A sexualidade nas esculturas cerâmicas de Francismo Brennand

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL PÓS-GRADUAÇÃO EM JORNALISMO CULTURAL EDJA CAMILA GOMES DE ARAÚJO A SEXUALIDADE NAS ESCULTURAS CERÂMICAS DE FRANCISCO BRENNAND RIO DE JANEIRO 2014

Transcript of A sexualidade nas esculturas cerâmicas de Francismo Brennand

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

PÓS-GRADUAÇÃO EM JORNALISMO CULTURAL

EDJA CAMILA GOMES DE ARAÚJO

A SEXUALIDADE NAS ESCULTURAS CERÂMICAS DE FRANCISCO

BRENNAND

RIO DE JANEIRO

2014

EDJA CAMILA GOMES DE ARAÚJO

A SEXUALIDADE NAS ESCULTURAS CERÂMICAS DE FRANCISCO BRENNAND

Trabalho de conclusão do curso de

Especialização em Jornalismo Cultural

apresentado à Universidade do Estado do Rio de

Janeiro.

Orientador(a): Profª Drª Leila Longo

RIO DE JANEIRO

2014

AGRADECIMENTO

Agradeço a todos que, de alguma forma, contribuíram para a execução desse

trabalho. À professora Leila Longo por ter aguçado o meu desejo pelas artes plásticas,

além de toda a paciência que teve ao me ajudar nessa difícil tarefa. Agradeço aos meus

colegas do curso pelo apoio que recebi em todas as etapas do mesmo, principalmente a

Rafaela Ventura e Laura Fernandes. Aos meus pais, Edja Maria e João Gomes, que,

mesmo distantes, se mostram orgulhosos e me ajudaram a vencer mais um desafio. E,

por fim, ao meu companheiro Diego Garcia, pelo auxílio e pelas palavras de incentivo.

“Estranho e triste o destino dos

homens, coitados, sempre sôfregos por

alguma coisa que infelizmente não se

encontra aqui”

(Ariano Suassuna)

RESUMO

A obra do pernambucano Francisco Brennand é impressionante. Ele é um artista

multimodal. Possui desenhos, quadros, paineis em cerâmica, esculturas e uma obra in

progress. A sua temática causa tabu para a sociedade recifense, nordestina e brasileira.

Objetos fálicos, vulvas, nádegas e ovos simbolizam o grande mistério da vida: a

reprodução. Baseadas na mitologia e cultura greco-romana, na literatura e na história

ocidental, suas personagens, em maior parte femininas, estão salvas dentro de um

grande e belo santuário, a Oficina Brennand, reconstruída a partir de uma Olaria de sua

família, local que se mistura com a natureza da Várzea. Neste mesmo lugar com ar

fabril, repleto de animais híbridos, jardins e fornos, o artista se isola, busca uma

inspiração, assim como Gaugin, que reside distante da urbanização. Entre os livros e

suas modelos, Brennand, que se autodefine como pornográfico, cria suas peças, não

importa o suporte, de maneira bem pensada e arquitetada. Mesmo que seja de forma

chocante e repleta de tabus, o que se quer passar está bem explícito: o sofrimento pelo

qual a humanidade passa para que a espécie possa se imortalizar.

Palavras-chave: erotismo; sexualidade; pornografia; escultura; cerâmica.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ______________________________________________________7

1.Uma breve abordagem sobre a sexualidade, pornografia e erotismo_________ 11

1.1 O ensinamento dos gregos: da mitologia a Platão_____________________11

1.2 A posição de Georges Bataille, Vrissimtzis e Freud ― mas sempre com os

gregos ___________________________________________________________13

2. A sexualidade do ponto de vista da arte _______________________________ 21

2.1 A beleza e a repugnância _________________________________________21

2.2 A arte erótica __________________________________________________22

2.3 A arte pornográfica _____________________________________________26

3. O artista Francisco Brennand_________________________________________30

3.1 Um pouco de sua vida ___________________________________________30

3.2 Apresentação da sexualidade em sua obra __________________________33

3.3 Processo e misticismo ___________________________________________35

4. Brennand: erótico ou pornográfico? ___________________________________39

4.1 A obra cerâmica ________________________________________________39

4.2 Vênus e Halia __________________________________________________43

4.3 A árvore da vida, Príapo e Leda e o Cisne __________________________45

CONSIDERAÇÕES FINAIS __________________________________________48

BIBLIOGRAFIA ____________________________________________________50

ANEXO __________________________________________________________i a vi

7

_ INTRODUÇÃO

Pouco conhecido no Brasil, o pintor, desenhista e escultor recifense Francisco

Brennand continua isolado em sua Oficina, no bairro da Várzea, subúrbio da Veneza

brasileira. Tendo inspirações em Gauguin, Balthus e Miró, sua obra tem como tema

principal o mistério da reprodução, não só humana, mas da vida. Uma maneira de

eternizar algo que é mortal. Mulheres, ninfetas, falos, vulvas, mitos e toda a sua

simbologia são marcas de suas esculturas, quadros e desenhos.

Apesar de se considerar um pintor e não um escultor, suas peças de cerâmica são

o ponto de partida para qualquer olhar curioso. A surpresa não é tão grande quando se

descobre que, na verdade, o artista produz muitos quadros de óleo sobre tela e que essa

é a sua verdadeira paixão. Estes estão expostos no salão Accademia, um espaço

construído dentro de seu próprio museu que armazena toda a produção de desenho e

pintura, e de lá não sairão. Suas obras não são vendidas, criam raízes como árvores,

segundo o próprio artista. O seu sustento se dá na venda de ladrilhos, de revestimentos

cerâmicos e de encomendas. Mas as suas obras do museu ficarão por lá compondo o que

o artista considera um grande santuário místico.

Desde 1949, o artista escreve um diário com detalhes de sua vida pessoal e

artística. Este manuscrito será transformado em um extenso livro que, segundo o artista,

servirá de material de estudo para críticos de arte. Inspirada nesse mesmo diário, sua

sobrinha-neta, Mariana Brennand Fortes, dirigiu um documentário, que estreou

nacionalmente no dia 15 de março de 2013 retratando a imagem de Brennand como um

lobo solitário.

Sou nordestina, da Paraíba, e minha escola sempre fazia passeios para Recife,

uma cidade mais desenvolvida e com mais programas culturais do que a minha pequena

João Pessoa naquela época. Foi na minha adolescência que tive o primeiro contato com

a obra de Brennand e toda a experiência foi repleta de chacotas. Eram muitos falos,

muitas esculturas “feias” e “sombrias”. Longe do requinte do que considerávamos obra

de arte. O lugar e a oficina, de fato, eram lindos. Os jardins eram encantadores. Mas

nada entendi naquela visita.

Por que aquele senhor de face tão serena era tão interessado em pênis gigantes?

É cômico declarar que esta pergunta sempre esteve na minha mente desde aquela visita.

8

Um assunto que não poderia ser discutido. Um tabu que não poderia ser quebrado. Ao

me envolver nos estudos de literatura clássica, percebi que a sexualidade não era um

tabu. Os deuses do Olimpo a tratavam com naturalidade. No mundo das Letras, deparei-

me com erotismo na fala de Gregório de Matos e de Caetano Veloso. E ao iniciar

estudos de artes plásticas, me voltou a mente esse questionamento, que, depois de todas

essas experiências e novos conhecimentos, começaram a fazer um certo sentido.

Minha curiosidade se concretizou em um pequeno trabalho voltado para uma

disciplina da pós-graduação em Jornalismo Cultural. E, começando a estudar os

mistérios de Brennand, percebi que não caberia naquele pequeno trabalho. Vendo

documentários, lendo entrevistas, lembrando-me da minha visita há mais de dez anos,

pude quebrar tabus. Estudar a sexualidade na vida e nas obras do artista foi, e ainda é,

uma grande e impactante experiência, tanto para mim, como para os que ajudaram a

elaborar este trabalho.

Todavia, estudar os conceitos relacionados à sexualidade é um pouco difícil pelo

fato das definições se cruzarem, serem semelhantes. Há uma grande quantidade de

material sobre o erotismo. Com relação às artes, ainda não há muito, principalmente nas

artes plásticas. E sendo um assunto bem mais difícil, devido a muitos tabus, seja pela

imoralidade ou pelo fato de ser considerada uma categoria comercial, a pornografia

possui ainda menos material. Francisco Brennand se considera um artista pornográfico.

Essa definição causa problemas, pois existem vários teóricos com vários conceitos

sobre um mesmo objeto de estudo.

O tema do presente trabalho é a obra de Brennand com foco na sexualidade

presente nas esculturas cerâmicas. O artista produz diversas modalidades, como pintura,

desenhos, murais, painéis cerâmicos e esculturas também cerâmicas. É um grande

universo que não seria prudente ser colocado neste trabalho, já que exigiria um estudo

muito mais profundo e extenso. A tentativa será a de categorizar a obra perante esses

conceitos da arte sexualizada. Não se sabe se as esculturas são eróticas ou

pornográficas. Alguns estudiosos o classificam como um artista erótico, pois

conseguem ver lirismo em suas esculturas, pinturas e desenhos. Destarte, precisamos

saber se a arte de Brennand é erótica (como classificam os críticos) ou pornográfica

(como o próprio artista se classifica).

9

Nossa hipótese é a de negar essa pornografia assumida pelo artista. Não há

muitos elementos que classifiquem a obra cerâmica como pornográfica, considerando os

pontos abordados pelos teóricos da bibliografia escolhida sobre o tema. Pois, apesar de

órgãos sexuais estarem expostos, essa exposição não é feita com uma realidade crua.

Ela é feita subjetivamente.

Tomemos como exemplo inicial a obra Les Amants. É uma escultura de

cerâmica onde dois corpos simétricos, de homem e mulher, estão fundidos num

apertadíssimo abraço. Não há um apelo sexual, há o lirismo de um amor entre duas

pessoas que se tornam uma, em busca de um complemento, em busca da criação de uma

vida. Então poderíamos classificar essa obra como erótica, segundo a bibliografia

escolhida para análise.

Essa difícil questão será fragmentada em quatro capítulos. Para definir o artista

temos que, primeiramente, nos basear em teorias mais consistentes. Então, o primeiro

capítulo abordará os conceitos de erotismo e pornografia e quais são suas

características. Para isso, usamos, principalmente, os autores Lúcia Castello Branco,

Georges Bataille e Dominique Maingueneau.

Em seguida, no segundo capítulo, iremos exemplificar esses conceitos na arte,

em geral. Os exemplos são importantes para nortear a classificação que será feita na

análise do artista. Apoiamo-nos em Umberto Eco, Janilton Andrade e Dominique Baqué

para extrair mais conceitos e as obras analisadas.

Tendo todo esse repertório de conceitos e exemplos, os guardamos um pouco

para introduzir o foco dessa pesquisa: o artista Francisco Brennand. No terceiro

capítulo, fizemos uma breve exposição de sua biografia, de sua obra e de seus temas,

conceitos e inspirações. Por fim, no quarto e último capítulo, fizemos uma análise de

algumas esculturas cerâmicas, baseada nos conceitos estudados, nos exemplos vistos e

na história de vida do artista, usando como suporte depoimentos de críticos de arte,

escritores e amigos de Brennand, além de relatos do próprio artista.

Estudar esse artista e sua obra (ainda inacabada) é de tamanha importância para

o mundo da arte e para a sociedade brasileira. Possuindo um tema bastante polêmico e

distante da moral, a obra brennandiana não recebe a atenção merecida. Obviamente

chama a atenção de todos, entretanto não de uma maneira desejável e sim de repulsa.

10

Francisco Brennand é mais um artista brasileiro reconhecido internacionalmente e

desconhecido por seu povo. Em seu próprio país não consegue muitos apreciadores.

Não se consegue ler bem a obra de brennandiana. Existe um gigantesco templo, com

uma infinidade de obras. Um artista com muitas habilidades.

A discussão sobre a sexualidade, o erotismo e a pornografia presente na

sociedade também deve ser considerada importante para que haja um crescimento

intelectual e cultural. O mistério da vida deve ser amplamente discutido. E se existe um

artista que tem a intenção de passar, ou tentar passar, essa mensagem, devemos destacá-

lo e estudá-lo para uma melhor compreensão da vida, do universo, etc. Uma sociedade

com receio desses assuntos não pode progredir.

11

Capítulo I ― Uma breve abordagem sobre a sexualidade, pornografia e erotismo

Les Amants – Foto de Helder Ferrer

Neste capítulo, iremos abordar essa necessidade que o ser humano possui de se

unir “à sua metade”, numa busca pela completude do ser, pelo prazer, pelo amor.

