ANIMAIS PEÇONHENTOS, TEMPESTADES E CURUPIRAS: QUESTÕES DE ORDEM ONTOLÓGICA NA LITERATURA...
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ANIMAIS PEÇONHENTOS, TEMPESTADES E CURUPIRAS: QUESTÕES DE ORDEM
ONTOLÓGICA NA LITERATURA JESUÍTICA SOBRE O BRASIL NO SÉCULO XVI1
Qui ne pardonnerait que le pardonnable?
(Jacques Derrida, Le siècle et le Pardon)
Alessandro Zir
(GIFHC-ILEA/UFRGS)
O título dessa comunicação refere, em primeiro lugar, a três tipos diferentes de entes: animais
peçonhentos, tempestades e curupiras. Em seguida, fala-se de questões de ordem ontológica. O
que se propõe aqui é pensar a especificidade dos entes referidos como diferenças que afetam a
forma de ser desses e de outros entes, e não como meras diferenças comparativas entre os entes
em geral, colocados todos num mesmo plano (Heidegger, 1961, vol. 1: 79-254; vol. 2: 203-213,
475-476).
A referência a Heidegger é anacrônica, e no entanto ela nos dá uma chave para se pensar,
independente de qualquer suposto rigor historiográfico, aquilo mesmo que inaugura, como um
desafio, boa parte da literatura jesuítica sobre o Brasil no século XVI. Da perspectiva aqui
apenas entrevista, tal desafio não pôde e nem pode encontrar resposta nessa literatura e nem nas
literaturas posteriores que se seguiram. O desafio sequer existe, mas por isso insiste, se risca,
inscreve, num espaço em que o tempo se subtrai para sempre recomeçar.2
1 Apresentado no XII Simpósio Internacional IHU. A experiência missioneira: território, cultura e identidade
(Unisinos), 2010, Sao Leopoldo. E publicado em A Experiencia Missioneira: territorio, cultura e identidade. São
Leopoldo: Casa Leiria, 2010. p.459 – 476. (ISSN 2175-6864) 2 Espaço literário, tal como entendido por Maurice Blanchot, em que escrever “c’est se livrer au risqué de l’absence
de temps, où règne le recommencement eternel” (Blanchot, 1955: 31). Da mesma forma, aquele que escreve
“appartient déjà à un autre temps, l’autre du temps... il est sorti du travail du temps... il sembre regarder d’une
manière autre les objets du monde usuel...” (: 50). A escrita “nous met nous-mêmes à l’infini”, nos faz alcançar o
ponto em que “ici coincide avec nulle part” (: 52). Ver também Derrida, L’écriture et la différence, 1967: 23-25, 47-
É possível dizer, por exemplo, que o que agora se tenta pensar como diferença
(ontológica) já aparecia e se iludia naquilo que os gregos chamavam chorismos. Para Aristóteles
assim como para Platão, o ser em sentido forte (prôtê ousia) é aquilo que está separado
(choristos) (Aristóteles, Metafísica, 1028a 33-34; cf. 1069a 24-30; Platão, Parmênides, 130b,
134d-e). Esse estar separado lembra um inaugurar/despejar daquilo que nos cerca a partir de um
ponto sempre deslocado. À pergunta sobre o que é o ser em sentido forte, Aristóteles responde de
uma forma que só em aparência pode ser dita unívoca (por hen) (Metafísica, 1003a 33-34). A
resposta (auto kath’hauto), como em Platão, ludibria uma tensão iniludível entre o particular, o
universal, e aquilo que deles se essencia (Metafisica, 1028b 33-36; cf. 1003a 5-15, Categorias
2b29ff).
Também é possível compreender a teologia negativa, em suas raízes neo-platônicas,
como acentuando essa experiência do chorismos em termos de uma noção metonímica
irredutível. Para o pseudo-Dionísio, as coisas o tempo todo emanam e tentam retornar à sua
origem (thearchia), mas isso se dá através de níveis ontológicos (entre seres encarnados,
serafins, querubins, tronos, dominações, virtudes, poderes, arcanjos, anjos). Entre tais níveis,
aqueles que são superiores têm características que excedem os inferiores, e que não podem ser
concebidas senão por meio de uma infinidade de processos linguísticos insuficientes e não-
literais (Denys, 1970: 121A; cf. 164D-168A; cf. 177C). Esse ponto será repetido por São Tomás
de Aquino (Summa Theologiae, Pars I, quaest. 108, article 5; Aquinas, 1941: 647b10).
