Análise da Complexidade de Texturas em Imagens Urbanas Utilizando Dimensão Fractal
A percepção em experimentação: uma dimensão política da experiência com a arte
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Instituto de Psicologia
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
GUSTAVO CRUZ FERRAZ
A percepção em experimentação: uma dimensão
política da experiência com a arte
Rio de Janeiro
2010
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Gustavo Cruz Ferraz
A percepção em experimentação: uma dimensão política da
experiência com a arte
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Psicologia
Orientador(a): Prof ª Drª Virgínia Kastrup
Rio de Janeiro
2010
iii
Gustavo Cruz Ferraz
A percepção em experimentação: uma dimensão política da
experiência com a arte
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Psicologia
Rio de Janeiro, 29 de março de 2010 _________________________________________________
Prof ª Drª Virgínia Kastrup - orientadora Universidade Federal do Rio de Janeiro
_________________________________________________
Prof ª Drª Márcia Oliveira Moraes Universidade Federal Fluminense
_________________________________________________
Prof ª Drª Liliana da Escóssia Melo Universidade Federal de Sergipe
___________________________________________________
Prof. Dr. André do Eirado Universidade Federal Fluminense
_________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro 2010
iv
F381 Ferraz, Gustavo Cruz.
A percepção em experimentação: uma dimensão política da experiência com a arte / Gustavo Cruz Ferraz. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.
172f.
Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia / Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2010. Orientador: Virgínia Kastrup.
1. Arte - Psicologia. 2. Percepção. 3.Experiência Estética. 4. Política.
I. Kastrup, Virgínia. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia.
CDD: 701.15
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AGRADECIMENTOS
à Virgínia Kastrup, por ter ao longo destes anos de estudo compartilhado comigo sua leveza, que só os grandes de espírito possuem. a meus pais e minha irmã, pelo acolhimento infinitamente generoso. à Arthur, Amândio, Bianca, Clarice, Danilo, Fernanda, Maria, Mariana, Laura e Ystatille, que aceitaram lançar-se sobre estas linhas, fazendo com que essas pudessem por sua vez se lançar para além de onde eu as poderia ter levado sozinho. a todos aqueles amigos, cujo afeto traz a marca da perenidade que é a presença na ausência. à Lú, pelo companheirismo. à Mariana e Camilo, pelos vinhos, virtudes e uma vida em Paris. aos professores Eric Lecerf e Plínio Prado Jr, pela atenciosa acolhida em Paris. aos companheiros de grupo de pesquisa, em especial Beatriz Sancovisch, por compartilhar não só conceitos mas também angústias e alegrias a Augusto Mello, Guilherme Monsanto e Dominique Grandi pela prontidão afetuosa na ajuda da difícil arte de traduzir.
aos amigos feitos na França, mas cuja amizade não mais conhece fronteiras. à Ana, pelo suporte sempre atencioso e carinhoso Ao CNPq e à Capes, pelo apoio financeiro que tornou possível a realização deste trabalho.
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RESUMO A percepção em experimentação: uma dimensão política da experiência com a arte.
O objetivo deste trabalho é investigar e sublinhar a dimensão política que a percepção estética – mobilizada e cultivada na experiência com a arte – abarca, situando-nos na fronteira entre arte, psicologia e política. Nosso fio condutor, o qual se configura como ponto de convergência entre esses três campos, é a percepção. Analisamos, privilegiadamente, a questão do encontro com a obra, a fim de escapar das armadilhas nas quais esbarram as abordagens psicológicas tradicionais da arte, centradas na discussão acerca de determinantes subjetivos como motivações pessoais, projeções de desejos e outras variáveis emocionais, sejam do artista, sejam do espectador. Trata-se de destacar a dimensão política que está sempre em jogo na percepção estética, para além dos efeitos políticos de uma arte engajada.
Primeiramente, examinamos algumas contribuições da psicologia e da filosofia sobre aspectos referentes à percepção, à arte e à vida, buscando delinear a descrição da experiência com a arte e explorar a singularidade do funcionamento cognitivo implicada em tal experiência, assim como o alcance de seus efeitos. Partimos de uma análise do gestaltismo, dando relevo à noção de campo e apontando os limites deste movimento da psicologia no que diz respeito ao conceito de equilíbrio e ao modelo da redução de tensão. Rudolf Arnheim e Gilbert Simondon caracterizam-se como referências centrais nesta etapa de nosso percurso. Visando marcar o entendimento da arte como captura de forças, como experimentação, e articular este entendimento à análise do gestaltismo, trazemos considerações de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Procurando pensar as relações entre arte e vida por meio do conceito de experiência, recorremos ao pensamento de John Dewey e indicamos suas possíveis aproximações com aquilo que Henri Bergson desenvolve acerca dos vínculos entre arte e percepção.
Numa segunda parte, dedicada às temáticas da política e da estética, outro plano de análise é contemplado. Seguimos o que elabora Jacques Rancière quanto às relações entre arte, política e estética, ressaltando o conceito de partilha do sensível e a distinção entre a ordem da política e a ordem da polícia. Essa apreciação serve-nos de base para o debate acerca de uma política da arte e para a reflexão sobre a crítica desse autor a um ‘modelo pedagógico’ de política da arte. Finalmente, estabelecemos ligações entre as colocações de Rancière e a inflexão dada por François Zourabichvili à questão da ‘reviravolta estética’. As noções de suspensão e de dissenso são aí trabalhadas, uma vez que ganham considerável importância neste contexto político da arte. Tais noções, ao permitirem pensar o rompimento com a ordem do sensível enquanto evidência, possibilitam que se compreenda a percepção como regime de experimentação.
Palavras chave: Arte, percepção, experiência estética, política
vii
ABSTRACT
Perception in experimentation: a political dimension of the experience with Art. The target of this essay is to investigate and highlight the political dimension that the
aesthetic perception – mobilized and cultivated in the experience with Art – embraces, placing ourselves in the border between art, psychology and politics. Our guideline, which configures itself as a convergent point among these three fields, is perception. We focus our analysis on the question of the encounter with the work of art, aiming to escape from the traps in which the traditional psychological approaches of art fall, centring themselves on the discussion about the subjective determinants such as personal motivation, projection of desire and other emotional variables, being these from the artist or the spectator. Our target is to detach the political dimension, that always plays a role in the aesthetical perception, and displace it beyond the political effects from an art compromised with politics.
Firstly, we exam some contributions from psychology and philosophy about aspects concerning perception, art and life, aiming at delineating a description of experience with art and exploring the singularity of the cognitive functioning implied in such experience, as well as the reach of its effects. The starting point is an analysis of the Gestaltism, emphasizing the notion of field and pointing out at the limits of this psychological movement in what concerns the concept of equilibrium and the model of tension reduction. Rudolf Arnheim and Gilbert Simondon characterize themselves as central references at this stage of our work. Aiming at reinforcing the understanding of art as a capture of forces, such as experimentation, and articulating this understanding to the analysis of Gestaltism, we bring herewith considerations from Gilles Deleuze and Félix Guattari. In an effort to think the relations between art and life by means of the concept of experience, we call upon John Dewey’s thoughts and indicate possible approximations amid these and what Henri Bergson develops about the bonds between art and perception.
The second part is dedicated to political and aesthetical themes, where another analysis plan is contemplated. We follow what Jacques Rancière elaborates towards the relations between art, politics and aesthetic, highlighting the concept of partitions of the sensible and the distinction between the order of politics and the order of the police. This appreciation gave us a base for debating on an art’s policy and the reflexion about this author’s criticism about a ‘pedagogical model’ of an arts’ politics. Finally, we establish relations between Rancière statements and the inflexion given by François Zourabichvili to the question of ‘the Aesthetic Turn’. Here the notions suspension and dissensus are developed, once they gain considerable importance in this political context of art. Such notions, while allowing the thinking on the rupture between the order of the sensible as evidence, they also make possible for perception to be understood as an experimentation regime. Key words: Art, perception, aesthetical experience, politics
viii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
PARTE I: PERCEPÇÃO, ARTE E VIDA
8
1. A coexistência de formas e forças 9
1.1 O gestaltismo em sua dupla face
9
1.1.1 Caracteres fisionômicos e expressão 13 1.1.2. Complefixificando o equilíbrio: as leituras de Rudolf Arnheim e Gilbert Simondon
22
1.2 Percepção e experimentação: arte como captura de forças segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari
45
2. Arte e vida: experiência estética, conversão da atenção e a possibilidade de uma abertura
63
2.1. Arte como experiência em John Dewey 63
2.1.1. A dimensão receptiva do ato de criação 72 2.1.2 A dimensão ativa do ato de recepção
75
2.2. Arte e conversão da atenção segundo Henri Bergson
82
2.3 O regime da experiência estética: interesse x desinteresse
89
PARTE II: POLÍTICA E ESTÉTICA
93
1. Jacques Rancière: a partilha do sensível e as condições de um debate acerca de uma política da arte
94
1.1 Os três grandes regimes ocidentais de identificação da arte: regime ético das imagens, regime representativo ou poético das artes, e regime estético
98
1.2 A crítica a uma política da arte fundada no modelo pedagógico 106
2. A Reviravolta estética e a suspensão como política da arte
117
2.1 Uma nova relação com o sensível: arte, filosofia e resistência 118
2.2 Dissenso e política: rompimento do sensível com a ordem da evidência
124
CONCLUSÃO 151
REFERÊNCIAS
162
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“Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível”
FOUCAULT,1996 INTRODUÇÃO
Gostaríamos de começar o presente trabalho expondo precisamente o ponto em que
pretendemos situar nossa análise. O ponto a partir do qual o conjunto de autores e questões
estudadas, assim como os objetivos que nos levaram a estudá-los, ganhasse seu sentido, sua
justificação e sua potência. Mas após meses de insônia e páginas e mais páginas
desperdiçadas, pudemos duramente constatar que isto seria começar pelo final. Começar pelo
trabalho já pronto. E nenhum trabalho que valha a pena pode começar já pronto. Caso
contrário, qual seria então a necessidade de fazê-lo? Assim, cabe apenas nesta Introdução
seguir os caminhos que as idéias trilharam em nós, com seus pontos de bifurcação, de impasse
e de abertura. Algo como uma música, que tem suas variações dinâmicas, suas modulações,
seus movimentos de criação e resolução de tensão. E durante este percurso tomar o cuidado
de não deixar perdido o leitor. Ao menos não mais do que nós mesmos durante este trajeto.
Procuraremos nos colocar na fronteira entre arte, psicologia e política. A linha sobre a
qual caminharemos e que marcará a convergência destes três campos é a percepção. O
objetivo de nosso trabalho é então mostrar como a percepção estética, enquanto um regime
cognitivo singular mobilizado e cultivado na experiência com a arte, possui uma dimensão
política. Na verdade, traçar esta experiência de seu interior é traçar ao mesmo tempo seu
sentido político, na medida em que o contato com a obra lança a percepção em um regime de
experimentação. Desta forma, entrar em uma sala escura de cinema, parar diante de pinturas
onde figuram reis e rainhas de séculos passados ou ainda apenas naturezas mortas,
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acompanhar por horas movimentos musicais, reservar tardes para leituras, etc., não significa
de forma alguma se esquivar do mundo, mas sim abrir-se à possibilidade de renovar os laços
com este.
A nosso ver, esta forma de colocação do problema que persegue a linha que liga arte e
política tendo como fio condutor a questão da percepção nos possibilita escapar de duas
armadilhas.
Do ponto de vista das relações entre arte e política, e aqui seguimos uma indicação de
Jacques Rancière (2005b,2008a, 2008b, 2008c) assim como uma inspiração presente em
Deleuze e Guattari (DELEUZE, 1976; DELEUZE e GUATTARI, 1975, 1980), evitamos
situar a questão nos limites do problema da ‘arte engajada’, onde se trabalha a partir de uma
lógica representativa e de antecipação dos efeitos, o que parece constituir uma distorção e
mesmo um empobrecimento da potência da arte e de seu alcance político.
Em segundo lugar, do ponto de vista do entrecruzamento entre arte e psicologia, nossa
forma de colocação do problema permite que ultrapassemos uma dicotomia segundo a qual
falar da obra de arte implicaria abrir mão de sua dimensão significativa e afetiva. Esta questão
se articula ainda a uma outra: a que coloca esta dimensão significativa ou afetiva sob o signo
de um sujeito, seja ele o artista ou o espectador. Segundo este pensamento dicotômico tudo se
passa como se tivéssemos sempre uma escolha a realizar: ou falamos do aspecto formal e
objetivo da obra, abrindo mão do plano da experiência; ou nos restringimos aos significados e
efeitos da obra, o que nos remeteria às intenções ou motivações do artista e às expectativas e
preferências do espectador. Na verdade não seria exagerado afirmar que grande parte dos
estudos psicológicos voltados para a arte se limitou a este segundo aspecto, referido aos
determinantes subjetivos. Isto se faz presente desde os trabalhos situados sob a égide da
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estética experimental inicialmente desenvolvida por G. T. Fechner, como os de Charles Lalo
(1908) e Robert Francès (1979), passando ainda pelas propostas mais amplas de Denis
Huisman (1961), René Huyghe (1961, 1993) e J-P. Weber (1965), até aqueles trabalhos de
cunho mais psicanalítico, dentre os quais os mais célebres são os de Freud (1976a, 1976b),
mas que tem nos trabalhos de Charles Mauron (1968, 1969), Ernest Jones (1970) e Otto Rank
(1989) ainda outros exemplos.
O caminho a ser realizado aqui, busca seguir uma outra via.Não se trata de renunciar
seja à objetividade da obra, sua potência própria, seja à sua relação com o plano da
experiência, contanto que se vislumbre o que está em jogo quando falamos em objetividade e
experiência.
Situando-nos numa linha de fronteira, e não trabalhando com a distinção entre as
diversas modalidades artísticas, não temos a pretensão de esgotar seja o tema da percepção,
seja sua inserção geral no campo da política, seja no da arte. Nossa aposta é a possibilidade de
abordarmos a dimensão política da experiência com a arte, fazendo justiça à singularidade
desta experiência, ou seja, conferindo-lhe seu matiz e alcance próprios.
