Sexualidade, Corpo e Gênero Ciberespaço e circuito GLS

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30º Encontro Anual da ANPOCS 24 a 28 de outubro de 2006 GT22- Sexualidade, Corpo e Gênero Ciberespaço e circuito GLS: uma etnografia a respeito das relações na realidade virtual Carolina Parreiras Silva

Transcript of Sexualidade, Corpo e Gênero Ciberespaço e circuito GLS

30º Encontro Anual da ANPOCS

24 a 28 de outubro de 2006

GT22- Sexualidade, Corpo e Gênero

Ciberespaço e circuito GLS: uma etnografia a respeito das relações na

realidade virtual

Carolina Parreiras Silva

Ciberespaço e circuito GLS: uma etnografia a respeito das relações na realidade

virtual

1- Introdução

Estudos recentes na área de antropologia urbana atentam para a ocorrência de

inúmeros deslocamentos, fluxos, movimentos rápidos e contínuos que se desenrolam

nas grandes cidades. Pode-se dizer que uma das grandes preocupações desses estudos é

entender a maneira pela qual os vários espaços são apropriados e significados pelos

sujeitos em movimento.

Em paralelo a esses estudos, desenvolvem-se uma série de trabalhos que

exploram temas relativos às homossexualidades masculina e feminina. Os estudos1

realizados vão desde questões relativas à organização do movimento homossexual até

maneiras de construção das várias identidades, associação entre mercado e movimento

homossexual organizado etc. Chamam a atenção, nessa gama de temas, os trabalhos que

se dedicam a investigar o que se pode chamar de “gueto homossexual”, ou seja, os

locais (públicos - ruas, praças, avenidas - ou privados) de alta freqüência de

homossexuais em busca de outros sujeitos que compartilham com eles uma série de

estilos, preferências e afinidades.

Assim, o que esse texto pretende, dos dois enfoques complementares citados

acima, é articular os estudos de antropologia urbana e os relativos à homossexualidade,

buscando perceber as diferentes maneiras segundo as quais os espaços e territórios são

ocupados e significados. Digo que os pontos de partida são dois enfoques

complementares porque os dados aqui presentes fazem partes de duas pesquisas: a

primeira delas que buscou entender como se dá a apropriação do espaço urbano através

do circuito GLS que se formou na cidade de São Paulo (especialmente a partir da

década de 70) e a segunda, ainda em andamento, que pretende explorar o

estabelecimento de relações entre homossexuais no chamado espaço virtual ou

1 Entre os estudos realizados no Brasil que abordam a temática da homossexualidade, destacam-se: o pioneiro texto de Peter Fry (1982) a respeito das categorias de classificação utilizadas para caracterizar a homossexualidade e o estudo de James Green sobre a construção histórica da homossexualidade masculina no Brasil (1999). Em relação ao surgimento e à organização do movimento homossexual brasileiro (MHB), são marcantes os trabalhos de Edward MacRae (1990) e Regina Facchini (2005). Também vale citar a etnografia realizada por Nestor Perlongher entre os michês paulistanos (1987). Evidentemente (não gosto do obviamente), o número de obras é maior, mas as citadas estão envolvidas de forma mais direta com esse projeto.

ciberespaço. Acredito ser impossível dissociar as duas pesquisas, na medida em que

parto da premissa de que há uma mútua imbricação (o que alguns autores chamariam de

contaminação) entre os espaços presenciais e virtuais, não sendo possível entendê-los

como dissociados.

A primeira pesquisa, que consistiu em uma monografia para a conclusão de

curso, foi realizada entre o final de 2003 e o início de 2005 na cidade de São Paulo,

mais detidamente na região dos Jardins. A pesquisa de campo consistiu em idas a

boates, bares, festas, agências de turismo, bem como na circulação nas ruas que

integram a região dos Jardins. Trabalhei com a idéia de que existe um circuito de

ambientes que recebem o nome de GLS2 (sigla para gays, lésbicas e simpatizantes) ou,

se preferirmos, de ambientes voltados ao público homossexual e também àqueles que

não assumem a identidade homossexual publicamente e são chamados de simpatizantes.

Cabe ressaltar que o que chamo de circuito GLS na cidade de São Paulo (definição que

se baseia em definições dos próprios freqüentadores da região estudada) extravasa as

possíveis fronteiras que essa delimitação do estudo à região dos Jardins poderia suscitar.

A abrangência espacial do circuito GLS é mais ampla, mas, de qualquer modo, nota-se

uma diferenciação e, até mesmo uma classificação 3 dos freqüentadores das várias

regiões da cidade. A realização da pesquisa empírica não abrangeu o sistema como um

todo, mas uma parte reduzida - porém não menos significativa - deste. E não restam

dúvidas de que a ocupação espacial dos territórios paulistanos pelo público GLS não se

deu da mesma maneira em todos os casos, e algumas sutilezas podem ser observadas

nas diversas territorializações, desterritorializações e reterritorializações, que são, em

última instância, o ponto focal de análise da pesquisa.

Assim, a cidade de São Paulo poderia ser dividida em 3 partes ou subcircuitos

GLS (também esta definição está baseada em construções dos freqüentaqdores, podendo

se afirmar que há a segmentação da cidade de São Paulo em espacialidades

homossexuais): a região central, a região dos Jardins e a região de Pinheiros – Zona Sul.

Como o intuito deste paper é apresentar apenas algumas considerações mais gerais, vou

apenas me deter na caracterização do circuito dos Jardins. Esse circuito se formou a

2 A sigla GLS nada mais seria que a apropriação da idéia de gay friendly, adotada nos Estados Unidos e na Europa. 3 Alguns pontos são importantes nessa classificação: classe social, poder aquisitivo, nomenclatura - e aqui me refiro à clássica divisão classificatória, abordada por Peter Fry (1982), em que se determinam os sistemas clássico e moderno ou igualitário).

partir da expansão dos ambientes de freqüência predominantemente homossexual da

região central da cidade para os bairros de classe média e média alta paulistanos. São

notáveis as diferenças, principalmente de classe, entre os freqüentadores dessa região e

os do Centro, sendo que essas diferenças também podem ser percebidas nos tipos de

locais GLS encontrados nos dois locais. A região dos Jardins apresenta uma grande

concentração de bares, boates, saunas e hotéis destinados ao público GLS, sendo que,

comparativamente, são cobrados preços mais elevados do que no centro e o público-

alvo é outro, ou seja, são pessoas com padrão de vida, renda e escolaridade diferentes.

Isso pode ser notado nos hábitos de consumo, nas posturas corporais, nas maneiras de

vestir. Também nessa região surgiu uma linguagem própria, adequada àqueles que ali

estão, chamados de “entendidos” e até mesmo “modernos”.

Um dos conceitos-chave para o entendimento do circuito GLS é a idéia de redes

sociais. Parti, portanto, do raciocínio de que podem ser traçadas linhas ligando as várias

pessoas que freqüentam o circuito GLS. Em vários momentos da pesquisa, descobri que

muitos dos meus informantes, entrevistados separadamente e em locais múltiplos, se

conheciam, sendo que alguns deles já haviam inclusive se relacionado afetiva ou

sexualmente. Em teoria, e seguindo a idéia de que no circuito dos Jardins impera o

sistema classificatório moderno ou igualitário, existiria nessa parte do circuito uma

postura de tolerância e de igualdade. Mas o que a pesquisa de campo apontou em alguns

momentos foi exatamente o oposto. Também no circuito dos Jardins há a proliferação e

a manutenção de discriminações e categorizações. O depoimento de um dos meus

informantes (Roberto) vai nessa direção:

“você ainda não conhece nada desse mundo...você vai entrar em um ambiente sujo, onde as pessoas só valem por sua aparência física e por seu corpo. Se você não segue o padrão jeans estilizado, corpo definido, camiseta com dizeres descolados e tênis de última moda, tudo isso de grife, você está fora”.

