidade de Sérgio Prokofieff impôs-se ao mundo culto há vários anos: pertence ele ao famoso grupo de artistas de classe,

que a intuição de Diaghilev espalhou pela Europa. *É atualmente um dos músicos mais discutidos do mundo;

possui fanáticos e detratores sem conta. Há mesmo quem o prefira a Stravinski, encontrando nele mais selvagem força de criação, e menor rendimento de espírito. De resto, considero tais paralelos perfeitamente inúteis; não conduzem a nenhum resultado positivo.

Enquanto Stravinski permanece branco toda a vida, e no seu livro "Poétique Musicale" (lições dadas na Universidade de Havard) ataca violentamente a Revolução, Prokofieff conservou-se fiel ao ideal comunista, servindo, como compositor, ao regime soviético. Uma de suas últimas obras é mesmo uma "Cantata a Stalin", que, entretanto, ainda não chegou aos nossos ouvidos.

Mas é muito possível que uma personalidade forte como Prokofieff resista a certas contingências; pois o mesmo não aconteceu a Bach, Mozart, Beethoven, Wagner e tantos outros grandes mestres? 0 fato é que Prokofieff tem vencido brilhantemente uma dura prova; a do cinema. A música que compôs para alguns filmes, como, além de outros,"0 Tenente Kige" e "Os Cavaleiros de ferro" (cantata Alexandre Nevsky), é música digna de seu autor. De resto, encontram-se com certa facilidade os discos das mesmas: não hesitamos em recomendá-las aos amadores.

Encontramos numa enciclopédia musical publicada recentemente na América do Norte, alguns dados fornecidos pelo próprio Prokofieff, sobre a sua formação artística, sendo supérfluo encarecer o interesse dos mesmos. Diz Prokofieff que a primeira nota de sua formação é a clássica. Deriva a mesma da infância, quando ouvia sua mãe tocar as sonatas de Beethoven. Este aspecto neo-clássico transparece nas sonatas e concertos da primeira fase da sua produção, como imitação do estilo do século 18. Exemplos: "Sinfonia Clássica" e "Sinfonietta".

O segundo ponto importante é constituído pelo encontro com o compositor russo Taneieff, que viveu de1830 a 1918. Essa época da produção de Prokofieff é caracterizada pela procura de uma linguagem harmônica individual, um meio de expressão de emoções fortes. Exemplos típicos: "Sarcasms", Scythian Suite", "The Gambier", "Sept, ils sont sept", "Segunda Sinfonia", etc.

Terceiro: a descoberta da "Toccata", como elemento motor, descoberta influenciada provavelmente pela Tocata de Schumann, que sempre o impressionou muito, desde a primeira vez que a ouviu. Nesta categoria estão os Estudos op. 2, Toccata op. 11, Scherzo op. 12,Scherzo do 22 Concerto de piano, a Toccata do 52 Concerto de piano, muitas passagens do 32 Concerto de piano, as persistentes figurações da "Scythian Suite", "Le Pas d'Acler ", etc. Este elemento, Prokofieff considera-o o menos importante de todos. (Nota do cronista: a "Toccata",

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op. 11, foi há algumas semanas magistralmente executada num concerto nesta capital, pelo pianista Firkusny).

0 quarto elemento é fixado por Prokofieff como o lírico. Aparece sob a forma de meditação lírica em "Conte", op. 3, "Bêves", "Esquissa automnale", "Legend" op. 12, etc., porém se encontra muitas vezes em longas frases melódicas na abertura do 12 concerto de violino, nos cantos, etc. Esta veia lírica permaneceu por muito tempo na obscuridade. Visto que seu lirismo não foi durante muito tempo apreciado, formou-se lentamente. Porém em estágios posteriores o músico deu cada vez mais atenção à expressão lírica. Gostaria de se limitar a esses quatro elementos, e considerar o quinto, o do grotesco, que alguns críticos procuram incorporar a ele, como uma simples variação dos outros. No que se refere a caracterização de sua música, Prokofieff propõe substituir o termo "grotesco" pelo de "Scherzoness" (como consta do texto inglês da Enciclopédia), ou pelas três palavras que dão sua graduação: "jest" (gracejo), "laughter" (riso) e "mockery" (zombaria). Desde 1914 firmou-se o estilo de Prokofieff.

Estas notas são resumidas da "The International Cyclopedia of Music and Musicians", edited by Oscar Thompson — . Doodd' Mood' &Comp. — New York, 1946.

Entre as coleções de discos de Prokofieff que costumam aparecer por aqui, posso mencionar: a "Sinfonia clássica", em duas interpretações: a de Serge Koussevitzky com a Orquestra Sinfônica de Boston e a de D.imitri Mitropoulos com a Orquestra Sinfônica de Minneapolis. Qualquer das duas é recomendável. Como vimos atrás, e como o próprio título o indica, a "Sinfonia Clássica" espelha as preocupações do músico na sua fase neo-clássica. Entretanto, não se trata de una peça de laboratório cientificamente concebida: ao contrário, é muito viva, e de maravilhosa inspiração.

Os concertos de violino, o 1 2 em ré e o 22 em sol, são dois números importantes do catálogo de Prokofieff. A exuberância de inspiração e o esplendor da forma do 22 Concerto fazem dele uma criação de alta categoria. É positivamente uma peça que não deve faltar numa discoteca, mesmo pequena, de música moderna.

Encontraremos também, os discos da 7 sonata para piano, op. 83, escrita em 1941, em soberba interpretação de Wladimir Horowitz. Esta Sonata se não é monumental pelas proporções materiais, o é pelo conteúdo musical e pelos achados de combinação de ritmos. Depois de uma parte central lenta, cujo tema se diria uma reminiscência de Liszt, termina com uma espantosa "Toccata", que é para os pianistas o tipo do trabalho infernal. Que o brilho extraordinário de tantas produções de Prokofieff não esconda aos ouvidos desprevinidos sua profundidade!

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Também é fácil de encontrar as já mencionadas peças que ele escreveu para filmes: "Suit do Tenente Kijè" e "Cantata Alexandre Nevsky", além do conto féerico (de que gosto muito menos) "Peter and the Wolf".

219LETRAS E ARTES, domingo, 17ago. 1947, página 5.

FORMAÇÃO DE DISCOTECA

(XX)

Poucos músicos haverá cuja exegese seja tão difícil como a de Manuel de Falia. Não que a sua arte seja particularmente hermética — pelo contrário, é mesmo claro em suas intenções gerais — mas além de outros motivos devido a ser muitíssimo refinado e, além do mais, suscitar contínuos debates sobre as suas origens flclóricas.De fato, Manuel de Falia é, dentro dos quadros da música moderna, o artista aristocrático por excelência: no sentido de que jamais fez concessões ao público, tendo se recolhido às vezes durante anos sem produzir, ao mesmo tempo célebre e obscuro. Alguns críticos tendem até a ver nele o maior músico do nosso tempo. Costumo dizer que tais classificações são impossíveis de se fazer, e, mesmo quase sempre inúteis. 0 que é fora de dúvida é que Manuel de Falia é um dos quatro ou cinco músicos culminantes do século XX.

As teorias sobre Falia são múltiplas. Os interessados poder-se-ão dirigir aos ensaios especializados de Adolfo Salazar e de Roland Manuel,por exemplo, em que se estuda minuciosamente Falia à luz da grande tradição heróica e mística da Espanha. Neles se vê Manuel de Falia como seu herdeiro e um continuador, na música, da linha geral espanhola, que compreende guerreiros, santos, músicos, pintores, poetas e toureiros. Acharemos ali paralelos ou afinidades com Cervantes, Santa Teresa, Santo Inácio de Loyola, Gôngora, Zurbaran, Goya, etc. — e se verá mesmo numa de suas obras importantes, "El Sombrero de Três Bicos", uma transposição do grande espetáculo nacional espanhol, a tourada.

Pode dizer-se, sem medo de errar, que Manuel de Falia recebeu da tradição do ilustre mestre Felipe Pedrel certos métodos que iriam orientar definitivamente a construção da sua música. Pedrell pôs em prática os princípios teóricos estabelecidos por Antônio Eximeno, no século XVIII, em contraposição à moda triunfante da ópera italiana: o princípio fundamental de que cada povo deve construir seu sistema sobre a base do canto nacional. Pedrel não só encarnou o espírito castelhano e o catalão em muitas de suas obras, como ressuscitou verdadeiros tesouros da polifonia espanhola dos séculos XVI e XVII, do teatro lírico espanhol anterior ao século XIX, dos organistas clássicos e litúrgicos, destacando-se, dentre tudo isto, a obra monumental do grande Vitória, praticamente desconhecida durante séculos.

Parece que o produto extremo deste vasto movimento é Manuel de Falia. É possível que em músicos como Albeniz e Granados se manifeste o lado mais exterior, mais acessível dessa Espanha católica-

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mourisca, dessa Espanha decorativa de danças voluptuosas: mas é em Manuel de Falia que iremos surpreender a Espanha profunda nos seus mais secretos contrastes, na sua trágica dicotomia vida-morte, na sua experiência de entrega e de renúncia, de poder e de ascetismo. E neste ponto, a obra de Manuel de Falia reveste uma importância capital: mostra como a tradição pode ser vivificada e alargada à luz de princípios dinâmicos, como se deve estabelecer um verdadeiro progresso sobre a própria tradição, levando-a às suas extremas conseqüências.É aqui que é necessário prudência ao tocar na questão do folclore: elemento de suma importância na formação de um músico representativo de uma cultura nacional, como Manuel de Falia — mas não finalidade última de sua obra. A música de Falia, não pode haver dúvida, é de caráter erudito. E é preciso frisar que ele se afasta geralmente da preocupação "localista" espanhola. De resto, não se deve esquecer que num momento decisivo de sua formação, ele parte para Paris — e lá segue conselhos e sugestões de Dukas e Debussy (ao qual renderia mais tarde homenagem pública, numa composição para guitarra) tornando-se também um dos primeiros amigos de Ravel. 0 autor de "Noches en los jardines de Espana" assimilou admiravelmente a lição do impressionismo. Altermann escreveu que "Falia é ao mesmo tempo o músico mais europeu da Espanha e o mais espanhol dos músicos europeus. Assimilou a lição, mas superou-a logo porque Manuel de Falia não é propriamente o que se pode chamar um músico impressionista".

A fisionomia ascética do grande criador andaluz revive no admirável desenho de Picasso (1920) assim como no busto de Juan Cristobal, hoje no Teatro do Cadiz. Fisionomia que manifesta a força de uma antiga tradição, uma vontade domada, uma serenidade triste de quem pesquisa o permanente e o essencial. Mas de quem pesquisa e acha. Porque Manuel de Falia achou. Confrontando-se com o seu trágico país, procurou o essencial do decorativo, depois o essencial do essencial. É preciso, entretanto, considerar que o famoso "despojamento" que tanto se emprega a propósito de Falia não exclui generosidade de formas nem a presença da cor. É que o espírito as domina, um espírito para o qual a morte ainda é a última palavra sobre a vida, e para o qual a vida é conhecimento e experiência transcendentes. Aqui se aplicaria a lição evangélica: perder sua vida para ganhá-la, isto é, perder os acessórios do tempo para ganhar a vida espiritual. Aqui a famosa fórmula "sangue, volúpia e morte" se tornaria insuficiente para definir a aventura espanhola: seria preciso acrescentar-lhe a palavra eternidade, pois tal é o alvo supremo desses espíritos que vão de Santo Isidoro a Manuel de Falia, passando pela longa linha clássica a que já aludimos, e que se

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reflete às vezes até mesmo em certos poemas do comunista Rafael Alberti De fato, diante dos "Sonetos Corporales" já tive mais de uma vez a sensação de me achar diante de Falia: o famoso despojamento, uma nudez de forma se revela aqui, mas com que força e segurança! Porque é preciso lembrar que em muitos casos, o despojamento adotado por poetas e músicos deixa suspeitar ausência de qualidades positivas. Em Manuel de Falia constatamos um trabalho analítico em que se sente a inteligência ordenadora, cuidadosa dos acabamentos, mas em que a minuciosidade não prejudica o plano geral. Aqui a sensibilidade é ordenada à vontade crítica tanto quanto à vontade criadora. De resto, basta consultar o catálogo de Falia para se ter uma idéia nítida de como ele comprimiu sua produção: apenas duas páginas são suficientes para mencionar toda ela; ao espaço de quarenta anos de trabalho a obra de um dos maiores músicos modernos caracteriza-se pela escolha de meios técnicos, pela falta de pressa nas realizações, pela suprema apuração nos detalhes e no conjunto, pela ordem espiritual que vem da meditação e da espera...Aqui a fecundidade é muito mais íntima do que exterior; e existe um verdadeiro pudor na apresentação da obra, que escapa aos truques e aos efeitos sensacionalistas. Manuel de Falia, na verdade, recupera a tradição do artesanato em música. Levou dois anos na construção (emprego voluntariamente o termo) do segundo movimento do seu Concerto para cravo e orquestra de câmara. E costumava dizer: "Es preciso esperar el regalo". A obra de Manuel de Falia, oferece um testemunho preciso de como a disciplina e a liberdade são perfeitamente compatíveis.

Vários críticos têm assinalado o comportamento de Manuel de Falia diante da religião, como mais uma prova da austeridade do seu espírito. Tal comportamento escapa a qualquer demonstração espetacular. Escreve um dos seus mais autorizados biógrafos, Roland Manuel: "A piedade de nosso músico afasta-se muito da desenvoltura andaluza. Uma austera reserva, uma esquiva humildade, que temeria perder o nome ao revelar seu segredo fazem-no adiar até a presente realização do mais caro dos seus desejos: compor uma missa. Mas o único testemunho que sua música de câmara do nosso tempo tem do seu autor, por indireto e discreto que seja, não é menos autêntico. Como não considerá-lo? 0 movimento lento do "Concerto" (para cravo) que Maurice Ravel apontou como obra- prima da música de câmara do nosso tempo, é antes de tudo a obra prima de Falia. Não é por acaso, nem em vão que, em seu grande lirismo mortificado, leva a anotação, tão católica e espanhola, da devoção ao Corpo e Sangue deCristo".

Na próxima crônica, terminaremos estas notas e mencionaremos alguns discos do extraordinário músico da "Noches en los jardines de Espana".

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FORMAÇÃO DE DISCOTECA XXI

Uma das obras mais célebres de Manuel de Falia acha-se gravada em discos e pode ser facilmente adquirida pelos amadores interessados: trata-se de "Noches en Los Jardines de Espana ", impressões sinfônicas para o piano e osquestra, dividida em três partes: "Em el Generalifez", "Danza Lejana" e "Em los Jardines de la Sierra de Cordoba". Composta entre 1909 e 1915, com todos os requintes de acabamento próprio do processo estético do grande músico, esta peça é altamenterepresentativa do seu espírito, e oferece uma verdadeira síntese espiritual, em música, dessa Espanha grandiosa e indomável, que está no coração de todos nós, contínua e permanente imagem de sangue, volúpia, mnrte e eternidade. A versão que corre mundo atualmente é a da National Symphonic,Orquestra de Londres, sob a regência de Henrique Jorda, com Clilford Curaca ao piano, não há dúvida que esta obra oroduz uma sensação

do fatal e do irrestível, mas, apesar de Manuel de Falia empregar todos os recursos da orquestra moderna, apesar da sua ciência prodigiosa no manejo dos instrumentos de percussão, é de se notar que ele não abusa desse prestígio dos ritmos enfeitiçadores que nos evocam os dois Orientes, o interior e o exterior, que estão no princípio e no fim de nosso destino. Este maravilhoso concerto põe-nos sem dúvida — por maior que seja nossa aversão às interpretações meramente descritivas — põe-nos diante dagranada do esplendor da cidade toruada ainda mais preciosa aos nossos olhos devido ao drama trágico de Frederico Garcia Lorca, irmão espiritual

de Manuel de Falia. Dos jardins de Generalífe ao Convento de S.Nicolau, vai um passo Entre a vida mística e a vida dos sentidos oscila a tendência da alma espanhola. Depois da vastidão de Sierra Nevada à aridez da Sierra de Córdoba. 0 encontro do espírito mourisco com o católico, será sempre um motivo de meditação para todos os exaltados. Mil sugestões nos acodem à memória. Como não evocar aqui o livro admirável de Maurice Barres sobre o Greco — admirável do ponto de vista literário, pois como crítica de pintura foi superado de muito pelo incisivo ensaio de Eugene Dabit — o livro em que se revela uma rara compreensão do gênio espanhol e de sua tendência a re-criação do interesse pela vida?... Barrés cita uma frase de Maomé: "Há duas coisas de que gosto muito, as mulheres e os perfumes, mas o que alegra meu coração mais do que tudo, é a reza". Não, decididamente precisamos fazer uma manobra, do contrário criamos até o infinito se começássemos a transcrever todos os paralelismos que o

nome da Espanha sugere... Mas a música de Falia está tão entrosada em

LETRAS E ARTES, domingo, 24 ago. 1947, página 3.

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tudo isso, que não me consigo afastar do assunto. Não se iludam com o seu aparente decorativismo: a obra do ilustre andaluz propõe-nos u^a alta meditação, embora se apresente muitas vezes (seguindo umaprestigiosa tradição do século XIX) "programada" como a dos compositores que escreveram especialmente para concertos sinfônicos. Não queremos abrir um debate sobre a finalidade da música e as intenções ou a gratuidade dos grandes mestres;mas parece-nos incontestável que a música não pode ser considerada um simples prazer (se.bem que inclua, sem dúvida, aparte física e sensorial do prazer), pois que conduz necessariamente, pelo menos a música dos verdadeiros criadores, a uma contemplação do universo. Eé possível admitir uma música sem dança? E é possível admitir um espírito que não dance? Pela música vai-se a Deus. 0 Cristo cantou num dos momentos mais solenes da sua vida (S. Mateus, XXVI-30).

Dança, canto, poesia, dramática e lírica, constituem a base da música de Manuel de Falia. Espírito de síntese freqüentado por imagens e tradições perturbadoras, nada "pompier" , autor de uma renovação de processos técnicos sem truques e sem preocupação de sensacionalismo, possuindo uma gravidade nada pedante, eloqüência sem discurso, Manuel de Falia é um clássico do modernismo.

0 catálogo de suas obras abre-se em 1904. Já o autor entrava nos 28 anos. Com o drama lírico em dois atos "La vida breve". Esperamos que se feche com a espécie de ópera ou oratória "Atlântida", em que o músico trabalhou durante muitos anos, e que, segundo consta, teria terminado. Entre as peças deste catálogo notam-se duas da maior importância, que, infelizmente, não se encontram no mercado de discos, embora a uma delas esteja gravada: quero me referir a "El retablo de Maese Pedro" e ao "Concerto para cravo e orquestra de câmara". Os interessados poderão ouvir este último na Discoteca Pública do Distrito Federal. Animado pela célebre cravista Wanda Dandoweska, Manuel de Falia compôs este concerto valorizando de novo o antigo instrumento, verificando-se que o mesmo se integra perfeitamente na orquestra moderna. "Ora seco e duro como um instrumento de percussão, ora rumoroso de arpejos", escreve Roland Manuel, o cravo fascina os compositores que amam a precisão, embora a profecia de Voltaire sobre o piano não se tenha realizado: "Cet instrument parvenu n'arrivera pas à détrônex le bean e magestrueux clavecia ".

"El sombrero de três picos" (e não "el sombrero de très bicos" , como saiu impresso na crônica anterior, em desobediência ao original), é uma "suite" sinfônica que ilustra o ballet criado porMassine na época heróica do ballet russo, com cenários e indumentária de Picasso. Vimo-lo representado aqui no Rio há alguns anos, sob o nome

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com que corre o mundo: "Tricornio". Massine dançava e os cenários e a indumentária de Picasso eram admiráveis.

0 argumento foi extraído da conhecida novela de Pedro Antonio de Alarcon, escrita em 1874 e inspirada em um velho romance

. popular. E o triunfo do picaresco, de tão fundas tradições no teatro espanhol. Peça cheia de malícia, baseia-se na observação direta dos costumes castelhanos, e se presta magnificamente aos comentários irônicos e sutis de um músico de gênio. Diga-se de passagem que a partitura foi de tal maneira identificada ao ballet (criado imediatamente após a música ter sido escrita) que não podemos mais separar, em "El sombrero de três picos", o interesse plástico do interesse musical. Aqui quem buscar a visualidade na partitura acerta mesmo, e não correrá o perigo de procurar camelos em concertos de Bach ou sinfonias de Schuman...

Encontra-se os discos de "El Sombreros de três picos" na execução da Orquestra de Madrid, sob a regência do famoso maestro Enrique Fernandes Arbos. Trata-se — como não poderia deixar de ser — de uma interpretação primorosa, que recomendo vivamente aos amadores.

É mais ou menos fácil encontrar também um disco com uma peça escrita no princípio da carreira do músico — a última das "Quatro piezas espafiolas" — "Andaluza", na persuasiva interpretação da notável pianista Harriet Cohen. Na outra face do disco, pela mesma pianista, "Narrativa do pescador", de "El amor brujo", e a "Dança do moleiro", de "El sombrero de três picos", adaptada ao piano.

Acabam de chegar ao Rio os discos de "El Amor Brujo", gravados por Leopoldo Stopowiski com uma orquestra de Hollywood. Ainda não tive oportunidade de ouvi-los. Faz parte desta música de ballet a célebre Dança ritual do fogo, que os pianistas e o rádio popularizaram.

P.S. 0 pianista cego Arnaldo Marchesotti deu um concerto domingo à noite na Escola Nacional de Música. Como esta seção não trata exclusivamente de discos, desejo chamar atenção dos intelectuais e dos amadores de música para o caso deste artista moço. No meio onde cresceu e onde reside — Belo Horizonte — ainda pouco evoluído do ponto de vista musical, Arnaldo Marchesotti conseguiu, pela extraordinária força do seu espírito, tornar-se um pianista consciencioso e sério, queestabeleceu um contato imediato com o auditório através da belainterpretação de uma página transcendente como é a Sonata op.111 de Beethoven. Quando ficamos ao par das imensas dificuldades que um pianista cego tem de enfrentar, é que podemos dizer — desta vez sem receio de erro — que assistimos ali a um verdadeiro triunfo do espírito sobre a matéria. Estamos certos de que Arnaldo Marchesotti se tornará dentro de alguns anos um pianista completo. 0 seu caso envolve problemas

de ordem psicológica dos mais interessantes.

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LETRAS E ARTES, domingo, 31 ago. 1947, página 3.

DIVERTIMENTO

Escreve-me um leitor desta seção confessando-me seu desapontamento diante duma lista de obras musicais que forneci a um jornalista desta capital em resposta a um inquérito. Todas as obras mencionadas — diz ele — são de caráter monumental, grande orquestra e coros. Não se nota ali nenhuma peça de música de câmara. Respondo, portanto, ao meu consulente,ea outros interessados na questão,que a referida lista ia acompanhada da outra composta quase toda por peças de música de câmara, pedindo eu ao meu amigo jornalista que publicasse as duas.

Era a minha idéia que a pessoa, simbolicamente convidada para se retirar numa ilha, sorteasse as duas listas. Eis aqui a segunda que eu sugeria, e que não foi publicada:

I — Bach — 0 cravo bem temperado.II— Um álbum de sonatas de Scarlatti.III— Mozart — Quinteto em dó maior — K. 515.IV— Quarteto op. 131 — Beethoven.V — Dido e Eneas — Purceli.VI— Quinteto piano e cordas op. 44 — Schumann.

VII— 24 prelúdios — Chopin.VIII— Quarteto sol menor op. 10 — Debussy.IX — Petrouchka — Stravinski.X — Concerto para cravo — M. de Falia.

De qualquer forma, é mesmo impossível organizar semelhante lista. Se a situação se apresentasse na realidade seria preciso perder a vergonha, atirar-se aos pés do tirano da ilha e rogar humildemente a comutação da pena, isto é,que a lista fosse aumenta de dez para trinta peças. Obtida — numa absurda hipótese — clemência — ganharíamos coragem, e lá viríamos com um bom pistolão, solicitando um suplemento à lista.

As respostas ao inquérito indicam coisas muito curiosas. Marques Rebelo, por exemplo, não faz constar da sua lista, salvo engano, nem Bach, nem Mozart, nem Beethoven! Quanto à exclusão de Beethoven, não é de espantar. Ele não faz mistério da sua alergia (que monstro!)

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pelo homem fabuloso dos "Quartetos". Há tempos atrás, obedecendo aos seus terríveis impulsos de mascate, barganhou comigo, todo eufórico, o Quarteto opus 18, n? 1.

Mas o que me intriga é a sua exclusão de Mozart. Pois também há tempos atrás ele me lia uns trechos (por sinal que muito bons) de seu diário-romance, onde existe a seguinte passagem: "Fiz 37 anos. Descobri Mozart". Mas compreendo que, tomando a sério o caso da ilha, Rebelo preferiu peças e autores mais ligeiros. Certas músicas, na ilha, embora extraoridnárias e geniais, poderiam aumentar o terror e a solidão do sociável Rebelo. Assim considerando, acho que Rebelo ainda foi muito generoso, porque não resta dúvida, que uma coleção de sambas nos distrairia muito mais.

Lúcio Cardoso responde ao inquérito sem responder, isto é, sem fornecer a lista. Declara que escolher peças clássicas seria muito "literário". E, afirmando isto, Lúcio Cardoso me parece atingir o cúmulo da literatura — o que não é tão fácil assim. Este meu amigo é positivamente uma caixa de surpresas, pois à última hora surge-nos como um homem prático!!! De fato, Cardoso admite que, relegado para a ilha, escolheria música de dez autores vivos, que o ajudassem na construção do barco. Esta não acudiu nem a Rebelo, senhores. Em todo o caso, posso testemunhar que fui várias vezes à casa de Lúcio Cardoso onde ouvi muitos discos clássicos, e dos bons — e que nos comentários que de vez enquando fazia, o romancista não se mostrava nada literário, no mau sentido do vocábulo. Mas já reparei que esses romancistas são em geral mais paradoxais e imprevistos que os prórpios poetas. Lúcio uma ocasião foi me procurar numa velha casa onde morei muitos anos: casa aparentemente mal-assombrada, freqüentada por pessoas lop-lop, enfim, uma casa digna de merecer o interesse de um romancista familiar de Gogol, de Emily Bronte, de Poe, e de todos os filmes de "suspense", técnico em lobisomens, como é o nosso caro Lúcio. Pois bem, pasmem as gentes: o escritor descia as escadas apavorado, procurava tremendo o corrimão, declarando-me que se eu quisesse as suas visitas, teria que me mudar para um apartamento moderno e super-iluminado! 0 romancista dos fantasmas não topou de modo algum a casa mal-assombrada.

0 crítico Álvaro Lins, que há alguns anos escrevia de certo poeta que não dava muita importância à forma do verso, porque se preocupava demais com música (como se a música não tivesse forma), converteu-se recentemente, pelo que soube e pelo que li, ao culto da música. Parabéns. Nunca é demasiado tarde para se reconhecer uma verdade. A julgar pelas peças constantes de sua lista, parece-me que o crítico anda no bom caminho. Façamos voto para que isto não seja fogo de

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palha.A inclusão de meus velhos amigos Aníbal Machado e Carlos

Drummond de Andrade entre os grandes cultores da música, é realmente um achado, notável de imaginação de jornalista. Ah, se eu tivesse uma imaginação de jornalista, que poeta não seria!... Aníbal gosta de música como qualquer homem sensato, quanto a Drummond, segundo os elementos de avaliação que possuímos, sua indiferença é irredutível. Em todo o caso, como para Deus nada é impossível, esperamos em futuro próximo a sensacional conversão destes dois grandes ases da literatura brasileira.

Otto Maria Carpeaux — que publicou há dias, neste jornal, um belo artigo sobre Verdi — fala em coisas muito boas, fala em "Don Giovanni", em Benedetto Marcello, em quartetos de Beethoven, etc. Mas gostaria que Carpeaux precisasse mais suas preferências e que organizasse uma lista com dez peças mesmo, ali no duro.

Nosso querido Manuel Bandeira, cita coisas de primeira categoria, mas também resvala numa certa imprecisão , sobretudo a propósito de Mozart, o que não me agrada muito. É de resto, um dos raros homens de letras do Brasil fiéis à música, e ultimamente tornou-se até diretor dessa "Sociedade de Música de Câmara" que tantos serviços vem prestanto à nossa cultura.

E a nova geração? Ao que me conste, ainda não descobriu a música. São raros os que se interessam. Entre estes, posso mencionar o poeta Marcos Konder Reis — cujo talento, diga-se de passagem, está muito acima dos livros já publicados — e que procura na música o paraíso perdido. Quanto ao poeta Ledo Ivo, meu prestígio de padrinho nada tem conseguido. Ele agora evita mesmo me procurar, com medo que eu lhe despeje pelos ouvidos uma tocata de Bach ou uma sinfonia de Beethoven.Uma vez ele teve a ousadia de me dizer que se convertera à música "in-extremis". Portanto, não há nada a fazer com esse "enfant terrible" a não ser continuar rezando por ele.

0 caso mais notável da melomania no Brasil é o do temível "arquivista" João Condé, que está batendo todos os records. Sua obsessão pela música de Mozart é tocante. Devo dizer entretanto, com a minha autoridade de grande admirador de Mozart, que condeno vivamente sua atitude. Condé só admite Mozart, e nada mais. Comete o absurdo de ir às casas de discos e trocar Bach, Beethoven, Debussy por Mozart. Ouve Mozart de manhã à noite. Ora, não é possível gostar de Mozart e expulsar os outros grandes, seus pares. Chamamos Condé publicamente à ordem e, caso ele não se emende, mandar-lhe-emos nosso breve de excomunhão. Consultado sobre a lista de discos que levaria para a ilha, Condé, sem dúvida, responderá imperturbável: "Escolho o catálogo de Kochel".

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P.S. — Última hora: acabo de ser informado que Drummond, se bem não seja fanático, topa a música. Ainda bem. Outros poemas virão.

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LETRAS E ARTES, domingo, 21 set. 1947, página 5.

FORMAÇAO DE DISCOTECA

( X X I I )

Villa-Lobos acha-se hoje inscrito entre os mais importantes compositores da nossa época. É triste constatar que muitos brasileiros ainda não se convenceram disto, brasileiros de mediana cultura que, entretanto, se extasiam diante das xaropadas de Sibelius e outros que tais. Pois é isto: queiram ou não queiram os recalcitrantes, Heitor Villa-Lobos já ficou definitivamente. Já é um clássico da nossa época, e falar ainda em "futurismo" ou "modernice", a propósito da sua maneira de compor, é simplesmente pueril. 0 nosso Villa — como o chamamos em família — causa desconfiança em muitas pessoas por certos aspectos rebarbativos do seu temperamento. Há quem implique com suas poses fotográficas, com as suas entrevistas espalhafatosas, com as suas declarações esdrúxulas, por exemplo ataques a Beethoven e Chopin, etc.Não tem importância; porque Villa não é só isto. Villa é o Brasil.Confesso que sinto mais o Brasil nas serestas, nos choros, nas cirandas, nos hinos cívicos de Villa, do que nos poemas de Gonçalves Dias ou Castro Alves, nos romances de José de Alencar e Machado de Assis, nos quadros e painéis de Portinari. É, sem dúvida, uma opinião pessoal: mas sei de muita gente boa que pensa assim também. Villa poderá ser desagradável, áspero, barroco, tudo o que quiserem: só não poderão dizer que não é grande músico. Se disserem isto, sai barulho. Quem não compreendeu Villa-Lobos, não compreendeu esta mistura de tendências e atitudes, esta vasta ópera desordenada que é o Brasil — o Brasil que escapa a qualquer classificação acadêmica, que faz o desespero dos sociólogos e dos observadores munidos de ficha e de preconceitos. 0 Brasil da selva amazônica, do sertão carioca, do carnaval carioca que morreu, mas cuja tradição persiste apesar de tudo, o Brasil da política informe, do candomblé baiano, do "humour" mineiro, dos impulsos pernambucanos, dos cantos dos pretos de exílio, o Brasil cético e supersticioso, desconfiado das soluções convencionais, o Brasil do ao Deus dará, da sensualidade mole, do lirismo nostálgico, da ternura, da camaradagem, do coração aberto a todos os povos; este Brasil afro-europeu que querem copacabanizarj

standartizar, planificar, cretinizar, mas que resiste... e realiza, antes de tudo, pela música de Villa-Lobos, este grande herói do Brasil humano e universal.

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Não posso disfarçar o prazer com que escrevo sobre Vi 11a- Lobos. Ninguém poderá esperar de mim um artigo técnico, que escapa à competência desta seção e à minha própria competência: trata-se de um simples desabafo de poeta diante do homem a quem devemos, além de admiração pela sua obra espantosa, comovida gratidão. Porque, sem sombra de patriotismo, digo que Villa-Lobos reconstituiu-nos a imagem de um Brasil que, com o surto dos novos costumes, de americanização, do rádio, etc., talvez se perdesse para sempre se a sua intuição de artista não nô-lo tivesse gravado, e de maneira genial. De fato, sinto na música de Villa- Lobos os elementos poderosos que ligam a nossa psiquê à alma do próprio mundo; os traços de parentesco pelos quais o Brasil se acha integrado numa vasta comunidade lírica, e que nos foram revelados na nossa infância sob as espécies das cirandas, das cantigas de trabalho, de ninar e outras; aqueles elementos de antiga herança cultural pelos quais nos ligamos a uma humanidade religiosa, cantante e dançante, elementos de transmissão de emoções, espantos e deslumbramento, que fizeram Villa- Lobos, num extraordinário golpe de intuição, aproximar os motivos brasileiros dos de Bach, transfigurando-os e universalizando-os numa síntese para sempres famosa... Assim o nosso músico supremo resguardou muitos dos valores permanentes do nosso passado e da nossa infância, desprezando o entulho de uma tradição morta e liquidando com certas preocupações secundárias do folclore, mas servindo-se do folclore como um trampolim para superiores realizações.

Poucos contatos pessoais tenho tido com o grande músico. Entretanto, lembro-me de certas passagens bem vivas.Anos atrás, achava-me com outros amigos na sua casa, então situada numa travessa da Esplanada do Senado, Villa-Lobos tirava ao piano, para nós, uma de suas últimas composições, quando de repente levantou-se, iluminado, e propôs que fôssemos todos para o Andaraí armar balões. Era no mês de junho, véspera da noite de São João. Tomamos um automóvel e nos dirigimos à casa de um comerciante amigo de Villa, proprietário de uma vasta chácara. Ali chegado, esse Villa-Lobos, que confessava em cada entrevista de jornal, "não passar de um maestro de Cascadura", esse Villa-Lobos, já célebre pensando e trabalhando música de manhã à noite, meteu-se no meio dos garotos e, como qualquer um deles,entusiasmadíssimo, preparava a mecha que ajudaria a fazer subir ao céu os balões coloridos.

Uma vez fui assistir a um concerto de Villa-Lobos no teatro João Caetano. Tratava-se da primeira audição do "Momo Precoce", para a qual o maestro havia convocado a banda do Corpo de Bombeiros, e o pianista Souza Lima. No intervalo da 1§ a 2^ parte Villa-Lobos produziu um de seus extraordinários discursos , afirmando, entre outras coisas,

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que trabalhava muito pela música no Brasil, mas que infelizmente ele era o Cristo do Corcovado. E abria os braços no sentido horizontal, num movimento inesperado. Gesticulava sem parar, regendo o discurso. Aquilo podia ser absurdo, de mau gosto, tudo o que quisessem: mas era generoso, espontâneo,estupendamente baiano e brasileiro. A meu lado, Jaime Ovalle, firme no monúculo, cochichava-me: "É imenso, irmãozinho". Era imenso.

Evoquei estas duas passagens — como poderia evocar mais algumas outras — para frisar a falta de convencionalismo do primeiro dos nossos músicos. De resto, o homem destinado a projetar no piano musical a vitalidade da alma brasileira tinha mesmo que ser uma natureza rica, anti-convencional, de contrastes violentos, de balanços imprevistos, uma força da natureza. Nele a desorganização do temperamento vai de par com uma notável organização de guia e trabalhador. 0 que Villa-Lobos tem feito não só como compositor, mas também como diretor e maestro de coros orfeônicos no Brasil já passou para a categoria da lenda. Todos os que obedecem à sua orientação, embora às vezes se espantem com seus discursos e sua gritaria, adoram-no. Sabem que grande alma se esconde sob aquele exterior estapafúrdio.

A formação musical de Villa-Lobos é muito rica e variada. Nas primeiras fases ele tomou contato vivo e diário com os mais célebres seresteiros do Rio, com os músicos anônimos que — antes da aparição do rádio — iriam fornecer a matéria preciosa para centenas de sambas, marchas, etc., que.se integraram mais tarde, no repertório nacional.Depois de penetrado até a medula pela música do sertão carioca, Villa- Lobos dirigiu-se a vários Estados do Brasil, recebendo a prodigiosa herança lírica e musical acumulada pelos séculos, mas dispersa entre o povo e os improvisadores. Viveu no meio do povo humilde e surpreendeu-lhe a vida íntima, vida de ternura, de sofrimento, de libertação pela música. Depois foi à Europa e estudou profundamente as obras que repousam sobre a sólida estrutura clássica. Insatisfeito sempre, pesquisou, esquadrinhou os recantos do folclore, observou as diversas correntes e tendências da música universal; rejeitou as soluções acadêmicas que lhe propunham alguns maestros veneráveis, até que descobriu o seu caminho: fixar a alma brasileira servindo-se do material direto que os músicos convencionais desprezavam. Seguiu possivelmente a pista de um músico

de larga intuição, esse pré-Villa-Lobos de mais modestas proporções que se chamou Ernesto Nazareth. E, num ímpeto forte e generoso, surgiu a grande música do Brasil...

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LETRAS E ARTES, domingo, 28 set. 1947, página 3.

VILLA-LOBOS

X X I I I

A riqueza musical do Brasil vinha de longe. Já Saint- Hilaire escrevia que "não tem nada de extraordinário a gente esbarrar com músicos no Brasil, pois qualquer vila os possui." Havia, pois, música em toda parte. 0 que não havia ainda era um músico de gênio que fixasse em elevada forma erudita as tendências e a sensibilidade da raça, pródiga em dispersadas formas sonoras. Esse músico apareceu, nascido no Rio de Janeiro no último quartel do século passado — Heitor Villa-Lobos. Na crônica anterior mencionamos o nome do precursor Ernesto Nazareth. Agora cumpre-nos evocar o nome da compositora Chiquinha Gonzaga, autora de tantas polkas, corta-jacas e outras peças das quais felizmente começou-se a perceber a importância — tanto assim que seu busto já pode ser visto entre as árvores tranqüilas do Passeio Público.

Outros nomes nos acodem, entre outros os de Alexandre Levy, infelizmente morto muito jovem — e o de Alberto Nepomuceno... mas era ao impetuoso e rebelde Villa Lobos que estava reservado o grande destino de surpreender e gravar todos os aspectos da alma brasileira. Villa-Lobos fundiu, portanto, as duas tendências— a popular e a erudita, depois de se apropriar de enorme material trazido da viagem a vários Estados do Brasil. Os seus anos de aprendizagem, de pesquisa, de seleção desse extraordinário acervo estenderam-se mesmo até a madureza. Um dia a elite intelectual do Brasil — na parte que se interessa pela música acordou com esta novidade; um grande músico nos tinha nascido, tirando o Brasil da espécie de limbo musical que até então vivera, para elevá-lo até o plano da universalidade.

Nunca será demasiado insistir neste aspecto importante da formação artística de Villa-Lobos — seu contato demorado com o povo humilde, com gente de todas as classes, com os músicos populares que trouxeram sua contribuição para esta inegável realidade que é hoje a música brasileira; e se insistimos, é devido ao fato disto ter sido contestado por pessoas categorizadas. A todos aqueles que desejam acompanhar com maiores detalhes a questão das origens artísticas de Villa-Lobos, aconselhamos a leitura do estudo existente no livro "Caminho de Música" do ilustre escritor e crítico Andrade Muricy, grande conhecedor

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la vida e da obra do autor das "Bachianas Brasileiras".

0 elemento folclórico foi aproveitado por Villa-Lobos — issim como fizeram outros mestres — na concepção e realização desta ;uma brasileira que é hoje a sua obra. Estretanto, ele nunca procedeu servilmente; em todas essas peças nota-se a marca de um criador. 0 processo ie deformação, de resto, tem sido usado por grandes compositores — e não jpenas modernos. Sabemos hoje a parte de contribuição popular que existe ia obra de Bach, de Haydn, de Mozart, de Beethoven, de Chopin e outros — ias nenhum deles copiou com intuitos natural!sticos, apesar de, uma vez )or outra, fazerem incursões pela onomatopéia. Que Villa-Lobos tenha :edido por vezes à tentação do pitoresco, não podemos negá-lo; mas, numa }bra tãc numerosa, estes pecadilhos são mais do que perdoáveis. 0 fato é ]ue pura musicalidade domina ali, na grande maioria dos casos. Villa-Lobos acha-se à vontade, tanto no tratamento da modinha ligeira — onde se pode /erificar a antiga origem portuguesa — como no poema sinfônico de forte ;nvergadura. Ele não desdenha a música de programa, como não desdenha a partitura para cinema. Lembro-me que há alguns anos atrás ouvi uma peça que compôs para um filme: "Descobrimento do Brasil". Na época parecera-me que a mesma continha achados admiráveis: gostaria de ouvi-la de novo, d o í s quando o artista — assim é o caso de Villa-Lobos — é grande mesmo, resiste a todas as provas, como essa, terrível, da encomenda para cinema.

É um fato digno de nota que a música de Villa-Lobos tenha começado a se espalhar por meio de dois artistas estrangeiros —Qrtur Rubinstein e Tomás Teran.O polonês e o espanhol, desde os seus orimeiros contatos com a obra de Villa-Lobos, sentiram-lhe a força, a solidez, as possibilidades de projeção no plano universal. Villa-Lobos conta com outros intérpretes autorizados da sua música de piano, como José Vieira Brandão, Souza Lima, Arnaldo Estrella e outros. Mas quanto a estes, sendo brasileiros, era mais normal que sentissem diretamente o prestígio da obra do autor do "Rude-poema". Já com Rubinstein e com Teran o caso é diferente: sem nunhuma influência do meio ambiente, produziu-se neles um choque de imediata compreensão, ante as primeiras partituras que lhes chegaram às mãos. Isto mostra a força de persuasão, de penetração da obra de Villa-Lobos, e que ela, indo além da brasilidade, entra na vasta correnteza da música do mundo. De resto a concepção das "Bachianas Brasileiras" veio mostrar como estava longe de Villa-Lobos a idéia de se restringir a um nacionalismo de superfície. Não sei se a importância desta

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obra já terá sido suficientemente compreendida por todos os que se interessam pela música em nosso país. As "Bachianas" estão destinadas a ter, em futuro próximo, uma grande projeção na Europa: de um lado mostram mais uma vez a universalidade e a capacidade de influência da música de Bach; de outro lado revelam os dons de assimilação do espírito brasileiro e sua capacidade de penetração de tudo o que é humano e que serve ao homem. A missão das "Bachianas" é política no mais alto sentido do vocábulo: trabalham para a construção da cidade ideal, onde um dia se apagarão todos os ressentimentos e todos os ódios, onde a família humana verificará enfim, que procede de uma origem única, reconhecendo-se e amando-se na unidade da música. E aqui tocamos mais um aspecto importante da personalidade de Villa-Lobos: a do político — sempre no sentido extra-partidário do termo — do construtor de um sistema de educação pela música e que desde já levanta para a posteridade o monumento de um Villa-Lobos que tem feito mais pelo Brasil do que muitos estadistas, seus presumidos "salvadores". Villa-Lobos escreveu hinos cívicos admiráveis — entre outros esse estupendo "Para frente ó Brasil" que deveria ser gravado, irradiado e cantado pelo país inteiro — obra não só de um grande músico, como de um perfeito animador, capaz de pôr de pé toda uma nação.

Agora, como sempre, tocamos o ponto doloroso do problema da divulgação da obra musical brasileira; o da gravação em discos. Gravaram-se muitas obras de Villa-Lobos a título de experiência, mas não foram distribuídas ao mercado; outras o foram, mas as gravações imperfeitas não permitem um reconstituição à altura do mérito das obras.

Seria necessário que o Estado compreendesse a oportunidade da gravação de obras da maior significação, como as músicas para ballet: "Amazonas", "Juripari", "Iara", "Uirapuru"; o "Noneto", a quantidade imensa de peças para piano e para canto; as "Bachianas Brasileiras"; o áspero e extraordinário "Rudepoema", para piano; o "Momo Precoce", para piano e orquestra; os "Quartetos", forma musical, como se sabe, de elevada estrutura, e a que Villa-Lobos tem se consagrado nos últimos anos; os "Choros", especialmente on9 8, e essa coisa monumental que se chama "Choros 10",criação máxima da música nas Américas, e que é uma tristeza nunca se poder ouvir...

Atualmente poucas peças poderá encontrar o amador de discos — algumas "Serestas", cantadas por Jenny Tourel, a "Bachiana ns 5", em notável interpretação de Bidú Sayão, com orquestra de violoncelos

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regida por Villa-Lobos; e algumas peças de piano; "Impressões seresteiras", "A maré encheu", "Passa, passa gavião", "Saudades das selvas brasileiras" "Vamos atrás da serra calunga", "Pobre cega", "Alma brasileria", "A prole do bebê", e poucas mais, nas execuções autorizadas de Teran, Rubinstein, Arnaldo Estrella e Souza Lima.

Por um golpe de sorte poderá ainda ser encontrado o "Noneto" tendo a fechar a gravação a belíssima "Canção do Carreiro", vivida por aquela divulgadora que foi a incomparável da música para canto de Villa-Lobos e a quem rendemos aqui saudosa homenagem: Elsie Houston.

Sugiro a criação de uma campanha nacional para mais amplo conhecimento e divulgação da obra de Villa-Lobos — uma das poucas obras definitivas que o Brasil tem criado. Apelo para os músicos, os escritores, os críticos, os homens de cultura que se acham no governo.

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MATISSE

(0 nosso brilhante colaborador Murilo Mendes, apresentando um filme documentário sobre Henri Matisse, levado na A.B.I., por iniciativa de Mme. Gabrielle Mineur, Adido Cultural da Embaixada Francesa e sob o patrocínio do Instituto de Arquitetos e da A.B. de Artistas Plásticos, pronunciou a seguinte e interessante palestra em que analisa com aridez e penetração, a obra do grande pintor).

Os poetas e escritores têm sido satirizados nos últimos anos por envolverem-se demasiado em assunto de artes plásticas. Tal atitude parece-me injusta e partindo de uma falsa compreensão do problema da cultura. 0 fenômeno artístico tem de ser examinado no seu plano de unidade. Seria absurdo isolar a pintura e fazer dela um campo de estudo e observação própria somente dos pintores. A pintura não pertence apenas aos pintores, pertence a toda a humanidade. De resto, quando um pintor termina um quadro não é mais seu: como ninguém se banha duas vezes no mesmo rio , ninguém olha de duas maneiras iguais o mesmo quadro. Um quadro é re-criado inúmeras vezes e antes de começar na tela passou por uma vasta série de operações de crivo, feitas no espírito do pintor.

Os pintores e os poetas, como todos os outros artistas— como todos os outros homens— deviam dar-se as mãos, deviam se aproximar e produzir um esforço de penetração e compreensão mútua.

Não é exato que os poetas se interessam apenas pelo aspecto literário da pintura. Existem hoje muitos poetas que sabem que a primeira virtude de um quadro é o seu valor estético. Mas é exato que os críticos do movimento surrealista combatem esta concepção, devido à necessidade de coerência com a sua doutrina. Convenhamos entretanto que os críticos surrealistas não representam toda a literatura. Pessoalmente, sempre me interessei pela pintura surrealista como criadora de uma atmosfera poética, excitante para a imaginação.

De resto, se quisermos aprofundar a questão da pintura literária,cedo verificaremos que os dados do problema se alteram — pelo menos quando se apresenta a hipótese de uma visão universal do homem e dos elementos de uma existência. Ao fim de algum tempo de meditação sobre a pintura e suas relações de vizinhança com as nossas contingências espirituais, eis que as torres e as ermidas solitárias de erudição na sua sugestão de infinito nos aparecerão tão quotidianas como a cadeira de Van Gogh e a maçã de Cezanne passará a ser mais metafísica do que as paisagens abstratas de Max Ernest. Para um neófito nos segredo da pintura,

LETRAS E ARTES, domingo, 12 out. 1947, página 5.

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o Greco será motivo de espanto: mas para um iniciado o Greco será um pintor harmonioso; todas as suas audácias lhe parecerão ainda pequenas e mesmo previstas. Só a grande intimidade com a arte e os artistas poderá recolocá-los no seu justo plano de compreensão visual e mental.

É para o alargamento de tal intimidade que contribui o filme a que ireis assistir, dentro de alguns minutos, graças à gentileza de Mme. Gabrielle Mineur, ilustre Adido Cultural da Embaixada Francesa, do Instituto de Arquitetos e da Associação Brasileira de Artistas Plásticos, sobre Henri Matisse.

A realização simples e direta de François Campeaux permite-nos ver o pintor agindo, isto é, pintando. Graças aos progressos da técnica moderna podemos observar um documento inestimável e autêntico sobre um dos maiores pintores da nossa época. É muito elucidativo ver-se um pintor no ato de pintar. Muitas vezes vi Ismael Nery, Portinari, Di Cavalcanti, Guignard, Arpad Szenes, pintando. Se eu não os conhecesse em sua vida particular estou certo que me instruiria a respeito de seu caráter, de seu temperamento pela maneira como realizam (ou realizavam) as operações preliminares, como seguram o pincel, distribuem e combinam as tintas na paleta, pela maneira com que examinam o modelo, com que conversam ou desconversam, etc. .

Creio que se poderia classificar arbitrariamente os pintores segundo sua concepção do quadro. Para certos pintores o quadro é um meio de expressão; para outros é uma finalidade, um universo que se basta a si mesmo. Matisse poderá ser analisado na segunda categoria. Nos estudos que tenho lido a seu respeito não me escapou este detalhe contado por um de seus críticos: Matisse muitas vezes conserva as telas na parede, sem moldura. 0 quadro para Matisse é uma finalidade, ele vive, trabalha, pensa, ama e sonha em função de seus quadros. Creio, não errar afirmando que Matisse é entre os pintores atuais, um dos menos literários. Matisse de fato não se preocupa com a questão de valores, ou dos volumes, ou da perspectiva tradicional, ou da perspectiva não-euclidiana, e muito menos com a questão do assunto. Sua vida gira em torno da cor e do desenho. Se pode ser considerado um grande decorador (por isso que é um grande colorista), não pode ser considerado um pintor decorativo. Suas rosas, seus azuis, seus vermelhos variados, seus amarelos, seus cinzas vivem de uma existência soberanamente ordenada e regulada a tal ponto que tem sido criticado por lhe faltar a veia romântica. Ele declarou um dia - preciosa declaração recolhida por Pierre Courthion - "Quand je mets un veut, ca ne veut pas dire de 1'herbe, quand je mets un bleu , ca ne veut pas dire du ciei". 0 próprio pintor, portanto, oferece-nos excelente material para o exame do seu método e sua concepção da pintura. Por aí se vê que Matisse é um pintor extra-literário e que a matéria da sua pintura é por si mesma uma garantia da sua solidez e da sua vivência. Se

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a sensualidade é um elemento poderoso da sua transmissão do universo sensível, não é entretanto a preocupação última do pintor: é uma sensualidade, digamos tão simples, que jamais se prestaria à deformação do cromo, tal como é possível, por exemplo, no caso de Ticiano e de Ingres. Matisse pinta um modelo anônimo encostado a uma mesa com um jarro de flores; pinta outro modelo anônimo sentado numa poltrona e em cima da eterna mesa, conchas, ostras, folhagens, um bule, uma faca: todos estes objetos estão ligados a um modelo pela virtude, suprema nos olhos do artista, da cor e do desenho. Todas cores,segundo ele próprio manifestou, vibram em conjunto. Por tudo isto se vê que, ao contrário de certos pintores que fizeram de sua arte um bazar, presssurosos em incluir tantos valores díspares dentro de um quadro, Matisse procedeu a uma escolha dos elementos que lhe são mais afins: é um pintor que optou e que trabalha tranqüilamente na solidão que soube e pode se construir. Daí a magnífica unidade da sua obra: daí o fato de Matisse ter atravessado tantas teorias, tantas tendências em 60 anos de sua vida de pintor, na mais agitada de todas as épocas, sempre igual a si mesmo. Matisse começou a trabalhar no atelier de Gustave Moreau. Com o recuo do tempo, Gustave Moreau nos aparece como um pintor decorativo, de interesse apenas histórico. Mas deve ter sido um homem muito inteligente, e é provável que tenha de certa forma influenciado Matisse nos prelúdios da sua carreira. Matisse fez incursões pelo impressionismo, pelo fauvismo, pelo cubismo (seguiu a teoria que Apollinaire classificou de cubismo infinito por oposição ao cubismo órfico e ao cubismo científico), e quando lhe perguntam sobre suas influências decisivas responde: "Cezanne e os orientais". Matisse fez várias viagens ao Oriente e às Ilhas do Pacífico para estudar a luz dessas regiões. Mas enquanto em Gauguin a nota de exotismo é flagrante, o pitoresco sobrepõe-se às vezes à própria construção do quadro, em Matisse esse elemento exótico é depurado e em fim de contas entra na atmosfera francesa, como um fator quase natural. Certos críticos autorizados — embora atribuindo à obra de Matisse a maior significação — descobrem-lhe uma falha: a ausência de ressonância dramática e patética. Entretanto, uma simples anedota contada pelo próprio Matisse revela aos que ainda duvidem, o motivo desta aparente falha.Conta o pintor que no princípio de sua carreira ele e Marquet punham-se a decompor seus quadros, criticando-os minuciosamente, detalhe por detalhe, pensando o desenho, a cor, os valores,a linha de composição, etc. "No fim de tudo diz Matisse, nada ficava. Cedo compreendemos a inutilidade de semelhante método. Cada artista traz a sua contribuição própria, e o que um possui exclui inevitavelmente certas qualidades que encontramos em

outros..."£ portanto um absurdo procurar nas telas de Matisse o

espírito de outro pintor, como é um absurdo procurar numa sonata de

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Scarlatti a fúria beethoveniana. Matisse não pintou a luta com o anjo; sua obra não é uma tourada, como a de Picasso; entretanto, depois de alguma familiaridade com ela acabaremos por notar que essa longa procura do segredo plástico, embora não deixa transparecer o patétito, vale por si mesma em outro registro, que é o da lucidez e o dessa inteligência da esperança, de comunicação humilde com a matéria sensível que fazem dele um grego de nossos dias. Existem na sua obra certas pausas de silêncio, uma espera de anunciação do mundo plástico, que me fazem pensar às vezes - e aqui não tenho nenhuma comparação - em naturezas mortas de Chardin, ou nos interiores onde o espaço é mais profundo, de Vermeer de Delft. Essas cortinas, essas persianas tranqüilas, essas varandas abertas sobre um mar ao alcance de mão, essas mesas com toalhas listradas todos esses objetos quotidianos que entraram definitivamente como coordenadas na obra do pintor, tudo isto me transmite uma idéia de comunhão com as coisas que nos acompanham, arte-antipolêmica, anti-didática, arte que repousa sobre uma compreensão dos meios virtuosísticos, sobre uma disciplina da visão, sobre uma personalidade da visão.

Espero que não interpretem estas palavras como uma declaração de princípios. Espero que não me tomem por um defensor da arte pura, impermeável ao patético de Delacroise, à fantasmogoria de Bosch, ao transbordamento de Rubens ou à acidez de Goya. Pelo contrário.Por isto mesmo que me deixo arrebatar pela força romântica destes grandes mestres é que experimento a necessidade de procurar em Matisse uma representação do mundo que não é menos verdadeira que a outra, embora mais calma e menos teatral.

