Análise de Mise-en-Scène - Excerto de 'The Shining'
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INSTITUTO POLITÉCNICO DE LISBOA
ESCOLA SUPERIOR DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
Mestrado em Audiovisual e Multimédia
Comunicação Audiovisual
Análise de Mise-en-Scène
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Excerto de 'The Shining'
Pedro Soares Filipe
Mestrado AM - Ano I - nº5451
Docente: Ricardo Real Nogueira
Data de entrega: 04 de Junho de 2013
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Análise de Mise-en-Scène – 'The Shining' Pedro Soares Filipe [[email protected]]
Escola Superior de Comunicação Social
Introdução
'The Shining' é o 14º filme creditado a Stanley Kubrick. Foi realizado em
1980, numa altura em que Kubrick procurava encontrar um projecto que lhe
permitisse ultrapassar o relativo insucesso financeiro de 'Barry Lyndon' e ao
mesmo tempo concentrar-se noutra ideia em que trabalhava há alguns anos - um
filme sobre a vida de Napoleão.
Apesar de ser visto por alguns críticos, até certo ponto, como um projecto
de transição, o poder evocativo deste clássico do terror já ultrapassou gerações e é
considerado como um dos mais complexos e enigmáticos filmes do realizador.
A história, adaptada por Kubrick e Diane Johnson a partir da obra de
Stephen King, gira à volta de um homem, Jack Torrance, que aceita um emprego
como caseiro num hotel situado num local remoto e pouco acessível. A sua missão
será cuidar da manutenção deste espaço durante o inverno, época onde este fecha
as portas ao público. À partida este homem, aparentemente normal, pensa que esta
será apenas uma oportunidade para passar algum tempo em tranquilidade com a
sua família e se dedicar à sua verdadeira paixão, a escrita. Mas através dos poderes
paranormais (aquilo a que se chama o 'shining') do seu filho percebemos logo de
início que o hotel, construído em cima de um velho cemitério índio, não é, contudo,
um lugar pacífico. Influenciado pela solidão do lugar e pela carga sobrenatural que
este sítio carrega, Jack irá enlouquecer e, tal como nos é descrito pelo director do
hotel durante a primeira entrevista, seguirá os passos do seu antecessor nesta
tarefa e tentará assassinar a sua família.
A cena que é seguidamente analisada é crucial para o entendimento de toda
a trama e constitui igualmente um dos momentos mais aterradores do filme. Em
traços gerais é um ponto de viragem onde temos, através do olhar da esposa de
Jack, Wendy, a confirmação de que este está completamente louco. Os indícios
deste estado de espírito já se encontravam presentes em várias cenas mas é aqui
que Kubrick revela o verdadeiro enquadramento desta personagem. É ao
encontrar o produto do trabalho do marido, que tem resmas de papel
dactilografado com a frase "All work and no play makes Jack a dull boy.", que
finalmente entendemos o ponto sem retorno em que Jack se encontra.
Metaforicamente falando esta cena representa igualmente a viagem que o
realizador convida o espectador a percorrer (através da viagem da esposa de Jack,
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acompanhada pela câmara num longo plano em travelling) até perceber o quanto
fora da realidade se encontra Jack. Um estado evolutivo entre a aparente
normalidade e a loucura assassina que, tal como o anterior caseiro, se apodera
deste homem.
A Análise
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Plano #01 – [00:00'00 a 00:00'40] : de Plano Americano (no início) a Plano
Inteiro (até ao corte)
Movimento: Travelling. A câmara (em Dolly ou Steadicam) segue a personagem de
Wendy à medida que vai entrando no salão.
Mise-en-Scène: Wendy, entra no salão, sozinha, e gira sobre si à medida que
pergunta por Jack. A câmara segue-a de perto, afastando-se apenas no final do
plano.
Décor: Salão totalmente vazio.
Iluminação: Difusa, vinda das enormes janelas ao lado esquerdo. E de três
candeeiros no andar de cima.
Banda Sonora: Surge em fade-in (tal como o som dos passos da protagonista) e
vai aumentando de intensidade.
Diálogo: "Jack? Jack?"
Duração do Plano: 40 segundos
Montagem / Transição: Corte do plano anterior* (Hallorann passa por um
acidente de viação numa estrada coberta de neve)
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Explicação: Este plano mostra toda a insegurança, solidão e desorientação em que
a personagem de Wendy se encontra. A sua entrada neste enorme salão vazio,
quase pé ante pé, de forma a tentar não irritar o seu marido ou quem sabe o
próprio espaço (sabemos que o hotel foi construído sobre um velho cemitério
índio) e a maneira como gira à volta de si própria à medida que vai avançando e
chamando por Jack são pistas que revelam o estado de espírito desta mulher. Para
Wendy, o hotel neste momento é quase uma entidade com vida própria. Ela
desloca-se por ele com um taco de baseball para sua protecção mas parece tão
preocupada com o espaço que a rodeia como com um potencial agressor humano.