Os ambientes destinados ao público homossexual são, muitas vezes, agregados

como compondo o “gueto”. A primeira imagem que essa nomenclatura evoca é a de um

local isolado geograficamente e no qual os comportamentos considerados desviantes

podem se manifestar. Falar de gueto não é nenhuma novidade nos estudos que

pretendem entender a cidade nem nos que tratam da homossexualidade especificamente.

Para tratar dessa noção de gueto recorri à obra de Nestor Perlongher sobre os michês da

cidade de São Paulo e tomo dele a idéia de gueto como um local sem limites

geográficos definidos onde impera uma certa deriva, com sujeitos em constantes

mudanças e deslocamentos. Isso porque, em São Paulo, as características necessárias

para se falar em gueto aparecem apenas parcialmente e só em determinadas áreas.

Existe sim uma grande concentração de ambientes dedicados ao público gay, e também

podemos encontrar áreas onde residem muitos homossexuais (a rua Frei Caneca pode

ser um exemplo nesse caso), mas não é possível falar em áreas isoladas que passaram a

ser ocupadas quase que exclusivamente por homossexuais. Por isso, de certo modo,

pensar nos termos de um circuito GLS e não de um gueto gay talvez seria uma solução

melhor para explicar o contexto paulistano. Mas ainda assim, e como pretendo mostrar

mais à frente, a idéia de circuito também apresenta alguns problemas e defendo que seu

uso seja feito com ressalvas.

O que observei em São Paulo foi a existência de territórios fronteiriços, em

contato com diversas outras áreas que se influenciam mutuamente. O gueto, e isso

dissiparia a carga pejorativa e preconceituosa contida no termo, faria mais sentido se

visto como um território fronteiriço, quase liminar, no qual ocorre uma série de

manifestações importantes para a visibilidade homossexual. O gueto não é, portanto,

como muitos dizem, um local de perversão, de comportamentos desviantes e de

desordem (MacRae, 1983). Além disso, o gueto, para perder seu caráter de preconceito,

deve ser desexotizado, ou seja, não se pode pré-fabricar tipos de homossexuais, criando

estereótipos que só fazem perpetuar os preconceitos e as discriminações.

Durante a realização da pesquisa, encontrei um cenário semelhante ao descrito

por parte da bibliografia que trata do ambiente urbano e das questões de sexualidade e

gênero, especialmente a obra de Perlongher: na região dos Jardins entrei em contato

com diversos sujeitos se deslocando, buscando encontrar um território, mesmo que

transitório, onde possam realizar suas trocas afetivas e estabelecer relações de

socialidade (e nesse ponto são vários os interesses em jogo durante os deslocamentos).

Desse modo, a busca pela territorialidade, por locais determinados onde haja satisfação

das necessidades dos sujeitos cria, na verdade, uma desterritorialização. Com isso quero

dizer que podemos falar em uma territorialidade itinerante que não prevê fixação

espacial, mas conta com inúmeros devires e possíveis derivas. O que pôde ser

observado na pesquisa empírica foi a existência de “sujeitos à deriva”, movidos por uma

constante busca, que, em última instância, é a busca de si mesmo. Essa deriva envolve

sucessivas construções identitárias, adaptadas a cada contexto específico. Pode-se

pensar em termos de uma segmentaridade e, indo mais além, em uma plurilocalidade.

O circuito GLS pode ser perfeitamente localizado, através de seus vários pontos

e “endereços”, mas não pode ser delimitado com fronteiras fixas, já que elas não

existem. O que se tem no meio urbano são áreas de alta freqüência homossexual que

estão em contato constante umas com as outras, entrecruzando-se e sem uma

delimitação, o que significa que esse espaço é nômade e suscetível de ser ampliado

ainda mais (prova disso é que até bem pouco tempo atrás só se falava na região central e

na dos Jardins como locais GLS. Hoje, a região de Pinheiros já é uma extensão, bem

como a Lapa). A criação do espaço se dá, acima de tudo, pelo tipo de redes relacionais

que se desenvolvem. É por meio dos vários relacionamentos que uma área pode ser

caracterizada por uma determinada nomenclatura ou como território de um grupo. No

espaço abrangido pela pesquisa, há, como foi mostrado na descrição do campo, uma

cadeia de relacionamentos homossexuais, o que fornece subsídios suficientes para

adotar a nomenclatura circuito GLS dos Jardins (ou mesmo, mancha GLS dos Jardins),

formado pelas ruas, pelos locais públicos e pelas várias edificações que oferecem algum

tipo de serviço voltado para esse público.

Nessa perspectiva, baseada tanto na pesquisa empírica quanto na análise

bibliográfica, o território deixa de ser um fim em si mesmo, só existindo e tendo sentido

em relação aos indivíduos e aos outros territórios. Então, o peso do território passa a ser

relativizado, sendo que uma das principais preocupações dos atuais estudos é romper

com a noção que relaciona diretamente lugar-estabilidade-identidade (Gupta e Fergusin,

2000). Como as relações são fluidas, o território também se caracteriza por ser flutuante

e mutável, assumindo inúmeras feições em função do contexto em que se situa. A noção

do que é território extrapola a convenção de encará-lo apenas como uma faixa de terra,

algo concreto. Ele pode ser até mesmo virtual, como há o exemplo do ciberespaço. Essa

noção também é importante, visto que a perspectiva que norteou a pesquisa empírica foi

a de que a territorialidade está constantemente se construindo, não sendo possível tomar

as várias situações vivenciadas na pesquisa empírica como um quadro imóvel e fechado

em si mesmo. O importante é a soma dos vários instantes que pode fornecer uma visão

mais próxima da realidade.

Uma questão que gostaria de abordar aqui é a utilização do termo circuito. Em

diversos momentos da pesquisa de campo essa palavra apareceu para nomear a

organização dos ambientes e locais freqüentados pelo público GLS. Também há uma

considerável bibliografia a respeito desse termo, sendo que a principal referência é José

Guilherme Magnani. A nomenclatura circuito serve perfeitamente bem aos intuitos

dessa pesquisa, mas merece, também ela, algumas críticas, principalmente à maneira

como é apresentada por Magnani. Como referencial metodológico, a palavra cabe

perfeitamente bem. Mas não posso deixar de notar que a noção de circuito pode fazer

com que se mantenha o isomorfismo que deixa em associação direta espaço-lugar-

cultura-identidade. Com isso quero dizer que, essa nomenclatura faz com que persista a

idéia de que a identidade é diretamente determinada pelo espaço. Ou seja, se você

freqüenta o circuito GLS dos Jardins você tem uma identidade determinada por esse

fator, sem levar em consideração várias outras variáveis que são importantes para se

pensar em qualquer construção identitária. Acima de tudo, identidade é algo construído

e não dado, determinado. O isomorfismo de que falo é problemático porque oculta a

maneira como vemos o outro e a nós mesmos, sendo que universais precisam ser

problematizados porque não correspondem à realidade. No caso do circuito GLS,

também não se pode construir um tipo universal de freqüentador baseado em categorias

espaciais, porque desse modo a diversidade de tipos humanos ali presente fica

completamente ofuscada.