Buscamos realizar este trajeto em dois momentos. Na parte I trabalharemos, a partir de
algumas contribuições da psicologia e da filosofia, questões referentes à percepção, arte e
vida. O propósito é seguirmos mais de perto a descrição da experiência com a arte,
explorando a singularidade do funcionamento cognitivo que nela está implicada, assim como
o alcance de seus efeitos. Como afirma Rudolf Arnheim "temos negligenciado o dom de
compreender as coisas através de nossos sentidos. O conceito está divorciado do que se
percebe, e o pensamento se move entre abstrações” (ARNHEIM, 1991, p.1). A discussão em
torno da percepção estética se revela importante uma vez que caminha no sentido de reativar
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uma certa dimensão da experiência, de fazer reviver uma potência de certa forma renegada da
percepção, fazendo-a encontrar suas próprias forças e limites. Podemos dizer que se em uma
primeira instância os materiais trabalhados pela arte são cores, formas e sons, há também uma
dimensão suplementar do trabalho artístico na qual a matéria trabalhada é a própria
percepção.
No primeiro item fazemos uma análise do gestaltismo, pelo fato de tratar-se de um
movimento na psicologia que operou importantes transformações nos estudos da percepção. A
noção de campo é aqui de grande importância pois permite pensar a percepção enquanto um
conjunto de relações dinâmicas no qual há correlação e reciprocidade entre parte e todo. Uma
outra razão que motivou nosso interesse foi o fato do gestaltismo ser um sistema psicológico e
uma teoria da percepção que sempre atraiu a atenção dos teóricos da arte e dos próprios
artistas. A razão parece consistir na possibilidade que abre para que se possa falar da
composição e da percepção da obra sem recair em um discurso subjetivista, que enfatiza tanto
as motivações do artista quanto as projeções do espectador. Em nossa investigação,
procuramos analisar sua contribuição sem, no entanto, deixar de atentar para seus possíveis
limites, principalmente no que concerne ao conceito de equilíbrio e ao modelo da redução de
tensão. As leituras de Rudolf Arnheim e Gilbet Simondon serão aqui de grande importância
uma vez que possibilitam ir mais longe do que a versão mais tradicional e reconhecida do
gestaltismo. Na sequência, trazemos a contribuição de Deleuze e Guattari para o
entendimento da arte como captura de forças, explorando algumas proximidades com as
questões acima indicadas, principalmente no que concerne às contribuições de Gilbert
Simondon, e buscando levá-las adiante para a compreensão do justo alcance que assume a arte
enquanto experimentação.
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No segundo item da primeira parte buscamos trilhar um caminho que se volta para as
relações entre arte e vida, a partir das contribuições de John Dewey e Henri Bergson. Na
proposta de John Dewey ganha especial importância o conceito de experiência, por meio do
qual é pensada a articulação entre arte e vida. O que está em jogo é o caráter processual e
rítmico presente “nos processos normais do viver” (DEWEY, 2005, p.9) e que se faz presente
na arte. Falar em experiência implica falar na relação ativa e aberta dos seres vivos com o
mundo, em um movimento rítmico que envolve ação e recepção, acumulação e expansão, e no
qual há uma mobilização e uma reorganização das forças. Por isso Dewey afirma ser a
experiência vitalidade potencializada. O que Dewey busca também reforçar, e que
valorizamos aqui, é o fato de que aquilo que um artista cria são experiências (DEWEY, 2005),
já que a forma artística comporta em si essa dinâmica de variação interna e o jogo constante
entre ação e recepção. Será importante neste aspecto sua análise crítica da distinção entre o
artístico (relacionado tradicionalmente à ação) e o estético (relacionado à recepção).
Em um segundo momento nos voltamos para as considerações de Henri Bergson
acerca das relações entre arte e percepção. É certo que não há em Bergson propriamente uma
teoria da arte, pois esta não se configura como preocupação central de nenhuma de suas
grandes obras e não possui uma delimitação conceitual própria. No entanto, acompanhando o
percurso bergsoniano pode-se perceber como a arte possui uma posição privilegiada no
conjunto de sua filosofia. Em diversos momentos de sua obra o trabalho filosófico é
aproximado daquele da arte (esta chega a ser colocada como uma “metafísica figurada”,
BERGSON, 2006a), assim como a extensão das faculdades de perceber, caracterizada como
“conversão da atenção”, é aproximada do método filosófico bergsoniano por excelência, a
intuição (BERGSON, 2006b). Embora estas questões que ligam arte e filosofia, e mais
especificamente a conversão da atenção e a intuição, sejam de extrema importância, não as
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seguiremos aqui, dado os limites e propósitos do presente trabalho. Nosso interesse se volta
para os desdobramentos da colocação bergsoniana de que a arte permite uma ‘extensão das
faculdades de perceber’ (idem), ao mobilizar uma percepção ‘desinteressada’, ou seja, não
mais pautada pelas necessidades adaptativas da vida prática. É neste contexto que comparece
a questão da conversão da atenção, que buscaremos explorar a partir da aproximação com a
noção de reconhecimento atento, ressaltando sua dimensão criadora. Examinaremos a partir
daí os possíveis pontos de cruzamento com as questões trazidas por Dewey.
Na segunda parte de nosso trabalho, Política e estética, trabalharemos sobre um outro
plano de análise. Seguiremos basicamente, ainda que não exclusivamente, o trabalho de
Jacques Rancière e sua discussão acerca das relações entre arte, política e estética. Neste
sentido, é de extrema importância o conceito de partilha do sensível, que remete ao “sistema
de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes
que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto ao
mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas” (RANCIÈRE, 2005a, p. 15). A
estética deixa aqui de ser pensada como uma disciplina autônoma voltada para as questões da
arte, mas constitui a dimensão de base de toda política. E a política por sua vez, não é pensada
no plano institucional de leis ou de luta pelo poder, mas sim como processo dissensual de
consituição deste regime de partilha. Será importante, neste contexto, sua distinção entre a
ordem da política e a ordem da polícia.
É a partir destes laços que Rancière estabelecerá as bases para o debate acerca de uma
política da arte. Inicialmente seguiremos sua apresentação dos diferentes modos históricos de
inserção das práticas artísticas nestes regimes, para em seguida, analisar sua crítica ao que ele
chama de um ‘modelo pedagógico’ de política da arte. Este modelo possui uma dupla face:
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por um lado, a pressuposição de que o espectador, enquanto tal, é aquele que se encontra no
plano da aparência e da alienação, pois ver é o contrário de saber e de agir; por outro lado, a
idéia de que realizar ou colocar em funcionamento uma política da arte seria tranformar este
quadro, e para isso dever-se-ia ‘arrancar’ o espectador desta condição, seja por meio de uma
tomada de consciência, seja por meio de uma ação direta.Tem-se aqui uma lógica de
antecipação dos efeitos, que liga as intenções de um artista àquilo que percebe o espectador. A
crítica deste modelo visa a desconstruir a lógica que o sustenta, e aí se colocam importantes
questões acerca das relações com o sensível e seus desdobramentos políticos. Como diz
Rancière, não se trata de retirar o espectador de sua condição de quem percebe, mas de
colocar a percepção sob um novo regime, desfazendo a lógica da antecipação dos efeitos.
No último item analisaremos como se cruzam as colocações de Rancière e a inflexão
dada por François Zourabichvili à questão da ‘reviravolta estética’, que marca um momento
histórico a partir do qual se abre uma nova via de relação com o plano da sensibilidade e que
permite o estabelecimento de um novo regime de articulação entre a arte, a filosofia e a
questão da resistência, entendida aqui como sendo “da ordem da dissidência imprevisível, e
não da oposição frontal” (ZOURABICHVILI, 2007, p. 105). É neste sentido que ganham
importância política as noções de suspensão e de dissenso, a serem, por fim, analisadas.
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1. A coexistência de formas e forças
1.1 O gestaltismo em sua dupla face
O gestaltismo foi um dos grandes empreendimentos sistemáticos na psicologia. Sua
contribuição maior se deu no campo dos estudos da percepção e grande parte de suas teses, que
tem nos trabalhos de Max Wertheimer, Kurt Koffka e Wolfgang Köhler sua expressão mais
reconhecida, exerceu uma influência que extravasou o campo das investigações psicológicas.
Tornaram-se também relevantes no campo da arte, como o comprovam os trabalhos teóricos de
Rudolf Arnheim, nos EUA e os do crítico de arte Mário Pedrosa e da artista Fayga Ostrower, no
Brasil. Cabe destacar também a explícita influência em movimentos artísticos como a poesia
concretista1 brasileira, por exemplo.
Grande parte da importância assumida pela teoria gestaltista no campo da arte, e
porque não dizer também na psicologia, se deve a uma profunda transformação operada por
ela no estatuto da percepção. Esta não é mais considerada o terreno da impressão passiva de
dados elementares que seriam organizados subjetivamente. A profunda cisão entre o caos
sensível e a ordem superior intelectual, advinda de uma longa tradição filosófica e herdada
pela psicologia clássica, ganha novos contornos. O plano da percepção já possui ele próprio
uma ordem. A sensação, como um dado elementar bruto e cujas propriedades derivariam
exclusivamente do estímulo físico local correspondente, não é um momento inicial da
percepção (tal como postulava a psicologia clássica), mas uma ficção construída a posteriori.
Percebemos mais do que aquilo que se imprime na retina de nossos olhos (ou de forma mais
geral, em nossas terminações periféricas). Percebemos relações, direções, movimentos,
tensões. Todos estes componentes ‘invisíveis’ que fazem parte de nossa experiência eram
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 A psicologia da gestalt é nominalmente citada no ‘Plano-piloto da poesia concreta’, de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, 1958).
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classicamente atribuídos a uma atividade subjetiva superior e exterior ao domínio da
percepção. Será então a partir das teses gestaltistas que estas fronteiras serão redesenhadas, de
forma que nem todo invisível seja da ordem do inteligível. Segundo suas teses, nossa
experiência perceptiva primeira não é um caos, mas uma totalidade organizada, cuja estrutura
mínima é a distinção figura/fundo. Uma unidade se destaca de um fundo e sua organização
não deriva, fundamentalmente, de nossos conhecimentos prévios. Desta forma não é preciso
saber o que é um livro, por exemplo, para que se possa ver que ‘algo’ se destaca enquanto
unidade no campo visual. A segregação das unidades perceptivas é anterior ao
reconhecimento das formas e se coloca como condição do próprio reconhecimento. Uma série
de experimentos realizados com figuras simples como pontos, linhas e figuras geométricas, e
tendo muitas vezes animais como sujeitos experimentais, visavam mostrar que não é
necessário postular qualquer tipo de recurso à experiência passada ou atividade intelectual
superior para que se possa perceber unidades segregadas e suas relações.
Foi a partir dos estudos de Christian von Ehrenfels sobre as gestaltqualitaten presentes
na percepção da melodia que se abriu o caminho para que este novo campo de problemas
fosse explorado,!Fica claro a partir deste momento que o aspecto qualitativo do percebido está
mais ligado ao grau de articulação interna dos padrões de estímulo e às condições de
atualização do campo perceptivo do que às propriedades dos estímulos locais. O exemplo da
melodia é muito representativo pois se realizarmos uma transposição de tom, ou seja,
alterarmos todos os seus elementos, ainda assim esta será reconhecida como a mesma
melodia. Notamos assim que há um grau de organização intrínseco ao conjunto e que não se
reduz à soma das propriedades de seus elementos. Daí o conceito de estrutura, forma, ou no
termo alemão que dá nome à esta escola, Gestalt. Nas palavras de Köhler: “na língua alemã
[...] o substantivo “Gestalt” tem dois significados: além do sentido de forma ou feitio como
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atributo das coisas, tem a significação de uma unidade concreta per se” (KÖHLER, 1968, p.
104). Esta unidade concreta é portanto uma totalidade que possui qualidades que extrapolam
aquelas dos elementos e cuja organização é intrínseca.
Alguns comentadores do gestaltismo, como Paul Guillaume (1966), Jean Piaget
(1983), bem como grande parte dos manuais de teorias e sistemas psicológicos (WOLMAN,
1968; MARX e HILLIX, 1978) colocam a tônica na oposição dos gestaltistas às teses do
elementarismo associacionista. E de fato, isto é de grande importância no movimento
gestaltista. Contudo, uma ênfase excessiva e unilateral dada à questão da forma pode levar ao
esquecimento de certas sutilezas das teses gestaltistas. O objetivo aqui não é realizar uma
análise minuciosa do gestaltismo, mas se seguimos mais de perto algumas de suas trilhas, isto
se deve à seguinte hipótese: o gestaltismo porta uma complexidade maior, que é deixada de
lado por grande parte destes comentadores, no sentido em que a preocupação com a dimensão
de forma é indissociável do reconhecimento da existência de um plano dinâmico, ou dizendo
de outra maneira, de um campo de forças que participa da atividade perceptiva. Não se trata
de afirmar que a dimensão dinâmica ou o campo de forças esteja ausente destas análises, mas
sim que não recebem seu justo estatuto. Trazer à tona estas linhas menores, levando-as
adiante e operando desvios onde for necessário, será de grande importância na compreensão
da forma artística e da potência afetiva presente na experiência com a arte.
A sutileza, muitas vezes esquecida, da tese gestaltista desenvolvida por Wertheimer,
Köhler e Koffka após os trabalhos iniciais de Ehrenfels, é que a forma, ou estrutura, é
contemporânea aos seus elementos. Não deriva, como mostramos acima, da adição das
propriedades dos elementos, mas também, por outro lado, não se impõe a estes como uma
forma pré-estabelecida. Gilbert Simondon (1989, 2006) afirma que esta é a grande novidade
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introduzida pela Teoria da Gestalt. Num curso ministrado sobre o tema da percepção (2006),
Simondon ressalta que contrariamente ao que aprendemos habitualmente, a teoria gestaltista
da percepção não deve ser entendida como molar nem como molecular, já que o todo e as
partes estão em constante inter-relação e se definem mutuamente. “A Psicologia da Gestalt
renova a noção de forma e faz em certa medida a síntese da forma arquetípica platônica e da
forma hilemórfica aristotélica graças à uma noção explicativa e exemplar, tirada das ciências
da natureza: o campo2” (SIMONDON, 1989, p. 36). A noção de campo desempenha aqui
papel fundamental pois é a partir dela que se pode pensar ‘uma reciprocidade de status
ontológicos e de modalidades operatórias entre o todo e o elemento’ (idem, p. 44). Simondon
chega a afirmar que ‘a definição do modo de interação característica do campo constitui uma
verdadeira descoberta conceitual’ (idem). Um campo elétrico, eletromagnético ou
gravitacional, consiste em um sistema distribuído de linhas de força que constituem uma
configuração potencialmente ativa, ou seja, uma distribuição de energia. Em um campo, um
elemento possui dois status e cumpre duas funções: na primeira, enquanto recebe a influência
do campo, ele é submetido às suas forças, é um certo ponto do gradiente pelo qual pode-se
representar a repartição do campo; na segunda, ele intervém no campo como ativo e criador,
pois modifica as linhas de força deste e a repartição dos gradientes (SIMONDON, 1989).