Tentaremos entender como é percebida a sexualidade do ser humano através das

categorias erotismo e pornografia.

1.1.O ensinamento dos gregos: da mitologia a Platão

No início da humanidade, segundo a mitologia grega1, não existia homem, nem

mulher. Havia um ser que unia o masculino e o feminino, que possuía quatro pernas,

quatro braços, dois genitais e duas cabeças. Tinha um corpo redondo, grande e forte.

Eis que era nomeado andrógino.

A criatura primordial, para Platão2, tomou conhecimento de seu extraordinário

poder e então desafiou os deuses do Olimpo. Escalaram a montanha onde viviam os

imortais. Os deuses se sentiram muito ofendidos, mas não poderiam aniquilar a criatura

pois ficariam sem a adoração e os sacrifício que lhes eram necessários. Então, Zeus,

com toda a sua autoridade, resolveu partir a criatura em duas partes, o que diminuiria

sua força e a tornaria mais humilde.

1 BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários, 2000, p.26.

2 Ibid, ibid, e ss.

12

Com a ajuda de Apolo, a criatura foi partida ao meio, as duas cabeças foram

viradas, as feridas do corte foram curadas, os troncos foram remodelados e o resto da

pele foi centralizado na barriga para que as novas criaturas nunca se esquecessem da sua

antiga condição. E então surgiu o desespero. As novas criaturas começaram a morrer de

fome, se abraçavam e quando uma delas morria, a outra ficava a deriva, sem motivação

para viver.

Esse problema fez com que Zeus tivesse uma outra ideia. Ele reposicionou os

genitais das criaturas e agora, ao se encontrarem e se abraçarem, poderiam se reproduzir

e sempre permanecerão vivos. Haveria uma continuidade da espécie, além de

numerosos sacrifícios aos deuses. Com o tempo, as criaturas esqueceriam de todo o

sofrimento que passaram e perceberiam o desejo de estar com a outra metade, num

abraço infinito.

Apesar de a sexualidade ter se tornado um assunto aparentemente banal na

contemporaneidade, ainda é muito difícil estudá-la devido aos tabus que a rodeiam. O

sexo, em qualquer qualificação ( por prazer ou por reprodução), causa em grande parte

da sociedade um certo receio ao ser discutido. Ainda não é natural nem fácil falar sobre

a intimidade sexual. Poucos são os que se aventuram nesse meio considerado obsceno.

Entre poetas, sexólogos, maníacos e oportunistas reside um impulso comum:

a necessidade de verbalizar o erotismo, de escrever a linguagem do desejo, de

decifrar o “enigma do amor”, numa tentativa de, talvez, negar a morte em que

irremediavelmente nos lançamos ao trilhar os caminhos de Eros.3

De fato, é um assunto que muito interessa. Mas possui uma diversidade de

conceitos que podem confundir um leigo ou até um pesquisador. Para facilitar o

entendimento, vamos estudar, primeiramente, um dos aspectos da sexualidade: o

erotismo. Muitos dizem que o erotismo seria a parte lírica da sexualidade, o que está por

trás da penumbra, a subjetividade do ato sexual.

(...) o erotismo se articula em torno de dois movimentos opostos: a busca de

continuidade dos seres humanos, a tentativa de permanência além de um

momento fugaz, versus o caráter moral dos indivíduos, sua impossibilidade

de superar a morte.4

3 Castello Branco, Lucia. O que é erotismo, p. 8.

4 Ibid, p.10

13

Podemos perceber que há uma grande relação entre o que seria o erotismo com o

mito dos andróginos, como descrito por Aristófanes em O Banquete de Platão5. Com a

separação de seus corpos uma grande busca pelas suas metades se iniciou. Houve o

início de um imenso desejo de reencontro, de reunião para que não se sentissem

incompletos.

Outra questão que podemos levantar é que, no próprio mito e na citação acima,

quem tem esse desejo da completude, quem possui esse sentimento, é o ser humano.

Não se fala de outros animais. O sexo como reprodução é comum em todos os animais,

inclusive nos seres humanos, mas só estes últimos subjetivaram a atividade sexual,

fizeram dela uma atividade erótica. E o que torna a atividade sexual erótica diferente da

atividade comum, que os outros animais compartilham, é a “...procura psicológica

independente do fim natural encontrado na reprodução(...)”6 .

Diferente dos outros animais, o homem é direcionado pelo seu “interior”, pela

“alma”, pela sua intuição, o que é bem complexo, típico da humanidade, diferente de

instinto. O erotismo estaria relacionado aos mistérios, ao misticismo, ao inexplicável,

assim como a religião. O erotismo faz o ser humano se ligar com algo que vai além da

matéria. Podemos dizer, também, que o ser humano possui consciência do que é

permitido e do que não é para a sua espécie, quando falamos de sexo. O homem possui

tabus.

Voltando ao mito do início do capítulo, os andróginos, ao se separarem, tinham

o medo da morte. Sem a sua outra metade eles se enfraqueciam e podiam morrer.

Quando houve a separação, as criaturas se tornaram produtivas. Isso foi um dos

objetivos de Zeus. Assim eles poderiam viver mais tempo. Foi através do trabalho que o

homem conseguiu sobreviver.

1.2. A posição de Georges Bataille, Vrissimtzis e Freud ― mas sempre com os

gregos

Para Bataille, o trabalho foi o ponto chave da transição do animal para o

humano. Com o trabalho, o homem conseguia se proteger, prolongar a sua vida e a da

sua família. Sim, advindo da atividade laboral, o ser humano constituiu família. E com

5 CASTELLO BRANCO, Lucia. op. cit.p. 9

6 BATAILLE, Georges. O erotismo. 1987, p. 11

14

família vieram os valores. E esses valores tornaram a sexualidade um tabu. O tabu, por

sua vez, será chamado por Bataille de interdito. O sexo é uma violência que pertence

aos animais, e o humano, também sendo um animal, precisa controlar esse instinto

sexual.

Com seu trabalho, o homem edificou o mundo racional, mas sempre

subsiste nele um fundo de violência. A própria natureza é violenta e,

por mais comedidos que sejamos, uma violência pode nos dominar de

novo, que não é mais a violência natural, a violência de um ser

racional que tentou obedecer ao movimento que ele mesmo não pode

reduzir à razão.7

Se o homem ceder aos instintos e praticar essa violência de forma exagerada, ele

poderá trazer a morte. Temendo a morte, o homem fará de tudo para que ela não

apareça. E se essa violência, própria do animal irracional, vier à tona na racionalidade

humana, será preciso evitá-la. O trabalho cumpre, então, um papel muito importante: o

de bloquear o impulso imediato do desejo sexual (que seria a violência), domesticando a

humanidade.

Então, o homem, trabalhando por horas para sustentar sua família, gastará toda a

sua energia vital e não a terá para praticar tamanha violência. Mas proibir a violência

somente aumenta o desejo pela transgressão do interdito, por mais que o homem não

tenha mais energia para fazê-lo.

A religião também bloqueia os impulsos sexuais, pois estes são profanos e não

pertencem aos filhos de Deus. “ O que se observa na mitologia cristã é o privilégio do

espírito em detrimento do corpo, que, destituído de necessidades, desejos e impulsos,

parece inexistir”8. Maria, a mãe de Cristo, era virgem e concebeu seu filho “sem

pecado”, aproximando-a da santidade, anulando seu corpo-animal. O homem pecador

luta contra a transgressão, mas é um ser mortal, distante da santidade. E o pecado traz a

morte.

O erotismo e a morte estão ligados. Recorrendo à mitologia grega, temos a

relação entre dois deuses que se complementam: Eros e Tânatos. Os impulsos de Eros,

deus do movimento e da vida, são perigosos e muitas vezes se dirigem à morte. Esse

deus promove um desequilíbrio que leva o amor ao descontrole, a uma paixão mortal.

7 BATAILLE, Georges. op. cit. p.37

8 CASTELLO BRANCO, Lúcia, op. cit., p.46.

15

Segundo Vrissimtzis9 Eros “era considerado perigoso, pois poderia fazer com

que deuses e mortais perdessem a razão, ocasionando grandes catástrofes como a

Guerra de Troia”. Já Tânatos, responsável por levar as almas para o mundo inferior, era

sereno e trazia tranquilidade às almas tão sofridas.

Segundo Freud10

, os impulsos da vida (Eros) e os da morte (Tanatos) vivem em

conflito, pois possuem claramente direções opostas. O homem procura por um

movimento em sua vida. Em busca de uma excitação. Durante o ato sexual, há

movimentos frenéticos que necessitam de energia para serem executados. Mas todo esse

esforço resulta num espasmo, num relaxamento total do corpo. O homem busca por uma

sensação de morte. Não é à toa que em francês o espasmo final da relação sexual, o

orgasmo, seja chamado de petite mort. Se considerarmos que esse movimento e essa

excitação são a violência que o homem evita, podemos dizer, então, que toda a violência

também tem por objetivo o relaxamento da morte.

Outra questão dessa fusão entre a vida e a morte é o envolvimento do feminino.

A mesma mulher que traz a vida para um novo ser humano, cuida dele e o alimenta,

também o devora e o corrói, se fizermos analogia com a terra. A culpa da morte do

homem é da mulher. Na mitologia cristã temos Eva que trouxe a vergonha e tornou o

homem um mero mortal. Na grega, temos Pandora que amaldiçoa a humanidade com

todos os males de dentro da sua caixa.

A mulher é a parte que mais se aproxima da androginia. No momento em que

gera uma vida dentro de sua barriga ela pode se sentir completa, com a sua metade.

Além de também possuir o formato redondo do ser primordial. Mas é através da dor, da

violência, que a mulher gera um fruto e que também dá a luz. O feminino possuía

imenso poder representado por Gaya, a deusa da terra. As sociedades matriarcais eram

de grande ameaça para as patriarcais por trazerem um equilíbrio com a natureza.

Os tabus que envolvem a gravidez e a menstruação da mulher fizeram com que

esta se tornasse impura aos olhos dos homens. Em várias culturas a mulher é

desprezada, evitada ou oferecida como sacrifício, como um animal.

9 Apud. VRISSIMTZIS, Nikos A. Amor, Sexo e Casamento na Grécia Antinga, 2002, p. 24.

10 Apud. CASTELLO BRANCO, Lúcia, op. cit., p.31.

16

A mulher nas mãos daquele que a ataca é despossuída de seu ser. Ela

perde, com seu pudor, esta firme barreira que, separando-a do outro

tornava-a impenetrável: ela se abre bruscamente a violência do jogo

sexual deflagrado nos órgãos da reprodução, à violência impessoal

que, vinda de fora, a ultrapassa.11

Além disso, a mulher possui uma característica que promove o desejo dos

homens e até uma guerra: a beleza. Esta, presente nas curvas e nas feições femininas,

ameniza a violência animalesca advinda do ato sexual. Mesmo com mudanças no

conceito, com relação a culturas e eras diversas, a bela mulher suaviza o sexo, faz com

que haja um certo cuidado para que o homem consiga saciar o seu desejo. Ela servirá de

inspiração para obras de arte, como a literatura, a pintura, a música e a escultura.

Também será o objetivo de lutas dolorosas. Como o caso de Helena de Troia.

A mais bela das mortais, rainha e esposa de um poderoso rei grego, é

raptada por um jovem príncipe, que a leva consigo juntamente com os

tesouros do marido, para os domínios de seu pai, poderoso rei da

cidade mais importante da Ásia Menor. Eis uma excelente motivação

para uma guerra. 12

O presente oferecido por Afrodite, Helena, a Páris, trouxe guerra e dor a Troia.

“A beleza que desperta o amor causa a morte e a infelicidade”13

. Helena era bela, mas

se fosse apenas bela, seria uma mulher insípida, não provocaria o desejo. Segundo

Bataille14

, a mulher, além da beleza, precisa ter um aspecto animal que ative o instinto

masculino. “A beleza da mulher anuncia suas partes pudentes: justamente suas partes

pilosas, suas partes animais. O instinto inscreve em nós o desejo dessas partes”.15

A beleza rejeita a mulher selvagem, no sentido de separar o ser humano do

próprio animal. Mas o homem, instintivo, necessita macular essa beleza etérea e

transformar ou revelar a animalidade da mulher, profanando-a.

Nos versos de Gregório de Mattos, nós podemos ver um exemplo:

Anjo no nome, Angélica na cara,

Isso é ser flor e anjo juntamente,

Ser Angélica flor, e Anjo florente

Em quem, senão em vós, se uniformara?

11

BATAILLE, Georges, op. cit., p.84 12

COLUTOS. O rapto de Helena, 2005, p.32. 13

Ibid., p.28 14

BATAILLE, op. cit., p. 134 15

Ibid., p. 134.

