Amor, sexo, paixão, ciúme

25
CAPÍTULO 9 ___________________________________ Amor, sexo, paixão, ciúme Jaroslava Varella Valentova, Emma Otta e Vera Silvia Raad Bussab Resumo. Este capítulo irá colocá-los em contato com teorias e pesquisas atuais sobre temas centrais da natureza humana. Trataremos de: amor, paixão e sexo como fontes de prazer e gratificação; ciúme e seus desencadeadores e funções; histórico e cenário atual de pesquisa; contextualização teórica no campo da psicologia social; contextualização teórica a partir da perspectiva evolucionista; questões conceituais e sugestões para formulação de questões de investigação; questões metodológicas e sugestões para o desenvolvimento de protocolos de pesquisa; problemas resultantes de extremos observados em formas de ciúme patológico.

Transcript of Amor, sexo, paixão, ciúme

CAPÍTULO 9

___________________________________

Amor, sexo, paixão, ciúme

Jaroslava Varella Valentova, Emma Otta e Vera Silvia Raad Bussab

Resumo. Este capítulo irá colocá-los em contato com teorias e pesquisas atuais sobre

temas centrais da natureza humana. Trataremos de: amor, paixão e sexo como fontes de

prazer e gratificação; ciúme e seus desencadeadores e funções; histórico e cenário atual

de pesquisa; contextualização teórica no campo da psicologia social; contextualização

teórica a partir da perspectiva evolucionista; questões conceituais e sugestões para

formulação de questões de investigação; questões metodológicas e sugestões para o

desenvolvimento de protocolos de pesquisa; problemas resultantes de extremos

observados em formas de ciúme patológico.

Amor romântico, sexo, paixão e ciúme são temas antigos, abordados em inúmeras

poesias, canções, histórias, mitos e lendas em todas as culturas, desde os primeiros

registros escritos 1,2, como ilustram os exemplos a seguir. O poema mais antigo de amor

em escrita cuneiforme é um texto sumeriano “A corte de Inanna e Dumuzi” datado em

quatro mil anos atrás3,4. No Cântico dos Cânticos do Antigo Testamento, há cantos de

amor “seu amor é mais maravilhoso que o vinho (...) o som do seu nome é perfume” 5.

O ciúme inspirou pintores, como o pintor expressionista norueguês Edvard Munch

(1863-1944) (Fig. 9.1). Ele retornou repetidamente ao tema durante a sua vida e o

representou em 11 versões. Os estudiosos da sua obra consideram que: “Munch

experimentava e se relacionava com seus próprios ciúmes através das e nas pinturas. Ele

perseguia nelas a coisa, sua cristalização e ao mesmo tempo sua interpretação e superação.

As pinturas eram, para Munch, uma forma de experimentar-se a si mesmo, de interpretar-

se junto com o mundo nas próprias telas, de ser através delas.”6.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Inserir Figura 9.1 a,b,c aproximadamente aqui

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Otelo de Shakespeare é uma obra prima sobre a tragédia do ciúme em que Otelo

mata sua mulher, a jovem e bela Desdêmona, induzido pelo ressentido e manipulador

Iago a pensar que ela o havia traído com Cassio (Fig. 9.2). E se mata ao descobrir que ela

era de fato inocente. “Tende cuidado com o ciúme, meu senhor. É um mostro de olhos

verdes, que zomba da carne de que se alimenta”7.

1 William R. Jankowiak & Fischer, Edward F. A cross-cultural perspective on romantic love. Ethnology, v.

31, n. 2, p. 149-155, 1992. 2 Fisher, Helen. Anatomy of love: A natural history of mating, marriage, and why we stray, 2016. 3 Simone Aparecida Dupla, O hierogamos de Inanna e Dumuzi: sexualidade, religião e política na

Mesopotâmia. Revista de História (UFBA), v. 5, n. 1-2, p. 4-19, 2013. 4 Diane Wolkstein & Samuel Noah Kramer, Inanna, Queen of Heaven and Earth, 1983. 5 Aron, A., Fisher, H., Mashek, D. J., Strong, G., Li, H., & Brown, L. L. (2005). Reward, motivation, and

emotion systems associated with early-stage intense romantic love. Journal of Neurophysiology, 94, 327-

337. Tradução por Emma Otta de trecho à p. 327: “your love is more wonderful than wine . . .the sound of

your name is perfume.” 6 Paulo Roberto Arruda de Menezes, A pintura trágica de Edvard Munch: um ensaio sobre a pintura e as

marteladas de Nietzsche. Tempo Social, v. 5, n. 1-2, p. 67-111, 1993. Citação de trecho à p. 84. 7 Werner Gundersheimer, "The Green-Eyed Monster": Renaissance conceptions of jealousy. Proceedings

of the American Philosophical Society, v. 137, n. 3, p. 321-331, 1993. Tradução por Emma Otta de trecho

à p. 322: “Beware, my lord, of jealousy; It is the green-eyed monster which doth mock the meat it feeds on

...”

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Inserir Figura 9.2 aproximadamente aqui

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

O poder do monstro de olhos verdes também aparece em Dom Casmurro de

Machado de Assis. Bento Santiago, o Dom Casmurro, suspeita da traição de sua mulher

Capitu e passa a ver no filho Ezequiel sinais de semelhança física com seu amigo Escobar,

até um ponto em que o contato com o filho se torna insuportável. Estas obras literárias

são fonte de inspiração e análise para psicólogos e críticos literários8,9.

Amor e sexo estão interligados e desempenham um papel importante na evolução

humana e de outras espécies – na sobrevivência, reprodução, e desenvolvimento

individual10,11. Motivações para união sexual e emocional estão entre as mais básicas e

fortes, assim como as motivações para alimentação e o sono. Relacionamentos sexuais e

amorosos são parte importante na vida da maioria das pessoas, e têm uma influência

enorme no seu bem-estar e qualidade da vida12. Indivíduos em relacionamentos

românticos exclusivos, que coabitavam ou namoravam, relataram maior bem-estar

subjetivo do que indivíduos que não tinham parceiros estáveis ou tinham múltiplos

parceiros13. Apesar da ser socialmente estigmatizados, os relacionamentos

consensualmente não monogâmicos (ex. poliamor ou relacionamentos abertos) são

frequentes e para algumas pessoas podem ser uma alternativa satisfatória de

relacionamentos14. Um estudo mostrou que a frequência de sexo afeta o bem-estar, mas

o efeito foi curvilinear (mais que uma vez por semana não aumentava mais o bem-estar)

e apareceu só em pessoas em relacionamentos estáveis15. A pesquisa psicológica sobre

amor e sexualidade é recente, e mesmo tratando-se de dimensões cruciais na vida da

maioria dos indivíduos, ainda é um campo relativamente pouco estudado.

8 Caldwell, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro, 2002. 9 Peres, Sávio Passafaro & Massimi, Marina. Representações do conceito de inconsciente na obra de

Machado de Assis. Memorandum: Memória e História em Psicologia, v. 7, out., p. 128-137, 2004. 10 Helen E. Fisher, Lust, attraction, and attachment in mammalian reproduction. Human Nature, v. 9, n. 1,

p. 23-52, 1998. 11 Pamela C. Regan, The Mating Game: A Primer on Love, Sex, and Marriage, 3rd ed., 2017. 12 Hendrick, Clyde & Hendrick, Susan S. Love. In Shane J. Lopez & Charles Richard Snyder (Eds.) The

Oxford Handbook of Positive Psychology, 2009. 13 Claire M. Kamp Dush & Paul R. Amato, Consequences of relationship status and quality for subjective

well-being. Journal of Social and Personal Relationships, v. 22, n. 5, p. 607-627, 2005. 14 Terri D. Conley, et al. A critical examination of popular assumptions about the benefits and outcomes of

monogamous relationships. Personality and Social Psychology Review, v. 17, n. 2, p. 124-141, 2013. 15 Amy Muise, Ulrich Schimmack & Emily A. Impett, Sexual frequency predicts greater well-being, but

more is not always better. Social Psychological and Personality Science, v. 7, n. 4, p. 295-302, 2016.

Neste capítulo trataremos dos estados motivacionais e emocionais complexos que

estão envolvidos no estabelecimento e manutenção de um relacionamento amoroso.

Começaremos apresentando três teorias influentes sobre amor na psicologia social16,17.

Em seguida, focalizaremos a divisão entre paixão e apego romântico e a associação entre

o sistema emocional e sexual. Finalizaremos tratando do ciúme, da percepção de uma

ameaça de perda de uma relação valorizada para um rival real ou imaginado e dos seus

componentes afetivos, cognitivos e comportamentais18,19.