Assim, podemos dizer que uma vez que um corpo é colocado em um campo, não só este
corpo sofrerá determinadas afecções e terá seu comportamento modificado, como também
produzirá uma mudança no campo, já que em sua vizinhança a configuração será afetada de
modo recíproco3.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!2 Tradução nossa. Todas as traduções das obras não publicadas no Brasil, assim como daquelas que comparecem no original em nossas referências, são de nossa responsabilidade. 3 É interessante ver que o poeta Paul Valéry (2007) apontava em seu célebre texto sobre Leonardo da Vinci como a idéia de ‘ação à distância’ presente nos trabalhos científicos de Faraday sobre campos elétricos apresentam uma forte ressonância com a imaginação artística e os métodos de composição de Da Vinci.
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Ao colocar o problema da percepção como um fenômeno de campo os Gestaltistas
abriram espaço para uma teoria altamente dinâmica da percepção onde se fazem presentes
noções como densidade, tensão, limite e força, que permitem pensar a experiência perceptiva
para além da impressão passiva de estímulos e na qual mesmo os espaços vazios são
investidos de poder de ação. O espaço da percepção, ou seja, o espaço apreendido concreta e
perceptivamente, se distingue do espaço da geometria euclidiana, um meio homogêneo e
sempre idêntico a si mesmo, pois comporta diferenciações internas, regiões e direções
privilegiadas, densidades diversas. O espaço percebido é assim, para usar os termos de Koffka
(s/d), anisotrópico, em contraposição ao espaço isotrópico da geometria. Fayga Ostrower,
artista de renome internacional e cujo trabalho no campo da arte se baseia amplamente na
teses gestaltistas, dá uma descrição de como isto opera na pintura (e podemos dizer na
percepção de forma geral)-
Ao se introduzir no plano pictórico alguma marca visual, digamos, uma forma mais ou menos triangular, imediatamente se estabelece uma relação ‘figura-fundo’. A figura triangular não apenas será percebida como elemento ‘ativo’, contrastando com o fundo ‘passivo’, como também a expansão espacial deixa de ser uniforme, diferenciando-se fisicamente ao se tornar mais densa e corpórea na área ocupada pelo triângulo. Mas as diferenças não param por aí. Em torno da figura triangular propaga-se um campo de tensões espaciais, que emanam desta figura e por ela também são delimitadas. Este campo é virtual e, portanto, invisível, mas ele é atuante, pois qualquer outra marca que for colocada em sua área será imediatamente afetada pelas tensões existentes.
Dependendo da magnitude do contraste visual da figura triangular e da nova marca, da proximidade entre as duas, bem como de sua posição no plano pictórico, se estabeleceriam certas relações formais que nos fazem ver uma nova configuração, abrangendo ambas, com novas tensões espaciais e novos limites. Isto por sua vez altera novamente as características do espaço” (OSTROWER, 1998, p. 94).!!!
1.1.1. Caracteres fisionômicos e expressão
No que diz respeito às propriedades dinâmicas presentes na configuração do campo
perceptivo cabe destacar também aquilo que Koffka (s/d) denominou caracteres fisionômicos.
O mundo percebido não é composto apenas de formas geométricas, cores, sons, texturas, etc.,
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pois comporta uma infinidade de propriedades afetivas e expressivas que não podem ser
descritas apenas nestes termos. Assim, vemos a ‘melancolia’ de um salgueiro ou o porte
‘vigoroso’ de um carvalho, diferentes tons de vermelho podem assumir um caráter ‘quente’
ou ‘insinuante’, um som pode ser ‘gordo’ ou ‘ameaçador’. O caso da música aqui é bem
ilustrativo como o ressaltam Kretch e Crutchfield (1963):
“Na percepção da música, como um exemplo por excelência, essas propriedades expressivas e afetivas são irresistíveis. Uma das coisas mais imediatas, que percebemos numa peça musical, é se ela é ‘plangente’, ‘alegre’, ‘melancólica’ ou ‘poderosa’, ou uma combinação complexa destas qualidades, e de numerosas outras” (KRETCH e CRUTCHFIELD, 1963, p. 31).
Podemos dizer que se Kretch e Crutchfield colocam o caso da música como um exemplo por
excelência, isto se deve não somente ao fato ressaltado por eles de que nela as propriedades
expressivas são preeminentes. Mas também porque estas propriedades comparecem como um
elemento importante a ser trabalhado nos mais variados momentos e planos do processo de
composição musical (indo para além da questão da melodia), como o comprovam o emprego
dos modos ‘maior’ ou ‘menor’, o andamento escolhido, a dinâmica de execução e até mesmo
os timbres dos instrumentos utilizados. É célebre a colocação de Paul Valéry (2007) quanto à
comoção produzida por um simples timbre de violoncelo.
Apesar do termo ‘fisionômico’ derivar de ‘fisionomia’, utilizado para tratar das
qualidades expressivas presentes no rosto humano, Koffka (s/d) faz questão de deixar claro
que estas qualidades pertencem à todo e qualquer objeto. E não se trata aqui de uma
‘antropomorfização’. Trata-se sim de ressaltar que este caráter expressivo é um dos dados
mais proeminentes na situação perceptiva e que não tem sua manifestação resumida ao mundo
humano. Na verdade, esta é uma das grandes novidades trazidas pela teoria gestaltista, e que
será de particular importância no campo da arte. Contra as teorias tradicionais que vêem no
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fenômeno da expressão seja a necessidade da presença de um espírito a ser expresso, seja a
projeção de um estado subjetivo daquele que vê, os gestaltistas defendem que a
expressividade é inerente ao objeto expressivo (talvez fosse até mais preciso afirmar que a
expressividade é inerente à situação de campo). !
Neste sentido são diversos os exemplos tirados da percepção animal, dentre os quais o
clássico experimento no qual Köhler teria utilizado uma máscara com grandes olhos
arredondados e boca proeminente para alimentar seus chimpanzés. Ao entrar na gaiola,
nenhum dos animais foi capaz de se aproximar, fugindo em debandada, dado o caráter
assustador da máscara.
Esta forte presença da dimensão expressiva na percepção animal apontada pelos
Gestaltistas, e que diz respeito à dimensão dinâmica da percepção enquanto atividade vital,
encontrará ressonância também nos trabalhos de Simondon (2006) quando este mostra que
“as formas significantes do mundo animal são geralmente posturas, antes que formas abstratas e isoladas; a ameaça, o abandono no decorrer de um combate, são manifestados por um conjunto configuracional particular à cada espécie colocando geralmente em jogo partes definidas do corpo [...]. O animal utiliza por vezes particularidades temporárias de seu organismo, como se existisse uma co-adaptação entre o comportamento e o aspecto exterior” (SIMONDON, 2006, p. 206).
Koffka dá uma amplidão ainda maior a estas considerações ao afirmar que
“Muitos psicólogos foram levados à crença, que considero bem fundada, de que, em estágios mais primitivos do desenvolvimento humano, nas crianças e povos primitivos, esses caracteres fisionômicos desempenharam um papel muito maior do que em nosso mundo comportamental (Scheler, Werner). O mundo comportamental primitivo é [...] um mundo fisionômico, o que significa que a organização do campo é tal que promove os caracteres fisionômicos à custa daquelas propriedades que consideramos constituírem características predominantes” (KOFFKA, s/d, p. 371). !
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Vê-se que é privilegiada aqui uma dimensão do fenômeno perceptivo que coloca em
jogo algo de todo diferente da mera apreensão, por parte de um sujeito, dos atributos sensíveis
de um objeto. O que o exame dos caracteres fisionômicos traz à tona é o primado das relações
dinâmicas, ou estados de tensão como o diz Koffka, que se manifestam nas situações de
campo. Koffka faz questão de marcar que deixa em aberto a explicação quanto à origem dos
caracteres fisionômicos. No entanto, ressalta ser notável que estes são tanto mais
proeminentes quanto menor for a distinção do campo em termos de sujeito-objeto. “Quanto
mais unitário for o campo total composto pelo Ego e o meio, mais este último será dotado de
caracteres fisionômicos. A falta de separação significa uma ampla interação fisionômica”.
(KOFFKA, s/d, p. 372). E como ele próprio afirma: “a separação entre o Ego e o seu meio
aumenta com o progresso da civilização” (idem).4 Daí a importância dada à percepção animal
e aos chamados ‘estágios mais primitivos do desenvolvimento humano’. Vemos que não se
trata de afirmar que os caracteres fisionômicos independem da relação sujeito-objeto, mas que
estes apontam para um tipo de relação afetivo-expressiva que é anterior a sua completa
distinção. Caminha-se portanto na direção contrária a uma certa visão antropomórfica e
subjetivista, onde o modo de percepção do homem adulto, civilizado é tomado como centro
de referência. Não há aqui qualquer juízo de valor negativo no uso do termo ‘primitivo’, pois
o que Koffka mostra é exatamente como o privilégio excessivo dado ao pensamento
conceitual-abstrato, que situa a percepção apenas como conhecimento objetivo incipiente, nos
priva de grande parte da riqueza e do dinamismo presentes no mundo.
“Nossa preocupação com o uso prático e as propriedades científicas classificáveis, privou nosso mundo de muitos desses caracteres. Um cadáver, para a pessoa comum, tem um caráter muito forte de temerosa repulsa, mas não para um estudante de Medicina, que dissecou dúzias de cadáveres. Por outro lado, se pudermos abandonar nossa atitude prática ou científica, apercebemo-nos de um número cada vez maior destas características. Entre nós, os poetas e artistas, são os que mais estão
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4 Por isso Koffka aponta ser pouco adequada a utilização do conceito de ‘caracteres exigentes’ de Kurt Lewin na apreciação destes fenômenos. Cf. Koffka (s/d, p. 370-371)
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livres dos anseios de eficiência. E, na verdade, o mundo é para eles mais rico de tais caracteres do que para nós.” (KOFFKA, s/d, p. 370)
E completa afirmando como para um artista do porte de Van Gogh, por exemplo, mesmo uma
simples cadeira ‘parece conter todo o pathos do mundo’(idem).
A importância destas questões para a arte é acentuada pelo crítico Mário Pedrosa, que
em sua tese de 1949 Da natureza afetiva da forma, propõe a superação da antítese
subjetividade versus objetividade precisamente por meio desta discussão acerca dos caracteres
fisionômicos. Pedrosa afirma que ‘o fenômeno artístico consiste, no fundo, em ver tudo
fisionômicamente’ (PEDROSA, 1964, p. 74). Trata-se de possibilitar um exercício da visão
em que esta reencontra o mundo em sua expressividade própria. Dispara-se um duplo
movimento no qual o olhar humano despoja-se de suas bagagens reflexivas para reencontrar
seus desvarios e afetos inumanos, assim como as coisas sensíveis se libertam dos grilhões do
silêncio que lhes foram impostos.
A poesia de Francis Ponge nos parece um excelente exemplo deste duplo movimento.
Na verdade este é o ponto central de seu projeto e de seu método. Como ele mesmo afirma, o
próprio da poesia “é alimentar o espírito do homem, fazendo-o desembocar no cosmo. Basta
rebaixar nossa pretensão de dominar a natureza e elevar a nossa pretensão de fazer
fisicamente parte dela para que a reconciliação tenha lugar” (PONGE, 1997, p. 73). Ponge é
conhecido como o ‘poeta dos objetos’5, e se formos levados apenas pelos títulos de seus
poemas (o engradado, o cigarro, a vela, para citar alguns) talvez pudéssemos acreditar nisso.
Mas se nos aproximarmos um pouco mais de seu trabalho, veremos que há muito mais em
jogo. Segundo Ponge os poetas “são os embaixadores do mundo mudo. Enquanto tais,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!5 Cf. Leda Tenório da Motta (2000).
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balbuciam, murmuram, afundam na noite do logos, até que, enfim, se encontrem no nível das
raízes, onde se confundem as coisas e as formulações.” (idem, 74). O poeta deve realizar um
longo trabalho sobre si, sobre sua atenção para deixar-se ver, para deixar-se invadir pelas
coisas, abrir-se à sua ‘vida secreta’. E fazer do poema, ele próprio, uma coisa. Fazê-lo
alcançar a realidade em seu mundo próprio. Trata-se de abrir as palavras às suas três
dimensões: visual, auditiva e ‘talvez a terceira seja algo assim como a sua significação”
(idem, p. 139).
Pode soar estranha a afirmação de que uma coisa tenha vida, e ainda mais secreta, mas o
que Ponge nos faz ver é que as coisas!!estão em nosso campo de visão, nos desviamos delas ao
andar, as levantamos, as buscamos, mais precisamente as manipulamos, mas ainda assim lhes
somos quase completamente insensíveis já que é “constantemente como meio, meio termo de
homem para homem, que as coisas são consideradas, nunca por elas mesmas” (PONGE, 1997,
p. 135). As coisas nos rodeiam, mas continuam sempre ‘lá fora’. Como disse Ponge em uma
conferência em Stuttgart,
“Nós estamos aqui, fechados nesta sala. É uma coisa concreta. É verdade. Somos homens, mulheres, vocês estão me ouvindo, eu estou falando. Mas as coisas continuam lá fora. Tudo está funcionando. A Terra, o sistema, é preciso pôr essa idéia na cabeça, tudo está funcionando, tudo em andamento, o mundo gira e não somente as plantas crescem, lenta mas seguramente, mas as pedras aguardam para explodir ou virar areia. Aqui também, os objetos estão vivendo. Há objetos por todo lado, estamos cercados de testemunhas mudas, mudas enquanto que nós... Em todo caso, essa realidade, não só do funcionamento (seria quase tranquilizador) mas da existência, provavelmente tão dramática quanto a nossa, dos mínimos objetos, - vocês entendem -, quem cuida disso6?” (PONGE, 1997, p. 133).