A vida e a obra de Matisse são o testemunho dum artista que escapou a todas as tentações da facilidade, que soube ver o que há de falso e perecível em certas tendências modernas e que jamais entrou nem entrará nessa categoria que Stravinsky denominou de "pompiers d'Avant-garde". Por isso será muito instrutivo o exame pelo celulóide dessa admirável figura humana, postada diante da tela: vereis essa mão, que não direi nervosa, mas segura, aproximando-se dos detalhes e do plano geral do modelo, a câmara lenta vos revelará seu processo de pesquisa dos valores profundos, a prospecção do terreno, toda as operações de exame plástico realizadas com um método quase científico ... vereis sobretudo na instrutiva cena da pose para o retrato do seu neto a extraordinária capacidade de síntese, de depuração elíptica, de um artista que pertence à nobre família dos pesquisadores insatisfeitos. E de fato um espetáculo consolador o desse velho ilustre, que ò beira dos 80 anos trabalha com a obstinação e o método vigoroso dum homem da Renascença. Nossa época que ligou seu destino no destino do comércio e da industrialização perdeu a capacidade de se comover diante das tarefas humildes: só se impressiona pelo gigantismo. Mas o dever dos poetas é o de afrontar o ridículo e as

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imposições do tempo. Dizeis pois tranqüilamente que Matisse procura desde sua primeira mocidade essa coisa esquecida e desprezada que é a perfeição. Sob a aparente calma da superfície de suas telas esconde-se a ânsia atormentada de um espírito para quem o mundo é, insisto, uma re-criação contínua. Assim o vemos na sua vila de Nice - nessa região privilegiada, uma das mais inteligentes regiões da terra - assim o vemos em êxtase diante de uma flor, elemento da arte. Sua fisionomia franca e honesta inspira-nos viva simpatia e estabelece imediata comunicação com ele. Mas já é tempo de encerrar esta conversa porque, como escreveu Paul Valéry, "n'oublions point que la grande gloire d'un homme exige que son mérite puisse être zappelo en pes de mots".

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O PRÓXIMO CERVANTES

Costumo dizer que os grandes e definitivos livros são os que antigamente se chamavam livros de engraxate.

Dante, Schakespeare, Cervantes. Além desta virtude de resistêcia à tradução, estes livros permanecerão eternamente porque possuem toda a vitalidade, toda a substância necessária ao consumo dos homens na sua dupla qualidade de indivíduos e de membros de uma vasta comunidade.

0 "Don Quijote" repousa sobre o conhecimento do homem, não como ser abstrato, mas como ser de carne e osso, campo de batalha, de conflitos, de contradições, de miséria abismais e de ásperas ou suaves grandezas. Dir-se-ia que "Don Quijote" foi escrito sob o signo da parábola do Bom Samaritano: o signo do amor ao próximo, esse próximo que Cristo caracterizou nosso ensinamento eterno. A noção de próximo diluiu- se hoje bastante pois a religião da humanidade, humanidade num sentido meio vago e remoto, tende a substituir a religião que repousa precisamente sobre os mandamentos de amor a Deus e ao próximo. Existe hoje muita gente que manifesta uma grande solidariedade telegráfica a sofredores distantes, mas volta o rosto ao sofrimento do vizinho ao lado. Há que amar a humanidade mas há que amar primeiro o homem fora de um conceito algébrico.

Don Quijote amou o próximo sobretudo na figura daquele que lhe era mais próximo — seu escudeiro Sancho Panza. Depois é que amou o próximo considerando como conjunto de todos os homens. Porque é bom lembrar que o universalismo não anula o individualismo — antes pelo contrário o pressupõe.

Este importantíssimo aspecto de "Don Quijote" como produto exemplar da cultura cristã tem sido salientado por todos os exegetas e comentadores cervantenos.

Thomas Mann declara que "Don Quijote" é um alto ponto no conhecimento da alma, da humanidade cristã, e que os críticos do cristianismo, com todo o seu tremendo aparelhamento analítico, não conseguiram até hoje nem ao menos tocar de leve pelo cristianismo como formador , como vículo do destino do homem ocidental.

Para apoiar este conceito de Don Quijote cristão Miguel Cervantes chega a apontá-lo como fiel discípulo do Cristo; do Cristo que para escrever sua missão universal não precisou de deixar os campos da Galiléia, assim nosso herói pelas estradas poeirentas da Mancha. É

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geralmente sobre um indivíduo que ele exerce sua caridade e sua justiça no indivíduo. Ele enxerga o tipo representativo da categoria a que pertence.

Cervantesfoi sem dúvida um bom servidor da sua fé,do seu rei e da sua pátria. E mesmo um herói cristão no sentido autêntico da expressão. Na defesa dessa fé, desse rei e dessa pátria perdeu um braço numa batalha decisiva para o destino da cristandade. Mas, como grande conhecedor que era do homem e da condição humana, não acreditou que fosse perfeito, como naquela época eram todos oficialmente convidados a acreditar. No admirável capítulo da segunda parte de "Don Quijote", o herói derruba o teatrinho de marionetes de mestre Pedro, pois julgava que fosse necessário socorrer Don Galleros, príncipe cristão atacado pelos mouros. Os reis e imperadores são quebrados e atirados ao chão. Don Quijote ordena depois a Sancho que pague as indenizações, avaliando-se tal rei ou tal imperador numa base de cotação bem pequena...

A grande maravilha de "Don Quijote", além, naturalmente, de seu incomparável conteúdo humano e da sua consciência dos altos e baixos do nosso coração e do nosso espírito, a grande maravilha de "Don Quijote" é a sua capacidade de adaptação às épocas mais diversas e às situações mais opostas. Cada um tira daí o que lhe convém. De "Don Quijote" pode-se extrair uma mitologia, uma carta do cotidiano, uma pedagogia, um tratado onírico, uma moral, vários ballets e pantominas, uma demonologia,(ah, apresença do demônio em "Don Quijote" está desafiando um teólogo), uma Suma da sabedoria realista, mil histórias variadas. É curioso observai como esta grande obra inspira os artistas mais díspares, que a comentaram pela ilustração, a gravura ou a música.Inspira ao mesmo tempo Massenet e Ricard Strauss, Gustave Doré e Daumier. 0 idealista visionário e o homem prático, terra-a-terra. Na verdade Dom Quijote é também Sancho Panza , e Sancho Panza éDonQuijote.

Os dois aspectos — o de visionário e o do realista — fundem-se muitas vezes num tipo superior, o que pôde fornecer a Unamuno sua célebre interpretação da origem inaciana do herói. De fato, Santo Inácio de Loyola encarnou os dois tipos — o do visionário e o do realista: o mesmo se poderia afirmar, de resto, em relação a Santa Teresa de Jesus e a tantos outros espanhóis ilustres, que, além do mais teriam conciliado no seu espírito e no seu método de vida o Ocidente como fruto de ação e o Oriente como fruto de contemplação.

Tem-se observado que Cervantes não exalta apenas o seu herói: ridiculariza-o de vez em quando. Na verdade o escritor pôs muito de si mesmo na sua criatura, e, através dela, examinou-se na sua precariedade e nas suas contradições. Pela boca do cronista Cide Hamute

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assim explica Cervantesseu personagem, no final da obra: "Para mim só nasceu Don Quijote, e eu para ele. Ele soube agir e eu escrever. Enfim, eu e ele não somos mais do que a mesma coisa..." Todos nós sabemos, entretanto, que Cervantes agia tão bem como escreveu. Considerando isto, chegamos à conclusão de que Cervantes tornou-se afinal superior ao seu próprio herói. Felizmente hoje ninguém aceita mais "Don Quijote" como uma simples sátira aos livros de cavalaria.

De "Don Quijote" saiu, segundo vários observadores o primeiro homem moderno, revelando de modo extenso, ao mesmo tempo que Montaigne, a humana condição. Sim, na idade moderna: porque onde melhor que no Livro dos Salmos se poderia estudar a humana condição, a condição do homem fora do esquema de classe ou de categoria política, o homem no mais íntimo dos íntimos da sua contingência?...

Na era atual — era de convergência de catástrofes, era de subversão cotidiana aos valores humanísticos, tem-se examinado muito a sorte de "Don Quijote" receiando-se que a sua lição não atinja mais o espírito dos homens. Entretanto, o sentimento de honra, do dever, das necessidades mais altas do coração ainda não desertou da face da terra.0 cristianismo, politicamente falando, tornou-se uma organização precária: e eu digo — felizmente.

Como tal é bom que ele se torne mais precário ainda... perdendo-se em valor imediato, ganha-se em valor espiritual. 0 que não pode desaparecer do mundo, sem que ele próprio desapareça, é a exigência cristã de aprofundamento e pesquisa do amor de Deus pelos homens e do amor dos homens a si mesmos e ao próximo. 0 que não pode desaparecer é a compreensão da dignidade da pessoa humana em face de todas as violências e monstruosidades que oprimem o homem moderno. 0 que não pode desaparecer é a cultura do Cristo, fecundadora de heróis, de artistas e de santos.Com o espectro da bomba atômica em frente, presos levados para campos de concentração, há que esperar ainda. Se é verdade que as "Novelas Ejemplares" possuem maior perfeição literária não é menos verdade que "Don Quijote", livro de planos diurnos e noturnos, estará mais perto de nós pela riqueza infinita da sua trama, pela idéia de libertação que palpita em todas as suas páginas, pela manifesta caridade de Cervantes que faz dele um leal servidor da cultura do Cristo.

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MARCOS KONDER REIS

Há três anos atrás entrava no meu quarto de doente um jovem muito jovem — não teria mais de vinte, ou vinte e um anos; com um livro na mão. 0 jovem ria, ria a todo instante e aparentemente sem motivo ou sem oportunidade. Pensei com os meus botões: "Ou é um bocó, ou é um poeta. Não há outra alternativa". De fato, rir tanto diante de um doente estendido na cama era o tipo de atitude anti-convencional: o rapaz achava-se positivamente à vontade. É verdade que aquilo poderia também ser uma manifestação nervosa. Mas em visitas sucessivas verifiquei que o jovem ria sempre. E verifiquei também que não era bocó, era,pelo contrário, uma pessoa muito séria: o poeta Marcos Konder Reis. Saído o visitante, peguei ansiosamente no livro e li até o fim. Desde a primeira página, assaltou-me um certo receio: a epígrafe era de Rimbaud. Tenho medo, confesso, das epígrafes. Muitos poetas usam-nas inconscientemente, sem propósito, às vezes só para mostrar erudição (falsa, já se vê). 0 padroeiro no caso era Rimbaud. Padroeiro perigoso ... 0 primeiro poema não acusava ligações de ordem espiritual, nem de ordem técnica com o autor de "Les Iluminations". Nem os seguintes. 0 último intitulava-se "Senhor", invocação que tem acobertado centenas de poemas péssimos e terminava com a grande e inesgotável palavra Amém, que tanta gente emprega sem de longe conhecer o seu terrível e espantoso significado. Um dos poemas chamava-se apenas "Canto do vagabundo na entrada de Constantinopla", título evidentemente pretensioso,de sabor excêntrico na atmosfera da poesia brasileira, mesmo moderna. Tanto o poeta era ambicioso que logo à entrada do livro, no poema liminar, anunciava que tinha o hábito de chutar estrelas, fazendo uma transposição moderna de metáfora ao gosto de Victor Hugo que a alusão futebolística não conseguia encobrir.

Ao fim daleitura de "Tempo e Milagre" procedi ao balanço das minhas impressões, que resultaram num misto de atração e repulsão.Para explicar melhor certas coisas preciso fazer um depoimento de caráter pessoal. Minha iniciação literária foi, além de precoce,muito complexa. Desde cedo habituei-me voluntariamente a misturar as leituras, sem nenhum "parti-pris" intelectual, procurando abrir meu espírito a todas as correntes possíveis. Isto atribuo em parte ao meu forte instinto de curiosidade, em parte à falta de formação universitária, que excluia toda idéia de planificação. Seduzido por tendências muitas vezes antagônicas, rejeitei compromissos com escolas, grupos e movimentos de direção pré- determinada. Devorava ao mesmo tempo poetas, romancistas e ensaístas

LETRAS E ARTES, domingo, 21 dez. 1947, página 7.

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clássicos, românticos, modernos e — quando chegou a hora— surrealistas, com avidez. Tal método tornou-se uma constante da minha personalidade, formando um franco-atirador das artes e da literatura, embora tenha, como é natural, muitas predileções pessoais.

Sabia, pois, muito bem, que o livro do jovem poeta era desconjuntado, fértil em expressões de gosto duvidoso, contendo poemas inorgânicos, fugindo à construção — e não conseguia descobrir seu parentesco com Rimbaud, que levou a poesia e a língua francesa ao estado máximo de condensação, de forma a ser dificilmente ultrapassado, ou mesmo igualado. Pimbaud é a severa compressão; o jovem poeta, ao contrário, manifesta em todas as páginas do livro uma dispersão fora do comum.Coragem de escrever coisas assim:

"Ai, que de tontura em tontura eu me afogo no amor

E eu te amo tanto! ! !"Nem mesmo a cacofonia era evitada:

"Já cinto no horizonte os acordes de Mendelssohn ..."

e assim por diante. 0 livro me irritava, mas não conseguia me deixar indiferente. Daí a dias reli-o, constatei outra vez o mau gosto reinante, a orgia do verbalismo, a total insubmissão aos princípios da ordem estética. Mas senti logo a presença de alguém que ansiava por se exprimir com independência, que procurava seu tom pessoal no meio da enorme massa de versejadores neutros que povoam a superfície da terra. Não retirava nenhum verso harmonioso, plasticamente realizado: mas retive uma figura humana quebrando cadeias, o que tornou o poeta simpático diante de mim. Sem dúvida alguma havia maior coragem em escrever aquelas coisas descabeçadas, do que enxertar em poesias de forma correta, a palavra prostituta em calão ou ataques ao capitalismo e às classes dominantes. 0 jovem poeta afrontava o ridículo, roçando mesmo à extravagância. Mas a sua sem-cerimônia tocava às vezes o absoluto, obtendo portanto com isto, no fim de contas, um resultado positivo. Num momento em que a palavra de ordem era planificação, ele ressuscitava uma atitude de boêmia espiritual. Num momento em que a palavra de ordem era descrença total, ele afirmava de novo a fé cristã, terminando mesmo o livro com um pedido de perdão para todos, inclusive os blasfemos e os hereges — o que já era um indício de sabedoria.

Para minha alegria, o poeta voltou a me visitar muitas outras vezes. Constatei logo o seu interesse e o seu carinho pelas coisas vivas e forte do espírito. Era pois um marcado, e a minha impressão inicial desenvolveu-se, confirmando-a o jovem poeta de mês em mês.Trazia sempre novos poemas em que, embora persistissem os defeitos do primeiro livro, surgiram novas qualidades, pois este lirismo barroco ia

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revelando um poeta das coisas vivas, da infância continuada e re-criada, dos elementos que fazem a montagem do mundo maravilhoso dos objetos, imagens e sensações: um poeta que lançou o grito dé ócio à morte, um técnico em ressureição. Este aspecto dionisíaco do seu temperamento não entra em conflito com a sua fé cristã: desdobra mesmo motivos pouco explorados do dogma.

De fato, no universo cristão o pessimismo e o otimismo apresentam-se simultaneamente como máquinas de construção produzindo um deslocamento maior ou menor, neste ou naquele plano, conforme as disposições psicológicas de cada um. Existe todo um ensaio a fazer sobre o grego na pessoa do Cristo. Na véspera de sua morte, que anunciou Ele aos seus discípulos, junto ao mandamento de amor? A perfeita alegria. É muito significativo o fato de Nietzsche, o dionisíaco Nietzsche, assinar-se "0 Crucificado", nos últimos tempos de sua vida, quando entrara já naquela zona indecifrável em que a loucura se confunde com a extrema lucidez ...

Cedo compreendi o motivo da epígrafe de Rimbaud: "Le Bonhenr était ma fatalité". Marcos Konder Reis afirmava seu desejo de plenitude, sua procura da felicidade à qual tendem todos os homens, quaisquer que sejam suas convicções políticas, filosóficas ou religiosas. Mas poucos, na verdade, revelam uma consciência tão clara desta vocação — desta fatalidade — como o poeta de "David". É mesmo possível que esta constante obsessão tenha até agora impedido o poeta de se concentrar, de encontrar uma solução formal que corresponda a certos princípios estéticos mais rigorosos. 0 próprio deste poeta é a explosão. Ele se desnuda para o mundo em atitude ingênua de deslumbramento ante o espetáculo sempre renovado da Criação, da criação manchada e envenenada pelo crime do homem, mas sempre pronta a manifestar os seus inesgotáveis recursos. Ele não se escandaliza, porque seu olho é puro. Aparentemente acha-se mergulhado em pleno panteísmo: não faz mal — pois antes de ser cristão, somos pagãos.

Neste póeta a infância não é um pretexto literário, um episódio marginal: é o centro mesmo do seu ser, toda a sua vida se desenrolando no sentido da conquista permanente, não digo deste elemento, mas deste mistério que é a infância. Esta disposição espiritual de tão imprevistas conseqüências — conforme foi assinalado pelo próprio Cristo — é reconstituída poeticamente pelo autor de "Apocalipse" com todo o fogo de uma inspiração perigosamente transbordante. 0 lado metafísico de tal atitude é apoiada objetivamente em coisas muito simples, própria à mitologia da infância. Fala o guri e descreve seu mundo familiar, mundo de crônicas heróicas, de viagens de Júlio Verne,de espantalhos, dos banhos de mar, dos grupos de companheiros, das festas de Natal, do cinema, de gaitas e sanfonas, do circo, dos "pic-nics" ...

0 elemento sensorial é mesmo apresentado com toda simplicidade nos seus aspectos primitivos, não se vexando o poeta de nos contar seus

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êxtases diante do doce de caju, do sorvete de pitanga, do pão-de-ló ... Existe nestes poemas um fermento de anarquia que considero precioso, numa hora em que o totalitarismo emprega esforços tremendos para impor ao mundo uma falsa ordem, uma ordem bitolada. Este fermento anárquico faz levedar o princípio da liberdade, sem o qual não poderá existir verdadeira criação artística. Fiz questão de prestar um depoimento pessoal para mostrar que louvando no poeta Marcos Konder Reis sua liberdade, seu inconformismo, sua atitude espetacularmente romântica, nem por isso reprovo os poetas que seguem tendências opostas _ a da compreensão da forma, a da economia de meios. Só que existe uma certa confusão no reino desses antípodas. Alguns apoiam-se em Valéry, cujos princípios teóricos, de reste , subscrevo, para conduzirem a poesia a um terreno um tanto árido, ou talvez mesmo estéril. Os princípios estéticos de Valéry, relativos à disciplina formal, foram postos a prova em poemas que se afastam muito dessa neutralidade científica, dessa esterilidade ... acadêmica.Quem 1er, compreender e penetrar "La Jeune Parque", "La Cimetrière Marin". "Elbeuche d'un Serpent", "La Pythie" e outras poesias de Valéry, não pode deixar de sentir a força lírica, a eloqüência contida, sem dúvida, por um princípio regulador, mas revelando generosidade e exaltação do seu autor. Em música, o método da economia de meios é citado a todo instante a propósito de Mozart e Debussy: mas os familiares destes dois grandes mestres não se iludem sob os véus da proporção, percebem logo uma vasta riqueza romântica e emocional.

Marcos Konder Reis será também possivelmente um ator dramático. Até agora só conheço dele uma peça - "José do Egito". Do ponto de vista da técnica teatral, é uma obra ainda com muitas falhas, mas anunciando um poeta de forte envergadura. Sua concepção da figura de José é admirável, e teologicamente exata : de resto, o filho de Jacó é uma prefiguração do Cristo, e como tal o poeta o planta diante de nós, na sua força de perenidade. Se continuar neste caminho, creio que Marcos Konder Reis abrirá perspectivas novas no teatro brasileiro, continuando a antiga tradição que tem em Claudel o mais ilustre dos representantes.

0 último livro deste poeta, "Menina de luto" apresenta novas soluções formais, de grande interesse. Contém dois dos seus melhores e mais realizados poemas, "Barco a Vela" e seu vizinho "A Torre" — que sem nenhuma dúvida alcançam um grau de perfeição poucas vezes observada na poesia brasileira. Neste livro o autor ensaia o metro curto, empregando-o, a meu ver, com grande felicidade, libertando os poemas desta pobreza estática que muitas vezes o metro curto determina. 0 tema da evasão é montado em roupagens novas (v. g. no notável poema em prosa "A tangerina").0 poeta Marcos Konder Reis é, repito, um jovem ambicioso — embora esteja a léguas do cabotinismo. Atrás da desordem de seus versos, dessa dispersão barroca, sente-se uma alma palpitando; percebo às vezes, aqui e ali fa iscas

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geniais. Sua ambição, finalmente, é a de todos os poetas que assumiram a fatalidade da sua vocação — a de, através de todas as lutas, misérias, desânimos e sofrimentos, arrebatar o céu.

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O APOSTOLO SAO PAULO

I

Não creio que possa existir na vasta galeria de grandes tipos humanos uma figura mais fascinante que a de São Paulo. Muitos 3dmiraram seu gênio organizador, atribuido-lhe mesmo sem esforço, o título de fundador do cristianismo — como se o fundador do cristianismo não fosse o Cristo: mas nem todos ouvem o pulsar do seu coração, nem todos se deixam contagiar de seu calor humano — da sua viva e inigualável caridade. Porque se houve um homem que bebeu do leite da ternura humana, este foi São Paulo. 0 vulto espantoso do dinâmico chefe de missões, do fundador de igrejas e de círculos, do homem de ação, enfim, oculta muitos outros aspectos do apóstolo. Sem dúvida São Paulo foi homem de ação, e dos maiores. Se o quisermos comparar, no puro plano histórico a um líder político da nossa época ainda assim a balança penderá para o lado do apóstolo. Porque um líder político moderno possui a seu serviço uma enorme aparelhagem material, os meios rápidos de divulgação e transmissão de idéias, ordens, sistemas e doutrinas: além disto acena ao povo com as perspectivas de uma vida temporal melhor, servindo-se dos engodos e das promessas como base de apoio sólida. Mas pensai um instante neste homem que, há quase vinte séculos percorria a pé ou a cavalo as estradas difíceis e inconfortáveis da Asia Menor, sem agentes nem funcionários às suas ordens, sem telefone, telégrafo nem rádio, sem dinheiro, vivendo ora do seu penoso ofício de fabricante de tendas, ora da ajuda de amigos e discípulos, prometendo aos homens o quê? A prosperidade material, o aperfeiçoamento das indústrias,um perfeito sistema crediário, grandeza econômica nacional, o paraíso na terra, o fim dos sofrimentos e das privações? Não. Apenas esta coisa espantosa: o conhecimento de Jesus Cristo, de Jesus Cristo crucificado. De fato, ele mesmo o proclamava: pregou "a Cristo crucificado, que é na verdade para os judeus escândalo e para os gentios loucura". Não pode haver maior loucura: nunca houve, nem jamais haverá. As doutrinas mais subversivas que existem não se podem igualar a esta. Admitindo-se que dentro de vinte, ou de cinqüenta ou de cem anos os cristãos incorporem à sua religião os sistemas políticos ou os planos sociais mais avançados, nunca eles poderão ultrapassar ou mesmo igualar o que já existe de revolucionário em sua fé, porque a cruz de Jesus Cristo está plantada no meio do mundo como o divisor da humanidade, como o sinal máximo de

LETRAS E ftRTES, domingo, 1 fev. 1948, página 5.

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contradição e escândalo, com todos as conseqüências tremendas que esta aceitação ou a sua rejeição implicam. Os cristãos adoram, sem dúvida, esta cruz gloriosa, mas também vacilam muitas vezes diante dela, baixam os olhos, porque ela se levanta contra os elementos dominadores deste mundo, contra os instintos de posse, contra o apetite de riquezas terrestre, contra a justiça dos falsos doutores, contra a meia ciência, contra a rotina, contra caricatura da caridade, contra a aparência da verdade. Ela rompe o véu das auto-ilusões e poe o homem em face destes dois universos que ele teme igualmente em enfrentar: o abismo de seu nada e o abismo de sua grandeza, a consciência da sua culpa e a esperança da sua promoção a uma ordem transcendente, fundada nos méritos infinitos do Deus encarnado.

São Paulo foi destinado a pregar esta revolução — revolução permanente. Nascido de família judia, em cidade grega sob a dominação romana, absorveu as três grandes culturas do mundo antigo, do qual deveria sair a explosão do cristianismo. Tarso, sua cidade natal emparelhava com Alexandria e Atenas do ponto de vista da cultura. Nela reinavam língua e espírito gregos, lei romana e o rigor da sinagoga israelita. Na raiz da formação paulina está a enitara helénica. A família de São Paulo não procedia do Ghetto; em Tarso não existia separação rigorosa entre judeus e gentios. Seu pai inculcou-lhe o amor ao estudo da Bíblia. 0 apóstolo carrega portanto, os dois mundos: o do Antigo Testamento e o do jovem Evangelho.Aos quinze anos vai para Jerusalém e lá conhece seu grande mestre Gamaiiel que desenvolverá e aperfeiçoará seu gosto pelo estudo da Sagrada Escritura. Em breve, porém, o conflito se instalava no espírito do moço israelita. Apaixonado pela lei de Deus transmitida através dos séculos pelos profetas e patriarcas ,Saulo de Tarso, percebeu as dificuldades de aceitação da lei

oral. Havia, além dos 218 preceitos e 316 proibições, um tecido de interpretações orais duro de ser atravessado. Na suas epístolas o grande apóstolo, com insuperável nobreza, faz-nos o relato do drama que atravessara. Entretanto, diz ele com simplicidade a lei era boa; representava um princípio de vida, deveria servir à vida. Anos mais tarde verificou-se o incalculável acontecimento que tanto trabalho tem dado aos exegetas de toda espécie e chegou mesmo a obsecar a imaginação popular: a caminho de Damasco, para onde seguia a fim de buscar os novos rebeldes, os cristãos e trazê-los de volta, domados a Jerusalém, o jovem Paulo de Tarso, que a um ano antes participara ativamente da lapidação do sublime Estevão, cai do cavalo, sente-se subitamente cercado de uma luz desconhecida e ^íouve a voz do próprio Jesus Cristo que lhe declara: "Eu sou Jesus Cristo, a quem tu persegues". Ora Saulo pertencia à Igreja nascente; a Jesus Cristo nunca havia visto em pessoa. Mas Jesus Cristo é perseguido e atacado nos seus fiéis, nos membros do seu campo místico.

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Saulo foi a Damasco e depois voltou para Jerusalém. Ninguém jamais poderá descrever o que se passou então na alma do feroz perseguidor dos cristãos. 0 fato é que o furor com que havia se aplicado a destruir pô-lo daí em diante o convertido a construir. Paulo, já batizado, abandona a sinagoga israelita e, diante de seus olhos, não por intermédio do homem, mas pela revelação de Jesus Cristo, conforme ele próprio declara, começa a se patentear a economia do mistério escondido desde os séculos em Deus, novidade da redenção operada sem os acessórios marginais dos preceitos da lei, o universo assumido pelo Filho do homem crucificado, o despojamento da antiga criatura formada à medida do espírito de Cristo, sepultada com Ele, ressuscitada com Ele, verificada com Ele, pelo poder do Deus que é em todos, reside em todos e é a plenitude e a consumação de todas as coisas.

"Se confessares com a tua boca ao Senhor Jesus e creres no teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo". (ROM.X, 9). Eis a fórmula lapidar da reabilitação, eis um golpe revolucionário como poucos, eis a liquidação das aparências, um verdadeiro impacto em cima de uma moral subalterna, preocupada com detalhes comesinhos e superstições ancestrais. Paulo, como os outros judeus da sua qualidade, acreditara num Messias nacional , que viria restabelecer a prosperidade de Israel. Ao. contrário do que pensam certos exegetas, a explicação de sua conversão como determinada pelo lado helénico do seu espírito familiarizado com os mitos é automaticamente anulada pelo que se passou imediatamente depois. Não foi cercado da glória terrestre, não foi numa apoteose de domínio que ele viu seu Mestre: foi pregado numa cruz aniquilado, "para os judeus escândalo, para os gentios loucura". Nas Epístolas de São Paulo não existe quase a narrativa de fatos ou de episódios. Ele não se detém diantes dos espetáculos da natureza. Para São Paulo existem dois termos de vida:0 Cristo que é o seu fim e a sua salvação, e o homem, no qual ele quer comunicar a verdade do Cristo, no Cristo e pelo Cristo. São Paulo é a doutrina nua, sem a menor concessão ao que se acha fora da zona de essência teológica. Entretanto, não existe ali nenhuma paridez. Sente-se em todas as cartas uma vasta e ardente humanidade palpitando. São Paulo o que não tem é sentimentalismo nem piedade Barroca. Muitos livros, muitos trabalhos de teólogos e não dos menos ilustres — inclusive mesmo doutores da Igreja — deixaram-me ora frio, ora indiferente, ora aborrecido. Sua cautela e minuciosa prudência, suas intermináveis digressões acadêmicas, suas tiradas retóricas,suas comparações extraídas da natureza, da fauna, da flora, da história, da mitologia, seu mal disfarçado narcisismo, seus lances alambricados de pietismo — tudo isto me constrange na leitura desses veneráveis personagens, de resto

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tão simpáticos por outro lado, e carregados de virtudes. Mas São Paulo me arrebata. São Paulo é a própria audácia, a perenidade da juventude, a novidade permanente. São Paulo não tem recalques nem precauções oratórias. Em torno deste homem incomparável a própria admiração teceu equívocos — a nós o que acima de tudo interessa na figura do "organizador" do cristianismo é o místico — o místico por excelência, ao lado da Aguia de Patmos.

A dimensão de São paulo consiste na quebra das dimensões: "Porque eu estou, certo que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a força, nem o que há mais profundo, nem outra alguma criatura, nos poderá apartar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo Senhor nosso".(ROM.VII1-8-9). Onde e quando se tinha ouvido linguagem semelhante?Onde e quando foi depois ouvida? A humanidade ganhou, sem a menor dúvida, um ímpeto fortíssimo a partir dos dias em que tais palavras foram escritas. Não apenas escritas, mas vividas com o calor do enorme coração de São Paulo. A força espiritual humana, sua virilidade e a consciência de sua alta missão — a de se elevar e se transformar pela universal caridade — atingem aí seu máximo grau de rendimento. Mas são incontáveis as passagens que, como esta, manifestam a envergadura do gênio paulino, seu amor arrojado, sua ternura intercomunicante, sua sabedoria e sua inteligência total.

Infelizmente não podemos interpretá-lo no texto original . Mas ainda em modestas traduções portuguesas, francesas ou espanholas, tão evidente e direta é a sua força persuasiva, que até hoje não encontramos alimento mais adequado ao nosso espírito. Há muitos anos que as Epístolas nos acompanham, não se passou ainda um dia — desde o ano já remoto da sua descoberta — em que não tivéssemos lido e meditado pelo menos alguns versículos ao acaso, pois nada de supérfluo ou de ornamental existe nestes documentos inigualáveis.

Lição ainda muito mais profunda e elevada do que a que recolhemos com a audição de João Sebastião Bach e de Victória, estes dois grandes músicos paulinos. Lição muito mais forte do que a dada pelos poetas mais trágicos e essenciais. A volta à teologia paulina é um dos sinais mais claros que atravessam o espesso nevoeiro de vulgaridade dos nosso dias. Na carta queo então Cardeal Pacelli escreveu a José Holzner, autor de uma das mais recentes biografias de São Paulo — de onde extraí algumas notas para o presente artigo — lê-se que "ninguém pode esforçar- se por entender São Paulo sem crescer no conhecimento e amor de Cristo". No atual movimento de renascença religiosa, São Paulo pela excelência da sua doutrina, pela virilidade do seu espírito e pela intensidade da sua vida dramática de apóstolo, é o mestre ideal para o teólogo,

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para o militante e até mesmo para o homem comum cristão, aperreado pelo Estado totalitário.

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O APOSTOLO SAO PAULO

I I

Dizíamos no artigo anterior que São Paulo é por excelência o apóstolo dos tempos modernos. Sim: porque eleéo apóstolo que, como os homens de hoje, não conheceram a .Jesus Cristo em pessoa. Porque se dirige a um mundo afundado na descrença, na sabotagem da justiça, na prostituição, na corrupção, no ódio entre os homens, no culto à criatura e aos falsos ídolos, na iniqüidade, na malícia, na meia ciência, na detração, na insensatez, na soberba, na arrogância, na maldade - o mundo que ele drescreveu mais de uma vez nas suas cartas, e especialmente no capítulo 15 da Epístola aos Romanos.

Mas não só por isto: é que poucos terão tido uma vida tão intensa, tão rica em acontecimentos marcantes, que roçam pelo rocambolesco e pelo extravagante, mas que nunca de fato se apresentam como tal, devido à simplicidade e medida com que ele os narra. Não creio que nem mesmo a vida de um Lenine— talvez a maior figura política de todos os tempos — possa emparelhar com a de São Paulo em riqueza de episódios, em forte dramaticidade — inclusive no seu final, porque um morre na cama, e o outro decapitado. Nota-se que São Paulo fundou propriamente a técnica da conspiração, sem possuir nem de longe os recursos do conspirador da nossa época. Ele poderia ser mesmo o padroeiro dos conspiradores e dos sabotadores da iniqüidade. É visto principalmente deste ângulo que São Paulo deve atrair aos militantes modernos— e não apenas aos cristãos. Penso ser desnecessário ressalvar que para nós, católicos, o apóstolo é movido pelas três virtudes teologais, que o sobrenatural é sua zona familiar e que não o encaramos apenas sob este ângulo físico, político. Mas queremos frisar o outro aspecto mais acessível da sua personalidade— essa categoria que todos hoje compreenderão se a chamarmos de humana.

Observa-se diariamente um erro muito comum: escritores, sociólogos, psicanalistas, sem maior exame, cavaram um abismo entre o homem e o santo, como se houvesse oposição entre os dois. Salvo alguns casos, como os dos anacoretas, em geral os santos são as pessoas mais humanas que existem. Eles não se colocam na vida em atitude de oposição ou hostilidade aos homens, mesmo porque seu amor a Deus está intimamente ligado, e quase diríamos condicionado ao seu amor aos seus irmãos. Os intelectuais a quem me referi tendem sempre a encarar o santo já oficialmente santo, imobilizado no altar, transformado num pedaço de pau

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ou de pedra, ou em êxtase, pairando acima das necessidades e das contingências humanas . São intocáveis, definitivos, materiais. É pena que escritores e cientistas interpretem assim o santo, inferiores nisto ao homem do povo, pois este dirige-se ao santo e crê que ele se interessa pela sua vidinha e pelos seus casos pessoais— tanto assim

que lhe faz promessas e lhe acende velas.Essa visão estática do santo decorre de uma incompreensão

dos princípios fundamentais da religião católica, que repousa na Encarnação de Jesus Cristo. 0 desprezo que o santo tem do/como desprezo pelas riquezas terrestres, pelas coisas vãs , que atraem o homem para a luta, a perdição, a guerra e a morte. Não se concebe um santo com desrespeito, indiferença ou ódio aos homens - como se observa na nossa época em tantos líderes e doutrinadores políticos e sociais, muitos dos quais

se arvoram em novos redentores e, embora preguem abertamente o ódio, provocam o fanatismo de milhões de devotos.

São Paulo é o tipo exemplar do santo, porque nenhum subiu mais alto nas asas da contemplação, segundo ele mesmo declarou, e porque nenhum assumiu uma tão vasta e profunda carga de humanidade. Não é em vão que os capítulos 11 e 12 da 2§ Epístola dos Corintos se acham intimamente ligados, contemplando-se. Vou tentar resumi-los para o homem comum.

No capítulo 11 descreve o apóstolo algumas cenas de sua vida como militante. Depois de narrar experiências terríveis e espantosas por que passou, declara calmamente que tudo aquilo são "coisas exteriores" e que suas preocupações são muito maiores: o cuidado com as igrejas e com as necessidades dos fiéis. 0 que lhe acontece pessoalmente não tem muita importância. Eis a tradução do esquema famoso, traçado para todos os séculos:

"Visto que muitos se gloriam segundo a carne, também eu me gloriarei. Porque de bom ânimo sofreis os insensatos, sendo vós sábios. Pois sofreis que vos ponham em escravidão, que vos devorem, que se apoderem de vossos bens, que se vos tratem com altivez, que vos firam no rosto.Com vergonha o digo como s e nós fraquejássemos nesta parte.Mas naquilo em que qualquer tem ousadia (falo com insipiência), também eu a tenho. São hebreus, também eu (daqui em diante o apóstolo se refere aos seus adversários e contraditores); são israelitas, também eu; são descendentes de Abraão , também eu; são ministros de Cristo— falo como menos sábio — mais o sou eu: em muitíssimos trabalhos, em prisões muito mais, em açoites sem conta, em perigos de morte f reqillentemete.Dos judeus recebi cinco quarentenas de açoites menos um; três vezes fui açoitado com varas, uma vez fui apedrejado, três vezes naufraguei, uma noite e um dia estive no fundo do mar,, em jornadas muitas vezes,

perigos de rios, em perigos de ladrões, em perigos dos da minha nação, em perigos da parte dos gentios, em perigos ha cidade, èm perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre falsos irmãos, em trabalho e fadiga, em muitas vigílias, com fome e sede, em freqüentes jejuns, em frio e nudez. Além destas coisas, que são exteriores * a minha preocupação cotidiana, o cuidado de todas as igrejas. Quem enfraquece, que eu não enfraqueça? Quem se escandaliza, que eu não me abrase? Se é preciso gloriar-se, naquilo que é da minha fiaqueza é que eu me gloriarei. Deus é pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é bendito nos séculos, sabe que não minto. Em Damasco, o governador do país pelo rei Oretas fazia guardar a cidade dos damascenos, para me prender. E num cesto me desceram por uma janela muralha abaixo; e assim escapei às suas mãos". 2§ Aos Coríntios, XI-18, 33.

Não farei as excusas habituais pela longa transcrição: porque os que não conhecem este texto sublime folgarão certamente em descobri-lo e quanto aos seus familiares, estes sabem que é sempre útil sua releitura. Mesmo se considerarmos esta passagem da Epístola no seu exclusivo aspecto humano, creio que dificilmente se lhe poderá opor um outro quadro tão rico de experiência e de força de ânimo, ao mesmo tempo exposto com tão grande laconismo e rigidez, de linhas. A sobriedade e austeridade do apóstolo fazem ressaltar ainda mais seu dinamismo. Entretanto, longe de se gloriar da sua fortaleza, da sua capacidade combativa, do seu inigualável "élan" de militante, é da sua fraqueza que ele se vangloria. Será possível encontrar um homem mais humano? "Quem se enfraquece que eu não me enfraqueça?" Na Epístola dos Coríntios — cap. IX, 22/3 ele afirma: "Tornei-me fraco com os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para salvar a todos. E tudo por causa do Evangelho, para dele me tornar participante".

Qual será então a diferença entre o militante São Paulo e os militantes políticos modernos, admitindo-se por hipótese que alguns destes tenham atingido a riqueza da experiência paulina? Entre outras, parecem-me dignas de notas as seguintes diferenças: São Paulo ama os homens, solidariza-se com seus casos, dá o exemplo de fraternidade suprema pois se coloca no lugar dos outros — mas tudo faz pela glória do Evangelho, enquanto o militante moderno tudo faz pelo Partido. (Naturalmente não discutiremos com o amigo da onça, que põe o Partido muito acima do Evangelho...). São paulo não prega nem cultiva o ódio.Fora do amor — e do amor levado até às suas extremas conseqüências até à obediência ao carrasco, até o máximo despojamento e morte pela cruz — fora do amor não existe para ele solução, nem justificativa para nenhum plano de salvação individual ou coletiva. 0 militante moderno admite e mesmo prega muitas vezes o ódio como solução para questões políticas

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São Paulo dá como fim ao homem sua transfiguração com

o Cristo, no Cristo e pelo Cristo, sua ressurreição dentre os mortos; uma vida nova pascal, a restauração da plenitude da criatura, a participaçãi num futuro e novo universo assumido pelo Senhor. Mas essa transfiguração não é obtida por um golpe de mágica, e sim por uma renúncia cotidiana do fiel aos instintos de egoísmo e cupidez — para que, despojado desse fermento de iniqüidade, esvaziado da malícia e do orgulho terrestre, possa o Cristo se instalar em seu coração e no seu espírito, dominando o pecado e esmagando a morte. Está subentendido que no quadro dos elementos negativos do mundo que se deve combater figura tudo o que se opõe à conservação da justiça e do desenvolvimento das qualidades positivas do homem _ e é neste ponto do caminho que muitas vezes se encontram o militante cristão e o militante socialista e comunista. Porque — como nota o próprio Papa Pio XI na sua encíclica "Quadragésimo Ano", as doutrinas socialista e comunista assemelhavam-se às vezes espantosamente "élonnamment" ( conforme a tradução oficial francesa que tenho a meu lado)-à doutrina cristã. Assemelhavam-se neste ponto de reivindicação da justiça social, que é o grande problema dos nossos dias.

E possível que alguém se escandalize ao me ver trazer à cena o militante político moderno, numa série de artigos sobre o apóstolo São Paulo. Ao que se escandalizar responderei, pois, o seguinte: muitos cristãos se impressionam hoje com o fato indiscutível que se renova todos os dias: o mundo está repleto de homens que afrontam a tirania, a opressão, que passam dificuldades e privações de toda a espécie, que afrontam os tribunais de exceção, que são conduzidos aos campos de concentração, às prisões e aos pelotões de fuzilamento.

Milhares, milhões de homens têm sofrido tudo isso por uma causa. Militantes políticos, errados ou certos, mas crentes que obedecem a um ideal. E , — manda a verdade que se diga — não somente homens da esquerda. 0 cristão pode e deve ter suas preferências políticas-- o que não é ser parcial na sua caridade, que por definição é universal. Diante de um homem que sofre, como diante de um morto, seu coração se quebra. E "Deus não faz acepção de pessoas".

0 cristianismo é muito maior do que em geral se pensa, a Igreja é muito maior do que em geral se pensa, e Deus é muito maior do que em geral se pensa. (E tenho que empregar pobres palavras humanas, pois sei que dizendo de Deus que é "muito maior"., restrinjo-o).

Daí a tremenda responsabilidade do militante cristão.Ouso dizer que ele deverá ser julgado com muito mais severidade que o militante político não-cristão, pois que conhece a própria verdade encarnada. Daí a grandeza de São Paulo, que se dedicou não a um partido ( — parte — fragmento do todo — ) mas, que,na sua universal caridade assumiu o

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mundo renovado e transfigurado pelo Cristo, marcando assim uma diferença com o militante político moderno, que obedece ao chefe transitório, que apela para a união só enquanto o partido não toma o poder, que rejeita toda concepção transcendente do nosso destino, e que põe na sociedade seu fim último.

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RECORDAÇÃO DE ISMAEL NERY

(I)

Foi em fins do ano de 1921 que conheci Ismael Nery. Ele trabalhava na antiga Diretoria do Patrimônio Nacional, no Ministério da Fazenda. Ismael Nery foi nomeado desenhista da seção da arquitetura e topografia. Vi um belo dia entrar na sala um moço elegante e bem vestido. Ajeitou a prancheta, sentou-se e começou a desenhar. Meia hora depois saiu para o café. Aproveitei sua ausência e resolvi espiar o que ele fazia: rabiscara bonecos em torno de um projeto para o edifício de uma alfândega. Ao regressar puxei conversa com ele; saímos juntos da repartição. Assim começou uma amizade que se prolongou ininterruptamente até o dia da sua morte em 6 de abril de 1934.

Ismael voltara da Europa, onde havia passado um ano. Fura aperfeiçoar seus estudos de pintura. Lembro-me que falava com entusiasmo do conjunto das exposições e museus, mas não se referia em particular a nenhum pintor da época. Esperava uma grande transformação do conceito de artista, ou talvez uma volta do conceito clássico, pois encarava o artista como um ser harmônico, sábio e vidente, e não um simples cultor de temperamento: via a pintura em estado de crise, com a proximidade do cinema. Alguns anos mais tarde lembrei-me dessas primeiras conversas, ao ler o ensaio de André Breton que começa mais ou menos assim: "A máquina fotográfica deu um golpe mortal nos velhos meios de expressão..." Ismael achava que muitas intenções da pintura já estavam realizadas definitivamente; por exemplo a primeira vez que viu Tintoreto, achou inútil continuar a pintar.

Foi, pois, sob as espécies do pintor, desenhista e arquiteto, que conheci Ismael Nery. Mas em breve outros aspectos, estes os mais profundos, da sua personalidade, me eram desvendados: o do poeta, do filósofo e mesmo do teólogo. Devo dizer que presto meu depoimento com absoluta honestidade, sem o menor desejo de mistificar, como também sem motivo para concordar com algumas pessoas que tendo conhecido superficialmente Ismael Nery, recusam-lhe a grandeza e atribuem-no a preocupação de criar um mito.

Aqui, devemos fazer um parênteses para colocar uma observação. Se o critério de cultura está condicionado de modo absoluto à posse de uma biblioteca, Ismael era mesmo o tipo do inculto, pois que não a possuía. Poucos livros havia na sua casa. De resto, muitas vezes

LETRAS E ARTES, domingo, 6 jun. 1948, página 7.

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ele^me dizia a sério que quando tivesse dinheiro compraria uma vasta biblioteca, pois todo mundo aí começaria a perceber que ele era cultíssimo. Mas como escreveu Fernando Pessoa, "Jesus Cristo não sabia nada de finanças, nem consta que tivesse biblioteca..."

0 método de cultura de Ismael era muito prático e inteligente. Quando ele queria saber qulaquer coisa, dirigia-se a um conhecedor autêntico do assunto. Muitas vezes sabia em 10 minutos o que levaria semanas a aprender se consultasse um livro. Ismael lia no grande livro sempre aberto, no livro dos homens e da vida. Com ou sem biblioteca o fato é que durante ^jT)anos de convivência diária com ele, nunca o vi engasgar nem emudecer ao abordar qualquer assunto. Não posso dizer o mesmo de todos os homens que até hoje conheci. Vi-o e ouvi-o inúmeras vezes conversando e discutindo com poetas, atores, padres, médicos, mecânicos, soldados, fazendeiros, políticos, industriais — toda a espécie de gente, enfim.E conversando com segurança, com profunda intuição dos aspectos múltiplos que a vida apresenta. Com um extraordinário senso de unidade. Embora muito polido mantinha grande firmeza de opiniões e jamais abandonava a arena. Dele não se poderia dizer que tinha "tédio à controvérsia". Era um polemista nato, um conversador apaixonado que vivia em vigília permanente.

Invoco aqui o testemunho de meu amigo J. Fernando Carneiro, nessa época médico do Sanatório de Correias: ao estabelecer o primeiro contato com o doente, no caso Ismael, fez-lhes as perguntas de praxe a respeito do seu apetite, média de horas de sono, etc. Ismael respondeu-lhe calmamente: "Como bem, mas quase não durmo, fico passando em revista todos os problemas da humanidade." Carneiro pensou com seus botões: este, além do pulmão, sofre sem dúvida da cabeça. Mas daí há poucos dias verificava seu engano, pois que o novo doente passava mesmo a vida a revolver os problemas da humanidade! Ele era o homem universal que participava da vida de todos e sabia extrair de todos e de tudo seu interesse próprio e muitas vezes escondido dos olhos dos outros. É espantoso que ele tanto tivesse conhecido homens, conseguindo quase sempre localizá-los espiritualmente com acerto, ele que passara tanto tempo se estudando!

Era inútil mentir, ou deformar a verdade diante de Ismael porque imediatamente ele percebia o disfarce ou a omissão, repondo o desequilíbrio com uma palavra, uma observação e às vezes com um simples olhar. Chamem a isto poder mediúnico, poder magnético, o que quiserem. Quanto a mim, prefiro soltar a palavra que escandaliza ou faz sorrir com indulgência os céticos mais refinados: cumpre-me dizer que estou convencido de que ele era iluminado pelo Espírito Santo. Muitos leigos — mesmo crentes — esquecem-se de que qualquer cristão pode e deve pedir

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a assistência do Espírito Santo, prometida pelo Cristo no momento mais solene de sua vida, a todos que o invocassem com fé verdadeira. Isto é mesmo um ato normal da vida cristã.

Por que Ismael conservou-se sempre cristão? A época em que ele viveu era muita desfavorável ao catolicismo no Brasil. Os intelectuais eram na sua grande maioria, ou agnósticos, ou comunistas, ou comunizantes. Mesmo muitos com tendências espiritualistas disfarçavam-nas, por respeito humano. A r e 1 i q i ã o__a pare côa -nos como qualquer coisa de obsoleto, definitivamente ultrapassada. 0 catolicismo, servindo só para base da reação. Não era possível, sobretudo a uma pessoa de bom gosto, ser católica. Nós todos éramos delirantemente modernos, queríamos fazer tábua rasa dos antigos processos de pensamento e instalar também uma espécie de nova ética anarquista (pois de comunistas só possuíamos a aversão ao espírito burguês e uma vaga idéia de que uma nova sociedade, a proletária, estava nascendo). Nessa indecisão de valores, é claro que saudamos o surrealismo como o evangelho da nova era, a ponte da libertação.

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RECORDAÇAO DE ISMAEL NERY

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Ismael voltou à Paris em 1927 e fez conhecimento pessoal com alguns escritores e pintores surrealistas. Mas, apesar de lhe interessarem muito as idéias novas, permanecia firme na sua fé, que considerava apoiada sobre um valor absoluto, definitivo e eterno. Do comunismo adotava certas partes que lhe pareceram muito justas, mas rejeitava-o como norma de vida e concepção filosófica do homem e da natureza. Considerava infantil e ingênuo pretender fazer qualquer restrição ao Cristo e ao Evangelho. Apresentava-nos o Cristo não só na sua divindade, como na- sua humanidade, mostrando constantemente, a verdade da encarnação, e ainda o Cristo como filósofo e modelo supremo dos poetas e dos artistas. Em diversos atos e passagem da sua própria vida, transpôs certos exemplos e ensinamentos do Cristo, dando-lhes atualidade viva, provando, assim, sua permanência e perenidade. Pouco a pouco, apesar de nossa rebeldia, e nossas indecisões, começamos a perceber que o Evangelho não era um livro remoto e "superado", mas uma fonte de vida, pois contém a doutrina d'Aquele que se declarou a própria vida. 0 Cristo passou a ser, para mais alguns homens, uma realidade fortíssima, a realidade mesma. Era, portanto, possível ser em 1930 grande artista, homem moderno, e católico romano de confissão e comunhão freqüente.Assim foi Ismael Nery. Quem não passou por tal experiência, talvez não possa julgar do alcance dessa revolução. . Hoje, apesar dos pesares, existe uma corrente intelectual católica, dia a dia conhecida, e já não parece tão bizantino o fato de um poeta, um escritor, um pintor, declararem-se católicos. Mas, naquela época, era qualquer coisa surpreendente.

Faltou a Ismael Nery, um cronista, ou melhor, um taquígrafo. Eu ia a sua casa quase todas as noites, e ao voltar, muitas vezes abria o caderno para resumir a conversa, mas acabava desistindo, não só porque ele falava com grande abundância sobre todos os assuntos imagináveis, como também porque tendo eu que trabalhar no dia seguinte, logo me fatigava. Em várias ocasiões esboçava o livro sobre Ismael, livro difícil, pois se tratava de uma personalidade tão complexa e tão grande. Ismael não dava menor importância a qualquer realização. A meu ver, embora pareça paradoxal, o que o prejudicou, humanamente falando, foi o excesso de qualidade. Era,por exemplo, um dançarino notável, tendo recusado uma vez, em Roma, convite para trabalhar com o célebre Volinini na suatroupe de bailados. Foi um dos primeiros arquitetos modernos do Brasil, tendo feito uma vasta série de projetos, muitos até sem assinatura. Uma ocasião

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mandou vir barro para o pequeno atelier que tinha em casa, e construiu uma quantidade enorme de esculturas que desmanchava uma após outra.Pintava rapidamente e apagava logo; debaixo dos quadros que deixou, existem outros pois quando não os apagava, pintava por cima. Tantas idéias e sugestões lhe vinham à cabeça, que não tinha paciência para pousar a mão num trabalho lento: o intelectual sufocou o artesão. Desenhava com espantosa facilidade, improvisando a todo o momento, nas mesas dos cafés, em qualquer pedaço de papel que tivesse ao alcance da mão. Não tinha sm casa, nenhum quadro de sua autoria. Jogava os desenhos no cesto de onde eu conseguia retirá-los, ora com a ajuda de sua mulher— a poetisa Adalgisa Nery — ora subornando as empregadas. Tinha grandes qualidades de homem de teatro e de cenógrafo. 0 empresário Vincenzo Giocoli — que há muitos anos não vejo — deve, certamente, conservar ainda uma boa quantidade de seus desenhos e croquis para peças que sempre se anunciavam e nunca chegavam a ser representadas.

Nosso querido Manuel Bandeira incluiu Ismael Nery entre os poetas bissextos. Em relação aos documentos escritos que deixou, está certo. Mas na verdade, Ismael era poeta contumaz, e ninguém conheci mais poeta do que ele. Punha mesmo a sua qualidade de poeta acima da de filósofo, e muito acima da de pintor. Como às vezes eu o interpelasse a respeito da possibilidade de ele escrever poesias Ismael respondia que "não desejava ser poeta oficial". Escreveu de fato poucas poesias; as que encontrei entre seus papéis, publiquei-as na revista "A Ordem", em fevereiro de 1935. Mas dessa pequena série existem dois poemas em prosa (que não constam, de resto, da antologia de Bandeira) e que considero até hoje, depois de os ter relido inúmeras vezes, extraordinários, com uma atmosfera única na poesia brasileira, e que são: POEMA P O S T -E S S E N C IA L IS T Ae 0 ENTE DOS ENTES.

Conforme escrevi na época de seu falecimento em artigo para o "Boletim de Ariel" também o poeta Murilo Mendes, muito deve ao grande amigo. De fato, uma parte do meu primeiro livro, a que chamei, salvo engano, "Poemas sem tempo" (não tenho o volume à mão), bem como diversas peças de "0 Visionário", narravam das contínuas conversas com Ismael sobre sucessão, antologia e interpretação de formas , idéias a que ele tentou dar vida plástica em vários desenhos e quadros, idéias que apoiava tendo o dia em bases de observação na rua, nas reuniões, nos hospitais que frequentemente visitava, no manuseio de livros de anatomia, em histórias de famílias, etc. Ele, o homem preocupado com o eterno, compreendia e sentia melhor que ninguém até mesmo a poesia do cotidiano, do banal, pois nenhum detalhe escapava à universalidade do seu olhar. Possuía uma incomparável organização de sentidos, que considerava uma grande arma para a vida. Era partidário de um sistema de educação harmônica da inteligência e da sensibilidade contra o cultivo unilateral do

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temperamento. Achava que a utilidade dos livros residia sobretudo na possibilidade de por eles podermos conferir o que aprendemos diretamente na vida.

Havia um homem comum dentro desse homem excepcional e singularíssimo, um homem que adorava o cineminha de bairro, a conversa mole no café, as regatas, a leitura de jornal, até mesmo o futebol e o box. Gostava da displicência do homem brasileiro, do seu jeito de fazer pouca força pela vida, exergando nisso um instinto de sabedoria. 0 brasileiro de hoje, que, salvo as honrosas excesSsões.é arrivista, egoísta e metido a dinâmico, certamente não lhe causaria muita simpatia ...Digo estas coisas para ressaltar o lado mais acessível, o que geralmente é taxado de humano, de uma personalidade tão forte, sempre disposta às lutas da inteligência, um homem sob certos aspectos tão anti-humano que, sem querer, provocou o afastamento de muitos amigos, escritores e artistas que não suportavam aquela tensão permanente, aquele contínuo exame de todos os fatos individuais, nacionais e universais, sob diversos ângulos, principalmente o filosófico, o poético e o teológico, mas também o psicológico, o social e o científico.

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RECORDAÇRO DE ISMAEL NERY

I I I

Estabelecia todos os dias mesa redonda sobre o caso em foco acontecido aqui, na França ou no Japão; e quando não surgia nenhum caso interessante para discutir, dirigia-se ao Hospício, aos albergues, às prisões, às igrejas, aos sanatórios, ao Tribunal do Júri que freqüentava assiduamente, aos colégios, aos bastidores de teatro, trazendo novos fatos que nos transmitia, obrigando-nos a tomar partido, a formular opiniões, a sair da rotina, enfim. Nunca mais pude tomar parte em nenhuma mesa redonda alguma, pois nunca mais encontrei uma pessoa com o seu gênio inventivo e criador, que fazia da própria vida seu centro de interesse. Fornecia sugestões de toda ordem a padres, a educadores sociais a legisladores. De um padre ouvi uma vez que, desejando fundar, como fundou, um estabelecimento para recolher filhos de presos, recebeu de Ismael as sugestões mais felizes para o regulamento do mesmo. 0 grande e saudoso cirurgião brasileiro Dr. Maurity Santos, seu amigo fiel, disse- me que gostava de discutir com ele problemas de medicina, espantando-se com o fato de um pintor estar ao par dos mais modernos métodos de cirurgia.