17

Quem veria uma flor, que não a cortara

Do verde pé, da rama florescente?

E quem um anjo vira tão luzente,

Que por seu deus não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares

Fôreis o meu custódio, e a minha guarda,

Livrara eu de diabólicos azares,

Mas vejo que tão bela e tão galharda,

Posto que os anjos nunca dão pesares,

Sois Anjo que me tenta, e não me guarda.16

Gregório de Matos, poeta do barroco brasileiro, fala nesse poema sobre Dona

Ângela, uma mulher de beleza angelical, livre de qualquer maldade profana. Ela, uma

divindade, o livra de “diabólicos azares”, mas, ao mesmo tempo ele a vê num plano

superior e inalcançável, sente um torpe desejo de possuí-la. Deseja descobrir o que há

de selvagem, de diabólico e profano por trás de uma beleza angelical. Ele precisa

possuí-la e maculá-la para decifrar esse mistério que o atormenta. Entretanto, nesse

poema citado, o eu-lírico possui um sentimento pela senhora. Não existe apenas uma

atração física, existe uma admiração e/ou um amor proibido. Não há palavras chulas, há

até uma certa nobreza em considerar impossível tocar essa mulher tão pura.

Observemos, então, um soneto de Gregório de Matos, o “Boca do Inferno”,

chamado Necessidades forçosas da natureza humana17

:

Descarto-me da tronga, que me chupa,

Corro por um conchego todo o mapa,

O ar da feia me arrebata a capa,

O gadanho da limpa até a garupa.

Busco uma freira, que me desentupa

A via, que o desuso às vezes tapa,

Topo-a, topando-a todo o bolo rapa,

Que as cartas lhe dão sempre com chalupa.

16

MATOS, Gregório. À Dona Ângela. Disponível em

http://www.defenestrando.com/2007/03/dona-ngela.html 17

MATTOS, Gregório. Necessidades forçosas da natureza humana. In Antologia Pornográfica: de

Gregório de Mattos a Glauco Mattoso. 2011, p.24

18

Que hei de fazer, se sou de boa cepa,

E na hora de ver repleta a tripa,

Darei por quem mo vase toda Europa?

Amigo, quem se alimpa da carepa,

Ou sofre uma muchacha, que o dissipa,

Ou faz da sua mão sua cachopa.

Nesse soneto, o eu-lírico está em busca de alguém que sacie o seu desejo, pois

faz tanto tempo que ele não pratica nenhum ato sexual que ele daria de presente até a

Europa, caso alguém lhe fizesse esse imenso favor. Vemos uma séria de palavras e

expressões chulas. Ele busca por prostitutas, por freiras, moças. Mas encerra o poema

dizendo que, se não há essas opções, ele faz da sua mão a moça bonita que irá lhe

“desentupir” (resta ao eu-lírico masturbar-se). Não há uma busca por um amor, não há

uma subjetividade em suas palavras. O autor é bem claro com relação ao objetivo do eu-

lírico. Ele apenas precisa gozar.

O poeta retratou o seu desejo em profanar uma santa mulher, no primeiro poema.

Todavia, este desejo é contido, pois existe uma espécie de respeito pela senhora citada

e, como há uma “impureza” em seus pensamentos, não se realizará. No segundo

poema, o eu lírico se encontra num estado de necessidade sexual. Ele precisa acalmar os

nervos do tesão. Procura por qualquer mulher que possa solucionar o problema. A

mulher poderia ser até feia, restando ao eu-lírico imaginar a beleza.

Vimos que no primeiro poema há um desejo escondido, reprimido. Também

observamos a presença de amor e admiração no discurso. Entretanto, no segundo poema

há um conjunto de termos chulos, pesados, inapropriados, que não poderiam ser

proferidos diante de uma sociedade que preza pela moral. Perante essas características,

podemos pensar nas definições do erotismo e da pornografia.

Se o conceito de pornografia é variável de acordo com o contexto em que se

insere, e se é impossível articular todas as variantes desse conceito numa

única definição, torna-se ainda mais difícil e perigoso tentar demarcar

rigidamente os territórios do erotismo e da pornografia.18

18

CASTELLO BRANCO, Lúcia, op. cit., p.18

19

A discussão é sem fim e, como visto na citação acima, perigosa. Há uma linha

muito tênue que separa esses dois conceitos. E é algo que não se pode perceber com

tanta facilidade. Tanto é que existem várias teorias e vários conceitos diferentes tanto

para estudiosos quanto numa discussão informal. Porém, no senso comum, o erotismo é

considerado nobre, em seu discurso o sexo é relatado com lirismo e há a presença do

sentimento amoroso. Enquanto isso, na pornografia o que importa é o próprio ato

sexual, sem rodeios e, se os tiver, que sejam breves.

O termo pornografia vem “do grego pornos (prostituta) + grafos (escrever), o

termo (...) designa a escrita da prostituição, ou seja, a escrita acerca do ‘comércio do

amor sexual’”.19

A palavra pornos vem do verbo permenni, que significa vender.

Quando pensamos nessa relação que o sexo tem com a mercantilização, nos vem a

cabeça toda a indústria audiovisual que visa apenas o lucro na veiculação da

pornografia.

Todavia, ao observarmos esse material pornográfico comercializado na

atualidade, percebemos que existem características neste que se encontram também em

outros materiais pornográficos ao longo da história. Essas características nos auxiliam a

diferenciar a pornografia do erotismo.

Esses materiais espalhados em bancas de jornal e em cinemas especializados

neste ramo nos leva a constatar a existência de valores transmitidos como: a

superioridade masculina em relação às mocinhas indefesas que são violentadas; o prazer

na desigualdade social, onde o patrão se relaciona com sua empregada; a traição

justificada, já que no matrimônio não se pode executar atos tão impuros e contra a

moral da sociedade. Temos o que não deve ser feito em público (sexo), o que

geralmente não se faz na vida comum (orgias), e o que a maioria das pessoas nunca faz

(estupro). “(...) o pornográfico dá-se ao direito de mostrar tudo, mas esse ‘tudo’ é na

realidade tudo aquilo que não deve ser mostrado”.20

O falo é o centro das atenções, melhor dizendo, a violência que o falo opera é de

extrema importância. “A fonte de todo prazer reside, sobretudo, no falo, cuja eficiência

19

Ibid. P. 22 20

MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. p. 39-40

20

é medida por um sistema quantitativo: o que vale é o comprimento do falo, o número de

ereções e de ejaculações sucessivas”.21

E não pode haver falhas.

Os heróis pornográficos são homens que possuem uma ereção eterna e sempre

estão punindo as mulheres. Os parceiros desconhecem o pudor e a inabilidade. A

mulher deve se submeter aos caprichos da virilidade. Diante de uma moral histórico

cultural, diferente do erotismo, na pornografia não existem cenas de amor, assim se

torna mais fácil a representação do estupro, onde a mulher cede com facilidade, sem

sinal de resistência. Como se fosse algo corriqueiro, normal. Mas ela recebe o prazer

máximo. Até porque, na pornografia, as mulheres também sempre estão aptas para o

sexo, “não menstruam, não procriam, são vítimas de um duplo subterfúgio: são

masculinizadas no seu desejo insaciável; e quando gozam, fazem-nos sob o olhar

masculino”.22

Outra característica marcante é a insistência pela mutilação dos seres. Pode-se

obter prazer por um meio solitário, cujo o gozo é superficial e parcial. O que vai de

encontro ao conceito de erotismo proposto por Bataille23

em toda a sua obra: o erotismo

é o desejo que os seres humanos possuem de se tornarem indivíduos contínuos e

completos na união de dois corpos.

(...) ao insistir na mutilação dos indivíduos e na parcialidade e

superficialidade das relações, a pornografia repetirá sempre a maldição de

Zeus, e reforçará a fragilidade, o medo, o conformismo, o desamparo, a

solidão.24

Podemos perceber que tanto no erotismo quanto na pornografia, o sexo não está

totalmente relacionado à reprodução. Os dois conceitos transgridem a moral

conservadora cristã, para qual homem e mulher copulam para povoar a Terra, e onde o

sentimento de culpa pela transgressão está presente, impedindo o ser humano de se

entregar aos impulsos de Eros ou de assumir uma posição sexual que vai de encontro

aos valores sociais.

21

CASTELLO BRANCO, Lúcia, op. cit., p.28 22

WINCKLER, Carlos Roberto. Pornografia e Sexualidade no Brasil. p. 73 23

BATAILLE, op. cit. 24

CASTELLO BRANCO, Lúcia, op. cit., p.29

21

Capítulo II ― A sexualidade do ponto de vista da arte

Vênus – Lucas Cranach, the Elder

2.1 A beleza e a repugnância

Umberto Eco25

nos fala que o “belo”, de forma geral, é o que nos agrada.

Durante muito tempo tem-se a ideia de que a beleza está ligada à qualidade do objeto, se

ele é bom. Além disso, dizemos que algo é belo quando possuímos um certo desejo por

este.

Todavia, nem sempre o que é bom é desejado. Podemos considerar, por

exemplo, um ato heroico como bom. Mas se este nos exige um sacrifício, ou nos gera

temor, não queremos ser os autores de tal acontecimento. Preferimos nos distanciar,

considerando esta uma “bela ação”.

O que também é importante relevar: cada qual tem uma visão diferente de

mundo. O que para uma pessoa é agradável, para outra pode não ser. Tudo pode

depender da cultura, do meio influente no qual a pessoa está inserida, na época em que

ela vive, suas ideologias, etc. Então, ao se deparar com um quadro, uma escultura, um

filme, teremos diferentes visões e gostos. “A beleza não deixa de ser subjetiva, variando

de acordo com a inclinação dos que a apreciam”26

. E o que se busca, no momento da

apreciação, no momento em que se considera uma peça de teatro, um quadro, ou

qualquer outra manifestação artística como boa, bela e sublime, é a completude do ser.

Segundo Castello Branco, já citada em nosso trabalho, a arte gera a sensação, para

25

ECO, Umberto (org.). História da beleza. 26

BATAILLE, op. cit. p. 133-134

22

aquele que a aprecia, de completude. Assim como no mito dos Andróginos, também

citado.

A expressão artística se realiza em função de um mesmo impulso para a

totalidade do ser, para a sua união com o Universo (...). O prazer diante de

uma obra de arte não é, em primeira instância, intelectivo, racional. (...) O

primeiro contato com o espectador e o objeto artístico é sempre sensual:

aquela obra nos agrada ou nos “desagrada”, nos “toca” e nos “conecta” ou

nos é indiferente. 27

Existe, portanto, uma arte que nos agrada e uma que nos “desagrada”, de acordo

com nosso gosto, nossa cultura, nosso momento, nossa ideologia. A arte de Francisco

Brennand, por exemplo, é bem propensa a ser repulsiva. Neste caso há um propósito do

artista em provocar essa sensação de repugnância, o que será discutido em outro

capítulo deste trabalho. Entretanto, é curioso perceber que a maior parte do público não

acha belas as suas esculturas. O público considera a arte brennandiana como torpe, feia

e, muitas vezes, escandalosa. Obviamente que esse tipo de recepção não acontece

apenas com as obras do artista foco do trabalho. A nudez, o erótico e o pornográfico

sempre trouxeram (e ainda trazem) consigo o sentimento de repulsa por grande parte do

público. Mas há, com certeza, quem ache beleza nesse tipo de arte.

2.2 A arte erótica

Lucas Cranach, o Velho, um artista germânico renascentista, era famoso por

pintar retratos para os nobres da Saxônia. Também fez obras relacionadas a religião

cristã e a mitologia greco-romana. Mas causou um grande impacto a sociedade ao

expor, no início do século XVI, a sua Vênus. Esta possuía apenas uma joia em seu

pescoço e segurava um transparente véu.28

Estava totalmente nua. A pintura foi

considerada um grande insulto à moral e uma ofensa à religião.

A sociedade dessa época, imersa no cristianismo, vê esta obra como obscena e

repugnante. “A obscenidade é repugnante, e é natural que espíritos acomodados não

vejam aí nada de mais profundo que esse caráter repugnante”29

. Não houve nenhuma

interpretação da própria deusa Vênus (ou Afrodite), a deusa do amor, da sexualidade.

Provavelmente sempre deixava a mostra toda a sua beleza corporal. No entanto, nessa

pintura, mesmo com todo o seu corpo à mostra, Vênus não está praticando nenhuma

27

CASTELLO BRANCO, Lúcia, op. cit., p. 12 28

ZUFFI, Stefano. Love and Erotic Art. p. 7 29

BATAILLE, op. cit. p. 229

23

atividade sexual, não está mostrando cruamente sua genitália. Ela está parada, com um

leve sorriso. A imagem, por mais que tenha uma nudez exposta, é oblíqua.