É o artista que vela por esta vida secreta das coisas, pela eloquência dessa ‘enfiada de
coisas mudas, que não podem se exprimir, senão por suas poses, suas maneiras de ser, as
formas a que estão constrangidas, que são sua danação, como nós temos a nossa” (PONGE,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!6 Grifos nossos.
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1997, p. 134). O artista então toma o partido das coisas7. Pois “há pessoas que passam,
vivem, têm razão, mas não são violentamente atingidas em sua sensibilidade pelo que
acontece, pelo que existe” (idem, p. 133).
Vemos aqui a força sutil da empreitada de Ponge. Em um primeiro momento poder-se-
ia tomar suas colocações como místicas. Mas trata-se precisamente do contrário. As coisas
não são humanizadas, é o homem que se depara com tudo aquilo que há de inumano em si e
no mundo. Tomar o partido das coisas não é botar palavras na boca de objetos, mas pelo
contrário, deixar que eles falem por meio da sua. Há de se deixar ver para que uma nova fala
se produza. Como diz Sartre (2005) em um brilhante ensaio devotado ao poeta, as coisas
‘o têm habitado por longos anos, povoam-no, revestem o fundo de sua memória [...]; bem antes que tivesse tomado o partido de escrevê-las, elas já o perfumavam com suas significações secretas; e seu esforço atual é muito mais o de pescar no fundo de si mesmo esses monstros fervilhantes e floridos e restituí-los do que o de fixar suas qualidades após escrupulosas observações” (SARTRE, 2005, p. 232).
Não há uma observação descritiva, pois o objeto não ‘lhe aparece, como para Kant,
como um pólo x, suporte de qualidades sensíveis” (op. cit., p. 256). Ponge não vê as coisas de
fora, de longe. Exercita uma outra modalidade de visão que ao invés de instaurar uma
separação sujeito-objeto, faz o movimento contrário. O artista se deixa invadir pelo inumano.
Na direção do que apontavam Koffka e Pedrosa, trata-se de reativar este plano em que a
percepção é intimamente ligada aos afetos, pois perceber deixa de ser fixar qualidades para se
tornar ponto de abertura onde suas próprias condições de funcionamento são moventes. “Toda
felicidade do contemplador está na sua recusa de considerar como um mal a invasão de sua
personalidade pelas coisas” (PONGE apud SARTRE, 2005, p. 245). E aí um outro universo
se descortina. Vê-se que as coisas são complexos, possuem modos de comportamento, se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!7 Este é o título de uma de suas obras publicadas no Brasil.
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agenciam com outras coisas em torno de si, afetam e são afetadas. É isto, por exemplo, o que
está em jogo no poema Os prazeres da porta!"
Os reis não tocam nas portas.
Não conhecem esta ventura: fazer avançar docemente ou com rudeza um desses grandes painéis familiares, voltar-se em sua direção para recolocá-la no lugar, - ter nos braços uma porta.
... A ventura de empunhar no ventre pelo nó de porcelana um desses altos obstáculos de um cômodo; o corpo-a-corpo rápido pelo qual por um instante o passo se detém, o olho se abre e o corpo inteiro se acomoda ao seu novo aposento.
Com a mão amiga a retém ainda, antes de reempurrá-la decididamente e encerrar-se, - o que o estalido da mola potente, mas bem azeitada, lhe assegura agradavelmente. (PONGE, 2000, p. 73)
Esse exercício da sensibilidade, ou como diz o próprio Ponge em sintonia com uma
formulação bergsoniana, esta conversão da atenção colocada em jogo pela poesia e pela arte
de maneira geral, não levam a qualquer apologia de fuga do mundo ou renúncia à ação, mas
implicam um esforço por manter constantemente vivo o pólo perceptivo. Como marca Sartre,
longe de suspender todo comércio com o mundo, o exercício da sensibilidade proposto por
Ponge supõe, ao contrário, inúmeros empreendimentos que devem tão somente satisfazer a
exigência de não serem utilitários. Ponge nos indica, por exemplo, o que é preciso para
manifestar as qualidades singulares de uma lavadora:
Não basta tê-la contemplado muitas vezes, sentado numa cadeira./ É preciso – vacilando – tê-la suspendido do chão, repleta de sua carga de tecidos imundos, num único esforço, para levá-la à fornalha – onde a devemos arrastar de um certo modo para em seguida assentá-la no tampo do braseiro./ É preciso ter atiçado sob ela as brasas para progressivamente comovê-la; frequentemente apalpado suas paredes mornas ou escaldantes; depois escutado o profundo frêmito interior, e as várias vezes desde então levantado a tampa para verificar a tensão dos jatos e a regularidade da rega./ É preciso tê-la enfim, toda fervente, ainda abraçado novamente para repô-la ao chão./ Talvez nesse momento a tenhamos descoberto. (PONGE, apud SARTRE, 2005, p. 247).
Vê-se que não há aqui nenhuma manipulação de um objeto por parte de um sujeito,
pois esta manipulação envolveria uma meta, um sistema de referência que guiaria o olhar
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privilegiando certos detalhes em detrimento de outros. O problema da utilidade é o quinhão de
cegueira que impõe. Decerto que Ponge realiza estas ações no contexto de alguma tarefa
cotidiana, mas esta torna-se quase incipiente diante da abertura ao plano geral da experiência
com que Ponge parte para ela (o que nos leva a supor inclusive a possibilidade do prejuízo de
sua realização).
Indo ainda mais longe nos efeitos de um tal exercício pode-se ver como, para Ponge, o
empreedimento do artista, mais precisamente o do poeta, se torna revolucionário: o exercício
sensível que nos abre às coisas produz uma transformação que arrasta em si a linguagem. E aí,
toda uma ordem social se quebra. Segundo o poeta, a! conversão da atenção nos abre ao
mundo e fissura as palavras e idéias em nós cristalizadas. Como ele mesmo diz, “nosso
primeiro motivo foi sem dúvida uma aversão a isso que somos obrigados a pensar e a dizer”
(PONGE apud SARTRE, 2005, p. 234). E seguindo ainda com suas palavras:
“Esses atropelos de caminhões e de carros, esses bairros que não alojam mais ninguém, mas apenas mercadorias, ou os dossiês das companhias que as transportam [,] esses governos de especuladores e de comerciantes, tudo isso ainda passaria se não nos obrigassem a tomar parte. Infelizmente, para cúmulo do horror, no interior de nós mesmos fala a mesma ordem sórdida porque não temos à nossa disposição outras palavras nem outras grandes palavras (ou frases, isto é, outras idéias) que não aquelas que um uso diário nesse mundo grosseiro vem prostituindo há uma eternidade.” (idem, p. 234-235)
O poeta não dispõe das palavras e idéias, mas é disposto e deposto por elas a partir do
exercício sensível que as movimenta e que impõe a criação. O poeta não é o fundamento da
criação, algo que o poeta Mário Quintana (1976) também expõe no poema Instrumento:
Impossível fazer um poema
Neste momento.
Não, minha filha, eu não sou a música
- sou o instrumento.
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Sou, talvez, dessas máscaras ocas
Num arruinado momento:
Empresto palavras loucas
À voz dispersa do vento...
Por isso Sartre pode dizer acerca de Ponge e do alcance que este visava na poesia e na
arte em geral: “resta que essa tentativa de conquistar terras virgens para as nossas
sensibilidades se apresenta a seus olhos como altamente moral” (SARTRE, 2005, p. 249).
1.1.2 Complexificando o equilíbrio: as leituras de Rudolf Arnheim e Gilbert Simondon
Note-se que a aproximação de tais questões ao universo teórico do Gestaltismo nos
leva muito longe das leituras mais comuns às quais nos referimos anteriormente, onde são as
noções de forma e equilíbrio que concentram todas as atenções. Rudolf Arnheim, um dos
grandes teóricos da psicologia da arte da segunda metade do século XX e cujo trabalho foi
estreitamente ligado ao gestaltismo, afirma que uma tal leitura decorre de um longo processo
de simplificação das teses gestaltistas. No texto The two faces of Gestalt psychology (1986)
defende que uma grande distância separa os trabalhos dos pioneiros da psicologia da Gestalt
da apresentação realizada pelos comentadores e pesquisadores mais recentes. No processo
histórico de assimilação e transmissão de seus postulados e princípios, pontos importantes das
pesquisas foram sendo obscurecidos, de forma que grande parte dos estudiosos perdeu de
vista seu sentido de novidade e o alcance de suas formulações. Isto produziu uma lacuna que,
segundo sua avaliação, gera uma sensação de estranheza quando aqueles que foram formados
pelos fundadores desta escola se deparam com certos comentários simplificadores que
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reduzem o gestaltismo a uma teoria da forma. Um dos pontos constantemente negligenciados
diz respeito exatamente ao caráter dinâmico presente na teoria.
Segundo Arnheim, a ênfase excessiva dada pelas gerações subseqüentes aos aspectos
organizacionais e de auto-regulação da estrutura da Gestalt, princípios de combinação e
segregação de formas, em detrimento da preocupação com a complexa dinâmica da
organização em situações de campo, talvez tenha sido facilitada pelo fato de que, em um
primeiro momento, os próprios teóricos da Gestalt tiveram que concentrar seus esforços nesta
direção,!Havia uma grande preocupação nos trabalhos que datam do início do século XX em
buscar, por um lado, construir uma teoria psicológica da percepção que fizesse justiça à
experiência perceptiva tal como ela se dá, e que, por outro lado, se afirmasse como
estritamente científica. As leis da percepção deveriam estar, portanto, em estreita
continuidade com as leis da física e da fisiologia. Daí a importância de encontrar princípios
explicativos que dessem conta da ordem percebida sem que fosse necessário supor quaisquer
atividades reguladoras superiores. Nas palavras de Koffka:
“assim, aceitamos a ordem como uma característica real, mas não precisamos de qualquer agente especial para produzi-la, pois a ordem é uma consequência da organização e a organização o resultado de forças naturais. Desta maneira, nossa discussão tornou manifesto como a natureza produz ordem” (KOFFKA, s/d, p. 186).
O conceito de isomorfismo desempenha aqui um importante papel, pois é a partir dele
que é pensada a articulação com os processos de campo de ordem física e também fisiológica
(sendo esta intermediária entre o mundo físico e o psicológico). Esta articulação é da ordem
de uma correpondência estrutural. A objetividade da percepção residiria exatamente no rigor
desta equivalência isomórfica entre a ordem percebida e a ordem física. O exemplo da auto-
distribuição de cargas elétricas em corpos condutores isolados, é frequentemente utilizado
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para demonstrar processos físicos de auto-organização. Nestes processos é a tendência ao
equilíbrio que rege a auto-organização, como postula o princípio geral de Le Châteler: “se
uma alteração se produz num dos fatores que determinam uma condição de equilíbrio, o
equilíbrio modifica-se de maneira tal que tende a anular o efeito dessa alteração”
(GUILLAUME, 1966, p. 26). Assim, o sistema está em equilíbrio quando sua energia
potencial é miníma, ou seja, quando suas forças compensam-se mutuamente de forma que
nenhuma transformação ulterior seja possível e o estado final seja estável. A contrapartida
psicológica do princípio de Le Châtelier é a chamada Lei da Boa Forma, expressa pela
formulação: “a forma será tão boa quanto permitam as condições atuais” (KÖHLER, 1968,
KOFFKA, s/d). Vemos aqui como o campo perceptivo, assim como os processos físicos de
auto-organização, é estruturado a partir de sua tendência ao equilíbrio, ou seja, pela tendência
de que a configuração resultante seja a mais estável de acordo com as condições dadas. A
configuração do campo percebido, ou seja, a constituição de figura e fundo, a segregação de
unidades perceptivas e suas respectivas localizações, enfim, todo o conjunto de articulações
que delimitam grupos, subgrupos e suas inter-relações, respondem a um processo de
equilibração que tende a alcançar um estado cujo grau de tensão é mínimo.
Vemos assim como se abre caminho para algo que é recorrente nas análises acerca do
Gestaltismo: não só as idéias de campo e equilíbrio são tomadas como sendo acopladas de
modo unívoco, como também se passa muito rapidamente da formulação de que o campo
perceptivo é uma totalidade estruturada, para a afirmação de que percebemos formas simples
e estáveis. Dessa maneira, reduz-se a complexidade e a riqueza de problemas trazidos pelas
teses gestaltistas apenas à questão das leis de auto-organização e da estabilidade das formas.
Neste tipo de leitura homogeneizante, é diminuída a importância da compreensão da
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percepção como um fenômeno de campo, tornando obscuro, ou mais ainda, dispensável, o
caráter dinâmico da teoria gestaltista.
Um dos mais importantes comentadores do Gestaltismo na França, Paul Guillaume,
parece seguir este caminho quando afirma:
“Estudamos estados estáticos e processos estacionários nos quais o equilíbrio final, ou o regime regular, realizam-se, a partir das condições iniciais, por mudanças dinâmicas, muitas vezes rápidas, às vezes quase instantâneas, das quais nada dissemos. Porém, é importante que não tenhamos tido necessidade de estudá-los em si mesmos para determinar seu resultado. Seja qual for o modo de abordagem, o ponto escolhido e, por conseguinte, o curso particular do processo dinâmico, o resultado final é o mesmo8” (GUILLAUME, 1966, p. 25).
E ainda:
“Pode-se, pois, dizer que no conflito entre as formas possíveis, o agrupamento, ou a disjunção, fazem-se no sentido da realização de uma forma privilegiada. As formas privilegiadas são regulares, simples, simétricas9. A forma que é percebida é a melhor possível.” (idem, p. 43).
Nota-se como todos os aspectos e transformações dinâmicas da experiência perceptiva
são relegadas a segundo plano, já que não só se privilegia a forma final alcançada, como
também se sabe de antemão que todas estas transformações convergem em um sentido único,
que é o da forma regular e simples.