A vida de Ismael, embora muito intensa e agitada, desenrolava-se todavia numa linha de certa discrição, sendo mesmo, aparentemente, quase apagada. De tal maneira estão hoje os homens habituados a encarar a vida do próximo sob o ângulo da exteriorização e publicidade, que um Ismael Nery, mais do que ninguém absorvido por uma multiplicidade de problemas, pôde passar quase despercebido nesse Brasil dos 1920 a 1934. Assim como passou por inculto devido à falta de biblioteca (em contraste com tantos outros que deixariam de pensar e morreriam sufocados se não chegassem mais livros de Paris), também não conseguiu se impor como filósofo, porque não deixou um sistema escrito, e também _ cito o fato porque esta objeção me foi feita várias vezes - porque se apresentava sempre corretamente vestido, à última moda. Em Ismael a elegância externa, da indumentária e das atitudes, era um reflexo da sua elegância interior; apesar do tumulto das suas sensações e das suas idéias, tudo neste homem excepcional se resolvia na unidade. Tão grande era sua aversão à publicidade, que nunca se preocupou com a irradiação de seu sistema, de maneira extensa e superficial, preferindo a concentração e a profundidade. Muitas vezes interpelei-o a respeito

LETRAS E ARTES, domingo, , 20 jun. 1948, página 5.

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da transmissão de suas idéias estéticas, filosóficas e religiosas. Dizia-lhe eu que um homem da sua estatura era indispensável ao mundo,

»que, sendo impossível aos seus amigos divulgarem tais idé&s, devido ao tom singular e pessoal com que ele as apresentava, Ismael invariavelmente me respondia que não havia nenhuma importância nisso, e - textualmente- "que se suas idéias eram verdadeiras, haveriam de se transmitir na

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sucessão das idades, não importando que aparecessem com o nome del-é ou de outro". Eu, entretanto, não me podia conformar, pois sabendo a facilidade com que ele criava, assimilava sua admirável organização de pensamento, achava que ele deveria partir pelos cinco continentes fazendo conferências e divulgando seu sistema filosófico, que eu batizara de essencialismo. Achava também que ele deveria legar seu cérebro à faculdade de medicina, para ser examinado. Quanto a isto, nunca cheguei a revelar a Ismael meu pensamento, mas não há dúvida que ele tinha consciência clara de sua força e grandeza, tanto assim que mais tarde faria um desenho com a seguinte legenda: "Deixo meu cérebro às gerações futuras". E outro, onde inscrevera também estas três palavras orgulhosas: "Eu compreendo tudo".

Jamais conheci alguém tão firmemente convicto da verdade desta proposição teológica, que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Elaborara mesmo Ismael a "teoria dos deuses", de que só me comunicou fragmentos, e que mostrava a dignidade do ofício de homem, como ele dizia. 0 homem mais rúsitico, mais inculto e primitivo possui em germe este instinto. Seu Manuel da esquina exerce pressão sobre a esposa; e mesmo dominado por essa paixão inferior que é o ciúme, ainda é o reflexo divino que lhe inspira a idéia de zelo, de cuidado, a tentativa de apropriação da alma alheia. De resto, o próprio Cristo,colocando em seu devido eixo a palavra antiga do demônio, declarou que somos deuses '(S. João "X, 35). Eu lutava para aceitar esta proposição, pois dentro de mim a voz do poeta e do artista depunha a favor; mas ao mesmo tempo objetava a consideração da nossa miséria, da nossa fragilidade; ao que ele replicava: isto vem do pecado original, mas aí justamente intervém a força do Cristo, levantando-nos e elevando-nos a uma ordem superior. Pelo contrário, tudo depõe a favor da vocação transcendente do homem.

As discussões sucediam-se pela noite a dentro, na pequena casa de Botafogo, depois do Leme. Eram poucos os amigos fiéis. Os que apareciam mais frequentemente eram Jorge Burlamaqui, Antonio Costa Ribeiro, Mario Pedrosa, Antonio Bento e eu. Guignard vinha sempre, mas apenas para conversar pintura. Ismael gostava muito dele e, quando caiu doente, em 1930, pediu-lhe para fazer seu retrato. É um dos melhores retratos pintados por Guignard, e,ao mesmo tempo, um bom documento do Ismael humano, do Ismael que tantas vezes vi de coração quebrado,como

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sucumbido pelo peso de todas as desgraças e sofrimentos da humanidade, em contraste com o Ismael quase olímpico, ditador da inteligência, senhor prepotente da arte. Outros vinhàm também, mas aos poucos abandonavam o grupo; pois, conforme disse atrás, o convívio de Ismael, se por um lado era muito agradável, por outro exigia do companheiro uma constante tensão de espírito: sendo, como era, resistente e infatigável, o meu amigo. Não se ia à sua casa para comes e bebes, nem para se falar mal da vida alheia. A casa era pequena, oferecendo pouco do que em geral se chama de conforto, decorada com extrema sobriedade.

Ia-se lá atraído pela personalidade singular do dono da casa, que interessava igualmente aos poetas, aos pintores, aos homens de teatro, aos médicos, aos amadores de filosofia, aos teólogos.Em geral comentava-se as últimas teorias estéticas e artísticas; às vezes Ismael falava longamente de suas viagens à Europa ou discutia os casos particulares de cada um. Precisava sempre de um interlocutor, pois continuamente lhe acudiam idéias e sugestões novas. Expunha o sistema essencialista de preferência aos dois amigos que maior interesse lhe dedicavam — Jorge Burlamaqui e eu. Burlamaqui era muito dotado para a filosofia, e, por uma natural disposição de espírito, aumentada pela sua qualidade de professor, assimilava rapidamente as idéias que condensava em fórmulas siréticas e felizes. Mas ao mesmo tempo era atraído para a sua profissão de engenheiro, sendo que aparentemente essa dominante venceu. Ismael criticava essa tendência do amigo para a "vida comum", e dizia sempre que depois de sua morte, Burlamaqui abandonaria a filosofia e acabaria ministro. Não o é por enquanto, mas de fato ocupa um alto posto na administração pública.

Quanto a mim, achava que eu deveria me converter ao catolicismo, para o qual me considerava muito inclinado, apesar da minha rebeldia e das minhas tendências anarquistas. Tudo em mim, dizia ele, indicava homem religioso. Houve uma época em que eu escrevia sempre "epigramas" anti-religiosos, demonstrando com isto, de resto, sem saber , minha religiosidade latente.

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RECORDAÇAO DE ISMAEL NERY

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Conto estas coisas para por em relevo uma das qualidades dominantes de Ismael Nery. Ele era o amigo verdadeiro. Dedicou-se de fato a causa dos seus amigos. Era uma amizade que não se processava no plano convencional ou no do interesse; nada de mundano ou de superficial. Ele tinha zelo pela alma dos outros; preocupava-se com o seu destino transcendente. Nunca felicitava o amigo pelos sucessos fáceis e exteriores, entristecia-se quando o via tentado pelo êxito, quando via neles indícios de decadência espiritual, ou entregue à rotina. Não era só um animador, era um apóstolo com "charge d'ames". Tudo o que dizia respeito aos amigos interessava-o vivamente. Antes de morrer chamou a cada um deles em particular e criticou-os com toda a franqueza, fazendo-lhes preciosas recomendações e abrindo-lhe os olhos sobre vários pontos importantes. Reconciliou parentes brigados há muitos anos, e deu indicações proféticas sobre a vida futura de alguns amigos. De resto, ele um dia escrevera: "0 meu maior instinto é o da paternidadade, que aplico a tudo e a todos. A minha maior vontade era ser a sombra de tudo e de todos, a fim de nascer e morrer com tudo e com todos e em todos os tempos. Não haverá um homem que me determine moral e fisicamente? Sou o germe de um Deus, toda a gente o é também". Possuía em grau muito desenvolvido esse instinto de paternidade, exatamente porque tinha a consciência viva de ser o germe de um Deus, de ter sido criado à sua imagem e semelhança.E, o que afasta qualquer hipótese de hermetismo, ou de individualismo egoístico, — acrescentou, como vimos: "toda a gente o é também". E não conheço outro homem que soubesse despertar no espírito alheio, tão freqüentemente e de maneira tão forte esta idéia. Nisto — sem sombra de pedanteria ou de didatismo — ele se revelou ainda um grande educador, um^ pedagogo, ao modo clássico mas um pedagogo que a todo o momento adotava métodos modernos de persuasão. Na verdade ouvíramos falar de Deus durante toda a nossa infância e adolescência. Mas, por mais virtuosase respeitáveis que fossem- e o eram as pessoas que nos inculcaram este

\princípiõ"supremo, sa idéia de Deus se nos apresentava, em geral, desagradável, chata mesmo. Deus não passava de um julgador, um espião de todos os nossos atos,um bedel segurando a palmatória. A moral do Antigo Testamento prevalecia sobre a do novo, uma moral apoiada quase sempre em base negativa, em restrições autoritárias. Não faça isto, não faça aquilo, não faça aquiloutro... Chegados à maioridade, nós queríamos

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logo nos destacar o mais breve possível desse incômodo personagem: esse Deus positivamente não tinha parte conosco, sendo alheio aos nossos projetos e ao nosso desejo de libertação . Ismael recolocou em nosso espírito a idéia de Deus, ou melhor, instaurou-a em bases artísticas, afetivas ou filosóficas, principalmente através da Encarnação de Cristo prolongada na Igreja e nos homens, na vida de cada dia. Ao mesmo tempo que a idéia de Deus encarnado começou a circular com familiaridade nessa vida cotidiana, impunha-se a todos a compreensão das raízes extra- temporais do conceito. Ismael passava horas e horas retirando Deus da sua condição de marginal, em que o haviam posto a intolerância científica e a preocupação didática, ao mesmo tempo que indicava a origem eterna onde ele se movia na sua liberdade. De fato, a Encarnação do Cristo é a irrupção da eternidade no tempo. E o Cristo nos aparecia restituído a sua verdadeira estatura como rô-la revela o Novo Testamento, era uma vassourada poderosa na concepção do Cristo pelo século 19, "o meigo Nazareno" ou o filantropo, o reformista social , o moralista. Surgia-nos o Cristo como companheiro cotidiano do homem, seu guia no tempo e na eternidade. Por isso, que informsdos no Princípio absoluto, seus atos aparentemente mínimos e insignificantes revestiam-se de perenidade, imprimindo-lhes o Senhor sua marca divina. Surgiu-nos o Cristo como artista máximo o criador de um grande estilo de vida. Logicamente,o conceito de religião era também alterado: começávamos a pressentir suas ligações com a vida, ao invés ca fatal dissociação que até essa época 'operávamos, por via de uma cultura deformada, entre as duas categorias.

Ismael vivia intensamente a compreensão de Deus Pai. Falava sempre do Pai. Assim a remota idéia de Deus se tornava mais próxima. Entretanto, como só pelo Filho é que vamos ao Pai, era o Filho que se impunha com relevo mais nítido ao nosso espírito, livre da poeirada espessa da pieguice e sentimentalismo que os séculos acumularam. 0 Cristo que já não nos dizia mais nada e até mesmo nos aborrecia, começava a se mover tornando-se um problema vivo, um espantoso caso cotidiano, o aguilhão do nosso espírito, a encarnação da idéia de Deus, o interlocutor infatigável, um destruidor da rotina. Convém aqui uma observação para os detetives da psicanálise. Que o Cristo se revele sob a forma de uma pessoa humana, que o crente, preparado para recebê-lo, se sirva de superiores verdades espirituais é fato normal da existência cristã, tendo sido examinado, há muito tempo, pelos teólogos. Tal fenômeno é mesmo decorrente da própria Encarnação; pois o Cristo não é um princípio abstrato, e se prolonga em todos os seus fiéis como nô-lo revela, com toda a suaautoridade, a teologia do Novo Testamento. Quem possui a fé no Cristo recebe reflexos d ’Ele e transmite o impulso a outros,conforme o grau dos dons que gratuitamente recebeu. Não é preciso ter êxtases, visões ou

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carismas especiais para confessar o Cristo. A mentalidade moderna faz do Cristo uma idéia completamente falsa e deturpada. Daí a dificuldade, de se convencer a certas pessoas que existem no século 20 homens como os outros, com seus defeitos, suas deficiências, seus erros— mas que recebem o chamado de Cristo, começando uma nova vida espiritual. Por isto o cristão é sempre um ser estranho ao mundo, embora esteja no mundo, "Não é aquele o filho de José o carpinteiro?" £ sim, por isto não pode ser o Homem-Deus encarnado... A psicanálise pensou descobrir a pólvora examinando os casos de transposição afetiva, mas na vida cristã, repetimos, o fenômeno é normal, o conhecimento de alguém que possua a seu modo, o espírito do Cristo, é em muitos casos, o preparo lógico para a adesão ao Cristo; um novo conceito de fraternidade se instala.

A amizade que Ismael dedicava aos seus amigos era forte e verdadeira porque tinha a presidi-la o espírito do Cristo irmão e companheiro dos homens. Mas qual não deve ter sido a sua solidão! Pois na verdade, em vida dele nenhum de nós compartilhava da sua fé apesar da admiração que nos últimos anos a figura de Cristo nos despertava. Procurou ele todos os meios para atacar nossa sensibilidade e inteligência recorrendo também ao desenho. Nós alegávamos que não podíamos mais crer no Cristo devido a uma fatalidade histórica: os tempos eram outros, o ciclo cristão, como escrevera Marx, está encerrado,etc... Ismael fez um desenho: um homem de joelho, diante do crucifixo, com a seguinte legenda: "Meu Deus, provisoriamente não posso acreditar em vós devido a umafatalidade histórica. Mas todos os anos, na semana santa, vou ao cinema

!assistir ao filme da vossa paixão e morte, e chorou!"

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RECORDAÇAO DE ISMAEL NERY

V

Aqui tocamos o ponto central da doutrina de Ismael Nery: de fato o sistema essencialista é baseado na abstração do tempo e do espaço. Não nos cabe aqui fazer a exposição deste sistema. Um resumo do mesmo redigido por Jorge Burlamaqui, foi por mim publicado em "A Ordem", de março de 1935. Segundo o próprio Ismael, o sistema essencialista era em última análise, uma preparação ao catolicismo. Sabendo da indisposição existente, hoje, em geral, contra as idéias católicas, resolveu Ismael apresentá-las sob outras espécies, a fim de evitar o "parti-pris" do interessado. No dia em que o iniciado se tornar católico, — dizia — o sistema essencialista não lhe adiantará mais nada, pois terá sido conquistado um grau superior e definitivo. 0 sistema essencialista, entretanto, serviria muito para encurtar a experiência dos homens.

0 mal do homem moderno consiste em fazer uma construção de espírito dentro da idéia de tempo. Ora, o tempo traz no seu bojo a corrupção e a destruição. Deve o homem apegar-se a sistemas que evoluem constantemente, por que baseados numa ciência incerta e vacilante?Não. Todas as experiências que têm havido até agora, foram úteis. Todas as verdades sobre a vida já foram organizadas. Sem a ciência da vida, ou o homem construirá inutilmente, ou então terá que destruí-la. 0 valor permanente e definitivo, valor que o tempo não ataca, é o trazido pelo Cristo.

A tragédia da vida, segundo Ismael Nery, não é outra coisa senão o desvirtuamento do objetivo do homem. 0 homem, como as demais criações, foi feito com um fim objetivo para o qual ele tende naturalmente, embora as aparências muitas vezes nos façam acreditar no contrário. Segundo a mentalidade de cada um, estabelece-se um grau diferente de dinamismo na conquista deste objetivo que nunca deverá ser perturbado, pois dará ao homem a sensação de desequilíbrio necessário à sua conservação. A ciência da vida consiste justamente na consciência que cada um deve se criar para perceber o desequilíbrio, e na inteligência imediata que se deve ter em o repor.

A vida é essencialmente dinâmica; ao nascer, partimos logo para a morte, onde devemos chegar tendo adquirido no percurso,

todos os elementos que nos façam aceitá-la tão naturalmente como aceitamos as transformações que nos são impostas pelo tempo. 0 conceito do bem e

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do mal, não deve estar ligado somente a épocas de nossa vida, isto é, não deve ser intermitente, pois é fácil de calcular que uma série de bens poderá ter como resultado o mal absoluto. Portanto, a idéia de bem e de mal, deve ser aplicada à nossa vida integral (eis porque dava Ismael Nery um grande valor ao método da abstração do tempo), única maneira de se conhecer precisamente quando cometemos o bem ou o mal. Bem, tudo o que nos conduz à morte naturalmente sem atacar a nossa dose de instinto de conservação; mal, qualquer desconcerto na intensidade ou direção de nosso dinamismo para a morte. Há,naturalmente determinado,um tempo mínimo que deveremos viver, porém não podemos em absoluto determinar o momento da morte. Podemos determinar o tempo mínimo da vida, porquanto para viver precisamos de elementos materiais que só recolhemos em épocas determinadas quase matematicamente, e que formam a nossa integridade física. 0 homem não começa a exercer a seleção moral antes de reunir todos estes elementos. Dividindo-se esquematicamente a vida do homem em cinco partes — infância, puberdade, mocidade, madureza, velhice — poderemos ver que só do terceiro para o quarto período é que o homem começa de fato a se determinar, pois os outros períodos são exclusivamente construtivos, agindo como fator supremo, a consciência hereditária, visto herdarmos diversos elementos que nos compõem — sendo desta forma bem fácil de ver que nossos atos maus, cometidos durante esses períodos, responsabilizam ainda os nossos ascendentes. Toda a elasticidade do mal está contido na idéia de morte, pois a morte é a gradação máxima do pecado. A virtude fora do conceito religioso não é outra coisa senão uma justa idéia de conservação. 0 homem justo, ainda fora do conceito religioso, é o homem que guarda a lei natural e que se salva, como afirma a doutrina católica. Parece ter sido necessária a construção de normas religiosas depois que o homem atingiu uma tal degenerescência que só a idéia de Deus vindo exteriormente poderia fazer com que ele restaurasse interiormente esta idéia inata. Prova bem isto a vinda de Cristo muito tempo depois da aparição do homem na terra, tendo apenas Deus antes querido fazer a humanidade obedecer à lei natural resumida no decálogo.Cristo veio ao mundo justamente no período de vida em que a humanidade se acha construída fisicamente (mocidade) para ensinar-lhe com seu exemplo, o caminho futuro, isto é, as idades em que o homem tem, de fato, consciência. A degenerescência da humanidade anterior a Cristo serviu como servem às crianças e moços as suas estroinices — para ter elementos de conhecimento e de relação. A duração material da vida de Cristo é bem expressiva. Ele nos mostrou que aos trinta anos, um homem justo poderá estar físico e moralmente construído para morrer aos 33 anos depois de ter legado aos outros a sua experiência - mostrando ainda que o nosso equilíbrio deve também produzir equilíbrio para que haja um equilíbrio total na nossa

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vida, em colaboração com a humanidade. A idéia de unidade poderia daí ser muito bem extraída e ampliada na vida futura que o catolicismo prega.

Tudo o que existiu foi absolutamente útil; em verdade o homem nada fez que não tivesse pelo menos o grande valor de uma experiência. Já é tempo de selecionar essas experiências e ordená-las, pois todos sentem a hora de repeti-las. 0 homem essencialista é portanto o homem que tendo esgotado as experiências que a vida oferece, procura extrair uma filosofia fundada nos resultados de suas seleções.

A vida é uma construção que se inicia com o nascimento e que se finda com a morte. Todo homem possui um coeficiente de energia e de tempo determinado que não poderá ser desperdiçado sem prejuízo final. Eis porque devemos dar a maior eficiência possível às nossas ações.A vida não é outra coisa senão uma fornecedora de elementos construtivos: ela se nos apresenta sem nenhum caráter de pessimismo ou de otimismo, sendo as suas reações sempre proporcionais às nossas ações, visto ser indestrutível seu equilíbrio; justificando nossa ação, apenas o dever que temos de dirigi-la, usando nossa razão para poupar esforços inúteis.

0 homem é impelido para o bem , pois somente nesse estado é que adquire a estabilidade cômoda que o instinto de conservação

pede.A doutrina essencialista combate a desproporção. Prefere-

se a uma sabedoria desproporcionada uma ignorância harmônica, porém deseja-se uma sabedoria harmônica.

0 espírito do homem moderno caracteriza-se sobretudo pelo cansaço que tem das pesquisas inúteis, qualquer idéia de inutilidade nos repugna, sobretudo hoje, em que descobrimos que poderemos usar toda a^clência acumulada pelos homens de outras épocas, com a seleção inconsciente de um sistema de vida para fundarmos o domínio da pura consciência e da razão, pois já oodemos dizer que o campo experimental

da'vida foi todo explorado, se bem que não esgotado. Se estudarmos a vida de um homem veremos que toda a parcela de adiantamento moral foi obtida em período em que ele conseguiu harmonia entre sua vida e a vida exterior produzindo isto a sensação de^felicidacíè^Não pode haver felicidade quando se nota desarmonia de ritmo entre a vida interior e a exterior, por isto será útil uma filosofia que nos ensine justamente a controlar estas velocidades. Felicidade,para o essencialista, é o único estado em que o homem poderá começar a compreender as coisas transcendentes — embora saibamos que muitas vezes a sabedoria é conseguida pela infelicidade. A vida científica de hoje permite ao essencialista uma educação artificial para se reconstituir uma mentalidade pura do homem primitivo, com a enorme vantagem da consciência deste estado. Deve um essencia,l.i,sta procurar manter-se na vida sempre como se fosse o centro dela, para que

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possa ter sempre a perfeita relação das idéias e dos fatos. É claro que para manter esta posição de relativa precisão, será necessário esforço, aliás, inapercebível pelo homem, devido à sensação de equilíbrio dinâmico produzido.

0 problema atual consiste em fazer com que o homem restabeleça conscientemente o equilíbrio hormonioso que necessariamente deve existir entre o espírito e a matéria, e que vem perdendo gradativamente, desde talvez que foi criado. Não se discute a utilidade de tal degenerescência, pois, como foi dito, todas as experiências e acontecimentos têm sido úteis.

0 que se deve é tirar um proveito total desta experiência, que não poderá ir mais adiante, porquanto já começa a corroer as bases da nossa existência. A vida da humanidade possui as mesmas características da vida de um homem. A humanidade deve começar agora a entrar no período de seleção dos elementos adquiridos na infância e na mocidade, épocas em que a única justificativa dá" pluralfdade dos fatos era o grau de convicção que eles nos imprimiam. Hoje, o nosso campo de experiência é completo. Percorremos todas as escalas de possibilidades da vida. Deterioramos de tal modo o nosso instinto de conservação, que chegamos a aceitar o suicídio como uma condição de vida. 0 problema social é tão complexo que, a priori, pode ser considerado insolúvel; basta para isto pensar que, no sentido rigoroso não há mais coletividade, pois os elementos que compõem a sociedade são absolutamente heterogêneos e as leis não podem ser objetivas.

As teorias políticas são todas feitas dentro da idéia de tempo, basta considerar o que é o tempo e o que é a vida, para perceber logo a sua impraticabilidade. 0 erro dos ângulos só poderá ser anulado com uma volta à raiz. Por imperfeição de sentidos, o homem necessita agrupar momentos, a fim de que melhor se constatem diferenças (épocas, idades, etc.). Estudando a totalidade desses momentos, chega-se à conclusão de que verdadeiramente o homem não se pode representar nem ser representado com as perspectivas e propriedades de um só momento, pois seria sempre uma representaçãofragmentária, portanto deficiente para o conhecimento. 0 homem deve

(- "representar sempre em seu presente, uma soma total de seus momentos passados. A localização de um homem num momento de sua vida contraria uma das condições da própria vida, que é o movimento. A abstração do tempo não é outra coisa senão a redução dos momentos necessária à classificação dos valores para uma compreensão total.

Achei oportuno apresentar este pequeno resumo, tirado de notas deixadas pelo próprio Ismael, embora reconheça, que nem de longe possa dar uma idéia do que é a abstração do tempo como método filosófico, método vivo e de múltiplas aplicações quando usado pelo seu autor. É

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que a pintura de Ismael Nery pode ser melhor compreendida à luz destas notas, bem como à luz do já citado estudo "Abstração do espaço e do tempo", que ponho à disposição de algum extravagante interessado em questões filosóficas... Além disto contém, insinuada, uma de suas profecias: a de sua morte aos 33 anos, "depois de estar física e moralmente construído, tendo legado aos outros sua experiência".

Como se vê, do esquema, Ismael Nery não acreditava em teorias políticas para solução do conflito entre espírito e matéria, e restabelecimento do equilíbrio "que o homem vem perdendo gradativãmente, desde talvez que foi criado", como diz de modo profundo e admirável. A meu ver, ele não acreditou em teorias políticas porque, ao invés de estudar a humanidade abstratamente nos compêndios, estudou-a ao vivo — e a que preço! — em si mesmo. E no seu próximo, ao mesmo tempo com minúcia científica e com ternura humana. Além do mais, porque sempre estabeleceu a superioridade do plano religioso sobre o político.

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RECORDAÇRO DE ISMAEL NERY

VI

Para muita gente o tipo clássico do filósofo fixou-se no homem severo, fechado no seu gabinete, lecionando na Universidade, escrevendo tratados, organizando um sistema. Poucos mesmos se lembram dos filósofos que, a partir de Aristóteles, comentaram e exprimiram a vida em conversas, passeando. Ismael Nery.foi um filósofo que não se trancou numgabinete, nem adotou fórmulas estáticas de raciocínio. Contra ele!levantava-se a objeção de não escrever livros e de não ser conhecido. Entretanto, quantos homens profundos não terão passado pela terra ainda menos conhecidos do que Ismael Nery! Conforme ele mesmo deixou escrito: a excessiva proximidade física impediu a quase todos de o reconhecerem. "Porque sabeis a cor dos meus olhos e vistes as cicatrizes do meu rosto, porque pronunciaiso meu nome e vos sentais à minha mesa, a minha autoridade diminuiu? Será preciso que eu vos conte a minha história como se fosse a de outro? Ainda não vos convencestes de que vos poderei dizer coisas que nunca ouvistes?".

Não se convenciam. Ismael Nery não era célebre. Não era um homem oficialmente grande e profundo! Muitos bocós vindos da França, da Itália ou dos Estados Unidos aqui se instalavam, conquistando amigos, despertando admiradores. Mas haviam publicado livros, artigos em revistas ilustres, tinham uma aura de mistério a seu favor. Ismael Nery vinha da Rua São Clemente e sentava-se toda a tarde no Café Nice sem mistério, sem reclames, sem a menor preocupação de publicidade, sem citar livros nem autores... mas abria a boca e falava com elegância e profundidade, sobre tudo. Partia em geral do caso do dia,de uma circunstância qualquer, e elevava-se no plano abstrato, filosófico e universalista. Não precisava nem do púlpito nem da cátedra para dissertar espontaneamente sobre a eternidade, a pessoa e os atos do Cristo, o peso do mundo, a força da matéria, o equilíbrio entre as leis físicas e morais, a duração da terra , a conciliação entre a onisciência de Deus e o livre arbítrio do homem, o essencial, o absoluto e a unidade. Muitas vezes se socorria de gráficos para ilustrar as questões filosóficas - o que me desesperava, porque os gráficos nunca me disseram nada. Mas Jorge Burlamaqui. engenheiro e matemático de aguda inteligência — já citado em outro artigo — .assegurava-me que aqueles gráficos eram verdadeiramente admiráveis e ajudavam muito a esclarecer os problemas. Lembro-me que uma certa época Ismael produziu um famoso gráfico sobre o livre arbítrio, cujas dificuldades teológicas ele queria resolver pela matemática. Eu bem perceberia até onde o meu

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amigo queria chegar — pois se aceitássemos o livre arbítrio o caminho para a religião estaria aberto. Ismael dizia-me às vezes que tinha argumentos fortes contra a religião — mas não esses que corriam mundo; e que não os revelava para não aumentar ainda mais as dúvidas dos seus companheiros. Ele conciliou uma fé resistente com a investigação contínua dos problemas da teologia, dizendo que a religião saia intacta dos próprios argumentos desfavoráveis que ele havia descoberto. Uma atitude temperamental — por mais torta que fosse, como era o seu temperamento — não deveria prevalecer sobre a verdade absoluta. Sem deixar de ter sido católico um só dia, vivia no que eu chamava o estado de pesquisa, pois um ano antes de sua morte cheguei à conclusão de que ele esgotara todas as combinações intelectuais que o universo pode oferecer a uma cabeça humana. Ele dera de fato a mão aos dois mundos, nada mais lhe restando, — sempre o afirmava — do que esperar a volta do Cristo Jesus, "com quem preciso ter urgentemente uma entrevista pessoal". Pensar era seu grande negócio. Transcrevo este trecho de uma sua nota autografa: "Olhei-me ao espelho e achei excessiva a anatomia do meu corpo. Para que olhos, para que boca, para que nariz? Minha barbicha no queixo me parece mais inútil do que um seio para uma mulher que não foi mãe. 0 homem deveria ser uma bola de pensamento'.' Pois bem, o mesmíssimo homem que escreveu isto escreveu também o seguinte, mais ou menos na mesma época:

"Eu sou o sucessor poeta Jesus Cristo Encarregado dos sentidos do universo".

Porque este homem que havia assumido a própria espiritualidade esteve sempre a léguas do impreciso, do vago e do incorpóreo. Só mais tarde, através da síntese tomista, ficamos sabendo que ele era um homem integral, não havendo contradição entre seus ofícios de pensador e de encarregado dos sentidos do universo. Durante sua vida não podíamos decifrar o enigma Ismael Nery. Depois que o deciframos— pelo menos em parte — foi-nos mais fácil abordar o enigma Jesus Cristo, a quem meu amigo, num pequeno poema, chamaria tranqüilamente "mestre e colega"— Deus há de ser adorado em espíri to: mas éatravés da matéria, que devemos conhecer, dominar e sacralizar. Ficamos um dia sabendo que aquele dançarino, que aquele homem "feito de carne e de sentidos", segundo a bela fórmula camoniana, que aquele artista elegantíssimo ... jejuava.

Ismael Nery consumiu-se. Ele sabia que os homens da sua linhagem morrem cedo, pois estão em avanço sobre os acontecimentos e a própria ordem do mundo. Um padre jesuíta que foi visitá-lo algumas vezes nos seus últimos tempos, revelou-me que Ismael aos quinze anos tinha apelido de grego no Colégio Santo Inácio, pois era muito forte e gostava de remar e nadar; e que nessa mesma idade declarou que morreria aos trinta e três anos. De fato, quando o conheci, ele me confiou isto; mas já andava então nos vinte e um. Disse-me mais: que aos trinta anos lhe

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aconteceria algo de importante, alterando isto o curso da sya vida. Ora,aos trinta anos manifestou-se a tuberculose que mudou -como ele sabia-todos os seus planos.Escrevera que a vida individual não é uma aventura totalmente desconhecida, havendo coisas que a priori sabemos comuns a todos os homens e que também nos atingirão, constituindo apenas surpresa em algumas delas a ordem dos acontecimentos. As etapas que percorremos para atingir a morte são-nos conhecidas e até caracterizadas, não nos sendo portanto o futuro totalmente desconhecido,não temos o direito de construir ilusões sobre o mesmo,abstraindo-o para nos supreendermos estupidamente em cada instante atingido.

Como se vê, para Ismael,o profeta não é o homem que recebere revelações mágicas sobre o futuro, mas apenas o que estuda a natureza e os fenômenos da existência,precedendo na sua observação o homem tardo de espírito. As profecias de Ismael sobre sua doença e a época de sua morte ficaram mais conhecidas, pela importância de que se revestia,para os seus próximos;mas é lícito afirmar que ele ainda agia da mesma maneira em relação a outros assuntos: precedia no tempo muitos acontecimentos. As vezes tornava-se mesmo inquietante esse seu dom, pois comunicava às pessoas mais íntimas apreensão e terror. Mas ele era dos que tinham vindo ao mundo para um batismo de fogo - e tinha ânsias de comunicar sua chama."Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo. Nem com o limite dê 'aTgTTma- coTsaTNãõ quero ser Deus por orgulho. Quero ser Deus por necessidade,por vocação".Mais de uma vez ouvimos discursos solenes de alta poesia, em que o verbo humano atingia uma força para nós até então apenas pressentida: Ismael explicava-nos sua vocação divina, sua inconformidade com o tempo e o espaço a irrepremível necessidade que sentia de estar em todos os lugares ao mesmo tempo , de presidir a todos os atos e manifestações da vida, nascendo com os que nascem,crescendo com os que sofrem, gozando com os que gozam , morrendo com os que morrem ,ressuscitando com os que ressuscitam. Exercia uma espécii de correção permanente de sua própria vida, e até mesmo a outra vida achava •ele que deveria ser uma progressão infinita, uma correção contínua^ desta.

Gostaria de poder mandar exemplares de si mesmo a todas as pessoas de todos os recantos do mundo. "As leis humanas só nos permitem a realização de uma única vida, o que é, para um homem do meu temperamento, sinônimo de asfixia moral".Não havia dois homens em Ismael Nery: havia muitos homens que se disputavam o primeiro lugar no drama que ele representava Não diz o próprio São Paulo que estamos dados em espetáculos aos homens e aos anjos ?...Somos todos atores no grande teatro do mundo."Sinto sempre uma imperiosa necessidade de representar simultaneamente os papéis mais diversos, e, quanto maior em número fossem eles,mais eu me sentia estável na minha vida pessoal e incorporado à

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vida universal". Para quem o conhecia pouco, ou o via de vez em quando, Ismael Nery poderia aparecer até mesmo frívolo, pois sendo complexíssimo, havia nele incluso um homem de sociedade com uma ponta de dandismo. Era preciso vê-lo e senti-lo na sua vida cotidiana. Ismael Nery desde cedo recebeu a catástrofe que não veio no fim: veio todos os dias.Acontecimentos terríveis e dramáticos de sua vida íntima, fatos que evidentemente não posso revelar, desde menino desenvolveram sua inteligência e sensibilidade, marcando-o com o sinal dos grandes rebelados. Mais de uma vez me disse — e mesmo escreveu — que sempre quis transbordar dos quadros naturais, visto "achar a realidade por demais restrita". Tocava aí pelo orgulho — ainda segundo ele próprio— a zona de Satã, mas procurava sempre a graça de Deus "pois não só nela nos poderemos sentir bem". De resto, um grande ator cristão com a consciência das suas múltiplas qualidades sabe o quanto é limitado pelas leis humanas — muito mais do que pelas leis divinas. Estou certo de que se não tivesse aceitado a solução católica, Ismael Nery teria sido um suicida. Se houvesse dado largos ao seu espantoso temperamento morreria de embriaguez da vida, de excesso de euforia, aí pelos vinte e cinco anos. Mas logo sentiu em si mesmo, por um raro instinto filosófico, uma espécie de alergia à desproporção. Viu no catolicismo uma construção harmónica, pois que edifica o homem de sabedoria integral: "o catolicismo antecipa ao homem o conhecimento das verdades que ele e a humanidade irão atingindo no curso da vida". Deu-se em espetáculo aos homens e aos anjos."Estudando o homem despendi uma energia formidável, na incrível ingenuidade de modificá-lo para mim. Que ridículo! No meu próprio estudo cheguei à conclusão que apenas constituo uma anormalidade. Que horror! A princípio esta classificação de anormal me parecia atroz. Sofri muito, e examinando a vida cheguei à conclusão que ele comporta logicamente as exceásões, que até lhe são necessárias. Aceitei então a classificação, mas os outros não aceitaram".

Um tal homem tinha que desorientar todo o mundo. Tornou-se um sinal de contradição, ora unindo, ora dividindo os que o cercavam - e ainda muitos anos depois de sua morte continuava a unir e a dividir."Assim me torno irreconhecível. A minha própria mulher e a meus filhos.A meus raros amigos e a mim mesmo".PS. Todas as frases entre aspas são extraídas de poemas ou notas autografas de Ismael Nery - exceto naturalmente o verso camoniano.

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RECORDAÇÃO DE ISMAEL NERY

V I I

Ismael Nery nasceu em Belém do Pará a 9 de outubro de 1900. Foram seus pais o médico Dr. Ismael Nery e a Sra. Marieta Macieira Nery. Nas suas veias corria sangue português, holandês e índio. A família mudou-se para o Rio, tendo Ismael 2 anos de idade. Aqui estudou nos Colégios Santo Antônio, Maria Zaccaria e Santo Inácio. Desde cedo manifestou vocação para o desenho e a pintura. Não se dedicou muito aos estudos de humanidades. Preferiu sempre a observação direta da vida. E desenhava, desenhava. Entrou para a Escola de Belas Artes em 1915 ou 1916; mas dentro em breve os professores diziam à família que nada mais podiam lhe ensinar, restando-lhe apenas aperfeiçoar-se na Europa. Na escola foi um aluno rebelde e indisciplinado, gostando de estudar livremente: nas galerias transpunha à sua maneira as estátuas gregas. Muitos artistas de hoje,na época também simples alunos,ainda se lembram dele com saudade. Entre outros, o grande arquiteto Lucio Costa. Seus guaches e suas aquarelas ficaram então famosos. Em 1920 - 1921 fez a primeira viagem à Europa demorando-se na França e na Itália, onde — segundo seu próprio depoimento — estudou de preferência os mestres antigos da pintura. Em fins de 1921 foi nomeado o desenhista-arquiteto da antiga Diretoria do Patrimônio Nacional — Ministério da Fazenda. Em 1922 casou-se com aquela que viri'a a ser mais tarde a poetisa Adalgisa. Dessa união nasceram dois filhos, Ivan e Emmanuel. Em 1909 perdeu Ismael Nery o pai, falecido como ele aos 33 anos de idade.Confiou-me uma vez o Dr. Juliano Moreira, que tinha sido colega de turma do Dr. Nery: era este o aluno mais inteligente e profundo da turma. Sua tese sobre moléstias tropicais teve grande repercussão, pois o autor já conhecia as observações mais modernas da ciência sobre o assunto. Um largo futuro abria-se diante dele: tendo curado, quando médico de bordo de um navio-escola brasileiro, a rainha de um país escandinavo, foi comissionado pelo nosso governo para um estágio de muitos anos na Europa: quando vinha buscar a família, singrandoo navio águas de Santa Catarina, morreu de repente, do coração, dando uma aula; sua cabeça tombou sobre o livro aberto. Em 1918 perdia Ismael seu único irmão, João, vitimado pela gripe espanhola. Rapaz de inteligência excepcional, os padres jesuítas saiam do Colégio Santo Inácio e iam à sua casa discutir filosofia com ele. Fazia três cursos ao mesmo tempo. Ismael dedicava grande admiração ao irmão filósofo desaparecido aos 19

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inos; várias vezes contou-me histórias e fatos da vida dele, que denunciavam ima personalidade de forte envergadura, dotada de estraordinária força de lomínio. 0 desaparecimento em circunstâncias dramáticas, de João Nery, íarcou profundamente na vida do irmão sobrevivente, e da mãe viúva.

Ismael tinha apenas 23 ou 26 anos de idade e já os seus iroximos sabiam que havia construído um sistema filosófico muito original, ipesar de o não escrever, era o essencialismo, baseado na abstração do :empo e do espaço, na seleção e cultivo dos elementos essenciais à :xistência , na redução do tempo à unidade,na evolução sobre si mesmo para lescoberta do próprio essencial, na representação das noções permanentes |ue darão à arte a universalidade. Já se vê que não improvisou um tal ;istema. Suas raízes vinham de longe: embora muito pouco dado à leituras, ira Ismael extremamente curioso de todas as experiências humanas, jassando sempre em revista as teorias mais diversas. Sua vida e as poucas íotas que deixou provam que Ismael Nery viveu seu sistema, julgando por ;le próprio uma introdução ao catolicismo.

Mas não deixava de desenhar e pintar, se bem que estivesse onge de considerar as artes plásticas suas finalidades supremas. Mais idiante falarei um pouco sobre as etapas da sua pintura, citando também ilgumas opiniões.

Em 1927 o meu amigo foi pela segunda vez à Europa. Estava íntão o surrealismo no seu apogeu. Ismael muito sensível, como já assinalei,i todas as tendências modernas. Interessou-se vivamente pela doutrina e jelo grupo, tendo procurado em Paris, além de outros, André Breton e larcel Noll. Recebeu então vários convites para expor. As cartas que me lirigiu da capital francesa nessa época mostram sua preocupação em fazer jma exposição tríplice: pintura, arquitetura e escultura. Mas para isso irecisaria de uma vida mais calma e sem cuidados — o que nunca pode :onseguir. Precisaria também permanecer mais tempo na Europa — o que lhe 'oi impossível; teve que regressar em fins de 1927. Nesse mesmo ano fez :onhecimento pessoal com Marc Chagall, à quem muito apreciava; e,;egundo tudo indica, o russo retribuiu-lhe uma mesma moeda, pois lhe iedicou várias gravuras e fotografias.

Apesar da sua displicência relativamente à realização da íintura (pois que sem dúvida, amava-a e sobre ela discorria longamente),3ra o pintor Ismael Nery muito mais conhecido do que o filósofo ou o joeta Ismael Nery. Em 1928 Mário de Andrade consagrava-lhe pelas colunas jo "Diário Nacional" de São Paulo um artigo muito favorável e :ompreensivo. Seguiu-se-lhe depois o nosso querido Manuel Bandeira.

Em 1929, premido pelos amigos e pela família, realizava Ismael sua primeira exposição, no Palace Hotel do Rio. Houve um movimento

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de interesse da parte dos intelectuais. Graça Aranha entusiasmou-se, e, no dia do encerramento, Ismael ofereceu-lhe um quadro e outro a Álvaro Moreira. No mesmo ano fez uma exposição em Belém do Pará, e viajou para a Argentina e Uruguai. Em 1930 realizou no Salão Nicolas, aqui no Rio, uma mostra de 100 desenhos seus de diversas fases.

No fim desse mesmo ano declarou-se em Ismael Nery a tuberculose pulmonar. Em 1931 internou-se no Sanatório de Correias, perto de Petrópolis, onde permaneceu mais ou menos dois anos. Em julho de 1933 tinha Ismael Nery chegado a atingir o que os tisiologistas chamam de uma cura radiolágica aparente. Deixou então o Sanatório, indo passar alguns meses em Teresópolis. Mas não acreditou na cura tanto assim que, descendo definitivamente, instalou-se no Hotel Avenida, pois não queria contaminar os filhos pequenos. Em dezembro daquele ano manifestou-se uma úlcera tuberculosa na glote, estendendo-se a mesma, depois, à laringe. Aí então Ismael, pedindo para afastar as crianças, resolveu voltar à sua casa, onde queria morrer: não guardava nenhuma ilusão sobre seu estado e a proximidade da morte. Depois de terríveis sofrimentos aceitos com grande serenidade, faleceu a 6 de abril de 1934, à Rua Carlos Peixoto 60, casa 3, no Leme, assistido pela Igreja, por sua mulher, sua mãe, seus amigos e parentes mais próximos. Está sepultado no Cemitério de S. João Batista, quadra 6, n^ 999 E.

Entre os que cercaram Ismael Nery, a partir de 1922, contavam-se: Jorge Burlamaqui, Antônio da Costa Ribeiro (estes dois já o acompanhavam de longe, desde os tempos de colégio), o célebre Evandro Pequeno, o Professor José Martinho da Rocha, Renato Fiuza, Clovis Catunda, o antiquário Carlos Frederico,o cirurgião Dr. Maurity Santos. Mais tarde, Antônio Bento, Mário Pedrosa, Livio Xavier. Mary e Elsie Houston,Guignard; e nos últimos anos de sua vida, J. Fernando Carneiro, Milton Fontes Magarão, Barrete Filho, Aníbal Machado, Dante Milano, Genaro Vidal, além de outros. Dos figurantes desta lista, de resto incompleta, alguns se afastaram cedo, depois de poucos anos de convívio; uns casaram-se, outros dedicaram-se a atividades diferentes das nossas, outros foram para o estrangeiro. Haviam também padres que vinham de vez em quando; mas não lhes retive os nomes, exceto o do Pe. Nino Nina Minelli.

0 grupo primitivo fundara-se sob o signo do Santo Gral, mas nem de longe se lhe notavam intenções teosóficas. Não possuía revista ou jornal, nem marca nenhuma de arrivismo. Dava-se cordialmente com todos os outros grupos, mas não se ligou de fato a nenhum. Não tínhamos compromissos ideológicos ou políticos. Éramos contra a publicidade e contra a industrialização do talento. Procurávamos à moda boêmia o nosso

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caminho. 0 quartel-general estava situado na acolhedora casa da família de Ismael, à Rua S. Clemente, 170, com várias filiâis nos cafés simpáticos da época, os humanos e hospitaleiros cafés sentados. A nota dominante do grupo era sem dúvida o inconformismo diante do estilo chato da vida burguesa, diante das manifestações estéreis ou acadêmicas da arte e da religião. Inútil acrescentar que éramos todos anti-clericais, exceto o avançado e moderníssimo Ismael Nery.

De resto ele era o centro convergente das atenções gerais. Durante anos exploramos a cidade do Rio de Janeiro e seus arredores, no famoso ford ns 3942 de Jorge Burlamaqui, que precedeu mesmo os atuais ônibus com os 8 em pé, já que às v e z e s s e expremiam de 9 a 11 pessoas num carro que teoricamente comportava 5. íamos a todos os lugares, ricos e pobres e muitas vezes nos mostrávamos insuportáveis e desmancha-prazeres Cumpre, entretanto, notar que Ismael, se bem que aprovasse muitas de nossas extravagâncias, não tomava parte, pessoalmente,nas manifestações de hostilidade que dirigíamos ao meio burguês: sua loucura era de outra espécie.Conservava-se na linha do impecável "gentleman" que sempre foi; além disto era casado.

0 Rio entre 1920 e 1930 era uma cidade deliciosa , pacata, de um ritmo de vida manso, quase provinciano. Começavam a surgir ainda tímidas as primeiras casas de apartamentos. Viajava-se comodamente de Ipanema à Praça Mauá em ônibus às vezes metade vazios. Copacabana não era o grotesco empório de exibicionismo de hoje: cumpria dignamente sua missão de pórtico do mar. A cidade estirava-se voluptuosamente ao sol, com a linh? da baía ainda não prejudicada pelos últimos aterros e pelo acúmulo de arranha-céus.A vastidão das massas naturais quase virgem sugeria a sensação da vida aumentada, de um aprofundamento no tempo e no espaço, de uma grandeza superlativa. Não há dúvida que a enseada de Botafogo, o Pão de Açúcar e os outros morros continuam no mesmo lugar; mudaria a cidade ou mudei eu? Mas além da já mencionada invasão dos arranha-céus, é certo que o ambiente e o estilo de vida da cidade se transformaram muito, produzindo essa mudança de ângulo psicológico. Além disso temos nós, no Rio atual,margem para a contemplação gratuita?...

Em 1922, com a abertura da Exposição Internacional do Centenário da Independência, a cidade atingiria um grau de euforia nunca depois igualado. 0 padrão de vida era baixo, os negócios cresciam e o dinheiro rodava. A Orquestra Filarmônica de Viena pela primeira vez na história deixava a capital austríaca para dar uma vasta série de concertos sob a batuta de Weingartner, tendo voltado no ano seguinte com Ricardo Strauss. Por toda a parte, audições dos mais célebres artistas europeus, mais e melhores teatros do que agora (além do Municipal, o Lírico e o S.

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Pedro funcionando) , a revista francesa, bailes populares, a feira permanente da Exposjjão enfim, 1922! Eram os preliminares do Brasil moderno: troavam os canhões de Copacabana. Em São Paulo um grupo de moços começavam a desarticular a máquina do academismo. Foi nesse ambiente de euforia e disponibilidade (eu descobrira dois anos antes "La Chartreuse de Parme"), que o grupo passou a se reunir em torno

de Ismael Nery.

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LETRAS E ARTES domingo, 8 ago. 1948, p. 5

RECORDAÇAO DE ISMAEL NERY

V I I I

Ismael Nery e eu éramos quase da mesma idade: tinhaele apenas 6 meses mais do que eu. Saíamos todas as tardes juntos da repartição onde já começara a conversa, e passeávamos pela cidade até às 7 horas. Que experiência incomparável para um jovem poeta vindo poucos anos antes da pequena cidade natal: o contato diário com um artista fervendo de idéias, um homem que, apesar da sua juventude, se revelaria logo um mestre da vida, um filósofo original, um comentador das formas, um vasto espírito em que as antinomias se fundiam! Passear pela cidade com Ismael Nery era de fato um prazer dos deuses. Nessa época ainda não se havia inaugurado no Rio de janeiro a correria: andava-se. Podia-se atravessar uma rua sem o terror de que somos agora possuídos. Ainda se encontrava muitas pessoas com aspecto humano e pacífico sem as expressões de hostilidade que atualmente se notam na maioria. Também os tipos femininos ainda guardavam vestígios acentuados da antiga nobreza corporal na doçura das linhas, na lenta deslocação dos gestos, no ritmo de andar; ao invés da tendência de estandartização que os atuais processos de embelezamento denunciam — apesar das

visível, ainda não americanizado.Nada escapava ao olhar educadíssimo de Ismael Nery.

Ele captava simultaneamente o detalhe e o conjunto. Descobria as diferenciações e as aproximações. Realizava a análise e a síntese. Tudo para ele encerrava um significado e um valor próprio, e nada existia sem motivo e sem necessidade de justificação. 0 seu conhecimento da forma humana beirava o prodígio. E tinha uma tal familiaridade com o mundo físico, que muitas vezes o vi inventar dados corporais para nomes de pessoas que ele nunca vira e que surgiam na conversa. Ele me ensinou a ver — como o fez também a outros. Nesses passeios pelas ruas comecei a descobrir as relações de afinidade entre o mundo físico e o moral, a interpenetração e fusão das formas, as diferenças entre forma e fôrma, estudo de interesse inesgotável. As coisas passavam a apresentar aspectos dantes apenas pressentidos. Posso dizer,literalmente pesando as palavras com frieza, que Ismael atravessava a distância. Além dos seus dons

sempre. Quero dizer que o tipo feminino brasileiro era mais

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naturais, creio que fazia grandes treinos diários, tanto de concentração como de aplicação da energia. Aproveitava todas as técnicas antigas e modernas. Ajudado por ele conheci novas dimensões: o campo da vida alargava-se e muitos véus se descerraram para mim. Ismael via como se fosse naturalmente dotado de microscópios e telescópios. Nunca soube de ninguém que experimentasse tão fortemente o atrito das coisas. Possuía hiper- acuidade física e espiritual. Uma vez descobriu na minha presença o apóstata num padre, somente pela maneira que este contava o dinheiro num banco. Mais tarde verifiquei o que pensava ser uma profecia: era uma observação, uma dentre as mil que ele sempre fazia.

Já que o físico contém o nosso moral e o exprime, nunca se poderá chegar a aquilatar o grau da beleza moral sem a experiência física. "A caridade, por exemplo, é tanto mais bela quanto mais repugnantes são os objetivos que a reclamam". Conforme deixou escrito: o sensualismo e até o sexualismo não constituem de modo algum em si mesmos empecilho ao espírito religioso. 0 mal portanto não é ser sensual, e sim possuir uma sensualidade estática ou requintada. No seu testamento espiritual, redigido, a poucos meses, antes da sua morte — página profética que publiquei na "Ordem" em 1935 e conto de novo publicar nestas colunas — Ismael aconselhou aos homens: "Orientai vossa ciência para conseguirdes um aumento micrométrico das vossas sensibilidades. Não façais o que vos causa nojo, mesmo que tal seja mínimo". 0 fato é que Ismael conseguia tornar simpática e atraente a idéia do bem quando a idéia do mal se impunha às imaginações moças com uma força persuasiva muito maior. Este homem de rara nobreza, de alta linhagem espiritual, não precisava de sermões nem de injeções de moralismo para estabelecer o seu sitema apologético. Mostrava o bem como ideal harmônico, vindo das próprias camadas do instinto. Usou sua inteligência extraordinária para convencer justamente que o papel da inteligência deveria consistir que numa reposição dos desequilíbrios. Mostrou dia a dia que os sentidos são escolas de refinamentos transcendental, ao invés de máquina de perversão. Tão forte carga de eletricidade trazia consigo, que nos foi fácil depois aceitar esta proposição comum a tantas filosofias e religiões: o homem é o resumo do universo. E seu poder de introversão igualava o de extroversão.

Ele mesmo costumava dizer que era um tesoureiro espiritual. Acumulou uma enorme experiência, mas fez circular os bens. Não admitia restrição de espécie alguma. Todas as idéias, teorias, correntes de pensamento, doutrinas, continham para ele o germe da verdade, e de todas e de tudo sabia extrair o interesse. Tirava do seu tesouro coisas novas e antigas. Ninguém mais novo do que ele, ninguém mais antigo. Gostava muito de conversar com pessoas de convicções opostas a sua, de empregar as próprias armas do adversário na defesa das idéias dele.

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" Tenho uma formidável atração pelo que detesto, inclusive eu mesmo Já me referi à força de sua personalidade: seria entretanto mais exato acentuar que ele não tinha propriamente personalidade, pois compreendia, interpretava e abrangia os temperamentos mais diversos. ( Poderia citar inúmeros exemplos ). É por isso que existem a seu respeito concepções tão diferentes. " Meu Deus, para que pusestes tantas almas num só corpo? ". E por isso também que passou como um excêntrico nesse Brasil neutro dos 1920: aqui ainda não havia quadros onde tal homem pudesse se expandir e escrever sua complexa missão. Ismael era um espírito intervencionista por excelência; atacava de frente todos os problemas e convidava o outro a tomar partido em casos aparentemente sem significação. Segundo ele o instinto de curiosidade é em nós mais forte que o próprio instinto de conservação. Sua curiosidade era total." Minha sede não éde água.. . £ uma sede insaciável. Que aumenta à medida que eu bebo ". Tinha uma alergia quase mórbida à preguiça intelectual, provocando nos seus próximos um estado de tensão que poucos podiam suportar. Tudo vibrava nele, registrando Ismael a todo o momento as correspondências entre o mundo físico e mental: porque todas as coisas são solidárias na unidade. Quando o conheci em 1921, achava-se muito preocupado com o problema da desintegração do átomo. Isto dá uma idéia da sua precocidade e do avanço no tempo. " Os cientistas alemães estão estudando com afinco esta questão: é possível que dentro em pouco se possa fazer saltar a matéria ". Lembro-me perfeitamente que ele declarou isto numa das primeiras conversas que tivemos. Várias vezes o repetiu.E acrescentava: " Realizado isto, das duas uma: ou a humanidade se aniquila, ou então começará uma nova era, em que a concepção de Deus será instalada em novas bases ". Dizia muitas vezes que os acontecimentos deste século mostravam que o universo estava se aproximando de uma imensa transformação; como resultado, ou os homens se suicidariam coletivamente, ou se voltariam de novo todos para Deus. Ele se encontrava sempre na pista da catástrofe. Conseguia captar fora do tempo seus sinais precursores, indicando a conjunção dos fenômenos aparentemente mais opostos ou isolados. Sua interpretação trágica do sentido da existência manifestava-se em todos os momentos. Achava às vezes terrível um homem andando, um homem comendo, um homem rindo. Não creio que pudesse suportar, nem mesmo daqui do Brasil o espetáculo da segunda guerra mundial, pois sofria verdadeiros abalos diante de desproporções que nem eram notadas pelos outros, além disto, várias vezes o vi excitadíssimo e nervoso, porque,dizia, o drama do mundo descerrava-se aos seus olhos, contemplando ele instantaneamente e simultaneamente o que se passava de trágico em todos os pontos da terra, e dentro do bloco geral um pequeno detalhe o impressionava tanto

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quanto o conjunto. Não via apenas a guerra oficial, via a guerra ora patente ora velada de todos os seres e de todos os elementos, inclusive a imensa luta dos micróbios dentro dos organismos humanos. Usando um de seus termos prediletos, direi que ele tangenciava todas a? coisas, sentindo-se afim com tudo e com todos. " Eu sou o grande poeta e pai de todos os homens; deverei extinguir todas as possibilidades de forma humana distribuindo minha alma nos seus inúmeros corpos ". Declarava . sempre que precisaria viver milhares de vidas em milhares de anos para usar a força que sabia contida dentro de si. Irritava-se ao observar a dispersão da energia do homem moderno, energia essa que antes deveria ser empregada na concentração espiritual do mundo e em conhecimento, cultura, fraternidade e adoração de Deus.