9.1 Cores do amor: Eros, Storge, Ludus

Um dos conceitos de amor foi sugerido por John Lee20, um psicólogo canadense,

que analisou fontes literárias e históricas, e realizou extensas entrevistas com indivíduos

sobre suas experiências de relacionamentos. Com base nesses dados, apresentou uma

tipologia do amor de três estilos (ou atitudes) amorosos primários e três estilos

secundários, seguindo a divisão básica da roda de cores (Fig. 9.3). Os estilos principais

são: (I) Eros – atração física, sensualidade, paixão, (II) Storge – amor familiar, amor

romântico que pode crescer de uma amizade e exige comprometimento, e (III) Ludus –

amor sem comprometimento, amor como diversão. Da combinação dos três tipos

primários surgem três estilos amorosos secundários: (1) Mania (amor possessivo,

dependente; é uma combinação de Eros e Ludus), (2) Pragma (amor prático, lógico,

calculado; combinação de Ludus e Storge), e (3) Ágape (amor puro, não obsessivo,

generoso; combinação de Eros e Storge). Lee se inspirou em termos de alguns autores da

Grécia antiga (usados mais tarde também pela filosofia Cristã), alguns dos quais (agape,

eros e storge) foram usados para descrever diferentes tipos de amor, com significados

distintos21. Lee não usou o termo filia cunhado por Aristoteles, para descrever um amor

16 Madeleine A. Fugère, Jennifer P. Leszczynski & Alita J Cousins, The Social Psychology of Attraction

and Romantic Relationships, p. 160-185, 2015. 17 Priscilla de Oliveira Martins Silva, Zeidi Araujo Trindade & Annor da Silva Junior. Teorias sobre o amor

no campo da Psicologia Social. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 33, n. 1, p. 16-31, 2013. 18 Donatella Marazziti & Domenico Canale, Hormonal changes when falling in love.

Psychoneuroendocrinology, v. 29, n. 7, p. 931-936, 2004. 19 Albina Rodrigues Torres, Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira & Rodrigo da Silva Dias, Jealousy as

a symptom of obsessive-Compulsive disorder. Brazilian Journal of Psychiatry, v. 21, n. 3, p. 165-173,

1999. 20John Alan Lee, Colours of love: An exploration of the ways of loving, 1973. 21 Elton Moreira Quadros, Eros, Fília e Ágape: o amor do mundo grego à concepção cristã. Acta

Scientiarum. Human and Social Sciences, v. 33, n. 2, p. 165-171, 2011.

de amizade, talvez porque esse termo tenha sido adotado pela sexologia para designar

transtornos sexuais (parafilias).

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Inserir Figura 9.3 aproximadamente aqui

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Escalas de auto-relato foram desenvolvidas para avaliação desses estilos de amor

como a Escala de Hendrick, de 42 itens, em que o indivíduo avalia quanto cada item se

aplica a ele numa escala Lickert de cinco pontos, que vai de 1 (discordo fortemente) a 5

(concordo fortemente)22. Esta escala foi adaptada para o Brasil23.

Pesquisas empíricas vêm mostrando que os sentimentos de amor podem ser muito

diferentes e que estilos específicos de amor podem estar ligados com diferentes

dimensões de personalidade, comportamento e cultura. Por exemplo, indivíduos com

maior autoestima relatam mais frequentemente o estilo Eros, mas menos os estilos Mania,

Storge e Agape24. Em média, homens jovens tendem a relatar mais os estilos Lúdico e

Erótico, enquanto mulheres relatam mais os estilos Storge, Pragma e Mania25,26. Essas

diferenças podem diminuir com o aumento da idade. Em geral, menos Ludus e mais Eros,

Storge e Agape estão ligados com maior satisfação nos relacionamentos27,28,29, mas esse

resultado pode variar entre culturas e períodos históricos, evidenciando diferenças nos

sistemas de valores vigente. Por exemplo, uma pesquisa coordenada por Francisco

Esteves, do Centro para Pesquisa Psicológica e Intervenção Social, do Instituto

22 Clyde Hendrick & Susan Hendrick, A theory and method of love. Journal of Personality and Social

Psychology, v. 50, n. 2, p. 392, 1986. 23 Alexandro Andrade & Agnaldo Garcia, Atitudes e crenças sobre o amor: versão brasileira da Escala de

Estilos de Amor. Interpersona: An International Journal on Personal Relationships, v. 3, n. 1, p. 89-102,

2009. 24 Ian Mallandain & Martin F. Davies, The colours of love: Personality correlates of love styles. Personality

and Individual Differences, v. 17, n. 4, p. 557-560, 1994. 25 Clyde Hendrick et al. Do men and women love differently?. Journal of Social and Personal

Relationships, v. 1, n. 2, p. 177-195, 1984. 26 Clyde Hendrick & Susan Hendrick, Gender differences and similarities in sex and love. Personal

Relationships, v. 2, n. 1, p. 55-65, 1995. 27 Jill Inman-Amos, Susan S. Hendrick & Clyde Hendrick, Love attitudes: Similarities between parents and

between parents and children. Family Relations, v. 43, n. 4, p. 456-461, 1994. 28 Dawn M. Sokolski, & Susan S. Hendrick, Fostering marital satisfaction. Family Therapy, v. 26, n. 1, p.

39-49, 1999. 29 Clyde Hendrick & Susan Hendrick, Love and satisfaction. In Robert J. Sternberg & Mahzad Hojjat (Eds.)

Satisfaction in close relationships (pp. 56-78), 1997.

Universitário de Lisboa, mostrou que Storge estava positivamente correlacionado com

satisfação no relacionamento em uma amostra dos Estados Unidos e Portugal, enquanto

Eros e Mania correlacionaram-se positivamente com satisfação em uma amostra de

Moçambique30.

Neurocientistas também vêm se interessando pelo assunto e usando

simultaneamente em suas pesquisas medidas fisiológicas e escalas de auto-relato. O grupo

de Enzo Emanuele, da Universidade de Pavia, propõe que o sistema dopaminérgico de

recompensa e sua interação com o sistema serotonérgico estão envolvidos na tendência

para vivenciar diferentes estilos de amor31. Consideram que o estilo Eros estaria mais

diretamente ligado ao sistema de recompensa, enquanto Mania poderia estar associada

com ansiedade e transtornos obsessivo-compulsivos. Desta forma, acrescentam uma

dimensão biológica à vivência dos estilos amorosos além da dimensão individual, social

e cultural.

9.2 Triangulo do Amor: Intimidade, Paixão, Compromisso

Cerca de uma década depois da teoria das cores do amor de John Lee, o psicólogo

americano Robert Sternberg sugeriu outra divisão entre três componentes primários de

amor (Fig. 9.4): (1) Intimidade, que se refere ao sentimento de proximidade e confiança

mútua do par, (2) Paixão, que se refere à atração física do par e (3)

Compromisso/Decisão, que ser refere à vontade de manter o relacionamento de forma

duradoura32. Em combinação, estes componentes formam quatro subtipos de amor: Amor

romântico (combinação de Intimidade e Paixão), Companheirismo amoroso (combinação

de Intimidade e Compromisso), Amor fugaz (combinação de Paixão e Compromisso), e

Amor consumado que resulta da combinação de todas as três dimensões de amor. Por sua

vez, a Intimidade sozinha sem o aspecto de Paixão e Comprometimento se refere a Amor

de amizade; só Paixão sem Intimidade e Comprometimento dá origem a Amor

apaixonado; e só Comprometimento sem Intimidade e Paixão corresponde a Amor vazio.

30 Iolanda Costa Galinha et al. Adult attachment, love styles, relationship experiences and subjective well-

being: Cross-cultural and gender comparison between Americans, Portuguese, and Mozambicans. Social

Indicators Research, v. 119, n. 2, p. 823-852, 2014. 31 Enzo Emanuele et al. Genetic loading on human loving styles. Neuroendocrinology Letters, v. 28, n. 6,

p. 815-821, 2007. 32 Robert J. Sternberg, A triangular theory of love. Psychological Review, v. 93, n. 2, p. 119, 1986.

Desamor se refere à falta de todos os componentes de amor, o que é característico da

maioria de relacionamentos interpessoais não-românticos.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Inserir Figura 9.4 aproximadamente aqui

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Com base na sua teoria triangular de amor, Sternberg criou uma escala de 45 itens,

avaliados segundo nove alternativas, de 1 (Não me descreve nada) a 9 (Me descreve

totalmente). Os leitores interessados encontrarão a versão brasileira da Escala Triangular

do Amor de Sternberg33.