O que a segunda pesquisa, ainda em andamento, intenta é articular um dos

assuntos mais atuais trabalhados pela antropologia urbana, associado ao entendimento

do chamado espaço virtual4, e os estudos que focam a investigação na

homossexualidade. A associação entre esses temas me pareceu importante a partir de

dados da pesquisa de campo descrita acima. No momento dessa pesquisa, a internet

apareceu como um dos meios utilizados na criação de sociabilidade entre homossexuais.

Para corroborar tal constatação, utilizo também dados de pesquisas realizadas pelo

Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) durante as

Paradas do Orgulho GLBTT do Rio de Janeiro (2003) e São Paulo (2005), os quais

apontam a internet como meio gerador de relações entre homossexuais.

Um dos objetivos iniciais da pesquisa foi realizar o mapeamento dos locais de

freqüência homossexual no espaço virtual, levando em consideração sites, programas de

conversação em tempo real (Messenger- MSN, por exemplo) e programas de

relacionamento (Orkut e similares). Feito esse levantamento, intento identificar as redes

de relacionamento presentes nos locais mapeados, sendo que o objetivo maior seria o de

4 O que se toma aqui como virtual não está em oposição ao que se chama de real. A idéia é pensar nos termos de uma realidade virtual, sendo que não é o fato de ela ser virtual que a torna menos real que uma realidade presencial ou atual. O virtual e o presencial são planos vivenciados ao mesmo tempo e não podem ser analisados de forma separada, visto que entre eles há uma contaminação ou mútua imbricação. O plano virtual ou de imanência acompanha o plano presencial e permite avanços em relação a ele, visto que é marcado por transformações e reinvenções constantes. Essa idéia está presente em Gibson e Lévy (1999).

perceber de que modo as relações virtuais se expandem para o presencial ou, ao

contrário, já são elas mesmas uma extensão desse presencial. De certo modo, as

performances e as construções identitárias percebidas no ciberespaço são reveladoras de

como a apropriação desse espaço se dá e pode indicar se há, também no ciberespaço, a

formação de locais com fronteiras definidas que excluem uma série de sujeitos do

acesso a elas. Assim, se isso realmente ocorre, pretendo pensar a respeito da validade do

conceito de gueto (tão caro aos estudos de antropologia urbana) para uma nova

realidade que se configura, na qual o que se chama de espaço não é mais algo material,

físico, mas composto por uma imaterialidade expressa em bytes e em uma linguagem

própria que dita a maneira como cada um se situa e se apresenta.

2- Redes sociais, identidades, negociação e performance: a internet e suas muitas interfaces5 Desde o final da década de 80 e começo da década de 90, iniciou-se um

processo, intensificado a partir dos anos 2000, de desenvolvimento e crescimento

contínuo de uma nova realidade, conhecida como espaço virtual ou ciberespaço. Este

processo, sem sombra de dúvidas, tem um peso enorme para entender o contexto

presente e uma série de manifestações que o marcam e caracterizam. Ou seja, o

ciberespaço é, também ele, locus de diversos tipos de organizações, relações,

sociabilidades, transações e negociações entre sujeitos vários, localizados nos mais

diversos países. E todos eles ligados, ou melhor, conectados através de computadores,

fios, processadores, chips, softwares, interfaces, entre uma longa lista de equipamentos

eletrônicos que possibilitam a comunicação virtual e as conseqüentes trocas dela

derivadas.

Quando se fala em ciberespaço, a primeira imagem que vem à mente é a da

internet, meio que se popularizou e vem se popularizando com grande velocidade, sob o

esteio de afirmações do tipo o mundo em sua casa com apenas um clique. Seu uso se

tornou tão difundido que é hoje é possível, inclusive, realizar a conexão com a internet

sem nenhum cabo, fio ou qualquer outro acessório. São as chamadas conexões wireless,

nas quais, se o computador tem a tecnologia necessária, a conexão é feita de qualquer

lugar em que as ondas de conexão estão liberadas. Mas, a expansão da internet, acabou

por banalizar o sentido último daquilo que se entende como ciberespaço, ou seja, seu

5 Mecanismo de interação entre usuário e o sistema computacional, baseado principalmente em sinas visuais e gráficos.

significado e o que ele abarca são muito mais amplos do que pensar apenas na internet

permite supor. Em linhas gerais, apenas para fornecer uma contextualização do que é

um dos focos de análise deste trabalho, o ciberespaço é composto pela internet, pela

realidade virtual e pelas técnicas de simulação em três dimensões (MAYANS, 2002).

É importante deixar claro que aquilo que tomo como virtual não está, de modo

algum, em oposição direta ao real. Em ambos os casos, são situações reais, sendo mais

adequado o uso do termo presencial para nomear as relações que se estabelecem na

materialidade física e fora da internet e do universo dos bytes. Realidade virtual e

realidade presencial são planos em interação e vivenciados ao mesmo tempo. Eles não

podem, portanto, serem analisados separadamente, visto que entre eles há uma

contaminação ou mútua imbricação. O plano virtual ou de imanência acompanha o

plano presencial e permite avanços em relação a ele, sendo que é marcado por

transformações e reinvenções constantes.

Assim, tornaram-se necessários estudos antropológicos que permitam entender o

ciberespaço, seu modo de funcionamento, a identificação dos sujeitos que o utilizam e

de que maneira eles estabelecem suas relações com outros sujeitos, levando em

consideração que há no ciberespaço um rompimento com a necessidade de uma

materialidade física para que relações entre pessoas surjam. O que se tem são novas

formas de interações sociais, novas sociabilidades que trazem em si uma série de

significados e estão diretamente envolvidas nos processos de construção identitária que

passam a se desenvolver, bem como na aparente desagregação das categorias clássicas

de espaços, territórios e lugares. O estudos a que me refiro têm os mais diversos focos: a

noção de tempo e espaço na realidade virtual, as políticas de controle e regulamentação

da internet, os laços sociabilidade nos mais diferentes grupos, as maneiras de

manifestação da corporalidade no ciberespaço.

Como foi colocado na Introdução deste trabalho, o ciberespaço abriu um novo

campo de discussões e debates nas Ciências Sociais, mas os trabalhos dedicados ao

tema, especificamente na Antropologia, ainda são em pequeno número. É inegável que

o ciberespaço se configura como um campo que não pode e nem deve ser

negligenciado, visto que está em relação direta com a realidade presencial,

completando-a e até apresentando avanços, especialmente no que diz respeito à geração

de relações entre sujeitos diversos.

O termo ciberespaço foi criado em 1984 pelo escritor norte-americano William

Gibson, autor do romance Neuromancer 6e. desde então, seu uso foi popularizado e

adotado para especificar o espaço virtual e todas as suas manifestações. Por isso, muitos

autores como Pierre Lévy (2005), insistem em chamar essas manifestações presentes no

espaço virtual de cibercultura, termo que gera muitas controvérsias e debates. O que

Lévy propõe é que a cibercultura cria um universal não totalizável, ou seja, há uma

interconexão generalizada mas que não é mensurável, que é em si mesma, virtual. A

conexão se faz através de uma integração geral, sendo que qualquer pessoa, localizada

em qualquer lugar do mundo tem acesso à mesma linguagem, à mesma escrita (que é

gráfica, textual e até mesmo musical), aos mesmos hipertextos7. Assim,

o ciberespaço se constrói em sistema de sistemas, mas, por esse mesmo fato, é também o sistema do caos. Encarnação máxima da transparência técnica, acolhe, por seu crescimento incontido, todas as opacidades do sentido. Desenha e redesenha várias vezes a figura de um labirinto móvel, em expansão, sem plano possível, universal, um labirinto com o qual o próprio Dédalo não teria sonhado. Essa universalidade desprovida de significado central, esse sistema da desordem, essa transparência labiríntica, chamo-a de “universal sem totalidade”. Constitui a essência paradoxal da cibercultura. (LÉVY, 2005, p. 111)

Quando se fala em internet (World Wide Web- www), a primeira idéia que

ocorre é a de uma grande rede, com alcance mundial e sem fronteiras, cuja expansão

pode ser feita até o infinito ou até onde a mente e a criatividade humanas podem atingir.