Sem dúvida, o mais imediatamente visível nessa ontologia neoplatônico-cristã, que
repensa o chorismos grego, é a ideia de ordem e hierarquia. De uma perspectiva igualmente
visual, arquitetônica, Nietzsche, num fragmento póstumo famoso, faz o elogio da ordem dos
jesuítas, lado a lado com as tropas prussianas, como um exemplo consumado de obra de arte
(Kunstwerk) (1885: 2[114]). Mas é preciso pensar o que nessa visibilidade imediata justamente
insiste e escapa. Independente de toda polêmica com relação a Platão e à tradição cristã, a
ontologia de Nietzsche pode ser caracterizada — como o faz Heidegger (1961, vol. 1: 352) —
8, 84, 86-7. Literário aqui diz respeito a um certo cultivo da linguagem no limite do significativo e do
representacional. Cuidado dos mais difíceis senão mesmo impossível, ele não está sob jurisdição dos profissionais
de uma certa área da cultura, e pode ser inclusive o oposto do que se pratica, por exemplo, nos departamentos de
letras da maioria das universidades.
exatamente em termos de uma teologia negativa. Aquilo que opera e se consuma na visibilidade
imediata da hierarquia religiosa e militar também se guarda, para aquém do que se mostra e
sustenta, e de forma mais abundante.3
Do ponto de vista de um cálculo utilitário, os resultados da imposição da ordem e da
hierarquia jesuítica no início do processo da nossa colonização seriam talvez pouco
compensatórios. Mas tal momento não se explica apenas em termos de uma economia estrita,
que pensa a circulação de sujeitos e objetos em termos de valores mais ou menos bem
estabelecidos (antes ou depois, pouco importa). É preciso pensar o momento também em termos
de uma economia bem mais geral, quer dizer, de uma economia que se esforça por instituir o
valor (e o não valor) daquilo que poderá (ou não) entrar em circulação (Derrida, 1967: 399-400;
Bataille, 1967: 76, 255). E nem tudo entra em circulação. Por exemplo, os entes aqui referidos,
animais peçonhentos, tempestades e curupiras, são aqueles que — embora fazendo parte do
universo dos índios e dos jesuítas — nunca entram em circulação. Por uma questão de justiça,
eles ficam e tem de ficar aquém (e além) da economia estrita, e inclusive da ontologia, entendida
em sentido tradicional.
* * * * *
Comentários avançados por historiadores, como Laura de Mello Souza, quanto a uma suposta
“má vontade” “detratora” dos jesuítas com relação aos homens, bichos e plantas do Novo Mundo
(Mello e Souza, 1995: 46) podem fazer sentido dentro dessa economia estrita, mas são incapazes
de pensar a justiça do processo de colonização do ponto de vista de uma economia geral.
Paradoxalmente, tais comentários correm o risco de se fechar e se ater de uma forma mais
3 A diferença aparece aqui no entendimento mesmo desse se guardar. A teologia negativa de Nietzsche seria uma
teologia que não possui um Deus. O que se quer dizer com isso é que todas as metafísicas (e teologias, incluindo as
negativas) anteriores teriam procurado determinar o que se guarda como uma espécie de princípio, de raiz, em
última instância, como um ente ainda mais excelente que os outros (entes). O caminho em que Heidegger se engaja,
a partir de Nietzsche, seria outro (Derrida, 1967: 200-203, 216-217, 222-224). Não é, em todo o caso, uma tarefa
fácil determinar com exatidão o que aproxima e o que afasta a teologia negativa desses caminhos posteriores. Em
ambos os casos, estar-se-ia diante “des plus grandes audaces du discours dans la pensée occidental” (Derrida, 1967:
398).
violenta do que a violência que eles denunciam à lógica restrita de explicitar e auferir um valor
determinado a sujeitos e objetos para que entrem, cada vez mais, em circulação efetiva.