Era um homem de coração quebrado. Além de outros motivos, este certamente influiu muito no sentido de ele não deslizar para o plano do super-homem. Tinha consciência clara do seu valor, da sua grandeza, mas era um espírito cristão. Inúmeras vezes o vi mudar de fisionomia e baixar o diapasão em meio dos monólogos em que se identificava com o universo tangenciando o absurdo e o desmesurado: bastava contar-lhe uma pequena história de algum ente anônimo, algum obscuro sofrimento. A tensão diminuia. Os inquietantes olhos de verruma assumiam tons compassivos, a voz tornava-se humilde, relaxavam-se as mãos nervosas. A corrente magnética que do alto passara pelo seu coração e produzira imediatamente o contato. Na sua maneira de olhar qualquer pessoa humana, e em particular um pobre, um doente, reconhecia se o homem cristianíssimo.

Mostrou praticamente com o seu exemplo que o caráter cristão repousa sobre uma combinação de força e doçura. Era da raça dos violentos, isto é, dos que arrebatam o céu pelo supremo domínio de si mesmos à custa de rudes golpes e de cicatrizes de implacáveis destruições. Mas comovia-se a todo instante e sabia comover. Muitas vezes depunha as armas intelectuais, para tocar e abalar por meio da afetividade pura, desfazendo os limites impostos pelo amor próprio ou pela timidez dos outros. Houve uma época em que eu me manifestei de uma intolerância excessiva no tocante à religião. Ismael, depois de me apresentar diversos argumentos, olhou-me um dia com infinita tristeza e, resolvendo exemplificar por si mesmo, deixou cair estas palavras que jamais esqueci: " Eu nunca teria coragem para afastar da minha vida você. ou qualquer outro dos meus amigos. Imagine agora o que seria despedir Nosso Senhor Jesus Cristo, a Virgem Maria, São Francisco!..."

Creio que a nossa época, muito mais do que qualquer outra, necessita de homens viris, mas de coração quebrado. Nietzsche pôde escrever os seus panfletos contra o cristianismo, porque não chegoi

a conhecer este de perto. A crítica feita segundo a caricatura, estava objetivamente certa. Não há dúvida de que este cristianismo anêmico e edulcorado não ajudará a transformação do mundo. Mas também uma sociedade dominada por chefes políticos do tipo nazista, amigos da força bruta e inimigos da doçura decoração, será de novo fatalmente arrastada à guerra e ao massacre geral. Ismael Nery mostrou que a humildade e a virilidade não se excluem, e, ora quebrando o coração em frente aos outros, ora chegando ao extremo limite da violência para consigo mesmo, sabendo que todos os contrastes se fundiam na inalterável unidade, sempre se manteve como um humanista cristão exemplar. "Pertenço a raça dos homens que amam e consolam e não são amados nem consolados".

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RECORDAÇAO DE ISMAEL NERY

IX

Mais do que em nenhuma outra época, penso que é altamente importante para o futuro da cultura que continuem a surgir homens dispostos a estudar o que se convencionou chamar os problemas gratuitos do espírito. De resto trata-se de problemas que podem ser postos de lado por alguns anos, ou mesmo por um século, mas que um dia ressurgirão com toda a força e violência, pois estão ligados às necessidades mais íntimas do espírito humano. Quantas vezes tenho me surpreendido ao tomar conhecimento das censuras feitas por socialistas e comunistas aos estudiosos de certos problemas filosóficos, que,segundo eles, deveriam ser abandonados em benefício do único estudo merecedor de atenção, o da questão social! Esquecem-se de que Marx e Lenine consumiram (ou melhor ganharam) anos examinando tais questões, e que em geral os espíritos representativos das classes dominantes não se interessam por elas.

A propósito convém lembrar que Ismael Nery também se interessava pela questão social. 0 que não fazia era reduzir à mesma o campo da filosofia e da aventura humana. Anos a fio discutiu conosco questões fundamentais do socialismo, teorias sobre a propriedade, distinção entre uso e posse, problema cooperativo, psicologia do operário, defeitos e vantagens do sistema comunista e muitos outros assuntos afins. Entretanto, considerava insolúvel a questão social — apresentada geralmente, segundo ele, de forma imprópria — devido à complexidade das modernas exigências do homem, do crescente volume dos fatos, e devido a não haver mais, em sentido rigoroso, coletividade, pois os elementos que compõem a sociedade são absolutamnte heterogêneos. Além disto as teorias políticas são todas feitas dentro da idéia de tempo, isto é, da relatividade que não pode dar aos homens a sensação do estável.

Foi mesmo através das observações de Ismael que comecei a perceber a desumanidade do sistema capitalista. Ele dizia que não precisava de ler grossos tratados sobre o assunto porque a simples observação o esclarecia. Entretanto, depois da leitura do Manifesto Comunista de Marx e Engels, que eu, simpatizante, mais tarde lhe levara,Ismael lamentou não encontrar numa peça capital de uma doutrina que pretendia transformar o mundo, uma análise,em extensão e profundidade, do homem e da natureza humana.

LETRAS E ARTES, domingo, 15 ago. 1948, página 5.

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Ismael dava continuamente verdadeiras lições de coisas sobre os problemas sociais. Recordo-me por exemplo das suas críticas ao atual sistema de organização da vida. 0 estilo de vida da sociedade capitalista, dizia, é um atentado ao essencial. Entre outras mil coisas, afirmava que o melhor tecido deveria ser reservado ao operário, "cuja roupa gasta-se mais facilmente com o atrito". Extraía, como sempre, sua argumentação do elemento vivo, conseguindo convencer na maioria dos casos.

A questão social inseria-se para ele dentro da mais vasta questão humana, e achava que a maior parte dos políticos e economistas reduzem a esquemas muitos de seus aspectos vitais diminuindo sua substância e densidade.

Ele me deu o fio condutor para a compreensão desses problemas à luz do catolicismo, sendo-me fácil mais tarde seguir a linha social que vem desembocar na obra deste grande humanista que é o Padre 1. 3 . Lebret.

Folheando o livro em que colei os artigos publicados sobre Ismael algum tempo depois de sua morte, encontro um longo estudo de Barreto Filho, tentativa de investigação da personalidade do meu amigo através de um de seus desenhos. Esse artigo foi publicado em janeiro de 1935 na revista literária "Festa". Seu autor — que nos deu há pouco mais de um ano um livro de primeira ordem sobre Machado de Assis — não teve grande convivência com Ismael. Mas mesmo assim, movido sem dúvida pelos seus dons de simpatia humana a acuidade psicológica, apresenta-nos algumas notas muito interessantes que confirmam, de modo imparcial, o que temos dito a respeito da universalidade do espírito de Ismael Nery.Escreve Barreto Filho:

"Nossa intenção não foi, de início, dar um testemunho pessoal senão reconhecer, por intermédio de um desenho muito significativo, que os fantasmas interiores que obsedavam a experiência de um tão singular espírito, foram as mesmas realidades que têm fascinado o pensamento humano em todas as épocas". E mais adiante: "Ismael Nery poderia dar a impressão de caminhar sob a ameaça do perigo nominalista. Mas enquanto outros não conhecem ou conscientemente se desligam dessa tradição da inteligência e do sofrimento humanos, que tem organizado as grandes civilizações como largas vias históricas, Ismael, dotado de um irredutível bom senso, lastreava toda a sua aparente desordem num fundo solidamente católico. Amparado nos alicerces de uma grande tradição, poder-se-ía dizer que ele apoiava os malabarismos orgíacos de um Nietzsche na clara visão de um Santo Tomás de Aquino".

Cabe aqui observar que alguns lhe censuravam o :olocar-se fora da realidade. Ele percebeu esta objeção e várias vezes a :omentou comigo. Dizia então que esses mesmos que lhe opunham o jesconhecimento da realidade dormiam o sono solto, e conheciam uma realidade

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muito restringida ao seu espaço mental. Gostaria de lhes perguntar se eles aceitariam uma vida forte como a sua, levada até às extremas conseqüências. Criticava-lhe o abuso que faziam da palavra abstração como oposta ao conceito de realidade o que era de se estranhar em pessoas que não largavam os olhos dos livros.

Barreto Filho viu certo: apoiado na tradição católica”, Ismael pode se desviar de certos erros que o conduziriam a um excesso de subjetivismo. Houve uma época nos primeiros tempos do nosso conhecimento em que Ismael, depois de repetidas conversas com frades dominicanos, interessou-se muito pelo tomismo aconselhando-me a estudá-lo pois, dizia, "é um método que faz conhecer a realidade e ensina a pensar solidamente". Ismael detestava o vago. Foi o primeiro homem que me falou com. acerto de liturgia. Sabemos do mal entendido existente em torno deste grande vocábulo. Pois bem, mais tarde, vim a descobrir que um dos principais motivos de sua atração pela liturgia residia no fato de esta operar uma síntese realista, como o demonstra Romano Guardini no seu célebre livro. É preciso notar que pelas alturas de 22 ou 23, tomismo ou liturgia eram chinês para quase toda a gente.

Devo entretanto admitir que não é ao contacto de qualquer membro da Igreja que se pode apreender a profundidade da tradição católica. Muito pelo contrário. A maioria dos fiéis apresenta a tradição como um símbolo inerte, incapaz de renovação e de participação às fontes vivas. Ismael mostrou-nos a fecundidade da tradição católica e sua plasticidade dentro da rigidez de certos princípios imutáveis. Mostrou-nos que a própria experiência histórica revela a riqueza e mobilidade da doutrina católica, adaptável a todos os tempos, civilizações e regimes políticos. Dizia-nos sempre que a catolicidade estava começando, pois só agora a humanidade chegara a um estado de madureza necessário à sua própria tomada de consciência. Afirmava sempre que nesses 19 séculos passados o cristianismo fizera seus primeiros ensaios, pois chegará uma época em que a santidade será considerada um fato normal, e não um estado extraordinário. Segundo ele,todos os homens possuiam elementos para atingir o estado de justeza. Vivia muito preocupado com o estado de justeza e integridade do homem. Indicação que me parece preciosa para os que desejarem fazer o conhecimento aproximativo da sua figura.

Transcrevo de uma sua nota autografada de 1930: "A grande e única tragédia consiste no desvirtuamento do objetivo do homem; eis por que sou católico. No catolicismo aprendo a priori o que constatarei no curso da vida. A vida é construtiva e o homem desvirtuado precisa demolir. Eis porque criei o essencialismo, que não passava de um método para ajudar o homem a ser homem. Ele sendo homem será católico; atingindo a justiça será santo, desejo máximo do homem".

A catolicidade vai-se manifestando progressivamente à

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medida que o espírito se aproxima do centro universal, gerador de pensamento e sentimento. No mundo espiritual, como no físico, nada se perde. 0 homem tendo recebido a investidura divina, é um participante da grande tribulação, solidário com as vibrações mínimas do universo.Calculo que ele haveria de sorrir hoje, se pudesse ter constatado o abuso da palavra participante, tão deformada nos últimos tempos. Para ele o homem é um ser que por definição participa da vida do próximo, sendo isto um apelo da natureza e da religião antes de o ser de qualquer partido político. A rigor ele achava mesmo que devia participar da vida dos que já viveram ou ainda estão para nascer. Dou aqui um exemplo prático de abstração do tempo tirado de um pequeno poema seu:

"Para mim eu ainda nãoacabei de nascer,

Tenho mãos pequeninas ou que ainda não nasceram

Deverei ser parido aos pedaços por todas as mães

do universo,Desde Eva até a última mulher" (x)

Ele se sentia afim com todos os homens, dizendo sempre que tinha um pedacinho de cada um. Por que todos provêm de um único germe, desenvolvido e desdobrado através dos tempos. Acreditava firmemente no dogma da unidade espiritual do gênero humano. Transposto para a realidade afetiva e artística, ésse dogma, perdendo seu caráter abstrato, confere ao espírito uma riqueza fecunda e produz vastas ressonâncias. No caso particular de Ismael Nery, pude constatar que ele havia encarnado este dogma, assim como o outro grande dogma que lhe é afim, o da comunhão dos Santos. Ele mostrou plasticidade e vibração humana do dogma,que infelizmente a maior parte dos interessados transformam em coisa estática e anti-humana. Nós sabemos que o natural e o sobrenatural não são compartimentos estanques; acham-se ligados pelo sopro divino que penetra e infunde a vida a todos os seres. "Para mim eu ainda não acabei de nascer". Por meio deste simples verso deixou Ismael a indicação do que é o homem em movimento ligado ao passado e ao futuro solidário com todos os seres na plenitude da vida que se desdobra sem cessar. "Tenho mãos pequeninas ou que ainda não nasceram".A humanidade é de fato composta de todos os homens que nasceram e dos que nascerão até o fim dos tempos. Nesses versos tão simples de forma Ismael fez o esquema de uma construção grandiosa, o da sua própria vida, a vida de um homem habituado a pensar e sentir abstraindo o tempo, e que não se resignava com o limite de sua localização num espaço e num tempo determinados. 0 que ele esboçou em quatro versos poderia ser desenvolvido em milhares de exemplos da sua vida cotidiana, mostrando o seu poder de fraternidade, seu gênio de assimilação, sua faculdade apostólica de se

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situar no espaço espiritual do outro. Jamais conheci um homem tão "social" como este grande individualista. Cito outra documentação feita por ele mesmo: achando-se Ismael em Paris em 1927, escrevi-lhe que Graça Aranha e Ronald de Carvalho tinham ido à minha casa para ver seus quadros, tendo o último notado sua afinidade com Picasso. Na carta em resposta, Ismael comentou o fato na seguinte passagem: "Quanto ao poeta Ronald, diga-lhe que a semelhança que tenho com Picasso devo ter também com ele pois todos bebemos idéias na mesma fonte". Nele o pensamento e o sentimento marcharam juntos. Tendo dado um exemplo de catolicidade do pensamento darei um outro de catolicidade do sentimento: a longa viagem de trem feita por Ismael nos últimos tempos de sua vida, para conhecer uma certa vaca de um fazendeiro seu colega de sanatório vivia lhe descrevendo. Ismael era o tipo do citadino e não apreciava muito o campo, mas o fazendeiro, homem meio primitivo e boníssimo, repousava toda a sua poesia na contemplação do seu gado e em especial de uma célebre vaca Aurora. Ismael comoveu-se com a história e acabou viajando mesmo para a fazenda. 0 fazendeiro mostrou-me mais tarde, orgulhoso, a carta que recebera de Ismael quando regressou ao Rio: parecia a carta de um caipira. Tal era o seu dom de interpretar a sensibilidade do próximo. Ele nunca se referia ao alheio, mas sempre ao próximo.

No seu testamento espiritual declarou que a utilidade dos homens da sua categoria só seria visível mais tarde. "Eu sou um predestinado, como foram também meus predecessores e como serão meus sucessores. Através dos séculos deveremos desenvolver o germe que no princípio da vida recebemos. Nós somos os grandes sacrificados que sofrem por todo o erro e atraso dos homens".

(x) São 4 versos.

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RECORDAÇRO DE ISMAEL NERY

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Ismael Nery contava entre seus ascendentes pessoas de estranha e forte sensibilidade. Entretanto isto não basta para explicar a gênese de um espírito da sua categoria. Tantos e tão complexos são os elementos que entram na formação de um grande homem,que não se pode jamais fazer um balanço exato. Devemos nos resignar a simplificar a operação; e, mesmo diante dos dados históricos que conhecemos, tantas probabilidades e interpretações nos ocorrem, que sempre um lado da figura permanece na sombra — semfalar no aspecto de mistério que banha todas as criaturas. Para se representar devidamente o homem— dizia Ismael— seria preciso conhecer instantes passados, pois a localização de um homem num instante de sua vida contraria uma das condições da própria vida, que é o movimento.

Ismael permaneceu em Belém do Pará só até a idade de nove anos,mas guardou sempre a nostalgia da cidade natal. Apesar da sua vocação universalista, sentia-se bem brasileiro, sendo que o homem brasileiro e o universal nele jamais se chocaram. Em Ismael tudo se encarnava e assumia autenticidade. Ele era do mundo, do Brasil e de Belém. Não sei se a cidade ainda é hoje como ele ma descrevia. 0 ambiente de Belém da sua infância influiu de modo poderoso na sua formação. Dizia-me sempre que lá as coisas eram sublinhadas, apresentavam características e relevos fortes, tinham cor, peso e sabor. No seu tempo de menino ainda presenciava muitas vezes o costume oriental de se oferecer banho de cheiro aos visitantes. Havia um verdadeiro culto das essências, resinas e raízes aromáticas. As comidas e bebidas eram terrivelmente excitantes. (Durante muitos anos recebeu em casa estoque das mesmas, que fazia questão de dar a conhecer aos amigos). Nada era insosso no Pará, dizia ele— a começar pelas pessoas. Mostrava-me álbuns com fotografias de moças e senhoras da sociedade paraense — muitas das quais de grande beleza, com as suas faces de maçãs salientes e olhos amendoados. Em Belém tudo era marcado, as coisas tinham caráter, havia uma vibração geral. A natureza do Pará, como se sabe, é fortíssima . A proximidadee do grande rio e da maior floresta virgem do mundo não pode deixar de ter influência na vida daquela gente. Convém recordar que no princípio do século, com o desenvolvimento do comércio da borracha, a sociedade do Amazonas e do Pará atingira um alto nível de vida. Muitas famílias faziam educar os filhos na Europa. Havia companhias de comédia

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e ópera que. vinham do estrangeiro para Belém e Manaus, sem chegar até o Rio.

A atmosfera da capital paraense,segundo relatos de Ismael, era muito poética, tendo deixado alguns traços em seus desenhos. Ele me falava de seus passeios pelo cais, vestido de marinheiro (como numa preciosa fotografia de 1908), ou então nesses lugares de nomes sugestivos que Mário de Andrade haveria de empregar em certas poesias — Marco da Légua, Marco da Viração; ou ainda no Ver-o-Peso, com as suas centenas de barcos coloridos; no Museu Goeldi, no Castelo, nas largas avenidas plantadas de mangueiras, cujos frutos se reservavam aos pobres; em tantas pessoas pitorescas ou profundas como a bisavó paterna descendente de índios, que gostava de animais bravios, ou o tio poeta que não trabalhava, passando o tempo a "pensar na deusa" e que ele transporia num desenho com a legenda "o poeta que me precedeu"; nas tempestades no grande rio, principalmente uma que afundou o navio ...

Existirão ainda esses lugares e esses passeios? Nunca fui a Belém do Pará, que, segundo me dizem , está hoje bastante desleixada pelos poderes públicos, sem luz, com ingentes problemas de organização. Saberão alguns de seus habitantes que sob o céu de Belém nasceu Ismael Nery?

Gosto às vezes de reconstituir com alguns dados que ele me forneceu, o ambiente da casa paterna à beira-rio, batida pelos ventos, as vastas salas de espaços vazios, o desfile diário das visitas de pessoas de todas as classes (naquele tempo ainda se visitava!), e a atenção dada pelo menino à fisionomia, aos trajes, aos tiques de cada um. Na fotografia aludida ele aparece com o boné de marinheiro onde se lê distintamente a palavra MEDUSA, palavra já pesada de presságios ... Ao fundo o pai que faleceria no ano seguinte, e o irmão, dez anos mais tarde. Lá está ele encostado à bicicleta, na sua roupa nova, sem dúvida especial para o fotógrafo: mas o olhar embora já poderoso não ilude quanto ao seu caráter melancólico. Esta melancolia que se adivinhava sempre mesmo nos seus momentos mais felizes, e que se reflete nos olhos das figuras dos seus desenhos. 0 olhar daquele menino de oito é de quem já conhece coisas perturbadoras da vida, olhar de quem já recebeu revelações. Como são às vezes indicadores os retratos de criança! Esse retrato de Ismael Nery menino faz-me às vezes lembrar os retratos de formatura, em que se enxerta o preito de saudade ao colega morto no meio do curso. Sente-se que com tal olhar não poderia ir mesmo até o fim!

Desde cedo habituou-se Ismael a freqüentar ricos e pobres. Familiar^ zou-se também com duas espécies de homem que tratam muito diretamente com as realidades fundamentais da vida — os médicos, e os padres. Na casa paterna, como mais tarde na sua própria casa, continuamente se veriam representantes dessas duas classes. Ismael folheava a Bíblia e livros de medicina, tendo tido sempre forte atração pelos tratados de anatomia. Costumava dizer que é grande a importância do médico, pelo seu conhecimento da matéria da vida: quanto ao cirurgião, admirava o seu poder intervencionista, que o

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torna um colaborador muito próximo da obra divina. Ismael só gostava de livros com gravuras. Mesmo a Bíblia, deveria ser ilustrada. Conhecia muito bem a Bíblia, mostrando familiaridade com os textos, especialmente os do Novo Testamento.

Penso que esses primeiros anos de sua infância em Belém do Pará decidiram para sempre do seu caráter, da sua vocação; o germe do realismo que haveria de ser mais tarde uma das fortes exigências do seu espírito, como base de uma educação harmônica em que se desenvolvem simultaneamente e em igual intensidade a inteligência e os sentidos, já se encontra nesse menino de oito anos que gosta de conversar com médicos e padres e de folhear a Bíblia e tratados de anatomia.

Seus pais educaram-no primorosamente. Do pai herdaria a vocação realista a que acabo de me referir, e da mãe o dom visionário. Segundo indicações seguras, alguns de seus parentes mais próximos possuiriam um instinto plástico muito desenvolvido, o gosto do teatro e, principalmente, da transposição das atitudes teatrais para a vida. Em Ismael, entretanto, essas disposições foram corrigidas e equilibradas pela filosofia. A julgar pelas aparências, sua vida passava-se no plano estético; — pois na verdade só aos íntimos ele se mostra como homem de sofrimento e luta. Dizia sempre que o homem possui um espelho para se conhecer e corrigir: seus pais, já que sai deles e tem por definição muitos de seus defeitos.

A atmosfera de sua infância, como a da sua adolescência, como a da sua mocidade, era inquietante. Sempre esteve cercado de pessoas de sensibilidade fora do comum. Cedo começou o aprendizado das coisas trágicas da vida. Sob o ponto de vista abstrato e filosófico achava que a vida é antes construtiva, oferecendo em seu curso as emoções necessariameji te mais opostas, não podendo portanto o homem ser a priori nem pessimista nem otimista. Mas, como desde o princípio foi-lhe imposto o conhecimnto da destruição, jamais pode realizar essa adequação entre o interior e o exterior que sempre considerou o ideal harmônico.Os que o cercaram não possuíam naturalidade nem sinpli- cidade. Entretanto, possuíam o gênio da análise minuciosa e da elucidação, obtido à custa das mais estranhas transposições e transferências afetivas. 0 eixo da verdade religiosa deslocava-se para o do mito passional. As pessoas examinavam exaustivamente os assuntos e os fatos sob todos os ângulos, misturando de improviso realismo e imaginação. A vida adquiria um caráter superlativo, uma intensidade trágica. Tratava-se de ver, ouvir, sentir e pensar ao mesmo tempo. De fato, depois de conhecer de perto o ambiente de Ismael Nery, todas as vidas me pareciam mais ou menos róseas e tranqüilas. Uma ocasião, falaram-lhe nos romances de Dostoievski, e na vida dramática de seus personagens. Como se achava internado no sanatório, lia de vez em quando para afastar o tédio. Levei-lhe então três ou quatro livros do grande russo. Semanas depois ele os devolveu com este comentário: "eu não deveria dizê-lo ... digo a você porque você é uma das três ou quatro pessoas que poderão me compreender. Ah! Se eu tivesse uma vida assim como a desses heróis de Dostoieviski, seria canja ..."

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Tive de concordar.0 dom da análise intensiva, a super-consciência aplicada a

si mesmo, a tudo e a todos, o espetáculo da desproporção existente entre a verdade teórica e a precariedade dos instrumentos usados pelo homem para sua ordenação no tempo, o esforço contínuo para harmonizar seu temperamento com a doutrina católica, cedo conduziram Ismael Nery à exaustão. De resto, ele nunca se iludira diante das aparências deste mundo. Dizia-me que sempre se deitava com a idéia que poderia não despertar no dia seguinte. Adiantaria alguma coisa a este homem inscrever-se num partido revolucionário que prega a destruição da sociedade burguesa? A sua convicção da instabilidade não só das classes ou sistema atual da propriedji de, mas também do próprio universo, era muito mais forte do que todos os slogans políticos. Ismael cedo compreendeu a significação filosófica e espiritual da renúncia. Em muitos pontos importantes seguiu o ideal de São Francisco, de quem era fervoroso admirador. De outra maneira não deverá ser interpretado seu total despojamento diante de sua obra e das intensas possibilidades de sucesso temporal que não poderia deixar de ter, mais cedo ou mais tarde, um homem assim de múltiplos talentos. Evidentemente um crítico de arte, colocado diante de seus desenhos, não terá que considerar este problema de ordem estética; nem mesmo eu, quando me coloco diante deles como simples amador. Entretanto, na qualidade de seu amigo dos mais próximos, e de testemunha da sua vida prestando um depoimento, não posso deixar de mencionar um fato tão relevante. Numa época como a atual, em que o Brasil sofre a tentação de imitar um estilo de vida contrário a nossa índole, a lição de renúncia dada por um homem da estatura de Ismael Nery não pode deixar de pesar na nossa balança espiritual. Poderi do ter muito quis ter pouco, o mínimo: viveu mesmo no plano do essencial, viveu o que pregou. Eis o escândalo para o mundo: um homem cumulado de dons naturais e intelectuais, habitando uma grande cidade do século XX, com o pensamento absorvido no valor imutável e eterno da doutrina cristã,fascinado pela poesia e verdade da pobreza em seus diversos aspectos, despojando-se de bens materiais que estavam ao alcance de sua mão, despojando-se de sua própria personalidade que encerrava muitas outras personalidades, negando as aparências deste mundo de que ele não obstante conhecia os encantos visíveis ou secretos, para que o espírito do Cristo se manifestasse nele! "Meu Deus, dai-me tudo menos a paz. Tirai-me cada vez mais a felicidade para que cada vez mais eu a deseje e não morra de tédio".

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Ismael Nery revelou-se pintor desde pequenino. Um dos seus primeiros desenhos, segundo testemunho de pessoas de sua família, foi feito aos quatro anos de idade: era o retrato do Cônego Bernardino, Capelão do Asilo Gonçalves de Araújo realizado depois de ter assistido à missa celebrada pelo mesmo.

Gostava de pintar navios de guerra de qualquer tipo, desenhando à parte a maquinária e outras peças. Seu primeiro modelo foi ele próprio, pois ainda menino ia para frente do espelho e estudava-se durante horas , acumulando em seguida os esboços e desenhos. Depois de ter exercido inúmeros estados da sua figura começou a pintar meninas e moços e logo em seguida o par humano, em torno do qual cedo giravam suas preocupações. Ao despontar da adolescência começou a ser notado como pintor de elegâncias. Nessa época tinha inclinação para a vida mundana. Freqüentava festas da sociedade. Dançava muito bem, organizando em casa da família pequenos espetáculos com números de teatro e dança improvisados por ele mesmo. Ismael sempre teve um "humor" extraordinário, que guardou até mesmo nos últimos anos de sua vida, entretanto os mais tempestuosos de que tenho notícia. Havia nele algo de brincalhão, algo de inventor da Comédia dell'Arte; adorava pregar partidas aos amigos e conhecidos, servindo-se disto também como teste para estudar o caráter alheio. Era dotado de notável talento mímico. Caricaturava com muita propriedade gestos, ditos e atitudes de pianistas, oradores, cantores, dançarinos, etc. As vezes atingia mesmo um alto nível de comediante pelo imprevisto das suas invenções que oscilavam entre a graça ligeira e o "suspense". Não escreveu de si próprio que èra "Um grande ator sem vocação. Ator desconhecido, sem palco, sem cenário e com palmas?...".

A existência de Ismael era de fato um grato espetáculo renovado todos os dias. Narra uma antiga lenda indú que o deus Krishna surgindo no meio de uma cerimônia religiosa celebrada em sua honra, propôs a sete moças que dançassem. Desculpando-se estas de não o fazerem devido à falta de pares, Krishna desdobrou-se em sete dançando ao mesmo tempo com todas as moças. Esta é a imagem que sempre me ocorre ao evocar Ismael como artista da vida, infinitamente mais poderoso do que Ismael retratado nas suas telas e desenhos. Para ele a vida estética não se opunha à vida filosófica ou religiosa. Vimos diante de nós realizado o ideal grego, desenvolvido e completado pela filosofia cristã. Vimos este milagre: um teólogo que dança.

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Ismael era moreno claro, de olhos e cabelos castanhos.Tinha 1 m 75 de altura, sendo cheio de corpo. A pele ligeiramente gretada: os olhos assimétricos, recortados um pouco à maneira oriental, como acontece em tantos homens do extremo Norte. Barbicha rala. Boca de talhe muito pronunciado. Apertava às vezes fortemente os lábios, numa enérgica tensão da vontade. Quase não se lhe viam os dentes pequenos. Testa larga.No seu rosto, de acordo com a teoria de Pierre Abranham que estudou fisionomias de homens ilustres, era muito acentuada a diferença entre as duas faces.

Seu tipo lembrava o do índio,mas em Paris foi preso uma vez como russo. Nunca franzia a testa. Nas tremendas discussões com seus amigos não usava levantar a voz como argumento. Só o ouvi gritar uma vez. Era extremamente polido, não da polidez convencional do homem de sociedade, mas da polidez que é uma conseqüência da perfeição espiritual do homem que tem na boca palavras divinas. No exemplar de seu livro sobre a vida franciscana existe assinalada com iniciais autografas, a seguinte passagem que ele evidentemente, e com justiça se atribuiu: "Continuando sua narrativa, as 'Fioretti' relutam que São Francisco pôs-se a meditar com seu companheiro as vantagens que haveria em se receber na Ordem a Guido Vagnotelli, esse homem infinitamente amável e polido. E o Santo disse a frei Silvestre: '£ preciso que saibas, caríssimo irmão, que a polidez é uma das qualidades do próprio Deus, pois é por polidez que ele dá o sol e a chuva tanto aos maus quanto aos justos. E a polidez é a irmã da compaixão, que exclui o ódio e alimenta o amor? i'

Aos quinze anos entrou para a Escola de Belas Artes do Rio; já me referi em artigo anterior à tradição que ali deixou, pois desde aquela época seus guaches e suas aquarelas eram famosos. Aos dezenove anos matriculou-se na Académie Julien de Paris, mas o curso não o satisfazia, sendo muito acadêmico para as suas tendências; em todo caso foi-lhe útil porque estudou modelo vivo. Mais tarde desenharia sempre sem modelo.

Quando o conheci, em 1921, havia Ismael regressado pouco antes da Europa, muito desanimado com a pintura. Lembro-me bem da confissão que me fez: depois de conhecer Tintoretto e Ticiano, tinha vontade de quebrar os pincéis. Já se manifestava claramente suas predileções pela filosofia. Além de tudo isto entendia que a pintura estava em crise, pois muitas de suas possibilidades deveriam ser realizadas pelo cinema. Queria fazer cinema. Mostrou-me alguns cenários de filmes escritos por ele, pedindo-me também que colaborasse nos seus projetos - coisa que nunca pude fazer. Não posso precisar se os dois primeiros anos da nossa convivência Ismael se referia aos pintores moderados, mas inclino-me pela negativa, embora poucos meses depois, que o conhecia tenha ele me mostrado uma cabeça de homem pintada com azul, o que faria pressupor conhecimento de uma das primeiras fases de Picasso (*). Lembro-me entretanto de nomes

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de pintores e desenhistas que ele ainda mencionava naquela época pré- histórica aos olhos da geração atual: Carriere, Dante, Gabriel Rossetti e Aubrey Beardesley, o ilustrador da "Salomé" deWilde. Dizia-me também que aí pelos quatorze anos interessou-se pelos trabalhos de Cremons, o pintor italiano dos namorados românticos, que morreu, segundo dizem, envenenado pelas tintas. Além dos citados, recordo-me ainda de Felice Casorati, pintor hoje esquecido, também italiano, que nos impressionava mais pelo espírito do que pela técnica; pintava personagens pobres e magros, em grandes espaços vazios.

Mas os seus pintores prediletos eram Tintoretto,El Greco, além de Ticiano e Leonardo: o que se compreende bem, pois ele tinha muitas afinidades com os artistas da Renascença.

A carreira do pintor Ismael Nery não seguiu uma linha de evolução definida. Ele era solicitado por tendências opostas, não tendo compromisso com nenhum grupo ou doutrina estética. Atraiam-no muito os mestres clássicos, mas não há dúvida de que o substrato romântico do seu espírito era de tal forma rico e fecundo, que jamais pôde mergulhar sempre nele, sem artificialismo nem constrangimento. Por aí se vê que Ismael não usou o romantismo como atitude estética. Possuía uma consciência superlativa da dualidade espírito-matéria, sabendo que a ampliação do conflito dá riqueza à vida do homem em geral e do artista em particular. Encarava a sexualidade como um dos meios mais próximos de realização da personalidade, uma plenitude, um coroamento dos ímpetos iniciais da adolescência em que se confundem as noções de erotismo e heroísmo.Acreditava na função religiosa do sexo.

Apontando-o como romântico, não o faço seguindo os habituais processos críticos, isto é, tentando enquadrá-lo numa determinada categoria intelectual. Na verdade Ismael escapa a tais definições. Num artigo sobre ele, publicado um mês depois da sua morte, assim se externou a propósito o meu querido amigo Aníbal Machado, nesta passagem que considero um milagre da intuição, visto o conhecimento relativamente pequeno que ele teve de Ismael: "0 caso de Ismael Nery terá que ser estudado e compreendido à luz de outros elementos que não os mais correntes na interpretação dos homens. Infernado por uma vida interior tempestuosa, agarrado aos fantasmas de sua psicose, falando aos demais espíritos de preferência mas não unicamente na linguagem sibilina de seus desenhos, esse artigo passará incompreendido, se julgado pela escala normal dos valores humanos" .("A MORTE DE ISMAEL NERY',' BOLETIM DE ARIEL,. RIO, MAIO

.1934) .Só observo aí um ponto de discordância: é que Ismael

comunicava-se de preferência, não pelos seus desenhos, mas pela sua conversa. Será sempre para mim um forte motivo de tristeza o pensar que homens como Aníbal e outros não o tenham conhecido melhor: do contrário, estou certo que diversa seria a concepção que têm dele ... e possivelmente

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do mundo.Por um critério prático aproximativo, indico o romantismo

como traço predominante da personalidade de Ismael. Mas ele empregou novas dimensões no estudo da arte e da vida. Era um portador e ampliador da tradição. Achava que o homem deve interpretar o imenso patrimônio espiritual herdado de seus antepassados, sem desprezar nenhum elemento positivo, mas confrontando-o com a sua experiência pessoal transmitida aos seus descendentes aumentado de novas observações e.novos testemunhos. 0 indivíduo recebe este tesouro de coletividade, e, filtrando e definindo, sua próprJa experiência, transforma-se em pessoa.

Como pintor e desenhista creio que Ismael deve ser considerado antes de tudo um grande improvisador: a extraordinária agilidade com que desenhava para tal o inclinou desde cedo. A mão corria célere, pois na cabeça apontavam já novos projetos que quase sempre eram postos de lado, dando lugar a outros ainda mais novos. Nunca o vi pintar um quadro em três ou quatro etapas: terminava-o no mesmo dia. Preferia o material precário, tendo pintado muito quadros em papelão. Opinava sempre que se deveria fotografar os melhores como documento, queimando os outros. Eu estava de acordo com ele quanto ao valor relativo de certos trabalhos seusi mas não tinha coragem de destruí-los. Vira nascer um por um, dia a dia: muitas vezes levava-os para casa com a tinta ainda fresca da criação. Ismael ao mesmo tempo que considerava sua obra plástica um divertimento, olhava-a com implacável rigor. Era acima de tudo um poeta, um filósofo e um comentador da vida: dizia de resto que o artista brasileiro tinha elementos muito fortes para ser um resumo do mundo, achando-se colocado para isto numa situação de equilíbrio e imparcialidade, inclusive até do ponto de vista geográfico.

Conforme tenho indicado,outros motivos contribuíram para que Ismael não encarasse a pintura como finalidade suprema de sua vida.Ele era um religioso militante. Julgava a arte um ponto muito elevado mas não culminante da hierarquia espiritual. "0 homem agora distribui suas esperanças na arte e na ciência. Chegará um tempo em que arte e a ciência não bastarão mais para suprir as necessidades científicas, toda a ciência resume-se num estado de equilíbrio da vida e numa tentativa formidável de conhecimento da matéria da vida."

(*) Em 1923 esse conhecimento já é positivo como prova o desenho que ilustra esta página.

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RECORDAÇAO DE ISMAEL NERY

XII

A arte brasileira dos anos anos 1916 a 1930 sofreu, como não podia deixar de sofrer, um choque de surpresa. Choque vindo da tomada de conhecimento da revolução moderna — fenômeno de ordem geral e não apenas de ordem artística. Choque e crise. Crise nascida da necessidade de refletir as correntes européias. Crise da adaptação das dominantes revolucionárias às possibilidades e ao ambiente do Brasil. Mas essas crises de febre — como sucede muitas vezes no transcurso de certas • doenças — retemperavam o organismo artístico nacional, que passou a receber novos elementos de construção.

Vivendo quase todos no Rio ou em São Paulo, nossos artistas da época — pelo menos em sua grande maioria — não tomaram contato com a tradição plástica colonial de Minas,Bahia e Pernambuco, de resto muito mais importante na parte da arquitetura e escultura do que na de pintura.A tradição do primeiro e segundo império era estática, pois vinha do frio academismo gerado pela Missão francesa do tempo D. João VI, que anulou o magnífico surto dos nossos santeiros populares, heróis obscuros excluídos dos catálogos oficiais. Sem dúvida, Pedro Américo, Vitor Meireles, Arnoldo e outros trabalharam e deixaram uma obra que se prolongou até nossos dias em alguns pintores. Estes entretanto não transmitem em suas telas a palpitação da vida nem sabem criar um estilo pessoal, pois se fixam em fórmulas convencionais ultrapassadas.

Se como assinalei atrás, Ismael Nery se mostrava tão desencorajado quanto às suas possibilidades de pintar aí pelas alturas de 1921, não se deveria isto em grande parte à sua falta de entrosamento no meio artístico do Rio onde não encontrava material nem pessoal correspondente às suas idéias e inclinações? Creio que sim. Daí a pouco, entretanto, começaria a batalha pela transformação dos meios técnicos, movimento este surgido de novos imperativos históricos. Na verdade os malsinados artistas de 1922 — poetas, escritores, pintores, músicos— são figuras de primeira ordem a que o Brasil imensamente deve; tiraram um pequeno mundo quase do vazio.

Em vez da palavra modernismo, prefiro empregar a palavra modernidade. E de fato que "modernismo" tem se prestado a muitas confusões, pois designa ao mesmo tempo uma época e um movimento. Nós

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sabemos que as épocas não são compartimentos estanques sendo antes ligadas aos momentos e as épocas passadas. Mas não há dúvida de que um determinado ciclo cultural tem correspondência com o ciclo político e econômico, possui características próprias, que entretanto não chegaram a isolá-lo dos outros. 0 que foi moderno para uma geração já será antigo para outra; basta olhar uma fotografia de 10 anos atrás para rir do modernismo. Os simples observadores de uma época não deverão ser considerados expoentes do espírito: a não ser que se inclua na lista o operador do Movietone - e logo no primeiro lugar.

De resto, os acontecimntos hoje se aceleram de maneira tão vertiginosa, que ninguém mais pode se julgar em dia com o mundo. A palavra "modernismo" restringe, pois, a área de um fenômeno positivo, pelo que proponho - de acordo com Baudelaire no seu famoso estudo sobre Constantino Guys, escrito em 1860 - a palavra modernidade. "Trata-se de extrair da moda o que ela pode conter de poético no histórico, de tirar o eterno do transitório. A modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente,a metade da arte, de que a outra metade é o eterno e o imutável. Houve uma modernidade para cada pintor antigo; a maior parte dos belos retratos que nos ficaram dos tempos anteriores são revestidos dos trajes de sua época".

Os mais recentes estudos críticos de pintura demonstraram o encadeamento do processo da modernidade através dos séculos. Sabemos hoje que muitos elementos importantes da arte de Picasso, Braque,Bonnard e outros estão contidos pelo menos em germe nos primitivos medievais, nas pinturas bizantinas e mesmo em documentos mais remotos. Conhecemos agora a impressionante modernidade de Bosch, surrealista no século XVI; Arcimboldo abriu caminho para Salvador Dali. E como explicar a súbita inclinação do mundo das artes para o esquecido El Greco — um verdadeiro "coup de foudre" — se não fora a sua modernidade patente?

Meditando pois sobre a campanha artística iniciada no Brasil em 1922 (ano em que de fato tomou corpo), parece-me certo afirmar que ela inaugurou entre nós a modernidade.

Os maiores artistas da humanidade acham-se colocados dentro do tempo e fora do tempo. Porque segundo a fórmula de Baudelaire que me parece das mais seguras existem aspectos transitórios, contingentes que encerram a metada da arte; e outros imutáveis e eternos. Há certas leis da natureza e do homem que podem ser alterados ou transformadas mas não extintas. Poucos homens conheci como Ismael Nery predipostos a fixarem ao mesmo tempo a modernidade e o permanente, pois sua vida se resume na conquista do essencial através das sucessivas mudanças. Na observação e fixação dessas mudanças reside o fenômeno da modernidade no caso transposta para o plano artístico. No choque entre a pessoa do artista e a massa surgida no horizonte histórico prevaleceu em Ismael Nery a certeza do

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valor espiritual da pessoa humana contra o valor político da massa. De resto, ele mesmo sanciona esta afirmação com uma nota autografa: "As épocas não podem ser determinadas pelas coletividades numericamente superiores, pois estas sempre possuem em sua totalidade valor inferior a qualquer individualidade superior". Por esta corajosa declaração suficiente para o fazer impopular já se vê que Ismael foi um lutador da grande batalha que se trava para poupar a pessoa humana à tirania totalitária.

Os desenhos e quadros de Ismael Nery começam a surgir historicamente em 1922 e se estendem até o fim de 1933. Trabalhou sempre. Inclusive nos anos em que esteve no sanatório tal atividade não cessou. Apesar das restrições que já assinalei ele atribuía grande importância à pintura que sempre considerou a mais nobre das artes: porque dizia exigir poder de observação e uma soma imensa de estudos, invenções e conhecimentos; porque se coloca em relação muito íntima com o ser humano e sua fisionomia própria; porque nela os erros e as impropriedades são mais visíveis do que nas outras artes.

Conforme acentuei, seu estudo predileto era o da figura humana. Logo nas primeiras conversas que tivemos, disse-me que a prova de fogo de um artista deveria ser pintar o Cristo completamente nu na cruz.Na verdade embora ele tivesse sido forçado toda a vida a executar só quadros pequenos, ou desenhos e croquis, Ismael era a favor das grandes montagens na pintura. Além dos obstáculos naturais da sua vida trágica, da certeza que tinha de morrer moço, a vastidão dos seus planos o impedia de trabalhar segundo suas intenções. Revelou-me um seu parente próximo que na sua primeira adolescência Ismael tinha misteriosas febres que coincidiam com leituras da Bíblia declarando muitas vezes em casa:"estou às voltas com a Bíblia e com seus personagens fervendo na cabeça. Pinto na imaginação centenas de quadros com estes personagens. Não há espaço material para pintar a todos". Mais tarde manifestaria uma espécie de terror sagrado em pintar quadros bíblicos. Gostava particularmente de pintores como Ticiano, Tintoretto e Veronese pela massa de problemas que tiveram de enfrentar, dizendo-me quantas vezes que um simples projeto de qualquer deles já era uma obra de arte. Ê verdade que as condiçõs da época permitiram uma vida de fausto e suntuosidade tão fortes que houve mesmo necessidade de se procurar uma correspondência poética nas constelações mitológicas.

Percorrendo a série de seus quadros e de seus desenhos (estes últimos somam várias centenas) notamos logo em Ismael Nery um artista interessado em exprimir a unidade da vida humana através de suas múltiplas manifestações. Percebemos que apesar de mergulhado no espírito de seu tempo não se deixou absorver por ele mas procurou sempre "extrair o eterno do transitório". Prova bem isto o fato de nunca ter chegado à

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desumanização total; empregava muitas vezes a deformação — processo abstrato que remonta a . vários séculos — mas demonstrando sempre respeito pela forma humana. Quando ele surgiu como pintor, procedia-se na Europa a desarticulação do sistema da pintura pelo menos como foi observado durante um milênio. De resto, a transformação dos processos técnicos da pintura corria paralelamente à da música, da poesiae da arquitetura. A pintura transferiu-se do plano do artesanato, da conquista lenta do objetivo artístico para o plano da aventura automática. 0 surrealismo naturalmente exacerbou o processo até as extremas consequências. Quando Ismael voltou da Europa em 1927 me disse: "Meus bonecos (assim chamava a seus quadros) têm pouca pintura ... mas diante dos de Max Ernst são clássicos". A observação é preciosa e ilustra a posição de Ismael dentro do movimento moderno.

Para o leigo em questões de arte, aqueles quadros e desenhos não passam de aberrações: mas o estudioso da evolução sofrida pela arte através dos séculos logo observará a marca do método clássico obediente ainda a certas leis de proporção e ritmo. (Ismael era arquiteto e tinha a paixão da dança).P.S. - No artigo anterior saiu impresso "Ator desconhecido, sem palco, sem cenário e com palmas" ao invés de "Ator desconhecido, sem palco, sem cenário e sem palmas", conforme o original.

LETRAS E ARTES, domingo, 19 set. 1948, página 5.

RECORDAÇAO DE ISMAEL NERYXIII

Terá existido um pintor verdadeiramente surrealista? 0 surrealismo pressupõe um abandono total da razão e da vontade; o pintor surrealista deveria ser um medium pintando quadros sem a menor interferência do consciente, o que na prática é impossível.

Só o fato de ter exigido uma montagem teórica formidável — nada menos do que Heráclito, Hegel, Freud e outros foram convocados por André Breton — só tal fato mostra que a realização do surrealismo exige pelo contrário uma larga ordenação do espírito. Parece-me fora de dúvida que a receita, depois de conhecida, deslanchou o processo. Existem estados de espírito surrealistas, isto é, acima de uma realidade prevista, esperada e classificada. Mas uma nova realidade, imprevista, inesperada e não classificada, continua a se inserir na realidade. 0 estado surrealista opera combinações mágicas por via de elementos opostos e dissonantes, o que dá a sensação de inédito, mas se aprofundarmos o exame encontraremos ligações com a ordem clássica. Chirico , por exemplo, é um primitivo da modernidade: diante de um manequim, de uma torre ou de uma areada numa rua melancólica, tenho a mesma sensação de estável do que diante de um Giotto.

Parece-me pueril afirmar que o surrealismo está liquidado. Ele suscitou uma nova atmosfera poética e apontou a possibilidade de novas combinações intelectuais fascinantes. E o estado surrealista continua a existir.

Ismael Nery não deve ser incluído entre os pintores surrealistas, se bem que algumas de suas telas e muitos de seus desenhos se enquadrem no ambiente próprio do surrealismo. Ismael era um partidário da absorção das correntes de idéias que vão surgindo no transcurso dos tempos; não se poderia mostrar indiferente a uma teoria que vinha ampliar a zona do conhecimento, produzindo ressonâncias particulares no plano da arte. Não era um surrealista ortodoxo, mas tirou partido da doutrina. 0 surrealismo foi a reta de chegada do processo intentado ao realismo, processo este que sofreu muitas metamorfoses, gerando grupos e escolas que só na aparência se opunham.

0 encontro de Ismael Nery com a arte de Marco Chagall resulta de uma afinidade de espíritos, fenômeno frequante na história da arte. De resto, as idéias andam sempre no ar, e muitos podem captá-las ao mesmo tempo. Ismael admirava no russo a independência do seu lirismo, o vôo largo, a liberdade na disciplina — pois de fato Chagall não se

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afastava de uma base plástica.Ao contrário de tantos outros pintores que ocultam

subrepticiamente suas influências— esforço vão, de resto, porque eles Dulam aos olhos do conhecedor — Ismael proclamou sua afinidade com o Tomem de Witebsk. Entre outros trabalhos dessa fase que começa em 1927, existe uma aquarela magnífica em que se vê Ismael sobrevoando a baía de Guanabara de mãos dadas com uma mulher, e no alto a legenda reveladora: "Como o meu amigo Chagall". Um desenho de 1928 mostra um homem numa panela inclinando-se ao ouvido de uma mulher com a seguinte inscrição em baixo: "Chagall conta a sua mulher a história de Ismael Nery".

Lembro-me bem, pois ele me repetiu várias vezes, da narrativa do seu primeiro encontro com Chagall, e a transcrevo aqui porque dá uma idéia de atmosfera do grande pintor russo. Foi em Paris, no ano de 1927. Ismael levava um bilhete de apresentação para Chagall, que morava então em Neuilly. Mas, distraído e aéreo,esquecera o cartão em casa, perdendo-se num entrincado de ruelas, até que avistou uma vila de construção moderna: de repente deu com uns quadros num jardim. "Não há dúvida, é a casa de Chagall". Era mesmo. Entrou, desculpando-se de ter esquecido a apresentação, mas falou de maneira tão efusiva que o pintor russo logo o abraçava como a um velho amigo, fazendo-o sentar-se em todas as cadeiras. Fez questão de lhe mostrar todos os trabalhos que tinha em casa, apresentou-lhe logo a mulher e a filha. A hora tantas Ismael sacou do bolso um poema escrito em francês por um jovem poeta brasileiro, em homenagem ao pintor russo. Chagall não o leu logo; passou-o a sua mulher, pedindo-lhe que lesse em voz alta, o que foi feito. Conversaram muito durante várias horas tendo Ismael repetido a visita algumas vezes, voltando de Paris mais entusiasmado com Chagall do que antes.

Entre 1927 e 1929 ele iria produzir o que eu chamo uma "chagalleana", isto é, uma série de desenhos, guaches e aquarelas em que o lirismo brasileiro e o russo se encontram, fazendo lembrar na ordem plástica o que as "Bachianas" de Villa Lobos manifestavam na ordem musical: um contraponto em que se alternam motivos e temas de países diferentes, fundidos na constelação superior do céu da arte, acima das fronteiras de nacionalidade, provando a unidade espiritual do gênero humano através da variedade, dos detalhes e da fisionomia própria de cada povo e de cada artista.

Na época discutia-se muito o problema de uma construção plástica baseada em dados especificamente brasileiros. Isto era uma fase do processo de deseuropeização, a que se refere Mário de Andrade numa carta de 1925 a Manuel Bandeira, há dias publicada. Mas Ismael achava que a atitude dos nossos artistas deveria ser diversa por exemplo da dos mexicanos. Lá o elemento autóctone achava-se entrosado na sociedade, ao passo que aqui nós vamos ao cinema para ver índios. Quanto ao negro,

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dizia que não dava bem em pintura; além disto a sensibilidade negra só pode ser exprimida autenticamente por eles próprios. A pintura "brasileira" estava se inclinando para o anedótico e a superficialidade, sendo nosso país uma vasta soma de misturas de tendências, achava Ismael que nos deveríamos contruir no plano da universidade, duvidando de uma arte saída de uma vontade deliberada de "fazer brasileiro". E costumava dizer: "Se sou brasileiro, minha arte refletirá necessariamente a psiquê brasileira; não adianta programa ". Daí examinando nossa vida, nossos costumes, nosso temperamento e nossas possibilidades históricas, Ismael partiu para a pesquisa de um tipo humano de caráter universal, transpondo essas preocupações nos seus quadros e desenhos.

Foi talvez isto o que mais impressionou Mário de Andrade ao escrever um artigo publicado no "Diário Nacional" de São Paulo de 10 de abril em 1928. Era a primeira confirmação pública do valor e da importância de Ismael Nery, pelo que julgo oportuno extrair deste artigo, praticamente inédito,alguns conceitos significativos que ilustram sua posição de precursor na história das artes plásticas do Brasil. Escreve, entre outras coisas, o autor de "0 Baile das Quatro Artes": "Ismael Nery é pesquisador da mais nobre seita. Vive quase numa obsessão mística, preocupado com uns tantos problemas plásticos, principalmente a composição com figuras e a realização dum tipo ideal humano. Seguindo as obras dele na casa de Murilo Mendes que é quem as guarda no Rio, a gente tem a impressão de que os problemas se enunciam nuns quadros e são desenvolvidos noutros para terminar noutros. Vem disso uma força de personalidade e uma sensação de seriedade quase trágicas, que só mesmo Ismael Nery tem entre os pintores de cá. A procura dum tipo plástico ideal representativo do ser humano o irmana com certos pesquisadores europeus imensamente comoventes, sobretudo com Modiagliani e Eugen Zak."

é assim com as figuras todas arrinconadas num tipo único que jamais satisfaz este artista duma seriedade absoluta. Ismael Nery as coloca em todas as composições possíveis, buscando um equilíbrio e uma harmonia exclusivamente plásticos. Até suas aquarelas virtuosísticas são trágicas porque essa volubilidade só embroma os levianos. Ela na verdade conta de que maneira absorvente e elevada Ismael Nery pesquisa, assimilando todos os outros para ser mesmo ele só e, o que é melhor, para ser quanto mais alto possa ser. E a contrapartida da rapidez com que pinta, no fundo ainda explica o indivíduo que pintando se limita a copiar uma criação já toda feita no espírito, toda completada no pensamento e que se fica por acabar na realização é porque não satisfez e não interessa

mais ao artista".A meu ver o artigo de Mário, que mereceria ser reeditado

na íntegra, atesta uma feliz compreensão do método de trabalho de Ismael Nery, e das linhas gerais de sua arte. Ele soube compreender que a

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virtuosidade de Ismael era o signo de uma exigência muito alta, a de um espírito preocupado.com os mais variados problemas, "de uma seriedade absoluta". Além disto,Ismael Nery sabia que ia morrer cedo; o apressado de certas obras suas reflete essa trágica certeza. 0 mesmo fenômeno verificou-se, por exemplo, com Mozart — o que se depreende de um documento famoso, uma carta escrita a seu pai.

Os trabalhos de 1928, o ano em que foi publicado o artigo de Mário de Andrade, marcam um ponto importante na carreira de Ismael Nery. Indicam que apesar de todas as solicitações do surrealismo no sentido de se articular completamente o processo fundamental da pintura, Ismael Nery soube fazer uma síntese magnífica da modernidade com a ordem clássica, revelando um perene cuidado na composição e na sobriedade das tintas,procurando, às vezes, soluções de arquitetura ou de escultura; outras vezes, soluções mais violentas, arbitrárias, em que a imaginação excitada volta as costas a certos princípios construtivos elementares, mas sempre num espírito de lúcida pesquisa.

Com o recuo do tempo poderemos observar que a assimilação inteligente do método de Chagall (que de resto encontra referências em antiga tradição, por exemplo a dos primitivos toscanos) prestava-se singularmentè a exprimir a esplêndida desordem brasileira através da sensibilidade de um artista que, embora plantado num sólido realismo filosófico, costumava "andar na lua". Esses membros deslocados do corpo não foram no fim das contas inventados por Chagall: quantas antigas imagens populares ou pinturas se podem ver, de santos com os membros separados da cabeça! Os dois pintores — Chagall e Ismael— apesar das afinidades que os unem, guardam entretanto suas fisionomias próprias. De resto, é só uma pequena parte da obra de Ismael que oferece relação com a do russo. Ambos sentem necessidade de voar, de estabelecer um sistema particular de gravitação opondo a ordem estética, e mais ainda, a ordem da afetividade à ordem física, em explosões de lirismo que os libertem e libertem a outrem, das imposições de uma natureza catalogada e rotineira. Tais mutações encontram precedentes até mesmo no plano religioso, segundo a própria Bíblia o indica; pois assim termina o Livro da Sabedoria:(cap. XIX, 18-19).

"...Os elementos trocavam suas propriedades,Como no psaltério os sons mudam de ritmo,Embora conservando o mesmo tom.É o que se pode ver claramente Pelos fatos que se passaram.Os animais terrestres tornavam-se aquáticos,Os que nadam passavam para a terra..."

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LETRAS E ARTES, domingo, 3 out. 1948 ,página 5.

RECORDAÇAO DE ISMAEL NERY

XIV

A coleção de desenhos de Ismael Nery abrange numa vasta síntese aspectos múltiplos da vida humana,sendo também notável pela variedade de faturas. A partir de 1930 — aproximando-se a crise que o levaria à morte — observava-se uma gravidade maior dos temas ao mesmotempo que um alargamento da ciência técnica, impressionante pela segurança.

Internado em 1931 no Sanatório de Correias, com uma funda lesão nos pulmões, Ismael assim mesmo trabalha, desenha e,nas suas raras descidas ao Rio , pinta alguns quadros.