Há uma confusão na categorização da arte, relacionada à sexualidade inserida.

Como já foi dito, os conceitos de erotismo e pornografia são difíceis de demarcar.

Tomamos, então, como norte a premissa de que na arte erótica existe uma necessidade

de interpretação da obra, enquanto que na arte pornográfica existe uma total exibição,

sem brechas para variadas interpretações. Esta última se torna bem óbvia30

.

Outro artista que trouxe bastante polêmica para, agora, a burguesia francesa foi

Édouard Manet, com o seu quadro Olympia, em 1865.31

O famoso pintor do movimento

impressionista teve a ousadia de colocar como sua modelo uma prostituta. Esta se

“disfarçou” nua, representando Olympia. Ela, belíssima, está deitada numa cama,

completamente nua, usando apenas uma flor nos cabelos presos e tamancos. Ao seu

lado há uma mulher negra e um gato preto no pé da cama, o que também causou grande

alvoroço, já que o felino era considerado diabólico para os supersticiosos. Nunca, na

história da pintura até aquele momento, uma prostituta teve tanto destaque em uma

pintura.

A imagem da prostituta na arte se torna alarmante pelo fato de ser exposto algo

que deveria permanecer “às escuras”. A prostituta era a personificação da transgressão.

Era uma promiscuidade permitida aos olhos da sociedade, desde que não aparecesse.

Era onde o homem poderia usar de todo o seu desejo pecaminoso, já que, segundo a

igreja católica, os casados se relacionavam apenas para a procriação e a mulher não

poderia agir como uma prostituta, de maneira tão obscena.

Inseridas, agora, nas pinturas, as prostitutas conseguiam mostrar as suas

virtudes. Além de praticantes do sexo profissional, elas também eram verdadeiras

artistas. Dançarinas, cantoras, atrizes, modelos, etc. Eram mulheres talentosas,

refinadas. Isso nós pudemos observar no quadro de Manet.

Os artistas sempre estiveram à margem da sociedade. São eles que ousam

mostrar o que é repudiado. Todavia, na arte erótica, o fazem de maneira bela. Os corpos

nus, as cenas de sexo, as promiscuidades são ilustradas de maneira túrbida. Há mistério

30

ZUFFI, Stefano op. cit. p. 210 31

Ibid. p. 213

24

e nada é entregue tão claramente. Como já foi dito, é preciso interpretar a obra. É

preciso ter um conhecimento prévio, ver as nuances, relacionar a alguma história, um

contexto, etc. Os tabus serão expostos por trás de um véu translúcido.

A prostituição é um tabu, a homossexualidade, a pederastia, a masturbação, o

sadismo, entre outros, também são. E todos esses tabus, na arte erótica, são expostos em

belas obras. A homossexualidade, embora fosse difundida e aceita na Grécia antiga (por

motivos culturais distintos), mais tarde se tornou um tabu moral e religioso. Ainda hoje

muitas pessoas condenam essa prática.32

Muitos artistas, de acordo com suas biografias, mantinham relações

homossexuais. Mas a vida pessoal do artista era escondida da sociedade. Isso ainda

ocorre hoje. Vemos diversos artistas, não só do meio das artes visuais, que para ter o

apreço do público sentem a necessidade de não expor a sua orientação sexual.

De acordo com Zuffi33

, o próprio renascentista Michelangelo Buonarroti possuía

uma sexualidade complexa. Ele tinha um relacionamento heterossexual com uma

mulher por quem possuía grande admiração intelectual. Mas dedicava muitos de seus

poemas para o importante colecionador de arte Tommaso dei Cavalieri. Em uma de suas

obras, O gênio da vitória, Michelangelo se retrata como um homem barbudo embaixo,

pisado e oprimido por um jovem forte e nu. Esta escultura de mármore dá a impressão

de que o homem barbudo está querendo se libertar desse mármore, dessa prisão terrena.

Talvez querendo se libertar dos tabus e assumir uma posição que está aprisionada na sua

vida privada.

Caravaggio, artista italiano, reconhecido por sua rebeldia, boemia e pela busca

de uma pintura que mostrasse a verdade, é o autor de Baco. Na obra há um garoto

sentado em um leito, vestido do deus Baco, segurando uma taça de vinho como quem

estivesse convidando o apreciador a unir-se a ele. É possível notar que a face do jovem

deus está bem rosada, pois ele, provavelmente, estaria bêbado. Baco ou Dioniso é um

deus boêmio e libertário, bem parecido com o grande artista. Há afirmações de que

32

ZUFFI, Stefano op. cit. p. 227 33

Ibid. p. 228

25

Caravaggio apreciava relações homossexuais e que as tinha com seus próprios

modelos.34

O francês Gustave Courbert trouxe à tona a relação homossexual entre mulheres.

Segundo Zuffi35

, o artista deve ganhar os créditos por “levantar o véu” desse tema e ter

difundido discussões nos meios da literatura e arte francesas. No quadro Sono há uma

bela imagem de duas jovens mulheres deitadas em uma cama, adormecidas. As duas

estão totalmente nuas e com as pernas entrelaçadas. Há uma suposição, pela cena, de

que as duas tiveram relação sexual antes da cena retratada. Essa informação é

hipotética e não totalmente óbvia. Esta suspeita é que traz o mistério da arte erótica.

Dentre todos os temas sexuais que causam tabu, a violência e o sadismo podem

ganhar destaque. Apesar da humanindade ser extremamente variada, a violência nas

relações sexuais, em muitas culturas, é condenada. No passado era vista até como

correta a sua aplicação. Em alguns casos, necessária. Marsilio Ficino, um filósofo

florentino humanista, diz em seu tratado sobre o amor que o ser humano possui três

maneiras de amar: amor divinus (sagrado), amor humanus (racional) e amor ferinus

(bestial, com violência).36

E cabe a cada ser humano, de acordo com sua educação e

cultura, escolher um dentre esses três caminhos.

Sim, há quem siga o caminho do amor bestial, há quem sinta prazer com a

violência. O prazer em sentir dor é uma característica do masoquismo (termo advindo

dos escritos do marquês de Sade). A submissão do corpo, a dessacralização da

personalidade ingênua e santa. O uso de instrumentos afiados e flamejantes atacando

seios, pernas, faces, nucas e bocas. Uma confusão no meio da beleza do corpo/objeto de

desejo.

Considerando a mulher como a parte mais frágil e de fácil dominação pelo forte

e violento homem, ela é feita de objeto sexual. Um artista que retrata muito bem esse

aspecto é Allen Jones, um dos representantes da Pop Art. Ele fez esculturas utilitárias.

Eram mulheres, em poses eróticas, vestindo desejos sexuais (roupas bem coladas que

marcavam todas as curvas femininas, ou seminuas usando alguns artigos de couro

34

Biografia disponível em: http://www.portalartes.com.br/classicos/166-michelangelo-merisi-

caravaggio.html 35

ZUFFI, Stefano op. cit. p. 232 36

Ibid. p.264

26

típicos do sadomasoquismo), usadas como uma arte utilitária – mesas, cadeiras, apoios

para bebidas, chapéus e bengalas.

Diante dessa violência que gera prazer, nos deparamos com uma que seria mais

repugnante: a que gera a morte. Em John the sex Murderer, George Grosz, pintor do

expressionismo alemão, nos mostra algo que vai além de uma imagem de assassinato.

Naquela época, pós Primeira Guerra Mundial, os europeus desenvolveram um mórbido

interesse por crimes sexuais. E no quadro, uma mulher está mutilada, nua (apenas com

suas botas) e morta. O assassino, que provavelmente a conquistou, fez sexo com ela e

logo depois a degolou. As cores e as formas causam uma tensão provenientes da época

também tensa na Alemanha.37

Todavia, em nenhuma das obras citadas, houve uma exposição tão crua e óbvia.

O apreciador de arte deverá interpretar as nuances, as texturas, as cores, as formas de

cada obra. Encontrando a beleza ou a repugnância a ser passada.

2.3. A arte pornográfica

Todos os temas discutidos e exemplificados no tópico anterior podem ser

discutidos também neste tópico. Porém, com uma certa e necessária diferença. Segundo

Baqué38

, a imagem pornográfica mostra tudo, diz tudo, explicita tudo. É uma imagem

óbvia e não oblíqua, como acontece na imagem erótica. Além disso, é uma imagem

utilitária e comercial, está inserida no mercado e tem por objetivo fazer com que o

consumidor a desfrute como mercadoria. Podemos também dizer que, distante da

penumbra e do requinte erótico, a imagem pornográfica é simplesmente crua.

Outra característica importante da arte pornográfica é a mutilação ou

fragmentação dos corpos. As cenas, tanto em fotografias quanto em filmes, possuem

close e mostram o máximo de informações em um espaço corporal mínimo. O nu se

torna bem chocante e repulsivo. Mas também causam excitação e cumprem o objetivo

de fazer o espectador ou apreciador gozar seja solitariamente, seja acompanhado.

É importante, antes de aprofundar o assunto, que nem sempre o nu será erótico

ou pornográfico. Para exemplificar, Janilton Andrade39

resume uma cena do filme

37

ZUFFI, Stefano op. cit. p. 266 38

BAQUÉ, Dominique. Mauvais genre (s): érotisme, pornographie, art contemporain. p. 43 39

ANDRADE, Janilto. Erotismo em João Cabral. 27-28

27

Amarelo Manga, do diretor pernambucano Claudio Assis. Ele fala da cena em que dois

amigos estão na mesa de um bar no subúrbio do Recife, comentando sobre a beleza da

dona do estabelecimento. Há, então, um desafio. Izaque, um dos amigos – interpretado

por Jonas Bloch – terá que conquistar a moça loira – interpretada por Leona Cavalli – e

fazer sexo com ela. Ao passar perto da mesa dos amigos, Lígia, a proprietária, é

questionada quanto a cor de todos os seus pelos. A pergunta foi feita de tal modo que a

moça se envergonhasse. Mas ela, pelo contrário, se mostrou indiferente à pergunta

cínica, subiu num banco e levantou o vestido, mostrando sua vulva e todos os seus pelos

pubianos que também eram loiros. Este ato enlouqueceu Izaque que tentou agarrá-la e

beijá-la a força. Lígia o atinge com uma garrafa e o faz sair do bar imediatamente.

Segundo o autor, esta atitude não é considerada pornográfica. Ele fala que é possível

que se associe “(...) a exposição da genitália com obscenidade, a revelação pública do

sexo como grosseria. Entendo que o conceito de pornografia é cambiante, sendo

aconselhável observá-lo de acordo com o contexto em que se insere.”40

Para que haja pornografia ou erotismo, deve haver uma intencionalidade do ato.

A personagem citada acima não teve nenhuma intenção de seduzir o homem em

questão, ela não queria fazer sexo com ele e isso ficou muito claro. A vontade dela era

mostrar que ela era dona do seu próprio corpo e nele só poderia tocar quem ela quisesse.

Ela não se submeteu ao poder do falo, do homem, do patriarcalismo.

Andrade ainda mostra outro simples exemplo para explicar a intencionalidade:

Se o frio é intenso, passar a língua pelos lábios, a fim de umedecê-los, é um

gesto corriqueiro. Para além disso, não parece haver, nesse gesto, nenhum

outro significado. Igualmente, se alguém, após saborear deliciosa

macarronada, usa a língua, a fim de retirar algum resíduo do molho que ficou

nos lábios, também esse gesto nada revela afora o que aqui se registra.

Diferentemente, se uma jovem, olhando nos olhos e na boca do moço com

quem, agora, mantém as mãos entrelaçadas, passa a língua pelos beiços, em

movimentos lentos, umedecendo-os, bem diferente é essa prática.41

Diante desses exemplos, o que se conclui é que a nudez, para ser erótica ou

pornográfica, deve ter este propósito: o de causar desejo ou excitação nas personagens

envolvidas ou nos espectadores e apreciadores da obra. Entretanto é preciso lembrar que

os humanos possuem vivências, culturas e pensamentos diversos. Algo que não tenha

nenhuma conotação sexual pode causar excitação ao espectador. No caso da literatura –

40

ANDRADE, Janilto. op. cit. p. 28 41

Ibid., p. 36

28

onde há maior quantidade de trabalhos relacionados à pornografia – tem-se o seguinte

comentário:

Não pode ser considerado pornográfico todo texto que provoque alguma

excitação sexual nesse ou naquele leitor. Temos obrigatoriamente de nos

restringir aos textos que se apresentam como decorrentes da escrita

pornográfica. Nada impede um leitor de encontrar estímulos sexuais em um

texto que não vise diretamente excitar seus leitores. Com efeito, tudo

depende da maneira com que esses leitores se apropriam deles.42

De fato, uma pessoa pode se sentir excitada ao ver a cena narrada do filme

Amarelo Manga e outra pode sentir um certo asco ao ver algum filme pornô. O exemplo

interessante de uma arte pornográfica que não tem a intenção de causar excitação, sim

de mostrar a vida sexual cotidiana de um casal, é a série de fotos Mad in Heaven, do

artista contemporâneo americano Jeff Koons. O artista, casado com um dos ícones do

cinema pornô, a famosa Cicciolina, fotografou sua vida sexual com a atriz, porém de

maneira angelical, como se estivessem no paraíso, como o próprio nome da obra. Koons

quis tornar a arte pornográfica, vista como comercial e utilitária, em uma arte

requintada, mostrando o amor que existe no momento do sexo praticado pelo casal.