As colocações de Jean Piaget (1979, 1983), ainda que por outras vias, também
caminham no sentido de uma leitura simplificadora do gestaltismo. No texto O que subsiste
da teoria da Gestalt (1983) Piaget ressalta que os princípios de totalidade e equilíbrio são
duas das maiores contribuições da Psicologia da Gestalt ao estudo da percepção e podem ser
tomadas como noções ‘definitivamente adquiridas’. No entanto seria necessário, segundo ele,
complementar suas propostas de pesquisa, pois os teóricos do Gestaltismo não teriam levado
em conta a totalidade dos fatos ao não reconhecer a existência da ‘multiplicidade dos planos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!8 Grifo nosso. 9 Grifo do autor.
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sobre os quais se organiza a percepção’. (idem, p. 277). Ao valorizar aquilo que Piaget define,
significativamente, como os ‘efeitos primários do campo’, o Gestaltismo representaria um
tipo de estruturalismo não genético, ‘cujo ideal implícito ou confesso, consiste em procurar
estruturas que possam considerar como ‘puras’, porque as desejam sem história e, a fortiori,
sem gênese, sem funções e sem relações como sujeito” (PIAGET, 1979, p. 47). O que aponta
Piaget então é que para além dos ‘efeitos primários do campo’, há que se considerar a
atividade exploratória por parte do percebedor. Esta atividade, cuja importância segundo
Piaget ultrapassaria aquela dos efeitos de campo no decorrer do desenvolvimento do sujeito
percebedor, é denominada como analítica e consiste na mobilização de ‘esquemas
perceptivos’, que são transponíveis por recognição e generalização, produzindo novas
estruturações no campo perceptivo. Estruturações essas que são de caráter reversível e de
composição aditiva, distintas portanto daquelas de cunho gestáltico, e mais próximas das
operações da inteligência. Isto fica evidente na afirmação de Piaget de que neste ponto a
atividade perceptiva “se encontra em ligação cada vez mais estreita com a inteligência por
intermédio dos esquemas sensórios-motores” (idem, p. 277).
Aqui é importante sinalizar dois pontos. O primeiro é a quase equivalência feita por
Piaget entre ‘atividade exploratória do sujeito’ e atividade inteligente. Esta última viria a
‘suplantar’, de acordo com o grau de desenvolvimento cognitivo do sujeito, as atividades
primárias da percepção. Nota-se aqui como a sensibilidade é ainda considerada apenas
enquanto dimensão passiva a ser suplantada pela atividade da inteligência. Quanto maior for o
desenvolvimento desta, mais seu funcionamento se encontra ‘deslocado’ do plano concreto da
sensibilidade. Daí a colocação de Piaget de que ‘a descrição gestaltista permaneceu pois
muito global para atingir quantitativamente (e mesmo em parte qualitativamente) o que
diferencia as estruturas primárias (efeitos perceptivos de campo) das estruturas da
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inteligência” (PIAGET, 1983, p. 278). Talvez não seja exagerado afirmar que a
desvalorização do plano concreto da sensibilidade (já que como se nota nas colocações de
Piaget o conhecimento perceptivo é um momento a ser superado no processo de
desenvolvimento do sujeito cognitivo) é reflexo (ou consequência) da própria forma de
colocação do problema da cognição por Piaget. Sua preocupação epistemológica central,
poderíamos dizer dominante, é o desenvolvimento das faculdades lógico-formais do sujeito, e
seu modelo de inteligibilidade da cognição é tomado da ciência, não da arte. Daí, por
exemplo, a ausência de uma contribuição piagetiana significativa neste campo. Não se trata de
julgar a importante obra de Piaget por aquilo que ela não se propôs a fazer, mas não se pode
deixar de afirmar que este silêncio é significativo em uma obra tão vasta.
O segundo ponto diz respeito ao fato de Piaget situar o sujeito percebedor fora daquilo
que se considera os ‘efeitos de campo’. No entanto, como ressalta Penna (1993), pensar a
percepção como fenômeno de campo não é o mesmo que recusar qualquer relação do
percebido com a experiência do percebedor. Este apenas não é o fundamento da experiência
perceptiva. As atividades exploratórias são decorrentes de propriedades e transformações
dinâmicas reveladas pelo próprio campo, e isto é importante pois permite pensar a percepção
em seu caráter funcional e concreto10. Em suas palavras:
“Vale assinalar que a hipótese derivada da perspectiva gestaltista configura-se como uma hipótese de campo, no sentido de enfatizar a conduta exploratória como expressão de uma relação sujeito-objeto, ou, ainda, como expressão de propriedades exibidas por um campo de forças e não como função, apenas, de propriedades radicadas no sujeito” (PENNA, 1993, p.80).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!10 Lembramos que nos quadros da teoria gestaltista foi Kurt Lewin quem levou mais longe estas questões ao reforçar a necessidade de se pensar todo evento psicológico como compreendendo a totalidade dos fatos que podem determinar o comportamento do indivíduo em um determinado momento. Aqui cabe apenas remeter ao conceito de Espaço Vital (Lewin, 1973, Garcia-Roza, 1972), de grande importância em sua obra.
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Da mesma maneira coloca Simondon (1989) quando afirma:
“se existe um campo exterior, um campo fenomenal no processo da percepção, porque não considerar o sujeito como estando no campo, logo realidade de campo11? Existiria um campo total que se subdividiria em dois sub-conjuntos, o campo sujeito e o campo objeto; a ação seria a descoberta de uma estrutura, de uma configuração comum ao campo exterior e ao campo interior” (SIMONDON, 1989, p.47).
Na mesma direção das colocações de Penna e Simondon caminham as considerações de
Rudolf Arnheim. Segundo este, é pelo fato de apreendermos isoladamente certos princípios
que deveriam ser tomados sempre em estreita articulação aos processos de campo, que
perdemos de vista a complexidade e o caráter dinâmico da Teoria da Gestalt. O resultado
disso é apontado como uma ‘limitação fatal’ (ARNHEIM, 1986), já que a percepção visual
consiste precisamente na “experimentação de forças visuais” (ARNHEIM, 1991). É comum
encontrarmos análises sobre as totalidades estruturadas, as Gestalts, que se iniciam pelo
famoso slogan de Wertheimer ‘o todo é maior do que a soma das partes’. No entanto, segundo
Arnheim, esta formulação é problemática se tomada isoladamente. O que constitui o cerne da
concepção da gestalt é a articulação de dois princípios centrais. O primeiro se refere ao fato de
que em processos de campo a estrutura do todo interage com aquela dos seus componentes. O
segundo, mais conhecido como Lei da Boa Forma, postula que os padrões da Gestalt tendem
em direção à organização mais simples, regular e simétrica possível sob as condições dadas (e
mesmo este segundo princípio será nuançado por Arnheim, como veremos adiante).
Uma vez que grande parte dos estudos e discussões é centrada alternadamente sobre
apenas um destes dois princípios, guardando uma pequena consideração ao outro, esta
articulação se torna cada vez menos explícita. A concepção de forma se distancia cada vez
mais de seu plano dinâmico, pois perde-se de vista que estas formas mais ‘simples’, regulares !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!11 Grifos do autor.
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ou simétricas, são efeitos de um processo de equilibração sujeitas às flutuações dos processos
de campo. Um bom exemplo disso é a importância excessiva e unilateral dada às regras de
agrupamento visuais de Wertheimer. Estas regras, segundo as quais a segregação das
unidades perceptivas responde a fatores como proximidade, semelhança e boa continuação,
foram de grande interesse pois serviram como um contraponto às teorias clássicas que
submetiam a organização do campo perceptivo ao processo de aprendizagem. Mas se as
complexas relações entre o todo e as partes forem reduzidas apenas à sua existência, estas
regras poderiam ser tomadas apenas enquanto relações entre elementos, relações estas
determinadas por fatores como distância, tamanho, direção ou movimento. Estaríamos neste
caso, excessivamente próximos das teorias mais tradicionais. Esta forma de abordagem reduz
também a diferença entre padrões de níveis de complexidade variáveis, simetria ou
regularidade, a uma mera morfologia estática, a uma variedade de formas cuja presença e
particularidade é tida como certa, tal como vimos na citação de Guillaume, e novamente
perdemos de vista como estas formas estruturalmente distintas (a partir das citadas regras) se
originam. Pois estas formas não são apenas um padrão visual entre outros, mas são efeitos de
processos de equilibração cujos produtos finais possuem valor biológico e cognitivo. Arnheim
ressalta repetidas vezes que os psicólogos da Gestalt, “mesmo quando se concentravam em
problemas especiais de percepção visual, sempre os visaram como paradigmas adequados e
concretos de padrões de ação, regulando a natureza física, tanto quanto o funcionamento
biológico e mental em geral” (ARNHEIM, 1986, p. 821).
Isto para o que Arnheim visa chamar a atenção é a necessidade de colocar o problema
da percepção das formas em sua dimensão concreta, onde a situação perceptiva é portadora de
sentido e funcionalidade. “Uma concepção unilateral das dinâmicas da gestalt fez com que o
percepto parecesse desdobrar-se como uma flor, belo em sua simetria, mas sem relação com
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suas obrigações de órgão de informação” (ARNHEIM, 1986, p. 822). É em decorrência destes
valores funcionais de estrutura, presentes tanto na arte quanto em qualquer situação
perceptiva, que Wertheimer falou em ‘boa gestalt’, utilizando um termo controverso, que é da
ordem dos valores, para denotar um princípio de organização. Uma ‘boa forma’ portanto não
significa apenas uma forma mais simples, mas uma forma que cumpre sua função dentro de
um padrão ótimo de regulação. E isto coloca em jogo mais do que a tendência
homogeneizante de redução de tensão. Arnheim (1991, 1997) propõe então dois passos. O
primeiro consiste em denominar a Lei da Boa Forma de Lei da Simplicidade. Isto evitaria
possíveis equívocos quanto à questões de caráter valorativo. O segundo passo é
contrabalançar a importância da lei de simplicidade por meio do reconhecimento da existência
de uma contratendência, que age em oposição à redução homogeneizante da tensão. No
mundo físico o princípio da simplicidade opera sem resistência somente nos sistemas
fechados. Quando não há intervenção de nenhuma energia externa, as formas que constituem
o sistema se reorganizam até alcançar um equilíbrio estável, ou seja, um estado no qual não
são possíveis transformações posteriores. No entanto, o organismo não é um sistema fechado.
Fisicamente, ele contrabalança o dispêndio de energia necessário com a extração de recursos
do meio. Este processo também ocorre psicologicamente, pois os organismos vivos absorvem
através dos sentidos informações do meio que são trabalhadas internamente no sentido de
poderem ser convertidas em ações possíveis. Os organismos vivos se deparam todo o tempo
com mudanças de condições, que não só se colocam como obstáculos, mas também lhes
servem como possibilidade de crescimento e desenvolvimento. Em suas palavras, “é bem
possível que a principal característica do organismo vivo seja que ele representa uma
anomalia da natureza em travar um penoso combate contra as leis universais da entropia
retirando constantemente nova energia de seu ambiente.” (ARNHEIM, 1991, p. 28). Assim,
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na experiência perceptiva concreta dos seres vivos a tendência a simplicidade, ou redução de
tensão, está todo o tempo em funcionamento mas se depara com resistências que mobilizam
uma tendência contrária, de elevação da tensão. Se a tendência para a estrutura mais simples
tivesse sua formação sem oposição, ela não poderia produzir nada além de um campo
homogêneo, o que impediria até mesmo a explicação acerca da existência de fenômenos de
base, como aquele da distinção figura-fundo. É necessário portanto que a teoria da gestalt
reconheça a presença de uma tendência contrária, situada no mesmo nível daquela que
promove a estrutura mais simples, que é a tendência que permite a articulação de formas. Só a
interação constante destas tendências complementares pode dar conta da percepção de formas.
Segundo Arnheim (1986), Koffka já teria entrevisto isso, mas enfraqueceu suas colocações ao
descrever as duas tendências como alternativas e não inerentes a qualquer evento perceptual.
Esta tendência contrária é denominada por Arnheim (1991, 1997) como tendência anabólica
ou construtiva. É em seu texto Arte e Entropia (1997) que esta discussão comparece mais
detalhada, mas, a nosso ver, de maneira ainda pouco desenvolvida. Em suas palavras:
“Esta demonstração revela-nos, sem surpreender-nos, que a tendência para a redução de tensão pela simplificação, só descreve a ordem de maneira incompleta. A redução da tensão promove a regularidade, mas a regularidade é só um aspecto da ordem. A tendência para endireitar as coisas, para reduzi-las economicamente aos seus elementos essenciais, não pode operar no vazio. Deve ter algo sobre o que atuar. Por isso, o nosso padrão estrutural deve ser ampliado para que inclua o que chamarei de tendência anabólica. Trata-se do princípio cósmico da criação de formas que explica a estrutura de átomos e moléculas, o poder de unir e libertar, que faz a sua estréia simbólica no livro Génesis quando o Criador separa as águas da terra seca. A termodinâmica chama-lhe entropia negativa, mas não podemos adotar aqui o costume de descrever a estrutura como ausência de forma” (ARNHEIM, 1997, p. 383).
Assim, toda forma percebida coloca em jogo tendências de aumento e redução de
tensão, produzindo estruturas nas quais predominam seja um ‘nivelamento’, seja um
‘aguçamento’ (ARNHEIM, 1991). O nivelamento caracterizando-se pela presença de
unificação, simetria, redução das caracteristicas estruturais, repetição, omissão de detalhes
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não integrados, eliminação de obliquidade, etc. Já o aguçamento realça as diferenças,
intensifica a obliquidade. Segundo Arnheim isto é bem ilustrado na história da arte, onde o
classicismo e sua valorização da simplicidade, da simetria e da redução das tensões se coloca
como o pólo oposto do expressionismo e sua ênfase do irregular, assimétrico, incomum e
complexo. Estas duas vertentes, ou dois tipos de estilo, “resumem duas tendências cuja
interação, em diferentes proporções, constitui a estrutura de qualquer obra de arte visual e na
verdade qualquer padrão visual” (ARNHEIM, 1991, p. 59).