Alguns dos instrumentos mais utilizados na internet para comunicação e troca de

informações são os e-mails (correio eletrônico), os sites (endereços virtuais), os grupos

de discussão ou fóruns, os programas de bate-papo ou chat (IRC-Internet Relay Chat),

os programas de relacionamento (como o Orkut e todos os seus similares), os blogs ou

diários virtuais, os fotologs (espécie de diário de fotos), as ferramentas de busca (como

o Google), as homepages (ou páginas pessoais). Para o caso deste trabalho, serão

importantes as informações provenientes de programas de relacionamento, sendo que

uma das questões para observação foram as maneiras como as interfaces- entendidas

como a relação entre o meio virtual propiciado pelo computador e o meio presencial-

foram vivenciadas. Quais foram, então, as performances praticadas? Que mecanismos

6 O romance de Gibson foi a base para a famosa trilogia de filmes Matrix e tem como argumento central o uso das redes digitais, as batalhas por seu controle e o papel dessas redes digitais como fronteiras culturais e tecnológicas. 7 Um hipertexto é uma forma não-linear de apresentar e consultar informações. Isto quer dizer que a informação chega através de vários links, de várias páginas, de forma indireta.

os vários indivíduos mobilizaram para a execução de seus objetivos? E quem são, em

última análise, estes indivíduos, como se identificam e vivenciam esta “vida virtual”?

estas foram algumas das perguntas que nortearam o mapeamento e a observação feitos

nos sites e comunidades já citados.

A internet gera e funciona por meio de redes de relações, que interligam seus

vários usuários. Indo um pouco mais além, percebe-se, no ciberespaço, a criação de

“comunidades” entre pessoas que partilham determinados interesses, preferências,

objetivos, hábitos e valores. De acordo com Bauman (2001), a noção de comunidade

sempre foi importante para a Antropologia e, para ele, passou a ser imprescindível para

entender o atual contexto, visto que esta passou a ser vista como reduto de segurança e

apoio em um mundo de insegurança. O que ele salienta é que o termo comunidade

passou por uma mudança de sentido, perdendo sua conotação territorial e local. A

internet, por exemplo, coloca em contato, em um mesmo espaço e ao mesmo tempo,

comunidades diversificadas, distantes fisicamente e, muitas vezes, antagônicas.

Fala-se muito que um dos principais pontos positivos da internet é acentuar o

rompimento de fronteiras. Mas não seria o próprio agrupamento de pessoas em

comunidades uma prova de que também no ciberespaço são gestados mecanismos de

separação e delimitação de fronteiras? O próprio fundamento do que se chama de

comunidade é a união de indivíduos que partilhem de pelo menos alguma característica

em comum ou mesmo que assumam, em algum momento, uma mesma identificação. A

partir do momento em que uma comunidade se funda pela existência de uma

característica qualquer, ela imediatamente se diferencia de outras comunidades e de

outros agrupamentos.

Quando se fala na comunidade GLS na realidade presencial, é comum o uso do

termo gueto para identificar os espaços e as manifestações homossexuais. A idéia que a

palavra gueto evoca é de um local delimitado, segregado e deixado à margem da

realidade circundante por apresentar determinados comportamentos geralmente

considerados desviantes ou anormais. O que os estudos que enfocam a construção dos

territórios urbanos têm mostrado, no entanto, é que só existe validade em se falar de um

gueto gay em um sentido metafórico (Perlongher, 1987). Do mesmo modo, o conceito

talvez possa ser apropriado para se tratar a realidade virtual. A divisão dos indivíduos

em comunidades poderia ser, em última instância, a criação de vários guetos, de várias

subdivisões dentro de um grupo mais amplo que pode ser denominado de muitos

modos, mas neste trabalho são chamados de GLS. Os próprios gays, lésbicas, bissexuais

e simpatizantes no geral se subdividem dos mais diversos modos, e isto também é um

indício que informa a respeito das construções identitárias presentes e das conseqüentes

performances adotadas para o posicionamento nesse novo e ainda inexplorado espaço.

Assim, e indo na mesma linha de argumentação, as relações estabelecidas entre

os membros das comunidades e na internet em geral baseiam-se na criação de redes

sociais ou redes relacionais. O conceito de rede social não é nenhuma novidade na

Antropologia, e tomo como ponto de partida as questões levantadas por Barnes (1987) e

outros autores da chamada Escola de Manchester, entre eles Gluckman8 e Bott. Esses

teóricos utilizavam o conceito de redes sociais como sendo a descrição das conexões

envolvidas nos processos sociais. Acredito que essa noção continua a ter validade para

os estudos que buscam entender a formação de laços entre diferentes indivíduos na

internet. A partir do momento em que essas redes são traçadas, ficam mais claros quais

são os interesses em jogo e obedecendo a que motivações as pessoas estabelecem

relações. O conceito é eficaz não apenas em termos teóricos, mas também como

metodologia de pesquisa. Com isso quero dizer que além de perceber as redes que ali já

estão e que são percebidas pelos próprios sujeitos da pesquisa como redes, o

pesquisador também pode traçar as suas redes, tentando perceber as possíveis conexões

que não aparecem tão nítidas ou tão evidentes. Não esquecendo, além disso, de que é

pesquisador, mas também internauta, ligado a vários indivíduos e, conseqüentemente,

parte da grande rede, aparentemente infinita, que sustenta o funcionamento da internet

(que traz em seu próprio nome esta idéia: web, net, internet - rede mundial de

computadores).

Trata-se, acima de tudo, de um conceito que permite apreender a dinâmica

interna de um grupo determinado, ou seja, quais são e em que escala ocorrem as

relações entre os vários indivíduos que o compõem. O conjunto das relações que se

estabelecem, o entrecruzamento das várias redes acaba por formar uma malha de

relacionamentos. A criação do espaço virtual se dá, acima de tudo, pelo tipo de redes

relacionais que se desenvolvem. Assim, o território enquanto algo físico e demarcado

por fronteiras fixas deixa de ser um fim em si mesmo e não é mais a referência única

para expressar as relações e como elas se desenvolvem. A relativização do peso do que

se entende por território é importante na medida em que rompe com algumas das noções

8 Esses autores, além de desenvolver o conceito de redes sociais, também lançaram a idéia de snow ball, que pode ser útil para entender de que modo as pessoas estabelecem relações nos vários locais existentes na internet.

tradicionais presentes nos estudos dedicados ao entendimento do ambiente urbano

(sendo que muitos dos conceitos aí utilizados podem ser estendidos ao ciberespaço). O

que ela permite é que se fuja da associação direta, e tantas vezes utilizadas, entre lugar,

estabilidade e identidade. Com isso quero dizer que a identidade não é dada apenas pelo

lugar que o indivíduo ocupa, assim como o pertencimento a um lugar não confere uma

estabilidade identitária total. As identidades são fragmentadas e estão relacionadas a

atos performativos que fazem com que um indivíduo se identifique com um território ou

lugar. Ao fazer parte de uma comunidade, por exemplo, ele tem alguma estabilidade,

mas ela é passível de modificações e, tal como a identidade, fragmentada.