Baqué comenta43

que a imagem da Cicciolina é contraditória nessa obra. Pois assume

uma personalidade santa e promíscua ao mesmo tempo. Além disso, as imagens são

limpas e “assépticas”. Não há fluidos, não há pelos, não há nada proveniente de uma

cena normal de sexo.

Por outro lado, Andres Serrano, fotógrafo americano, apresenta um exagero de

fluidos em sua obra. Também famoso por usar cadáveres em suas fotos, cenas de tortura

e uma contradição entre o sexo e a religião (de maneira bem distinta a de Koons). Sua

foto mais polêmica foi "Piss Christ". Há uma imagem de um crucifixo imerso em um

recipiente que continha urina, supostamente do próprio artista.44

Fluidos, sangue menstrual, sêmen, fezes, imagens de artigos ou pessoas

envolvidas com religião no mesmo plano de torturas sexuais, violência, mortos. Pode-se

dizer que sua arte é escabrosa e a sua intenção é trazer a repugnância ao espectador.

O artista que faz arte pornográfica que, segundo Baqué45

, equilibra os aspectos

citados dos dois artistas americanos supracitados, é o fotografo japonês Araki

42

MAINGUENEAU, op. cit. p. 17 43

BAQUÉ, Dominique, op. cit. p.48 44

Ibid. p. 51 45

Ibid. p. 53

29

Nobuyoshi. O artista fotografa ninfetas nuas, amarradas, penduradas, como se fossem

torturadas no sexo, se inspira muito nos mangás pornográficos chamados hentai, onde

essas meninas sempre choram e sofrem no momento em que estão tendo alguma relação

sexual. Ele também fez um trabalho belo com sua esposa, chamado Sentimental

Journey. Foram fotos tiradas na lua de mel do casal. Há belas fotos de sua esposa nua,

em momentos amorosos. Mas são fotos reais, com pelos, com um corpo real, sem

plásticas, de uma mulher bela e normal.

A forma significativa da necessidade do desequilíbrio e do equilíbrio

alternados é o amor violento e terno de um ser por outro. A violência do amor

leva à ternura, que é a forma durável do amor, mas introduz na busca dos

corações este mesmo elemento de desordem, esta mesma sede de fraqueza e

este mesmo antegosto de morte que encontramos na busca dos corpos.46

Os três artistas trabalham com aspectos pornográficos: o sexo idealizado de uma

super mulher sem pelos, sem sangue menstrual e sempre disposta a fazer qualquer coisa

para agradar ao parceiro; a transgressão à moral da sociedade, a tortura para obter

prazer, os fluidos e excrementos presentes em outros tipos de fantasias sexuais.

Já a obscenidade é relativa. “(...) a moralidade é instável e afetada por vários e

diferentes fatores e, muitas vezes, passa por mudanças radicais. O que hoje se considera

imoral pode em outra época ter sido considerado correto e vice-versa.”47

Talvez, daqui a

alguns anos o que choca a sociedade atual, não seja nada repugnante aos olhos da futura

geração.

46

BATAILLE, op. cit. p.225 47

VRISSIMTZIS, Nikos A. op. cit. p. 18

30

Capítulo III ― O artista Francisco Brennand

Francisco Brennand – Foto: Helder Ferrer

Este capítulo pretende apresentar o artista pernambucano, contando um pouco de

sua história, revelando suas inspirações e desejos e mostrando um pouco de seu

processo de criação. Falar de Brennand requer grande conhecimento de sua obra e

muitas páginas. Então, será feita uma breve apresentação de sua obra ainda inacabada.

Serão exibidos relatos do próprio artista que estão publicados em revistas e em

depoimentos na mídia audiovisual.

3.1 Um pouco de sua vida

Francisco Brennand nunca passou por grandes dificuldades financeiras. Sua

família era de grandes empresários da região do Recife. Em 1917, depois do declínio da

produção açucareira no nordeste, seu pai fundou a Olaria São João, que fabricava telhas

e tijolos para a região, garantindo o sustento da família. Brennand passou parte da sua

infância entre argila, fornos e artesãos. Mas foi a paixão do pai por cerâmica que fez

com que ele se tornasse um artista. Seu pai contratava pintores e artesãos para fazer

peças diferenciadas e os apresentava ao filho que começava a sentir um certo fascínio

pela pintura.

Começou sua carreira como desenhista e pintor ainda na escola, onde conheceu

Ariano Suassuna. O autor paraibano desejava que as pinturas de Brennand estampassem

as capas de seus livretos de poesia. A técnica, a mistura de tintas, as pinceladas, os

pincéis adequados para cada estilo, isso ele aprendeu com o pintor e restaurador Álvaro

Amorim, acompanhando um processo de restauração de uma coleção do João Peretti.

31

Mas foi com Cícero Dias que Brennand teve o verdadeiro encontro com a arte48

.

O pintor pernambucano que se estabeleceu em Paris convenceu o pai de Francisco a

deixar o menino conhecer a Europa e estudar as manifestações artísticas com quem as

estava fazendo. Sem problemas com investimentos, o jovem Brennand viajou para Paris

e mal sabia que essa viagem seria um marco decisivo para sua carreira.

Francisco Brennand fez contato com pintores influentes e até trabalhou num

ateliê bem localizado por trás da Champs Elisées. O motivo de ir à Europa era estudar

pintura para aperfeiçoar sua técnica e criar o seu próprio estilo. Entretanto, ao visitar

uma exposição de cerâmica de Pablo Picasso sua ideia a respeito dessa arte, por ele

considerada menor, mudou.

(...) como se fosse um propósito do destino, a primeira exposição que vi foi

uma exposição de cerâmica de Picasso (...), um gênio que estava fazendo

cerâmica, uma arte que eu, na época, até pela idade, me dava ao luxo de

desprezar, o que deixava o meu pai horrorizado.49

Com uma família formada por empresários da cerâmica, Brennand sempre a

considerou uma arte utilitária, menor e sem a apreciação que a pintura atraía. Todavia

conheceu a obra de grandes artistas que ele já admirava pelas pinturas: Miró, Chagall,

Matisse, Braque e Gauguin. Voltou ao Brasil para estudar melhor a produção de

cerâmica e compartilhou durante muitos anos o espaço da Olaria com seus estudos

cerâmicos. A cerâmica tanto para Picasso como para Brennand50

era admirável pelo fato

de ser um processo de criação com imprevistos. Ao moldar a peça, ela possui um

formato, uma cor. Depois do forno, a mesma peça possui outra dimensão, outra cor e, às

vezes, alguns acidentes acontecem, fazendo com que a peça tenha características únicas

e se torne até “misteriosa” ou “sagrada” depois de passar pelo elemento fogo. Esses dois

artistas têm a liberdade de criação como uma de suas particularidades.

Então, em 1971, com a Olaria São João já desativada, Brennand, encantado com

o material com o qual tanto conviveu mas nunca valorizou, resolve restaurar aquele

estabelecimento e iniciar o seu projeto de vida: transformar aquelas ruínas em um

grande templo/oficina/museu.

48

LIMA, Camila da Costa. Francisco Brennand: aspectos da construção de uma obra em escultura

cerâmica, p. 24 e ss. 49

Revista Leitura, 2000, p.13 50

LIMA, Camila da Costa, op. cit. p. 28

32

Recordo-me de ter encontrado a velha Cerâmica São João em ruínas.

Inclusive, cabe salientar que não havia necessidade de um anteprojeto, pois

as antigas paredes já indicavam aquilo que devia ser refeito: as ruínas

balizavam tudo. Portanto, toda e qualquer ideia chegava à medida do trabalho

em progressão. Talvez, por isso, eu resolvi chamar o lugar de oficina,

baseado na origem da palavra ofício ( officium em Latim), que quer dizer

trabalho, evitando o francesismo atelier.51

Foram onze anos de trabalho para a construção do que ele chama de santuário.

Sob conselhos da arquiteta e amiga Lina Bo Bardi, Brennand preservou a estrutura da

fábrica. Tudo poderia ser reaproveitado. Fornos e máquinas foram revisitados e se

transformaram em espaço e obra de arte. O artista revestiu quase tudo com sua própria

cerâmica. O ar fabril continua graças à estrutura preservada. A história se eterniza na

restauração do local. A Oficina Brennand é museu, escritório e fábrica, é onde o artista

passa a maior parte do seu tempo, que ele produz e expõe suas obras.

É um museu a céu aberto. Na chegada, se encontram as primeiras esculturas: Os

comediantes (Anexo, Fig.1). Estes, com um leve sorriso, direcionam o olhar do visitante

a um Templo Central, rodeado de pássaros Rocca que protegem uma cúpula azul, onde

está o Ovo Primordial, de onde, segundo a mitologia grega, nasceu a humanidade.

Nesta área ainda há murais, com figuras de animais e humanos e um espelho d’água que

reflete todas as obras expostas, dando uma impressão de infinitude, de imortalidade da

própria obra brennandiana. Há um imenso jardim, com cerca de 2 mil metros, chamado

Parque Burle Marx, projetado pelo próprio paisagista. Também existe uma área coberta,

onde está a maior parte de suas esculturas, todas dispostas muito próximas, fazendo com

que o visitante esteja bem perto das obras a ponto de poder tocá-las. Um pouco mais

afastado existe o Templo dos Sacrifícios, onde o artista faz uma homenagem às culturas

americanas que foram sacrificadas pelas expedições europeias. Ainda existe a

Accademia que abriga sua coleção de desenhos e pinturas, algo que o artista nunca

abandonou e que continua investindo. Existem também, espalhados pelos jardins e

espelhos d’água alguns cisnes negros, simbolizando a presença masculina do deus Zeus.

Fazendo referência ao mito de Leda e o cisne. Em tudo há fertilidade.

Brennand bebe de muitas fontes para se inspirar. Muitos artistas que conheceu

durante sua estadia em Paris o influenciaram quanto ao tema, quanto à tecnica que é

51

BRENNAND, Francisco e colaboração de IVO, Consuelo de. Francisco Brennand – mestre dos

sonhos. Recife: Bagaço, 2005

33

usada para suas peças (pintura, desenho, murais, esculturas). Além de todo o erotismo,

cores fortes, formas diferentes e uma obra também cerâmica, Gauguin inspirou

Francisco Brennand também quanto à sua vida (este artista se isolou numa ilha em

busca de novas inspirações para sua vida e sua arte) pois o artista pernambucano

também deixou a burguesia e a cidade e se isolou da sociedade recifense. Todos os dias

o artista está em seu santuário. Os visitantes podem sempre encontrá-lo a vagar pelas

suas esculturas, ou ajudando os seus artesãos, ou estudando uma nova obra. “Brennand,

solitariamente, construiu seu sonho, sua “Oficina / Templo” em que habitam suas obras,

personagens de um mundo que vai além do real. Gauguin afastou-se da sociedade

europeia também na busca de algo maior.”52

Brennand não sai do seu santuário. Lá ele

pode se inspirar e criar toda a sua obra: seja ela cerâmica, desenho ou pintura.

3.2. Apresentação da sexualidade em sua obra

Brennand é um artista que trabalha com distintas modalidades (pintura,

desenhos, cerâmica). Mas o que une todas essas variantes é o tema. O único tema: o

nascimento, o ovo, figuras de corpos, fragmentos dos mesmos, a mulher (portadora da

vida).