Historiadores como Laura de Mello e Souza têm razão em criticar a ingenuidade da
literatura apologética que se deixa seduzir, por exemplo, pela aparência festiva das missas e
celebrações religiosas realizadas pelos jesuítas junto aos índios. O maior risco aqui é, entretanto,
pensar que uma festividade autêntica pudesse estar livre de qualquer forma de violência. Desse
engodo talvez escapem os que se deixam, justamente, seduzir. A conexão entre canibalismo e
eucaristia, por exemplo, foi denunciada e reconhecida, desde o início da colonização,
explicitamente pelos calvinistas, pelos índios, e até mesmo pelos jesuítas (Leite, 1956-1968, vol.
3: 111, 194). Na literatura rio-grandense do século XX, o fato das missões ressurgirem no
horizonte como o mito de uma civilização perdida (Veríssimo, 2001: 86-87) não escamoteia
necessariamente a ambiguidade da relação entre padres e índios — a lâmina dupla de um punhal
a que se tem acesso apenas em sonhos, e que “circula” enquanto “desaparece”, que é “antevisto”
e procurado pelo colonizado antes mesmo de poder ser “reconhecido” pelo colonizador (que o
guarda) (Veríssimo, 2004: 47-87).
Como o punhal guardado do Padre Alonzo, animais peçonhentos, tempestades e
curupiras são exemplos de objetos que nunca circulam. Quer dizer, ao circular, desaparecem, e
ao desaparecerem circulam. São também o que circula viciosamente sem poder, sem ter o direito,
de sair do lugar, porque nele não está. Mais que existem, insistem. Ao contrário do que dizem
alguns historiadores, eles não denotam apenas má vontade ou desinteresse do colonizador pela
terra colonizada. Como realidade infernal, indizível, o Brazil se torna mais e não menos
interessante, e as descrições que os jesuítas, esses grandes oradores, fazem dele ganham em
expressividade na medida exata em que perdem em sentido. Só assim é possível pensar o ser dos
entes não como um outro ente, que se coloca ao lado, num mesmo plano, e do qual se dispõe,
mas como um inaugurar/despejar daquilo que nos cerca a partir de um ponto sempre deslocado.
Animais peçonhentos, tempestades e curupiras, esses fenômenos infernais da literatura
jesuítica sobre o Brasil do século XVI, surgem nessa literatura, sem poderem sair dela, e pelo
mesmo motivo de que nela não estão fechados, como uma superabundância que tem, e não pode
deixar de ter, o poder de afetar, deslocar, aquilo mesmo que ela estabelece. Na medida em que
pode ser visível, esse ponto aparece, por exemplo, em várias passagens de uma carta escrita por
José de Anchieta, de São Vicente, em 31 de maio de 1560. Primeiro, há a descrição do seu
encontro pessoal com uma cobra brasileira:
Certa ocasião, quando eu estava retornando a Piratininga, vindo de uma povoação dos
portugueses onde fora ensinar a doutrina com outro irmão... deparei-me com uma cobra,
enrolada sobre si mesma, na beira da estrada. Depois de fazer o sinal da cruz para me
proteger, acertei-a com o meu bastão, matando-a. Em seguida, vimos três ou quatro
minúsculas se arrastando pelo chão. Enquanto eu tentava descobrir, espantado, de onde
tão subitamente teriam vindo, eis que outras irromperam do ventre materno. E quando
agitei o cadáver, surgiram ainda mais fetos, em número de onze, todos vivos e perfeitos, à
exceção de dois. Fui informado por pessoas de crédito de uma outra no ventre da qual
mais de quarenta foram descobertos. Seja lá como for, em meio a uma multidão tão
numerosa e conspícua, o Senhor nos guarda incólumes, e assim nele confiamos mais do
que em qualquer virtude humana ou antídoto, pois seu poder tudo excede, e sobre cobras
caminhamos sem ser derrotados. (Leite, 1956-1968, vol. 3: 217-218; cf. Anchieta, 1933:
115)4
Através da imagem elaborada e persuasiva dos pequenos filhotes irrompendo e se arrastando do
cadáver da mãe, a ideia de algo inesperado e repulsivo, ameaçador, quase que fora de controle, e
desencadeado na própria natureza, é sugerida ao leitor. O aparecimento dos primeiros filhotes é
imperceptível, como se eles surgissem do nada. No seu sofisticado estilo literário, Anchieta não
escreve simplesmente que os filhotes se arrastam para fora da mãe, mas que, logo depois de ter