Perto do final do plano podemos ver a luz que cai sobre o salão através das janelas
e que parece revelar uma neblina, uma difusão que reforça o sentido onírico de
todo este setup. A banda sonora reforça ainda o sentimento crescente de
insegurança e terror, surgindo em 'fade in' e crescendo à medida que a
personagem vai ficando mais assustada.
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Plano #02 – [00:00'40 a 00:00'55] : de Plano Médio (no início) a Plano Inteiro
(até ao corte).
Movimento: Plano fixo até aos 00:00'47 e depois um Travelling muito suave na
vertical descendente (à medida que Wendy se afasta). A partir daqui a câmara fixa-
se novamente em plano inteiro até ao corte.
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Mise-en-Scène: Wendy, de frente para o espectador e simetricamente enquadrada
em relação ao centro, olha em volta e não encontrando o marido, decide
aproximar-se da mesa onde este habitualmente trabalha.
Décor: Salão totalmente vazio. Mesa com a máquina de escrever ao centro.
Iluminação: Difusa, vinda das enormes janelas ao lado direito, de três candeeiros
no andar de cima no lado oposto e, a incidir na cara de Wendy, das escadas
iluminadas que vimos no plano anterior.
Banda Sonora: A continuar o crescendo do plano anterior. Tornando-se mais rica
e aumentando a urgência.
Diálogo: Sem diálogo.
Duração do Plano: 15 segundos
Montagem / Transição: Corte do plano anterior (Wendy percorre o salão e
detém-se um pouco para lá da mesa com a máquina de escrever)
Explicação: A máquina de escrever e o texto que Jack dactilografou são aqui a
personagem principal ao chamarem Wendy a investigar o seu conteúdo. Tendo
atravessado a enorme sala e não encontrando Jack esta vê-se como que forçada a
tentar perceber o que este tem andado a escrever. A forma inquieta e insegura com
que se aproxima da grande mesa onde está a máquina de escrever parece,
novamente, reafirmar que dentro de momentos estaremos perante uma terrível
descoberta.
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Plano #03 – [00:00'55 a 00:01'10'] : Plano Próximo.
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Movimento: Plano fixo.
Mise-en-Scène: Wendy, de frente para o espectador e enquadrada ao centro, olha
fixamente para a máquina de escrever Adler.
Décor: Salão vazio.
Iluminação: Difusa, vinda da esquerda.
Banda Sonora: A continuar o crescendo do plano anterior.
Diálogo: Sem diálogo.
Duração do Plano: 15 segundos
Montagem / Transição: Corte do plano anterior.
Explicação: O olhar de Wendy surge lentamente sobre a máquina de escrever e
esta revela os seus piores temores. A perspectiva é quase a de um olhar da
máquina de escrever que parece revelar a Wendy o trabalho do seu marido.
Mesmo antes de sabermos o que está escrito naquela folha de papel sabemos, pelo
olhar de Wendy, que se trata de algo profundamente perturbador.
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Plano #04 – [00:01'10 a 00:01'21'] : Muito Grande Plano.
Movimento: Plano fixo.
Mise-en-Scène: O texto escrito na folha da máquina de escrever vai rodando com a
mesma frase escrita em toda a folha: "All work and no play makes Jack a dull boy."
Podemos ver o detalhe da escrita, com as suas imperfeições e repetições.
Décor: Máquina de escrever.
Iluminação: Difusa, vinda de cima.
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Banda Sonora: A continuar o crescendo do plano anterior. Ouve-se o rolo da
máquina de escrever a rodar.
Diálogo: Sem diálogo.
Duração do Plano: 10 segundos
Montagem / Transição: Corte do plano anterior.
Explicação: O plano de pormenor do texto que Jack escreveu revela finalmente a
Wendy que este enlouqueceu. A irregularidade na escrita do texto, os erros
ortográficos, a deficiente formatação, tudo indica a total loucura de Jack.
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Plano #05 – [00:01'21 a 00:01'33'] : Plano Próximo.
Movimento: Plano fixo.
Mise-en-Scène: Wendy desvia o seu olhar da máquina de escrever para a resma de
folhas dactilografadas ao lado desta.
Décor: Salão vazio.
Iluminação: Difusa, vinda da esquerda.
Banda Sonora: A continuar o crescendo do plano anterior. Percebemos agora mais
pormenores nesta densa malha sonora.
Diálogo: Sem diálogo.
Duração do Plano: 12 segundos
Montagem / Transição: Corte do plano anterior.
Explicação: O verdadeiro clímax da cena está a aproximar-se. Wendy confusa e
perturbada com o texto que viu escrito na máquina decide investigar o resto do
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produto do trabalho de Jack. É aqui que se dá a confirmação da loucura do marido.
Jack ainda não escreveu outra coisa desde que chegou ao Overlook senão a frase
que vimos no plano anterior. As resmas e resmas de papel têm o mesmo texto
repetido, vezes e vezes sem conta, com formatações diferentes, erros ortográficos
mas sempre com a mesma frase. No plano seguinte a esta descoberta, Wendy será
surpreendida por Jack, que aparece atrás dela, perguntando casualmente se ela
gosta do que está a ler. A reacção de Wendy é de puro terror pois agora, sabe, para
além de qualquer sombra de dúvida, que o marido enlouqueceu da mesma forma
que o caseiro anterior.