Os quadros de Francisco Brennand possuem, em sua maior parte, o corpo de

mulheres, especificamente, jovens ou adolescentes. São mulheres nuas, ou com

fardamento escolar, com chapéus vermelhos, entre outros símbolos femininos. Nota-se

uma grande influência do polêmico Balthus, artista franco-polonês, que usava meninas e

adolescentes nuas como modelos de suas obras. Os dois artistas concordam que a beleza

adolescente é muito mais interessante que a da mulher feita, pois “(...) a adolescência

encarna o futuro, o ser antes de se transformar em beleza perfeita. Uma mulher já

encontrou o seu lugar no mundo (...). O corpo da mulher já está completo. O mistério

desapareceu”.53

Entretanto, apesar de ousado, o tema não se torna erótico. O artista tenta mostrar

a fragilidade e o sofrimento da condição humana, que passa pela sexualidade, mas não

aquela que é erotizada. Não há temáticas de jogos de sedução. Há o sofrimento da perda

52

LIMA, Camila da Costa, op. cit. p.40 53

Balthus in Néret, 2003, p.36-37

34

da virgindade, da dor do parto, das complicações do corpo feminino que são preparados

para gerar vida.

O feminino faz parte do principal tema do artista: a reprodução. Visitantes se

assustam ao ver tantas vulvas, vaginas, tantos falos e ovos em seu museu e nas suas

obras espalhadas pela cidade. Há uma obra polêmica que foi feita em homenagem aos

500 anos do Brasil. Um grande obelisco que se fixa no marco zero da cidade. Foi alvo

de muitas piadas da população e dos artistas locais. Porém, apesar de se ver tantos

objetos fálicos na sua obra, o artista se direciona mais ao corpo feminino, às

personagens femininas da mitologia, da literatura ou da história. A mulher está

diretamente ligada à reprodução. É na mulher que a vida é gerada e é por ela que os

seres nascem e sua espécie se perpetua. Mas esta mesma entidade passa por sacrifícios,

sofrimentos, dores e a morte em prol de sua descendência, assim como foi discutido no

primeiro capítulo.

As esculturas de Brennand destacam as partes sexuais dos seres. As mulheres

têm seus seios, suas vulvas, vaginas e barrigas avantajados. Muitas vezes o rosto da

personagem nem aparece, como é o caso de sua Vênus (Anexo, Fig. 2). Outro exemplo é

a obra Leda e o cisne (Anexo, Fig. 3), que para o artista é o maior símbolo mitológico

de fertilidade. O sexo faz parte da natureza, é necessário para a imortalidade. O artista,

segundo ele próprio, não erotiza suas obras, ele mostra o que é natural, os órgãos

sexuais não estão sob uma bela penumbra, estão à mostra e destacados para impactar o

olhar do público. A sexualidade em sua obra é muitas vezes representada pelo sacrifício

e pela dor; vem antes do gozo.

O sofrimento feminino pode ser visto em muitas de suas esculturas. Existe uma

parte de sua obra, que o crítico de arte e curador do artista Olívio Tavares de Araújo54

chama de As Degoladas. Estas são cabeças de personagens que morreram em um grande

sofrimento relacionado a situações promíscuas ou amorosas, como Lara e Ofélia. O

artista reuniu cerca de doze mulheres sofredoras para essa série. São infelizes, muito

angustiadas. Suas cabeças estão voltadas para trás, como num êxtase dionisíaco, o que

deixa suas gargantas salientes e inchadas, como se tivessem sido degoladas. Todas as

personagens se relacionam com um fim trágico. Lara55

foi enviada ao submundo por ter

54

ARAÚJO, Olívio Tavares de. Proposta para uma leitura de Brennand. In Brennand, Esculturas

1974/1988. 55

GRIMAL, Pierre. Dictionnaire de la Mythologie Grecque et Romaine. p. 269

35

entregado uma traição de Júpiter, teve sua língua cortada e ainda foi estuprada por

Mercúrio. Já Ofélia se afogou por ter sido rejeitada por Hamlet.

A obra de Brennand causa inquietação. O próprio artista se considera

pornográfico, em todos os seus relatos e entrevistas. Ele define sua obra como uma

grande ajuda, como uma muleta que sustenta essa sensualidade perversa à partir do

pecado original. Antes o sexo já foi puro e natural. E em seu templo, ele recolhe todas as

mulheres, mães, sofredoras e detentoras de uma invejável imortalidade.

3.3. Processo e misticismo

A obra de Francisco Brennand é ainda inacabada. Pode-se dizer que é um acervo

in progress. É um trabalho vitalício, contínuo. O seu projeto é habitar este santuário

com suas obras.

(...)consta de “habitar” com seus seres modelados em argila toda a área de

sua grande propriedade com cerca de 15.000 metros quadrados, distribuídos

entre áreas cobertas, como os galpões, e áreas externas. Como parte desse

projeto de vida, Brennand pretende povoar com suas esculturas todos os

espaços, estendendo-se até chegar às margens do Rio Capibaribe, um ícone

nordestino, que corta sua propriedade.

Além disso, o artista usa a sexualidade de forma, dita por ele, sagrada, Brennand

demonstra um grande cuidado ritualístico ao produzir seus quadros, painéis e esculturas.

João Cabral de Melo Neto, poeta pernambucano, já fez citações a importantes artistas,

inclusive a Miró, um dos artistas admirados por Brennand. Mas, logo abaixo, temos um

poema feito para Francisco:

a Francisco Brennand

fechar na mão fechada o ovo

a chama em chamas desateada

em que ele fogo desateia

e o ovo ou forno tem domadas

então

prender o barro brando no oco

de não sei quantas mil atmosferas

que o faça fundir no útero fundo

que devolva a terra à pedra que era

João Cabral explica o processo de produção do artista homenageado. Mostra

como Brennand considera esse momento como um ritual sagrado, onde sua arte vai

sendo formada aos poucos, com cuidado e respeito. Também indica a relação da arte

36

com a imortalidade presente no corpo da mulher, no útero, de onde virão outras vidas e

a completude referente ao mito dos Andróginos.

Francisco Brennand possui muito respeito pelo fogo. Suas obras passam pelo

processo de queima até doze vezes para conseguir o resultado desejado56

. Mas nem

sempre a ideia inicial se concretiza. A obra vai crua ao forno e o artista a entrega para

uma purificação em fogo altíssimo. Muitas vezes ocorrem acidentes que surpreendem o

ceramista e tornam suas obras muito mais interessantes que no esboço. Elas obras

passam por grandes aventuras até chegar ao resultado final.

Há uma relação muito especial entre o homem e a natureza nesse momento. Pois

a argila se transformará em pedra novamente. Um dos acidentes citados pelo artista e

pelos monitores do museu, que engradeceu sua obra, foi o que aconteceu com Lara

(Anexo, Fig. 4). Durante do processo de queima, uma cinza caiu da abóbada do forno

sobre o rosto cerâmico e se transformou em uma lágrima negra, o que tornou sua

escultura muito mais expressiva e dramática.

Essas diversas queimas são feitas para se adquirir a cor ideal. O esmalte possui

uma cor viva, mas Brennand prefere um tom ferruginoso, então faz com que todas as

suas esculturas sejam queimadas várias vezes até que as cores percam uma certa vida.

Posso dizer que a minha escultura cerâmica permanece moderna no forno-

túnel e sai, depois de sucessivas queimas, com 10 mil anos. Coloca-se no

limbo, diante das chamas, e surge prodigiosamente bela e purificada no

paraíso.57

A fala elaborada e cheia de referências vinda de Brennand está presente em

todas as suas entrevistas e reflete, além de toda a sua cultura, o seu ar supersticioso.

Tudo em seu santuário faz sentido e existe ligação entre as peças. As obras evoluem

tendo relação umas com as outras. O tema da reprodução é sempre colocado na frente

do visitante, não há como fugir desse pensamento. É para que seja obvio, sem outras

interpretações. As peças do museu estão dispostas verticalmente, como tótens, para

fazer referência ao crescimento, à fertilidade.

56

LIMA, Camila da Costa, op. cit. p. 132 57

BRENNAND, Francisco e colaboração de IVO, Consuelo de. Francisco Brennand – mestre dos

sonhos. Recife: Bagaço, 2005

37

O próprio símbolo da Oficina é supersticioso e mítico: Oxossi, o orixá que

protege a caça e os animais, é um arco e flecha, colocado sempre na vertical em todos

os seus painéis e na entrada da Oficina. Curiosa é a contradição desse Orixá. Como ele

pode ser protetor dos animais e da caça? A explicação que se dá é que o orixá é um

predador e faz parte da natureza, já o homem não é natural e destrói o seu meio. Dentro

dessa afirmação, Brennand se protege dos maus olhos colocando símbolos do orixá e

falos. Percebe-se também que há uma mistura de crenças e mitos em sua obra, o que faz

com que se pense que Brennand as recria, formando uma nova mitologia. Uma

mitologia própria do artista.

Observando esse viés de superstição percebe-se vários símbolos de proteção. Os

ovos espalhados pelos jardins e o ovo primordial são protegidos pelos pássaros Rocca.

Uma reprodução dos pássaros que protegiam seus ovos nas histórias do marujo Simbá.

Os falos são uma referência aos costumes greco-romanos de adornar suas casas com

esses objetos, representando a felicidade, fertilidade e espantando os que queriam algum

mal para os que habitavam ali. Assim, A Oficina Brennand é protegida e todo o seu

acervo também.

Toda essa simbologia também protege, além do artista, todas as obras ligadas ao

feminino. Tem-se a ideia de que toda a feminilidade não sofrerá mais danos como se

não estivessem mais expostas ao alcance dos rudes homens. Elas são envolvidas de

falos (o que não significa que são dominadas por eles – a masculinidade, nesse caso, as

protege contra o próprio homem) e, muitas vezes, se tornando um personagem híbrido:

masculino e feminino, as mulheres estão eternizadas para representar o a grandeza da

vida. Elas já sofreram, já estão disformes, estão a salvo dentro do santuário construído

por Brennand.

Diante de toda essa sexualidade exposta, há uma tendência de rotular o artista

como um obcecado por falos e vulvas. O próprio artista não se agrada de ser

considerado um obcecado por símbolos sexuais, sejam eles explícitos ou insinuados.

Brennand justifica essa exposição sexual se apoiando no enigma da existência. Assim

como também não gosta de ser tratado como um artista erótico, pois considera a sua

obra repleta de uma violência brusca que não pertence ao jogo amoroso do erotismo.

Ele trabalha principalmente com reprodução. O erotismo não procura por esse fato.

38

Francisco Brennand se considera um homem feudal, supersticioso e

pornográfico. As duas primeiras considerações são visíveis. A Oficina Brennand ocupa

um grande latifúndio onde o artista é retém poderio. Ele possui muitos empregados,

uma boa fonte de dinheiro com sua obra utilitária além de um belo espaço muito bem

administrado. Sua superstição também é evidente perante a enfática presença de

símbolos sexuais relacionados à proteção contra invejosos, contra crueldade, entre

outros sentimentos ruins que se pode ter. Todos esses símbolos sacralizam o espaço da

Oficina.

Entretanto, ao se deparar com o Brennand pornográfico, surge uma dúvida. Os

próprio conceito de pornografia é instável. Ele caminha em cima de uma linha tênue

entre o erotismo e a sexualidade. Definir sua obra como pornográfica, diante dos

conceitos que foram apresentados nesse trabalho, é uma tarefa complexa. Na obra de

Brennand existem elementos que sugerem um erotismo, outros que mostram

pornografia, alguns que proferem apenas a sexualidade. Esse questionamento é o que

motiva o próximo capítulo e o trabalho como um todo.

39

Capítulo IV ― Brennand: erótico ou pornográfico?

Maria Antonieta – Foto: Helder Ferrer

Considerado, por ele mesmo, um artista pornográfico, Francisco Brennand,

artista pernambucano, passa a maior parte do seu tempo isolado no subúrbio recifense.

A Oficina Brennand é um reduto de uma arte in progress. O artista une toda a sua obra

de forma híbrida e indivisível. Neste capítulo discutiremos e faremos uma breve análise

a respeito da escultura cerâmica de Francisco Brennand, para saber se, de fato, sua arte

pode ser considerada pornográfica ou se ela assume a categoria de arte erótica.

4.1. A obra cerâmica

A escultura cerâmica de Brennand em tudo chama a atenção dos que a veem. O

tema polêmico para muitos, a forma estranha e fálica, a dimensão fora dos padrões da

realidade e a matéria de que é feita, a argila, o barro, que possui o simbolismo do início

da vida segundo muitas mitologias. O barro traz características peculiares e até

polêmicas ao ser considerado um material de arte menor, por muitos anos até pelo

próprio artista, matéria usada por artesãos, que não traz valor de obra de arte. Não

possui o requinte do mármore, nem a “dificuldade” (entre aspas pois para se mexer com

argila a dificuldade também aparece, porém de forma distinta) exigida por este nobre

material. Mas, depois de muitos estudos do material e muitas surpresas, como vimos no

capítulo anterior ao citar Picasso e Miró, Francisco Brennand deu o valor merecido ao

material em suas peças de cerâmica.