visto e matado a cobra, ele vê outras minúsculas se arrastando pelo chão. A contagem começa
com esses três ou quarto, e então salta para onze, depois do que se extrapola para o número de
possivelmente quarenta (em outros casos relatados), até que se atinge a infinidade de uma
multidão conspícua. Essa fonte crescente de mal é controlada apenas por Deus, que nos protege
ao excedê-la. Porque ele confia e (supostamente) é protegido por Deus, Anchieta mata a cobra
4 “Cum semel a quadam Lusitanorum mansione quo me cum alio Fratre doctrinae gratia obedientai miserat,
Piratiningam remearem, invi colubrum iuxta viam iacentem in spiras collectum, quem signo crucis prius munitus,
percussi baculo et interfeci. Post paululum morae caeperunt tres aut quatuor parvuli repere in terra, cumque
miraremur unde ii, qui antea non parebant, tam subito affuissent, ecce materno ex utero caeperunt alii erumpere;
cumque cadaver excuterem, prodierunt reliqui faetus ad undenum numerum, omnes iam animati et perfecti, praeter
duos. Sed et de alio audivi a fide dignis, in cuius ventre plusquam quadraginta reperti sunt. In tanta autem et tam
frequenti multitudine nos Dominus servat incolumes, et eo magis quo minus antidoto aut virtuti ullae humanae
fidimus, sed soli Domino Iesu, qui solus praestare potest, ne quid supra colubros ambulantes capiamus detrimenti.”
com seu bastão, expondo-se dessa forma a um perigo que é claramente considerado como
estando além de um controle meramente humano.
Um tipo semelhante de ameaça é sugerido ao leitor na descrição feita por Anchieta, na
mesma carta, das aranhas brasileiras. O aspecto funesto das aranhas brasileiras seria tal que ele
imediatamente atravessa, e como que desfaz a distancia ordinária (física) entre aquele que vê e
aquilo que é visto: “E o que dizer a respeito das aranhas, cujo número é incontável? Algumas são
vermelhas, outras tem a cor da terra, outras são de um preto muito escuro, e todas elas peludas.
Vocês acreditariam que são caranguejos, tal é o tamanho do seu corpo; vê-las é horrível, pois a
própria aparência transmite o veneno” (Leite, 1956-1968, vol. 3: 218, my emphasis).5
O mesmo desfazer das distâncias, em que a aparência do mal atinge materialmente o
sujeito (basta ver a aranha para ser afetado pelo seu veneno), aparece na descrição que Anchieta
faz de uma tempestade. Ao ler a passagem, o leitor pode quase que sentir o dano dolorosamente
infringido ao próprio olho, sendo cego pelo relâmpago. E agora há também o pressentimento do
vento intencionalmente rondando o lugar, a sensação de se encontrar no meio de uma emboscada
armada pelos elementos naturais. A cena desencadeia um pânico escatológico, de fim de mundo:
Os trovões produzem tal estrondo que, embora raramente lancem raios, todos ficam
apavorados. Os relâmpagos brilham com tal força de luz que eles ofuscam e afetam a
acuidade de qualquer olho, e é como se disputassem com o dia em esplendor luminoso. A
isso se acrescentam tornados violentos e furiosos, que fazem soprar o vento com um
ímpeto tão violento que às vezes, no meio da noite tempestuosa, somos obrigados a
levantarmos com as armas da oração contra o monstro da tempestade. Isso quando não
temos de deixar as casas, que correm o risco de cair em ruínas. As casas são sacudidas
pelos trovões, árvores são espalhadas, e tudo fica de cabeça para o ar. Não faz muitos
dias, quando estávamos em Piratininga, depois do sol se pôr, o ar começou a ficar turvo,
o céu de repente se encheu de nuvens, trovões e raios assomavam ameaçadores. E então,
levantando-se o vento sul e rondando a terra pouco a pouco, até que ele virou noroeste
(de onde quase sempre surgem as tempestades), cresceu com tanta força que era como se
o Senhor ameaçasse destruir-nos. Destroçou casas, arrancou telhados, dispersou a
floresta. Árvores de altura colossal ele arrancou pelas raízes, árvores comuns ele quebrou
e desfez em pedaços, e assim bloqueou todas as estradas, e nenhum caminho ficou aberto
5 “Quid de araneis, quorum innumera est multitudo? Subrufi sunt alii, alii terrei coloris, alii picei, pilosi toti;
cancros credas, tanta est corporis magnitudo; visu faedi, ut solus ipse aspectus venenum prae se ferre videatur.”