Um internauta possui inúmeras maneiras de se situar no espaço virtual, sendo

que faz escolhas, muda conforme melhor lhe convém e é nesse processo que ele compõe

e negocia variadas faces identitárias. Acima de tudo, podemos dizer, tomando como

base Frangella (2004), que os lugares se criam a partir de disputas identitárias, ou seja,

através de processos de negociação nos quais os sujeitos se adaptam ou modificam a

realidade em que se encontram. Desta afirmação se infere que as identidades são

construídas a partir desses atos de negociação, sendo que é exatamente aí que passam a

ser importantes as performances aplicadas pelos sujeitos. Goofman (1959) apresenta

algumas considerações pontuais para entender e perceber as causas e motivos

envolvidos na execução das variadas performances, e acredito que sua reflexão teórica

se encaixa nos objetivos desse trabalho e também naquilo que foi observado na pesquisa

de campo.

Desse modo, Goofman utiliza o termo performance tomando como base a cena

teatral, a dramaturgia. De maneira geral, o autor tenta entender as diferentes maneiras

como o indivíduo se apresenta na vida cotidiana, isto é, como ele se mostra para os

outros indivíduos que passam, a partir daí, a tecer diferentes tipos de impressões sobre

ele. Sempre que alguém se coloca perante outros indivíduos, o primeiro movimento é o

de ser “vasculhado” em detalhes, algumas vezes inquirido a fim de que estes outros

indivíduos possam formar dele algum tipo de opinião ou imagem. É esse o mecanismo

acionado para a entrada em uma determinada comunidade. O indivíduo só será aceito se

partilhar de alguns conceitos, características, objetivos, valores, etc. comuns aos outros

membros do grupo. Sempre se buscam informações sobre o outro, este com o qual

pretendemos estabelecer ou não algum tipo de relação social. Essa busca envolve a

tentativa de acessar informações a respeito do status social, das atitudes, da

competência, do modo de apresentação do indivíduo. O objetivo não poderia ser mais

claro: conhecer o outro ajuda no estabelecimento da relação e, mais ainda, no

posicionamento a ser adotado quando esses laços se concretizarem.

O processo de conhecimento envolve uma série de expectativas prévias a

respeito de quem é o indivíduo e o que pretende. E, sem dúvida, é um processo

dialético, no qual os dois lados da relação passam a atuar em função de seus objetivos

pessoais, mas também conforme o restante do grupo. Ser aceito significa partilhar um

código e uma série de performances esperadas, que, em última instância, passam a

identificar o indivíduo como parte do grupo. Tudo funciona em uma espécie de “lei da

ação e da reação”: na medida em que pratica uma ação, o indivíduo o faz na esperança

de receber uma resposta dos demais. Nas palavras do próprio Goofman,

the individual will have to act so that he intentionally or unintentionally expresses himself, and the others will have to be impressed in some way by him. (GOOFMAN, 1959, p. 2)

Desta afirmação podemos inferir que tudo se desenvolve a partir do momento em que

um dos lados se expressa com o intuito de impressionar (no sentido de causar uma

impressão) o outro. O movimento expressão-impressão ocorre de ambos os lados, e se

tem eficácia, o objetivo é atingido e uma relação social pode ser estabelecida.

Um ponto importante a ser ressaltado é que no processo descrito acima a parte

realmente visível é muito pequena. Com isto quero dizer que muitas atitudes, crenças,

valores e outras características dos indivíduos só podem ser apreendidas de forma

indireta. Em uma situação social, muito é dito e demonstrado por todos aqueles nela

envolvidos, mas resta ainda uma parte que escapa da demonstração, que permanece

escondida. E isto ocorre devido a uma série de pequenos impedimentos, às vezes

imperceptíveis ao olho, que fazem com o que o indivíduo tenha de se comportar de uma

dada maneira e não de outra. Fazer parte de um grupo, de uma comunidade envolve

uma grande dose de formatação de suas ações a partir do que é esperado como

comportamento daqueles que deles fazem parte. E, por isso, um dos principais

mecanismos utilizados é a inferência, ou seja, a tentativa de entender e observar as

ações do outro de um modo mais amplo, não apenas a partir daquilo que ele declara

verbalmente ou do gestuário que utiliza.

Não se pode esquecer também que as pessoas travam relações visando a alguns

objetivos. Não quero dizer que tudo obedece apenas a interesses dos indivíduos, mas

sim que alguns desejos, em teoria pelo menos, seriam realizados com o estabelecimento

da relação e do pertencimento a um grupo. E é pensando na satisfação desses desejos ou

objetivos que os indivíduos mobilizam uma série de instrumentos que possibilitarão o

processo de expressão-impressão. É necessário que exista, então, o convencimento, uma

espécie de jogo em que informações são passadas e captadas por ambos os lados. Diz-se

que o indivíduo executa performances em sua vida social, isto é, ele tem uma série de

atividades em uma determinada situação social que visam provocar algum tipo de

impressão nos outros indivíduos. Na execução dessa performance é importante até a

existência de algumas características do ambiente, do palco (utilizando os termos

teatrais propostos por Goofman). Isto porque o ambiente é, muitas vezes, fonte de

proteção, sendo que o ideal é que o indivíduo posso encontrar nele uma série de itens

com os quais se identifique. Acredito que essa concepção é de suma importância para

este trabalho, visto que a internet acaba se tornando um reduto de proteção para muitos

homossexuais que vão ali expressar ou adotar algum tipo de comportamento. O

pertencimento não só a um grupo, mas também a um lugar, torna mais fácil o

reconhecimento de um indivíduo por outros. Por isso, a idéia de centrar a pesquisa de

campo nas comunidades do Orkut. Acima de tudo, a partir da mobilização dos

instrumentos que tem em mãos, o indivíduo expressa o seu self , seu ser e, desse modo,

os outros indivíduos e ele próprio podem criar representações sobre esse self e

estabelecerem, conseqüentemente, relações sociais.

Seguindo a mesma linha de análise e refletindo ainda a respeito das

performances, só que especificamente sobre as performances de gênero, são essenciais

as reflexões apresentadas por Judith Butler (2005). A autora se propõe a realizar a

crítica aos estudos feministas e, a partir daí, refletir a respeito das construções

identitárias de gênero. Butler é importante porque promove uma mudança de enfoque

dentro dos estudos de gênero, retomando autores clássicos e discutindo até mesmo o já

estabelecido significado do próprio conceito de gênero. A maior parte de suas reflexões

inserem-se nos debates contemporâneos sobre o feminismo, mas, sem dúvida alguma,

muitas de suas conclusões podem ser estendidas para os estudos que enfocam a

homossexualidade. A pergunta central a que tenta responder é como realizar o

questionamento do sistema epistemológico/ontológico dominante que se baseia na

hierarquia de gêneros e na heterossexualidade compulsória. Em última analise, ela

sustenta a idéia de uma teoria performativa de atos de gênero - teoria esta que romperia

com os conceitos tradicionais de corpo, sexo, gênero e sexualidade, propondo sua re-

significação (tudo isso, como ela mesma diz, de forma subversiva e radical).