Entre as pesquisas inspiradas pela teoria triangular de Sternberg destacamos um

estudo realizado na Holanda com 2.791 participantes, que investigou percepções de amor

ao longo do ciclo vida, dos 12 aos 88 anos34. Todos os componentes do amor tornaram-

se mais presentes ao longo da vida e compromisso tornou-se o principal componente da

noção de amor na idade adulta. Adolescentes, na faixa de 12-17 anos, relataram níveis

mais baixos de todos os componentes de amor em comparação com adultos jovens, na

faixa de 18-30 anos. Adultos com mais de 50 anos relataram níveis mais baixos de

intimidade e de paixão que adultos jovens (18-30 anos) e de meia idade (30-50 anos), mas

relataram níveis similares de compromisso. Não houve diferença entre homens e

mulheres nos níveis relatados de compromisso, mas os homens relataram níveis mais

altos de paixão que as mulheres em todas as faixas etárias e níveis mais baixos de

intimidade em algumas faixas etárias.

9.3 Apego romântico

O terceiro conceito sugere que o amor romântico copia o vínculo emocional

estabelecido na infância entre o bebê e os cuidadores, resultando em três tipos de amor

33 Vicente Cassepp-Borges & Maycoln L. M. Teodoro, Propriedades psicométricas da versão brasileira da

Escala Triangular do Amor de Sternberg. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 20, n. 3, p. 513-522, 2007. 34 Sindy R. Sumter & Patti M. Valkenburg & Jochen Peter. Perceptions of love across the lifespan:

Differences in passion, intimacy, and commitment. International Journal of Behavioral Development, v.

37, n. 5, p. 417-427, 2013.

adulto – apego seguro, apego inseguro ansioso e apego inseguro evitativo35. O psicólogo

inglês John Bowlby (1969)36 propôs que, durante o processo de evolução pelo mecanismo

de seleção natural, surgiu nos bebês um repertório de comportamentos que servem para

facilitar a proximidade aos cuidadores, o que é essencial para a sobrevivência. Em outras

palavras, o apego foi definido como um sistema que coordena a busca de proximidade

mútua entre o bebê e a mãe (ou outra pessoa próxima). Bowlby sugeriu que o vínculo

entre o cuidador e a criança na infância fornece uma base cognitiva e afetiva para os laços

emocionais na vida adulta.

O apego romântico foi sugerido como uma instanciação adulta do laço que

acontece entre o bebê e o cuidador durante a infância. Esse tipo de amor é conhecido

como amor confortável, amor companheiro ou apego romântico, e está conectado com

satisfação de relacionamento, bem-estar e auto-estima37,38. Os sentimentos seguros que

os indivíduos sentem na presença dos parceiros, os sentimentos de ansiedade despertados

pela separação e o desejo de estar juntos após da separação são características emocionais

típicas do sistema de apego. Debra Zeifman e Cindy Hazan propuseram que o apego é

um dos mecanismos psicológicos que evoluíram porque resolveram o problema

adaptativo de manter os pais juntos para cuidar dos filhos extremamente dependentes39,40.

Em geral, o sistema de apego serve para manter as pessoas unidas em relacionamentos

comprometidos.

Há instrumentos desenvolvidos a partir da perspectiva do amor como apego. Os

leitores interessados podem encontrar a versão brasileira do Inventário de Experiência em

Relações Próximas41. Este inventário avalia: (1) “ansiedade relacionada ao apego”, que

diz respeito à necessidade de proximidade física e emocional e à preocupação com

responsividade do(a) parceiro(a) e continuidade do relacionamento e (2) “evitação

relacionada ao apego”, que diz respeito a desconforto com a proximidade emocional e

35 Cindy Hazan & Phillip Shaver, Romantic love conceptualized as an attachment process. Journal of

Personality and Social Psychology, v. 52, n. 3, p. 511, 1987. 36 John Bowlby. Attachment and Loss: Attachment, 1969. 37 Bianca P. Acevedo & Arthur Aron, Does a long-term relationship kill romantic love?. Review of General

Psychology, v. 13, n. 1, 59-65, 2009. 38 Victor Kenji M. Shiramizu & Fívia de Araújo Lopes, A perspectiva evolucionista sobre relações

românticas. Psicologia USP, v. 24, n. 1, p. 55-76, 2013. 39 Debra Zeifman & Cindy Hazan, A process model of adult attachment formation. In Steve Duck (Ed.),

Handbook of personal relationships: Theory, research and interventions 2nd ed. (pp. 179-195), 1997. 40 Debra M. Zeifman, Attachment theory grows up: a developmental approach to pair bonds. Current

Opinion in Psychology, v. 25, February, p. 139-143, 2019. 41 Victor Kenji Medeiros Shiramizu, Jean Carlos Natividade & Fívia de Araújo Lopes. Validate evidences

of Experience in Close Relationships (ECR) Inventory to Brazil. Estudos de Psicologia (Natal), v. 18, n. 3,

p. 457-465, 2013.

preferência por distanciamento emocional. Usando esse instrumento foram encontradas

diferenças sexuais significativas, com mulheres apresentando escores mais altos que os

homens em “ansiedade” e homens apresentando escores mais altos que mulheres em

“evitação”42. Independentemente de gênero, indivíduos em relacionamentos sem

compromisso apresentaram escores mais altos de “ansiedade e “evitação” em comparação

com indivíduos em relacionamentos com compromisso.

9.4 Paixão e Apego romântico

Em 2011, James Graham fez uma meta-analise de 81 estudos usando diferentes

medidas de amor, com uma amostra de mais que 19 mil participantes43. A análise revelou

três dimensões básicas – Amor Geral definido por comprometimento e companheirismo,

Obsessão Romântica (Paixão, Mania) e Amizade Prática (Storge e Pragma). Outros

autores reduziram o modelo de estilos de amor a dois grandes tipos: Paixão e

Companheirismo44, Amar e Gostar45.

Paixão é um estado afetivo muito intenso, composto por dimensões cognitivas,

motivacionais e emocionais. Helen Fisher define a paixão como atração e tendência à

proximidade física com um indivíduo específico46. É um estado de intenso desejo de

união com o outro, um sentimento que é despertado especialmente no início de um

relacionamento romântico (Fig. 9.5). Além da grande diversidade de relacionamentos

possíveis, na maioria das culturas estudadas (147 de 166) ela relata que vários aspectos

do amor apaixonado, incluindo a preocupação intrusiva com o outro, estado alterado da

mente, altruísmo e idealização do parceiro, eram semelhantes47. Desejo por intimidade

física e sexualidade faziam parte da paixão, mas este estado afetivo era diferente da

motivação sexual geral. A motivação sexual é definida como um desejo por gratificação

sexual, sem grande diferenciação entre parceiros. A paixão, por sua vez, está focada em

42 Natividade, Jean Carlos & Shiramizu, Victor Kenji Medeiros. Uma medida de apego: versão brasileira

da Experiences in Close Relationship Scale-Reduzida (ECR-R-Brasil). Psicologia USP, v. 26, n. 3, p. 484-

494, 2015. 43 James M. Graham, Measuring love in romantic relationships: A meta-analysis. Journal of Social and

Personal Relationships, v. 28, n. 6, 748-771, 2011. 44 Ellen Berscheid & Elaine Hatfield, Interpersonal attraction, 2nd ed., 1978. 45 Rubin, Zick. Measurement of romantic love. Journal of Personality and Social Psychology, v. 16, n. 2,

265-273, 1970. 46 Op. cit. Nota 10. 47 William R. Jankowiak & Edward F. Fischer, A cross-cultural perspective on romantic love. Ethnology,

v. 31, n. 2 149-155, 1992.

um indivíduo específico, e é muito difícil se apaixonar por mais do que uma pessoa ao

mesmo tempo.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Inserir Figura 9.5 aproximadamente aqui

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

A paixão é característica especialmente do início de relacionamentos, mas pode

existir também em relacionamentos mais duradouros. Algumas díades de longo prazo

olhando para as fotos do(a) parceiro(a) mostram ativação das mesmas partes do cérebro

que díades em início de relacionamento, mas sem um componente específico de paixão –

sem a obsessão48. Comparando a reação a fotos do(a) parceiro(a) com a reação a outras

categorias de pessoas (conhecido muito familiar, amigo de longo-prazo ou uma pessoa

pouco familiar) de homens e mulheres casados em média há 20 anos, foram identificadas

reações específicas ao parceiro(a) em áreas ricas em dopamina no circuito cerebral de

recompensa (ex, área tegmental ventral) e em regiões implicadas em comportamento

materno (ex, cingulado anterior e cingulado posterior)49. Assim, a paixão pode perdurar

durante relacionamentos de longo prazo, e não tem que desaparecer necessariamente.