Em 1929 publicava Manuel Bandeira , na revista "Para Todos" do Rio, um artigo sobre a sua pintura.Depois de Mário Andrade, era mais uma grande voz do Brasil que se pronunciava ante a indiferenças dos cegos. Entre outras coisas escrevia Bandeira: " Quem ouve Ismael Nery discorrer esteticamente de um assunto a pintar fica estarrecido diante da multiplicidade de elementos que ele parece exigir para efeito de uma realização plástica. Tem-se a impressão que está em vista não um quadro, mas a solução de um sistema de equações a mil incógnitas. (De resto ele próprio nega a pé firme a qualidade de pintor).

Entretanto quando pega dos pincéis todo aquele tumulto . mental se organiza em linhas, planos e volumes de uma concisão admirável. Todos os elementos intelectuais da sua arte são rapidamente

reabsorvidos para só aparecer — em finas sínteses plásticas — o sentimento agudo do tema tratado. 0 que fica de tudo isso são imagens vividas em si e com as qualidades mais fascinantes da vida: força, espontaneidade ,graça, sexualidade."

Mas não parou aí o interesse do poeta.Em artigo para o "Diário Nacional", de São Paulo , de

agosto de 1930, " 0 Mito Picasso",referia-se em mais de uma passagem ao meu grande amigo ,nos seguintes termos: '.'.Tomemos um dos nossos valores novos, Ismael Nery. Acho-o um pintor delicioso, ágil de técnica ,cheio de graça , de invenção , de poesia. Então não compreendo o pouco caso de certos entendidos. Estrangeiro pode-se dizer que não liga ao indígena. Por muito favor reconhecem a verdade do Cícero Dias.fí isso: o estrangeiro tem a idéia fixa

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da indiferença. Mas o que me dana é que na Europa ele tem senso da nuances e aqui o perde, de todo, e quando a coisa não cheira a preto, a baiana da Praça Onze pelo menos, não tem importância, é imitação da Europa..." E, mais adiante: "Aceitei com docilidade todas as sutilezas dos entusiastas de Picasso. Mas quando sobreveio a fase ingrista de Picasso fiquei perplexo. Não é que não gostasse, ao contrário. Achei maravilha. 0 que não compreendi é que se desse a ela o valor de uma invenção. Se não se tratasse de Picasso, se fosse Ismael Nery que aparecesse com aqueles desenhos, não se falaria em gênio: falar-se-ia em talento, em facilidade, em Pastiche".

Manuel Bandeira havia tocado com finura — e coragem — em certos pontos muito sensíveis, e noutros cuja atualidade permanece. De fato, só era então considerado artista brasileiro o que tratava decorativamente temas locais. Além disso, havia pintores que se inspiravam os europeus, mas que se tornavam muito amargos a respeito do capítulo influências.

Ismael Nery, entretanto, quis fazer uma espécie de Suma das tendências da pintura moderna. Não assumiu inicialmente nenhum "part-pris", procurando inspiração onde bem lhe convinha. Flaubert declarou: "Madame Bovary, c'est moi". Assim também posso afirmar que a série de desenhos e quadros de Ismael compõe um seu imenso auto-retrato. Há partes desse retrato perfeitamente visíveis, há outras que escapavam aos olhos do observador mais atento, e mesmo algumas que se tornaram cifradas até aos seus amigos mais íntimos. Sem dúvida ele atingiu desde cedo a abstração — e não emprego aqui o termo no sentido da pintura, isto é, do não- figurativo mas no sentido filosófico. Quero dizer que Ismael dissociava determinados elementos das representações frisando valor próprio, deixando outros de lado. De resto este método tornou-se uma constante entre os grandes artistas da nossa época. 0 processo de abstração elimina detalhes, na procura de uma síntese gráfica ou plástica, ao mesmo tempo que se estabelece um alargamento do assunto; isto , na verdade constituiu uma vitória sobre o espírito renascentista e o romântico, que se haviam fixado em temas convencionais e previstos.

De fato muitos dos desenhos e quadros de Ismael Nery não poderão ser devidamente compreendidos se não se levar em conta o fator abstração do tempo e do espaço. Não se trata de tentar realizar em pintura postulados filosóficos mas sim de olhar com os olhos de filósofo e de pintor as coisas da pintura, na medida em que esta é uma "coisa mental".

Tal desenho, por exemplo, que representa uma mulher com um velho ao colo — um velho calvo e barbado — só poderá ser entendido ao nos lembrarmos que o autor pratica a abstração do tempo: quando vê a mãe com o filho ao colo, já o vê crescendo e se desenvolvendo até a etapa final de sua vida. Dois amantes que se beijam são duas caveiras que se beijam: vistos com abstração do tempo, de fato o são. E também com abstração do espaço, pois os amantes querem sempre eliminá-lo: a distância dos físicos não é suportada pelo par sexual.

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Abstraindo o tempo e o espaço chegou o artista à concepção do tipo humano representativo, que impressionou Mário de Andrade. Examinando a coleção de desenhos observa-se que a procura do essencial presidiu sempre a pesquisa de Ismael Nery; a diversidade de faturas empregadas não destrói essa unidade, antes a confirma.

Entre 1924 e 1932 Ismael Nery foi uma figura dominante no meio moderno de artes plásticas da nossa capital. Citaremos ainda Guignard, que chegou da Europa em 1929, e, — fenômeno curioso — em contato com Ismael, aprendeu muitas coisas da pintura moderna, e se influenciou dele; Cícero Dias; e Di Cavalcanti, que de resto vivia mais em São Paulo do que no Rio. Portinari, nosso grande pintor, ainda não havia se manifestado em sua força naquela época.

A luta pela pintura foi aqui travada sem grande espalhafato, com muito trabalho e muita lucidez. Não havia grupos organizados, nem jornais e revistas à disposição, nem esnobes protetores; quase não havia dinheiro para compra do material indispensável! Fui testemunha pessoal do heroísmo silencioso de quatro ou cinco artistas de primeira categoria que mantiveram bem alta a chama, e cuja tradição não deverá ser perdida entre os jovens estudantes de belas artes que iniciam agora a sua carreira num ambiente, apesar de tudo, já mais favorável. Entre esses artistas avulta o nome desse moço filósofo, poeta, pintor e arquiteto, que, a braços com as maiores dificuldades, gravemente minado na sua saúde, ergue uma obra de ardentes e contínuas pesquisas, fonte perene de estudos e sugestões para muitos.

A passagem de Ismael Nery pela órbita de Picasso não foi tão marcada como pela de Chagall, mas aqui e ali notam-se vestígios da mesma. De resto, não poderia deixar de ser assim, Picasso é o divisor das águas da pintura moderna. Quem poderá se subtrair a sua influência? Os que o atacam, embora o imitem, dão ainda testemunho da sua grandeza. É possível que Bonnard ou mesmo Braque se conservem mais a rigor dentro da área da pintura propriamente dita; Picasso seria antes um inventor, fazendo com o pincel incursões extra-plásticas. Mas o fato é que ele é um gerador de artistas, mais poderoso que os outros.

0 problema para os pintores mais jovens não é evidentemente ultrapassar Picasso (quando poucos na verdade poderiam atingi-lo) mas sim recolher sua lição e tomar um caminho diverso. Foi o que fez Ismael Nery. Conforme acentuou Mário de Andrade, ele assimila todos os outros para ser mesmo ele só e — o que é melhor — para ser quanto mais possa ser. De resto, quem recebeu maior número de influências do que o próprio Picasso? As influências são úteis e necessárias aos espíritos fortes, que sabem transformar os moldes recebidos e criar generosamente novos tipos de expressão. Assim aconteceu com Ismael Nery, artista insaciável, preocupado

com as representações multiformes da vida que exigem técnicas sempre aperfeiçoadas.0 estilo de Ismael é um estilo de grande nobreza, cuja segurança repousa

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sobre uma base de conhecimento muito variado e sobre combinações de linhas, :ores e volumes que se renovam sem cessar. Existe na verdade um estilo Ismael Nery, o de um criador de faturas que lhe são próprias, e de temas Drientados para o universal; porque ,mesmo quando se inserem no anedótico ouio particular,fazem parte de uma unidade que se manifesta em toda obra, jnidade de um espírito para o qual a humanidade não tem sido outra coisa senão um homem submetido nos reflexos do ambiente,dentro do tempo. Ismael :irou grande partido ou desenvolveu novos elementos de relação e assimilação, Dor exemplo o corte anatômico das figuras,que se apresentam não só como jados plásticos,mas também como dados psicológicos. Sobretudo nos quadros 3 desenhos dos últimos anos,atingiu uma extraordinária capacidade de síntese jo mesmo tempo que o dom visionário, se alargando conferia às obras arincipais uma força superlativa. Aí então Ismael quebrou o molde que sua §poca lhe ofereceu, movendo-se na plena liberdade da criação. Desenhos autobiográficos,fusão de tendências, revisão de temas universais,nascimento , norte, poesia da geração, sucessão dos tempos, perspectiva de um juízo final, a criatura confrontando-se com o criador, a permanência do primeiro par — ora útidamente Adão e Eva, ora um par moderno — ,grupos e conflitos humanos Jiante do Cristo crucificado,antecipação do conhecimento da morte, lespojamento dos véus da ciência para elucidação da Grande Verdade, a contínua ciência do homem a ouvir falar da antiga Serpentè, usurpando o Lugar de Deus, a atração e repulsão dos seres, o homem libertando-se do :empo e do espaço para atingir a sua essência íntima,seu desespero diante jos limites que lhe são impostos, a consciência do valor espiritual de aersonalidade diante Leviatan,o princípio e o fim tocando-se — tudo isto é exprimido em símbolos gráficos de impressionante agudeza e gravidade. Produz [smael uma orquestração de temas que em verdade já se enunciavam nos anos anteriores,mas que agora explodem em ritmos inesperados , conduzindo a jm aceleramento do processo intelectual essencialista, pelo qual o artista se mantém como centro de convergência de todos os fatos.Esta coleção de jesenhos é o testemunho, embora resumido, de uma vasta organização filosófica ^ue se exprime graficamente. E um dos grandes patrimônios culturais do Brasil; sspero que seja zelado com carinho pelos meus sucessores.

Ismael Nery viveu num momento de eclosão de experiências alásticas de toda a espécie. Estamos ainda muito próximo dessa época para a jodermos julgar com imparcialidade e segurança. Fomos envolvidos nessa grande aventura que tanta paixão suscitou. 0 século XX teve a sua batalha de Hernani Ja pintura , e muito mais desenvolvida e complexa que a outra. Alguns dos ídolos da primeira hora estão ainda de pé, outros foram relegados ao esquecimento. Ismael não foi conhecido como merecia. Mas estou certo de que o terrpo :rabalhará a seu favor, e o conhecimento amplo de sua obra-fragmentos de jm enorme plano, troncos partidos, cabeças decepadas,visões de um universo :ujos ritmos dia a dia se aceleram — virá trazer a muitos surpresa e

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deslumbramento .Foi logo na época de sua morte que o processo de sucessivas

sxperiências artísticas atingiu o clímax ;ele mesmo constatava os novos rumos da pintura que iria entrar num período de reconstrução e volta ao fundamento plástico. Meses antes de morrer pedia-me com insistência que destruísse seus quadros e desenhos. Não tive coragem de fazê-lo.

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RECORDAÇAO DE ISMAEL NERY

XV

Ismael Nery mostrou aos que o cercavam e a todos que tomaram conhecimento de sua vida e de seu exemplo, a verdadeira face do misticismo, isto é, da mais alta operação do espírito. Sabendo que a figura deste mundo passa breve, o místico usa as coisas como se não as possuísse. Considerava-se um simples depositário dos bens que recebeu até mesmo'de suas faculdades, até mesmo de sua própriaalma, de fato pertencentes ao doador, que é Deus. Põe-se ao serviço do próximo no qual vê refletida a imagem divina: pois se não ama ao próximo a quem vê, como poderá amar a Deus a quem não vê?

Ismael anulou no seu espírito a separação entre misticismo e não-misticismo, sabendo que todas as coisas têm uma relação mística.Ao contrário do que pensa e manifesta freqüentemente a maioria dos intelectuais, o místico é,por excelência,o homem forte. Ele não apoia sua força no exterior ou no poder material, mas sim no interior em que Deus habita. Todos os homens possuem em grau maior ou menor esta força, dada por Deus gratuitamente. £ preciso entretanto desenvolvê-la sem cessar (Ismael revelou-me que todas as noites, ao fazer o exame do seu dia, se não verificasse um progresso espiritual em relação ao dia anterior, não conseguia dormir). Infelizmente a concepção dafigura do místico é quase sempre deformada: julgam da sua eficiência em função da sua capacidade de produzir êxtases, milagres, visões, etc.

0 místico, segundo a concepção moderna — leia-se, entre outros, Bergson — é o verdadeiro realista. Não se engana diante da estrutura de aparente grandeza do mundo, vencendo as ilusões criadas pelas perspectivas do tempo e do espaço.

Não há mais desertos; e pouco se observa que este fato vem aumentar as probabilidades de uma melhor compreensão do espírito místico, e até mesmo do seu desenvolvimento. Atribuiam-se outrora muitos fenômenos místicos ao ambiente favorável criado pelo retiro, à sombra e à solidão: não nego a importância destes fatores. Mas como não há mais desertos, os místicos modernos deverão trabalhar em ambientes povoados, e muitas vezes ruidosos.

Todos poderão melhor ver que o místico é homem de ação; por isto falei em trabalhar. Em artigo posterior mencionarei outros trabalhos de Ismael Nery, místico moderno da grande cidade, que soube captar as ocultas disposições místicas de muitos."Por que não acreditar em Deus, quando acreditais até nos regimes políticos ?"

LETRAS E ARTES, domingo, 10 out. 1948, página 5.

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Ismael conhecia muito bem a extensão da influência da sociedade sobre o homem: não fosse ele um profundo explorador do dogma da comunhão dos santos, pelo qual nos sentimos solidários não só pela graça como pelo pecado - mas achava que o homem devia desenvolver por si mesmo suas faculdades, ao invés de esperar a solução das doutrinas ou dos regimes políticos. Nisto residia uma de suas principais diferenças dos comunistas e socialistas. 0 docente Ismael Nery não se resignou a ser discente de um partido político. Não esperou que pensassem por ele. Não pendurou sua esperança na sociedade como num cabide.

Procurava corrigir o que via errado e defeituoso em torno de si. Através dele comecei a perceber o sentido ortopédico da caridade: retificar o desequilíbrio proveniente do pecado original.

"Os sentidos dos homens se aperfeiçoaram e eles viram e ouviram e sentiram o que nunca tinham visto,ouvido e sentido". Comecei a compreender as diferenças que separam a concepção cristã do mundo da concepção racionalista. Comecei a compreender porque Santo Tomás escreveu que um só ato de amor vale mais do que toda a criação física. De fato o homem cristão move-se ao mesmo tempo no mundo do infinitamente pequeno e no mundo do infinitamente grande. Comecei a compreender porque os lírios do campo são mais bem vestidos do que Salomão em toda a sua glória e porque o Cristo recomendou que não se apagasse violentamente a chama da vela.Ismael mostrava as ligações do mundo natural com o sobrenatural, e, seguindo a técnica do seu Mestre, apoiava em exemplos físicos muitas de suas demonstrações de ordem transcendente.

Achava que o homem era o seu próprio grande campo de cultura. Daí o seu interesse pelo par humano que se reflete em seus quadros e desenhos: a natureza ambiente era apenas um cenário para a história deste par.

Segundo ele,a verdade religiosa poderia e deveria ser provada por todos os modos,tanto diretos como indiretos. Entrando nos argumentos do adversário, mostrava-se pagão ou agnóstico antes de cristão, acompanhando o processo de pensamento do outro até concluir pela verdade do Cristianismo. Muitas vezes desdobrava seu sistema apologético sem pronunciar as palavras Deus ou religião. Chegava mesmo a respeitar as susceptibilidades filológicas do adversário: não empregava a palavra céu, mas bem-aventurança; não aludia ao pecado, mas à violação da ordem. Afirmava que a marcha da humanidade, mesmo em seus movimentos errados, indica que o ímpeto para Deus é próprio do homem e que este, distorcendo o problema, cai no desespero e na falta de justificação da vida — o que conduz ao niilismo. Dizia também muitas vezes que o homem atualmente põe sua grande esperança na ciência, mas que só poderá empregar a ciência com segurança quando souber destruir e construir ao mesmo tempo. A cada ação corresponde, não só uma reação, como uma abstração.

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Foi pena Ismael não ter podido tomar conhecimento da revista dos Padres Carmelitas de Paris, que se propuseram uma grande tarefa: reunir, como ele sonhava, sábios, médicos, biologistas e psicólogos para examinarem em conjunto e imparcialmente as vidas dos grandes místicos do ponto de vista da observação da base física das mesmas.

As conclusões são publicadas numa revista que continua a surgir na capital francesa. A idéia é inútil mesmo porque em geral se tende a isolar a vida dos místicos de suas bases não naturais, fazendo deles uma espécie de autômatos que produzem êxtases e visões. Digo isto porque muitas pessoas, diante de certos quadros ou desenhos de Ismael, se perguntarão se seu autor foi de fato um místico. Ora, não sabemos que a antiga concepção do homem como monobloco foi abalada em suas raízes. 0 homem é um ser de espantosas contradições, que por muito tempo desconheceu a riqueza de possibilidades e tendências que carrega consigo. Hoje percebemos a fecundidade do insconsciente e registramos a íntima ligação entre os impulsos eróticos e os impulsos da morte. A carga de terror e afetividade que possuímos desde o princípio do mundo produz novas transformações e correções que se refletem no plano da arte, elucidando muitas das atitudes espirituais dos místicos. 0 homem ajudado nisto pela técnica científica, consegue uma espécie de visão superlativa dos fatos, acelerando o processo do conhecimentos até chegar a uma conclusão que talvez não esteja muito remota: pois as explosões agora observadas no mundo físico possuem sua correspondência lógica no mundo mental.

Conta a tradição franciscana que um dia os habitantes de Assis, de Betona e da região circunvizinha viram que a igreja de Santa Maria dos Anjos e todo o convento e a selva, que havia então ao lado do convento,ardiam inteiramente; julgavam que se houvesse manifestado um grande incêndio. Entretanto, chegando ao convento, entraram e viram Santa Clara, São Francisco e outros frades arrebatados na contemplação divina; pelo que compreenderam ter sido aquilo fogo divino e não material, mandado aparecer miraculosamente por Deus para significar o fogo em que ardiam aquelas almas santas. 0 símbolo é elucidativo e, se mostra a elevação a que chegaram aqueles místicos, também mostra a capacidade receptiva dos italianos de então, a serviço sem dúvida de uma força psíquica muito adiantada. Quem poderia avaliar, numa operação espiritual como a que citei, além das faculdades visionárias, a contribuição dos sentidos intensivamente cultivados bem como as reservas eróticas acumuladas pela vida em castidade?

Não há dúvida que as vidas dos místicos precedem a moderna revolução da sensibilidade; são portadoras de uma enorme audácia, suficiente para explicar a timidez e os recuos de certos biógrafos que as edulcoram, produzindo quase sempre uma versão "ad usum Delphini".

Foi-me dado realizar uma experiência notável: assistir de

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perto à vida de um místico moderno, circulando nas ruas, nos cafés, nos teatros, nas repartições, procurando extrair de tudo o interesse pela verdade religiosa, técnico em adaptação de teorias atuais aos postulados católicos, lutando com um temperamento de fogo, renunciando ao sucesso e às conquistas temporais, fazendo um apostolado inteligente no meio de escritores, poetas e artistas. Este homem que pintou muitos nus queixava-se da falta de parceiros que quisessem voar em sua companhia.

Muitas vezes o vimos pegando fogo ao falar do Cristo e da absorção de todas as almas diletas n'Ele. Muitas vezes o vimos transfigurado, o olhar animado de imprevisto brilho, descrevendo a vida do mundo desde o princípio do tempo, o desenrolar das sucessivas operações necessárias para produzir a mulher que lhe era destinada. "Desde Adão que as gerações se sucedem para te trazerem a mim".

Muitas vezes o vimos afirmar que as altas potências da alma não estão sujeitas à carne nem ao sangue; desligadas do tempo e do espaço e de qualquer idéia de prazer procuram a essência de Deus: a aproximação do centro divino pressupõe a acumulação do tempo e do espaço. Criticava a excessiva humanidade dos seus amigos que não queriam voar com ele. Penetrava o segredo das consciências e terminava o que a pessoa começava a dizer, interpretando também tanto o silêncio como as palavras.

POEMA DE ISMAEL NERY

A UMA MULHER

(1933)

Acabaram-se os tempos Morreram as árvores e os homens,Destruiram-se as casas,Submergiram-se as montanhas.Depois o mar desapareceu.0 mundo transformou-se numa enorme planície Onde só existe areia e uma tristeza infinita.Olhando a cólera de um Deus ofendido Um anjo sobrevoa os destroços da terra.E encontrou nossos dois corpos fortemente enlaçados;Que a raiva do Senhor não quis destruir Para eterna lembrança do maior amor Eu quisera ser o ar que te envolve.(Este poema foi escrito em francês. Traduziu-o M. M.)

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RECORDAÇAO DE ISMAEL NERY

XVI

TESTAMENTO ESPIRITUAL DE ISMAEL NERY ( NOVEMBRO DE 1933 )

" Esperei até hoje que vós lhe descobrisseis. Quis dar-vos o prazer de vos sentir crescer. A minha excessiva proximidade impediu , porém, que me olhásseis como realmente sou. Contar-vos-ei agora a minha história e descreverei o meu físico,para que disto tireis o proveito necessário e justifiqueis a minha e a vossa existência.

Pertenço a esta espécie de homens que não constróem nem destróem, mas que explicam toda a construção e toda a destruição. Eu sou um predestinado, como foram também meus predecessores e como serão meus sucessores. Através dos séculos deveremos desenvolver o germe que no princípio da vida recebemos. Nós somos os grandes sacrificados que sofrem por todo o erro e atraso dos homens. Somos os homens que amam e consolam; não somos amados nem consolados ... Se não fossemos portadores do germe de que vos falei,há muito que a nossa raça teria acabado violentamente.

Quando tudo tiver atingido o seu fim, aí começará nossa visível utilidade. 0 homem agora distribui suas esperanças na arte e na ciência. Chegará um tempo em que a arte e a ciência não bastarão mais para suprir a ânsia crescente de compreensão que a humanidade tem. Toda a arte resume-se em suprir as necessidades científicas, toda a ciência resume-se num estudo de equilíbrio da vida e numa tentativa formidável de conhecimento da matéria da vida. Ah! Se nós nos pudéssemos conhecer, ou se , pelo menos pudéssemos chegar a conhecer um outro homem !... A solidão do homem é o que mais me apavora na vida .Os homens se olham como desconhecidos com as mesmas roupas.Vi vemos desconfiados — tudo fazemos para garantir o que possuímos, com medo dos ladrões de toda a espécie que vemos em todos os homens.

Inventamos o direito e a polícia ; pomos em nossas casas grades de ferro e portas de bronze. 0 homem se esquece de que o que possui moralmente não é acessível aos ladrões — mas aumenta o seu desassossego com as suas posses físicas, esquecendo a ciência por ele já conquistada. Para que guardais uma mulher que não é vossa? Para que vos

LETRAS E ARTES, domingo, 5 dez. 1948, página 5.

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vos bateis por uma idéia que não sentis? Para que duas casas com um só corpo? Para que o sustento de uma vida sem consolo? Ah, a esperança! Que é a esperança? Tenhamos esperança— aumentemos a esperança — eu em Deus, e vós em mim e em meus sucessores. Um conselho vos dou, com a autoridade que me conferem as rugas da minha testa, o meu olhar febril e as minhas mãos mutiladas: não façais o que vos causa nojo, mesmo que tal nojo seja mínimo. Orientai vossa ciência para conseguirdes um aumento micrométrico das vossas sensibilidades. Já reparastes, meus irmãos, que vivemos num mundo em que existem soldados, juizes e prostitutas? Onde se encarcera um homem pelo depoimento das testemunhas, ou se enforca um outro por insultar um líder. Existem testemunhas? Existem líderes? Que é a vontade do povo? Que é o bem geral? Já fizestes, com a ciência que tendes, a psicologia de um chefe? Porque não acreditar em Deus, quando acreditais até nos regimes políticos?

A humanidade, como as plantas, precisa de estrume. Dos nossos corpos renasceram aqueles corpos gloriosos que encerraram as almas dos poetas, aqueles de que nós já trazemos o germe. Tudo foi feito no princípio— porém tudo só existirá realmente em tempos diversos. Os poetas serão os últimos homens a existir, porque neles é que se manifestará a vocação transcendente do homem.

Todo o homem recita um poema na véspera de sua morte — a humanidade recitará também o seu nas véspera da sua, pela boca de todos os homens que nesse tempo serão poetas - MIRABILI DOMINUS IN OPERA ENS."

Pretendo no próximo artigo, comentar esta página.

Em 1924 presenteara-me Ismael com um retrato seu a sanguínea, onde se lê a seguinte inscrição: "Há demônios com figura de santos". Durante muito tempo a dúvida me perturbava; estava eu diante de um demônio ou de um santo? ... Minha concepção de Ismael Nery sofria retoques cada mês. Seus atos e suas opiniões eram desconcertantes.Viver na intimidade de um homem que penetra o pensamento alheio e esquadrinha intenções ocultas do amigo é terrível. Ismael parecia-me, muitas vezes, de uma perversidade calculada, diante da qual a perversidade que até então conhecera tornava-se um jogo de criança.

Depois percebi que ele assim agia para estudar o homem, estudar-se a si próprio. Se os outros serviam-lhe muitas vezes de cobaia, é certo que a si mesmo também servia de cobaia ...

Entretanto, como possuia um extraordinário sentido do equilíbrio e da unidade, não deixava nenhum ato em suspenso, sem correspondência ou justificação no plano positivo. De resto, ele

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representava uma verdadeira multidão de homens, sabendo interpretar os papéis mais diversos e mesmo opostos. E muito significativo o fato de ele sempre me dizer que precisava urgentemente conhecer um santo. Creio que ele precisava medir-se com o santo; saber sua reação diante das forças trágicas como as que a vida lhe trazia a ele, Ismael; saber se a serenidade do santo não era intimamente alterada por certas leis de uma inteligência revolucionária e pesquisadora no mais alto grau; saber até que ponto funcionava o senso crítico do santo em relação a determinados valores que talvez não fossem eternos, mas que ele, Ismael , conhecia e avaliava como artista; estudar o abismo que separa o santo em seus contrastes e volições, o santo,campo de batalha entre a humanidade e a divindade,e o santo definitivamente vitorioso e instalado no altar.

Através de Ismael Nery, comecei a compreender a rude luta que é a vida cristã. Dentro daquele homem o santo e o demônio guerreavam-se com uma força épica. Mas a verdade é que o demônio aparecia muitas vezes dominar. A julgar pelos seus últimos tempos de vida, fez-se a paz no seu atribulado espírito. "Preciso muito voar", e "Preciso conhecer um santo", são frases que ouvi inúmeras vezes da boca de Ismael. E a abstração do tempo e do espaço é a prova de que ele chegou à elevação mística. Com outras palavras e com outros métodos, todos os místicos procuraram atingir a abstração do tempo e do espaço. 0 grande dominicano alemão Mestre Eckhart, num de seus mais famosos sermões, assim declara: "não há maior obstáculo para a alma, quando ela quer conhecer a Deus, do que o tempo e o espaço. 0 tempo e o espaço, com efeito, não passam de partes, enquanto Deus é a unidade. Para que a alma possa conhecer a Deus, é preciso que ela o conheça além do tempo e do espaço; porque Deus não é nem isto nem aquilo como estas coisas diversas. Deus é Unidade".

0 Cristo foi para Ismael o único modelo. Na verdade, ele não admirou homem algum, salvo alguns santos na medida em que mais se conformavam ao Cristo. Tinha uma admiração muito relativa mesmo pelos artistas de que mais gostava e com quem sentia maiores afinidades.

Sei que inúmeras vezes diante de opções a fazer, diante de duros problemas que se lhe apresentavam, pensava consigo mesmo: "Como agiria o Cristo em tais circunstâncias?"

Era um extraordinário comentador da pessoa e dos atos do Cristo, que sabia pôr em relevo, situando-o na atualidade, e não apenas no quadro histórico em que viveu. Extraía através da sobriedade dos evangelistas lições fortíssimas sobre a personalidade do Cristo, de maneira muito pessoal, persuasiva e atraente.

Fora do Cristo sua admiração ia para São Francisco de Assis; entrara ainda menino para a Ordem Terceira, ordem ilustre, de que fizeram parte muitos dos grandes artistas da humanidade, entre outros, Miguel Angelo,Cérvantes e Balzac. Não freqüentava as reuniões mas deu com

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sua vida um alto exemplo de pobreza voluntária. Quis ser enterrado como hábito de terceiro franciscano. Acostumara-se a se despojar de tudo. Não guardava em casa nem seus quadros nem seus desenhos.

Pude testemunhar que um arquiteto roubara projetos seus de casas modernas, eliminando o nome de Ismael e assinando o seu. Pois Ismael não se incomodou nem fez reclamação alguma. "Para que ter bens? dizia-me muitas vezes. Eles pertecem à Santíssima Trindade. 0 Pai só dá o máximo dos bens ao Filho e ao Espírito Santo". Deu tudo nos últimos tempos — até alimentos e remédios. "Morrerei de sede como o meu xará da Bíblia", escrevera ele em 1932, num verso profético. Morreu absolutamente limpo, pois há alguns dias não comia nem bebia. Escrevera, também de maneira profética, ainda em 1932: "Meu Deus, deixai-me com fome para que eu não venha a ficar depois esganado e morra de indigestão. Meu Deus, tirai-me cada vez mais a felicidade para que cada vez mais eu a deseje e não morra de tédio".

Provava dia a dia sua atitude de cristão militante. Alguns episódios ficaram célebres. Em 1929 realizava-se, na casa de conhecido poeta, uma reunião a que comparecia todo o mundo literário e artístico do Rio e de São Paulo. De repente surge uma discussão sobre assuntos religiosos, e um escritor surrealista francês, de passagem pelo Rio, tipo fisicamente forte, arrogante, insulta o Cristo.

Ismael aplica-lhe uma bofetada no rosto. Produz-se, uma enorme confusão, os dois contendores são apartados, e a reunião é dissolvida. Foi o apogeu do modernismo.

Nessa mesma época vieram telegramas de Moscou, dando notícias das procissões anti-religiosas na Capital russa: o Cristo de fraque e cartola e a Santíssima Virgem em vestido decotado, eram levados em andor pelas ruas, de baixo das vaias e apulpos da multidão dirigida. Ismael declarou que se fizessem algum dia isto aqui no Rio, ele sairia atirando pedras nos responsáveis. Ele se orgulhava em mostrar a sua fé e muitas vezes repetia, inscrevia em seus desenhos a frase de Leão XVIII: "Nós nos gloriamos em pertencer à família franciscana". Foi um grande soldado da milícia moderna do Cristo — a verdadeira milícia a que luta com as armas da pobreza, da renúncia, da filosofia, da poesia — e até da pintura.

Posto em pé, no dia da festa dos Tabernáculos, o Cristo clamava:"quem tiver sede venha a mim e beba". Seu discípulo Ismael Nery também clamou: "Vinde a mim todos, que a todos consolarei ensinando-lhes a razão da existência'!

Que audácia! Mas posso testemunhar que ele não clamou nem escreveu isto sem base. Pagou caro, pagou com a grande tribulação, este extraordinário poder de consolar e justificar existências. Pagou-o com fortes renúncias, pagou-o com sua carne, seu sangue, seu espírito. Chegou

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mesmo ao despojamento de nada mais pedir a Deus.Com efeito, entrando um dia numa Igreja, num dos momentos

mais difíceis da sua vida, olha o grupo da paixão e vê o Cristo descido da cruz. Maria Santíssima em lágrimas, São João e Maria Madalena completamente desarvorados; acha então que diante de um tal drama o seu diminuiu ou mesmo se anulou, não tendo ele o direito de pedir mais nada. Desapega-se a tal ponto das coisas que até mesmo já não considera mais seus os filhos tão amados: pertencem a sua mulher, conforme diz num pequeno poema.

Pede encarecidamente aos outros que o explorem, que o ajudem a aplicar as riquezas infinitas que traz consigo. Julga-se um criminoso por não poder convencer os homens a irem buscar na sua mina, a irem aprender com ele o todo em vez de aprenderem fragmentos com os demais, achando que a sua presença física os perturba ou excita demais seus defeitos.

Declara que todos deveriam aproveitar enquanto ele está vivo; pede que procurem perceber durante sua vida o que fatalmente começarão a perceber depois de sua morte. "Por que sabeis a cor dos meus olhos e vistes as cicatrizes do meu rosto, por que pronunciais o meu nome e vos sentais a minha mesa, a minha autoridade diminuiu?"Alude agora sempre à necessidade matemática da nossa justificação final num confronto entre todos os homens e a consciência divina, bem assim ao misterioso riso do Salvador na consumação dos tempos — o seu primeiro e último riso . . .

Poucos meses antes de morrer escrevia Ismael Nery sua última página, o que eu denomino seu testamento espiritual.

Transcrevo a seguir na íntegra este curto documento de rara gravidade, oferecendo-o à meditação de todos os que compreendem o drama da nossa época, em especial a todos os artistas e escritores.

P.S. — No artigo anterior, no XV, saiu por engano impresso no poema "A uma mulher" um verso a mais, o último, que faz parte de outro poema.

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RECORDAÇAO DE ISMAEL NERY

(XVII - CONCLUSÃO)

Há algumas semanas atrás dizia-me um dos homens mais inteligentes do Brasil atual, o meu querido amigo Mário Pedrosa:"Dotado de qualidades extraordinárias, fora do comum, Ismael nada nos pode deixar". Tendo ouvido isto, pus-me a duvidar se Pedrosa, que com ele conviveu intensamente durante um certo período de tempo, teria mesmo chegado a conhecer Ismael Nery. Talvez o que explique o seu comentário é que Pedrosa, apesar de tudo, se acha penetrado da concepção excessivamente moderna do ativismo. De fato Ismael não fez barulho, não tomou parte em comícios ou em agitadas reuniões políticas, não escreveu livros complicados, esteve sempre fora do cartaz. Eu mesmo às vezes medito sobre a grandeza de Ismael Nery e a precaridade dos traços que ele deixou neste mundo.Deixou quadros pintados com rapidez e sofreguidão, muitos inacabados; algumas centenas de desenhos que testemunham dons invulgares de grande artista solicitado por múltiplos aspectos da vida: quatro ou cinco textos capitais como os poemas em prosa "Os filhos de Deus", "0 Ente dos entes", "Poema post-essencialista" e mais alguns outros, além do "Testamento Espiritual" que divulguei no último artigo; e, mais talvez do que tudo isto, deixou uma tradição.

Por que tão pouca coisa, relativamente, me lembro a respeito dele? Onde estão os pensamentos imprevistos e profundos que ele nos comunicou, com os quais se poderiam encher tantos livros? Seus gestos e atitudes que marcavam uma sabedoria única, uma inteligência de envergadura universal que media o próprio mundo para julgá-lo e para julgar-se? Realiza-se com certeza o que ele próprio me disse uma vez:"Se minhas idéias têm valor, hão de se manifestar no transcurso dos tempos, não tendo a menor importância que a sejam sob o nome de João,Antônio ou Ismael". Na verdade, quantas vezes abro um livro e leio coisas profundas, doutrinas e idéias do passado e do presente, e marco ao lado:I.N. "Tudo está no ar e pertence a todos", dizia-nos ele muitas vezes.A humanidade atualmente chegou a um fortíssimo atrito de idéias — talvez seja este o seu aspecto mais grandioso. 0 que vibra numa parte repercute noutra. Apesar dos esforços dos políticos isolacionistas, o isolacionismo esta liquidado. Chega-se a consciência de que possuímos um patrimônio comum, "que não poderá ser dispersado sem grave prejuízo no final".

LETRAS E ARTES, domingo, 12 dez. 1948, página 7.

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Assim, nesse contínuo atrito de idéias, viveu Ismael Nery, inteligência de choque, sempre pronta para os mais elevados confrontos de doutrinas.

0 que escapou a Mário Pedrosa é que Ismael foi um filósofo, e um filósofo cristão. Ele não negava a existência nem mesmo a oportunidade de certos valores ativistas, mas sua visão mística considerava os fenômenos no seu plano eterno, libertados do tempo e do espaço. Dentro desse plano,os valores políticos e sociais se alteram, dando primazia aos princípios transcendentes, que regem a vocação do homem. Foi sem dúvida isto que ele quisdizer no seu testamento espiritual.

Estou certo de que Ismael renunciou muito, oferecendo seu sacrifício para a renovação espiritual do mundo. £, pois, no plano cristão que ele deve ser considerado.

Conhecendo o dogma da reversibilidade dos méritos, quis morrer para ajudar a expiar pelo mundo. Num mundo invadido pela propaganda, preferiu o anonimato; num mundo abarrotado de livros, sujeitou-se a passar por inculto, num mundo que adora o dólar, abraçou a pobreza. Tudo fez pelos amigos, para que conhecessem a Deus através do Cristo e dele próprio. ("Tenhamos esperança, aumentemos a esperança — eu em Deus e vós em mim e em meus sucessores".) Homem que não admitia restrições de espécie alguma restringiu-se em tudo; inclusive pelo jejum: durante um ano alimentou-se uma vez só por dia. Num mundo cujo mecanismo cria diariamente necessidades supérfluas, pregou e viveu o essencial. Ensinou-nos não só a extensão, profundidade e perenidade do catolicismo, mas até mesmo sua elegância.

Seu despojamento dos últimos tempos foi uma conseqüência e um remate lógico do despojamento (escondido a quase todos) dos anos anteriores. Sua aceitação da morte e serenidade diante dela, foi uma conclusão da sua doutrina da abstração do tempo e do espaço . Sua espera do Cristo no fim da sua vida foi o coroamento da sua espera do Cristo no princípio. "0 fim e o princípio são coisas que eu confundo". Como a vida para ele significava uma construção, o aprendizado da morte, a morte foi para ele uma nova concepção, a da Páscoa, início de uma nova vida, metamorfose e passagem.

A experiência da participação na doença e na morte de Ismael Nery foi para mim — e acredito que o tenha sido também para outros — um fato de vastas conseqüências, pois quebrou minha indecisão e pôs-me em face de altas e tremendas realidades. Quando vi, nos seus últimos dias, quase inerte aquele cérebro formidável em que batera o mundo, senti que a vida ia mudar, e que uma opção me seria agora em diante exigida. Dramáticos e terríveis acontecimentos precederam sua agonia e morte, não tendo ele sido poupado nem mesmo nos últimos dias, pois guardou até o extremo perfeita lucidez.

Tais acontecimentos pertencem a uma ordem íntima.

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Entretanto quero lembrar que em todos esses momentos ele se serviu dos fatos para mostrar a grandeza da religião, elevando-se através das contingências da própria moléstia, ao Princípio dos princípios, sem tempo nem espaço, soberano, inacessível e incompreensível. Ismael Nery ainda em vida entrava no absoluto. Na quinta-feira santa perguntou-me a que jantar eu preferia ter assistido. Não pude responder. "Certamente ao jantar em que houve a multiplicação dos pães e dos peixes", disse-me. Pediu-me também que lesse para ele o evangelho do dia. Era o evangelho abismal do Cristo servidor do homem, a cerimônia do lava-pés, em São João XIII, 1-15. Sentei-me a seu lado e comecei lentamente: "Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a hora de passar deste mundo ao Pai, tendo amado aos seus que estavam no mundo, amou-os até o fim..." e depois: "0 que eu faço tu não o entendes agora, mas depois a compreenderás". Quando acabei a leitura, disser-me: "Leia o evangelho de São João logo depois que eu morrer, e ficará convencido da divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo". Mandou em seguida vir o seu hábito de terceiro franciscano e fê-lo experimentar em mim, dizendo-me: "Tudo indica que você deve ser um homem religioso".

Declarou que teria uma grande alegria em morrer na sexta-feira santa. 0 médico assistente afirmava que dificilmente ele poderia passar daquela noite. No sabado de aleluia Ismael disse-me que não merecera morrer na sexta-feira santa, mas que sem dúvida morreria na primeira sexta-feira da Páscoa. Depois de mandar chamar os amigos mais chegados, de dar a todos conselhos e recomendações, de reconciliar parentes brigados há muitos anos, de nos falar da necessidade urgente de um encontro pessoal com o Cristo,morreu com toda serenidade, às 8:40 horas da manhã do dia 6 de abril de 1934, primeira sexta-feira da Páscoa. Estendido na cama, a cabeça emergindo do hábito de franciscano, era um gótico prodigioso. Telefonei a dois ou três pintores, pedindo que fizessem um desenho de Ismael morto. Ninguém tinha coragem. Bateu-se mais tarde uma chapa, documento precioso do poeta, filósofo e pintor na sua urna fúnebre. Derrota humana de Ismael Nery, vitória de Jesus Cristo nele.

Comecei a perceber que coisas terríveis me esperavam.Isto me era claramente indicado pela minha tão próxima participação afetiva nos sofrimentos e na morte de Ismael Nery. Ninguém pode ser amigo íntimo de um homem de tal categoria, ninguém pode assistir ao que eu assisti, sem que o mundo assuma uma nova significação, sem que a vida se transforme. As esperadas coisas terríveis de fato me aconteceram, e sei que ainda não chegaram ao fim. Mas outras coisas que passei a perceber puseram-me em frente de um universo novo, de uma nova criação cujas riquezas eu mal suspeitava. "0 que eu faço, tu não o entendes agora, mas depois o compreenderás ...". Ismael Nery preparava-se desde muito o caminho. Estranhas atitudes suas de outras épocas desvendavam-me agora

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aos meus olhos. Destacada dos preconceitos do tempo e do espaço, sua figura espiritual surgia-me na sua completa nobreza, com a força da imortalidade. Eu tinha sido comparsa de um drama analógico e as analogias eram com o Cristo e o prolongamento da sua tradição, sua vivência na Igreja. Ismael Nery, em última análise,encarnara para nós o catolicismo com a sua massa de doutrina, com os seus riquíssimos contrastes: em vez de nos apontar o Cristo fora da Igreja no-lo mostrava dentro da Igreja, una, santa, católica e apostólica. Então comecei a compreender o fato imenso da Igreja, comecei a divisá-la fora da sua localização topográfica, comecei a ver que a Igreja não é a Cidade do Vaticano, mas que é o organismo sacralizador do universo, encerrando o passado, o presente e o futuro; militante, padecente e triunfante, estendendo-se na terra, no purgatório e no paraíso; encarregada de recapitular todas as coisas, todas as figuras da criação no Cristo, pelo Cristo e para o Cristo; tendo recebido uma investidura divina, zelosa da alma do homem, portadora do sentido da catástrofe e, ao mesmo tempo, do sentido da preparação de novas medidas, de novos elementos, de novas alianças; estabelecedora, pela comunhão dos santos, de uma solidariedade através do tempo e do espaço, entre os fiéis mortos, vivos e que ainda estão para nascer; assaltada pelas potências do mal que minam a glória do seu corpo, disfarçando-a muitas vezes, aparentemente, na esposa do Demônio; desligando a culpa do homem e apontando a ressurreição dos mortos; tirando do seu tesouro coisas novas e velhas, uma tradição milenar que começou no próprio Paraíso terrestre, e que fecunda sem cessar jovens culturas; anunciadora da destruição deste mundo pelo impacto da cólera do Pai, mais a primeira gargalhada do Filho, e o levantamento do novo céu e da nova terra pela energia atômica do Espírito Santo.

Dois meses antes da sua morte, Ismael já gravemente enfermo (manifestasse a úlcera na laringe em dezembro do ano anterior) pediu-me que o acompanhasse ao Mosteiro de S. Bento, pois queria receber a benção da garganta (era o dia de S. Braz). Nessa época eu não entrava, por sistema, nas igrejas, mas evidentemente o acompanhei. Ismael Nery ajoelhou-se diante do altar, o padre atravessou na sua garganta uma vela em forquilha e, recitando as orações do ritual, deu-lhe a bênção. 0 Abade, de mitra e báculo, entrou na igreja acompanhado do clero em procissão. Ismael apontou-me o Abade, alto, claro, simpático, majestoso, e me disse: "É um homem de grande valor. Acaba de ser eleito Abade e não tem mais de vinte e nove ou trinta anos. £ o Abade mais moço do mundo".Mal sabia eu que poucos meses depois me tornaria amigo do Abade — Dom Tomaz Keller — e que o Mosteiro iria ser o centro da minha vida espiritual. Conferi no Mosteiro o que havia aprendido com Ismael Nery amigo providencial: os elementos permanentes do catolicismo, o lastro de novidades que a tradição traz no seu bojo, as riquezas do Evangelho, o

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homem novo— homem voltado para o futuro e que cresce para atingir a medida da estatura do Cristo. A morte do grande amigo com o qual eu realizara uma das mais altas experiências que nos é dado tentar — chegaremos à definitiva compreensão pelo silêncio mútuo— a morte do grande amigo não me abateu: abriu-me uma vida de infinitas possibilidades, uma aventura de infindável trama. Em pouco tempo adivinhei que recebera o privilégio de contemplar, na face morta de Ismael Nery, um reflexo transfigurado do próprio Filho de Deus.

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LETRAS E ARTES, domingo, 09 jan. 1949, página 5.

DJANIRA

Os dados biográficos de um artista sempre hão de ter interesse para a exegese da sua obra. Creio que não será indiferente saber que Djanira nasceu na cidade de Avaré, Estado de São Paulo, que é neta de índio brasileiro, sendo o pai dentista e farmacêutico. Pelo lado materno Djanira descende da Europa, de família burguesa, tendo sido sua avó alemã, pintora, musicista e poliglota, falando entre outras línguas, o chinês e o japonês. Djanira chegou a conhecer desenhos seus em que — diga- se de passagem — não se reconhecia a veia popular, mas sim erudita. Sua mãe era austríaca. 0 avô materno,também austríaco, foi professor de matemática num instituto correcional de Viena. Esses avós vieram ao Brasil, por espírito de curiosidade; primeiro veio a avó com a mãe da pintora; levaram seis meses na viagem. Mais tarde, veio o avô, que, chegando a São Paulo, procurava a mulher sem achá-la; até que, conhecendo a língua italiana, pôs um anúncio na "Fanfullas", reunindo-se afinal, a original família. Um dos tios de Djanira, até antes da última guerra mundial era bispo de Trieste. De um lado, pois, vem Djanira do índio brasileiro; do outro lado vem da cidade européia — e que cidade! Viena, onde a civilização deu o máximo, se é que civilização quer dizer cultura, humanismo e refinamento de costumes.

Conheci Djanira pelos idos de 1921, num velho e simpático casarão da rua Mauá,em Santa Tereza, do tempo em que havia árvores, opulentas,jaqueiras e mangueiras. Ai de nós, homens do Rio de Janeiro! Homens sem árvores e sem mar: estão derrubando as árvores e podando mar.

A jovem senhora que me abriu a porta desmanchava-se num riso franco e desconcertante, com gestos desgovernados, num tom anti- convencional, qualquer coisa que era um paradoxo, entre mistério e popular.

Perguntei pelo meu amigo, o pintor Marcier que também morava naquela casa. Havia algumas telas que, evidentemente, não eram de Marcier. Mas Djanira explicava-me logo que ele ensinava-lhe a pintura. Um ano antes Djanira, levada por um súbito impulso, matriculãra-se no Liceu de Artes e Ofícios, onde seguia as aulas do Professor Adalberto Matos.

As aulas consistiam naturalmente, em copiar à carvão bustos e cabeças greco-romanas. 0 curioso é que o professor não apagava seus desenhos, verificando-se o contrário com todos os outros alunos.Mas a pobre e simples Djanira invejava os toscos desenhos dos colegas!

Esses seis meses passados no Liceu assinalam oficialmente

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a iniciação pré-histórica da nossa pintora no seu ofício. Entretanto, faço sondagens em épocas mais remotas e sou informado de que desde a meninice o maior prazer de Djanira consistia em comprar tubos de tintas, que empregava em cobrir tecidos, mesas, brinquedos e outros objetos.

0 grande Marcier sujeitou-a a severa disciplina, de que ela se tem beneficiado de resto em sua carreira. Durante meses e meses Djanira estudou, sob o olhar inquisidor do mestre romeno que - detalhe digno de registro— não lhe mostrava álbuns de reproduções. Djanira revelou-se, entretanto, à altura das exigências do terrível professor: foi uma aluna militante e ambiciosa, portadora da intuição de que um dia desvelaria os segredos da pintura, ela simples dona de casa, nascida em Avaré, esposa de um marinheiro anônimo! Na sua fase heróica, pintava, pela noite a dentro, pintava na cozinha, para não incomodar os outros. Segundo a mitologia grega, o nome de Djanira indica uma mulher crédula.Ora, Djanira contra todas as sombras e todos os fantasmas que se lhe opunham e sobrepunham, acreditou na pintura. E venceu a áspera luta, porque de fato, se tornou uma pintoraJ^Ba qual a crítica se tem inclinado.

A pintura de Djanira resulta a meu ver de uma combinação entre intuição e artesanato. No princípio de sua carreira, notava-se uma tendência para incluí-la entre os pintores ingênuos, alfandegários e domingueiros, às vezes também, falsamente denominados "primitivos". Mas a rápida evolução das fases progressivas da sua pintura logo mostrou que o seu caso era diferente. Algo de parecido sucedeu ao meu querido amigo Cícero Dias cuja linha evolutiva pude acompanhar, passo a passo, durante meio tempo: lembrando-me, sempre das discussões que sustentei pelos anos 30 com pintores, escritores e críticos de arte, pois nunca pude considerar Cícero um "primitivo", pelo simples fato de abolir a $

perspectiva. Muitas aquarelas e muitos guaches de Cícero acusavam um senso agudo da composição e fortes preocupações de cor, embora o aspecto poético sobrepujasse, aos olhos dos leigos, outras qualidades. A consulta, que fiz recentemente, no Recife, a obras de Cícero, das primeiras fases, confirma de maneira definitiva estaminha antiga impressão.

Mas é que o desenvolvimento da intuição produz uma cultura que poderá vir a ser grande. Este ponto é interessante, o da celebrada falta de cultura de certos pintores e músicos. Quando Mozart morreu, encontraram no seu gabinete de estudo, apenas, uns quinze ou vinte livros, em particular, sobre teatro. Mozart foi incriminado de inculto. Entretanto, ele mesmo se defendera, dizendo mais ou menos o seguinte: "Sou músico e não existe nenhum músico das épocas passadas e da época presente, cuja obra eu não tenha meditado e estudado a fundo". Todos nós já ouvimos falar na incultura de Portinari. Entretanto os censores se esquecem da imensa cultura de Portinari em assuntos de pintura, isto é, no assunto do seu ofício — não se falando na sua cultura viva, na sua sabedoria que vem do

bom senso de filho de camponeses, portadores de antiqüíssima tradição.Há poucos dias, neste mesmo recinto, ouvi Djanira falar

sobre pintores da sua predileção. Falava com arrebatamento e entusiasmo. Alguém ao nosso lado perguntou-nos, ironicamente, se ela era sempre assim quando falava de pintura. "Sempre assim, retruquei, e é natural que o seja. Esse entusiasmo vem do conhecimento do objeto que se admira, no caso o da pintura". Há uma série de elementos de que o artista necessita para o aprofundamento da sua cultura. Um instinto seguro o faz procurar esses elementos, ordenados pela sensibilidade e pela inteligência, produzem uma determinada soma, conjugando-se então harmoniosamente, e a consciência do artista alcança sua plenitude, podendo, ele, de agora em diante, compreender-se melhor, e compreender, também, melhor, o mundo que o cerca. Sim, porque na verdade cada artista, para realizar sua fisionomia própria, precisa de certos elementos de cultura que serão muitas vezes até estranhos, ou mesmo nocivos a outros. Na tradição legada pelo passado, como na tradição que o espírito da sua época vai formando, o artista ^ pesquisa o material que é necessário à sua construção, lançando raízes no seu ambiente. Eis por que não se pode criticar nem julgar nenhum artista desligado da sua época e das condições da cultura que lhe pode oferecer. Lemos na biografia de Cezanne, que ele admirava Bouguereau. ^ Como poderia, o revolucionário Cezanne, admirar o "pompier" Bouguereau se não fosse ao menos por contraste? Se Cezanne o admirou, é que outro lhe trazia direta ou indiretamente uma contribuição qualquer à sua cultura.

Na exposição realizadaem 1943, na A.B.I., e, mais tarde, no Instituto dos Arquitetos, em 1945, predominava, ainda, em Djanira a nota instintiva. Havia o encontro das cores lançadas displicentemente em grandes espaços vazios, verdes e vermelhos,dispensados com generosidade e sem espírito de construção, ateliers esperando aparições arbitrárias, janelas sobre jardins incultos, carrosséis vertiginosos. Onde falta a técnica, sobra a poesia, diziam os maliciosos. Sem dúvida, com isto a pintora entrou na fase histórica, e o que se pode chamar de sucesso literário foi grande. Pouco a pouco, entretanto, começou-se a recear pelo seu futuro. 0 mestre Marcier deixara o Rio, seduzido pelos ares barrocos de Minas. Esbotavam-se os artifícios poéticos e a necessidade de uma realidade plástica mais alta e mais forte começou a se fazer sentir. ^ Estaria liquidada a pintora Djanira? Seria mais um caso de bissexto da pintora, como tantos outros, que vão terminar nos leiloeiros ou nas coleções de três ou quatro excêntricos? Não. Djanira concluia suas provas vestibulares, embarcava para os Estados Unidos, e lá recebia o choque dos museus, de uma sensível parte da pintura européia — ,"hélas"! — que o ouro americano conseguiu importar.

0 mais curioso é que, na volta, houve,também, decepção. A

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pintora ganhara em técnica, mas perdera em poesia. GonJle.ss.o_ □ ue. a i princípio, estive mesmo inclinado a também pensar assim. Entretanto, uma meditação mais profunda, sobre o seu caso, alterou os dados do conceito. Penso que Djanira fez uma revisão total dos elementos de que dispunha: confrontou seu arsenal poético com seu arsenal plástico, e mudou os termos da operação, procurando um equilíbrio que talvez ainda não tenha atingido plenamente, mas de que já percebemos alguns resultados positivos.

A nota dominante dos seus quadros consiste, a meu ver em criar um clima de liberdade na cidade moderna, o que é também uma maneira de reclamar contra o clima de restrições policiais, que a nossa época respira. A a_tmosfera dos quadros de Djanira é em geral citadina; atmosfera de praças e jardins públicos, de feiras e carrosséis onde cada um procura prazeres simples e modestos, mas repito, num ambiente de liberdade e abandono. Reparem nessa tela onde um anjo preside ao tráfego, reparem nessas carruagens fabulosas que poderiam ser do tempo de Dickens, nesse imenso banco onde.todos são próximos e evidentemente membros de uma grande família. Em outras telas, reparem nos balões luminosos, nos patinadores que deslizam, nas crianças correndo, nos homens voadores, tão diferentes, de resto, dos de Chagall, em todo èsse mundo, à vontade, saído da imaginação e do pincel de uma pintura que viu Breughel e Bosch, e trancreveu certos motivos deles ajudada pela lente de uma condessa de Ségur da nossa época. Espalham-se os verdes, os azuis, os amarelos, os vermelhos; lutando esse derrame de côres com o aspecto construtivo do quadro, em soluções que, às vezes, não se sentem como definitivas, ainda forque a imaginação solta às vezes, enfrenta o desenho não-domado. Mas em outros trabalhos, como por exemplo, no retrato da Senhora Lins Cosme, encontramos a prova de que Djanira é capaz de contenção, submetendo o ^instinto a severo rigor. Nos gaúches mais recentes, produzidos este ano, o debate se acentua, mostrando que a artista pesquisa, pesquisa e pesquisa. Provavelmente ela terá que experimentar outras técnicas, passando-se,

quem sabe, para o mural. Aí, seu trabalho será mais duro, pois as vacilações e retoques não serão mais permitidos. Esperamos, entretanto, que o sangue de índio prevalecerá, e que a pintora Djanira consiga, no duro, mais uma vitória, pela força de disciplina e tenacidade que a caracterizam, tudo isto aliado ao seu grande talento natural.