Conclusão
Nesta cena Kubrick leva o espectador numa autêntica viagem à mente
labiríntica de Jack Torrance. Este conceito está, aliás, sempre subjacente neste
filme. A escolha dos planos com Steadicam, que Garreth Brown tinha inventado
poucos anos antes, permitiu ao realizador pontuar toda a narrativa numa
perspectiva única no que diz respeito ao ponto de vista do espectador. As famosas
sequências de Danny a passear de trotinete 'Big Wheels' pelo hotel Overlook,
filmadas com uma mestria exemplar, são outro exemplo disso. Ao colocar a câmara
quase rente ao chão e seguindo a criança nas suas explorações do hotel, Kubrick,
convida o espectador a também deambular por este espaço assombrado. Todo o
filme parece ter essa estrutura presente. Desde os planos aéreos iniciais, onde
podemos seguir o carro de Jack através do impressionante trilho montanhoso, que
temos a sensação de que tudo se trata, no fundo, de uma viagem. Uma viagem a
este sítio maldito. Uma viagem pela mente de um homem atormentado. Uma
viagem de descoberta para Danny, com os seus poderes paranormais. Uma viagem
no tempo para Jack que, segundo as enigmáticas palavras do mordomo Delbert, foi
sempre o caseiro do hotel Overlook... E também uma viagem para Wendy que,
apesar de representar a esposa submissa e demasiado dócil, se vem a revelar como
uma mulher capaz de fazer frente ao seu marido e salvar o que resta da sua família.
Há no entanto muitos sub-temas nesta película. Existem verdadeiros
tratados escritos sobre o mesmo. Do esforço sincero de análise académica até à
mais delirante verborreia por parte de anónimos que pululam na Internet. A título
de mera curiosidade deixo aqui três delas como exemplo e alguns breves
comentários em jeito de opinião (entre parêntesis):
'The Shining' trata essencialmente dos horrores do Holocausto Nazi. (Uma
das teorias que me parecem menos fundamentadas. A base assenta na
origem alemã da esposa de Kubrick. Mas existe pouco mais de concreto por
onde pegar)
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'The Shining' é um pedido de desculpas por parte de Kubrick pela sua
participação no embuste da missão espacial à lua da Apollo 11. (Existem
pontos interessantes e as referências encontradas são em alguns casos
enigmáticas. No entanto tudo parece perder fôlego na péssima explicação
para o anagrama de palavras de 'room nº 237')
'The Shining' faz um forte comentário à sociedade americana, às suas
origens e em particular ao massacre do índio (americano nativo) por parte
do homem branco. (Esta é talvez a teoria mais bem fundamentada e que
pode ter alguma razão de ser. Desde o casting das personagens com traços
ligeiramente índios (Wendy e Dan Hallorann). Até à escolha de alguns
adereços (as latas de fermento Calumet, com um chefe índio, as tapeçarias
penduradas no salão onde Jack escreve), os diálogos reveladores ("Loser
has to keep America clean.", uma referência a um popular anúncio onde um
índio americano chorava pelo solo sagrado agora poluído
(http://www.youtube.com/watch?v=j7OHG7tHrNM), o guarda roupa de alguns
personagens que oscila entre o vermelho e o azul presentes na bandeira
americana e a constante referência visual a águias e à bandeira (máquina de
escrever Adler, águia no escritório de Ullman e várias bandeiras americanas
em todo o hotel)
Seja sobre que interpretação for, o que é certo, é que 'The Shining' tem este
enorme poder de nos deslocar até ao seu ambiente tenso e opressivo. Kubrick
obriga o espectador a se 'perder' neste filme que é um labirinto (e que também ele
contém um labirinto onde vários membros da equipa se perderam, incluindo o
próprio realizador). Ao longo de todo o filme somos obrigados a seguir os
movimentos destas personagens, umas vezes através do seu olhar, outras através
do olhar do seu perseguidor. Este conceito de 'travelling camera' que acompanhou
todo este projecto foi milimetricamente orquestrado por toda a produção para
criar uma sensação de perseguição constante e resultou num dos mais bem
conseguidos trabalhos de câmara em movimento de sempre (Giannetti, Louis, 2001:121).
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*NOTA: Por uma questão de enquadramento decidi rever toda a película. Assim, a versão
analisada deste filme foi a última recomendada pelo realizador. Corresponde à
versão europeia com 01:54'41s de duração (disponível no DVD da edição especial
remasterizada digitalmente)
Bibliografia:
KUBRICK, Stanley (1980)- 'The Shining', DVD – Edição especial remasterizada
digitalmente, Warner Brothers (2007)
GIANNETTI, Louis – Understanding Movies (9th Edition). Case Western Reserve
University (2001)
'The Shining'
http://www.imdb.com/title/tt0081505/?ref_=fn_al_tt_1
The Shining Movie Review & Film Summary (1980) | Roger Ebert
http://www.rogerebert.com/reviews/great-movie-the-shining-1980