Talvez Oscar Wilde tenha errado ao dizer: “Deveríamos estar sempre apaixonados. É a

razão pela qual nunca deveríamos casar”50.

A paixão tem sido objeto de várias pesquisas neuropsicológicas para investigar

correlatos cerebrais desse estado afetivo tão forte. Alguns estudos de imageamento

cerebral mostraram que, quando homens e mulheres profundamente apaixonados pensam

em seus parceiros(as), as regiões do cérebro que estão associadas com recompensa são

ativadas, mas não ao pensar em um amigo51,52. Em outras palavras, a paixão ativa o

sistema de recompensa, que é constituído principalmente por vias dopaminérgicas, que

conectam o sistema límbico com outras regiões tais como a amígdala, o hipocampo e o

48 Op. cit. Nota 37. 49 Bianca P. Acevedo, Arthur Aron, Helen E. Fisher & Lucy L. Brown. Neural correlates of long-term

intense romantic love. Social Cognitive and Affective Neuroscience, v. 7, n. 2, p. 145-159, p. 2012. 50 Oscar Wilde, The Importance of being Earnest and other Plays, 2008/1893. Tradução por Jaroslava

Varella Valentova do trecho à p. 134: “One should always be in love. That is the reason one should never

marry.” 51 Op. cit. Nota 5. 52 Andreas Bartels & Semir Zeki, The neural basis of romantic love. Neuroreport, 11, n. 17, p. 3829-3834,

2000.

córtex frontal. A ativação desse sistema leva a estados afetivos positivos, como, por

exemplo, euforia, excesso de energia, mas também insônia, e faz o indivíduo desejar mais.

A paixão tem sido comparada aos efeitos de drogas que ativam sistemas de recompensa

e produzem adição, como por exemplo a cocaína53. Isso explicaria porque a paixão

também tem o seu lado negativo – sentimentos de ciúme, crimes de paixão, perseguição

e outros (veja abaixo).

Além de níveis aumentados de dopamina, indivíduos apaixonados apresentam

também alteração dos níveis de outros hormônios em comparação com pessoas não

apaixonadas. Por exemplo, eles(as) têm maior nível de cortisol, o hormônio de estresse

que está associado com reação de fuga ou luta, podendo indicar que o início do contato

romântico é estressante ou ativador54. Indivíduos recentemente apaixonados têm uma

maior concentração de Fator de Crescimento Neural (NGF) no plasma sanguíneo em

comparação com aqueles envolvidos em um relacionamento romântico por mais que 12

meses ou solteiros55. Essas moléculas, originalmente descritas como sendo os principais

reguladores da plasticidade sináptica e da sobrevivência neural, têm sido reconhecidas

também como mediadores de ansiedade e estresse. Imprevisibilidade e insegurança fazem

parte do início de um relacionamento potencial, o que pode causar estresse e excitação

geral do organismo. Tal estresse positivo parece ser importante para a formação de

contato social e apego, uma vez que sabidamente um nível moderado de estresse está

envolvido na promoção de laços sociais. O amor parece ser um fenômeno complexo e,

no que diz respeito ao estresse, uma experiência ambígua: no início, o amor pode ser

estressante, mas, potencialmente, serve para reduzir os níveis de estresse a longo prazo.

Por sua vez, como vimos acima, o amor de díades de longo prazo caracteriza-se

pela atividade cerebral específica do amor entre a mãe e bebê, conhecido como apego56.

O apego romântico é menos intenso do que a paixão, e combina sentimentos de

intimidade, compromisso e laço emocional profundo com outra pessoa. Constatou-se que

o apego romântico contribui mais para a satisfação de relacionamentos de curta ou longa

duração do que a paixão57. Em estudo realizado para investigar a interação entre a paixão

53 Michel Reynaud, Laurent Karila, Lisa Blecha & Amine Benyamina, Is love passion an addictive

disorder?. The American Journal of Drug and Alcohol Abuse, v. 36, n.5, p. 261-267, 2010. 54 Op. cit. Nota 18. 55 Emanuele, Enzo et al., Raised plasma nerve growth factor levels associated with early-stage romantic

love. Psychoneuroendocrinology, v. 31, n. 3, 288-294, 2006. 56 Op. cit. Nota 49. 57 Nancy Kropp Grote & Irene Hanson Frieze, The measurement of Friendship‐based Love in intimate

relationships. Personal Relationships, v. 1, n. 3, p. 275-300, 1994.

e o apego romântico, 17 indivíduos casados por 21 anos em média foram submetidos a

imagem por ressonância magnética funcional (fMRI), com a mesma metodologia usada

geralmente em estudos sobre amor apaixonado em novos relacionamentos58. Quando os

indivíduos viram imagens de seus cônjuges, eles(as) mostraram ativação das mesmas

regiões cerebrais que casais apaixonados em início de relacionamento: ativação de

centros cerebrais ligados com dopamina e sistema de recompensa, como por exemplo

globus pallidus. Mas, curiosamente, esta amostra de casais de longo prazo também

mostrou ativação de partes do cérebro ricas em ocitocina e vasopressina, que são regiões

ligadas a laços de longo prazo em humanos e em outras espécies. Então, de novo, a paixão

pode sobreviver por longo tempo durante os relacionamentos, mas o relacionamento

ganha uma outra dimensão de amor – o apego emocional. Assim, contrariando os mitos

frequentes, a paixão não tem que morrer com o tempo, mas o laço do casal pode se

fortalecer e adicionar dimensões mais profundas de sentimentos mútuos.

Os estudos que mapeiam a atividade cerebral ou hormonal não têm como objetivo

reduzir sentimentos tão intensos e complexos como paixão e amor a meras reações

químicas ou eletroquímicas. A identificação de correlatos específicos, neuronais,

hormonais ou comportamentais, ajuda a definir e a compreender melhor o que se chama

“amor”. Um melhor entendimento do amor pode esclarecer vários mitos e pode explicar

comportamentos muito esquisitos que indivíduos apaixonados ou vivendo um amor

profundo fazem e sentimentos que eles(as) têm.

Em geral, o amor romântico pode conter tanto paixão quanto apego romântico. O

amor apaixonado pode ser uma força que dirige a atenção para um parceiro particular,

especialmente nos estágios iniciais da formação do relacionamento, e o apego romântico

pode exercer um papel crucial em manter os indivíduos juntos por um tempo

relativamente longo. Em outras palavras, o amor é em grande parte responsável por unir

os parceiros no início e por mantê-los juntos ao longo do tempo59.

9.5 Amor e sexualidade

Intimidade física e sexualidade fazem parte de relacionamentos amorosos. Porém,

o amor pode existir com poucas ou sem relações sexuais entre os parceiros, e há relações

58 Op. cit. Nota 49. 59 Benjamin Le et al. Predicting nonmarital romantic relationship dissolution: A meta‐analytic synthesis.

Personal Relationships, v. 17, n. 3, p. 377-390, 2010.

sexuais sem envolvimento de laços emocionais. A motivação sexual definida como um

desejo por algumas formas de gratificação sexual está diretamente associada com

hormônios sexuais. Especialmente a testosterona parece aumentar a motivação masculina

de busca por parceiras sexuais, e competição com outros homens60. Por outro lado, tal

efeito de testosterona pode ter efeito negativo em relacionamentos de longo prazo, por

exemplo por causa de procura de relações sexuais fora do relacionamento. De fato, as

pesquisas têm mostrado que homens solteiros têm nível de testosterona maior do que

homens em relacionamentos estáveis61,62. Maior nível de testosterona também está

associado a uma menor probabilidade de relacionamentos estáveis ou casamento, bem

como diminuição na qualidade dos relacionamentos e ocorrência de divórcio63. Homens

que são pais tipicamente apresentam níveis mais baixos de testosterona em relação aos

que não são pais, e este padrão é especialmente forte para os homens que demonstram

comprometimento mais forte em relação às suas parceiras ou à paternidade de forma mais

geral64,65. Estas associações podem ser interpretadas como 1) efeito de status de

relacionamento/status paterno (isto é, as diferenças no status de relacionamento/status

paterno alteram níveis de testosterona) ou como 2) efeito hormonal (isto é, o nível mais

baixo de testosterona está associado com a maior probabilidade de entrar em

relacionamentos de longo prazo, ser pai, e com a menor probabilidade de divórcios).