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Dl CAVALCANTI

Os amigos de Di Cavalcanti — os inúmeros amigos que este homem de espírito possui -mostravam-se, há alguns anos atrás, preocupados com a carreira e o destino do pintor. Todo o mundo sabia que Di Cavalcanti fora um dos iniciadores do movimento de 1922 — e mesmo, segundo algumas opiniões, seu principal iniciador. Todo mundo sabia que ele gozava de considerável reputação como animador de movimento: mas na verdade havia um certo receio em apontá-lo como um pintor de primeiro plano; e isto se deve ao aspecto dispersivo do seu talento. 0 feitio boêmio do homem — boêmia de grande estilo, de resto,- refletia-se na apreciação crítica que se fazia do artista, entrando subconscientemente como fator desfavorável. Julgava-se que o pintor, apesar de seus dotes excepcionais, seria incapaz de se entregar a um trabalho contínuo e aprofundado. Temia-se pela sorte do pintor Di Cavalcanti, que começara com um ímpeto soberbo fundado sobre­tudo num conhecimento e num amor da matéria sensual da carne feminina que os nossos grandes acadêmicos da pintura haviam tratado à maneira parnasiana , dando muitas vezes mais importância ao fundo ou ao planejamento,

du que a essa mesma carne que encerra tantos problemas para u esplritu.Ora, esse feitio boêmio do temperamento de Di Cavalcanti

combina-se com uma capacidade de trabalho que espanta os mais desatentos e desprevenidos. A arte de Di Cavalcanti bem como sua pessoa humana, bem como seu método de ofício, está fundada na liberdade. Uma vocação de liberdade que tem sido a linha dominante de sua vida que fez dele- em certa época o único pintor social militante no Brasil — um revoltado contra as imposições drásticas dos partidos, um homem que sempre examina seus problemas, e que atingiu um elevado nível de consciência artística.Debaixo de aparências ligeiras, a carreira de Di Cavalcanti tem assumido aspectos patéticos de alto drama intelectual, este homem inquieto tem vivido em encruzilhadas à procura de soluções plásticas, políticas e críticas, debatendo continuamente o caso do Brasil, o caso da anarquia universal e seu próprio caso que se misturou com os outros.

Eis o aparente paradoxo de Emiliano Di Cavalcanti: este grande individualista é um pintor social, este boêmio dispersivo é um trabalhador obstinado, este contador de histórias pitorescas é um espírito sério capaz de disciplina. 0 homem Di Cavalcanti é rico em surpresas e imprevistos, solidário com os outros no sofrimento e na alegria. Sabe que o prazer sempre foi um elemento importante na criação da obra de arte. Sabe que o prazer encerra também conflitos, abismos, contradições.

LETRAS E ARTES, domingo, 06 fev. 1949, página 5.

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Daí o aspecto triste às vezes mesmo sinistro, de certos personagens festeiros de seus quadros. Todos nós sabemos que o substrato da alegria brasileira é carregado de tristeza.Em alguns dos melhores momentos da carreira, Di Cavalcanti atingiu pela força da verdade plástica o cerne da nossa própria verdade metafísica na unificação de seus contrastes: de fato a gente brasileira foi ali recriada em síntese erudita ,como em passagens hoje clássica para nós , de Aleijadinho,Castro Alves, Machado de Assis, Ernesto Nazareth ,Vila-Lobos, Portinari ,Manuel Bandeira,Cícero Dias, Mário de Andrade, Jorge de Lima e alguns poucos mais^j

É curioso observar que Di Cavalcanti nunca ultrapassou a linha de equilíbrio plástico da modernidade:com efeito ,apesar de seguir o processo de deformação que tanto espanta os leigos— e a numerosa classe dos preguiçosos mentais— não caiu na paródia do surrealismo, do dadaísmo , nem mesmo em certas superafetações do cubismo — o que aconteceu a tantos pintores, e não dos menores. Excetuando o precursor Ismael Nery , não vejo entre nós quem melhor do que ele terá aproveitado a útil e fecunda lição cubista.

Precisava o pintor brasileiro de uma técnica para exprimir nossa indiferença — nossa miséria — nossa sensualidade insatisfeita — nossa preguiça diante de tão grandes problemas a serem resolvidos — nossa atmosfera de véspera de carnaval, de calor, de tédio, de carnaval político, de ânsia de liberdade, dej musicalidade... Esta atmosfera brasileira de que o Rio foi o vasto resumo até chegar' a 1

derrocada de 1942, com a entrada do país na guerra, a falsificação e americanização do espírito carioca, com tudo mais do que se seguia e se segue, no assalto à vida de uma cidade que não pode mais reservar tempo a contemplação e aos prazeres gratuitos. A arte de Di Cavalcanti registra um repouso , um relativo repouso, entre duas catástrofes;os personagens do drama sabem, ainda veladamente que os espera uma organização de terror , uma provável vida de trabalhos forçados: por isso é que sambam a beira da iminente ameaça.Di Cavalcanti é o fixador plástico da nossa dança nacional, o samba. E o fixador do lirismo carioca esse lirismo que,repito, vai-se perder pelas imposições do novo ciclo de civilização ( ou de barbárie) em que começamos a entrar. Contribuiu,e de modo poderoso, para a inclusão do lirismo da outrora cidade do Rio de Janeiro com as suas componentes negras e portuguesas , no acervo universal da cultura. _

Tal é a missão do criador autêntico : assumir em forma / orgânica os elementos dispersos da sensibilidade de uma pessoa ou de um grupo social,imprimindo-lhes a consciência da duração. Para isto Di Cavalcanti mergulhou na vida de desforra que o povo leva, vida que ele foi dos primeiros entre nós a conhecer e a amar. Fez amizades em todas as \classes da sociedade, desde a mais humilde até a mais elevada. Conheceu a cada um de per si e não apenas no contato abstrato com a massa através do

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comício ou do rádio. Conheceu a fundo os problemas do povo, bem como seu gênio da desforra a que aludi. Homem de luta, homem de prazer, homem de7 conflito, homem de liberdade. Homem que sabendo compreender e apreciar o lado cósmico da vida não ignora o que o mesmo lado contém de trágico, pois a comédia e o drama não são compartimentos estanques, chegando a se fundir ... No espírito de Di Cavalcanti a consideração e exposição dos efeitos cômicos reveste-se duma força crítica e artística de rara categoria, que seria errado julgar sem importância. Na era sinistra em que vivemos, o contato com a personalidade de Di Cavalcanti, que possui fortes válvulas de escape, ora líricas ora humorísticas, atinge algumas vezes resultados próximos de uma recuperação mágica. No mesmo meridiano de valor — embora em planos diferentes — situa-se o grande brasileiro Jaime Ovalle, hoje exilado— é incrível — em Nova York ...

A observação do pintor no ato de pintar como que estabelece entre os dois personagens- o artista e o espectador — uma misteriosa fraternidade, uma sutil solidariedade espiritual, é que nesse momento vemos o pintor usar sua vontade criadora, concentrar sua força psíquica e ordenar seus meios técnicos — mas ao mesmo tempo abandonar-se com uma certa fragilidade aos poderes de amargas decepções e de belas surpresas, e que tanto impressionava Leonardo. £ a verdade que poderemos também chamar a este acaso — o subconsciente. Mas o fato é que o artista não vive só de sua vontade toda poderosa. Muitas vezes um pintor começa um quadro e o termina bem diferente do que o havia planejado.

Quantas vezes observei Di Cavalcanti pintar! Via-o iniciar um quadro nas melhores disposições de trabalho de bom humor; contando histórias. Via-o depois lutando com o demônio da criação — "noir cheval ^ galopant sous le noir chevalier" — lançando insultos e imprecações à tela, às tintas, ao pincel, à paleta, dando pancadas no próprio peito, chorando, rindo, uivando ... Depois, sacando as flores da jarra atirava-as ao vento, oferecendo-as a Noêmia, a Renoir, a Eleonora Dase, a Greta Garbo, à célebre mãe-de-santo Celestina.

Mas logo sentava-se diante do cavalete e durante horas a fio trabalhava, numa obstinação de fanático da pintura, que é o que continua sendo. Examinava problemas de luz, cor, desenho e composição: desmanchava, retocava, pensava ângulos, e estudava novos toques de pincel,j apagava, caía em fecunda meditação ... Vi logo que ele amava a pintura"] com voluptuosidade, pelo que reflete das possibilidades e das ondulações da figura humana, da carne feminina, do lirismo do povo em suas vibrações da matéria viva que se oferece aos dedos do amante e do pintor. Todos os sentidos eram convocados para o exame da tela que ia surgindo das profundidades da solicitude e da ternura do artista, como um objeto j .amorável.

Assim Di Cavalcanti, libertado do fanatismo, instalava no

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ambiente da pintura brasileira um novo humanismo: o da matéria carnal, restituída à v sua dignidade. Problema semelhante foi enfrentado e resolvido pelos grandes mestres da renascença italiana. ç

A exposição realizada recentemente em São Paulo por Di Cavalcanti indica o artista em plena maturidade, na posse integral de seus instrumentos de expressão. Essa retrospectiva, de resto, estava longe de ser completa: não houve tempo nem oportunidade de se reunirem as inúmeras telas do pintor dispersas em museus ou coleções particulares. Mas mesmo assim na sua fragmentação foi um momento culminante na história de nossa pintura, abrangendo resumidamente trinta anos de trabalho, diversas faturas e diversas tendências resolvendo-se magnífica unidade. Unidade,'! sim, pois o fenômeno é digno de registro: todos esses anos duma já longa carreira Di Cavalcanti permanece fiel às suas principais idéias estéticas, ao seu temperamento sensual, ao seu amor à vida, bem como à sua concepção do_quadro como síntese plástica da inumerável mitologia do figurativo.Quero com isto dizer que Di Cavalcanti usou de sinceridade consigo mesmo, pois é na interpretação da figura humana que ele encontrou a razão de ser da sua arte. Diante dessa última mostra lembrei-me de uma declaração, desde já famosa — ao mesmo tempo louvada e censurada — que se atribui a Picasso: "Je ne cherche pas, je trouve". Porque a meu ver Di Cavalcanti superou as inevitáveis fases de pesquisas: antigos temas não resolvidos em quadros de outras épocas encontram agora soluções com todas as probabilidades de definitivas. Daí a esplêndida homogeneidade que se nota ao estudar essa vasta galeria de quadros exposta há semanas atrás no Instituto de Arquitetos de São Paulo, e que o artista precisa de transportar à capital do país. Sua pintura, ao mesmo tempo que mais

" ■ — ppastosa,tornou-se mais ajustada a um método de sobriedade que exclui um ; errôneo conceito de despojamento. 0 despojamento não implica em eliminação de detalhes, eliminação da riqueza necessária ao artista: implica, isso sim, sabedoria na justa distribuição desses detalhes. Há ornatos preciosos, há riquezas indispensáveis, como há uma falsa riqueza e ornatos supérfluos.

Os trabalhos de Di Cavalcanti dos últimos anos acusam grande progresso técnico sobre a produção anterior a 1942. Recebeu também a paleta novos tons sombrios, resultante de tudo uma gravidade insuspeitada em telas de anos mais remotos. Alguns quadros evocam imediatamente a técnica da tapeçaria moderna, outras manifestaram uma trama contra- ^ pontística que lhes confere uma harmonia severa dentro de temas aparentemente frívolos.Soluções muito pessoais do problema das cores dominantes e complementares — problema de novo trazido à tona e atualizado pelo grande Rouault — uma feliz conciliação de tons quentes e frios, em passagens ao mesmo tempo suaves e violentas, uma síntese decorativa, no que este termo contém o mais nobre e elevado, quero dizer, nas possibilidades de desdobramento do quadro em mural, ajustada, como é, a

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um ritmo_ a r q ui_t_etônico: eis algumas das notas manifestas da fase recente da produção de Di Cavalcanti, que se insere no mais alto conceito de artesanato foi demonstrada de modo persuasivo pela manutenção da_ técnica própria ao pintor, já que muitos dos seus quadros, pintados há mais de vinte e cinco anos se encontram em perfeito estado de conservação. Seus vermelhos e verdes, suas rosas e azuis, sabem manter o quadro na atmosfera_em que os criou originalmente o pintor, numa esfera de grande densidade lírica. Há ainda a registrar uma sensível renovação da natureza ?

c

morta, quase humanizada por assim dizer, o que dá idéia da força criadora do pintor: bem como soluções interessantes da divisão de certos quadros alternados, revelando um notável senso da composição.

0 aproveitamento da técnica da escola de Paris transplantada! com sabedoria no terreno da pintura brasileira demonstra a aguda inteligência do nosso Di Cavalcanti, que assim coloca o nacional no plano do universo, numa fecunda operação de síntese e fusão de valores tão constante no ambiente cultural da nossa época.

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VIAGEM AO RECIFEI

Desembarco em Recife num dia muito claro, dessa vibrante arijjad,e;-:pxáp-r-i-a-_aD_céu__do nordeste. Não posso disfarçar minha emoção. Há intos anos planejava esta viagem. Ia fazê-la em circunstâncias as mais ivoráveis: cultivando de longa data amizades pernambucanas, sentia-me' vontade, pelo que o ambiente e a paisagem se revestiriam sem dúvida de iteresse especial,animando-se do calor humano a palpitar em tantos corações ligos. Assim aconteceu. Ainda não conhecia pessoalmente muitos daqueles ie me foram receber: entretanto ,sentia-me tão bem entre eles , que julguei jatar uma conversação interrompida na véspera. Para um mineiro, nascido e riado entre as montanhas de Juiz de Fora ,cedo transportado para as montanhas ariocas,constituía uma verdadeira aventura penetrar alguns palmos de .vilização nordestina ,conhecer nova luz, novos tipos , novos sabores,novos jstumes. Eu fundara há alguns anos atrás ccm Anibal Machado o " Anti-Touring .ub". Reduto de mineiros sedentários que tinham vontade e falta de jeito ira viajar. Mas o autor do desejado "João Ternura" traiu-me de maneira vil, issando mais de um ano na Europa. Por minha vez traio agora o poeta rummond viajando ao Recife e à Bahia,além de várias incursões a São Paulo.3 não tomarem providências, acabarei numa expedição ao Tibet, à procura do anda e do DalãiLama...

Tinha ainda o privilégio da companhia da minha mulher e do dsso amigo, o pintor Eros Gonçalves. Para este a experiência era também iteressante, pois retornava ao Recife depois de oito anos de ausência , sndo que ano e meio passado na Inglaterra. 0 avião sobrevoava o Rio que,Isto assim do alto,surge como um maravilhoso presépio marítimo e celeste, jdando de aspecto a todo instante. Avistam-se inúmeras capelinhas insuspe_i adas do ponto de vista da terra. Mas o sôfrego animal aéreo em breve nos rranca da contemplação mágica,superando nuvens amontoadas, montanhas, e ogo largos rios, imensas faixas cor de prata , campinas esverdeadas. Súbito, ivisa-se a orla marítima e lá em baixo ,muito lá em baixo , um casario branco.prestimoso aéro-moço previne:é Maceió. Maceió! Pelo menos a tão longe é

inda...Mas a paisagem muda instantaneamente:sobrevoamos a imensa solidão do ceano, revelando-se um verde de tom especial bem diferente do que me costumei a ver em águas cariocas. 0 aparelho vai baixando; já se avistam mais erto os arreeifes,logo depois praias e coqueiros ,eis o aeroporto de uararapes e a vibração da luz dojTordeste.

A penetração na capital pernambucana pela praia de Boa - iagem põe-nos em contato imediato com a sua natureza própria. 0 paralelo

TRAS E ARTES, domingo ,13 mar. 1949 ,página 5.

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entre Boa Viagem e Copacabana acode-nos automaticamente. Mas eu não tenho preconceitos nem compromissos bairristas, além disto venho do país das Minas Gerais que não tem mar. A praia carioca é evidentemente belíssima na sua curva incomparável: seu ritmo, entretanto, foi alterado por uma infinidade de casas de mau gosto, próximas demais da área. A arquitetura de Boa Viagem é bem menos pretensiosa, mas, antes de tudo, o verde marítimo não sofre paralelo. "A pena é impotente^ para _descrever",> como se dizia no século XIX. Os que duvidam e meneiam a cabeça tomem, > se puderem, um barco ou um avião e depois me digam se estou fantasiando. Pelo contrário, trato de domar a pena que procura dar violentos golpes \

____________________________ __________ ________ ______ . ____^ v

de exclamação... 0 vento farfalha nos coqueiros, bolindo nas suas palmas.Ê a célebre brisa que alivia o calor nordestino - brisa de que tanto precisamos aqui no Rio. Paramos para, obedientes a cor local, sorver a obrigatória e deliciosa água de coco. 0 automóvel detém-se diante do

jbusto de Teles Júnior, feliz entre seus coqueiros, sereno e firme na ^paisagem que ele tanto amou e pintou tão finamente. Medito sobre essa figura de brasileiro que honrou a nossa cultura e, em avanço sobre a mentalidade do ambiente em que vivia, desenvolveu fecunda atividade 7 de tipo social, possuindo a consciência dos problemas políticos^mais. importantes. Mas o prodigioso verde marítimo de novo nos solicita.Deixamos finalmente a praia da Boa Viagem: o carro agora perfura bairros com sobradões coloridos, tão diferentes dos funestos edifícios acinzentadosdo Rio. Aviso que não é por espírito de saudosismo que aprovo a pintura.,

/em cores vivas dos sobrados: é que assim tornam a cidade mais alegre e poética, adaptando-se melhor à atmosfera, às condições da luz e do clima. £ uma pintura mais lógica. Sobrados vermelhos, alaranjados,azuis, vastos sobrados onde se rasgam muitas janelas. Atravessamos o bairro de São José com seu vivo movimento, os vendedores ambulantes, e sempre os grandes sobrados nos acompanhando. Encontramos na famosa rua da Aurora uma das mais belas e românticas do Brasil, à beira do cais. Depois é a rua da União: diante de um casarão cor de rosa o solícito Edson Nery da Fonseca — um dos mais entusiastas e fiéis amigos da poesia que conheço — informa comovido: "Nesta casa nasceu Manuel Bandeira". Descemos para olhar melhor. Mais tarde soube-se que na realidade não era aquela a casa onde nasceu o poetaCmas sim narua Joaquim Nabuco em prédio hoje demolido) mas sim a casa do avô, onde ele passou a infância e que celebrou num dos seus melhores poemas. Os vultos de Aninha Viegas e de Totônio Rodrigues assomaram às sacadas... Nosso primeiro contato com Recife realizou-se, assim sob o duplo signo da paisagem e da cultura.A cidade logo se humanizava para nós. Dirigimo-nos então à casa onde nos esperavam excelentes, acolhedores amigos — um ramo do antigo Portugal transplantado para a terra do Recife.

Eu viera lendo no avião o guia do Recife e Olinda de

Gilberto Freyre. Logo à entrada o autor declara que a capital pernambucana é esquiva,não seentregando de chofre ao visitante. Comigo, entretanto, não se deu tal. Senti desde os primeiros momentos. Cheguei, vi e amei. Um verdadeiro "coup de foudre". De resto, o ilustre sociólogo certamente gostará de saber que a realidade do Recife excedeu de muito, não só as descrições que me faziam meus amigos pernambucanos, como as antecipações do próprio "Guia".

Recife é uma cidade muito vasta, banhada por dois rios que se cruzam no oceano de um verde particular, coberta de coqueiros, mangueirais e outras árvores, chácaras e jardins soberbos, inúmeros sobrados, muitos dos quais conservam ainda fachadas em azulejos, estátuas e animais de louça, ruas que guardam a linha urbanística do tempo do Império, bairros de recortes acidentados,becos pitorescos ao lado de avenidas largas, altas e solenes igrejas, algumas ainda no século XVII, bem como monumentos, alguns modelares de arquitetura civil colonial.0 horizonte é vastíssimo, constituindo novidade poética para o homem fechado na montanha, a perspectiva da planície que se desdobra sucessivamente em novos e imprevistos planos mágicos, animados pela presença constante de vegetação e da água, baixa vegetação dos mangues e da beira-rio,alta vegetação dessas quase florestas urbanas que não posso deixar de evocar a todo instante, nessa alegria do reencontro com a árvore, elemento fundamental de nossa vida de natureza e cultura, destinado a desaparecer em breve da vida carioca. Os dois rios, o Beberibe e o Capibaribe banham, numa enorme zona, fundos de casa com terraços e varandas, onde atracam, como antigamente, pequenas canoas amarradas às árvores. Em muitos lugares o ambiente reproduz com fidelidade o das gravuras românticas, abstraído do estilo e dos costumes deste século. Não creio que haja no Brasil muitos espetáculos tão interessantes como um passeio de lancha pelo Capibaribe. Trata-se de uma recuperação feérica, de um entrosamento com a vida em todas as suas possibilidades de harmonização entre o interior e o exterior — antigo sonho dos homens, realizado por alguns momentos. Mas momentos que ficam para sempre na memória de nossas pobres pupilas mortais. A lancha corta as águas ásperas e contorna o cais interminável de onde se debruçam árvores e figuras humanas. Divisam-se os milhares de telhados que constituem precioso elemento decorativo e poético nas cidades nascidas ao tempo da colônia. Passamos debaixo de pontes,as inúmeras pontes indicam o caráter anfíbio do Recife. Ao longe destacam-se as torres das Igrejas de Olinda, no seu severo isolamento. Mas por agora Olinda não nos solicita: pedimos e recebemos o duplo choque do rio e do mar pernambucano, numa poderosa faixa líquida que parece não

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acabar, ao mesmo tempo que romanescos elementos de arquiteturas e vegetação se destorcendo em gestos aparentemente arbitrários.Avançam — devido ao movimento oscilatório da lancha no crepúsculo que começa a envolver a cidade, criando uma sensação de remate.

Esse Recife de que eu tivera há muitos anos as ^primeiras antecipações através dos guaches de Cícero Dias. Se Teles Júnior é o pintor da mata, do fundo paisagístico do Recife, Cícero Dias é o pintor do Recife-cidade, o pintor do lop-lop de Recife com ^

seus sobrados de estátuas e azulejos, seus jardins onde crianças tangem o arco e dançam de roda, suas ruas sonhadoras à beira do cais, suas famílias que ainda conservam hábitos e ritos do passado — toda essa inumerável mitologia de Recife, interpretada por Cícero Dias em desenhos que, além de interesse poético, possuem interesse documentário, pois todos esses preciosos elementos serão em breve abatidos pela j"picareta do progresso". Eu conferia o Recife que via agora com o Recife que formara em minha imaginação por meio daqueles guaches — e dava tudo certo. Em obras que guarnecem a residência da família de Cícero, bem como em outras pertencentes a coleções particulares, sobretudo a de Moacir Coutinho, esse Recife revestido da força de extraordinário lirismo permanece vivo. 0 pintor nos últimos anos tomou novo caminho, que poderá sem dúvida produzir ainda excelentes resultados, e acho inútil tomar um partido fanático pró primeira ou pró segunda fase: mas o que é certo é que a transposição gráfica da atmosfera poética pernambucana dos 1920 a 1930 consegue tocar fortemente nossa sensibilidade no que ela tem de especificamente brasileiro, encontrando seu paralelismo em certas passagens da nossa música, enquanto a outra fase se afina mais com o registro abstrato europeu de tendências marcadamente internacionais.

Recife pareceu-me mais conservada do que eu pensava no seu aspecto decorativo marcada pelo gênio do século XIX. Notam-se bairros inteiros quase intactos com vestígios muito evidentes do estilo da grande propriedade fundada sobre o braço do negro e a riqueza de açúcar. Pude ver inúmeros sobrados no fundo de vastos terrenos, chácaras e jardins, alguns destes quase do tamanho de jardins públicos. Vi casas

de grande valor arquitetônico, como o admirável palacete coberto de azulejos, antiga residência do conselheiro João Alfredo, transformada em quartel. Disseram-me que há anos atrás o jornalista Assis Chateaubriand pretendeu instalar ali um museu — o que seria naturalmente ótimo.(0 estilo da casa naturalmente não é muito apropriado a um quartel).

Vi casas que possuem ainda, repito, uma infinidade de estátuas, animais de louça, pinhas verdes, azuis e vermelhas, e luminárias, como a do senador Novais Filho. Outros, como a de Chico Macaco, que já sofreu várias alterações, sugerem imediatamente um imenso cenário

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de ópera, construção de diversas alas, com pérgolas, pavilhões, planos diversos e as indispensáveis estátuas, testemunhas silenciosas de uma grandeza econômica extinta. Nos arredores da cidade visitamos a sede do engenho Brennan, uma dessas coisas "que não existem", edifício de vastas proporções, onde tm Piraneso mais modesto divertiu-se em levantar salas a perder de vista, corredores cruzando-se em labirintos, pontes, balaustradas, galerias, jardins suspensos, o diabo. A casa, como muitas outras do Recife, está decorada ao gosto do século XIX, ostentando uma exuberância de mobílias pesadas, tapeçarias, lustres, retratos de família, que chega a cansar. A governanta, com uma lanterna acesa em pleno dia, . guia-nos por toda parte, contando-nos episódios da vida da família em outras épocas. Uma verdadeira crônica ambulante. No topo da escadaria surgem então dois filhos do proprietário — um rapaz vestido de couro e uma linda moça coberta de negro da cabeça ao pés, seguidos por dois enormes galgos. Suas maneiras, gestos e ademanes enquadravam-se perfeitamente no cenário do século XIX. 0 jardim ostentava flores magníficas, de espécies que nos pareciam inéditas. A planície estendia-se até os confins do horizonte, ampliando-se em soberba perspectiva. Recife em poucos dias apresentava aspectos de interesse sempre renovado.

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LETRAS E ftRTES, domingo, 03 abr. 1949, página 7.

VIAGEM AO RECIFE

II

Logo no segundo dia da minha estadia no Recife tomei contato com uma das mais autênticas expressões da grande tradição popular do Brasil: os cantadores do Nordeste. Os cantadores fascinaram-me. Na minha infância conheci de perto o poeta Belmiro Braga em Juiz de Fora. Meu pai levava-me sempre à casa dele porque me atraia seu extraordinário talento de improvisador e repentista. Mais tarde travei conhecimento com os cantadores avulsos, ora no Rio, ora em Minas — pessoalmente ou através de discos. Sempre dei grande importância a essa forma de representação poética, uma das mais antigas da humanidade. Antônio Bento:^ contou-me muitas vezes coisas fabulosas dos cantadores do Rio Grande do Norte, e. mais de uma vez, levou-me à casa do saudoso Luciano Gallef-, onde cantava cocos e modinhas para o músico harmonizar ou transcrever. Sábia fragmentos de cantos de Chico do Engenho^ o grande rapsodo.^Eu lamentava que essas cantigas se perdessem, ou que os poetas eruditos não as aproveitassem em transposiçõs sábias, pois na verdade muitos desses improvisos não conseguiam atingir a plena realização artísticaT^Entretanto ainda não me tinha sido dado assistir a um concerto, assim o chamo porque na verdade o é dada a significação antiga dessa palavra: torneio, disputa — não me tinha sido dado assistir a um concerto de genuínos cantadores do Nordeste.0 encontro com eles no auditório do "Jornal do Comércio", foi para mim decisivo. Eram legítimos cantadores do sertão de Pernambuco, Paraíba e Piauí mas principalmente de Pernambuco, ftpresentaram-se, como costumam, ém improvisos, desafios e emboladas. Com espantosa vivacidade reúnem aT j

veia lírica, as expansões diante do amor e da natureza, ao dom humorístico e satírico, produzindo a todo momento, ora imagens que coincidem com a natureza, ora outras que a deformam e transpõem. De vez em quando atingem a mesma genialidade com achados prodigiosos que fariam inveja a mais de um poeta surrealista. Cousas como o "galope a beira mar" e o "Martelo a galopada", precisam ser gravadas e postas ao alcance de nosso povo, bem como examinadas pelos eruditos e pelos artistas. 0 tom especial da voz dos cantadores do Nordeste aproxima-os às vezes aos cantores do "Oriente,despertando em nós antiquíssimas idéias e ritmos adormecidos. Retive, entre outros os nomes de Dimas Batista, o piauiense, patriota, ^

Vicente Granjeiro, Fonseca e Domingos. 0 Rio e São Paulo devem convocar J

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esse admirável grupo para nos compensar um pouco da música de péssima qualidade que invade o nosso mercado falsificado pela América do Norte, e que infelizmente vem às toneladas em companhia das garrafas de coca-cola e das latas de conserva. Dias antes da minha chegada, haviam os cantadores realizado um Congresso. Minha iniciação aos ritos e costumes do Nordeste não poderia ter sido mais feliz.

Recife atravessa uma fase importante de sua vida cultural.De resto, pude constatar pessoalmente que o Governador Barbosa Lima Sobrinho não só se interessa pelos movimentos novos e progressistas, como os apoia e prestigia, moral e materialmente. Estive mais de uma vez na Diretoria de Documentação e Cultura da Prefeitura Municipal do Recife, a convite da qual visitava a cidade. Vou ferir aqui a modéstia de seu diretor, o prof. José Césio Regueira Costa, mas não posso me impedir de citar o nome e a ação exemplar desse pernambucano de boa cepa, figura de primeira ordem, trabalhador infatigável, que dedica um carinho raro às coisas da nossa cultura. A Diretoria possui uma sala para exposições de pintura e desenho, uma biblioteca selecionada com muitos livros e revistas de arte, e uma discoteca que conta com mais de 1.000 discos de classe apresentando já um rendimento bastante apreciável, dirigida que é com zelo e eficiência pelo prof. Ernani CerdeiráyA Diretoria mantém ainda contato vivo com os visitantes do Estado, promove palestras, mesas redondas, audições, reconstituições de festanças populares, como o Bumba-meu-Boi e a Náu Catarineta, expõe grupos de cerâmica popular de Pernambuco, sendo digna de nota a produzida pelo célebre Vitolino de Caruaru. Publica também uma ótima revista em que colaboram nomes ilustres do Brasil, e um jornalzinho, órgão dos Postos de Salvamento e destinado a ser distribuído nas praias, certamente um dos mais originais do mundo: "Praieiro". Jornal que deve ser particularmente estimado pelos poetas, pois, embora dispondo de minúsculo espaço, não deixa de publicar com religiosa pontualidade um poema em cada número, enquanto que quase todos os suplementos dos enormes jornais cariocas relegam ao borralho essa parente pobre, a Poesia.

A propósito, realizava-se no Recife, durante o período em que lá estive, o l2 salão de Poesia projetado por Aderbal Jurema com o apoio e colaboração da Diretoria de Documentação e Cultura. Viam-se dezenas de poemas colados nas paredes, antógrafos de Castro Alves,Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade ao lado de outros poetas anônimos ou incipientes, como um de Evaldo Cabral de Melo, menino de 11 anos, irmão de nosso caro João Cabral de Melo Neto. A simpática iniciativa despertou grande interesse no meio do povo: o Salão foi visitado por centenas de pessoas tendo se realizado na ocasião conferências e debates.

Assisti também a uma representação ao ar livre do Teatro do

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Estudante de Pernambuco a cuja frente se encontra esse apaixonado da arte teatral, esse conhecedor que é Hermilo Borba Filho. A peça era da ^ autoria de um jovem pernambucano — ou paraibano? — que talvez ainda não tenha entrado na casa dos 2,0 — Ariano Suassuna, nome que deve ser retido. Apesar dos defeitos e vacilações próprios da idade mostra talento excepcional para o teatro. É lícito esperar dele coisas muito boas. Trata-se de um rapaz vivíssimo, de notável capacidade narradora. Transmitiu-me histórias e cantos dos cantadores do Nordeste, com os quais tem larga convivência. Também retive o nome da jovem atriz Ana Cahnem; recém apresentada ao público, e que revela qualidades positivas. Existe no Recife uma efervescência de moços em movimentos de teatro, de revistas, de conferências, de poesia, de pintura, de estudos sociais, demonstrando uma vitalidade esplêndida em que se conjugam entusiasmo e seriedade. Poetas, ensaístas e homens de teatro, como Mauro Mota, Edson Regis,' Laurentino Lima, José Laurenio de Melo, Haydn Goulart, os já citados Edson Nery da Fonseca, Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, Guerra de Holanda, Thales de Ramalho, Valdemar de Oliveira, Duarte Neto e muitos outros mais. Não tive ocasião de ver novos quadros do pintor Hélio Feijó, ex-discípulo de Portinari. A revelação mais recente no desenho é a jovem Ladjane Bandeira de Liráfque mostra talento e ambição, surgindo

7com probabilidades de sucesso, lançada que foi ha algumas semanas no j

Rio numa vasta ofensiva de publicidade. Na pintura destaca-se, aindatf

entre os novos, Francisco Brenaní' Quanto aos da velha guarda continuam a trabalhar, mantendo contato permanente com os grupos da mocidade: Gilberto Freyre, Mateus de Lima, o bom gigante Ascenso Ferreira - cantador a seu modo, Olivio Montenegro, Silvio Rabelo, Aderbal Jurema e José Otávio de Freitas Junior, e outros. Tive muito prazer em visitar o magnífico atelier de Lula Cardoso Aires, podendo constatar os progressos feitos pelo pintor ... Lula mudou de direção: deixou a antiga fatura 0estilizada, que lhe dava maior satisfação material mas que não |l"correspondia ao seu ideal de artista. Encontra-se agora num caminho difícil, tendo optado por uma espécie de abstracionismo moderado que o conduzirá talvez a soluções consideráveis. A mudança de posição estética

de Lula Cardoso Aires operou-se sob o signo da coragem e da consciência crítica, e embora o artista ainda não apresentasse resultados positivos sua atitude honesta e inteligente é digna de elogio. E agora - lest but not least - convém mencionar Eros Gonçalves^ pernambucano carioquizado, que repetiu o ano passado no Recife sua bela exposição do Rio, e do qual *1 muito devemos esperar. Durante alguns anos trabalhou sem afobação, melhorou sua técnica e apurou seu gosto, já naturalmente muito fino. Realizou pesquisas lúcidas de dois ambientes que tocam muito de perto sua sensibilidade — o brasileiro e o inglês. Além do mais, iniciou no Recife cursos de decoração teatral e de teatrinho de bonecos, marcando

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desde logo sua influência entre os mais jovens.Passeamos por essas ruas de nomes poéticos, que infelizmente

em outras cidades do Brasil já vão sendo substituídos pelos de medalhões e políticos. É a rua das Flores, a das Ninfas, a dos Crioulos, da Gamboa, do Carmo, da Soledade, da Aurora, da Ondina, da Amizade, da Baixa Verde, do Cupim, da Palma, a Travessa do Jacinto, o cais do Apoio. As casuarinas, as enormes e frondosas mangueiras, os flaboyants, os jambeiros do Pará, os cajueiros, as acácias rosa e amarela, os "bouga- invilles" de diversas cores florescem à vontade nas ruas, praças e jardim públicos e particulares, e ninguém se lembra de os aparar. No 1 meio de toda essa magnificiência os mocambos documentam a injustiça social, os erros de uma sociedade que até hoje não soube organizar um plano racional de distribuição dos bens. Confesso que o seu pretendido pitoresco não me convence, embora procurem me persuadir que os mocambos são mais confortáveis que as favelas - o que de resto é possível. Decididamente não acho nenhum pitoresco na miséria, é por-isso que nos dirigimos à Escola de Serviço Social onde se preparam assistentes que ajudarão em futuro próximo a diminuir essa miséria. A Escola conta com professores de excepcional valor, dos quais destaco o escritor Luis Delgado,'' Maria de Lourdes Morais e Dolores Cruz Coelho — figuras representativas, em Pernambuco, dessa forte e entusiasmada cristandade^ sobre a qual repousam tantas esperanças, restituída que vai sendo ao seu verdadeiro sentido, o de circulação de bens entre os fiéis — 4c comunhãojdo_s_sa-ntos — e realização temporal do "Magnificat". E, por associação de idéias,sou levado até esse imenso conjunto barroco em que se agrupam igrejas, convento e hospital de franciscanos — onde se encrava uma das mais belas jóias da arte brasileira — a Capela dourada, maravilhoso confronto da talha dourada, do azulejo e do jacarandá, e, que apesar da sua riqueza,impressiona pela seriedade e elegância de linhas. Confesso que nada vi superior, no gênero, não só no próprio Pernambuco como também em Minas, no Rio e na Bahia.

Os pernambucanos orgulham-se justamente da igreja de São Pedro dos Clérigos que gostam de mostrar aos visitantes nas noites de lua - e têm razão, pois é um espetáculo soberbo. Infelizmente essa venerável igreja com sua fachada alta e magra, sua talha esplêndida, suas portas pesadíssimas, as decorações do teto que evocam o estilo italiano da grande época, sua espantosa floração de detalhes — infelizmente essa Igreja atravessa um sério perigo, achando-se com as paredes todas enegrecidas e os alicerces abalados pela proximidade de uma torrefação de café. Mau grado os tenazes esforços do benemérito serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o proprietário irredutível, nega-se a entrar em qualquer entendimento. Haveria ainda muito que falar em outras igrejas como Madre de Deus, Carmo, Conceição dos Militares, etc.Mas seria preciso toda uma série de artigos. Além disso temos que ir

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a Olinda que justifica sua fama: a parte antiga lembra uma cidade deMinas colonial, mas com elementos que faltam ali — os coqueiros e o marincomparavelmente verde. Nunca mais poderemos esquecer a sacristia doconvento de S. Francisco, suas grades deitando para o mar, seu chão de

, irtijolo, seus espelhos engastados no jacaranda. Nem a sacristia do mosteirode São Bento, com seus painéis do teto cobertos de antigas pinturas quasepicassianas. 0 S.P.H.A.N. realiza ali, bem como na importantíssima Igrejado Carmo, grandes obras de restauração.

Ainda fomos a Iguaraçu conhecer um dos primeiros pontos de

penetração portuguesa na América e São Cosme e São Damião, a mais antiga Igreja brasileira. Iguaraçu comoveu-me profundamente pela seriedade e nobreza do seu conjunto arquitetônico e paisagístico. É pequeno mas ^ respira espiritualidade e vida de tradição. Na igreja do Sagrado Coração assisti a um desfile de freiras e órfãs cantando hinos na nave escura,

,_giK^me fez voltar aos tempos de cristianismo primitivo. Entramos ,no admirável convento dos franciscanos (século XVII) hoje abandonado, mas que possui belíssima capela-mor, claustro e galerias com painéis notáveis.Na véspera da partida demos ainda um pulo à ilha da Itamaracá que positivamente já passa para o domínio do feérico, justificando só por si uma viagem ao Recife — esse Itamaracá com seu cenário que evoca o das ilhas do Pacífico, seu mar verde e dourado, os milhares de coqueiros e de mangueiras, a natureza riquíssima que resume o trópico. Minha mulher queria mesmo ficar dois meses em Itamaracá — mas força era partir. E já com antecipada saudade dos excelentes amigos embarcamos para a capital da Bahia, levando uma vasta bagagem de idéias, imagens e sensações.

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IMPRESSÕES DA BAHIA

Chegando à Bahia sou imediata e vivamente impressionado pela força humana do seu povo, pela sua vibração, pela sua naturalidade, pela sua religiosidade. Grande, prodigioso espetáculo o da trepidação baiana! sem dúvida, a literatura, o cinema, a música, o desenho às vezes de mau gosto ao_.lado da ênfase acadêmica tinham de longa data preparado meu espírito, meus olhos e meus ouvidos: mas tudo isto me fornecera apenas as aparências exteriores da Bahia, seu lado fácil e pitoresco. A antiga legenda, a variedade do mito não haviam conseguido me transmitir uma imagem autêntica da Bahia: foi preciso pisar o seu solo para me convencer da grandeza da realidade. Tal contato, embora rápido, produziu- me um choque de cuja surpresa até hoje não voltei. Embora quase tudo que ali se acha de pé nos relembre a continuidade de uma tradição na arquitetura — nota fundamental de uma cidade — foi o caráter humano do povo o que mais me interessou e comoveu. A fusão da cultura católica com a sensibilidade africana determinou um resultado de grande importância num plano social de extroversão. .Não sei qual será a verdadeira opinião de teólogos brasileiros a respeito da religiosidade baiana; sei que é _costume elegante contornar o problema, aludindo vagamente a hábitos feitichistas. E certo que esses hábitos subsistem, e não pretendo afirmar que a religiosidade baiana tenha atingido um grau superior de elevação e refinamento. Pretendo apenas comunicar uma impressão pessoal, com as / reservas naturais de quem conhece as gradações de valor, mas ao mesmo / tempo aceita os elementos jje .conjunto . .

No Brasil, país oficialmente católico e até catolicíssimo, é fácil observar como em geral andam dissociadas a religião e a vida.Os crentes, assistidos os ritos do domingo, voltam as costas à religião durante o resto da semana — excetuando-se, como sempre, as honrosas exceções. Ignoram que a maior tarefa da Igreja no século XX consiste mesmo em combater esse fatal divórcio que se prolonga há séculos, envenenando até as próprias razões da existência. Pois na Bahia pude notar que essa separação já é bem menos sensível. Nem constitui objeção

o saber que muitas dessas formas de vocação baiana apresentam aspecto extra-litúrgico e engrossam o tesouro de folclore: o essencial é que essa devoção brota do profundo da alma do povo, está misturada na suavy\ carne, no seu sangue, no se espírito, fundida neles e com eles. 0 povo baiano tem uma fé que não pode esconder, que transparece a todo o momento nas suas benções e..nas suas pra.gas. Crê firmemente em Deus,

LETRAS E ARTES, domingo , 10 abr. 1949, página 7.

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em Jesus Cristo, na Virgem Maria e nos santos. A festa do senhor do ^ Bomfim a que infelizmente não pude assistir, é, segundo opiniões categorizadas, um dos maiores espetáculos de transmissão de emoções coletiva que o mundo conhece. E o povo chega a esse clímax religioso, a essa enorme vibração, sem álcool e sem música! Detalhe significativo que não escapou a tantos viajantes ilustres, entre outros Stefan Zweig. Se não pude assistir à festa do Bonfim, pude entretanto entrar muitas vezes nas igrejas, participar da missa ou de benção do Santíssimo, pude topar também com a religião na rua. É muito comum ver pessoas se persignarem em plena via pública. A toda hora surgem nomes e invocações de Santos. Conheci baianos que pediam esmola à porta da Catedral e que, apenas recebido o níquel, abençoavam solenemente o doador com uma espantosa força persuasiva, parecendo arrastá-lo a uma região de onde o mal foi expulso. Poucas vezes vi rezar como na Bahia. E não só mulheres.^ Sucedia-me entrar numa igreja e divisar pretos impressionantes rezando com os braços estendidos (o que se observa também em certas cidades antigas de Minas). Saía, fazia giros na cidade; muito tempo depois voltava, encontrando ainda no mesmo lugar e na mesma posição os mesmos pretos impressionantes, numa demonstração de fé viva que os distancia dos áridos habitantes do Rio ou de São Paulo a se esconderem atrás das pilastras, virando a cabeça a cada instante, para que todos fiquem sabendo que eles não são de forma alguma católicos, religiosos — estando ali apenas para cumprir um dever social, ou para acompanhar senhoras...Se o homem de outras cidades perde cada dia mais a noção do rito, o homem de Salvador a conserva. Não é só na igreja que ele pratica o rito. Pratica-o em casa, pratica-o no meio da rua também. Parece que o sincretismo religioso acompanha de perto o sincretismo racial. As filhas de santo permanecem na sua crença viva, e, se obedecem a seus orixás, obedecem igualmente a Santo Antônio. É claro que muitas vezes preferiria verificar uma consciência mais lúcida do espírito de religião como guia civilizador; há fenômenos grosseiros de mistura de tendências, que antes deveriam ser absorvidos por forças críticas superiores. Mas o que me interessa no momento registrar é a tensão religiosa em bloco, do povo- baiano, que não consegue se cristalizar em formas rígidas e secas. Deve um católico procurar interpretar o substrato religioso do baiano, e não se julgar intimamente em posição muito elevada, abrindo a porta ao farisaísmo.

A cidade de Salvador apresenta este profundo paradoxo: sendo o que há de mais genuinamente brasileiro, pela sua história, pela sua tradição, pelo caldeamento cultural e racial que ali se processou, parece ao mesmo tempo estrangeira, africana ou asiática — e, pela „yjf vivacidade de seu povo, espanhola ou italiana. Misto singular de

capacidade de trabalho e de amor à indolência, de sensualidade e inclinação

religiosa..' 0 povo da Bahia é dotado de grande simpatia humana,interessa-se pelos mitos, pela lenda, pelas tradições de generosidade e poesia — mas o que o distingue acima de tudo é o seu entranhado amor à festança, ao divertimento. Poderão me objetar que isto contradiz sua religiosidade. Não, porque ele sabe compreender a religião como fenômeno vital, como um jogo e talvez ainda como uma festança. Informaram-me mesmo que o candomblé baiano confunde cada vez mais seu aspecto religioso com o de festa. Numa época como a nossa, em que o trabalho vem sendo promovido à categoria de ídolo, parece-me de alta sabedoria essa tendência do baiano ao divertimento. Creio que na Bahia deixa de funcionar a conhecida observação marxista — que o divertimento é uma disfarce barato usado pelas classes dominantes para ocultar a miséria do povo. Na Bahia não são as classes dominantes que inventam o divertimento: ele brota espontâneo, num ímpeto irresistível, do subconsciente da coletividade que explode em diversa fases do ano. E seria superficial e mesmo farisaico afirmar que isto é uma manifestação pagã. Como se só os pagãos amassem o divertimento! Como se o jogo, a ,

festa não fossem fortes elementos de vida que se formam mesmo na parte I mais profunda e sincera da personalidade humana! _ . v )

Em conversa com um oficial de barbeiro da rua Chile, perguntei-lhe se conhecia Castro Alves. "Aquilo é que é poeta!”respondeu- me convencido."Por ocasião do centenário do nascimento dele no ano passado tivemos um mês inteiro de festa. Era baile todo o dia, banda de música e muito foguete". Confesso que ficaria triste se soubesse um dia que o povo baiano perdera esse feito de festeiro. Na verdade a mania do excesso de trabalho está conduzindo à super-lotação dos cemitérios...

Entro no antigo Terreiro de Jesus, enorme praça coberta de pesadas igrejas. Aqui perto se erguia até há dezessete anos atrás a venerável Sé da Bahia, sacrificada pelo mercantilismo e pela técnica moderna, abatida que foi para ceder lugar aos trilhos de uma linha de bondes. No dia em que começaram a derrubá-la o velho sacristão atirou-se do parapeito do Elevador Lacerda lá e:m baixo. "Esse merecia ser bispo", comenta um amigo baiano ao meu lado. Que drama patético o desse homem unido à sua velha igreja cuja importância tão bem compreende, e que de repente a vê oscilar, atacada por mãos profanas, ou melhor, sacrílegas, mãos manobrando poderosas máquinas de destruição e morte!

Percebe-se logo, entrando nesta praça, que a Bahia foi a capital de um grande império barroco. "Bahia, cette Rome noire..." 'À' talvez a melhor coisa que escreveu na vida o Sr. Paul Morand. Mas não é só entrando nas igrejas que se tem a comunicação do barroco. Notem que

\

falo do barroco não no sentido de decadência do estilo clássico, mas no seu aspecto de exuberância folhuda, de riqueza de detalhes, de ornamentação, de transbordamento... Os espaços são vastos, muitos dos prédios possuem aspecto monumental, e o povo também oferece aspectos barrocos: pois quem pode deixar de se impressionar e se comover diante dessas rainhas populares negras, caminhando com dignidade e às vezes mesmo majestade, vestida de estofos brancos— branco no preto — com um largo pano atravessado à frente em diagonal, à cabeça um turbante colorido, cobertas de colares, correntes, pulseiras, presilhas, barangandans, amuletos com símbolos da religião africana e da religião cristã, ^conduzindo em ritmo balanceado seus cestos ou seus tabuleiros de comida picante e gostosa?...

A permanência da moda baiana através dos séculos atesta o caráter forte desse povo, refiro-me evidentemente à parte negra da população. As negras cariocas americanizam-se dia a dia, e, aderindo à moda das patroas, aderindo ao processo de alisamento que destrói a beleza original do seu cabelo, perdem sua fisionomia própria que tanta graça e autenticidade lhes conferia. Mas as negras da Bahia conservam os seus hábitos e trajos pessoais que indicam uma grande tradição. £ claro que elas se movimentam em todas as ruas da cidade, mas quer me parecer que o Antigo Terreiro de Jesus é o cenário próprio para a montagem desse ( extraordinário ballet barroco permanente, que tem a vantagem de não-' precisar ser dirigido nem ensaiado, pois ali todos os figurantes são artistas naturais de uma vida de trabalho, dura vida, mas que tem sua compensação na beleza de suas evoluções e no fato de não sofrer solução de continuidade, a não ser em horas da madrugada. 0 Antigo Terreiro de Jesus é um resumo da Bahia, com a Catedral, a igreja de São Pedro dos Clérigos, a Faculdade de Medicina, a igreja de São Domingos e outros prédios ilustres, além do chafaris. É movimentado também por esse curioso comércio ambulante da Bahia. As baianas permanecem ali de plantão, oferecendo cocadas e toda espécie de bolinhos e comidas indispensáveis ao forte apetite do habitante de Salvador: parece-nos que o povo se alimenta de hora em hora. Como é difícil desgarrar-se do Antigo Terreiro de Jesus.

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IMPRESSÕES DA BAHIA

(II)

Saindo do Antigo Terreiro de Jesus entramos em ruas estreitas — dessas inúmeras ruas pitorescas e vividas da Bahia — e de repente surge aos nossos olhos esse grande centro humano, esse prodigioso celeiro de imagens e sensações que é o Largo (e Ladeira) do Pel-ourinho_. Fiquei mesmo surpreendido, pois nem os viajantes, nem os livros e artigosllera sobre a Bahia me haviam prevenido o espírito.0 Largo do Pelourinho é um dos maiores núcleos de vibração nervosa.Senão o maior. Os transeuntes não se limitam a passar correndo, segundo o costume de São Paulo, Rio ou Belo Horizonte: muitos vivem na rua, como se a rua fosse a sua própria casa. 0 Pelourinho é um conjunto arquitetônico muito representativo da Bahia, apresentando enormes sobrados azuis, ocre, verdes e vermelhos. Os estabelecimentos comerciais têm um ar antigo, não se encontrando nenhum tom o aspecto "noveau-riche". As varandas, janelas e terraços dos sobrados estão o dia inteiro povoados de pessoas que conversam, que se movimentam, cantam,gesticulam espetacularmente.A nota humana e a teatral confundem-se no mesmo plano de autenticidade:/"

^-ali o humano é teatral e o teatral é humano. Em plena rua mulheres lavam roupa, lavam cães, tratam de crianças, de passarinhos, amamentam, cozinham, discutem, rezam, vivem enfim com espantosa naturalidade. Aparentemente ninguém ali conhece nem recalques nem complexos. Os homens suam no trabalho duro; a maioria — a começar, logo se vê, pelos negros — conserva ainda um ar humilde e sofredor, mas dominado pela alegria, por essa força de simpatia que será talvez um dos traços marcantes da espiritualidade baiana. Na Bahia ainda se encontra doçura de coração. Na Bahia ainda se encontra a manifestação autêntica do caráter de um povo, a unidade formada pelos seus elementos básicos. Não descubro fórmula mais expressiva para indicar meu pensamento, do que a usada na minha conferência no Salvador: para mim na Bahia o humano superou o pitoresco, que é aliás imenso. E o Largo do Pelourinho, completado pelo Taboão, tornou-se para mim o símbolo da Bahia; são duas grandes ruas que formam um só todo, em contraposição ao bairro da burguesia média e da alta burguesia — o Campo Grande. De fato, o Pelourinho ignora o Campo Grande, e o Campo Grande ignora o Pelourinho.0 Pelourinho, entretanto, vale para mim uma cidade, vale mesmo todo um Estado. Pelo seu interesse plástico, pela sua movimentação, pela ^tradição sempre renovada de trabalho, lutas e sofrimentos, o Pelourinho^

LETRAS E ARTES, domingo, 8 maio 1949, página 5.

se reveste de uma dignidade e, digo mesmo, de uma grandeza que deve tocar particularmente a sensibilidade dos artistas. Aqui devo assinalar a minha estranheza diante do fato da Bahia ainda não ter sido pintada, j A Bahia tem sido vítima de maus pintores e de maus ilustradores. Para uns, a Bahia são as "baianas" vendedoras de cocadas, que de resto ainda não encontraram seu verdadeiro intérprete; para outros, são as fachadas ou as sacristias das igrejas. Ora, a Bahia é um conjunto de valores de pintura, escultura e arquitetura que se presta admiravelmente a uma f f

interpretação na escala do grande e mesmo do monumental. E esse conjunto serve de cenário a um grupo humano de singular fervor emotivo, afetivo ^ e religioso. Dali se poderiam extrair esculturas vivas, painéis e frescos em que seriam glorificadas a luta do povo e as festas do seu amor, as igrejas não apenas como elementos decorativos da p_a_isaqem, mas., como centros receptores de uma vasta massa humana em sua vibração negra e católica, além da fixação dos costumes e ritos populares em poemas de^ forte envergadura, em filmes inspirados na técnica de Einseinstein, em (/

17"ballets" livres com canto e transposição"^ candomblés, ainda em ^ , espetáculos mistos de teatros e cinema. Acho que na Bahia se poderia- realizar um importante trabalho de equipe de artistas. Restringindo-me por enquanto ao campo da pintura e da escultura pergunto por que homens como Portinari, Di Cavalcante, Marcier, Pancetti, Celso Antônio, Bruno Giorgi, não se decidiram ainda a fixar a Bahia em suas obras. A Bahia é profundamente inspirante; mas— perdoem-me os baianos — não encontrei a Bahia nos livros dos seus dois escritores máximos — Castro Alves e Rui Barbosa. Evidentemente o interesse total da Bahia não era ainda visível aos olhos desses seus dois mestres filhos. Encontro pedaços vivos da Bahia, um roteiro inteligente de seu passado e de muitos de seus , costumes, no guia de Afrânio Peixoto ("Breviário da Bahia", Livraria Agir 4 Editora), livro um tanto prolixo, de plano um tanto defeituoso, mas de grande interesse pela soma de informações que contém, e pelo carinho que manifesta em tudo que se refere à terra baiana. Para sentir e - \

interpretar a Bahia é necessário situar-se na própria dimensão baiana: a de transbordamento, de extroversão que não exclui de resto a gravidade, como não o exclui a própria exuberância barroca; é preciso situar-se numa

zona aberta de naturalidade, de compreensão, de afetividade, de humana religiosidade... Também nas melhores páginas do "Jubiabá" de Jorge v\ Amado encontro uma visão interessante e viva de Salvador, com algumas passagens de antologia.

Chefiado por um homem culto, portador de tradições democráticas de tolerância e finura, como é o Sr. Otávio Mangabeira^ o governo da Bahia é um governo de equipe, contando com secretário de primeira ordem, dos quais se destaca em plano nacional a figura eminente do Sr. Anísio Teixeira'^ que está realizando no setor uma importante obra

de humanização da escola. 0 espírito liberal do governo reflete-se, como não podia deixar de ser, na vida intelectual da cidade. Processa-se agora o encontro da inteligência baiana, geralmente mais inclinada ao brilho e às figurações decorativas do estilo, com as exigências mais rudes e mais sóbrias da ética literária e artística moderna. Trata-se de uma fase de reajustamento, em que são inevitáveis os entrechoques. Mas — verifica-se o mesmo fenômeno no Rio, em Minas, em São Paulo — os melhores defensores^ da verdadeira tradição brasileira são os pioneiros da arte moderna. Pintores, escritores, poetas, arquitetos. Nesse ponto, a luta não pode deixar de ser áspera. Presenciei em Salvador alguns episódios da campanha da criação de um teatro para a capital baiana — edifício vivo e funcional, que não irá servir apenas à elite do dinheiro. 0 magnífico projeto dos arquitetos Alcides Rocha Miranda e José de Souza Reis recebeu o apoio do governador Mangabeija, já tendo início a sua construção. Numa cidade como a Bahia, trabalhada pelos séculos, o levantamento de edifícios novos cria para a inteligência fascinantes problemas de adaptação. Mas são os arquitetos, engenheiros e urbanistas representantes da moderna mentalidade que vão resolvê-la — e não os renitentes defensores da linha falsamente tradicional de 1915, que estragou o corpo das nossas belas cidades.

dirigido que é, com zelo e competência, pelo prof. José Valladares^ escritor e ensaísta lúcido, singular figura de baiano inglês, que trabalha para transformar o Museu em organismo dispensador de cultura.Já não tive a mesma impressão no Museu de Arte Sacra da Catedral. Seu fundador o Cônego Odilon, é digno de aplausos, pois através de muita luta e muita fadiga em viagens pelo interior do Estado pôde reunir um importante acervo de peças, dedicando um grande carinho à sua fundação.Entretanto, não consegue dispor harmoniosamente o material nem aceita sugestões dos técnicos, pelo que seu Museu resulta um corpo sem alma.

publicando com imensos sacrifícios uma revista "Caderno da Bahia", das melhores do gênero em nosso país. À sua frente encontram-se: Cláudio^ Tuiuti Tavares, poeta de fortes possibilidades, portado de marca pessoal, simpático tipo de lutador equilibrado; Wilson Rocha, também poeta muito moço, que procura atingir uma forma concisa para exprimir seu canto espiritual, e que é uma flor de humana doçura; o novelista e contista Vasconcelos Maia; o ensaísta Motta e Silva, que carrega a Bahia no seu coração e no seu espírito; Darwin Brandão, que publicou ainda há pouco um trabalho da cozinha baiana; além de outros jovens, todos eles lutando com ardor pela transformação de uma mentalidade.