40

O barro é uma matéria que acompanha a própria evolução do homem, sua

manipulação é uma das mais antigas da humanidade. Suas características são

singulares, assim também como o processo que envolve a técnica da

cerâmica: modelagem, esmaltação, queima.58

O barro carrega uma simbologia exigida pelo artista. Essa simbologia está

relacionada ao início da vida, ao mistério do nascimento. O que torna a obra, além de

peculiar, mágica. Mas essa magia não chama choca o olhar de um visitante, a princípio.

O que realmente deixa a todos impactados é a super exposição de órgãos sexuais em

todo o espaço da Oficina Brennand. Ferreira Gullar, poeta, artista e crítico de arte,

classifica a Oficina como um lugar onde o artista expõe suas ideias libidinosas, eróticas,

“planos de desejos e culpas”.59

O artista considera sua oficina um santuário, onde está

retratado o sofrimento da vida humana ocidental. Sua pintura, seus desenhos, seus

murais e sua escultura de cerâmica mostram ao visitante o mistério da vida: a

reprodução. O próprio espaço pode ser considerado uma obra de arte ainda inacabada,

que se mescla de forma quase natural com toda a natureza da região da Várzea.

Brennand sempre constrói novos espaços para expor suas novas peças ou dar um lugar

mais especial a uma peça antiga. A obra do artista é progressiva e a cada visita pode-se

encontrar uma surpresa. Na Oficina, o visitante encontrará, de forma subjetiva, “(...)

barro do chão, sal do suor, água da lágrima e, mais ainda (...) , saliva, sêmen e

sangue.”60

Nada muito alegre, mas nada que cause ânsias de vômito, ou tristeza. Todos

esses sentimentos não assumem uma forma real, fotográfica, assim como vê-se na obra

de Araki ou Serrano. Essa exposição de sentimentos é feita de forma subjetiva, oblíqua.

Uma das características do erotismo.

Francisco Brennand não considera sua arte erótica e não gosta que ela seja

classificada desta maneira, pois, segundo ele, a sexualidade em suas peças está

escancarada e não sob uma penumbra ou um véu translúcido. O artista choca o público

com a ostensiva exposição de órgãos relacionados à reprodução. O formato das obras é

totêmico, são falos eretos que também podem ser vistos como tótens.

Como já foi citado no capítulo anterior, a obra brennandiana está repleta de

falos, vulvas, seios, ovos, entre outros elementos que representam este processo de

58

LIMA, Camila da Costa, op. cit. p. 12 59

In BUENO, Alexei. O universo de Francisco Brennand. p. 13 60

ACIOLY, Marcos in BUENO. op. cit. p. 317

41

sofrimento na busca pela imortalidade. E a figura feminina é o foco da representação

desse sentimento. Mas a escolha de se trabalhar com mulheres não se deve à fragilidade

delas e sim à sensibilidade que é mais latente, segundo o próprio artista.61

Refere-se,

então, ao poder que a mulher possui diante da vida. A mulher, como também já foi

discutido, representa a completude do ser. É nela que a vida é gerada. Ela é a

responsável pela imortalidade da raça humana.

Todavia, o que mais chama a atenção dos visitantes, tanto apreciadores de arte

como leigos, é a quantidade de objetos fálicos na obra de Brennand. O escultor também

fez obras que se espalham por pontos importantes da cidade do Recife e a população,

por não saber o real significado das formas fálicas, ridicularizam as peças e o próprio

artista, especulando até sobre a sua orientação sexual, segundo relato do curador Olívio

Tavares. O motivo da escolha da forma fálica para suas peças é de origem um pouco

supersticiosa. “Havia uma crença bastante difundida de que o falo (...) possuía

propriedades apotropaicas contra o mau-olhado e por esse motivo era empregado como

amuleto”62

. Porém, pelo fato de o artista misturar o falo com as voluptuosas curvas

femininas, a obra se torna híbrida e um pouco confusa. Já que o falo é um símbolo

masculino e a sua obra ressalta o feminino.

Esse emprego tão constante do falo pode ser explicado pela absoluta

supremacia do homem numa sociedade patriarcal, enquanto, na época do

matriarcado, os símbolos predominantes da fertilidade eram estatuetas de

mulheres representadas com seios e nádegas proeminentes, com todos os

atributos de seu sexo intensamente realçados. 63

Diante disso, Olívio Tavares Araújo nos fala que o espaço onde Brennand

acumula sua obra pode ser considerado barroco. Pois existe um acúmulo que atordoa e

subjuga esteticamente os sentidos do visitante. Há feminino e masculino numa mesma

forma, não se sabe ao certo quem é representado. Porém, a linguagem de sua obra não

pode ser vista da mesma forma.64

Ao ver e analisar as peças isoladamente, o apreciador

pode descobrir o mistério proposto pelo artista. Os críticos de arte, amigos do artista e

leigos, analisam a obra de Brennand de forma um pouco descuidada. E, com isso,

criaram-se julgamentos que são passados como verdade, sem nenhum real

aprofundamento. Então, Araújo levanta alguns questionamentos a respeito da arte

brennandiana.

61

Entrevista concedida ao Jornal de Poesia 62

VRISSIMTZIS, Nikos A. op. cit. p. 72 63

Ibid., Ibid. 64

ARAÚJO, Olívio Tavares. In BUENO. op. cit. p. 323

42

Uma dessas discussões a respeito da obra de Francisco Brennand é a

nacionalidade da sua obra. Arte brasileira, para alguns artistas como Volpi, é a que se

faz no Brasil. Considerando esse ponto, Brennand faria, sim, arte brasileira, obviamente.

O Brasil, hoje, está dividido em dois: o dos que querem estar a par, dos que

olham constantemente para fora, procurando captar as últimas novidades para

jogá-las, revestidas de uma apressada camada nacional, no mercado da

cultura, e dos que olham dentro de si e em volta procurando fatigadamente

nas poucas heranças duma terra nova e apaixonadamente amada, as raízes

duma cultura ainda informe(...).65

Araújo rebate essa questão nos dizendo que a obra brennandiana não se torna

brasileira, pois são representados temas que não se materializam com a nossa cultura.

Há, também, o equívoco de agrupar Brennand aos artistas que participaram do

Movimento Armorial, liderado por seu amigo Ariano Suassuna, na década de 70. Esse

movimento artístico, que abrangeu música, dança, teatro, literatura e artes plásticas,

tinha como objetivo tornar erudita a cultura popular, principalmente a regional

nordestina, sendo assim uma manifestação totalmente brasileira. Mas em uma

entrevista66

, Brennand esclarece que nunca participou desse movimento, já que sua obra

não exprime nenhum regionalismo. O que é refletido é a base da cultura ocidental: a

cultura da Grécia antiga e na Mesopotâmia. Além disso, a sexualidade inserida nas suas

peças foge afasta ainda mais a obra de Brennand do movimento cultural de Suassuna.

Personagens históricos da velha Europa, literaturas, mitologia greco romana.

São poucas as personagens representantes da América do Sul. Nota-se que, ao contrário

do que muitas pessoas pensam e afirmam, Francisco Brennand não faz uma arte

considerada popular. Há um peso intelectual em cada peça. Não existe peça que

represente nossas lendas e personagens da nossa história. Considera-se, então, a arte de

Brennand como brasileira devido ao material, o barro vindo do nordeste, e a localização

do ateliê. Com relação ao tema, pode-se dizer que é uma arte com tema universal, mas

não brasileira.

Em seu ensaio, Araújo categorizou a obra de Francisco Brennand em:

1. Frutos e Animais

2. Sexualidade

3. Personagens históricas

65

BARDI, Lina Bo. In BUENO. op. cit. p. 316 66

Entrevista concedida ao Jornal de Poesia

43

4. Personagens mitológicas

5. Grandes cabeças

6. Degoladas e trágicas

O artista possui uma vasta produção em vários suportes artísticos: desenhos,

pinturas de painéis cerâmicos e esculturas cerâmicas. Então, os pontos a serem

analisados serão relacionados à sexualidade das obras cerâmicas. E considerando que

existem inúmeras peças, serão vistas algumas, apenas, que podem exemplificar com

mais clareza o tema a ser discutido: a arte erótica ou pornográfica de Francsico

Brennand.

Toda a sua obra é relacionada à sexualidade. Ela aparece insinuada,

eroticamente exposta, nos temas com frutos, flores e animais. Seria muita ingenuidade

não perceber esses pontos nas obras. Já alguns animais retratam claramente, sem

obscuridade, falos e vulvas. A obra do artista estudado está ligada entre si, há um certo

hibridismo até nos temas que serão discutidos, pode-se ainda dizer que há uma espécie

de ancestralidade entre as próprias obras.

Como em toda obra de arte, as influências, os gostos, os sentimentos, as crenças

e ideologias também se mostram na obra brennandiana. Além disso, o artista tem um

aspecto demiurgo. Ele é dono do mistério deste santuário e o torna sagrado. Todavia

existe um equívoco ao dizer que a obra de Brennand é divina, já que ela sempre tem

uma relação mística ou com a mitologia greco-romana. Por esse motivo que não

podemos considerá-la barroca, pois ela não faz a contradição do divino e profano. A

obra de Brennand será humana. Falará da tragédia humana. E é nesse contexto em que o

mito aparece, nesse viés de sofrimento.

4.2. Vênus e Halia

Seu tema principal é a reprodução, como já foi dito inúmeras vezes neste

trabalho. Brennand diz no documentário Brennand Ovo Omnia67

que triste é aquele que

não cabe num ovo. A presença dos ovos em seu santuário é bem aparente. Existem de

todos os tamanhos, contendo todos os tipos de vida. Alguns têm animais que tentam

romper a casca. Mas, para o artista, é onde tudo começa. É o início do mistério da vida.

67

Direção de Liz Donavan, 2000

44

De forma redonda e oval também é o corpo da mulher representante de

fertilidade. Em sua Vênus (Anexo. Fig. 2), as formas são arredondadas e muito

semelhantes às figuras femininas das culturas arcaicas. Os órgãos em evidência e a

ausência de um rosto mostram o poder de fertilidade e procriação que existe no ser

feminino. Existem várias esculturas de Vênus na obra de Brennand. Esta que está em

discussão apresenta um destaque para as suas nádegas. Também possui forma totêmica

onde há apenas o torso na personagem, sem membros e sem cabeça. Olhando com

atenção, essas nádegas também podem assumir uma forma de saco escrotal, mostrando

hibridismo entre masculino e feminino. O tamanho é gorduroso, o quadril largo e fértil.

Remete à sexualidade, à fertilidade. É importante saber que a deusa Vênus, ou Afrodite,

deusa do amor, era filha (em uma das versões) de Urano (Posídon), cujos genitais foram

cortados por Cronos, caíram ao mar e da espuma a deusa foi gerada. 68

Tendo essa

informação, vê-se uma grande relação da deusa com a genitália masculina, tanto

remetendo ao seu próprio nascimento, como à sua fama de ser uma deusa de um amor

vulgar.

A mulher, seja ela representante da história da cultura ocidental, ou da mitologia

greco-romana, em grande parte se mostra com um aspecto de sofrimento que foi

adquirido por algum ato promíscuo, praticando uma hybris69

. No capítulo anterior

citamos duas esculturas da série As Degoladas: Lara e Ofélia. Em todas as personagens

há muito sangue, muito sofrimento, subjetivamente. O que não faz com que a obra se

torne pornográfica, considerando o termo usado e discutido anteriormente. A arte

pornográfica é crua. Não é subjetiva. Ela mostra tudo. Ademais, ao ver as peças, o

apreciador precisa ter um conhecimento prévio de quem foi aquela personagem, o que

ela sofreu e o porquê desse sofrimento ou morte.

Essas peças têm o formato fálico. São todas falos verticais, eretos. As

personagens sofreram por causa do poder masculino sobre elas. Além dessas duas

personagens citadas, temos ainda Halia70

(Anexo, Fig. 5), que na união com Posídon,

concebeu seis filhos. Estes foram alvo da magia de Afrodite e enlouqueceram, violando

sexualmente a própria mãe. Posídon fez com que a terra os engolisse e Halia, em

desespero, se jogou ao mar, onde morreu. A escultura é semelhante a outras da mesma

68

GRIMAL, Pierre. op. cit. p.10 69

Expressão grega que significa desequilíbrio, exagero, relacionado a ações incorretas. 70

GRIMAL, Pierre. op. cit. p. 190

45

série. A única parte visível é a face da personagem, voltada para trás, com uma

expressão serena. A personagem está morta. Não há o momento do sofrimento. Há o

depois do sofrimento.