através da floresta. É surpreendente que, em meia hora (e não durou mais do que isso),
tenha feito tal estrago na floresta e nas casas, e é certo que se o Senhor não abreviasse
mesmo o tempo, nada poderia refrear tamanha violência, e tudo sem exceção seria
arruinado. (Leite, 1956-1968, vol. 3: 204-5; cf. Anchieta, 1933: 104-105)6
As cartas fazem também referência a demônios, que os jesuítas batizam em conformidade
com o vocabulário dos índios. Na mesma carta que estamos analisando, uma passagem
interessante aparece:
É notório e corre pela boca de todos que existem [na terra] certos demônios, que os
brasileiros chamam de curupira, [e] que atacam seguidamente os índios no mato,
açoitando-os, ferindo e matando. Testemunhas disso são nossos irmãos, que os viram
sendo mortos desse jeito várias vezes. Por causa disso, quando se embrenham pelo mato e
montanhas rumo aos picos mais altos no meio da terra, os índios têm o hábito de deixar
pelo caminho penas, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes, como oblações,
rogando fervorosamente aos curupiras que não lhes façam mal. (Leite, 1956-1968, vol. 3:
234-5; cf. Anchieta, 1933: 128)7
6 “Tonitrua vero tanto fragore quatiuntur, ut maximo sint terrori, sed raro iaculantur fulmina, tanta etiam lucis
vehementia radiant fulgura, ut omnem hebetent et retundant oculorum aciem, et cum die quodam modo certare
luminis splendore videantur: ad quod accedunt violenti furiosique ventorum turbines, quorum tam vehementi impetu
nonnunquam flatus commovetur, ut aliquando ad orationis arma consurgere intempesta nocte cogamur contra
tempestatis immanitate, aliquando etiam domo exire ruinae periculum declinantes. Nutant domus tonitruis
concussae, sternuntur nemora, et omnia conturbantur. Non multis ante diebus cum essemus Piratiningae post
occasum solis, caepit aër commisceri, subito obnubilari caelum, tonitruisque et fulguribus crebris minitari: tum
ventus ab Austro consurgens paulatim ambire terram, donec ad corum perveniens (unde fere semper solet exoriri
tempestas) acceptis viribus tantopere invaluit, ut exitium minari Dominus videretur. Concussit domos, tecta rapuit,
et stravit sylvas, arbores ingentis magnitudinis alias radicitus eruit, alias medias confregit, comminuit alias, ita ut
omnes obstruerentur viae, nullumque pateret iter per nemora: mirium est quantas mediae horae spatio (nec enim
amplius duravit) arborum et tectorum strages edidit, et quidem certe nisi Dominus breviasset tempus illud, nihil
tantam vim posset retorquere, quin omnia funditus ad terram ruerent.”
7 “Notum est et in omnium ore versatur, esse quosdam daemones, quos Brasilles vocant corupíra, qui saepe in sylvis
adoriuntur Indos, flagris caedunt, cacerant et necant. Huius rei Fratres nostri, qui aliquoties ab eis interfectos
viderunt, testes sunt. Solent propterea Indi in quadam via, quae per asperas sylvas et acclives montes in
mediterraneaum ducit, in altissimi omnium montis vertice, cum ea transeunt, avium pennas, flabella, sagittas et alia
huiusmodi quasi oblationis nomine relinquere corupíra, ne sibi noceant, summopere deprecantes.”