Em geral, essa linha de pesquisa indica que testosterona elevada está associada

com motivação sexual e tentativas de formação de relacionamentos, enquanto que

testosterona mais baixa, tipicamente observada em relacionamentos de longo prazo, está

ligada a estabilidade de relacionamento e investimento na prole.

Fisher (1998, 2000)66 propõe que os comportamentos de acasalamento são

guiados por três sistemas distintos de emoção – luxúria, atração e apego – e que os

comportamentos relacionados a cada conjunto de emoções são governados por um

60 Op. cit. Nota 10 61 Terence C. Burnham et al. Men in committed, romantic relationships have lower testosterone. Hormones

and Behavior, v. 44, n. 2, p. 119-122, 2003. 62 Sari M. Van Anders & Neil V. Watson, Testosterone levels in women and men who are single, in long-

distance relationships, or same-city relationships. Hormones and Behavior, v. 51, n. 2, p. 286-291, 2007. 63 Alan Booth & James M. Dabbs Jr, Testosterone and men's marriages. Social Forces, v. 72, n. 2, p. 463-

477, 1993. 64 Grazyna Jasienska, Michal Jasienski & Peter T. Ellison, Testosterone levels correlate with the number of

children in human males, but the direction of the relationship depends on paternal education. Evolution and

Human Behavior, v. 33, n. 6, p. 665-671, 2012. 65 Kuzawa, Christopher W. et al. Fatherhood, pairbonding and testosterone in the Philippines. Hormones

and Behavior, v. 56, n. 4, p. 429-435, 2009. 66 Fisher, H. (2000). Lust, attraction, attachment: Biology and evolution of the three primary emotion

systems for mating, reproduction, and parenting. Journal of Sex Education and Therapy, 25, 96-104.

conjunto único de atividades neurais (Fisher et al., 2002)67. O sistema de luxúria motiva

os indivíduos a localizar oportunidades sexuais e está principalmente associado com

efeito de estrogênio e andrógenos no cérebro (isto é, a motivação sexual geral). O sistema

de atração direciona a atenção a indivíduos específicos, faz com que as pessoas anseiem

pela união emocional com esses indivíduos, e está associado a altos níveis de dopamina

e norepinefrina e baixos níveis de serotonina no cérebro (isto é, amor apaixonado). O

sistema de luxúria está mais associado com a dimensão específica de recompensa definida

como “gostar” (gostar de um rosto bonito, corpo bonito). A dimensão "querer" um

parceiro romântico está focada em uma pessoa específica e pode estar mais ligada ao

sistema de atração. Arthur Aron e colegas da Universidade Estadual de Nova Iorque

descobriram que a ativação cerebral para uma face atraente ("gostar") foi diferente da

ativação para o parceiro amado ("querer"): a primeira ativava a area tegmental ventral

esquerda, enquanto a segunda ativava a area tegmental ventral direita68. Os dois sistemas

parecem estar ligados com diferentes sistemas cerebrais, mas ambos estão ligados com o

sistema de recompensa e prazer. O terceiro sistema, sistema de apego, é caracterizado

pela manutenção de proximidade, sentimentos de conforto e segurança, e sentimentos de

dependência emocional e está associado com ocitocina e vasopressina69,70,71. Esses três

sistemas são independentes, mas interligados.

9.5 Exclusividade sexual e ciúme

Joel Wade e colegas da Universidade de Bucknell perguntaram para participantes

de pesquisa nos Estados Unidos como eles demostrariam amor para o seu parceiro/sua

parceira72. As respostas mais típicas incluíram exclusividade sexual do relacionamento –

casamento com o parceiro e fidelidade. A exclusividade sexual é incorporada em várias

67 Fisher, Helen E. et al. Defining the brain systems of lust, romantic attraction, and attachment. Archives

of Sexual Behavior, v. 31, n. 5, p. 413-419, 2002. 68 Op. cit. Nota 5. 69 Carter, C. Sue & Keverne, Eric B. The neurobiology of social affiliation and pair bonding. In Donald W.

Pfaff et al. (eds.) Hormones, Brain and Behavior, 3rd ed. (pp. 299-337). Academic Press, 2002. 70 Thomas R. Insel et al., Oxytocin, vasopressin, and the neuroendocrine basis of pair bond formation. In

Hans H. Zingg, Charles W. Bourque & Daniel G. Bichet (eds.) Vasopressin and oxytocin (pp. 215-224),

1998. 71 Thomas R. Insel, Implications for the neurobiology of love. In Stephen. G. Post, Lynn G. Underwood,

Jeffrey P. Schloss & William B. Hurlbut (eds.) Altruism and altruistic love: Science, philosophy, and

religion in dialogue (pp. 254-263), 2002. 72 T. Joel Wade, Gretchen Auer & Tanya M. Roth, What is love: Further investigation of love acts. Journal

of Social, Evolutionary, and Cultural Psychology, v. 3, n. 4, p. 290, 2009.

regras culturais e evidências transculturais sugerem que a violação da exclusividade

sexual é a principal razão para separação ou divórcio dos parceiros73, bem como violência

doméstica e homicídio74.

Ameaça à exclusividade sexual e emocional pelo(a) rival é geralmente

acompanhada pelo sentimento conhecido como ciúme. O ciúme é um estado afetivo que

pode envolver várias emoções, como raiva, tristeza, possessividade ou humilhação, pode

aparecer em qualquer momento de relacionamento e por várias razões, e pode levar a

vários comportamentos. Martin Daly e Margo Wilson definem ciúme como “um estado

que é despertado por uma ameaça percebida a uma relação ou posição valorizada e motiva

comportamento para se contrapor à ameaça. O ciúme é 'sexual' se a relação valorizada é

sexual”75. A pintura Flerte e Ciúme de 1894 (Fig. 9.6) nos transmite esta definição por

meio de imagem.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Inserir Figura 9.6 aproximadamente aqui

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

O ciúme pode ser desencadeado pela ameaça real ou aparente de perda de

exclusividade sexual e/ou emocional do parceiro para um rival76,77. Mesmo que os ciúmes

sexual e emocional possam ser percebidos como misturados, pesquisas mostram que eles

ativam partes diferentes do cérebro, e representam dois tipos diferentes de resposta78,79.

73 Todd K. Shackelford, David M. Buss & Kevin Bennett, Forgiveness or breakup: Sex differences in

responses to a partner's infidelity. Cognition & Emotion, v. 16, n. 2, p. 299-307, 2002. 74 Margo I. Wilson & Martin Daly, Who kills whom in spouse killings? On the exceptional sex ratio of

spousal homicides in the United States. Criminology, v. 30, n. 2, p. 189-216, 1992. 75 Margo I. Wilson, Martin Daly & Suzanne J. Weghorst, Male sexual jealousy. Ethology and Sociobiology,

v. 3, n. 1, p. 11-27, 1982. Tradução por Jaroslava V. Valentova do trecho à p. 12: “For our purposes,

jealousy may best be defined as a state that is aroused by a perceived threat to a valued relationship or

position and motivates behavior aimed at countering the threat.” 76 David M. Buss, Sexual and emotional infidelity: Evolved gender differences in jealousy prove robust

and replicable. Perspectives on Psychological Science, v. 13, n. 2, p. 155-160, 2018. 77 Richard De Visser et al. Romantic jealousy: a test of social cognitive and evolutionary models in a

population-representative sample of adults. The Journal of Sex Research, p. 1-10, 2019. 78 Hidehiko Takahashi et al. Men and women show distinct brain activations during imagery of sexual and

emotional infidelity. NeuroImage, v. 32, n. 3, p. 1299-1307, 2006. 79 Amanda E. Guitar et al. Defining and distinguishing sexual and emotional infidelity. Current Psychology,

v. 36, n. 3, p. 434-446, 2017.

Várias pesquisas mostraram que, em média, mulheres relatam maior ciúme

emocional do que sexual, enquanto o contrário foi mostrado nos homens80,81. Em outras

palavras, mulheres, em média, relatam que sentiriam maior tristeza ou angústia com uma

infidelidade emocional do parceiro, enquanto homens relatam que sentiriam mais tristeza

ou angústia com infidelidade sexual da parceira. Existem diversas teorias a respeito do

que motiva as diferenças entre os gêneros em relação ao tipo de ciúme. David A. Frederick

e colega, da Universidade de Chapman, fizeram uma pesquisa com mais de 63 mil

participantes nos Estados Unidos, por meio de uma pesquisa online, em que as diferenças

entre gêneros se mantiveram apesar de variação em aspectos demográficos, histórico de

relacionamento e de infidelidade82. Especialmente homens heterossexuais relataram

maior ciúme sexual do que emocional, enquanto homens homossexuais e mulheres de

ambas as orientações sexuais relataram maior ciúme emocional do que sexual. Brooke

Scelza, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, investigou o nível de ciúme entre

os Himba, uma população nativa da Namíbia, e replicou as diferenças entre sexos, mas

encontrou que tanto homens quanto mulheres relataram com maior frequência ciúme

sexual do que em populações ocidentais83.