A base central de argumentação para chegar a esta teoria performativa de atos

de gênero, que é o que mais interessa aos fins desse trabalho, é o questionamento e a

crítica do conceito de gênero. Fazendo um retrocesso à teoria clássica de gênero, todas

as discussões se iniciam com a proposição de Gayle Rubin, de base marxista, do

chamado sistema sexo/gênero, onde sexo é visto ainda como dado naturalmente e

gênero construído culturalmente. O que Butler e outras reivindicam é que o sexo, e não

apenas o gênero, é culturalmente construído, ou seja, ela não se situa em uma posição

aquém da cultura. Além disso, não se pode pensar gênero como uma categoria

descolada intersecções culturais, sociais e políticas que atuam na construção dos vários

sujeitos mulheres, homens, gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros. A partir dessa

primeira constatação de que categorias identitárias de raça, classe, etnia, sexo e região

têm influência na construção do gênero, Butler toma gênero como a interpretação

múltipla do sexo, como os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado. Acima

de tudo, o gênero é um meio discursivo/cultural através do qual um “sexo natural” se

produz e acaba se estabelecendo como pré-discursivo, como dado incontestável e

anterior à cultura.

Para Butler, o gênero não é um substantivo, mas algo que tem um efeito

substantivo produzido performativamente. Ele não é uma identidade em si, mas atua

como constituinte de uma. Sob a influência de Nietzsche, em A genealogia da moral,

ela acredita que não existe uma identidade de gênero nas expressões de gênero, sendo

que essa identidade se constitui por meio das performances de gênero. Em outras

palavras, não existe um identidade de gênero dada, prévia, mas sim uma construção

identitária contingente, dada pelas performances executadas, as quais estão em relação

direta com outras variáveis, como raça, classe social, entre outras. Do mesmo modo, o

sexo, tomado como verdade absoluta e inquestionável pelas teorias antecedentes, é visto

como uma significação performativamente ordenada (e portanto não “é” pura e

simplesmente), uma significação que, liberta da interioridade e da superfície

naturalizada, pode ocasionar a proliferação parodística e o jogo subversivo dos

significados de gênero. Acredito que as construções de gênero observadas na internet e

especificamente nas comunidades selecionadas para este trabalho inserem-se nesse jogo

subversivo no qual gênero tem inúmeros significados e está atrelado a determinadas

performances, que são exatamente aquilo que tentei perceber. Tentando uma associação

com Goofman, ao perceber esses significados fica mais fácil apreender de que modo

cada indivíduo se posiciona em relação aos outros e quais são os objetivos e escolhas

pretendidos com a atuação de uma maneira ou de outra. Um dos pontos importantes

para isso é tentar perceber quais os discursos adotados, sendo que no caso do

ciberespaço ele é um dos principais instrumentos de transmissão de informações sobre

si (nesse discurso, entra o dito e também o não-dito, inferido a partir do que está ali

escrito e acessível a qualquer usuário do programa).

Em relação aos discursos, Butler, sob influência de Wittig, afirma que todos os

sujeitos são moldados a partir de um discurso que enfatiza a heterossexualidade

presumida e o falocentrismo, sendo que as categorias ditas oprimidas (mulheres,

lésbicas, gays) são oprimidas exatamente porque centram seus discursos no discurso

dominante. Um discurso que se baseia na premissa de que se você não é heterossexual

você não é nada. É como se lésbicas, mulheres e gays não possuíssem voz nesse sistema

e, quando falam, estão agindo performativamente fora do que a ordem espera ou

estabelece. Talvez a internet funcione hoje para os homossexuais, sejam eles homens ou

mulheres, como um reduto onde essa performance discursiva desviante possa se

desenvolver e ser vista ( e esse ser visto facilita o processo de encontrar outros na

mesma situação e que objetivem as mesmas coisas: encontros sexuais, amizade,

relacionamento afetivo, companheiros de festas e afins).

Feitas essas considerações, ainda bastante iniciais, passo à descrição da pesquisa

que realizei na internet, tentando, acima de tudo, relacionar a teoria apresentada com o

arsenal empírico que consegui recolher.

3- Performances de gênero e ciberespaço: o Orkut em cena

Como já disse na Introdução a este trabalho, a pesquisa de campo, ainda em fase

preliminar, foi realizada prioritariamente no Orkut, o programa de relacionamentos mais

popular da internet no momento. Acima de tudo, essa pesquisa serviu como um

laboratório em que pude testar a aplicabilidade de uma metodologia para estudos na

internet e também como uma abertura para a pesquisa mais ampla que resultará em

minha dissertação de mestrado.

Desde o início de meu interesse pelo tema, sabia que deveria rever alguns dos

métodos tradicionais utilizados pela Antropologia nas pesquisas empíricas. Tratar de um

espaço que traz no seu próprio nome a idéia de virtualidade, de separação de uma

realidade física e palpável, exige que algumas de nossas técnicas clássicas de trabalho

sejam repensadas e adaptadas às novas realidades advindas dessa tecnologia. Muitas são

as questões suscitadas no momento de realização de uma etnografia virtual: como tratar

tempo e espaço no ciberespaço (o que se observa em um momento pode não mais estar

ali em um breve período de tempo), como proceder para chegar até os sujeitos que se

pretende estudar (a maioria deles aparece identificado por apelidos e podem dizer o que

melhor lhes convier, não sendo possível dar provas da autenticidade dos relatos), como

separar o que é real do que é virtual, o que é verdade e o que é mentira, o que é

autêntico e o que é fabricado. Falta, nesse caso, a velha máxima da Antropologia em

que o antropólogo vai a campo e vê, presencia as práticas que posteriormente vai

descrever. Esse ver, esse presenciar aparecem de outra maneira, sendo que ele é, agora,

virtual, sem presença física. Virtual este que pode, em algum momento, tornar-se real,

expandir-se para a realidade presencial. Poucas são as referências até o momento de

obras que tratem de metodologias de pesquisa para o ciberespaço, sendo que utilizo

como referência básica Christine Hine.

Para iniciar a descrição de em que consistiu esse meu primeiro esforço de

pesquisa, acredito ser relevante apresentar de modo geral o Orkut, foco central das

observações. O Orkut, como já disse anteriormente, tornou-se o programa de

relacionamentos mais popular da internet, desde o final de 2004. Pode ser definido

como um grande sucesso, especialmente entre os brasileiros, que são hoje cerca de 60%

dos usuários (prova do sucesso é que o programa, originalmente em inglês, ganhou

versão em português). De acordo com os próprios criadores em mantenedores9 do site

no ar, o Orkut é uma comunidade online que conecta pessoas através de uma rede de

amigos confiáveis. Proporcionamos um ponto de encontro online com um ambiente de

confraternização, onde é possível fazer novos amigos e conhecer pessoas que têm os

mesmos interesses. Participe do Orkut para aumentar o diâmetro do seu círculo

social.(Orkut- www.orkut.com ). Essa é a descrição que abre a página do programa e

nela estão claros quais são os propósitos pretendidos: criar uma grande comunidade

virtual de pessoas que se identificam por algum motivo e que querem aumentar seus

contatos sociais. A realidade virtual é vista, então, como um veículo que proporciona

novos contatos e pode aumentar aqueles surgidos na própria realidade presencial.