É possível inferir de passagens como as aqui referidas que fenômenos como animais
peçonhentos, tempestades e curupiras confrontam os jesuítas numa dimensão ontológica. Eles
não apenas desfazem as distancias ordinárias entre as coisas, mantendo-as sob uma ameaça
constante de destruição e colapso, como borram distinções entre o imaginário e o real. Esse
ponto é mais imediatamente visível na passagem a ser citada a seguir, escrita por António de Sá,
do Espírito Santo, em treze de junho de 1559. O mal irrompe aqui, simultaneamente, tanto no
fórum mais íntimo daquele que o experimenta quanto em sua realidade externa. Isso faz sentido
quando se pensa que entidades como demônios (e também, em certa medida, animais
peçonhentos e tempestades) não são propriamente entidades, entes, fenômenos, em sentido
estrito. Eles como que permeiam, contaminam, impregnam e ao mesmo tempo ultrapassam
aquilo que, literalmente, existe. Ao contrário do que existe, sem por isso deixarem de ser reais,
eles não estão eles mesmos submetidos a dicotomias pressupondo uma distinção clara e distinta
entre o que ocorre na cabeça de alguém e no seu mundo exterior. Quando eles emergem, eles
implodem tais dicotomias:
Não deixarei de contar algo que é muito admirável, e mostra claramente que o demônio,
inimigo dos homens, anda com muita raiva e indignado por ver que dele tiramos este ano
um grande número de almas, que morrendo depois de serem batizadas foram acolhidas
pelo Senhor. O caso é o seguinte. Tinha Vasco Fernandez, nosso chefe, um filho de nome
Manemoaçu, que estava muito doente, na aldeia da cidade. Estando ele assim, numa noite
de grande tempestade, os demônios o tomaram em corpo e alma, e com grande estrondo o
levaram arrastando e maltratando. Acorreram as pessoas da aldeia por causa do ruído e
dos gritos do pobre negro, e tomando tochas de fogo seguiram seu rastro até o porto de
Manuel Ramallo onde depois o perderam...
O pobre índio contou que depois de chegarem com ele ao porto de Juan Ramallo,
levaram-no a Santo Antônio, com tal ímpeto e clamor que ele a si mesmo não podia ouvir
nem entender. Daí chegaram com ele ao porto de Jaravaia e, para concluir, ele conta que
o colocaram num lugar cheio de ostras [onde] muito se machucou. Ali, ele viu fogos,
muitos e horríveis. (Leite, 1956-1968, vol. 3: 39-40)8
8 “No dexaré de contar una cosa muy digna de admiración, por la qual se verá claramente cómo el Demonio,
inimigo de los hombres, anda muy ravioso y indignado por ver que le tenemos llevado este año tan grande prenda
de almas, que en la mortindade passada después de ser baptizadas llevó el Señor para sí. El caso es el seguinte.
Tenía Vasco Fernandez, nuestro Principal, un hijo por nombre Manemoaçu, el qual estava muy doliente en la Aldea
de la villa. Estande él así una noche de grande tempestad lo tomaron los demonios en cuerpo y alma, y con grande
estruendo lo llevarão arastrando y mastratando. Acudierão los de la Aldea al ruydo y gritos del pobre negro y
Na passagem, enfatiza-se duas vezes que o homem atacado pelos demônios estava doente. Seus
sentidos deviam estar, portanto, de alguma forma alterados. Se tal ponto não tivesse qualquer
relevância para o evento narrado, ele não teria sido repetido duas vezes. Os demônios assaltam o
homem, possuem-no, em corpo e alma. Quer dizer, eles afetam-no tanto na sua substância
corpórea, material, quanto naquele que seria o cerne do seu ser espiritual. As pessoas acodem
para ajudá-lo, porque elas escutam os barulhos e gritos dele (do pobre índio), embora em
nenhuma parte seja sugerido que o acontecimento todo tenha sido desencadeado apenas pelo
homem. O ataque e o alvoroço são atribuídos igualmente aos demônios — mas por acaso alguém
mais os teria visto diretamente, independente dos ruídos e da agitação do próprio índio? Eles
acabam perdendo o homem, que é carregado para longe e desaparece no meio da noite. A parte
mais ambígua é aquela em que se diz que não era mais possível ao homem distinguir entre os
barulhos feitos por ele mesmo e os barulhos feitos pelos demônios: “levaram-no... com tal
ímpeto e clamor que ele a si mesmo não podia ouvir nem entender”. O inferno é aqui não uma
coisa que estaria apenas embaixo de nossos pés, mas na periferia, paralelo ou deslocado com
relação aos limites do mundo meramente natural. Quando ele irrompe, ele perturba as entidades
do mundo natural, e não pode ele mesmo ser categorizado de acordo com as dicotomias que as
regem.9
* * * * *
tomando lumbreras de fuego y fuéronse por el tastro hasta el puerto de Manuel Ramallo y de allí por delante lo
perdieron. .../ El pobre indio contava que después de lo aver puesto en el puerto de Juan Ramallo lo llevaron a
Santo Antonio con tanto ímpetu y clamor que él a sí mesmo no se podia oyr ni entender. De aquí lo pusieron en el
puerto de Jaravaia y por concluyr diz que lo pusieron entre muchas ostras [donde] se hiriera muy mal. Aquí vió
muchos fuegos y muy horríbiles.”