Um tipo de comportamento evocado por ciúme é a guarda do parceiro/da parceira,

que envolve monitoramento da sua rede social, removendo-o(a) da presença de potenciais

rivais, tentando monopolizar sua atenção, garantindo engajamento social, entre

outros84,85. Outro comportamento causado pelo ciúme é a competição com rivais,

envolvendo ataque físico, depreciação do(a) rival ou autopromoção86,87. O ciúme per se

não é um estado negativo, é uma parte do relacionamento que serve para manutenção e

proteção do relacionamento e como uma prevenção de deserção possível de um parceiro.

A partir da perspectiva evolucionista, “o ciúme não é um sinal de imaturidade e sim uma

80 Mons Bendixen, Leif Edward Ottesen Kennair & David M. Buss, Jealousy: Evidence of strong sex

differences using both forced choice and continuous measure paradigms. Personality and Individual

Differences, v. 86, p. 212-216, 2015. 81 Altay Alves Lino de Souza et al. Emotional and sexual jealousy as a function of sex and sexual orientation

in a Brazilian sample. Psychological Reports, v. 98, n. 2, p. 529-535, 2006. 82 David A. Frederick & Melissa R. Fales, Upset over sexual versus emotional infidelity among gay, lesbian,

bisexual, and heterosexual adults. Archives of Sexual Behavior, v. 45, n. 1, p. 175-191, 2016. 83 Brooke A. Scelza, Jealousy in a small-scale, natural fertility population: the roles of paternity, investment

and love in jealous response. Evolution and Human Behavior, v. 35, n. 2, p. 103-108, 2014. 84 David M. Buss, Human mate guarding. Neuroendocrinology Letters, v. 23, n. 4, p. 23-29, 2002. 85 Adelia de Miguel & David M. Buss, Mate retention tactics in Spain: Personality, sex differences, and

relationship status. Journal of Personality, v. 79, n. 3, p. 563-586, 2011. 86 Maryanne Fisher & Anthony Cox, Four strategies used during intrasexual competition for mates.

Personal Relationships, v. 18, n. 1, p. 20-38, 2011. 87 Guilherme S. Lopes et al. Mate retention inventory-short form (MRI-SF): Adaptation to the Brazilian

context. Personality and Individual Differences, v. 90, p. 36-40, 2016.

paixão muito importante que ajudou nossos ancestrais, e provavelmente continua a nos

ajudar hoje, a enfrentar um conjunto de ameaças reprodutivas reais”88. Porém, do ponto

de vista proximal, o ciúme é um estado afetivo perigoso, que pode levar a agressão e

violência, causando prejuízo a todas as pessoas envolvidas. Entender como ele funciona

e porque, e como evitar as consequências negativas dele é um dos desafios da pesquisa

psicológica. A partir da perspectiva clínica, um estudo recente realizado com uma amostra

brasileira relatou que indivíduos com ciúme patológico, que estavam buscando

tratamento, relataram mais o estilo de amor chamado mania e apego ansioso do que

indivíduos sem ciúme patológico89. Algumas pesquisas mostraram que o sistema de

apego pode diminuir a procura de parceiros(as) alternativos(as). Por exemplo, numa

pesquisa, os participantes foram convidados a selecionar a imagem de um indivíduo do

sexo oposto a partir de uma série de imagens que eles acharam mais atraente e, em

seguida, escrever um pequeno ensaio sobre (a) por que a pessoa na imagem era atraente

e (b) a maneira ideal do primeiro encontro com esta pessoa90. Os participantes foram,

depois, aleatoriamente divididos para escrever um ensaio sobre seu amor por seu parceiro

atual, seu desejo sexual por seu parceiro atual ou seu fluxo atual de consciência. Somente

os participantes induzidos a sentir amor por seus parceiros relataram menos pensamentos

sobre o parceiro alternativo atraente durante a tarefa subsequente. Isso significa que

sentimentos relativamente fortes de amor por um(a) parceiro(a) podem ajudar os

indivíduos a suprimir pensamentos e sentimentos para parceiros(as) alternativos(as)

atraentes.

Em uma outra pesquisa, os participantes viam uma série de fotografias de pessoas

do sexo oposto, que incluíam algumas fotos de indivíduos muito atraentes fisicamente91.

Os participantes controlaram a quantidade de tempo que passaram vendo cada foto com

um controle remoto e o tempo de exibição de cada foto foi registrado pelo

experimentador. Os indivíduos que relataram uma maior satisfação e compromisso com

seus(suas) parceiros(as) gastaram menos tempo vendo as fotos de pessoas atraentes. De

88 David M. Buss, The Dangerous Passion: Why Jealousy is as Necessary as Love and Sex, 2000. Tradução

por Emma Otta do trecho à p. 5: “Jealousy, according to this perspective, is not a sign of immaturity, but

rather a supremely important passion that helped our ancestors, and most likely continues to help us today,

to cope with a host of real reproductive threats.” 89 Andrea Lorena da et al. Costa, Pathological jealousy: Romantic relationship characteristics, emotional

and personality aspects, and social adjustment. Journal of Affective Disorders, v. 174, p. 38-44, 2015. 90 Gian C. Gonzaga et al., Love and the commitment problem in romantic relations and friendship. Journal

of Personality and Social Psychology, v. 81, n. 2, p. 247, 2001. 91 Rowland S. Miller, Inattentive and contented: Relationship commitment and attention to alternatives.

Journal of Personality and Social Psychology, v. 73, n. 4, p. 758, 1997.

fato, eles(as) passaram as fotos atraentes mais rápido do que as outras fotos.

Curiosamente, participantes que gastaram menos tempo visualizando as fotos atraentes

tiveram uma menor probabilidade de separação dois meses depois do experimento.

Em outras palavras, sentimentos de amor por um parceiro podem reduzir a

tentação de imaginar ou procurar parceiros(as) alternativos(as) atraentes. Mesmo assim,

o que torna o amor satisfatório é o amor mútuo, e amor não correspondido ou dissolução

do relacionamento podem ocorrer por várias outras razões além de ciúme ou infidelidade.

Separação ou sentimentos de amor não correspondido causam estresse, tristeza, ou até

raiva e levam a vários comportamentos em ambos os parceiros, o rejeitador e o rejeitado92.

9.7 Síndrome de Otelo

A literatura inspirou psicólogos e profissionais de áreas afins que se dedicam ao

estudo do sentimento de ciúme, desde as suas variantes normais até as variantes

patológicas, conhecidas como ciúme mórbido, ciúme patológico ou Síndrome de Otelo93.

Em vez de reagir a evidências concretas, em casos patológicos, o indivíduo interpreta

pistas aparentemente irrelevantes como evidência conclusiva de infidelidade e se recusa

a mudar sua interpretação diante de informações contraditórias. Ciúme é um estado

afetivo complexo que a maioria das pessoas vivencia em algum momento da vida94. É um

sentimento desagradável, que surge quando um indivíduo se dá conta que outro recebe

atenção ou vantagem que desejaria para si, percebendo uma ameaça à relação que tem

com uma pessoa amada. O afeto despertado pode consistir em tristeza, medo, raiva e

comportamentos de recuperação da atenção da pessoa amada, além de comportamentos

de agressão ao parceiro(a) ou à terceira parte95. É observado na infância na ausência de

motivação sexual, geralmente despertado por desigualdade percebida na distribuição de

atenção ou cuidado e, aparentemente, visando redireção da atenção ou cuidado de um

intruso, geralmente um irmão, para si mesmo. Em crianças pequenas, o comportamento

92 Roy F. Baumeister, Sara R. Wotman & Arlene M. Stillwell, Unrequited love: On heartbreak, anger, guilt,

scriptlessness, and humiliation. Journal of Personality and Social Psychology, v. 64, n. 3, p. 377, 1993. 93 John Todd & Kenneth Dewhurst, The Othello syndrome: a study in the psychopathology of sexual

jealousy. The Journal of Nervous and Mental Disease, v. 122, n. 4, p. 367-374, 1955. 94 Cipriani, Gabriele et al. Dangerous passion: Othello syndrome and dementia. Psychiatry and Clinical

Neurosciences, v. 66, n. 6, p. 467-473, 2012. 95 Sybil L. Hart & Maria Legerstee, Handbook of Jealousy: Theory, Research, and Multidisciplinary

Approaches, 2010.

se manifesta na forma de choro, chamar a figura principal de apego, bater nela ou no

intruso, com olhar fixo, franzir a testa, enrijecer o corpo, buscar proximidade e colocar-

se entre um intruso e a figura de apego. Ao longo do ciclo de vida, o afeto permanece,

mas interesses reprodutivos entram em ação a partir da adolescência e, neste contexto,

surge a principal fonte de ameaça. Exibições de atenção e afeto para um parceiro potencial

são os principais meios de induzir ciúme num parceiro96.