Para alguém fazer parte do Orkut é necessário que seja convidado por um outro

membro. Feito isso, é só realizar o cadastro e preencher o seu profile, ou perfil. Esse

9 O Orkut é hoje mantido pelo Google, a maior ferramenta de busca da internet. O usuário pode optar por criar um e-mail também pertencente ao Google- o Gmail- o que contribui para popularizar ainda mais a logomarca.

profile contém informações de todo tipo (dados gerais, profissionais e sentimentais),

onde o usuário pode se descrever, colocar sua idade, data de aniversário, orientação

sexual, se fuma ou não, se bebe ou não, com quem mora, se tem filhos, paixões, filmes,

músicas, esportes, MSN, e-mail, além de um álbum de fotos. Depois de preencher o

profile (o usuário pode escolher que informações vai colocar e se vai deixar totalmente

público seu perfil ou não), os usuários começam a adicionar amigos e a entrar nas

comunidades de seu interesse. Quando adiciona alguém como amigo, a pessoa

adicionada pode recusar o convite para essa amizade ou aceitá-lo, sendo que assim

passa a ser gerada sua rede social no Orkut. A grande sensação do Orkut foi a

possibilidade de deixar mensagens públicas para os amigos, os chamados scraps. Isto

porque tornou-se hábito entre os usuários entrar nos scrapbooks das pessoas que

interessavam e descobrir o que se passava na vida delas. A rede de amigos se tornou

uma rede de fofocas e divulgação da intimidade, e os usuários chegaram a criar

comunidades do tipo “Orkut acaba com relacionamentos”, “Eu apago meus scraps”,

entre outras. Hoje, para evitar situações do tipo, o programa conta com uma ferramenta

que permite visualizar quem são as pessoas que entram em sua página. Tornou-se um

pouco mais difícil observar a vida alheia.

As comunidades funcionam de acordo com um princípio simples: são criadas

por um usuário e as pessoas que dela fazem parte podem participar do fórum de

discussões, fórum este que, de acordo com a decisão do usuário moderador, é anônimo

ou identificado. Pode-se dizer que existe comunidade para tudo no Orkut, sendo que

elas são classificadas de acordo com seu conteúdo: música; esportes; gays, lésbicas e bi;

hobbies; artes; escolas e educação; etc. Para esta pesquisa, adotei a seguinte estratégia:

selecionei a opção Gays, Lésbicas e Bi, não apenas em português, e apareceram listadas

todas as comunidades classificadas nesta temática, ao todo mais de 1000. A primeira

reação foi de desespero devido à enorme quantidade, mas resolvi usar como critério de

filtragem a quantidade de membros das comunidades e o enfoque que elas davam para

suas descrições, procurando aquelas que possuíam maior conotação sexual e que

ficaram conhecidas entre muitos usuários como o “submundo do Orkut”. Este

submundo é formado pelos usuários que apresentam profiles com nítido interesse

sexual, com fotos que mostram seus corpos em partes e, inclusive, seus órgãos sexuais

(em ereção ou não). Em geral, esses profiles são conhecidos na rede como fake10, falsos,

10 O atual boato que corre pelas mensagens do Orkut é de que esses profiles fake estão sendo deletados pela administração do programa, mas em minha pesquisa comprovei que isso não é uma

visto que são pessoas com uma segunda identidade no Orkut, sendo que foi criada a

comunidade “Eu tenho uma segunda identidade no Orkut” para agrupar essas pessoas.

Acabei centrando minha observação em duas comunidades que me chamaram a

atenção logo na descrição que apresentavam: “Sem camisa no Orkut = VIADO” e

“Curto homens, não viadinhos”. Acredito que a escolha dessas comunidades foi

bastante influenciada pelo fato de que meu interesse nesse trabalho esteve ligado às

performances e construções identitárias que ocorrem em comunidades classificadas

como GLS no Orkut. As duas comunidades escolhidas diferem em um ponto

fundamental, mas que fornece a possibilidade de comparação. A primeira delas- “Sem

camisa no Orkut = VIADO” - tem como objetivo central apontar supostos gays

encontrados aleatoriamente pelos membros nos vários espaços do Orkut e se baseia no

princípio de que a falta de camisa nas fotos colocadas evidencia a performance, a

postura de gênero dos usuários indicados. A segunda comunidade - “Curto homens, não

viadinhos” - possui um enfoque diferente: é uma comunidade criada por um homem que

assumidamente se relaciona com homens, mas que, assim como os outros membros, faz

uma distinção clara entre aqueles que são relacionáveis sexualmente - os homens - e os

não relacionáveis - chamados pejorativamente de “viadinhos”. Por mais que,

aparentemente, as duas comunidades não possuam pontos em comum, é possível

relacionar a teoria aqui apresentada com essa realidade empírica observada e refletir

acerca das performances adotadas na web, sobre suas várias facetas e possibilidades,

adequadas a cada contexto e a cada situação particular. Faço a ressalva de que, devido

ao pouco tempo disponível para a realização da pesquisa empírica, centrei minhas

análises e descrições apenas na observação detalhada das comunidades, dos profiles de

seus criadores e de alguns membros mais ativos nos fóruns de discussão, tentando

perceber as performances que adotam, os interesses envolvidos neste processo e as

construções identitárias derivadas. Isso me possibilitou elencar as possibilidades de

aproximação dessas pessoas em um momento posterior, através do próprio Orkut ou

mesmo das ferramentas de bate-papo em tempo real (IRC), como o messenger (MSN).

Assim, a comunidade “Sem camisa no Orkut = VIADO” tem como objetivo

denunciar os supostos perfis gays do Orkut, com base no porte ou não de camisa,

especialmente na foto central do profile, pelo usuário denunciado. Fundada por um informação verdadeira. Há alguns meses, existe uma tentativa de eliminar os profiles e comunidades com conteúdo sexual explícito, bem como usuários e comunidades que incitem o preconceito, a discriminação e a homofobia, mas devido à grande quantidade de membros isso fica praticamente impossível e o Orkut underground permanece.

usuário que utiliza o nome de Carlos Gardel, provavelmente mais um dos inúmeros

fakes, a descrição da comunidade não deixa muitas dúvidas a respeito daquilo a que se

propõe:

Você também acha que os caras que usam fotinhas sem camisa, fazendo pose, no perfil do Orkut devem SAIR DO ARMÁRIO e assumir a boiolagem? Então você é muito bem vindo nessa comunidade! Não existem regras de boa conduta aqui, fale o que você pensa e toque o terror! Cutuca a Coruja! Chama a taca! Xamisca ae, porra!!!

Fica clara nessa descrição a postura adotada pelos membros

da comunidade, de uma intolerância extremada daqueles que

por uma característica apresentada nas fotos passa a ser

considerado homossexual, chamado preconceituosamente de

viado. Um ponto que chamou minha atenção durante a pesquisa

é que a foto colocada como identificador da comunidade é

mudada de tempos em tempos pelo moderador (o já citado

Carlos Gardel), de acordo com as indicações dos membros. No

momento da pesquisa, o escolhido era um rapaz identificado

como Erlon - Biba Sado! e o moderador assim o descrevia:

Erlon... com um nome desses, fica difícil zoar, né? Mas eu consigo! A moninha aí adora malhar e diz que morre malhando! Imagino como foi que o Pedrão encontrou esse lixo... Comentem com seus amigos, sua família e vizinhos! E parabenizem o felizardo à vontade!!!