9 Foucault entreviu muito bem esse ponto, quando ele disse que, na Renascença, e enquanto um fenômeno do mal, a
loucura era algo que extrapolava o domínio do que entendemos por psicológico. Na experiência de pintores como
Hieronymus Bosch, a loucura estaria relacionada a “le règne obscur”, e conectada “aux grands puissances tragiques
du monde”, “à ses formes souterraines” (Foucault, 1972: 34, 35). Conforme as análises de Foucault, o entendimento
que esses pintores tinham da loucura divergia profundamente do entendimento de humanistas como Erasmus, que
introverteria a loucura, reduzindo-a a algo meramente moral, tendo que ver com um defeito na faculdade da razão
humana, dentro da cabeça de alguém (1972: 35-37). Os jesuítas que vieram ao Brasil, de acordo com a análise que
aqui propomos, estariam mais próximos de Bosch do que de Erasmus nesse sentido.
Pelas análises clássicas de Alfred Métraux (1949), que permanecem, pelo menos para
alguns historiadores, como “[an] essential reference... for both ethnological and ethnohistorical
studies of native Brazilian societies” (Monteiro, 1999: 981), sabe-se que é muito provável que o
sistema religioso dos índios brasileiros, na época da chegada dos jesuítas, fosse bastante
complexo e elaborado. Esse ponto é só muito superficialmente contradito pelo fato de que os
índios são referidos às vezes no corpus dos portugueses como não adorando nenhum deus e não
tendo fé (Leite, 1956-1968, vol. 1: 136; cf. Gandavo, 1969, vol. 2: 85). Tais referências à suposta
falta de fé dos índios diz respeito, na verdade, ao fato de que eles não opunham ao cristianismo
nenhum culto institucionalizado. Quer dizer, eles não podiam ser vistos como praticando
idolatria de uma forma tão sistemática como outras civilizações encontradas pelos portugueses
na África e na Ásia, ou pelos espanhóis no Peru, que rivalizavam e entravam em confronto direto
com a fé cristã em nome dos seus próprios deuses. Isso não quer dizer que os índios brasileiros
não acreditassem em entidades espirituais, e não tivessem uma forte sensibilidade religiosa.
Manuel da Nóbrega, por exemplo, em uma de suas cartas, conta em detalhes a chegada nas tribos
de xamãs que, imigrando de outros locais, pregariam ideias escatológicas, de cunho religioso,
como aquelas relacionadas à existência da terra sem mal.10
Hélène Clastres parece ter passado por alto tais passagens, levando demasiado ao pé da
letra os comentários dos jesuítas sobre a falta de fé dos índios, mas unicamente para defender
que esses comentários demonstram uma falta de clareza por parte dos próprios jesuítas (e não
uma real falta de fé dos índios). A antropóloga vê nos relatos de outros autores, como Hans
Stadens, uma descrição mais perspicaz do sistema religioso dos tupinambás e outros índios
brasileiros, que ela acredita ter sido um sistema significativo e elaborado (Clastres, 1995: 7-11,
14-15). Outros estudiosos vão ainda dizer que colonizadores como os jesuítas teriam, na verdade,
acabado “por demonizar ainda mais as concepções [religiosas] dos indígenas” (Sousa, 1995:
10 De ciertos en ciertos años vienen unos hechizeros de luengas tierras, fingiendo traer sanctidad”... “y mudando
su propra boz como de niño... les dize, que no curen de trabajar, ni vayan a la roça, que el mantenimiento por sí
crescerá, y que nunca les faltará que comer, y que por sí vendrá a casa; y que... las flechas se yrá al mato... Y
acabando de hablar el hechizero, comiençan a temblar principalmente las mugeres congrandes temblore en su
cuerpo, que parecen demoniadas, como de cierto lo son, echándose en tierra, espumando por las bocas... (Leite,
1956-1968, vol. 1: 150-2)
139-40). É impossível deixar de perceber que tais discussões movem-se em águas tumultuosas.