Para Arnheim estas questões são de extrema importância na discussão do conceito,
segundo ele controverso, de prägnaz (traduzido no português como pregnância). Para ele, ao
ser transposto da língua alemã para a língua inglesa o termo se distanciou de seu sentido
inicial, que é o de clareza, concisão, sendo tomado equivocadamente como sinônimo de
simplicidade ou simetria. No entanto, a pregnância de uma forma não implica
necessariamente simplicidade ou simetria. Arnheim (1991) cita um experimento sobre
memória realizado por Friederich Wulf (1922) para ilustrar esta questão. Neste experimento
Wulf utilizou figuras ambíguas compostas por linhas côncavas mais ou menos semelhantes à
letra M, que eram apresentadas num tasquistoscópio, o que possibilitava alguma variação nas
respostas dos sujeitos. Quando era requisitado que os sujeitos desenhassem aquilo que viam,
dois tipos de respostas eram então observadas. Alguns sujeitos aperfeiçovam a simetria do
modelo, aumentando sua simplicidade (nivelamento). Outros exageravam a assimetria,
estabelecendo distinções mais claras do que as dadas na figura original (aguçamento). Ainda
que em direções opostas, os dois grupos trabalharam no sentido de tornar a estrutura
percebida o mais nítida ou pregnante possível (ARNHEIM, 1991). Nas palavras de Arnheim,
“esse aspecto estético da criação da forma, familiar a qualquer artista, mas ativa em toda percepção, caracteriza a forma perceptual como produto de um processo altamente dinâmico, no
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qual a tendência em direção ao aumento da tensão de articulação interage com a tendência contrária em direção ao equilíbrio em cada caso” (ARNHEIM, 1986, p. 823).
É certo que Arnheim confere ainda grande importância à lei de simplicidade, mas o que
ele visa deixar claro é que esta não é a única tendência presente na situação perceptiva. Há
assim uma leitura do gestaltismo presente em seus trabalhos que reforça a colocação do
problema da percepção a partir do campo de forças de onde emerge uma forma, numa luta
entre o aumento e a redução da tensão. Algo que se tornava obscurecido pela sempre rápida
passagem desta tese para a afirmação de que estas forças se anulam numa distribuição
homogênea e estável. A boa forma não é, para Arnheim, necessariamente a forma mais
simples, mas sim a mais expressiva e a menos ambígua. A pregnância é contrária à
ambigüidade, não à complexidade. Segundo Arnheim, por isso as obras de arte são
frequentemente citadas na psicologia da Gestalt como exemplos eminentes de gestalts. Isto se
dá não apenas pelo fato de as obras dependerem de uma organização estrutural perfeita, mas
também porque ao mesmo tempo em que alcançam um alto grau de complexidade, nelas a
forma perceptual é purificada para obter a mais clara expressão dos significados.
Sugerimos aqui que há indícios de um encontro às escuras entre os trabalhos de Rudolf
Arnheim e Gilbert Simondon12. Neste caso, ainda que por vias diferentes e sem qualquer
referência mútua explícita, apontam numa mesma direção, afirmando ser necessário reter as
idéias gestaltistas, mas expandir suas teses para além do tema da forma e do equilíbrio, em
favor do campo de forças e da dinâmica da forma em sua pregnância e expressão. Para
Simondon, se conferimos uma importância exclusiva à lei da Boa Forma e tomamos como
modelo de equilíbrio os processos estacionários, consideramos uma “boa forma” aquilo que
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!12 Há um aparente desconhecimento recíproco entre estes autores cujas obras são contemporâneas.
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seria exatamente a degradação da forma. A “boa forma” não comporta um grau mínimo de
tensão, mas um grau máximo de diferenciação. Há, segundo Simondon, na base de todo
processo perceptivo uma descontinuidade, uma diferença de intensidade. A percepção, em sua
forma mais característica, é um processo diferencial.
“Se esta maneira de visar a percepção como essencialmente diferencial responde à realidade, deve-se encontrar como fundamento da percepção das formas a descontinuidade, o contraste simultâneo ou sucessivo entre duas estimulações, contraste em intensidade, precedendo a apreensão possível das qualidades. [...] Este tipo de sensibilidade às diferenças de intensidade é o aspecto primário da percepção das formas” (SIMONDON, 2006, p. 211).
Simondon sublinha então a necessidade de estabelecer uma distinção entre dois níveis de
segregação das unidades perceptivas. Num primeiro nível a segregação se dá de acordo com o
princípio de assimetria, implicando uma diferença de potencial que cria uma heterogeneidade
no campo. Apenas num segundo nível a lei da boa forma se aplica, produzindo um equilíbrio
estável nos sub-conjuntos destacados. Para além de um conjunto de transformações
convergentes na direção da estabilidade e do equilíbrio, há um momento em que a diferença
de potencial alcança um grau limite, onde o sistema possui um grau máximo de ativação. Vê-
se assim que o equilíbrio estável só surge quando o que ele chama de “problema perceptivo”
já está resolvido. No entanto o que Simondon reforça é que o ponto chave para a justa
compreensão do fenômeno perceptivo se encontra precisamente em sua face ‘problemática’, e
não em sua face de problema já solucionado.
Na verdade, este tipo de inversão na forma de colocação dos problemas é
característico do pensamento simondoniano, sendo um dos pontos fundamentais de sua teoria
da individuação. Esta teoria não se reduz ao fenômeno da percepção e diz respeito aos mais
variados planos de realidade, havendo individuações físicas, biológicas, psíquicas, coletivas,
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etc. Segundo Simondon é por partir dos indivíduos já constituídos e não dos processos de
individuação que recaímos em modos de pensamento substancialistas e identitários perdendo
de vista o caráter sempre movente e produtor de novidade do real. Pois há nesta forma de
colocação do problema que parte do indivíduo e busca a condição de possibilidade de sua
existência, sempre a suposição de que o princípio de individuação é anterior ao próprio
processo. É dado aqui um privilégio ontológico ao indivíduo constituído, pois mesmo que se
dêem transformações temporais estas são de caminho necessário. Há portanto o primado dos
estados finais em detrimento dos processos. Se Simondon propõe então uma teoria da
individuação é exatamente no sentido de inverter estes pólos. O indivíduo é contemporâneo
de seu devir pois esse devir é o de sua própria individuação. “O devir não é devir do ser
individuado, mas devir da individuação do ser” (SIMONDON, 1989, p. 24). Não cabe aqui
seguir toda a filosofia da individuação de Simondon, mas vale apontar que é no interior deste
quadro que se coloca a questão da percepção para Simondon, assim como suas considerações
quanto à novidade e quanto aos limites das teses gestaltistas. Como já vimos, a noção de
campo é de grande importância pois permite pensar a percepção enquanto uma totalidade, um
conjunto de relações dinâmicas no qual há correlação e reciprocidade entre parte e todo. No
entanto, Simondon aponta como limite o fato de que, por trabalhar a partir de um paradigma
físico por demais simplista (SIMONDON, 1989), os gestaltistas teriam sido levados à
considerar o processo de tomada de forma a partir dos processos estacionários de equilíbrio. A
lei da Boa Forma estabelece uma hierarquia neste processo. Vê-se que o princípio que rege a
atualização permanece exterior ao próprio processo. Para Simondon, pensar a percepção
enquanto individuação é reverter isso. A individuação das unidades perceptivas, ou seja, a
atualização do campo perceptivo, deve abarcar de fato a totalidade de suas condições, e para
isso é importante expandir as teses gestaltistas referentes ao equilíbrio.
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Transpondo os limites do vocabulário gestaltista, Simondon forja o conceito de
metaesbilidade. Um sistema metaestável é um sistema tensionado, que guarda em si uma
dissimetria ou uma diferença de potencial entre ordens de grandeza que inicialmente não se
comunicam (SIMONDON, 1989, 2006). Falar em metaestabilidade implica portanto em falar
em uma dimensão intensiva, uma repartição de limiares de ativação ou energia potencial.
Segundo Simondon (2006) os próprios gestaltistas teriam entrevisto a existência de tais
sistemas metaestáveis ao se voltarem para o problema das figuras ambíguas e da origem das
ilusões ótico-geométricas. Seria então injusto afirmar que teriam ignorado completamente o
fato de que nem todos os sistemas caminham no sentido da redução da tensão. No entanto, o
problema apontado por Simondon é que as tensões internas e as consequentes possibilidades
de transformação do sistema são geralmente tomadas pelos gestaltistas como fontes de
distorção.
Talvez possamos dizer, na linha do que já apontamos anteriormente, que isto se deve a
forte preocupação epistemológica por parte dos primeiros teóricos do gestaltismo em pensar a
questão da ordem sem fazer recurso a qualquer instância superior ou atividade reguladora
especial. Por isso a necessidade de estar em estreita continuidade com as leis da física e da
fisiologia. Como mostra o físico Ilya Prigogine (1988) por muito tempo a questão da ordem
esteve atrelada aos processos de equilíbrio estacionário, daí podemos inferir o porquê do
interesse dos gestaltistas e o forte acento que ganham estes processos em suas teses.
No entanto, seguindo ainda com Prigogine, o estudo dos chamados sistemas longe do
equilíbrio ganha cada vez mais importância em áreas diversas do conhecimento científico e
vê-se que o antigo paradigma que sustentava a equivalência ordem/equilíbrio em oposição ao
par desordem/não-equilíbrio é insuficiente e impreciso. Em suas palavras,
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“classicamente associava-se a ordem ao equilíbrio (caso dos cristais) e a desordem ao não equilíbrio (caso da turbulência). Hoje sabemos que isso é inexato: a turbulência é um fenômeno altamente estruturado, em que milhões e milhões de partículas se perseguem num movimento extremamente coerente. Isto também é válido para muitos outros fenômenos como, por exemplo, os relógios químicos, que são reações oscilantes: podemos ver a solução tornar-se vermelha e depois azul, vermelha, azul, e assim por sucessivamente....[...] Atualmente, as experiências de laboratório [...] mostram que, quando se depara com o domínio do não-equilíbrio, se estabelecem novas interações de longo alcance: o universo do não-equilíbrio é um universo coerente. E isto representa uma fato novo, que contradiz tudo quanto se pensava ainda há poucos anos” (PRIGOGINE, 1988, p. 41)
O não-equilíbrio não é portanto a desordem, mas “o domínio por excelência da multiplicidade
das soluções” (idem, p. 41). Dá-se a amplificação de flutuações que geram a constante
possibilidade de novas estruturações. Como marca Prigogine isto é de extrema importância
não só para a física mas também para todos os saberes voltados para o domínio da vida.
“A vida não é só química. A vida deve ter incorporadas todas as outras propriedades físicas, isto é, a gravitação, os campos eletromagnéticos, a luz, o clima. De alguma maneira foi necessário uma química aberta ao mundo exterior, e só a matéria longe das condições de equilíbrio tem esta flexibilidade. E porquê esta flexibilidade? Longe das condições de equilíbrio, as equações não são lineares, são possíveis muitas propriedades, muitos estados que são as diversas estruturas dissipadoras acessíveis. À medida que nos aproximamos do equilíbrio, a situação é oposta: tudo se torna linear e só há uma solução” (PRIGOGINE, 1988, p. 26).
Por isso Prigogine afirma que em situações longe do equilíbrio a matéria se torna ‘sensível’,
ou ainda, que a matéria ‘vê’. Pois em situações de equilíbrio as moléculas só sofrem os efeitos
daquilo que as rodeia de perto, diferentemente do que se passa longe do equilíbrio, quando
uma mínima perturbação pode gerar efeitos de larga escala.
Entrevemos aqui a ressonância desta discussão com as questões colocadas por
Simondon, pois o conceito de metaestabilidade ganha importância precisamente porque
permite pensar a estruturação sem que seja necessário supor o esgotamento dos potenciais.
Sistemas metaestáveis, ou longe do equilíbrio como diria Prigogine, são sistemas estruturados
mas que guardam em si potenciais de atividade. O processo de individuação é na verdade um
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processo de resolução parcial e relativa de um sistema metaestável (SIMONDON, 1989),
desta forma a individuação engendra um indivíduo, mas mantém em si um potencial ativo,
uma carga energética pré-individual. Simondon ressalta a dificuldade de uma definição
conceitual precisa desta dimensão pré-individual, sugerindo que isto talvez seja fruto de uma
longa tradição moldada por um pensamento substancialista. Mas faz questão de marcar a
importância de sair de um modo de pensamento que opera por meio de categorias opostas e
exclusivas como uno x múltitplo ou ainda contínuo x descontínuo.
Segundo Simondon, o problema da segregação das unidades perceptivas traz à tona algo
que os fundadores do gestaltismo haviam visto bem: nenhum processo de individuação é
reservado a um único domínio de realidade, seja ele por exemplo físico ou psicológico.
Assim, não há realidade individuada que não seja mista. No entanto, o recurso dos gestaltistas
à lei da Boa Forma e ao isomorfismo impede que se pense mais profundamente a totalidade
dos efeitos das relações entre planos e ordens diversas de realidade. A tese do isomorfismo
nos coloca perigosamente próximos de teses realistas nas quais é a forma física que se coloca
como denominador comum das ordens vitais, psicológicas, etc13. As colocações de Simondon
acerca da metaestabilidade e do plano pré-individual são importantes neste sentido, pois não
há um privilégio de um conjunto de relações ou de um domínio sobre outro. Assim pode-se,
por exemplo, pensar de fato a percepção enquanto totalidade, já que as relações de campo
produzem transformações recíprocas entre diferentes ordens. A questão da tomada de forma,
ou de configuração do campo perceptivo, não se descola portanto da dimensão intensiva e
pré-individual, na qual ordens de grandeza distintas fazem sistema por meio de uma diferença
de potencial.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!13 Esta é também a crítica endereçada ao Gestaltismo por Merleau-Ponty. Cf. A estrutura do comportamento (2006).
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“a teoria da Forma reduz a dois termos isto que é um conjunto de três termos independentes ou ao menos distintos: não é senão após a percepção que as tensões são efetivamente incorporadas ao campo psicológico e fazem parte de sua estrutura. Antes da percepção, antes da gênese da forma que é precisamente percepção, a relação de incompatibilidade entre o sujeito e o meio existe como um potencial apenas, da mesma maneira que as forças que existem na fase de metaestabilidade da solução supersaturada ou sólida em estado de sobrefusão, ou ainda na fase de metaestabilidade da relação entre uma espécie e seu meio. A percepção não é a apreensão de uma forma, mas a solução de um conflito, a descoberta de uma compatibilidade, a invenção de uma forma. Esta forma que é a percepção modifica não somente a relação do objeto e do sujeito, mas ainda a estrutura do do objeto e aquela do sujeito” (SIMONDON, 1989, p. 76).