Tanto em Vênus como em Halia existe o formato fálico e o hibridismo. Mas não

há conotação sexual que não seja pelo formato que sugere um pênis. Ao se ter como

exemplo de arte pornográfica os trabalhos de Araki e Serrano (onde aparecem mulheres

reais, nuas, amarradas, torturadas, na presença de ferimentos e sangue), descarta-se essa

definição para a obra de esculturas cerâmicas de Brennand, em que não há essa

realidade. Ademais, é necessário que o visitante tenha um certo conhecimento da cultura

dos povos da base ocidental para que a peça faça o melhor sentido. O que se pode ver

claramente na obra de Brennand é o sofrimento dessas personagens, ligados ou não à

sexualidade.

4.2. A árvore da vida, Príapo e Leda e o Cisne

O que se pode observar em toda a obra brennandiana é que há um certo

hibridismo, seja entre humanos e animais, seja intersexual. Vê-se cabeças de peixes em

corpo de mulher, serpentes se confundindo com falos, falos misturados a vulvas,

nádegas que se transformam em saco escrotal, etc. A árvore da vida (Anexo, Fig. 6)

possui um nítido hibridismo de falos, vulvas e nádegas. Na verdade, é mais um grande

falo ereto fragmentado em outras partes de um corpo que se unem numa grande cópula.

Essa fragmentação dos corpos e a união dessas pequenas partes em um pequeno espaço,

muita informação, é uma das características da arte pornográfica. Nesse sentido, essa

peça possui pontos que a podem tornar pornográfica.

Quase tudo na obra brennandiana é relacionado à sexualidade, com exceção de

algumas tartarugas e outros pequenos animais, também feitos de cerâmica, presentes no

imenso jardim da Oficina. Entretanto, apesar de sempre usar falos, o corpo masculino

não é o centro de sua atenção. Existem poucos exemplares de corpos masculinos, não

existem Apolos equivalentes às suas variadas Vênus. A representação masculina, em

maior parte, se encontra disfarçada no hibridismo com outras formas femininas. Mas em

Príapo (Anexo, Fig. 7) é bem visível, até para o mais ingênuo dos seres humanos, o

gigantesco e viril falo. Mas este pênis ereto nada de erótico tem. Ele vai ter a mesma

46

serventia que tinha nos povos antigos da Grécia e de Roma: “espantar o mau olhado”.71

A mitologia conta que o deus Príapo nasceu com um órgão sexual desproporcional,

devido aos malefícios de Hera. Afrodite e sua beleza seduziram a Zeus que a possuiu.

Hera, temendo que o fruto desta união tivesse a beleza da mãe e a força e o poder do

pai, tornando-se assim um perigo para os outros deuses do Olimpo, resolveu amaldiçoar

o bebê dentro da barriga da mãe. Afrodite, com medo de ser motivo de chacota ao ter

um filho disforme, o abandonou nas montanhas, onde a criança foi criada por pastores.

Ao crescer, os pastores o cultuavam pela sua virilidade que trazia fertilidade aos

campos. Há festas em sua homenagem e todos os falos que adornavam as casas gregas e

romanas faziam referência ao mesmo deus.

Leda e o cisne (Anexo , Fig. 3) mostra uma mulher de pernas cruzadas (a própria

Leda) de uma forma que se assemelha a um cisne. Mas ela está numa posição onde sua

vulva fica bem saliente. Esta vulva não é idealizada, simétrica. Os grandes lábios são

disformes o que demonstra um certo sofrimento da personagem ao ser possuída por

Zeus transformado em cisne. Não somente nesta peça, como em todas as outras, a

mulher não é atraente segundo a estética ocidental. Existe muita gordura, pele

machucada, ferimentos, nada que atraia um jogo erótico.

A exposição dos órgãos genitais de forma excessiva nos revela dor, amargura,

desgraça, drama, mágoa. Os falos híbridos são semelhantes aos que eram usados no

sacrifício de virgens dos povos antigos. Ele será um castigo, o motivo pelo qual todas

essas mulheres sofreram. Não existe prazer, essa sexualidade vem antes do gozo.

O sexo por ele mostrado é algo anterior e talvez avesso ao prazer. Esses falos

gigantescos e conspícuos têm a ver com rituais bárbaros, com aqueles outros,

de pedra, nos quais em certas civilizações as donzelas eram sentadas na

puberdade, para se transformarem em mulheres; são os falos do sacrifício,

não os do gozo.72

Levando em consideração que o erotismo e a pornografia ocasionam prazer

(mesmo quando há sofrimento e repulsa), a obra brennandiana não pode receber esses

rótulos. Sua obra é mais sobre uma ideia que inquieta o visitante ou apreciador do que

uma ideia de fascínio. Brennand nos leva a refletir sobre o mistério que tanto nos

atormenta: a origem da vida. Também, segundo as definições discutidas nos capítulos

71

GRIMAL, Pierre. op. cit. p. 395 72

ARAÚJO, Olívio Tavares In LIMA p. 108

47

anteriores, a obra de Brennand não pode ser considerada “bela”. O que não significa que

o artista busca o contrário, o feio. Francisco Brennand busca a verdade dentro do

mistério. E a verdade não é bela.

Classificar a obra de Brennand significa andar em cima de uma linha tênue. O

artista possui características eróticas, do subjetivo, da relação do sexo com algum

sentimento. Também possui características pornográficas como a excessiva e

fragmentada exposição dos órgãos genitais, a violência. Todavia não há prazer visível

em suas peças. Então sua obra nem pode ser erótica, nem pornográfica. A sexualidade

que Brennand explora vem antes do pecado original. É uma sexualidade necessária para

a sobrevivência do ser.

Nunca chegaremos a uma única verdade. Chegaremos a leituras

circunstancializadas – por nossa individualidade, por nossa formação, por

que não dizer por nosso gosto, pela época em que estamos vivendo, pelos

valores vigentes no planeta, e assim por diante.73

Mas o que é incontestável é que Francisco Brennand possui uma obra única e

contínua. Busca pela continuidade para que sua obra seja imortal, assim como os seres

vivos fazem. Por mais que, vendo obras arcaicas ou atuais e percebendo características

que podiam ser brennandianas, não existem na atual arte, principalmente em território

brasileiro, peças tão originais. Considerado um lobo solitário, Brennand se isola da

sociedade, cria o seu mundo de mistério que se tornará eterno. Sua arte o completa.

73

ARAÚJO, Olívio Tavares In BUENO, Alexei. op. cit. p. 323

48

― CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de ter sido reconhecido pelas suas esculturas de cerâmica, Brennand

ainda se considera pintor. E afirma que não seria um bom escultor se já não soubesse

pintar bem. O “modesto” e simpático Brennand, leitor incansável e criador de obras

intrigantes, não pretende parar de produzir. Com 86 anos, mesmo com chapéu e

bengala, o artista plástico ainda é ambicioso e pretende tornar seu santuário uma

instituição. Tornará o seu trabalho imortal, e o reproduzirá para as próximas gerações.

Estudá-lo foi bastante difícil, pois sua obra é muito pessoal e a sua vida não se

desfaz de sua arte. Com a publicação do seu diário, talvez isso se tornará menos árduo.

Preocupante é perceber que muitos brasileiros não reconhecem esse autêntico artista que

não se encaixa em nenhuma escola. Ele é Brennand. Não participou de nenhum

movimento. Isolou-se de todos, negou a regionalização, mas usou de uma característica

muito brasileira, segundo relatos de artistas estrangeiros: a liberdade.

Usando essa liberdade, Brennand ainda foge da crítica, ignorando-a. Para ele não

importa se definido, categorizado, conceituado. Ele faz sua arte como uma extensão da

sua vida. E, perante toda a grandeza de sua obra (que ainda está sendo produzida), não

há motivos para negar seu talento e genialidade. “(...) não conheço nenhum outro artista

brasileiro que atualmente esteja tão imune à opinião dos críticos, preocupando-se apenas

em ver, compreender, fazer, do que ouvir as vozes dos ventríloquos.”74

Iniciei trabalhando com a hipótese de Brennand não ser um artista pornográfico.

Então, pela eliminação deste rótulo, estava propensa a categorizá-lo como erótico. No

entanto, no decorrer da pesquisa, analisando suas obras baseada nas teorias absorvidas e

no discurso do próprio artista, cheguei à conclusão de que Francisco Brennand não pode

ser definido nem como um artista pornográfico, nem um artista erótico.

A obra erótica possui lirismo, subjetividade, um véu translúcido que cobre a

nudez. Há também a intenção de expor o jogo de sedução. Essa nudez velada sugere o

desejo que antecede o ato sexual ou que o precede. Com a influência de Eros, ainda

existe o amor, o sentimento de troca de afinidades, a conquista do ser desejado por meio

de um trabalhoso processo.

74

CAMPOS, Renato Carneiro In BUENO, Alexei. Op. cit. p. 318

49

Já a obra pornográfica revela o nu cru. Mas não cru de sentido. O corpo é

fragmentado e destacam-se as partes interessantes para a cópula: a genitália. Suor,

fluidos e até sangue estão à mostra, sem nenhum véu. O que há é um foco, um holofote

nas formas, com a intenção de causar tesão, desejo, mas sem sentimento, sem o amor

proveniente de Eros. Há violência, sadismo, tortura, todavia todos esses elementos são

carregados de um prazer luxuriante.

Na obra analisada de Francisco Brennand, pudemos observar que as formas

fálicas e híbridas não escancaravam genitais com a intenção de trazer prazer. A

referência sexual estava ligada ao sofrimento. Da dor da perda da virgindade à dor do

parto. Brennand demonstra que diante desse desejo de profanar, de macular, machucar,

de causar sofrimento, pode-se notar que o homem possui um impulso animal difícil de

ser controlado. E essa força se concentra no seu falo. Mas todo o sofrimento que é

sentido pelas mulheres é necessário para a geração da vida.

Então, pode-se dizer que há sexualidade na obra brennandiana, mas não há um

sentimento amoroso nem prazeroso. Existe uma dor que vem antes ou depois do gozo.

Uma dor necessária para a continuação da espécie, para sua imortalidade. Essa definição

me surpreendeu pelo fato de ser híbrida, assim como a obra de Brennand. É preciso ter

amor à vida e sofrer por ela, é preciso desejar encontrar a sua outra metade e voltar à

criatura primordial num infinito abraço.

Com sua obra inacabada, ainda há muitos mistérios a serem revelados e

estudados. Não só a obra cerâmica, mas sua pintura e seus desenhos também precisam

ser analisados com afinco. Aprofundar essa pesquisa é um objetivo necessário.

50

― BIBLIOGRAFIA

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ARAÚJO, Olívio Tavares de. Proposta para uma leitura de Brennand. In Brennand,

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Paris: Éditions du Regard, 2002.

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L&PM, 1987.

BRANCO, Lúcia Castello. O que é erotismo. São Paulo: Brasiliense, 2004.

BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Tradução: Carlos Sussekind, Jorge

Laclette, Maria Thereza Rezende Costa, Vera Whately. 3ª ed. Brasília: Editora

da UNB/José Olympio Editora, 2000.

BUENO, Alexei. O universo de Francisco Brennand. Rio de Janeiro: G. Ermarkoff,

2011.

_____________ Antologia pornográfica: de Gregório de Mattos a Glauco Mattoso.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

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(orgs.) O rapto de Helena. João Pessoa: Idéia/Editora Universitária/UFPB, 2005

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Editora Record, 2004;

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Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., s/data;

GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução: Victor

Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

HOUAISS, Antônio e outros. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa.

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LIMA, Camila da Costa. Francisco Brennand : aspectos da construção de uma obra

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Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

NÉRET, G. Balthus – 1908-2001 – O rei dos gatos. Köln: Taschen, 2004

OLIVEIRA, João Vicente Ganzarolli de. A humanização da arte: temas e

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Luiz Alberto Machado Cabral, São Paulo: Odysseus, 2002;

WINCKLER, Carlos Roberto. Pornografia e Sexualidade no Brasil. Porto Alegre:

Mercado Aberto, 1983;

ZUFFI, Stefano. Love and Erotic Art. Translated by Stephen Sartarelli. Los Angeles:

The Paul Getty Museum.

I

ANEXO I

II

Figura 1: Os comediantes – Foto de Helder Ferrer

III

Figura 2: "Vênus de Anatólia" - Foto de Helder Ferrer

Figura 3: “Leda e o cisne” - Fotógrafo desconhecido

IV

Figura 4: “Lara” - Foto: Helder Ferrer

Figura 5 “Halia” - Foto de Helder Ferrer

V

Fig. 6 “Árvore da vida” – Foto de Deco Bastos

VI

Figura 7 “Príapo” – Foto de Helder Ferrer