Logo após essa descrição, foi colocado o link para o profile do rapaz escolhido. Nesse

caso, o profile havia sido excluído pelo próprio usuário. Sobre o criador da comunidade,

ele se apresenta como Carlos Gardel e é nitidamente um homofóbico escondido sob um

profile falso, sendo muito provável que tenha uma outra identidade, esta sim oficial, no

Orkut. Alguns indícios me levaram a essa conclusão: a criação de uma comunidade de

cunho preconceituoso e que busca denegrir a imagem de outras pessoas através da

acusação de gays; o fato de ele não possuir nenhum amigo em sua lista, o que pode

indicar que o único objetivo de sua performance como Carlos Gardel é de criar

situações polêmicas e homofóbicas na comunidade em questão; todos os seus scraps

são de pessoas da comunidade pedindo que ele coloque as mais variadas pessoas como

capa da comunidade, com a indicação do link para seus álbuns de fotografias.

Voltando à comunidade em si, o fórum de discussões não é muito diverso e um

mesmo assunto domina as discussões: quem são os candidatos a viados de acordo com

os seus cerca de 21 mil membros, em geral homens, que ostentam em seus perfis a

denominação heterossexual e que abominam claramente qualquer referência à

homossexualidade. E, como homens autênticos, nunca colocam fotos sem camisa ou

que queiram evidenciar seu corpo de alguma forma. Homem que é homem não se

mostra dessa maneira e não faz pose. Nos vários tópicos de discussão do fórum, pude

entrar em contato com os profiles indicados como gays e me chamou a atenção o fato de

que a maioria deles é de homens que também se assumem como heterossexuais. Aqui se

confirma mais uma vez o determinismo simples que rege a comunidade: não importa o

modo como o indivíduo se autonomeia, mas sim uma determinada prática que o coloca

e o caracteriza como homossexual. Sua performance é determinada e vista pelos outros

usuários pura e simplesmente a partir aquilo que mostra em seu perfil. Se está sem

camisa é gay, e não há brechas para qualquer fuga disso. Por mais que atuem

performativamente como heterossexuais, para os outros aparecem com um performance

totalmente diversa e condenável. Essa comunidade representa, em muitos aspectos, uma

inversão total de categorias, sendo que foi criado, inclusive, o termo boila building para

caracterizar esses candidatos a gays expostos ali. Transcrevo um trecho de umas das

discussões11 em que essa categoria, que identifico como performática, aparece:

Anderson nao e’ assim um simples viado. êle é um boiola-building!!! Vcs sabem o que significa ser um boiola-building? Não é pouca merda não. É muita! Tem até Boiola-building que manda tirá a torneirinha cirurgicamente pro tanquinho ficá bem + definido, sem imperfeiçôes e sem penduricalhos inuteis. Tem Boiola-building ate que mija pelo cu. Milagres da ciência. Mas só um boiola-building legítimo tem grana pra isso. (Lug)

Como se pode inferir do depoimento transcrito acima, é criada um categoria totalmente

nova que associa a homossexualidade às modificações corporais, desde aquelas sem

intrusão cirúrgica até as que recorrem a esse tipo de procedimento. São gays em

construção, que querem se expor e mostrar seus dotes em um programa de alcance

incalculável como o Orkut. Tachados dessa forma, não adianta protestarem, já que são

11 A discussão se iniciou quando um dos rapazes que foi chamada do viado protestou contra a existência da comunidade, acusando seus membros de terem inveja daqueles que possuíam um corpo malhado. Em todas as postagens posteriores ele continuou sendo chamado de homossexual e foi incluído entre os boiola building.

reconhecidos publicamente como homossexuais, como machões, como bombados gays

que tomam potenay (Malvado), como morde-fronhas.

Em relação à segunda comunidade, possui uma temática de discussões distinta:

foi criada por um homem que se relaciona afetiva e sexualmente com outros homens,

mas que estabelece uma clara distinção (que não é nova em seu conteúdo) entre os

homens e os viados. Em teoria, todos aqueles que se interessam por homens são

chamados de homossexuais, mas sempre existiu uma categorização interna,

normalmente relacionada à posição adotada nas relações sexuais e à maneira como essas

pessoas se apresentavam. Os mais efeminados são as bichas, bibas, viados, boiolas. Os

mais másculos os gays, os entendidos. No caso da comunidade, essa distinção fica bem

clara: ali estão agrupados homens que querem outros homens tão masculinos quanto

eles. E esse desejo fica evidente em seus profiles, tanto nas fotos como nas descrições

que apresentam. As fotos seguem um padrão: apresentam partes dos corpos dessas

pessoas, geralmente a bunda ou o pênis ereto. Nos álbuns, a mesma lógica: nunca

mostrar o rosto e centrar tudo no corpo em si, em seus dotes. O interesse sexual é

evidente: são homens que demonstram claramente sua escolha e estão em busca de

possíveis parceiros. Tudo é válido, desde que não sejam efeminados. A descrição da

comunidade deixa isso claro:

É uma comunidade para Caras que curtem homens de verdade (machos), que não curtem afeminados, moças e viadinhos. Pois se gostasse de afeminados ficaria com MULHERES de verdade.

A foto que simboliza a comunidade segue a mesma idéia: um homem másculo, sem

rosto, vestido com uma cueca branca que deixa à mostra o volume de seus órgãos

sexuais (é interessante notar que a cueca branca mostrando o pênis ereto aparece ali

como fetiche coletivo).

Sobre o criador da comunidade, ele simboliza a maioria dos que ali estão como

membros: ele declara ser carioca, 27 anos, médico, praticante de uma série de atividades

físicas e bissexual, com clara preferência por homens. Seus amigos (757 no momento

do acesso) são em sua maioria homens, que se enquadram na descrição do que ele

procura: são machões, com corpos malhados e considerados bonitos. No seu álbum,

quatro fotos em que ele mostra seu corpo na praia (de sunga apenas) e uma foto, com o

intuito de ser provocante, deitado na cama só de cueca. A performance que ele é adota

tem o objetivo de fazer com que ele atraia outros homens com os quais possa se

relacionar de alguma maneira. E tudo em seu profile é montado para que esse objetivo

se concretize. Essa é a imagem e a performance que ele resolveu adotar publicamente e

é assim que ele passa a ser reconhecido pelos demais. O caso do moderador é

interessante porque ele chega a colocar uma foto em que seu rosto aparece e não é um

dos vários profiles falsos. A maioria dos cerca de 10 mil membros da comunidade

parece utilizar perfis falsos, as segundas identidades, visto que seu interesse ali é

considerado desviante e não faz parte da parte mainstream do Orkut. Permanecem,

então, no submundo, na espécie de gueto criado dentro do programa para abarcar as

performances de gênero alternativas e discriminadas.

É claro que o que apresento aqui são apenas conclusões preliminares. A pesquisa

agora passará a ser desenvolvida de modo mais sistemático, mas algumas dessas idéias

sem dúvida permanecem. Perceber de que maneira essas performances se processam é

um empreendimento que se revelou de grande valia para o que se pretende para a

dissertação. Fica mais fácil trabalhar programas como o Orkut pensando nesses termos,

sendo que o que fica desse trabalho é a idéia da internet como uma grande vitrine em

que as mais variadas performances se desenvolvem. O grande mistério agora é tentar

entender e identificar essas performances, criando um quadro que permita entender um

pouco melhor as relações sociais geradas via internet e como elas podem, de alguma

maneira, expandir-se para a realidade presencial.

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http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=9903435843104299335

http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=3962129363119995680

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