Pensamentos intrusivos sobre infidelidade ocorrem em ambos os sexos, com

relato de predomínio masculino em alguns estudos97,98. A perspectiva evolucionista prevê

reações sexualmente dimórficas, com mulheres reagindo mais intensamente à

infidelidade emocional e homens reagindo predominantemente a infidelidade sexual99. O

desafio do investimento parental aumentado para as mulheres e o desafio da incerteza de

paternidade para os homens teriam exercido pressões seletivas que moldaram estas

diferenças. Pesquisas realizadas com base nesta perspectiva têm produzido evidências

empíricas consistentes com as previsões feitas100,101,102.

Pensamentos intrusivos de infidelidade do(a) parceiro(a) podem ganhar tal

prioridade e magnitude que chegam a ser considerados delirantes e patalógicos. Este é

um problema que não atinge exclusivamente indivíduos jovens. Num grupo de 208 idosos

com mais de 70 anos, portadores de demência, 18 (8.7%) apresentavam ciúme

patológico103. O problema era mais frequente em pacientes que apresentavam demência

com corpos de Lewy (26.3%) em comparação daqueles com Alzheimer (5.5%).

O ciúme parece ter características de uma emoção primária e pode ter

desempenhado um papel importante na história da evolução humana. Contudo, é um

fenômeno heterogêneo que pode assumir diferentes formas. Donatella Marazziti e

96 T. Joel Wade & Allison B. Weinstein, Jealousy induction: Which tactics are perceived as most effective?.

Journal of Social, Evolutionary, and Cultural Psychology, v. 5, n. 4, p. 231, 2011. 97 Karin Gutiérrez-Lobos et al. Delusions in first-admitted patients: gender, themes and diagnoses.

Psychopathology, v. 34, n. 1, p. 1-7, 2001. 98 Diane Mullins, Morbid jealousy: the green-eyed monster. Irish Journal of Psychological Medicine, v.

27, n. 2, p. i-vii, 2010. 99 Jose C. Yong & Norman P. Li, The adaptive functions of jealousy. In Heather C. Lench (ed.) The

Function of Emotions (pp. 121-140), 2018. 100 Walum, Hasse et al. Sex differences in jealousy: a population-based twin study in Sweden. Twin

Research and Human Genetics, v. 16, n. 5, p. 941-947, 2013. 101 Op. cit. Nota 81. 102 Justin K. Mogilskiet al., Jealousy, consent, and compersion within monogamous and consensually non-

monogamous romantic relationships. Archives of Sexual Behavior, v. 48, n. 6, p. 1-18, 2019. 103 Mamoru Hashimoto, Shinichi Sakamoto & Manabu Ikeda, Clinical features of delusional jealousy in

elderly patients with dementia. The Journal of Clinical Psychiatry, v. 76, n. 6, p. 691-695, 2015.

colaboradores desenvolveram uma escala para avaliação de ciúme104, com perguntas tais

como as ilustradas abaixo e quatro alternativas de resposta:

• Você pensa, com preocupação, que outras pessoas podem atrair o(a) seu

parceiro(a) (cônjuge, companheiro (a), namorado(a)?

(0) não, nunca a (3) sempre.

• Estes pensamentos te ocupam (em média):

(0) menos de uma hora por dia a (3) mais de 8 horas por dia

• Esses pensamentos:

(0) não interferem em suas atividades diárias a (3) prejudicam

definitivamente suas atividades diárias.

Duas formas de ciúme patológico podem ser diferenciadas105,106,107: (1) uma forma

caracterizada por fortes falsas crenças de infidelidade do(a) parceiro(a) que resistem a

evidências em contrário e (2) outra caracterizada por ruminações de infidelidade

acompanhadas por checagem compulsiva do comportamento do parceiro, que contrariam

e perturbam o próprio indivíduo. As compulsões envolvem comportamentos repetitivos

de verificação (como perguntas, telefonemas, visitas-surpresa), que podem assumir

formas estranhas como examinar as fezes da namorada, em busca de restos de bilhetes

engolidos108. Recomendam-se intervenções psicoterápicas que: (1) favoreçam o exame

de explicações alternativas, considerando evidências confirmatórias e contrárias às

crenças irracionais, numa atmosfera empática de não julgamento109 e (2) promovam

treinamento de habilidades de regulação emocional, aceitação de emoções e incerteza,

exame de vieses cognitivos e decatastrofização da perda110. Batinic, Duisin e Barisic

104 Donatella Marazziti et al., Heterogeneity of the jealousy phenomenon in the general population: an

Italian study. CNS Spectrums, v. 15, n. 1, p. 19-24, 2010. 105 Borjanka Batinic, Dragana Duisin & Jasmina Barisic, Obsessive versus delusional jealousy. Psychiatria

Danubina, v. 25, n. 3, p. 334-339, 2013. 106 Michael Kingham & Harvey Gordon, Aspects of morbid jealousy. Advances in Psychiatric Treatment,

v. 10, n. 3, p. 207-215, 2004. 107 Donatella Marazziti et al., Normal and obsessional jealousy: a study of a population of young adults.

European Psychiatry, v. 18, n. 3, p. 106-111, 2003. 108 Albina Rodrigues Torres, Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira & Rodrigo da Silva Dias, O ciúme

enquanto sintoma do transtorno obsessivo-compulsivo. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 21, n. 3, p.

165-173, 1999. 109 Laura Smith et al. Cognitive Behavioural Therapy for Psychotic Symptoms: A Therapist ̓s Manual. Perth,

Australia: Centre for Clinical Interventions, 2003. 110 Leahy, Robert L. & Tirch, Dennis D. Cognitive behavioral therapy for jealousy. International Journal

of Cognitive Therapy, v. 1, n. 1, p. 18-32, 2008.

* https://www.proamiti.com.br/

(2013) recomendam intervenções farmacológicas com antipsicóticos, no primeiro caso, e

inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), no segundo caso.

O Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina

(FMUSP) da USP oferece atendimento, por meio do grupo PRO-AMITI*, para pessoas

que percebam que seu ciúme prejudica o relacionamento amoroso de alguma forma,

sendo motivo de brigas ou discussões, com queixas e reclamações sobre o ciúme

excessivo do(a) parceiro(a).

9.8 Em Conclusão

Começamos o capítulo sobre amor, sexo, paixão e ciúme buscando inspiração na

literatura, com grandes obras como Otelo de Shakespeare e Dom Casmurro de Machado

de Assis. No âmbito da psicologia, apresentamos contextualizações teóricas no campo da

psicologia social e da perspectiva evolucionista, destacando o histórico e o cenário atual

de pesquisa. Do ponto de vista metodológico, apresentamos pesquisas usando medidas de

auto relato, comportamentais e neurofisiológicas. Apresentamos instrumentos validados

para o contexto brasileiro e em processo de validação. A dinâmica de relacionamentos

amorosos preocupa maioria de pessoas e mais pesquisas estão necessárias para elucidar

essa dimensão importante da vida. A partir do conhecimento apresentado convidamos os

estudantes a formular questões próprias de investigação, desenvolvendo seus próprios

protocolos de pesquisa. Aplicações para a prática clínica, baseadas em intervenções

psicoterápicas, foram discutidas a partir da análise do ciúme patológico.

Leituras adicionais sugeridas

Ana Maria Fernandez, Victor Shiramizu & Jaroslava Varella Valentova. Dinâmica e

qualidade de relacionamentos: manutenção e dissolução. In Maria Emilia.

Yamamoto & Jaroslava V. Valentova (eds.) Manual da Psicologia Evolucionista,

p. 364-384. Natal: EDUFRN, 2018.

Andrea Lorena da Costa. Contribuições para o Estudo do Ciúme Excessivo. FMUSP:

Dissertação de Mestrado, 2010.

Arthur Aron & Elaine N. Aron. Love and sexuality. In: Sexuality in Close Relationships,

p. 41-64. Psychology Press, 2014. Ver também o vídeo The Science of Love with

Arthur Aron

Eglacy Cristina Sophia. Desenvolvimento e Validação de um Instrumento para Avaliar o

Amor Patológico. FMUSP: Tese de Doutorado, 2014.