É por essa via que Simondon buscará complementar a idéia de forma gestaltista a partir
do conceito de informação14, já que toda informação comporta essa dimensão intensiva e,
portanto, relacional. Como ressalta Escóssia,
“Tensão, intensidade e potencial de informação ou de forma. Qualquer que seja o termo utilizado nesse contexto conceitual, o significado é um só: concentração até o limite disruptivo ; reunião de contrários em unidade; existência de um campo interior a esse esquema de informação; e ainda, dimensão que reúne aspectos ou dinamismos habitualmente incompatíveis entre eles” (ESCÓSSIA, 2004, p. 73)
Sobre a questão da Boa Forma Simondon se pergunta:
A boa forma não seria aquela que contém um campo de forma elevado, isto é, uma boa distinção, um bom isolamento entre os dois termos ou a pluralidade de termos que a constituem, e entretanto, entre eles, um campo intenso, isto é, um poder de produzir efeitos enérgicos se alguém ali introduz algo?” (SIMONDON, 1989, p.52).
A boa forma é portanto aquela que mantém o nível energético do sistema, conservando seus
potenciais e os compatibilizando. É a ligação significativa do uno e do múltiplo, estando
assim ‘próxima do paradoxo, próxima da contradição, não sendo contraditória em termos
lógicos’ (idem, p. 53).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!14 Simondon faz questão aqui de marcar sua distância em relação às teorias tecnológicas da informação que equiparam o conceito de informação a um sinal, suporte, ou veículo de informação em uma mensagem.
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É importante destacar que Simondon não recusa, mas procura recuperar e
complementar as noções gestaltistas de forma e pregnância. Na mesma direção sublinhada por
Arnheim, afirma que a pregnância da forma não deve ser pensada a partir da estabilidade e da
redução homogeneizante de tensão, mas sim pela capacidade de “atravessar, de animar e de
estruturar um domínio variado, domínios cada vez mais variados e heterogêneos”
(SIMONDON, 1989, p. 53). A pregnância está intimamente ligada ao caráter dinâmico do
campo perceptivo e não à estabilidade da forma, “ela não é uma uma consequência da forma
somente, mas também, e sobretudo, do alcance da solução que ela constitui para a
problemática vital” (idem, p. 92).
Entrevemos as ressonâncias com Arnheim também quando este afirma que na
experiência perceptiva concreta dos seres vivos a tendência à simplicidade está todo o tempo
em funcionamento, mas se depara com resistências que mobilizam uma tendência contrária,
de elevação da tensão. Se a tendência para a estrutura mais simples operasse sem oposição,
não poderia produzir nada além de um campo homogêneo, o que impediria até mesmo a
distinção figura-fundo. Em suas palavras:
“a percepção reflete uma invasão do organismo por forças externas, que perturbam o equilíbrio do sistema nervoso. Abre-se um buraco num tecido resistente. Deve resultar uma luta quando as forças invasoras tentam se manter contra as forças do campo fisiológico, que procuram eliminar o intruso ou pelo menos reduzi-lo ao padrão mais simples possível. A resistência relativa das forças antagônicas determina o que se percebe como resultado. Em momento algum a estimulação se congela em um arranjo estático. Enquanto a luz afeta os centros cerebrais da visão, o impulso e a atração continuam, e a estabilidade relativa do resultado não é senão o equilíbrio de forças opostas. Há alguma razão para se afirmar que somente o resultado da luta se reflete na experiência visual?” (ARNHEIM, 1991, p.429).
Diferente de Simondon, que formula o conceito de metaestabilidade e justifica sua
aplicação às chamadas boas formas, Arnheim mantém o conceito de equilíbrio, mas adverte
que falar em equilíbrio não significa reduzi-lo a uma ausência de tensão ou de forças. O
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equilíbrio na percepção é também “animado de tensão”. Na arte a tensão da forma é de
extrema importância, pois a potência expressiva da obra deriva precisamente da presença das
forças e tensões dirigidas. Segundo Mário Pedrosa, é isso, por exemplo, que está em jogo nas
obras de Kandinsky e Mondrian:
Em Kandinsky, os objetos não são outra coisa senão um campo de energia-tensão e, quanto à composição, é um simples arranjo de linhas [...]. Para Mondrian, o ritmo é tudo, pois sua função é expressar o movimento dinâmico através de uma contínua oposição dos elementos da composição. Por este meio, a obra de arte, uma pintura, é uma espécie de campo eletro-magnético onde forças contraditórias mas organizadas exprimem o que ele designa por ação, quer dizer, vida. A ação é criada pela tensão da forma, da linha, e da intensidade das cores (PEDROSA, 1975, P. 77)
Segundo Faiga Ostrower “as forças atuantes tornam-se visíveis através dos limites da
forma” (OSTROWER, 1998, p. 83). O equilíbrio não caminha na direção da anulação das
tensões internas, mas funciona no sentido de uma articulação que as maximize de maneira a
alcançar uma dimensão expressiva. Os exemplos são do campo da pintura, mas parece
possível afirmar que as artes em geral estão concernidas com essa dimensão de forças,
trabalhando com elas na composição. Segundo Arnheim, uma forma artística equilibrada é
aquela na qual o máximo dinamismo interno coexiste com o caráter de necessidade do todo.
Para melhor apresentar esta idéia, cita um episódio no qual Charlie Chaplin teria dito a Jean
Cocteau que “depois de completar um filme, deve-se ‘sacudir a árvore’ e conservar apenas o
que fica bem preso aos ramos” (ARNHEIM, 1991, p. 51). É este dinamismo interno
intimamente ligado às tensões e forças presentes na obra que garantem seu poder expressivo,
assim como é este caráter expressivo que a afasta de uma simples representação, produzindo
no receptor uma experiência distinta da mera informação. Nas palavras de Arnheim,
desde que a forma da energia vivificante transmitida não é simplesmente registrada pelo sentido da visão, mas presumivelmente desperta na mente uma configuração correspodente de forças, a reação do observador é mais do que uma mera tomada de conhecimento de um objeto externo. As forças que caracterizam o significado da história chegam vivas ao observador e produzem a
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espécie de participação ativa que distingue a experiência artística da aceitação separada da informação (ARNHEIM, 1991, p. 452).
A forma artística é uma composição expressiva de forças, que por sua vez afetam o
percebedor. Daí a formulação de Arnheim: “o que o artista cria com materiais físicos são
experiências” (ARNHEIM, 1991, p. 10)! e a consequente recusa de toda posição formalista
que postularia uma consistência interna da obra que a separaria de outros campos de
experiência – a arte pela arte15. Formulação esta que mantém ressonâncias com as palavras de
Kandinsky: “a obra de arte é o espírito que, por meio da forma, fala, se manifesta, exerce uma
influência fecunda” (KANDINSKY, 1970, p. 254). Se em determinado momento a arte
colocou em destaque a questão formal, como na pintura abstrata por exemplo, não foi para
suprimir sua dimensão expressiva, mas sim para abrir novas frentes e modalidades de
expressão. Por isso podemos dizer que a arte abstrata não é apenas assunto para especialistas e
historiadores que analisariam sua perfeição formal, os materiais escolhidos ou as frentes de
diálogo com outras tradições estéticas. Para além disso, a arte abstrata também dialoga com
um plano mais amplo de experiência. Renunciar à figuração não significa renunciar ao
contato com a dimensão expressiva. Mas é, pelo contrário, um artifício expressivo. Como
defende Fayga Ostrower, as linhas, cores e figuras geométricas de Mondrian, por exemplo,
são expressivas na medida em que refletem um intenso trabalho formal na tentativa de lhes
conferir ritmo, peso visual, concentração ou expansão do espaço e toda uma sorte de
dimensões que são totalmente estranhas ao âmbito da geometria, mas ligadas à nossa
apreensão afetiva do mundo (OSTROWER, 1998).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!15 Cf sua crítica às colocações do crítico Roger Fry em “A forma e o consumidor” (1997).
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Os procedimentos formais utilizados pelo artista são uma luta pela incorporação das
forças na obra, pois são elas que a sustentam, que conferem ao mesmo tempo sua consistência
interna e sua potência de afetação. Ostrower chega a afirmar, comentando algumas obras e
instalações contemporâneas, que são obras ‘flácidas’ e carentes de ‘tensões espacias’, “só não
caem no chão porque há uns pregos que ainda as seguram na parede” (OSTROWER, 1998, p.
61).!!
Por meio das leituras de Arnheim e Simondon podemos ver que a abordagem gestaltista
da percepção não se restringe a destacar o caráter homogêneo, simples e regular da forma. A
colocação do problema da percepção a partir da noção de campo de forças - essa ‘verdadeira
decoberta conceitual’ (SIMONDON, 1989, p. 44) – exige o reconhecimento de uma dinâmica
da forma com linhas de ação e modos de relação. A percepção é “um campo contínuo de
forças, uma paisagem dinâmica” (ARNHEIM, 1991, p. 8). Distinta e individuada, a forma
mantém estreita relação e não se separa do campo de forças.
Todas essas formulações lançam o gestaltismo para além do estatuto de um sistema que
pertence apenas à história da psicologia, reativando seu interesse no tratamento de problemas
que ainda desafiam nosso entendimento na atualidade, como é o caso da experiência com a
arte. Uma das razões pelas quais os artistas e críticos demonstram um forte interesse pela
abordagem gestaltista da percepção é por certo a possibilidade de escapar à uma leitura
subjetivista da experiência com a arte. Contra esta leitura, que veria na percepção de uma obra
de arte a projeção de fatores subjetivos e da personalidade, o gestaltismo marca diferença pelo
seu objetivismo que, numa leitura renovada como sugerem Arnheim e Simondon, traduz-se
num objetivismo do campo de forças. Na percepção de uma obra de arte, é a dinâmica da
forma que toca, de fora, o percebedor, abrindo a possibilidade de uma experiência que não
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equivale ao mero reconhecimento. Neste sentido, ele oferece condições de entendimento para
além dos jargões de uma certa psicologia da arte.
É certo que buscamos em Arnheim e Simondon uma argumentação que dá importância
a algumas linhas menos reconhecidas do gestaltismo. Não se trata com isso de negar que haja
no Gestaltismo um forte acento sobre a questão da estabilidade das formas, mas de tentar
reativar algumas de suas virtualidades. Por outro lado deve-se também ressaltar que os
trabalhos de Arnheim e Simondon, principalmente deste último, possuem seus matizes
próprios.
No trabalho de Arnheim há ainda um espaço significativo concedido à questão do
equilíbrio e da estabilidade das formas. Talvez esta preocupação derive de seu esforço por se
distanciar dos estudos psicológicos sobre a experiência com a arte pautados nas variáveis
subjetivas. Neste caso, Arnheim trabalha basicamente do ponto de vista da composição da
forma artística. Quando fala em estabilidade das formas, tem em vista uma preocupação de
valorizar as necessidades internas de composição da obra. Não se trata, como já vimos, de
assumir uma posição formalista, mas sim de buscar um princípio de consistência interno à
obra e que, em certo grau, funcione como a garantia de sua qualidade estética. Sua
preocupação em se distanciar de certos estudos psicológicos que ‘encaram a atividade artística
principalmente como um instrumento de exploração da personalidade humana, como se entre
arte e um borrão de tinta de Rorschach ou as respostas de um questionário houvesse pouca
diferença’ (ARNHEIM, 1991, p.3) é evidente e, a nosso ver, muito fértil. No entanto, escapar
das armadilhas do subjetivismo não implica a necessidade de minorar a possibilidade de
diferenciação presente tanto no interior das obras quanto nas experiências que delas derivam.
E aqui Simondon, parece seguir um caminho mais fecundo ao acentuar que a forma (no caso
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da arte, a obra) não perde sua consistência e mesmo guarda uma potência de novas
atualizações ou individuações. A pregnância de uma forma é pensada a partir de sua
capacidade de ‘atravessar, de animar e de estruturar um domínio variado, domínios cada vez
mais variados e heterogêneos” (SIMONDON, 1989, p. 53). Entrevemos neste ponto a
ressonância com Deleuze e Guattari (1992) quando afirmam que a obra se conserva, ‘se
mantém de pé’ pelos afectos, encontros e devires que é capaz de produzir. Ressonância esta
que buscaremos seguir (e levar) adiante.
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É certo que a questão da arte na obra destes autores possui uma grande amplitude
conceitual16. No entanto, buscaremos percorrer um fio que funcione como uma zona de
confluência, permitindo entrever o alcance daquilo que se faz presente no trabalho destes
autores e ao mesmo tempo seguir as trilhas que aqui vislumbramos: um exame crítico disto
que se coloca comumente como a natureza da comunicação da obra de arte.
Deleuze e Guattari afirmam que são os seres de sensação que “dão conta da relação
do artista com o público, entre as obras de um mesmo artista ou mesmo de uma eventual
afinidade de artistas entre si.” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 227). Na verdade as obras
de arte são estes seres de sensação, estes blocos de perceptos e afectos onde “há plena
complementaridade, enlace de forças como perceptos e de devires como afectos” (idem,
p.236). Podemos começar apontando que se Deleuze e Guattari falam em seres de sensação é
porque estes blocos de perceptos e afectos valem por si mesmos. É o que Deleuze e Guattari
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!16 Cf. nesse aspecto os livros de Anne Sauvagnargues Deleuze et l’art (2006) e Roberto Machado Deleuze, a arte e a filosofia (2009).
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chamam de ‘auto-posição do criado’, já que a obra não depende de um modelo ao qual ela
faria supostamente referência e também não remete à ordem do vivido, não se confundindo
com as percepções, sentimentos e lembranças de um sujeito, seja ele artista ou espectador. O
artista não cria com suas lembranças, suas opiniões, sua suposta visão de mundo. Por sua vez
a potência do contato do espectador com a obra não tem sua chave em uma possível
identificação com os personagens ou situações ali presentes. Tampouco em um processo de
tomada de consciência a partir de uma suposta mensagem presente na obra. Se o artista não
representa sua visão de mundo, o espectador por sua vez também também não toma
consciência de um estado de coisas. É o perigo a ser sempre conjurado do ‘é enriquecedor’
como valor estético supremo (DELEUZE, 1992).