0 Museu do Estado, cujos fundos principais vieram da coleção particular Góis , encontra-se também em fase de reajustamento,

A nova geração literária trabalha com afinco e seriedade,

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Os baianos orgulham-se de mostrar sua capital, praticandoa hospitalidade segundo a boa tradição brasileira. Na penetração de Salvador somos guiados pelo já citado^láudio Tavares e por seu irmão Odorico Tavares, pernambucano que se passou com armas e bagagens para a Bahia que adora. Infelizmente parece mesmo que o poeta se acha de todo desviado pelo jornalismo, o que é pena, pois já nos havia dado algumas páginas de valor da nova poesia brasileira. Outro que parece ter abandonado as musas é o escritor Godofredo Filho, principal delegado na Bahia do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e grande conhecedor da cidade. Esses dois e o excelente Luis Ribeiro Sena, braço direito do secretário da Educação, ajudam-nos na iniciação dos ritos e mistérios baianos. Entramos na Igreja e Convento de S. Francisco, com a sua espantosa talha dourada, suas galerias e corredores de azulejos, mais a admirável igreja da Ordem Terceira de São Francisco.-J^ 1 Entramos na severa e sóbria Catedral, na Igreja da Misericórdia com seus santos vestidos à moda dos elegantes fidalgos do século XVIII, sua escadaria e terraços policromados. Visitamos o convento do Desterro, esplêndida construção do século XVII, de grande dignidade nas sua linhas que se diriam modernas; obra-prima da nossa arquitetura colonial, de requintado gosto e perfeito acabamento, muito bem conservada; convento povoado do prestígio das histórias de freiras mundanas, que levavam uma vida faustosa a ponto de provocar violenta pastoral do ilustre arcebispo Dom Sebastião Monteiro da Vide. Este escreveu a biografia da freira que remia os pecados de suas irmãs — a santa Soror Vitória da Encarnação^ Sua gloriosa sombra é a todo momento invocada pelas freiras clarissas, sendo sua humilde cela ainda hoje mostrada aos visitantes. 0 Colégio de S. Joaquim, antigo colégio dos jesuítas, é uma imensa construção, verdadeiro labirinto de salões e corredores, como de resto encontram ainda hoje muitas outras na Bahia. Visitamos ainda outros conventos, como esse, monumental, dos Frades Carmelitas, praticamente abandonado, onde, entre outras coisas, há a se admirar uma extraordinária imagem do Cristo^atado. 0 Solar dos Saldanhas, transformado em Liceu, exibe uma portada soberba, contendo ainda um salão de azulejos de riquíssima variedade. Constatamos com tristeza a degradação dos solares, de tantas casas que eram modelos de bom gosto da arquitetura e decoração, sacrificadas pela inconsciência, pelo descaso ou pelo mercantilismo dos nossos patrícios. Mais que tudo, entretanto, é a rua que nos solicita— esse intrincado de ruelas, de ladeiras, de becos em que se passam as cenas mais vivas e expressivas. É a doçura do habitante do Salvador, a beleza plástica dos negros, a tradição em movimento, são os ritosambulantes. É a grandeza da baía de Todos os Santos que positivamente emparelha com a Guanabara. É uma boa parte de humanidade ainda não

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corrompida pelo americanismo e pelo falso estilo de vida das cidades de dois milhões de habitantes. É a trama do mistério da Bahia que circula nas praças, nos cais de saveiros, nas coloridas feiras populares, nesses prodígios de vida que se chamam o Pelourinho e o Taboão. Para terminar o ciclo o poeta Cláudio leva-nos a um candomblé autêntico. Espetáculo de grande arte e dignidade, conciliando até mesmo a arte com a decência. Pretos simpáticos, finos e educadíssimos nos acolhem com sutilezas de cerimonial. Soam os atabaques em ritmo sincopado.Atentas à inspiração dos orixás, desfilam as filhas de santos, trajando vestes de esquisita invenção, que Max Ernst assinaria. Servem também a uma antiga tradição. 0 baile religioso logo evolui com gravidade. E naquele terreiro não encontro apenas a sombra da África ancestral, encontro também uma nota figurativa da Bahia de hoje. Até este momento repercute nos meus ouvidos o canto longínquo da Bahia, e sua dança desenrola-se lentamente aos meus olhos. A vida plástica da Bahia, seu fervor, seu canto negro e católico, canto de cativeiro e de libertação.A saudade machucada que me ficou da grande Bahia.

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LETRAS E ARTES, domingo, 15 maio 1949, páginas 8 e 9.

OS ARQUIVOS IMPLACÁVEIS DE JOAO CONDÉ

FLASH - Murilo Mendes

NOME: MURILO MONTEIRO MENDES.NASCEU EM 1901 (JUIZ DE FORA), MINAS.CASADO, SEM FILHOS.ALTURA, 1.83.COLARINHO NS 39.SAPATO 41; PESA 80 QUILOS.USA ÓCULOS SÓ POR CAUSA DA LUMINOSIDADE.TEM CABELOS MAS COM ENTRADA.É CATÓLICO ROMANO E RELAXADOASSISTE MISSA HABITUALMENTE ÀS 10 HORAS AOS DOMINGOS NO MOSTEIRO DE^

SÃO BENTO.NÃO SUPORTA OS VIZINHOS QUE USAM RÁDIO ALTO.SOFRE DE FOTOFOBIA, CALOR E DA FALTA DE ÁRVORES DO RIO DE JANEIRO.NÃO FUMA E NUNCA FUMOU.GOSTA MUITO DE BEBER VINHO COM EXCEÇÃO DO NACIONAL.SUA FRUTA PREDILETA: BANANA PRATA.GOSTA DE FAZER E RECEBER VISITAS.JOGOU NO BICHO, ANTIGAMENTE.É NERVOSO MAS SE CONTROLA MUITO.SEU PRATO PREDILETO: TUTU DE FEIJÃO A MINEIRA.GOSTA DE PASSAR TEMPORADAS NAS CIDADES ANTIGAS DE MINAS.É INDIFERENTE AO FUTEBOL.DORME CEDO E ACORDA CEDO.GOSTA DE ANDAR A PÉ E DE AVIÃO.NO MOMENTO ESTÁ APAIXONADO PELA IGREJA DE S. FRANCISCO DE ASSIS DE

OURO PRETO.RESPONDE CARTAS COM ATRASO, MAS RESPONDE.TOLERA TUDO, MENOS A VULGARIDADE.GOSTA DE TRÊS BICHOS: PANDA, CAVALO E BOI.CULTIVA A AMIZADE COMO UMA DAS BELAS ARTES.POETAS BRASILEIROS QUE LHE SÃO MAIS FAMILIARES: CASTRO ALVES, ALPHONSUS

DE GUIMARÃES, RAIMUNDO CORREIA. MANUEL BANDEIRA, CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, MÁRIO DE ANDRADE, JORGE DE LIMA, VINÍCIUS DE MORAES, DANTE MILANO, LEDO IVO, MARCOS KONDER REIS, JOÃO CABRAL DE MELO NETO, DANTAS MOTA E ALPHONSUS DE GUIMARÃES FILHO.

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SE PUDESSE RECOMEÇAR A VIDA, GOSTARIA DE SER ARQUITETO.SENTE-SE EXPULSO DE SUA CIDADE ADOTIVA, O RIO.TOCOU PIANO DE OUVIDO EM CRIANÇA.COLECIONA IMAGENS ANTIGAS DE SANTOS.SEUS TEÓLOGOS PREFERIDOS: SÃO PAULO E SÃO JOÃO.AJUDA A MULHER EM CASA, DEVIDO AO SEU SENSO DE ORDEM.SÓ TOMA BANHO DE CHUVEIRO E FRIO.ANTIGAMENTE ACHAVA QUE MAMÃO LHE CAUSAVA RESFRIADOS.SEU ESCRITOR PREFERIDO: STENDHAL.' _ -PINTORES BRASILEIROS DE SUA PREDILEÇÃO: PQRTINARI, PANCETTI, CÍCERO

DIAS, ISMAEL NERY, Dl CAVALCANTI, GH.IGNARD E DJANIRA.COMPOSITORES PREDILETOS: A TRINDADE UNA E INDIVISÍVEL: BACH, MOZART E

BEETHOVEN. TAMBÉM GOSTA MUITO DE HAYDN, HAENDEL, DEBUSSY, STRAWINSK E VILLA-LOBOS^_/

ESCUTA MÚSICA DIARIAMENTE DAS 9 ÀS 10 DA NOITE.ESCULTORES BRASILEIROS PREFERIDOS: ALEIJADINHO, CELSO ANTÔNIO E

BRUNO GIORGI.GOSTA TAMBÉM DE MÚSICA POPULAR, DE BLUES E SAMBAS.GOSTA DE QUALQUER CANTO, INCLUSIVE DE PREGÕES CUJO DESAPARECIMENTO

LAMENTA; GOSTA DE ESCALAS DE PIANO.SENTE CADA VEZ MAIS UNIVERSAL E MINEIRO.DOS SEUS LIVROS PUBLICADOS PREFERE SEMPRE 0 ÚLTIMO.SÓ ESCREVE A MÃO E MUITO RAPIDAMENTE.LEITURAS PREDILETAS: LIVROS DE RELIGIÃO, POESIA E JORNAIS.ROMANCISTAS BRASILEIROS QUE LHE SÃO MAIS FAMILIARES: MACHADO DE ASSIS,

•CORNÉLIO PENA, LÚCIO CARDOSO E OCTÁVIO DE FARIA.DÁ NOME A SUAS GRAVATAS E VITROLAS.SANTOS DE SUA DEVOÇÃO: S. FRANCISCO DE ASSIS, SANTA CATARINA DE SIENA.É AMIGO PESSOAL DE MOZART, STENDHAL , WILLIAM BLAKE, EL GRECO E 0

ALEIJADINHO.CONSIDERA A DANÇA UMA DAS SUPREMAS EXPRESSÕES RELIGIOSAS.TEM MEDO DE MORRER.É SÓCIO FUNDADOR DA SOCIEDADE DOS 3 REIS MAGOS.COLOCA A POESIA MUITO ACIMA DA POLÍTICA.É INIMIGO PESSOAL DE HITLER E DE OUTROS PALHAÇOS PARECIDOS.SEU PASSEIO PREDILETO: LIVRARIAS, CASAS DE MÚSICA E ANTIQUÁRIOS. PUBLICOU SEU PRIMEIRO POEMA COM 24 ANOS DE IDADE.ACHA QUE 0 BRASIL PERDEU 0 SENTIDO DA BANANA, VENDO MESMO NISSO UM

DOS INDÍCIOS DE SUA DECADÊNCIA.LAMENTA SER 0 ANTI-TÉCNICO POR EXCELÊNCIA.SONHA COM A CRIAÇÃO DO ESTADO MUNDIAL COOPERATIVO.GOSTARIA DE ESCREVER AO MENOS UM POEMA HERMÉTICO.ACREDITA EM ALMAS DE OUTRO MUNDO, VIU CERTA VEZ MOZART ESTENDIDO NO

CHÃO DO SEU QUARTO AS 16 HORAS, VESTIDO COM FRAQUE AZUL.

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FOI UM GRANDE CARNAVALESCO, NÃO SE CONFORMA COM A LIQUIDAÇÃO DO CARNAVAL.

FOI 0 ÚNICO BRASILEIRO A VAIAR EXPOSIÇÕES DE QUADROS RUINS NAS ALTURAS DE 1923.

MORRERA QUANDO DEUS QUISER.

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DOIS POEMAS DE CARMINHA GOUTHIER

Carminha Gouthier não é uma desconhecida no cenário das letras, pois colabora há alguns anos em "0 Diário", jornal de vasta circulação no Estado de Minas. Há muito que insisto com ela para enviar poesias aos jornais do Rio. Alguns dos maiores poetas do Brasil admiram-na e mantêm com ela correspondência. Entre outros, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima. É amiga fraternal de Alphonsus de Guimarães Filho e de Oscar Mendes. Mas a mineira tímida, resiste.

Usando dos privilégios de uma amizade que muito me honraapoderei-me de dois de seus últimos poemas e, com a oportuna

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cumplicidade de Jorge Lacerda, trouxe-os para estas colunas.A inspiração de Carminha Gouthier é evidentemente d e_^

fonte religiosa. Ela consegue o milagre de, em tão acidentado terreno, / nao cair no ridículo, combinar abstração com humanidade, e , sendo rigorosamente feminina, eliminar os toques de sentimentalismo tão familiares à poesia dita religiosa, e composta por mulheres. É que, em vez de mergulhar nos sub-produtos da malsinada "literatura" católica dos livros "piedosos" e sentimentais, Carminha Gouthier nutre-se da fonte ^

pura da Bíblia. É uma freqüentadora assídua do livro de Jó, dos Salmos, do Novo Testamento. Quanto a sua experiência literária, suas preferências inclinam-na para os poetas modernos, muitos dos quais estudou a fundo. Prefere tentar os versos extensos, em metro livre, mas conservando sempre uma medida de gosto e uma atenção às leis fundamentais de ritmo eequilíbrio. *

Isolada no severo ambiente das montanhas de Manana, a autora do já terminado "Canto do Peregrino" trabalha seus poemas com apuro, sem pressa de reuni-los em livro. Ausente das capelas literárias, realiza uma vida de meditação e aprofundamento interior, que é dada a poucos no Brasil moderno. A cidade dos prelados ilustres, a cidade onde o grande Alphonsus viveu longos anos de sua vida e onde repousa no alto da colina permite que Carminha Gouthier se desvie do efêmero, captando em versos de grande ressonância a parte essencial da nossa vida de espírito.

LETRAS E ARTES, domingo, 17 jul. 1949, página 11.

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LETRAS E ARTES, domingo, 7 ago. 1949, página 5.

CAMÚS

0 valor principal da pessoa e da obra de Albert Camús reside, a meu ver, no fato de ele ser uma testemunha extremamente sensível do drama da nossa época, mas uma testemunha que pensa e age por conta própria, não se resignando em ser o agente de nenhum partido nem de nenhuma seita. — Um filósofo deixa seu gabinete de estudos, sai para a rua, organiza movimentos clandestinos de resistência e empunha a metralhadora. Fato de imensas conseqüências para a história intelectual do mundo. Camús deseja, e o consegue, viver e transmitir sua forte expriência; e, embora ainda não tenha atingido os quarenta anos, seu espírito já se acha maduro e nutrido de duas fontes essenciais, a do contato com a áspera vida de lutas, e com a mais antiga cultura do Ocidente. 0 autor de "Le Mythe de Sisyphe" tinha inúmeros motivos para desesperar; e embora haja penetrado a fundo a filosofia do desespero, nega-se a descrer do homem e de suas possibilidades de libertação, apesar da inconsciência das coletividades. Num homem que não possui a fé religiosa, que compreende como poucos o estado de absurdo, que também não acredita nos ídolos da ciência e do progresso, que se ri dos paraísos oferecidos pela propaganda dos partidos políticos, esse amor à vida, essa obstinação em perseguir a idéia da felicidade assume aspectos comoventes. 0 espetáculo do mundo atual é montado para desnortear os mais otimistas; mas Camús acredita na força espiritual do homem, na sua força interior capaz de refazer perpetuamente um caminho habitado pelos fantasmas do absurdo, pelo terror, pela inelutável necessidade.

Um segredo se oculta nesse mundo absurdo. A homenagem a Empedocles — que dá o título a revista que Camus e o grande René Char fundaram agora — mostra que os dois amigos se debruçam sobre um mundo velado, já que os discípulos de Empedocles de Agrigento levantaram-lhe uma estima velada,indicando assim que nem mesmo sua filosofia de dispersão dos seres explicará em última análise a criação do mundo pelo acaso.

Parece que cada homem consciente do enigma do universo devia trazer sua contribuição para decifrá-lo, e nisso residiria mesmo o sentido da vida.

Na nossa época tal posição é prejudicada pela tirania política e particularmente pela tirania totalitária; a política esmaga o desenvolvimento do homem como personalidade própria. 0 homem é perseguido pelo Estado onipotente e acuado mesmo nos caminhos mais íntimos da sua

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consciência, é triturado e finalmente esmagado. Usam-se todas as táticas de destruição, desde as mais grosseiras até as mais sutis e refinadas, inventam-se as mais complicadas maneiras de matar, inclusive cortando qualquer espécie de relação e de comunicação, existindo mesmo em certos pontos da terra campos de concentração onde o silêncio é utilizado como forma de esgotamento. Num mundo assim constituído do absurdo deixa de ser excepcional, como se revelou em épocas menos desenvolvidas da técnica, e passa a ser a lei comum, o normal, o cotidiano. Esses aspectos trágicos da vida atual são fortemente acentuados na recente peça "L'Etat de Siege".

Se é verdade que Kierkegaard, Dostoievski, Unamuno e Kafka apresentam à nossa época o espelho do absurdo e penetram no paradoxo da condição do homem comprimido pelas forças econômicas e políticas no seu desejo de realizar uma harmonia entre o interior e o exterior, não é menos verdade que os Enciclopedistas assinalam também, embora com outras palavras, a situação de absurdo. Poderíamos evidentemente remontar muito mais longe notando por exemplo a descoberta do tipo de Job por Kierkegaard, que o sobrepõe a Sócrates. Mas é talvez a Voltaire que Camus se liga diretamente, pois existirá um panfleto mais forte contra o massacre, do que "Candide"? Se Diderot declarou que o fim do homem não é a salvação, mas a felicidade (de resto a religião afirma que o fim do homem é a beatitude), Candide lhe responde no mesmo registro, pois a sua resolução de cultivar um jardim é uma transposição moderna da idéia do Paraíso Perdido. Pode-se também anotar a vizinhança de Chamfort. Parece que a crítica aproximou Camus ainda mais de Kafka; insisto entretanto que ele me surge antes como um membro da grande família dos moralistas franceses. Camus, apresentando seu depoimento de testemunha consciente e indignada da violência e do terror, vasa-o num estilo que despreza o empolado e o patético, atingindo mesmo extrema concisão que por vezes tangencia o rigor científico. Nada mais elucidativo da sobriedade dessa arte do que o inimitável capítulo primeiro de "L'Etranger", curta e cerrada obra- prima que dá logo de início a sensação do clássico, do já polido pelo tempo, do vivido e encarnado na autenticidade.

Nesta mesma linha, "La Peste", o livro inteiro, do princípio ao fim. Será talvez Camus, como Stendhal, um assíduo leitor do Código Civil.

Camus é o delegado de uma minoria anônima, de uma minoria que entretanto cresce dia a dia, a dos homens que recusam servir ao totalitarismo sob todas as suas formas. A posição de Camus é particular­mente difícil, pois que numa sociedade cuja grande palavra de ordem é "politizai-vos", como a da sociedade de Luiz Felipe fora "enriquecei-vos", recusar-se à estatolatria é uma loucura. 0 Estado moderno não permite ao

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artista contrariar suas leis. Não admite interposição, nem das forças da natureza, nem das forças do amor. Trata os homens como símbolos abstratos. Por conseguinte, a posição do verdadeiro artista só pode ser heróica. Esclarecendo o público sobre a falsidade de muitos políticos e a necessidade de todos escritores conservarem sua dignidade e altivez, arrisca-se a passar por artificial, reacionário, etc. Não importa. Sua tarefa só poderá ser levada a cabo num plano de independência e de bravura. Camus é contra a hipertrofia política seja da esquerda, da direita ou do centro. É contra a guerra, contra o fascismo, contra a absorção do homem pelo Estado, contra o heroísmo por procuração, contra a multiplicação dos sinais abstratos pela propaganda política, contra a violência dirigida, contra a substituição do amor pela moral. É pelo desenvolvimento de todos os valores positivos do homem, num clima de compreensão e fraternidade. '

É pelo auxílio mútuo num plano de resistência internacional. É pela paz, mas não pela paz convencional pregada pelos governos das nações que se armam até os dentes. Não deverá se falar em paz enquanto houver campos de concentração, afirma Camus. Afirma também que o escritor jamais poderá ser solitário, pois tem a defender o direito à solidão de cada um. ^

Aos que objetam que essas idéias não se apoiam em nenhuma organização, Camus certamente poderá responder que em grande parte a \

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mania de organização é que está levando a sociedade ao desequilíbrio atual. Ele não pretende fundar um partido, mas um movimento. Repito que o número dos homens descrentes das experiências políticas aumenta a todo o instante. É fato que nenhum movimento poderá substituir sem um mínimo de organização. Compete aos seus inspiradores agir com sabedoria, cortando toda a tentativa de dirigismo, de gigantismo, de planificação. Mesmo em vastos movimentos religiosos como o cristianismo,— sobretudo o oriental — pode se observar uma dose muito forte de vida por intuição, de disciplina, de improvisação, até mesmo de anarquia. Certas idéias caras a Camus ligam-se também — é fácil constatar — a Tolstoi, e, no final das contas, ao Sermão da Montanha, a toda a longa linha libertária, clássica ou romântica. Direis que a técnica proselitista dos maiores ^ líderes cristãos é ingênua? Vive então nesse caso a ingenuidade, muito superior à técnica dos sabidos, dos realistas, que outra coisa não têm feito se^jião multiplicar os cemitérios.

Camus é humanista, um pensador, um moralista, um dramaturgo, um novelista: e todos esses múltiplos aspectos da sua personalidade oferecem igual interesse. 0 homem para nós corresponde ao escritor: franco,leal, situado numa linha de generosidade que se vai tornando rara, sensível à amizade, sincronizando sua vasta cultura clássica dos fatos e vibrações do momento presente. Ele trabalha pela reposição dos valores

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humanos de permanência, pelo predomínio da natureza sobre a política, pelo atendimento dos homens em escala internacional. É certo que a França renova sempre sua equipe de grandes escritores ;é certo que Albert Camus se inscreve entre os mais importantes deles.

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LETRAS E ARTES, domingo, 11 set. 1949, página 6.

MARIA LÉA DE OLIVEIRA

Maria Léa de Oliveira apresenta sinais manifestos de uma vocação de escritora. Escreve em tom baixo, que dizer, sem eloquência e sem figurações retóricas. Pertence a essa corrente literária que poderia ter como padroeira, Katherine Mansfield. Mas nem sei se ela leu Katherine Mansfield. É possível que não.^O vasto livro da vida está aberto a todos; todos bebem na mesma fonte sensações e idéias. Maria Léa parece-me uma fina observadora, de um pessimismo discreto e com uma ponta de "humour" — qualidades em geral encontradas nos mineiros. Acontece que a nossa escritora é de fato mineira.Acontece também que ela estréia agora nas letras; entretanto, penso que não deve ser incluída a rigor entre os principiantes. Trata-se de alguém que já penetrou a trama da tristeza humana, do vazio da vida — o que pressupõe uma certa sabedoria. A qualidade literária parece-me de bom teor — embora o tom em monólogo ofereça evidentes perigos.

Durante minha última visita a Belo Horizonte, tomei conhecimento de algumas páginas recentes de Maria Léa. Publico hoje uma delas em "Letras e Artes": os leitores na certa me agradecerão.

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SÃO PAULO 1949

São Paulo e Rio: duas cidades irmãs, unidas por uma hora de avião. Graças a Deus a antiga rivalidade tende a desaparecer dia a dia. São Paulo não é mais uma cidade fechada, como dizem que foi em outros tempos. É uma cidade fervilhante de vida e de curiosidade que deseja o convívio com o forasteiro e o acolhe sem espírito de bairrismo ou de regionalismo. Um ilustre escritor paulista registava há dias o fato de São Paulo estar crescendo rapidamente como centro de cultura, e perguntava se essa febre de conhecimento seria artificial, ou se corresponderia de fato a um movimento de estrutura. A verdade é que o Brasil, apesar de tudo, sofre uma vasta transformação de que São Paulo é um espelho poderoso, talvez mais poderoso ainda do que o Rio. É fato que a topografia da cidade presta-se a uma localização mais prática das entidades culturais. São Paulo possui hoje intensa vida universitária, intensa vida operária, com milhares de pessoas chamadas a elevação do seu nível cultural; está se tornando um centro importante de artes plásticas, centro de um movimento sério de poesia e literatura: e sua imprensa é a mais bem apresentada e a mais bem organizada do país. Há ainda corais e orfeões, grupos muito promissores de teatro, conferências diárias, exposições, bibliotecas excelentes, parques infantis, e outras coisas mais. Um cético poderá sorrir de toda essa movimentação e concluir que a mesma não conduzirá a resultado algum. Teimo entretanto em pensar que isso conduzirá a um resultado positivo. Porque São Paulo chegou a um ponto de excitação intelectual que não poderá deixar de ser fecundo. Um economista ou um sociólogo explicariam friamente o fenômeno pelo fato da concentração das fortunas, de uma fórmula de escape ou de defesa do capitalismo, etc. Confesso que isto pouco me interessa agora. 0 que me interessa é observar essa atmosfera de pesquisa intelectual, de debate, de curiosidade: e mergulhar, embora por poucos dias, nessa atmosfera de que não poderá deixar de emergir a criação. Entendo que São Paulo, como grande centro de vibração humana que é, vai realizar algo de forte e belo que viverá. Porque os elementos que constituem a trama intelectual de São Paulo apresentam densidade e variedade, propício à manifestação de uma atmosfera "moderna" em arte, em literatura, na vida do pensamento. Ou eu muito me engano, ou São Paulo se prepara para elaborar uma síntese vasta, em que a nota do humano e a do social, o social dado pela vibração do

LETRAS E ARTES, domingo, 2 out. 1949, página 7.

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trabalho, alcançarão registros de violento dinamismo. Debaixo das camadas de elaboração espiritual evidente nota-se um rumor mudo que se tornará em breve formidável, um rumor de imensa matriz de idéias e sensações, de que poderá resultar um novo estilo de vida. A própria concentração do capitalismo talvez conduza a isto. Em S. Paulo as possibilidades de modernidade parecem-me maiores do que no resto do país. Além disto, em São Paulo existe mais acentuada do que no Rio, o que eu chamarei a vontade de encontro. Em São Paulo as pessoas se encontram, no Rio se desencontram. Também a força emocional e passional, parece-me que tem atingido em São Paulo, alturas insuspeitadas: é prova disto o espantoso crime do poço, ocorrido no ano passado no coração da cidade. É provável que a contribuição do elemento italiano seja decisiva nesse caso. 0 fato é que São Paulo apresenta uma coloração humana muito rica. Romancistas e dramaturgos,a postos! A cidade se desenrola a nossos olhos como um vasto acampamento irregular; depois surgem os arranha-céus, o centro comercial, a população em que se nota muito o cruzamento do sangue estrangeiro; depois, ao lado da construção poderosa, surge o pequeno botequim, a "Pizzaria", a cervejaria, o café, o canto pitoresco, lugares próprios ao bate-papo, lugares que estão desaparecendo do Rio, de onde se espulsam os últimos "enfants du Paradis". Observa-se em geral uma preocupação do conforto moderno conciliando-se com o ambiente de boêmia das gerações anteriores. Mas, sobretuto sente-se dia a dia a cidade crescendo e estendendo seu raio de ação. Viajando de automóvel a vários quilômetros do centro urbano, na estrada para Campinas, observamos cenas de cidade, cidade que se desdobra e multiplica suas antenas. Já muito longe sentimos ainda a palpitação insistente do grande felino de pedra e ferro...

São Paulo em pouco tempo criou dois museus que, embora não estejam completamente organizados, já funcionam como núcleos importantes de vida cultural. 0 Museu de Arte e o Museu de Arte Moderna crescem em prédios contíguos como bons vizinhos, e suas atividades se interpenetram. Sente-se em ambos a presença de animadores, a presença do bom gosto, o desejo de acertar e de servir. Entre as peças notáveis expostas no Museu de Arte sob a ativa direção de Bardi,há que assinalar o maravilhoso retrato de Madame Cézanne, uma obra-prima de submissão ao modelo, uma lição da humildade de Cézanne, o apagamento da personalidade diante de uma força maior: a vida própria da pintura. Há muitas outras telas de primeira ordem, bastando lembrar o retrato de Rembrandt da barba nascente e a Mulher azul, de Picasso, um grande Renoir, etc... Mas é o retrato de Madame Cézanne que nos aparece como uma vitória particular da construção dentro da simplicidade. Só essa tela penso que vale uma

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visita a São Paulo. 0 Museu apresenta ainda uma seção didática em início, mas que, crescendo dia a dia, poderá se tornar um elemento precioso de elucidação cultural para o grande público. É esta a solução inteligente: começar a educar o povo por meio de gráficos, demonstrações de paralelismos das diversas escolas, com projeções, palestras, etc... Mostrando sempre o que é bom e melhor. Nada de descer a té o povo, apresentando o péssimo. 0 Museu de Arte indica que ali se compreende a função do museu moderno: este deve se tornar um instrumento de comunicação entre homens, uma ciência humanística e não um depósito estático e frio de pinturas e esculturas.

Quanto ao Museu de Arte Moderna, possui já um acervo importante, tendo se tornado também um centro vivo de debate e esclarecimento dos problemas relacionados com as atuais teorias estéticas. Acolhe generosamente figurativistas e abstracionistas. Possui de resto esplêndidas telas de abstracionistas. Entre estes poderei citar Alberto Magnelli (Itália, 1888), pintor forte, variado, violento, inventivo; abstracionistas mais' moderados, saídos todos da lição do cubismo, como os franceses Jean Bazalne, Charles Lapicque, Jean Le Moal, Alfred Manessier, nascidos respectivamente em 1904, 1898, 1909, 1911. (De Manessier podem ser vistos alguns desenhos na atual exposição de livros e gravuras do Museu de Arte Moderna no Rio). Esses pintores distinguem- se todos pela preocupação construtiva, pela divisão racional dos planos, mas ao mesmo tempo são sensíveis aos jogos de luz, as cores vivas em que predominam os amarelos, os azuis e os vermelhos. Realizam um enxerto novo do impressionismo que modera muito seu rigor de origem cubista.

^ Em Manessier é digna de nota e interpretação moderníssima de temas ^religiosos, de inspiração católica. Convém notar que a etiqueta "abstrata", devido aos rumos diversos que tomou a arte moderna, comporta uma elasticidade muito grande — e às vezes temos que usá-la como simples critério de referência. 0 Museu apresenta ainda uma notável coleção de pintura italiana moderna, com seus representantes máximos:De Chirico, Campigli, Carrá, Sironi, De Pisis, e sobretudo o admirável Morandi. Este atingiu a uma simplicidade e pureza a que só posso achar correspondente no registo clássico da música: Scarlatti.E inúmeros outros mais.

Temos muito que esperar do novo diretor, Lourival Gomes Machado, crítico ilustre, lutador dos bons tempos de "Clima", o qual faz do Museu uma casa viva e hospitaleira. 0 Museu de Arte Moderna testemunha a evolução do capitalismo em terras de São Paulo: o Sr. Francisco Matarazzo Sobrinho tornou-se um animador simpático e compreensivo, que deu um forte impulso ao movimento de museus. Muitos duvidavam que ele continue seu esforço. Vamos torcer entretanto para que não desanime, pois é óbvio que um país como o Brasil não pode prescindir da colaboração da iniciativa privada.

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Os jovens poetas de São Paulo realizam um movimento destinado a marcar, em futuro próximo, pontos altos, na vida cultural do Brasil.Reúnem-se no Clube de Poesia, mantêm uma ótima publicação, a "Revista Brasileira de Poesia", e trabalham seriamente, "estudam" poesia. Estudam a linguagem, estudam o fenômeno poético, organizam conferências e debates. 0 animador do Grupo,o poeta Cassiano Ricardo, vê-se cercado do respeito e da amizade de todos. Apaixonou-se pelo movimento ao qual dedica um nobre e generoso esforço. A última conferência do Clube foi dada pelo líder da nova geração, o poeta Ledo Ivo, que disse coisas lúcidas e corajosas sobre a tarefa histórica que compete à chamada turma de 45. A conferência, ao que soube, foi aparteada fortemente, inclusive por Oswald de Andrade, que de resto com os seus esplêndidos 60 anos dá prova de invejável vitalidade. Oswald de fato é mocíssimo, está a par de todos os assuntos e problemas modernos, interessa-se profundamente pelos jovens, enfim continua um grande az— um homem ao meu ver muito útil a este melancólico Brasil que está mesmo a pedir uma ressurreição do espírito "frondeur". Acha-se mais em forma e mais acordado de que certos moços murchos e desanimados que há por aí. 0 grupo de jovens poetas paulistas sofreu agora um rude golpe com a morte prematura de Paulo Sérgio, que aos 19 anos revelava uma sensibilidade e inteligência raras no quadro recente da literatura brasileira. Não o conheci pessoalmentemas sua figura inspira-me profunda simpatia póstuma, pelo que lhe deixo aqui esta singela homenagem.

Haveria ainda muita coisa a registrar, mas o espaço vai se acabando. Antes de terminar, assinalo a fecunda atividade do Departamento Municipal da Cultura, dirigido pelo conhecido editor Martins, (x) que está convidando grandes nomes da literatura brasileira para cursos e conferências. As últimas lições foram dadas por Manuel Bandeira, Augusto Meyer e Alceu Amoroso Lima. Como vêem, as relações culturais e afetivas entre a capital paulista e a carioca se estreitam cada vez mais, o que vem reforçar minha declaração inicial sobre São Paulo e Rio, duas cidades irmãs, unidas por uma hora de avião.

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AS ARTES NA BAHIA

Quem vai à Bahia uma vez fatalmente terá que voltar. Só mesmo se for de todo impossível. A atmosfera especial da Bahia exige um estudo e reconsideração dos grandes valores acumulados em quatro séculos naquela terra privilegiada. A volta a uma cidade implica sempre um problema, a perspectiva de uma decepção, de uma diminuição da imagem recebida de surpresa na primeira visita. Comigo entretanto não sucedeu tal. Lamento apenas que a visita tenha sido tão rápida embora valendo para o restabelecimento de um contacto que permanece mágico no meu espírito. Lá estão as nossas raízes, lá está o. fundamento de tantas sensações primitivas que a África ancestral apresentou ao português.Lá está o entrelaçamento às vezes perigoso mas às vezes sedutor de uma religião semi-bárbara com outra evoluída, adiantadíssima. Lá se nota uma extraordinária vibração nos bairros populares. Lá distinguimos em muitos cantos os marcos de uma tradição de arquitetura e de escultura em que se exprime um barroco misturando religiosidade com sensualidade, de que a igreja de São Francisco, esse vasto teatro de ouro e azulejos, é o documento máximo. E a tradição dos santeiros que viria se irradiar pelo Brasil todo, até se interromper um dia, dia fatal para nossa arte religiosa. E da Bahia vem ainda essa comida prodigiosa, que só poderemos entretanto conhecer em casas particulares (v. g. na do poeta Godofredo Filho), e que é positivamente, sem "blague", uma grande invenção da cultura humana. Não se esqueça ainda o candomblé que, malgrado a intolerância de muitos, constitui um maravilhoso espetáculo de arte.

Mas a Bahia não se cristaliza numa tradição incapaz de se renovar. A Bahia procura novas tradições que continuem a antiga de acordo com as necessidades atuais da técnica e da civilização. A Bahia deseja e promove intenso intercâmbio cultural com os Estados, convidando escritores, artistas e cientistas para cursos e conferências. Levanta um vasto e moderno teatro, que será dos mais importantes da América, ultrapassando o nível das construções comuns d.o gênero, pois incluirá um grande "hall" para exposições de pintura e um parque infantil. Essas e outras inovações acompanham evidentemente de perto a reforma da educação promovida por um dos homens mais lúcidos deste país, o Sr. Anísio Teixeira. E, para coroar esta série de significativas realizações, a Bahia resolveu promover este ano o Primeiro Salão Baiano de Belas Artes, Salão Nacional a que concorreram quase todos os pintores,

LETRAS E ARTES, ' domingo, 4 dez. 1949, página 7.

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desenhistas e gravadores que contam no Brasil, tendo havido ainda uma pequena mostra de escultura e arquitetura.

0 Salão, que se inaugurou a 12 de novembro, foi instalado no "hall" do novo Hotel da Bahia, projetado pelo melhor arquiteto da nova geração baiana, Diogenes Rebouças. Fiquem sabendo os pintores e escultores do Brasil que dispõem em Salvador de um local de primeira ordem para exibição de suas obras. Um enorme salão, simples e bem lançado, com iluminação de cada quadro em seus efeitos próprios. Os quadros são montados em painéis de elegante e sóbrio recorte. A impressão geral era muito boa, se excetuarmos apenas duas intensas, duas horríveis telas remetidas por acadêmicos, verdadeiras monstruosidades. £ de aconselhar que nos futuros salões a comissão organizadora limite as dimensões dos quadros, cortando as asas ao mau gosto de certos pintores sem nenhum senso do equilíbrio... Estabeleceu-se o critério das duas divisões, a geral e a moderna, critérios a meu ver que deveria ser sempre observados em tais certames, em que pese á opinião em contrário do meu querido

v Aamigo Rodrigo M. F. de Andrade. Penso que as grandes exposições de arte \ deveriam seguir o critério das tendências. No Salão Baiano os quadros dos conservadores foram pendurados nas paredes à esquerda, e os dos pintores modernos, à direita. Não havia conflito. Era uma espécie de demonstração didática que pouco a pouco fazia seu trabalho de convencer os espíritos / prevenidos.

A mostra comportava nada mais nada menos que: Portinari, Pancetti, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Marcier, Djanira, Guignard,Noemia, Burle Marx, Volpi, Bonadei, Flávio de Carvalho, Clovis Graciano — só para falar dos pintores mais em evidência no momento. A secção de desenho e gravura incluía ainda os nomes de Osvaldo Goeldi, Cícero Dias, Carlos Ledo, Santa Rosa, Scliar,Iberê Camargo, Carlos Thire, Poty e muitos outros mais. Entre os novos destacam-se Inimá de Paula, Heloísa Faria, Yone Saldanha, Milton Dacosta, etc. Como . vêem , a lista é impressionante, o salão poderia ter sido realizado com vantagem no Rio ou em São Paulo. Deresto os baianos lavraram um tento, com a apresentação de uma tela excelente de Anita Malfatti. Essa ilustre precursora da pintura moderna do Brasil tem pintado pouco, e para se ver algum de seus quadros era preciso ir em São Paulo à casa de Mário de Andrade. Aqui no Rio há muitos anos que não via nenhum quadro seu. Pois bem, o milagre de ser ao mesmo tempo construtivo e decorativo no grande sentido do vocábulo: "Mulher no balão" . De resto, os paulistas fizeram- se representar muito bem. Foi notada entretanto e com que pesar de todos — a ausência de Lasar Segall e de Tarsila . Esta, segundo me informou o escritor Luis Martins, desejava muito figurar no Salão, mas está praticamente sem quadros em casa. Foi pena.

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Portinari mandou uma das telas mais impressionantes da sua última fase, pintada à maneira larga que a caracteriza. "Homem com mão no rosto". Além desta, via-se o retrato da menina Leda Tavares e "As Lavadeiras", um dos bons quadros da marcante fase de 1934-1939.

Pancetti — um dos maiores pintores que o Brasil deu em todos os tempos — mandou uma dessas telas em que se encontram o poder plástico e o poético mais o senso da natureza — "Rio São João". Além disto, um auto-retrato e uma de suas mais trabalhadas "Menina de Morro", documento de forte humanidade. Di Cavalcanti figurava com duas telas em que se acentuam os grandes progressos dos últimos anos — "Carnaval" e "Interior", reveladoras do mistério plástico. Noemia, com uma de suas encantadoras composições de moças, que, aparentemente ligeiras, denunciam um trabalho intenso, de japonesa minúcia. Marcier atestava de novo o fato prodigioso: a atmosfera das antigas cidades mineiras foi persuasivamente interpretada pela primeira vez por um estrangeiro. Essa "Vista de São João Del Rei",cortada de maneira forte e violenta, revela como sempre o espírito fantasmagórico do pintor, que ao mesmo tempo que que persegue com fúria o segredo plástico, humilha-se diante do sentido humano e religioso da Minas colonial. Eis um pintor que cresce dia a dia, que trabalha obstinadamente como um medieval, e do qual se terá muito que falar hoje e amanhã.

Noto ainda: o forte retrato de José Lins do Rego por Flávio de Carvalho, peça considerável, tempestade de forma e cor, digna de um "fauve"; uma tela bem equilibrada de Quirino da Silva, paisagem construída na linha de Cézane, excelentemente resolvida; um "Tinhorão" de Bonadei, pintor de evolução segura e consciente, que se encaminha para o abstrato dentro de um espírito de bom gosto e sabedoria plástica.E muitos outros mais.

Entre os novos sobressaiam Inimá de Paula, com uma de suas fortes telas de Laranjeiras que justamente mereceu o segundo prêmio— Cr$ 10.000,00; os baianos Carlos Frederico Bastos e Genaro de Carvalho, muito moços ainda, mas reveladores de talento positivo; as cariocas Heloísa de Faria e Yone Saldanha, com as suas interpretações poéticas e refinadas de bairros populares da Bahia.

0 primeiro prêmio foi atribuído a um quadro a nosso ver bastante fraco: "Portas" de Lothar Charoux, de São Paulo. Apesar das y. qualidades manifestadas, a tela evidentemente não suportava o peso do primeiro prêmio.

A secção de escultura apresentava obras do jovem artista Mario Cravo Junior, destacando-se em pedra sabão. Ele possui o senso do material e trabalha de verdade e,libertando-se em breve da influência de seu professor Mestrovic, poderá dar ao Brasil grandes coisas.

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A divisão conservadora mantinha relações de boa vizinhança com a divisão moderna. Notava-se um dos famosos interiores de igreja, de Presciliano Silva; um retrato de Senhora, de Alberto Valença, trabalhado com vigor e segurança acertado (primeiro prêmio da Divisão Geral). Estes dois representavam a Bahia moderada no que tem de melhor e mais significativo. Havia ainda telas de valor, de Manuel Haydes Santiago, além de outros.

0 Governador Mangabeira, o Secretário da Educação, o diretor do Museu do Estado, prof. José Valladares, o chefe baiano do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Godogredo Filho, o arquiteto Rebouças, o pintor Presciliano e outros desdobraram-se em zelo e cuidado para a boa apresentação dos trabalhos. A sociedade em peso compareceu à inauguração, misturando-se a inúmeras pessoas do povo. Estavam presentes os pintores Bonadei e Caribé (este vindo da Argentina) e o crítico Luís Martins. Muitos conhecidos pintores, escritores e críticos de arte foram carinhosamente convidados, mas não puderam comparecer. A atmosfera do Salão era muito cordial, agradável. Uma bela festa de arte. Em meio à alegria geral, o meu amigo poeta Odôrico Tavares, grande amador de pintura, gesticulava como um meridional, justamente decepcionado ante a sentença outorgada pelo júri ao primeiro prêmio. Para fazer a penosa impressão dirigi-me à Igreja de São Francisco e ali me despedi da Bahia, com a secreta angústia e o medo de nunca mais a rever.

LIVIO ABRAMO

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LETRAS E ftRTES, domingo, 29 abr. 1951, página 1 e 10

Não direi ao artista Livio Abramo, como no verso famoso, que é "belo, áspero, intratável". Mas algo de áspero transparece, não só nos seus desenhos como na sua própria pessoa. Um áspero que vai bem a uns e à outra. De resto, que vida áspera a deste homem, dotado de invulgares qualidades de desenhista e gravador, mas que não encontra no Brasil desogarnizado e insensato dos nossos dias um quadro para aplicá- las! Que sociedade é esta, que força um Livio Abramo a trabalhos secundários para não morrer de fome, que o forçe a paginar jornais, a fazer ilustrações muito aquém de sua capacidade e do seu mérito... Um homem assim poderia deixar de ser um bicho de conta, um quase misantropo? Mas, não nos iludamos: - essa aspereza é um disfarce de uma ampla ternura humana que por delicadeza não se expande. Essa aspereza é um sinal de força e de virilidade. Força e virilidade que conduziram o homem e o artista Livio Abramo à luta pela melhoria das condições de vida dos trabalhadores fazendo dele um militante socialista. Entretanto um maravilhoso instinto afastou-o da engrenagem da propaganda intensiva usada pelos poderes totalitários na sua obra diabólica de deformação das nossas virtudes libertárias. De fato, Livio Abramo colocou sua grande arte a serviço da sua dominação pela organização política. Sua carreira inscreve-se, portanto,sob o signo de consciência moderno: esta aprende e e registra o jogo dialético das forças que envolvem o homem desde o começo do tempo para sublimá-lo ou para aniquilá-lo. Assim Livio Abramo respira a densa atmosfera própria da nossa época.

Como o artista, além de arredio, morava em São Paulo, eu só conhecia de sua obra pequenos fragmentos. Uma tarde destas, entretanto, esperando o costumeiro temporal tive a sorte de encontrar Livio Abramo de muito bom humor. Levou-me até a sala onde se achava empilhados centenas de desenhos, gravuras e croquis prontos para serem encaixotados, pois finalmente depois de tanto tempo alguém acordou e o nosso artista, vencidas as incríveis dificuldades burocráticas, deverá seguir breve para a Europa, já que lhe concederam o prêmio de gravura do Salão de Belas Artes de 1950. Só esta medida justificaria a existência do Salão.

0 acervo que me foi dado ver é impressionante. Trata-se de uma realização de grande importância no campo das artes plásticas do Brasil.

Livio Abramo começou a gravar em madeira no ano de 1927. Foi o mestre Oswaldo Goeldi quem o inspirou, quem lhe deu a noção consciente de que nascera para gravar. Livio dá testemunho, com a maior singeleza e humildade, do que deve a Goeldi — fato que aumenta Livio

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Abramo e aumenta Oswaldo Goeldi — recortava dos jornais e colecionava reproduções de trabalhos de Goeldi, como também de Kate Koelwitz e Gauguim. Trabalhou, trabalhou sem cessar. Nunca entretanto, pode viver da sua arte — sempre viveu como jornalista. Logo que se pôs a gravar e desenhar sentiu a necessidade de refletir nas suas obras o ambiente da nossa terra. Em 1833 iniciava o ciclo de Itapecerica. Depois o ciclo da arte social que, sob a fecunda influência dos expressionistas alemães, durou até 1937.

Em certas gravuras de Livio como por exemplo em uma feita para "Manuel Lúcio", de Afonso Arinos, a obra de arte assume o valor de uma documentação significativa — no caso, o nascimento de uma vila brasileira. Revela o esforço de conhecimento do artista e sua íntima penetração do nosso habitat. £ nesse ponto decisivo que se afirma a arte de Livio Abramo: tal documentação apresenta-se livre de qualquer servilismo formal, devido a uma soberana capacidade de transposição do assunto.Assim, as xilogravuras para o já clássico livro "Pelo Sertão", de Afonso Arinos, em edição particular, atingem não raro um poder fantasmagórico: mas, informados que são por uma técnica segura e uma precisão quase didática, nunca assumem o aspecto "literário" de desvio do assunto: não desconversam a realidade. Livio marcou essa obra de força e simplicidade próprias aos artesões medievais.

Artesão ele de fato o é; mas não é tudo: Livio realiza a aliança perfeita entre o artesão e o artista. Estas duas categorias muitas vezes se descombinam; eis porque volta e meia nos sentimos constrangidos diante de certas obras que manifestam qualidades, mas em que adivinhamos a deslocação, o desafinamento, a falta ou atrofia de certos elementos vitais. No caso do artesão Livio, a sensibilidade humana e a cultura plástica se encontraram e se ajustaram: e este núcleo fundamental é, ainda, servido por uma imaginação que se mostra às vezes violenta, mas nunca desenfreada... parando no seu limite plástico. A melhor prova dessa afirmação encontro-a nos seus admiráveis "croquis" e anotações da cidade do Rio de Janeiro. 0 Rio espera de fato os seus intérpretes plásticos, os pintores e desenhistas que correspondem aos arquitetos Lúcio Costa e Niemeyer. 0 Rio como a Bahia, espera uma equipe de artistas que o reabilite, que o salve dos "ilustradores", dos fabricantes de cromos, da sua falsa situação de "cidade maravilhosa". Porque o Rio é hoje uma cidade trágica, arena do encontro entre a nova técnica e a natureza bárbara, testemunho do desajustamento cultural, espiritual e político do homem brasileiro, lugar dos mais violentos contrastes; capital burguesa da angústia e da injustiça social; sede de

um drama de enormes proporções, do sepultamento da baía e sua transformação em pista de automóveis, de camuflagem dos morros pelos arranha-céus de

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monstruoso mau gosto, de mutilação de vidas humanas por veículos que escaparam ao Dante e ao Apocalipse . é possível que a imaginação freiada de Livio não registre todos esses terríveis aspectos, preferindo antes anotar certas linhas de contrastes em que a natureza se apraz, num último esforço para mostrar ao homem rebelde os traços nucleares da sua origem. Assim ficam registrados, em desenhos e "croquis", a meu ver definitivos, a aparente paz das curvas da Lagoa Rodrigo de Freitas, das filas de palmeiras do Flamengo, a provisória solidão da praia do Leblon, essa vasta interrogação das montanhas da Gávea... Neste ponto Livio dá mais uma lição: compreende que não poderá gravar o Rio na sua totalidade, mas sim um esquema da sua fisionomia, acentuando sobretudo em linhas incisivas. Outros artistas retomarão o tema atualíssimo, procurando piedosamente recompor os pedaços da figura mutilado, sobrando o pouco que há para salvar. Poucos estimarão devidamente o valor dessas notas plásticas que tangenciam às vezes a abstração. Poucos entre nós compreendem a lição do croquis, exercício concentrado: ora, Livio Abramo é um mestre do "croquis", além de o ser da gravura.

Queremos registrar ainda suas finas anotações de macumba, interpretada de maneira nova. E, por assim dizer, uma interpretação "branca". Retirando da macumba certos detalhes de pitoresco, Livio Abramo demonstrou que a força propriamente plástica desse grande espetáculo é o que o interessava em primeiro lugar. Assim, o artista ensina que o negro não deve permanecer no ambiente exclusivo da sua raça, pois que o eleva à ordem universal plástica. Citarei ainda, para finalizar os fortes desenhos de cavalos, Mangaratiba, mulatas e Campos do Jordão.

Ao terminar a visita, Livio Abramo falou-me com carinho de um jovem gravador que começa a aparecer, Marcelo Grassmann. Mostra-me vários trabalhos seus que manifestam um temperamento torturado, ao mesmo tempo que um artista de excelentes dons. Poderá a vir a ser um persuasivo intérprete de Kafka ou de Jacob Wassermann. Se todos os artistas procedessem como Livio, o mundo da arte seria muito mais maravilhoso ainda: o auxílio mútuo e a solidariedade entre os homens cresceriam, as rivalidades e os ódios se amorteceriam, o trabalho em equipe se tornaria mais fácil. Confirmava-se assim o que escrevi no começo desta crônica: a aspereza de Livio Abramo encobre uma rara sensibilidade e ternura. Eis um homem e um artista.

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ALDO BONADEI

Reside o pintor Bona em São Paulo, numa casa tranqüila to caminho do aeroporto de Congonhas. Para chegar ao seu atelier atravessa-se um grande jardim em que respiramos o ar antigo, jardim com suas giestas, suas madressilvas e suas zínias. Entre as árvores disfarçam-se dois ou três pavilhões que abrigam instrumentos de trabalho. Faço estas 3 outras indicações porque o ambiente em que o artista vive e cria não Dode deixar de entrar como elemento de composição da sua individualidade, e até mesmo da sua obra. Além de pintor, Bonadei dedica-se ao que se convencionou chamar de artes menores; desenha em tecidos. De longa data o artesanato o atrai.

Somos recebidos por pessoas da família do artista, que na suas maneiras, na sua singeleza e autenticidade, acusam a velha tradição européia de organização comunitária; pessoas que, mesmo pertencendo às classes modestas da sociedade, combinam modo rústico e aristocráticos.Do fim desse pequeno paraíso de folhagens, interrompido somente de vez em quando pelo ronco do motor de um avião, abre-se o atelier muito simples, todo caiado na sua estrutura ligeiramente monástica. Um piano inglês do século XIX, decorado com figurinhas românticas acolhem na parte superior imagens de santo em doce intimidade com bonecos feitos pelos índios carajás. Sente-se imediatamente que penetramos na atmosfera de um artista. Manifesta-se o bom-gosto, mas num tom displicente — até o justo limite em que o bom-gosto deixa de sê-lo, para servir a ostentação e o falso luxo. E — "last but not least" — encostados pacientemente à parede, eis as telas, uma vasta coleção de telas, que narram toda a carreira do pintor. Este as expõe uma a uma no cavalete, — fenômeno digno de nota — coloca-se diante delas como se não fosse seu autor, como se fosse um simples apresentador. Quase não fala. Responde meio encabulado aos comentários.

Procuro extrair a lição oferecida por este quadros que vão passando à minha frente. Reparo como o artista se apaga diante do objeto, da matéria e do assunto — o que de resto concorda com a sua atitude ao mostrar os quadros. A soma das obras revela um temperamento anti-demagógico, anti-retórico, anti-polemista; ou, se é por natureza polêmico, soube, pela virtude de um método severo, dominar essa inclinação. De fato a disciplina manifesta-se nas telas de Bonadei como um dos elementos geradores da ordem plástica. Não pretendo com isso afirmar que não existe um drama nestes quadros. 0 componente patético está excluído deles; mas há diversas categorias de drama. Sinto nestas obras um traço de

-ETRAS E ARTES, domingo, 6 maio 1951, página 6.

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natureza subversiva em conflito com as forças opostas, mas domada pelo exercício de ascese a que o artista, sem dúvida, se submeteu. Neste ponto Bonadei retoma a lição de certos artistas primitivos. Compreendo o risco que existe em empregar tal termo; mas penso que já o justifiquei. Evidentemente a obra de Bonadei acha-se situada no centro de experiência e pesquisa próprio à pintura moderna. Está Bonadei longe de ser um prirni tivo no sentido em que se aplica atualmente esta palavra. Não é um instintivista ou um domingueiro; é um pintor que conhece muito bem seu ofício, possuindo boa cultura plástica. Mas penso que se aparenta aos primitivos pela simplificação dos meios técnicos e porque — repito — procura apagar sua personalidade diante das figuras que toca e sabe recriar. A fatura apurada de suas telas indicam um pintor concentrado — e elíptico sem ser hermético.

Referi-me à lição dada pelos quadros. Penso que a pintura de Bonadei é didática no alto sentido da palavra. De fato torna-se interessante observar como o pintor, desprezando certos "slogans" muito em voga nas inúmeras correntes e tendências em que se subdivide a pintura moderna, trata de extrair do acervo da sua experiência, obtendo soluções positivas, alguns dados clássicos de permanência, fixando-os com sobriedade. Ele volta à harmonia entre linha e cor, à preferência pelos tons baixos, e discrição com que deve ser usadas certas cores. Ensina o partido que se pode tirar dos cinzas, das terras, dos rosas, dos marrons, dos violetas, dos verdes sombrios, dos azuis suaves. Não encontrei nenhum quadro sobrecarregado. É, a meu ver, importante considerar que os elementos desses quadros encontram-se quase sempre em acordo — disto resultando para o contemplador um inefável prazer estético. Contemplação, eis aí o que pedem os quadros de Bonadei. Menos do que a discussão ou o momentâneo arrebatamento.

A tendência do pintor à metrização não o impede entretanto a adotar composições rígidas e secas. Eis o que nos segredam as naturezas mortas (algumas exemplares, segundo penso), os interiores, as paisagens sabiamente construídas. Em vez de aplicar a torto e a direito princípios e regras teóricas de geometrização, Bonadei procura extrair os elementos geométricos que encontra na natureza. Eis a transposição plástica de plantas e folhagens que apontam a lição do justo limite, eis a homenagem aos tinhorões recortando suas formas que nos parecem ao mesmo tempo exóticas e familiares. Justo limite, eis o que Bonadei aprendeu da natureza e aplica à sua própria arte.