O tópico do religioso de fato parece dizer respeito a uma economia mais geral de valores, no
sentido apontado acima, que é dificilmente negociável. Na medida do possível, é possível que os
jesuítas tenham feito mais jus a essa economia do que conseguimos fazer hoje, quando, como
que ao final da história, e sem podermos nos colocar fora da história, defendemos uma circulação
o mais desimpedida possível dos produtos e uma total liquidação das contas.
Os jesuítas, em seu contato com os índios, a flora e a fauna do Brasil, pareciam mais
prudentes, quer dizer, conscientes daquilo que não circula. Do que mesmo sem existir insiste.
Daquilo que não está simplesmente ao lado, e ainda assim sustenta e afeta, vindo sabe-se lá de
onde, a forma de ser dos entes. É assim que o padre Luís da Grã, numa carta escrita da Baía em
27 de dezembro de 1554, nos confessa a aversão que sentiam os índios por sermões envolvendo
o tópico da morte. A aversão não vinha do fato deles nunca terem pensado em tais coisas. Pelo
contrário, a morte era para eles tão real e ao mesmo tempo subtraída, que bastava falar nela para
que ela pudesse se fazer presente, insidiosa (Leite, 1956-1968, vol. 2: 137). Nóbrega nos conta
que “se alguém os ameaça de morte, pensam que podem morrer, e morrem de imaginação já que
sua crença é tão forte” (Leite, 1956-1968, vol. 2: 339).11
O padre António Blázquez diz que os
índios “são tão predispostos a imaginarem coisas, e embriagam-se tanto com isso, que morrem
de pura imaginação” (Leite, 1956-1968, vol. 3: 416).12
O padre Leonardo do Valle comenta o
seguinte: “quando doenças atacam as vilas, a imaginação dessas pessoas nos dá um enorme
trabalho, porque parece que muitos morrem dela como da peste” (Leite, 1956-1968, vol. 4: 16).13
Ainda em relação a essas questões, e mais especificamente a um “animal peçonhento”,
uma das passagens mais interessantes do corpus dos portugueses sobre o Brasil do século XVI
pode ser encontrada num dos tratados do jesuíta Fernão de Cardim: quando os índios escutam o
cantar da rã denominada por eles de guararigeig, morrem sem mais nem menos. E não há nada
que se possa dizer a eles a fim de prevenir esse acontecimento, já que “o único remédio que
11 “... se lhe deitais a morte, cuidão que os podeis matar, e morrerão da imaginação pello muito e sobejo que
creem...”
12 “... son ellos dados tanto a imaginar i enbebécensse tanto en esto que mueren de pura imaginación.”
13 “Muito trabalho nos dá a ymaginação desta gente nos tais tempos de doenças porque casi tantos parece morrem
della como com a peste.”
possuem é caírem mortos, tão grande é a imaginação deles e o medo... E qualquer índio que ouve
o cantar dessa rã morre, e dizem que ela produz o esplendor de um raio” (Cardin, 1925: 103; cf.
162, 177).14
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14 “Não faltão rãs em os rios, fonts, charcos, lagôas; e são de muitas species, principalmente esta – Guararigeig; he
cousa espantosa o medo que della têm os Indios naturaes, por que só de a ouvirem, morrem, e por mais que lhes
préguem não têm outro remedio senão deixar-se morrer, tão grande he a imaginação, e aprehensão que tomão de
a ouvir cantar; e qualquer Indio que a ouve more, porque dizem que deita de si hum resplandor de relampago.”
1968
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