Helen E. Fisher. Por que Amamos: a Natureza e a Química do Amor Romântico, 2ª ed.

Tradução de Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008/2006. Ver

também Ted Talk Helen Fisher estuda o cérebro amando.

Questões e Temas para Discussão

1. Por que a obra Otelo de Shakespeare deu nome à Síndrome de Otelo?

2. Em que consiste a Teoria das Cores do Amor de John Alan Lee?

3. Em que consiste a Teoria Triangular do Amor de Robert Sternberg?

4. Em que consiste a Teoria do Apego aplicada ao amor romântico de Cindy

Hazan e Philip Shaver?

5. Discuta a afirmação de Oscar Wilde “Deveríamos estar sempre

apaixonados. É a razão pela qual nunca deveríamos casar”.

6. Quais são as previsões para os ciúmes sexual e emocional feitas a partir da

perspectiva evolucionista?

7. Ciúme pode ser considerado uma categoria unitária ou deveria ser

considerado um fenômeno heterogêneo? E por que?

8. O ciúme pode tornar-se patológico?

9. Discuta a seguinte afirmação de Vladimir Safatle “talvez sejamos

obrigados a concluir que não é possível para nós nos afastar do que

tenderíamos a chamar de ‘paixões tristes’, pois não há paixão que, em

vários momentos, não nos entristeça. Não há afetos que não nos contraiam,

não há vida que não se deixe paralisar, que precise se paralisar por certo

tempo, que não se vista com sua própria impotência a fim de recompor sua

velocidade. Mais, ainda. Não há vida que não se sirva da doença para se

desconstituir e reconstruir”. (Folha de São Paulo, 23.06.17)

Questões e Temas para Pesquisa

Resgate histórico: Exemplo de trabalhos realizados111

• Ciúme no relacionamento amoroso: uma pesquisa de atitudes

• Critérios de seleção do parceiro amoroso

• O compromisso de namoro e a percepção de ´atratividade´ física

• As características do(a) namorado(a) ideal

• O namoro atraves dos tempos

• Idealização amorosa: as semelhanças e diferenças entre homens e mulheres

• Sentimentos predominantes em gêmeos após o término de relações românticas

111 Patricia Izar et al., Ciúme no relacionamento amoroso: uma pesquisa de atitudes. Anais da 25ª Reunião

Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, p. 380, 1995; Sonia Regina Pereira Piola Luque et al.,

Critérios de seleção do parceiro amoroso: atitudes próprias e expectativas quanto às atitudes do outro sexo.

Anais da 45ª Reunião Anual da SBPC, p. 901, 1993; Ilan Fernando Wainrober Segre et al. O compromisso

de namoro e a percepção de ´atratividade´ física. Anais da 45ª Reunião Anual da SBPC, p. 902, 1993;

Andrea Aparecida Ianni et al., As características do(a) namorado(a) ideal. Anais da 44ª Reunião Anual da

SBPC, p. 876, 1992; Marcelo Afonso Ribeiro et al., O namoro através dos tempos. 42ª Reunião Anual da

SBPC, v. 42, p. 420-421, 1990; Ariel Schicchi Zilberman et al., Idealização amorosa: as semelhanças e

diferenças entre homens e mulheres. Mini-Congresso de Motivação & Emoção, IPUSP, 2015; Mariana

Amoedo Seuaciuc et al., Sentimentos predominantes em gêmeos após o término de relações românticas.

Mini-Congresso de Motivação & Emoção, IPUSP, 2017.

Sugestão de nova pesquisa: Orientações de Apego Romântico e Ciúme no

Paradigma de Agravamento de Resposta

Propõe-se, a seguir, a realização de uma pesquisa sobre ciúme em função de

orientações de apego romântico, usando o Paradigma de Agravamento de Resposta

(PAR). Esta proposta foi inspirada numa pesquisa feita por Chloe Huelsnitz e equipe da

Universidade de Minnesota112. Estamos usando aqui a seguinte definição de ciúme: “um

conjunto de pensamentos, emoções e ações gerado pela percepção de uma atração

romântica real ou potencial entre o(a) parceiro(a) e um rival (talvez imaginário)”113.

Raiva é uma emoção que pode surgir neste contexto, junto com pensamentos e/ou ações

de retaliação, voltados ao rival e talvez também ao parceiro, buscando acabar com a

situação. Medo e tristeza são outras emoções que podem surgir, junto com pensamentos

e/ou ações voltadas à reparação da relação e de enfrentamento da possibilidade de perda

da relação.

Objetivo:

Examinar os padrões de reação de ciúme e emoções associadas (raiva, tristeza,

medo) em função do aumento de ameaça representada por um(a) rival potencial, com

especial interesse em relação aos estilos de apego ansioso e evitativo na sua reação ao

estágio inicial e mais ambíguo do PAR.

Método:

A amostra será composta por participantes que estejam envolvidos numa relação

romântica. Eles responderão a ECR-R-Brasil, um questionário que se refere a

experiências em relacionamentos íntimos114 e que avalia, especificamente, “ansiedade

relacionada ao apego” (por ex, Eu preciso de muitas garantias de que sou amado por meu

parceiro) e “evitação relacionada ao apego” (por ex, Geralmente, tento evitar muita

proximidade afetiva com meu parceiro). Cada item é respondido numa escala de 0

(discordo totalmente) a 7 (concordo totalmente). Em seguida, cada participante será

exposto aos estágios do Paradigma de Agravamento de Resposta (PAR) e deverá avaliar,

112 Chloe O. Huelsnitz et al., Attachment and jealousy: Understanding the dynamic experience of jealousy

using the response escalation paradigm. Personality and Social Psychology Bulletin, v. 44, n. 12, p. 1664-

1680, 2018. 113 Gregory L. White & Paul E. Mullen, Jealousy: Theory, Research, and Clinical Strategies. Guilford

Press, 1989. Tradução por Emma Otta de trecho à p. 9: “Jealousy is a complex of thoughts, emotions, and

actions that follows loss of or threat to self-esteem and/or the existence or quality of the romantic

relationship when the perceived loss or threat is generated by the perception of a real or potential romantic

attraction between one’s partner and a (perhaps imaginary) rival.” 114 Op. cit. Nota 42. O questionário encontra-se na p. 494 do artigo de Jean C. Natividade e Vitor Shiramizu.

para cada um deles, ciúme, raiva, tristeza e apreensão/medo usando uma régua que vai de

0 (= nada) a 100 (= extremamente). Também deverá dizer se irá interferir ou não. Os

estágios são:

1. Você e [seu parceiro / sua parceira] estão em uma festa grande. Há muitas pessoas

lá e todo mundo está se divertindo. Você se afasta [do seu parceiro / da sua

parceira] para ir até o bar e tentar pegar uma bebida. Enquanto você espera, vê

que [uma mulher / um homem] atraente se aproxima [do seu parceiro / da sua

parceira] e começa a conversar com [ele / ela].

2. Enquanto você continua esperando a sua bebida, vê que [seu parceiro / sua

parceira] ainda está conversando com [a mulher / o homem] atraente. Ambos

parecem estar gostando da conversa e estão rindo juntos.

3. Logo você descobre que [a mulher / o homem] está claramente flertando com [seu

parceiro / sua parceira. [Ela / Ela] coloca a mão [dela / dele] no ombro [do seu

parceiro / da sua parceira] e se inclina para frente. [Seu parceiro / Sua parceira]

não [a / o] afasta ou parece desconfortável.

4. Enquanto [seu parceiro e a mulher / sua parceira e o homem] atraente continuam

conversando, [ela / ele] fica ainda mais perto de [seu parceiro / sua parceira],

olhando profundamente nos seus olhos e acariciando o lado e o rosto [dele / dela].

Você vê [a mulher / o homem] atraente começar a beijar [seu parceiro /

sua parceira].

Resultados esperados:

Esperamos diferenças nas reações dos participantes em situações de ameaça

potencial ao relacionamento, em função das suas orientações de apego. Indivíduos muito

ansiosos irão apresentar maior ciúme que indivíduos pouco ansiosos em situação de baixa

ameaça (por ex, Estágio 1 do PAR) e maior intensificação deste sentimento com o

agravamento da ameaça ao longo dos cinco estágios do PAR. Supomos que irão interferir

mais cedo e apresentar mais tristeza e preocupação. Esperamos que indivíduos muito

evitativos irão apresentar mais raiva e mais comportamento destrutivo focalizado no

parceiro.