"Mesmo na tempestade há ritmo", costumava dizer Antero de Quental. A mesma regra de enquadramento geométrico aplica-a Bonadei aos objetos criados pelo homem: daí o rigoroso estudo e exercício das formas suscitadas pelos bules, jarros, vasos, imagens de santos, tomados como elementos novos de inspiração. A severa consciência do justo limite

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afasta o pintor de soluções impuras e demagógicas. Passando, em revista os quadros, inclusive alguns pintados em Florença, em 1931, à época da sua adesão aos princípios estéticos do modernismo, constatamos a evolução sossegada mas segura de um artista que, possuindo o instinto de seus limites e suas possibilidades, não procura ultrapassá-los. Aos quarenta e cinco anos de idade, idade decisiva para o progresso ou o declínio de um artista, Bonadei encontra-se em ascenção, dominando plenamente sua técnica.A meu ver sua obra, trabalhada com amor assegura-lhe um lugar de primeiro plano entre os pintores modernos do Brasil.

Não resta dúvida que a lição de Cézanne foi aproveitada por Bonadei com especial rigor. Esta importância primordial dada à concepção do quadro, esta consciência do valor essencial dos elementos plásticos, este abandono do fator literário, esta vigilância quanto à inútil dispersão de cores, esta quase perfeita correspondência constante de um método que é em última análise o da abstração. Abstração, não no sentido presente de escola, mas no sentido filosófico do termo. De fato o pintor, fazendo severos cortes em elementos acessórios do quadro, realiza um equilíbrio de formas e de intenções pelo qual a tela se mantém em ritmo, elegância e proporção. Bonadei, de resto, sabe observar as pautas de silêncio. É um pintor de câmera. Esta sua discrição determina por vezes uma atmosfera que diríamos religiosa,atmosfera muito mais fácil de ser constatada em certos quadros leigos da nossa época, do que em outros de temas oficialmente religiosos. Essa atenção do pintor à ordem dos valores faz com que até a sua própria assinatura tenha signficação no quadro, entrando como elemento funcional.

Contendo essa força do temperamento em benefício de um resultado orgânico torna-se claro que a unidade da obra é atingida. Há pintores cuja obra ganha muito em ser vista e estudada em conjunto; cada quadro isolado perde em interesse. Com outros dá-se o contrário. Em Bonadei, segundo me parece,o conjunto impõe, ao mesmo tempo que muitos quadros isolados afirmam-se por si mesmos.

Nosso pintor inscreve-se entre aqueles que promoveram a natureza morta a um superior grau estético. Recriada por ele, a natureza morta em seu tratamento e perfeição assume um valor de "prazer" que anula a pretendida inferioridade do gênero. E as admiráveis paisagens dos fundos da sua casa da Ilha Bela, de São Sebastião, da Bahia, obedecem à idêntica dominante de rigor e construção. Com o mesmo senso seguro e exigência plástica, Bonadei transplanta árvores retorcidas da Ilha Bela, onde reponta a nota dramática de angústia que o artista consegue reduzir ao seu justo limite. Pudor de adotar certos efeitos por meio de um toque violento de cor, ou de forma que requeira apenas a participação da nossa sensibilidade. Arte inteligente, refinada, flor de gosto e cultura, através da qual o pintor movido por harmonia terna, propõe a pacificação de

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elementos em desacordo, preparando a síntese final depois da luta entre natureza e força transfiguradora, entre instinto e construção didática. Solução que não agradará a muitos, interessados em que a arte reflita apenas o drama de um universo esquecido da justa medida, e à espera da sua própria desagregação. Mas a solução que agradará a outros: estes estimam dever a arte elaborar formas que reconduzam o observador, ao menos por momentos a sua perdida paz.

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APONTAMENTOS

A vida de cada homem encerra um enigma que talvez só possa ser desvendado no último instante, ou mesmo numa segunda vida. Condicionado pelo tempo e pelo espaço, o esforço do homem consite em se libertar, através de técnicas e métodos diversos, dessa duas categorias constrangedoras. Sem dúvida a história é construída no tempo e se desenvolve no espaço. Mas a história da humanidade não é outra se não a história de um homem projetada numa escala gigantesca. E as constantes do tempo e do espaço oprimem o homem no seu anseio de volver a sua natureza profunda. Sofremos, por falta de espaço, ou por excesso de tempo e excesso de espaço.

Nossa vida é construída sobre erros acumulados de gerações. Ao nascer já conduzimos o germe inicial que, desenvolvido através dos tempos, transmitiremos a outrem. Mas esse germe contém ao mesmo tempo seus próprios elementos de defesa que asseguram, até um certo ponto, o equilíbrio da nossa vida. De fato, apesar das falhas existentes, das contínuas violações de ordem, podemos observar didaticamente um princípio de equilíbrio que, através da nossa natureza, transparece nos conflitos do mundo. Entre o ímpeto de conservação e o de destruição nossa natureza se balança. 0 princípio anárquico corresponde ao anseio poético de desarticulação dos elementos. Mas ao mesmo tempo as volições de ordem, calma e beleza satisfazem nosso ideal matemático em que entram como componentes a perfeição do número, a grandeza proporcional da abstração, o gozo arquitetônico da simetria.

0 mundo próprio da infância tende à destruição como experiência de conhecimento: a criança desmonta e quebra o objeto para conhecê-lo. (Eis aí um dos argumentos que nos permitiriam mostrar o aspecto pueril da civilização moderna). Na vida de cada criança há fatos decisivos que marcam até o final o destino do homem, se bem que alguns deles nem sempre possam ser claramente manifestados. Na minha infância o conhecimento da perda de minha mãe e a passagem de um cometa— possivelmente os dois fatos se completarão — foram sinais de importância fundamental no futuro processo da minha existência.

É hoje clássico entre poetas e artistas referir-se ao mundo da infância como o verdadeiro, o maravilhoso, o das revelações mágicas, o definitivo. Sei muito bem que, como a todos os outros homens,

LETRAS E ARTES,domingo, 13 maio 1951, páginas G e l .

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o universo se apresentou a mim de maneira mágica. Mas se quiser descer ao fundo de mim mesmo, se quiser ser rigorosamente sincero, direi que outras revelações muito mais significativas ocorreram nos períodos posteriores da minha vida. De fato não tenho, a não ser em raras ocasiões, a nostalgia da infância. Nem posso distingui-la muito bem através dos anos. A nebulosa que mais tarde se transformaria aos meus olhos no próprio símbolo concreto da vida, a nebulosa é hoje para mim o símbolo da minha infância, e não apenas da primeira infância. Nada compreendia do mecanismo da vida , nem do seu mecanismo secreto, nem do aparente . As pessoas não eram as pessoas. As coisas não eram as coisas. Sentia-me marginal. Não me entrosava na grande corrente da existência.Não tinha companheiros eleitos. Éramos oito irmãos numa família normal e unida, mas eu praticamente não os conhecia. Minhas atitudes desconcertavam. Eu era estranho aos outros, mas antes do mais constituía um enigma para mim próprio. Quantas vezes tocava meu rosto ou apertava minha cabeça para constatar minha existência; ser ou não ser, este era o problema. Direis que tudo isto é muito poético, manifestando o caráter mágico da infância negado um pouco acima. Acho entretanto que isto é poético hoje, quando o quadro se acha recoberto pela transfiguradora pátina do tempo. Mas naquele tempo não o era. Era incômodo e sinistro.0 traço permanente da angústia, mais visível em uns do que em outros homens, indispunha-me para a vida cotidiana. Eu me sentia rodeado de trevas espessas, sem que ninguém me passasse uma lanterna. Aos nove anos uma irrupção do cometa buleversou minha sensibilidade: mas ele desapareceu logo na sua carruagem de estrelas, abrindo em mim o sulco da saudade eterna. Para que viver depois do eclipse da luz?...

Quando adolescente, despontou em mim o gosto pelo lado teatral da existência. Como isto nasceu, não sei bem dizê-lo.Provavelmente à vista de espetáculos a que assistia no antigo teatro da minha cidade natal. Todos os anos, com efeito, grandes companhias vinham do Rio e alteravam o ritmo da nossa tranqüila vida. Seria pleonástico observar que o teatro constituiu para mim uma forma de evasão da realidade. Mas não foi apenas isto: ele assumira a meus olhos um caráter de promoção da vida a um plano superior. Foi então que abordei o mundo da metamorfose, comecei a atribuir uma importância cada vez maior à transformação psicológica dos personagens correntes. Para mim o texto era a vida, e a vida era a morte ou a inexistência. Talvez estranharia esta declaração se soubesse que sempre tive escassas ligações pessoais com gente de teatro, e que nunca freqüentei o mundo dos bastidores. Não importa, eu queria inconscientemente respeitar esse limite, para que o mundo da metamorfose não perdesse para mim seu caráter

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sagrado e poético. Mais tarde, numa operação inversa, tentei fazer passar para a corrente da minha vida a força do teatro. A significação íntima de tudo isto mais tarde me seria revelada: julgando a realidade aparente muito restrita, queria aumentá-la. Aplicando à vida comum as regras do teatro, percebi a desarmonia entre nosso interior e o exterior. Afinal que comparsas encontrava eu? Que colaboradores para a grande peça?... De resto, o teatro se me apresentava sob diversos aspectos.Não conseguia separá-lo do circo e do "music-hall". Quando se fala de uma pessoa teatral, logo se imagina alguém portador de grandes gestos e de uma voz volumosa, em atitudes ligadas à estatutária. Mas quem repara no "humour", nos golpes mágicos, nesses silêncios reveladores em certas situações nebulosas que o teatro está destinado, não a destrinçar, mas a desenvolver e aumentar ainda?... Se é verdadeiro o princípio clássico que afirma dever o teatro despertar ou fomentar paixões, promover o terror e a piedade, isto explicará a fascinação que sempre exerceu sobre meu espírito, pois entre esses dois pólos — terror e piedade — minha vida se desdobrava. Mais tarde, ao tomar conhecimento do antigo mundo grego, descobri o sentido espantoso da metamorfose, a razão profunda daquela mitologia que nutrirá para sempre o espírito dos homens. De fato essa base mitológica foi sancionada pelo próprio Cristo, quando informou que nascemos para nos transformarmos em deuses. Por sua vez, os deuses se transformarão em pedras, bichos, árvores, rios.Tudo se transformará. Tudo mergulhará na corrente infinita da existência e todos um dia arrancarão as máscaras — as do teatro e as da vida comum — e, progressivamente purificados pelos elementos cúmplices, assumirão sua forma definitiva diante do Ente gerador que desencadeou o grande espetáculo da história.

Nascido da necessidade religiosa, o teatro, por um longo processo em concordância com o processo de localização da cultura, perdeu esse caráter clássico para servir ao individualismo extremado. Posso depor, entretanto, que o Teatro me conduziu, em boa parte, à religião. Educado segundo os princípios fundamentais da religião católica no que toca no seu aspecto moral, não obstante sofri, como todos os da minha geração, as conseqüências de uma falta de informação plena sobre os aspectos místicos da doutrina. Que sabíamos nós das profundas teses de São Paulo sobre a elaboração e desenvolvimento do Corpo Místico de Cristo? Estudando em colégio de padres, obrigado diariamente, durante anos, a assistir à missa, que sabia eu da missa? Que sabia eu desta ação pública de vasta envergadura, do rito litúrgico que envolve uma execução capital, o ponto culminante da teoria e da prática do teatro — a consentida crucificação de um Deus pelos homens seus filhos?... Que sabia eu deste —

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segundo Mallarmé — ballet máximo?... Foi Ismael Nery, grande amigo e grande artista, que me revelou este e outros aspectos da doutrina.

interessar somente pelo seu aspecto exterior e formal. Quando me refiro ao conteúdo teatral da religião, refiro-me antes de mais nada à teologia de São Paulo, à sua elucidação do "theatro mundi", à passagem da ^Epístola em que nos mostra a todos nós oferecidos em espetáculo ao mundo, aos homens e aos anjos — tese retomada um dia pelo ilustre Calderon de la Barca numa de suas peças. Tudo isto me fez compreender que a religião assume a própria vida na sua riqueza e universalidade. E nenhuma outra religião como a católica encerra tal variedade dentro da unidade. Por isso, ela é tão mal compreendida, a começar pelos seus fiéis, que, não podendo abarcar o espetáculo total, limitam-se a aceitar duas ou três cenas.

caridade — é no amor que a religião assenta sua base, e por ele assume a investidura divina, tornando-se a assistente do Criador no reger o teatro do mundo. Informado de amor penetra o sentido íntimo dos fenômenos, desvenda a fisionomia própria de cada ente, animado ou inanimado. Assim como a ótica moderna aplicada à pintura descobriu que cada objeto possui uma luz própria, assim o amor inquire o consciente e o subconsciente de cada criatura, mostrando a extensão e a profundidade do espetáculo humano e transcendente em que somos envolvidos. 0 amor investiga a cada hora riquezas insuspeitadas, tanto no mundo infinitamente pequeno ccmo no infinitamente grande. Abordando o aspecto biológico do homem em suas necessidades primeiras e temporais, suscita planos para sua conservação, perpetuação e recuperação. Mas não se detém aqui, pois, a fim de desdobrar o espetáculo simultâneo, anima o gênio das metamorfoses, fecunda a região intemporal dos sonhos, promove a aliança entre o homem e os inspirantes elementos, revelando até mesmo o aspecto mágico das coisas vulgares e cotidianas.E transporta a matéria do nosso inalienável sofrimento para o imenso palco em que somos dados em espetáculo ao mundo, aos homens e aos anjos. Revira a máscara e manifesta o ódio, outro poderoso fermento do conflito pessoal e geral. Calçando altíssimos coturnos, desencadeia o terror e a piedade. Quem poderá encará-lo face a face? Trazendo a investidura do abismo, sua luz obumbra, dando-nos a morte e a ressurreição.

Não julgueis entretanto que a religião passou a me

É no amor — vocábulo tão deformado quanto seu homônimo

LASAR SEGALL

Paulo Prado disse-me uma vez, há vários anos que consid£ rava Lasar Segall um grande pintor, mas que não gostaria de ter muitos quadros dele em sua casa, pois o julgava um pintor triste. "Seus quadros me deprimem", acrescentou. A indicação parece-me interessante para início de conversa. Lasar Segall, não é evidentemente um pintor alegre, eufórico — se bem que, segundo suas próprias declarações, possua uma alegria elevada, não a alegria superficial que se opõe à tristeza.

Referia-se também sem dúvida o saudoso escritor às cores empregadas por Segall, a sua predileção pelas terras e cinzas. Tal reação diante da obra de um artista parece-me obedecer antes a motivos de ordem temperamental, do que de ordem estética ou filosófica. 0 episódio parece-me esclarecedor. Grande parte do público letrado e até culto, pede a um pintor que o distraia de suas angústias e dificuldades cotidianas. Sob este prisma é claro que o registro dos poderes da arte torna-se reduzido, sofrendo seu conceito uma mutilação que os verdadeiros criadores jamais aceitariam. Tem-se debatido em excesso o problema da finalidade da arte, não sendo minha intenção trazê-lo agora aqui; apenas desejo assinalar que a finalidade da arte não consiste em divertir. Fica portanto anulado por eliminatória um ponto. Ë verdade que Poussin declarou mais ou menos: "Le but de la peinture, c'est la délectation". Mas isto é outro aspecto da questão: deleitar não equivale a divertir. 0 princípio de prazer, por natureza pertencente à ordem fisiológica, é elevado pela alquimia da cultura à ordem estética, tornando-se parte indispensável à comprovação de muitas grandes obras de arte' Mas é óbvio que outros elementos, e não menos importantes, entram nessa composição.

No caso particular de Segall — o que nos interessa aqui — as restrições de alguns derivam sem dúvida dos seus temas preferidos, bem como da sóbria gama das cores empregadas. 0 que revela em última análise um desvio de ângulo do raciocínio: pois muitas atitudes críticas partem às vezes de impulsos apaixonados, de considerações de ordem privada e de uma redução do campo da realidade inclusive da realidade ótica. Ora, a universalidade da arte é um espelho da universalidade da própria vida no seu perpétuo ofício de criar. Dentro deste plano de universalidade convivem tipos e categorias humanas díspares. Considerar cada figura dentro do elemento familiar em que se desenvolveu e chegou a se diferenciar da massa anônima, implica um processo de amor, de trabalho, de respeito, de sensibilidade, de inteligência. Há, por exemplo, inúmeras

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LETRAS E ARTES, domingo, 20 maio 1951, capa.

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teorias e interpretáções da cor, do desenho, da linha, do volume. £ inútil pedir a Matisse o ... que só Rouault poderia dar; ou pedir a Pancetti o que só Di Cavalcanti estaria em condições de oferecer. A revisão do processo de pensamento, a mudança de atitude mental, o combate à rotina, a aceitação de um universo em que se cruzam múltiplas correntes de cultura, eis alguns pontos de um programa de recuperação crítica que deveria ser sempre apresentado a todos aqueles que desejam aperfeiçoar seus conhecimentos de arte. É preciso considerar a vastidão e multiplicidade das formas, idéias, imagens e sensações que se oferecem à nossa ruminação. A palavra divina que afirma: "Na casa do Pai há muitas moradas" aplica-se também de variadas maneiras ao universo da arte. A cada um sua morada, conforme o talento que recebeu, conforme que natureza original ou transfigurada, conforme seu amor, seus erros, suas paixões, seus ímpetos, sua ideologia, suas inclinações, seu silêncio. No caso particular do pintor, conforme sua técnica e sua paleta. Lembremo-nos também que pintar não quer dizer colorir: e que em geral é muito difícil saber ver.

A observação preliminar que se impôs ao meu espírito, ao rever recentemente uma grande soma de quadros, desenhos e gravuras de Segall no seu atelier em São Paulo, é a seguinte: sem nenhuma interferência ou insinuação do pintor, pude constatar o sélo de autenticidade da sua arte, a espécie de íntima necessidade, de lógica interna que preside e comanda suas realizações. Considerando-se a obra de um pintor, é necessário examiná-la em seu conjunto global e ao mesmo tempo peça por peça. Isoladamente. Caso possível — e neste ponto a nossa época é privilegiada, pois a documentação sobre os artistas aumenta cada dia de volume — caso possível será útil consultar as idéias ao pintor, sobretudo seus princípios estéticos,sua posição ética, e procurar através dos anos, das diversas fases da sua evolução, o fio condutor, a trama específica que nos ajude a pensar os motivos da sua mensagem, sua sinceridade, e — ponto de máxima importância — sua profunda razão de ser, sua unidade. Admitimos que tal atitude é difícil de ser seguida pelo observador comum, impondo-se entretanto — "et pour cause" — aos críticos e escritores que estudam problemas de artes plásticas, bem como aos amadores de grande classe. Tal método conduzirá a uma possibilidade mais elevada de julgamento afastado do facciosismo. (E o facciosismo estético não é menos pernicioso do que o político). É na intimidade do seu atelier que melhor se conhece um artista, mormente na ocasião de um colóquio livre de influências estranhas. Os comentários às obras, aos problemas gerais da arte e aos problemas particulares do artista, vão surgindo espontaneamnte, determinando uma atmosfera de mútua compreensão e sinceridade, favorável ao balanço crítico.

Passando em revista uma longa série de óleos, gravuras,

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guaches, aquarelas e desenhos de Segall, de 1913 e 1951, não direi que não houve soluções de continuidade na evolução da obra; direi que se verifica um progresso às vezes demorado mas certeiro, resultante sobretudo do choque com a natureza brasileira e a descoberta de Campos do Jordão. Este fato marcou profundamente a pintura de Segall, ao mesmo tempo que produziu uma mudança ao eixo de interpretação da nossa natureza o artista, afastado das aparências superficiais, procura transpô-la de maneira elevada, anulando o fácil conceito de "Brasil tropical", idéia excelente para cartazes turísticos.

Eis um acontecimento da maior significação para nós: o encontro da antiga cultura israelita, sedimentada através dos séculos, com a jovem cultura caótica de um país em regime de experiência, plantando desordenadamente os marcos da sua aventura artística. Creio que Segall, embora, para honra nossa, se tenha tornado cidadão brasileiro embora ame de fato o Brasil e saiba, como poucos, interpretar sua atmosfera, permanece israelita no fundo do seu ser. Não pode ou não quis absorver certos dados fundamentais da nossa formação. Suponho que não tenha abordado o cristianismo, ou, se o fez,o rejeitou. Mas bem sei que a cultura israelita é por si mesma um imenso valor; além disto nós descendemos espiritualmente dos Profetas e dos Patriarcas que esperavam durante séculos o advento de Cristo. Eis por que um cristão se sente à vontade na companhia de um verdadeiro israelita. De resto, o alto padrão da obra de Segall faz inserir o nome do artista numa categoria universal de valor, de maneira que os homens de todas as raças, crenças políticas ou religiosas se podem reconhecer nela; porque à segurança da construção plástica corresponde igual força de humanidade que transcende a todos os acidentes particulares. Isto é próprio dos grandes criadores.

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IMPORTANCIA DE SEGALL II

A lógica interna a que me referi no artigo anterior, desde o início compeliu Segall a uma rigorosa humildade com suas obras que continuamente recria. Vive para as formas e tipos que seu espaço transfigura e fixa após a observação original. Eis por que ele pode libertar-se das imposições de modas estéticas, atento ao imperativo da verdade reclamada por sua natureza profunda. É claro que tal método não poderia deixar de conduzi-lo à unidade, resultante do severo acordo entre o homem Segall e o universo escolhido por ele, e nele prolongado.

A multiplicidade de "épocas" e "fases" parece ser prejudicial e alguns pintores modernos— e não dos menores. Eles dão por vezes a impressão de que não sabem bem o que querem. Assistimos a uma alteração profunda na hierarquia dos valores e na planificação geral da obra. Há pintores intelectuais que copiam a maneira dos instintivistas, há pintores realistas fazendo o jogo dos pintores "metafísicos", etc. E

certo que todos sofrem a pressão de inumeráveis teorias em permanente conflito. Mas chegados à natureza seria tempo de tentarem uma síntese das correntes mais importantes da pintura atual em ressonância com seu núcleo íntimo, pois há elementos perenes na natureza humana que independem dos ciclos de civilização e das modas estéticas. No caso do nosso artista a contínua pesquisa da sua verdade essencial encontrou perfeita correspondên cia numa forma plasticamente ajustada, e que lhe vai como um molde.

A ausência de fases violentas na sua carreira, seu descaso pela tirania dos "ismos", são dados seguros de apreciação crítica no que se refere ao sentimento de perenidade que esta obra desperta. Construção de sóbria grandeza, em que até o princípio deformador parece obedecer a um senso particular de ritmo e medida — embora seja nosso pintor um dramaturgo. Telas, gravuras, guaches, aquarelas e desenhos se sucedem: que pena ser impossível ao espírito fixá-los num momento único! Entretanto, mesmo apesar da inevitável sucessão, vemos que os problemas se ligam ainda nas obras aparentemente mais autônomas. Com efeito, Segall enfrenta os problemas de cada quadro sem jamais contorná-los. A solução, na maioria dos casos manifesta a aliança entre espontaneidade e trabalho rigoroso.

Esta consciência implacável, consciência do seu dever e da sua missão pessoal de artista criador, inspira a Lasar Segall atitudes definidas e equilibradas. Por exemplo, rejeita sempre os convites para decorar igrejas e sinagogas, já que não se considerava um pintor religioso. Pessoalmente, julgo que a massa total de sua obra revela uma natureza

LETRAS E ARTES, domingo, 27 maio 1951, capa.

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religiosa. É o pintor da moderna Diáspora, o fixador do tema do eterno caminhante, do perseguido, castigado. Operou a conjunção do jeito e do ambiente brasileiro e cujos aspectos de desolação ou de plenitude sabe tão bem interpretar. Conferiu dignidade e valor a seres oprimidos ou desajustados. Plantou com sabedoria plástica o problema do homem frente a uma natureza hostil e a uma sociedade que o entregou à solidão absoluta. Creio que nas origens israelitas do pintor se encontra a chave do seu drama espiritual transposto em arte: drama que logicamente deveria explodir nessas grandiosas telas que se chamam "Guerra", "Programa","Campo de Concentração", "Navio de Emigrantes"— quadro que de certa maneira corresponde na nossa pintura atual ao "Navio Negreiro" de Castro Alves.

A segalliana implica um largo conteúdo social; mas a força plástica e humana não se deixou vencer pelo fator político e social— mesmo por que o pintor não obedece a palavras de ordem partidária . A arte de Segall atesta o confronto entre o indivíduo e a coletividade. 0 indivíduo-artista resolve o conflito de forças ao interpretar a realidade social, transpondo-a para um superior plano estético e filosófico em que os seres esmagados pelo enorme rolo compressor recebem sua justificação.Na nossa época, época eminentemente polêmica, a exacerbação das paixões políticas produz um distúrbio no eixo de equilíbrio do artista; poucos são os que realizam a interpretação dos valores plásticos, humanos e sociais. A perigosa vizinhança da "charge", do cartaz de propaganda e da ilustração, agravada ainda pela sobrecarga de intenções polêmicas, numa atmosfera em constante exaltação, produz um desajustamento entre a sensibilidade e a inteligência; e com isto sofre a obra de arte nas suas exigências mais fundas. Poucos pintores atuais terão levantado um movimento de tão sólida estrutura social como o autor do "Navio de Emigrantes". Mas poucos terão conseguido um resultado tão harmônico, em que a violência do libelo é balançada pela justeza das proporções.

Quantos elementos esquecidos soube Segall utilizar e valorizar! Esses pontos esbranquiçados em certo quadros. Esse perpassar de leve do pincel. 0 silêncio de outras telas — silêncio de um universo concentracionário onde ninguém responde às perguntas do prisioneiro ...De fato a segalliana assume plasticamente o mistério da solidão do homem- mistério manifestado muito mais claramente, em número e força, na época atual em que a solidão é cientificamente organizada pelos poderes totalitários — esses poderes que trocaram a comunidade pela massa amorfa, tentando destruir o signo sagrado do homem,sua estampilha divina.

A obra segalliana acha-se fundada numa prodigiosa organização em correspondência à fatalidade criadora. Observa-se um expurgo de elementos literários estranhos à vontade plástica. 0 milagre consiste em que uma tão consciente organização exclui o sistema, acolhe

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tudo o que é humano, glorifica a ternura. Qualquer traço, qualquer curva, qualquer pincelada, os mínimos pormenores carregam uma significação específica.

Não resta dúvida que uma tal organização se apóia numa cultura milenar, numa antiga tradição filosófica e religiosa em que os valores humanos e artísticos foram sabiamente balançados e ordenados. 0 exame atento da obra revela que Segall rejeita a improvisação e as insinuações exteriores. A exemplo de qualquer pintor, possui seu formulário: mas como este é sóbrio e discreto, como pesa pouco nos resultados finais, disfarçando o mais possível sua interferência! Mesmo nas telas de grandes dimensões o demônio do gigantismo é domado: é evidente que com isto a composição se beneficia. A vontade interior comanda a fórmula.

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FORÇA E UNIDADE EM SEGALL III

As reservas de alguns ao monocronismo Segall procedem sem dúvida de uma concepção muito particular da cor. Nada mais difícil de ser VISTO, interpretado e usado, do que a cor. Na obra de Segall, como se sabe, as preferências vão às terras, aos cinzas, aos verdes pálidos, aos ocres finos, ao amarelo-laranja, aos vermelhos escuros, ao amarelo-limão. Entretanto, que complexas operações se realizam no laboratório íntimo do pintor antes desses tons atingirem o último estado! Que densidade carregam essas tintas sóbrias, que expressividade na sua aparente pobreza! Falar de despojamento... não sei: antes prefiro mencionar a valorização dessas cores que afirmam sua força autêntica em tão numerosas telas. Antes prefiro sublinhar a riqueza dessas tintas sóbrias que, sustentando a construção plástica, conferem-lhe nobreza e dignidade exemplares. De resto, a cada pintor corresponde uma necessidade técnica e uma atmosfera próprias. 0 que interessa mais de perto é o resultado final. E os resultados da segalliana são dos mais convincentes. Diante de certas telas veio-me ao espírito a anotação de Beethoven à margem dos cadernos de Haendel: "Eis a verdade!".

Bem sei que sou um leigo, por isso quero apoiar meu testemunho sobre a palavra dos competentes. Vieira da Silva (Maria Helena) que alcançou nos últimos tempos renome definitivo, expondo em Paris ao lado de Picasso, Klee e Braque, assim se exprime publicamente: "Segall veio lembrar-nos a verdadeira pintura". E Carlos Leão, ilustre arquiteto e desenhista, portador de alta cultura plástica, escreve:"Outro dia, na casa de amigo, vi um quadro de Segall (um daqueles retratos de Luci) no meio de vários quadros de vários autores. Os outros quadros eram cheios de cores vivas: gritavam chamando os olhos. 0 de Segall era neutro, sossegado, apagado. Mas onde havia cor — essa coisa chamada "cor" — era no quadro de Segall. Ele sabe pintar".

Eis um dos pontos que distinguem um pintor acadêmico de um pintor moderno: este possui uma consciência mais viva do emprego da cor: não a cor por si mesma; é preciso saber usá-la de maneira inteligente. A cada cor — entendemos hoje assim — corresponde não apenas uma dado psicológico, mas também um espaço, um valor, uma luz própria; a cor é encarregada de manter a profundidade do quadro.

Admito que a pintura de Segall não se entrega de pronto

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ao observador. A linha geral da sua arte é severa; não usa de acrobacias; possui uma nudez na expressão que o aparenta aos grandes mestres do Quatrocentto. Nota-se uma falta de brilho, um desdém pelo pitoresco, uma economia de ornamento, aplicada mesmo ao tratamento da mulher.

Nessas telas a vida e a morte dão-se combate. A quem a vitória final? Pertence a solução ao foro íntimo do artista. Sua tarefa consiste em testemunhar e transpor o conflito.

A grande tristeza da obra segaleana(que não se opõe à alegria da luz e da criação)exclui o sentimentalismo. A unidade do conjunto é assegurada pela consistência da forma,pela compressão da temática,pela fidelidade às cores psiquicamente necessárias,pela condensação de forças e perene atenção ao centro de interesse — constituído pela verdade humana e plástica. É evidente que uma tal pintura não permite um abandono imediato.

Entretanto esta obra não encerra conteúdo hermético — pelo menos na acepção atual do vocabulário. £ aristocrática no sentido em que toda grande obra de arte o é. Mas o pensamento segalleano é claro, encontrando um quadro formal correspondente. Segall não tem a preocupação da novidade.

A profunda humanidade do pintor achou uma justa integração na natureza. E, repetimos, a natureza brasileira declanchou a solução para os problemas que esperavam nas camadas subconscientes do artista. Mas longe está ele de apresentar uma fria documentação da nossa natureza! Elevou-a mesmo a um plano abstrato, procurou extrair dados universais de nosso quadro nacional. Pintou a confraternização, o misterioso encontro entre animal e o homem retirando ao primeiro o caráter totêmico: nas suas telas parece que o gado e o bicho humano confrontam seus destinos comuns.

Pois não é verdade que milhões de homens são hoje tangidos como gado, marcados a ferro em brasa pelas forças totalitárias? Não é o que Seggal chama um pintor animalista, pois que promoveu o bicho a uma categoria quase humana; o boi e a vaca são por virtude de uma fecunda operação do espírito, transpostos ao genérico. Direi ainda que os tons ferruginosos de muitas telas poderão evocar nossa origem mineral.

Apesar das épocas de interrupção (há diferenças sensíveis entre o pintor de Dresde e o de Campos do Jordão) os trabalhos modernos filiam-se aos antigos. Segall teve a sorte de poder conviver intimamente com sua obra, protegido das solicitações e exigências do mercado. Isto serviu para desenvolver muito sua autocrítica, permitindo-lhe o tempo necessário a uma elaboração profunda. Sua obra de gravador e desenhista é também de primordial

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importância; o espírito de depuração, a gravidade da forma esquemática são, ali, talvez ainda mais acentuadas que nas telas. Completa seu currículo de artista com experiências de escultura que têm uma certa significação no conjunto, como elementos de ajuda ao aperfeiçoamento do tacto. Seus retratos, em particular os de Luci Citti Ferreira, contribuem para a restauração da dignidade desta nobre forma de arte, hoje tão maltratada. Alguns deles são obras maiores, das mais importantes que a pintura moderna já deu. Inspiram-nos o sentimento das coisas definitivas, transfiguradas, absolutas. As obras com o tema da maternidade, os pares de amor (sobretudo um de costas, com um aproveitamento estupendo das cinzas), seus perfis de humilhados e oprimidos, de pessoas deslocadas, tantas outras graves criações ungidas de emoção recordam-nos o atualíssimo aforisma deEngels: "A Bíblia deverá ser recomeçada". Continua a se processar o ciclo de sofrimento da humanidade no seu perpétuo esforço de libertação da contingência.

0 próprio Segall escreveu que reconhece "um compromisso entre a paisagem terrena e o céu". Penso que esta frase o define. Considero-o uma testemunha da nossa época, um desses artistas-chaves que consultam nosso ápero destino comum; amando a terra e os entes queaanimam — homens, coisas e bichos — interrogam o céu e tentam uma aliança entre estas duas forças fundamentais. Um dos mais importantes problemas que se colocam hoje diante do homem religioso é o da inserção de valores espirituais e transcendentes, na dimensão temporal. As coordenadas deste problema apresentam-se muitas vezes confusamente mesmo a homens lúcidos (entre nós, por exemplo, a um escritor da categoria de Mário de Andrade) que pensam seguir a tradição nietzschiana: aos fortes a terra, aos "beatos" o céu, confesso que o problema é difícil, exigindo sua solução uma perspectiva histórica que ainda não temos no Brasil. 0 que desejo no momento assinalar é que o antigo debate platônico-aristotélico deverá ser hoje apresentado de forma diferente do da época medieval, pois novas forças sociais, políticas, técnicas e espirituais surgiram no campo da experiência humana, provocando uma síntese da cultura, uma nova "Soma" de conhecimentos a ser feita em futuro próximo, por virtude da qual muitos elementos contrários poderão ser reconciliados. A restauração da comunidade em quadros correspondentes às necessidades atuais poderá romper a solidão do homem. Enquanto a ciência, a teologia e a filosofia não trazem novas luzes ao conflito transcendência-imanência, muitos artistas adiantam-se à época: assim tem acontecido outras vezes. Conscientes da sua situação no tempo e da dependência da história.

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informados e penetrados da vasta realidade social, transcendem os limites do efêmero, pelo que aumentam a própria realidade, enriquecendo o conteúdo mesmo da arte. Cada quadro será uma re-criação do espírito trabalhada em profundidade, e não apenas um documento de primário "realismo", que de resto a fotografia e o cinema restituirão melhor.A indispensável ligação com a vida será feita pelas obras que trouxeram uma carga maior de emoção e verdade. Operando uma síntese entre a observação da natureza e o pensamento poético, o artista contribuirá para uma transfiguração da existência, despertando nos homens — ou lhes recordando — o sentido da sua vocação transcendente. A esta grande empresa alguns poucos foram chamados na nossa época, atentos ao "compromisso entre a paisagem terrena e o céu". Entre eles se inclui o pintor Lasar Segall.

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INVENÇÃO DE ORFEU

Jorge de Lima entregou-me há seis meses atrás os originais de um volumoso livro de poesias. Era pelo Natal, e com ele chegava mais uma mensagem de grandeza a se inserir na antiga e sempre renovada tradição que os poetas transmitem à humanidade através dos tempos.

De longa data conheço intimamente Jorge de Lima, meu companheiro dearmas espirituais. Sou testemunha próxima da sua vida literária, no período decisivo que se estende entre os anos 1931 e 1951. Tive a sorte e o privilégio de ser o primeiro leitor de muitas de suas páginas. Acho-me portanto extremamente familiarizado com sua obra. Pois apesar de tudo isto confesso que o texto intimamente apresentado deixou-me perplexo. Pediu-me o poeta que batizasse o livro. Devorado este, hesitei entre "Cosmogonia", "Canto Geral" e "Invenção de Orfeu". Quanto ao primeiro, julgou-o o autor muito ambicioso. 0 segundo foi prejudicado por um livro de igual nome, saído há pouco, de Pablo Neruda. Restou "Invenção de Orfeu", que, depois de alguns entendimentos, foi, ao que parece, definitivamente adotado.

Repito— o grande texto— duplamente grande — deixou-me surpreso. Não era fácil manejar um livro tão extenso, datilografado em leves folhas de papel, um verdadeiro labirinto de terras, faturas, imagens e tendência, uma espécie de poema cíclico, poema-rio carregando tantas formas díspares em sua densa correnteza. Eu queria surpreender o núcleo do livro, sua profunda razão de ser, queria habituar-me à sua temática, sondar sua unidade, ligá-lo ao resto da inumerável obra — em prosa e verso — de Jorge, descobrir o encadeamento de um capítulo a outro, ou então os motivos que informam as páginas autônomas. Desespera-me de não poder agarrar o monstro com as armas da intenção, da sensibilidade crítica, da lucidez e da estreita afinidade que me liga ao companheiro da selva escura. Desde logo, entretanto, uma idéia manifestou-se ao meu espírito: a do cárater essencialmente barroco do livro — atribuindo ao termo a elasticidade que lhe é conferida por alguns críticos modernos.

De fato o livro surgiu ante meus olhos como um monumento sobrecarregado de ornatos luxuriosos, desmensurado monumento erguido pela fantasia e liberdade de um arquiteto poeta, de um novo Piranesi, para abrigar uma vida complexa crescendo em planos superpostos. 0 problema do tempo e do espaço— como de resto em toda obra de vasta envergadura — coloca-se neste livro com uma audácia e um imprevisto únicos em nossa literatura. Para dominar a desordem que se opõe à construção do insólito

LETRAS E ARTES, domingo, 10 jun. 1951, página 3.

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monumento arma-se o poeta de uma tesoura de condão, e, fazendo cortes implacáveis no tempo, obtém uma dimensão nova. Opera também à sua maneira o espaço, ajuntando arbitrariamente Egitos e Mesopotânias, Caldéias e Babilônias,afundando Venezas e Restelos, comprimindo regiões, anulando países ou conquistando para o seu domínio próprio largas áreas de insuspeitados terrenos, onde pouco a pouco se desenham configurações novas. Convocados para a grande empresa os elementos assanham-se; ora se revoltam, ora se associam ao poeta na organização do seu lúcido delírio.A obsessão da procura do tempo perdido o conduz ao princípio dos tempos, já que a zona pré-natal é ainda muito próxima da realidade particular que ele se atribui. E o tempo se faz reconstituído, não apenas pela foto- montagem da infância, como também pela contínua referência e meditação da Queda do homem, cujo processo se desenrola no transcurso da história.0 espírito luciferino acena-lhe com o domínio das coisas nascidas da carne e do sangue, mas o espírito que santifica as raízes do mundo propõe-lhe a escolha, a opção, a renúncia aos elementos efêmeros.

Entretanto,não adianta renunciar ao efêmero sem conhecer os valores que ele traz consigo. A solução do problema, segundo me parece, é esta: fixar o efêmero, suas formas mutáveis, suas categorias estéticas e sociais, e transcendê-lo. Mas quem se arma de tal coragem? Uma minoria em todo o vasto mundo. Abordar a transcendência poética equivale a penetrar numa selva escura em que os obstáculos surgem de todos os lados e a todos os momentos. Os espíritos inferiores envergam constantemente os trajes da luz. E a lanterna celeste,sempre discreta,afastando-se muitas vezes do caminho para que o homem aumentando a zona da sua própria liberdade também aumente a da sua natureza, pois que foi criado à imagem e semelhança divina. Aqui o problema se complica: o problema da conciliação entre a chamada realidade e a transcendência. Como se apresentará a um poeta cristão o imenso universo da matéria informe, contendo a tradição do pecado, povoado de elementos separatistas, isto é, elementos que parecem nos isolar do Criador? ... Pois que mesmo ao espírito de um poeta não-cristão como Rilke, o problema do conflito entre o mundo e a graça divina surgiu violentamente. Fora da solução cristã ele procurou saída na adoção de uma forma pessoal de panteísmo, à qual tendem, de resto, muitos poetas modernos. Conclusão lógica do processo cultural à margem do cristianismo,que outro não é senão o sistema imanentista. Jorge de Lima, não evitou o problema, antes atacou-o de frente, revestindo-se tal operação de particular coragem, dado o fundo pagão da sua natureza.Assim agindo,manifestou um dos aspectos mais profundos da teologia paulina, quando ensina que o elemento terrestre precede o celeste no simples plano da criação natural. Este ponto é das mais alta importância para a elucidação crítica da obra de Jorge de Lima. A distinção, por muitos adotada a seu respeito, entre poesia profana e poesia religiosa, entre

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poesia nordestina e poesia litúrgica, é arbitrária aos olhos de um católico. Tal atitude provém em geral de um conhecimento vago do catolicismo. Ora, este implica necessariamente um humanismo universalista.E não nos esqueçamos que o próprio pecado, segundo a teologia, entra no plano de Deus.

Ao nosso espírito,o universo, embora cheio de terríveis contradições e violações da ordem, é sacralizado pela Graça. A heresia, muitas vezes bem intencionada e inteligentemente apresentada, tem insistido através dos séculos em selecionar a face unitária do mundo. Do oriente nos veio a tradição de que o demônio penetra todos os pontos do universo criado, perturbando nossos gestos e atos mínimos.

Nós entretanto escolhemos a outra parte da tradição, mormente a que foi vivida e exaltada por São Francisco de Assis.Preferimos ver na criação os sinais sensíveis da bênção divina, se bem que constatemos o esforço do espírito do mal para subverter a grande obra. Achamos com São Paulo que o universo é um sistema de coisas invisíveis manifestadas visivelmente.

Solapadas, entretanto, por um processo multissecular de tentativa de autonomia absoluta do homem, as bases normais da criação, é evidente que o conflito referido aumenta de forma patética. Embora estejamos sob a influência do Príncipe deste mundo, aguardamos a Parusia, a Segunda Vinda do Cristo e sua vitória final. É nesta imensa perspectiva que vemos se desenrolar o painel da história, a presente luta entre as grandes potências, o admirável esforço dos países coloniais para se libertarem do jugo imperialista e outros atos violentos do drama atual da humanidade.

Pois é nesta mesma perspectiva que se coloca Jorge de Lima, ao conceber e executar este inigualável afresco que é "Invenção de Orfeu". Bem sei que estou aparentemente me contradizendo, ao escrever do livro que é poema-rio, monumento barroco, afresco, etc. Não importa. Certas contradições até esclarecem muitas vezes o ponto nuclear de uma tese. Por aí se terá uma idéia do poderoso conteúdo e complexidade do livro, que manifesta variadas influências da arquitetura, da pintura, da música, da história, da mitologia, da teologia.

399LETRAS E ARTES, domingo, 17 jun. 1951, página 3.

A LUTA COM O ANJO

A natureza de Jorge de Lima é das mais ricas e generosas que este país produziu até hoje. Essa natureza pagã, constantemente sacralizada — e aqui o advérbio se reveste de particular significação— forneceu-lhe o material de um agudo conflito, ao mesmo tempo que lhe apresentou os sinais da sua libertação. A pessoa, a vida e a obra de Jorge Lima ilustram esta verdade tantas vezes obliterada — vocação transcendente do homem. Se Jorge de Lima não tivesse tomado consciência desta grandeza final do nosso destino, não hesito em afirmar que poderia ter sido um suicida. Transparece nos seus livros e na sua própria fisionomia um antecipado cansaço da tarefa prodigiosa que lhe foi imposta. Quantas vezes, ao entrar na sua casa ou no seu consultório, me comovi e me preocupei ao notar sua estranha palidez, a carga de tristeza no seu olhar, entretanto equilibrada pelo sinal constante do ingênuo sorriso!Ele mesmo em inúmeras páginas insinua, ele mesmo — suprema coragem — se define um mágico e um claune espiritual. Um claune de gênio, digo eu, capaz de transpor aos olhos do mundo a nobre matéria do seu sofrimento em canto largo e purificador.

Toda a obra de Jorge de Lima se reveste de um acentuado caráter teatral — e é óbvio que retiro desta palavra seu siqnificado exterior ou pejorativo. Muitos de seus poemas poderiam ser aqaptados para atos dramáticos. 0 aspecto monumental desta obra resulta\ia explosão j

de um temperamento destinado a representar múltiplos papéis, e en jaula-d-e-^ dentro das quatro paredes de um consultório. Vista deste ângulo a obra jorgeana resulta em desforra, em sublime vingança dos poderes da mediocridade.

A prodigalidade da sua natureza pede que Jorge se desdobre em vários planos. Mesmo considerando-o unicamente do ponto de vista da realização poética, não se pode eliminar destes riquíssimos textos a presença do pintor-amador, do escultor-amador, do operador de foto — montagens, até do jornalista, até mesmo do médico. Certos poemas apresentam-se como reportagens de alta classe. Em alguns subsistem alusões a veias e vísceras, manifestadas pelo subconsciente do médico.E há poemas resultantes de um processo de cruzamento de episódios bíblicos com outros da vida contemporânea. Muitos aspectos fundamentais do drama são às vezes disfarçados pelo revestimento de roupagens suntuosas, revelando um gosto decorativo extenso e cultivado. 0 choque de ritmos, de valores e de formas, a intuição da cor em equivalência a

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determinado espaço, acusam o pintor-amador às vezes chegando à realização plástica, como atestam,entre outros, Antônio Bento e Ruben Navarra.

"Invenção de Orfeu" é o máximo documento literário da natureza barroca do Brasil. Esta obra genial não nasceu da planificação da brasilidade; por isso mesmo, na sua força caótica e dispersa, é uma poderosa imagem deste país afro-europeu que carria uma antiga cultura para enriquecer suas nascentes bárbaras. 0 texto de "Invenção de Orfeu" é extremamente complexo e erudito. Apresenta diversas técnicas e faturas: poesias metrificadas e rimadas, outras em metro livre e verso branco, sonetos, canções, baladas, poemas épicos, líricos, poesias de carne e de sangue, poesias de infância, episódios surrealistas, esboços de dramas e de farsas.

Além do caráter barroco da obra, sinto aqui, dominando tudo, a presença do mito, da metamorfose e do "humour"negro. E tudo isto enquadrado na dimensão teológica — se bem que será muito difícil estabelecer nestas páginas o limite entre o espírito telúrico e o sobrenatural. A obra, necessário é confessá-lo, tem os defeitos provocados pelas suas próprias qualidades — mas estas qualidades são enormes. Como policiar semelhante força? Como conter o rio São Francisco? A poesia transbordou da fraqueza primitiva do homem, subjugou-o, castigou-o rudemente, extraiu-lhe talvez a seiva, esgotou suas reservas... Mas quem sondou o sub-solo do espírito de Jorge de Lima e mediu todas as suas possibilidades? É muito provável que dentro em pouco ele se levante da luta com o Anjo, trazendo um novo diamante arrancado aos abismos.

0 texto "Invenção de Orfeu" quando publicado, desnorteará certamente a crítica. Imagine-se o menino Lautreamont a se nutrir nos alentados peitos das musas de Dante, Camões e Gôngora! Quero acentuar que o processo gerador deste livro é o da fotomontagem, isto é, o recorte e cruzamento de idéias, palavras, imagens, alegorias, sensações, operando-se ainda a redução ou aumento superlativo das categorias de tempo e espaço.

A objeção máxima à unidade da obra de Jorge é fundada em geral sobre o aparente exagero das influências observadas. Sinto não ter à mão a cópia de uma carta de Mozart onde ele diz, em substância, estar sempre com a cabeça fervendo de planos e idéias e não dispor do tempo necessário para inventar um molde novo para os mesmos. Achando perto um molde alheio, usa-o e refunde-o como entende, imprimindo-lhe a marca pessoal do seu estilo. Na vida e na obra do autor de "Don Giovanni" o capítulo das influências foi estudado a fundo. Desde o primeiro minueto até os últimos esboços da "Missa de Requiem", as influências diferem

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— o que não impede Mozart de ser o único e insubstituível. Na nossa época o exemplo clássico do artista extremamente sensível às influências é Picasso. E não adianta teorizar, discutir, descobrir no autor de "Les Demoiselles d'Avignon", mais um inventor (um engenheiro! como merecem alguns) do que um artista... a grandeza de seu gênio e de sua obra é mais expressiva do que todas as resistências. De resto a nossa época, época de invenção, contínua pesquisa e interpretação de fatos e de idéias, é logicamente favorável ao crescimento das influências no espírito dos artistas cuja receptividade aos múltiplos aspectos e fenômenos da natureza e da cultura é, por definição, maior do que a de outros homens. Em "Invenção de Orfeu", noto que Jorge de Lima atinge o máximo da sua permeabilidade aos fatos e teorias comunicantes, ao mesmo tempo que completa sua fisionomia de poeta e artista capaz de receber e transmitir ondas de grandes vibrações, na mais ampla faixa.

0 livro encerra numa dominante anárquica, como a nossa época o é, apesar das planificações e do dirigismo da fachada. Anárquica é a própria substância do homem desde o instante da Queda, que é em última análise o tema desta imensa obra. Queda e transfiguração. 0 poeta não se vexa de apresentar a condição humana em sua precariedade sob as espécies da argila terrestre. Poucos poemas conheço em que a matéria, a pobre matéria da nossa antiga formação, seja tão machucada como neste.Em outras páginas o poeta se manifesta quase um frio realista, um técnico de laboratório. Dar-se-á isto devido a intervenção do médico Jorge de Lima? Talvez. Mas, quem melhor que o homem católico conhece nossa obscura e complexa natureza? Quem, melhor do que ele, sondou nosso abismo e percorreu o campo do infinitamente pequeno e do infinitamente grande?...É possível que o título adequado a este livro fosse "Retrato do homem poeta miserável e transfigurado", mas como é muito longo e lembra um pouco o de obra famosa de Joyce, deixemos "Invenção de Orfeu".

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OS TRABALHOS DO POETA

Em "Invenção de Orfeu", Jorge de lima realizou o prodígio de fundir os tempos. 0 poeta possui a consciência viva de estar situado no tempo, mas sente a necessidade de transcendê-lo. Não julgo entretanto que se trata de uma evasão da realidade: trata-se antes de uma penetração nos dois mundos, o do tempo físico e o do tempo espiritual. "Invenção de Orfeu" é uma espécie de soma em poesia de nossa época. Nosso drama atual, drama de subversão de valores, drama de miséria e sangue, desenrola-se nesses textos com uma intensidade raramente alcançada na língua portuguesa. É muito significativo o fato de Jorge de Lima tentar até mesmo o poema épico nas páginas de "Invenção de Orfeu". Tenho me perguntado muitas vezes se há possibilidades da forma épica ressurgir agora. E às vezes me parece que sim: adotando todavia um molde muito diferente do da epopéia clássica. Creio mesmo que haveria dificuldades na escolha do tema: são tantos! 0 século XX é de fato o campo de trabalho de um imenso conflito que já superou de muito as etiquetas políticas ou ideológicas.

0 que se acha em jogo em cima da mesa de operação — e esta mesa de operação é o mundo todo— o que se acha em jogo é a própria condição do homem, sua subsistência no presente e no futuro. A questão social transformou-se na questão mesma da humanidade. Não há distinção nítida de classes, não há mais a divisão rigorosa da sociedade em dois campos políticos. Há em primeiro lugar a divisão do homem dentro de si próprio: a consciência desta divisão estende-se a todos. Basta notar a diferença da mentalidade de uma criança de hoje para uma criança de quarenta anos atrás: a vasta soma de informações que possui a criança atual marca a fisionomia de um época. Os problemas se entrelaçam: o problema político, o econômico , o religioso, o moral fundem-se a tal ponto que penetram até mesmo o espírito do homem comum. Não se trata apenas a meu ver, da transição de uma forma de sociedade para outra, do declínio de uma classe e consequente subida de outra. £ tudo isto e outras coisas mais. Opera-se uma revisão total das possibilidades do homem em face da natureza e do desconhecido. 0 poder político — penso

particulamente no poder totalitário — é um dos personagens principais do drama: agravamento do terror, tentativa de exoneração do humanismo,

eliminação das nossas tendências místicas e contemplativas, apelo à

LETRAS E ARTES, domingo, 24 jun. 1951, página 3.

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única força telúrica, e a supressão da nossa intimidade fecunda para se criar, através de monstruosos métodos científicos, uma solidão estéril e desumana — o que determina o aparecimento de uma nova espécie de homem, o homem mecânico, o homem "robot", o homem sozinho em face de um Estado e de um universo hostis, fatores de um permanente estado de sítio.

Não creio que haja outro assunto mais próprio à meditação de um poeta do nosso tempo. Penso que tal assunto é de fato épico, alargando-se, repito, o conceito clássico. E tal poema incluiria também feitos militares de larga envergadura — batalhas terrestres, navais, aéreas — que de resto não nos faltam. Se bem que o cinema talvez restituísse melhor este aspecto do drama.

0 poema inédito de Jorge de Lima dá, ao meu ver, a medida plena de extensão e profundidade deste drama. 0 poeta não hesitou em sacrificar seu pudor: despe-se na praça pública e mostra-se na sua miséria terrestre, centro que é de convergência e irradiação de todos os problemas afins. Torna-se um homem comum e um homem metafísico. É também um homem de história. Daí o exame de suas raízes ancestrais. Daí essa penetração no mundo português, sua volta a Camões que ele outrora renegara. E no poema de Dante descobriu a elucidação do nosso antigo mal, assim como o misterioso roteiro das três vias - inferno, purgatório e paraíso. Os temas são trasladados para o dia de hoje. 0 erotismo é exposto à luz como elemento positivo e grandioso da nossa formação. Eis o homem com todas as suas grandezas e safadezas. Mas quem trocou os limites do homem bom e do mau, da normalidade e da anormalidade?Somos heterogêneos, somos complexos, somos matéria moldável, sofremos a todo o instante a "postulação simultânea para Deus e para Satã", conforme escreveu Baudelaire. E na palavra "simultânea", reside a força do aforism do poeta.

Numa obra de trama tão cerrada noto às vezes um certo abuso de antíteses e metáforas— mas reconheço que seria quase impossível evitá-la, dado a própria extensão do texto. Tal abuso acentua- se mais fortemente nos poemas isolados, justificando-se entretanto no conjunto geral. Esta sobrecarga de temas, imagens e alegorias confere riqueza e força ao livro. A densa atmosfera de "Invenção de Orfeu" exige do leitor um desprendimento de preconceitos estéticos, uma atitude de especial gravidade e de adequação a este fenômeno moderno: o poder de ataque do poeta que desarticula os elementos.

Assistimos, com esta obra, a eclosão de uma nova fase do culteranismo, transportado e adaptado ao clima do Brasil. Não posso prever as consequências literárias da sua publicação; não sei se "Invenção de Orfeu" ficará como um soberbo monumento isolado, ou se

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engendrará uma posteridade de poetas. 0 trabalho de exegese do livro terá que ser lentamente feito, através dos anos, por equipes de críticos que o abordem com amor, ciência e intuição, e não apenas com um frio aparelhamento analítico. Nada terão a dizer de positivo certos críticos que abordam um texto de poesia como se tivessem de produzir uma ficha de estatística.

Parece-me que o espírito da obra geral de Jorge de Lima não é ainda bem "visível". Certamente o poeta é festejado e incluído entre os nomes representativos da nossa literatura. Seus poemas nordestinos causam com justiça o encanto de muita gente boa, que se inclina com supersticioso respeito diante dos textos chamados litúrgicos ou católicos. Mas a verdade é que, salvo alguns iniciados, a maioria espera ainda o Champollion que decifre e s s e s textos ilustres. Dá-se isto, a meu ver, devido ao conhecido fenômeno da preguiça mental, muito corrente nestas terras de calor, mormaço e fraca formação universitária. De fato, "Essa Negra Fulô", "Inverno", "Madona de Iaiá" são obras- primas. São "réussites" perfeitas, inexcedíveis. Mas este "mas"não carrega intenção restritiva depois do que afirmei antes — trata-se de poesias físicas, sensoriais, ao alcance da imediata percepção do homem mediano. Bem sei que por isso mesmo, embora de aspecto folclórico, atingem uma categoria universal. Ao passo que outras páginas reclamam cultura mais elevada, maior poder de penetração espiritual, hábitos de meditação, além de familiariedade com certas "correspondências" e analogias próprias ao clima da literatura e da religião. Os preguiçosos mentais e os turistas da crítica jamais decifrarão o complexo texto desta obra, que precisa ser comido e assimilado. Na verdade "Invenção de Orfeu" eleva a um plano superlativo de força de imaginação e poder realizador os múltiplos trabalhos do poeta Jorge de Lima.