Podemos dizer que o artista vê naquilo que cria, o espectador cria naquilo que vê, e os
encontros, não a ‘comunicação’, se fazem no invisível. Pois os reais encontros são talhados à
sombra, e como diz Deleuze (s/d), a experiência com a arte é questão de encontro. Entrevê-se
aqui o alcance disto que Deleuze chama de um encontro e como esta questão se articula com
os blocos de sensações enquanto perceptos e afectos. As sensações incidem precisamente nos
interstícios do tecido composto pela tríplice organização das percepções, afecções e opiniões,
que sustenta o plano da experiência vivida ou habitual. Como dizem Deleuze e Guattari:
“o objetivo da arte, com os meios do material, é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro. Extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensações” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 217).
Isto pode ser alcançado das mais divesas maneiras, de acordo com as diferentes
modalidades artísticas e maneiras de trabalhar dos artistas. O que os autores ressaltam é que a
única lei de composição, e a mais difícil de ser alcançada, é que este bloco se sustente
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sozinho, se ‘mantenha de pé’. Por isso podem dizer que a arte conserva, na verdade, ‘é a única
coisa no mundo que se conserva’ (idem, p. 213). Difícil não nos lembrarmos de Pablo Picasso
que dizia com a mesma robusta, e apenas aparente, simplicidade de suas obras: “Para mim
não há passado ou futuro na arte. Se uma obra de arte não pode viver sempre no presente ela
não deve, de maneira nenhuma, ser considerada” (PICASSO, 2003, p. 216). É também a esta
capacidade de ‘viver sempre no presente’ que o poeta Paul Valéry se referia ao se perguntar,
assombrado, como podem se manter vivos o interesse e a comoção diante de poemas cuja
produção e recepção são separadas por séculos. O manter-se de pé de uma obra é algo como
uma faca que se mantém sempre afiada. Note-se que a discussão está para além do caráter
‘atual’ de uma obra, pois devemos inverter a direção do pensamento habitual: trata-se de
pensar a atualidade da obra a partir de sua potência (sua atualidade como potência), e não de
explicar sua potência a partir de sua atualidade. Podemos dizer que se a arte sobrevive no
tempo, é porque o tempo sobrevive nela. Entrevemos os fios que enlaçam a questão da arte à
concepção bergsoniana do tempo como duração, que marca o pensamento de Deleuze. Pois se
o tempo em Bergson apresenta o caráter paradoxal de passar se conservando, ou de se
conservar escoando, a arte encarna, ou encena, esse paradoxo. Bergson afirma que a ‘duração
real é aquela que morde as coisas e deixa nelas impressa a marca de seus dentes”
(BERGSON, 1959, p. 533). A arte traz assim a marca destes dentes. É neste sentido que, a
nosso ver, Paul Klee afirma: “A obra de arte [...] é em primeiro lugar gênese, não a
apreendemos jamais como produto” (KLEE, 1964, p. 38). É interessante notar que mesmo em
uma escala menor, no plano das relações que temos ou que mantemos com certas obras, algo
deste gênero se manifesta. As grandes obras mantém viva sua força de afetação, que se
manifesta seja por meio da viva impressão de que retomar o contato com elas implica sempre
uma inocência reecontrada, seja por meio da recorrência de traços das mais variadas ordens,
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como personagens, sons, tons de cores, pequenas passagens, frases, ambientes, imagens
soltas, que nos invadem ao longo da vida. Nas palavras de José Gil (1996)
“A ‘perenidade’ da arte vem daí, do fato de as suas forças constituírem uma reserva ‘eterna’ de forças. A técnica do artista não visa de início produzir formas ‘belas’, ‘sublimes’, ‘interessantes’, ‘saturadas’, mas tratar de tal maneira os materiais que as formas nascentes contenham feixes de forças. As formas visíveis são apenas as teclas de um piano que o artista faz tocar a fim de por forças em movimento – movimento que, por seu turno, anima as formas de uma vida intensa” (GIL, 1996, p. 301).
Ao colocar o acento na questão dos blocos de sensações enquanto compostos de
perceptos e afectos, Deleuze e Guattari deixam entrever que a questão primordial da arte para
eles não está em sua autonomia, na distinção de suas diferentes modalidades, de sua eventual
hierarquia, na representação de formas ou grandes temas e muito menos na questão técnica
dos artistas, como se pode ver a partir do que dizem tomando o exemplo da pintura:
“A pintura precisa de uma coisa diferente da habilidade do desenhista, que marcaria a semelhança entre formas humanas e animais, e nos faria assistir à sua metamorfose: é preciso, ao contrário, a potência de um fundo capaz de dissolver as formas, e de impor a existência de uma tal zona, em que não se sabe mais quem é animal e quem é humano , porque algo se levanta como o triunfo ou o monumento de sua indistinção; assim Goya, ou mesmo Daumier, Redon. É preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintáticos ou plásticos necessários a uma empresa tão grande, que recria por toda a parte os pântanos primitivos da vida”. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 225).
Aquilo que permite que falemos em arte no singular é a comunidade de um problema: a
captura de forças. Em arte “não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas de captar
forças” (DELEUZE, 2007, p. 62). Esta formulação está presente em Lógica da Sensação, mas
de alguma maneira atravessa todos os trabalhos de Deleuze, assim como aqueles com
Guattari, voltados para a arte. Pode-se desdobrá-la sob diferentes aspectos, mas cabe apontar
inicialmente que a ênfase não parece ser na dicotomia entre formas e forças. Um dos pontos
importantes da colocação da arte como captura de forças consiste precisamente na
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possibilidade de fazer fugir o modo de pensar dicotômico que opera, sob diferentes faces, a
partir de pares de opostos mutuamente exclusivos. O que está em jogo é a perda do estatuto
unificador, substancial e totalizante da forma. Estatuto este que a emancipa de todo vínculo
com o plano movente e genético das forças. Se falamos em plano movente e genético é
porque as forças estão sempre ligadas a uma emergência, a um processo de atualização
(DELEUZE, 1983, 1996). Outro ponto importante é que uma força nunca está no singular,
diz respeito sempre à sua relação com outras forças. “Toda força está então em uma relação
essencial com outra força. O ser da força é o plural; seria propriamente absurdo pensar a força
no singular” (DELEUZE, 1962, p. 7). Na verdade, pode-se dizer que toda força é já relação,
pois o que está em jogo é um poder de afetar e ser afetado. Uma segunda passagem é ainda
esclarecedora: “A força se define ela mesma por seu poder de afetar outras forças (com as
quais ela está em relação), e de ser afetada por outras forças” (DELEUZE, 1986, p. 78). Vê-se
que falar no plano das forças é falar em um plano de composição, onde diferentes forças se
acoplam, se agenciam, segundo modos diferentes de composição e alcançando graus diversos
de potência, ou seja, de afetarem e serem afetadas. A forma é assim pensada enquanto um
momento da composição de forças, ou para utilizarmos conceitos simondonianos muito
presentes na obra de Deleuze e Guattari, a forma é uma individuação modulada de forças.
Trata-se, ainda em continuidade com Simondon, de pensar o processo de individuação a partir
de um plano médio, energético, molecular (DELEUZE e GUATTARI, 1980) onde o par
tradicional hilemórfico composto por uma forma fixa (substancializada) e uma matéria
homogênea vê suas fronteiras borradas. Como diz Deleuze: “Não podemos aceitar a
alternativa que compromete inteiramente ao mesmo tempo a psicologia, a cosmologia e a
teologia: ou singularidades já tomadas em indivíduos e pessoas ou o abismo indiferenciado”
(DELEUZE, 1969, p. 125). Daí a importância do plano pré-individual, que já abordamos
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aqui, tal como pensado por Simondon, pois permite que se pense uma dimensão que não se
confunde nem com os campos empíricos já dados e nem com uma totalidade indiferenciada,
sendo constituída por singularidades pré-individuais que correspondem à relações
diferenciais ou ainda à repartição de limiares de ativação ou energia potencial. Vemos que a
singularidade não é indeterminada mas não se confunde com o individual ou com o atômico,
tendo em vista que implica, envelopa uma diferença de intensidade17.
Nas palavras de Deleuze e Guattari:
“Simondon mostra que o modelo hilemórfico deixa de lado muitas coisas, ativas e afetivas. De um lado, à matéria formada ou formável é preciso acrescentar toda uma materialidade energética em movimento, portadora de singularidades ou hecceidades, que já são como formas implícitas, topológicas mais que geométricas, e que se combinam com processos de deformação: por exemplo, as ondulações e torsões variáveis das fibras de madeira, sobre as quais se ritma a operação de fendimento a cunha. De outro lado, às propriedades essenciais que na matéria decorrem da essência formal é preciso acrescentar afectos variáveis intensivos, e que ora resultam da operação, ora ao contrário a tornam possível: por exemplo, uma madeira mais ou menos porosa, mais ou menos elástica e resistente. De qualquer modo, trata-se de seguir a madeira, e de seguir na madeira, conectando operações e uma materialidade, em vez de impor uma forma à uma matéria: mais que a uma matéria submetida a leis, vai-se na direção de uma materialidade que possui um nomos. Mais que a uma forma capaz de impor propriedades à matéria, vai-se na direção de traços materiais de expressão que constituem afectos” (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 508).
Estamos assim fora do quadro que separa em termos bem definidos e opostos uma
matéria rudimentar inerte e uma forma fixa que à ela se imporia. O que leva Deleuze a afirmar
que o par matéria-forma deve ser substituído pelo par material-forças (2003, p. 145).
“Não se trata mais de impor uma forma a uma matéria, mas de elaborar um material cada vez mais rico, cada vez mais consistente, apto a partir daí a captar forças cada vez mais intensas. O que torna o material cada vez mais rico é aquilo que faz com que os heterogêneos mantenham-se juntos sem deixar de ser heterogêneos” (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 406).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!17 Para sermos mais precisos cabe colocar que Deleuze chega a afirmar: “a expressão ‘diferença de intensidade’ é uma tautologia. A intensidade é a forma da diferença como razão do sensível. Toda intensidade é E-E’, onde E reenvia ele mesmo à e-e’, e e à !"!’, etc.: cada intensidade é já um acoplamento (em que cada elemento remete, por sua vez, a pares de elementos de outra ordem).” (DELEUZE, 1968, p. 287).
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Podemos nos lembrar aqui das colocações de Simondon de que a boa forma (ou ainda, a
forma intensiva) é aquela que beira o paradoxo, o limite disruptivo entre sentido e não
sentido, e que podemos falar em pregnância de uma forma na medida em que esta for capaz
de “atravessar, de animar e de estruturar um domínio variado, domínios cada vez mais
variados e heterogêneos” (SIMONDON, 1989, p. 53). É neste sentido que Sauvagnargues
ressalta:
“Trata-se menos de repudiar as formas do que delas propor uma concepção nova, como forma material e sensível, variável e intensiva, e não como forma abstrata dada. A forma sendo composta de relações de forças, não há rigorosamente senão forças, e as formas são um devir das forças” (SAUVAGNARGUES, 2006, p. 69).
Sauvagnargues (2004, 2006) chama também a atenção para o fato de que esta
concepção intensiva e variável da individuação ganha seu justo alcance quando são traçadas
as linhas que operam a intercessão com o pensamento de Espinosa e sua concepção modal da
individuação. Neste ponto, segundo Sauvagnargues, é de extrema importância o conceito de
hecceidade. Este conceito renderia homenagem à todos os filósofos da ‘intensidade modal’,
sendo eles Duns Scot (de quem Deleuze toma de empréstimo o termo), Espinosa e
Simondon18. A hecceidade concerne um modo de individuação que não supõe um sujeito,
uma coisa ou uma substância19, pois não leva em consideração senão as relações de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!18 Há também na obra de Simondon a utilização do termo ‘ecceidade’, que segundo Sauvagnargues está mais próximo do uso que dele fazem Deleuze e Guattari, mas que segundo os próprios (1980, p. 318), guardaria uma imprecisão terminológica, pois Duns Scot cria o conceito a partir de Haec, ‘esta coisa’, e não ecce, ‘eis aqui’. Deleuze e Guattari ressaltam, contudo, que esta é uma imprecisão fecunda, pois estaria mais próxima da sugestão de uma individuação que não se confunde com aquela de uma coisa ou de um sujeito. 19 É certo que por vezes Deleuze e Guattari parecem opor dois modos de individuação: aquele das pessoas, dos animais das coisas, ou seja, das formas, e um outro, ao qual seria reservado o conceito de hecceidade, e que corresponde às individuações ‘sem sujeito’. “Há um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa, de um sujeito, de uma coisa ou de uma substância. Nós lhe reservamos o nome de hecceidade” (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 318). Contudo nos parece, e aqui para além das indicações dos próprios seguimos também uma hipótese de leitura de Sauvagnargues, que não se trata de estabelecer uma oposição entre hecceidades e sujeitos bem formados. Se Deleuze e Guattari por vezes se utilizam de certas formulações que deixam transparecer tal interpretação isto se deve a uma estratégia de argumentação que visa quebrar com uma longa história de pensamento. Como os próprios afirmam: “Com efeito seria preciso evitar uma conciliação muito simples, como se houvesse de um lado sujeitos bem formados, do tipo coisas ou pessoas, e de outro lado,
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velocidade e lentidão que compõem um indivíduo, assim como o grau de potência que lhe é
peculiar, ou seja, seu poder de afetar e ser afetado. São as hecceidades que se exprimem nos
artigos e pronomes indefinidos, mas não indeterminados (DELEUZE, 1996):
“Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data possuem uma individualidade perfeita à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento e repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado” (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 319).
Encontramos aqui as noções ‘medievais e geográficas’ (DELEUZE, 2002, DELEUZE e
GUATTARI, 1980) de longitude e latitude, que definem as coordenadas cinéticas e dinâmicas
de qualquer corpo (entenda-se aqui um corpo em sentido amplo, um indivíduo qualquer: um
animal, um corpo sonoro, uma alma, uma idéia, um corpo social ou linguístico, uma
coletividade, etc). A longitude é cinética e extensiva, e diz respeito às relações de repouso e
movimento, de velocidades e lentidões das partículas que entram em composição em um
corpo. Já a latitude é dinâmica e intensiva, e diz respeito ao grau de potência que assume esta
composição, ou seja, o conjunto variável dos afectos intensivos dos quais um corpo é capaz,
seu poder de afetar e ser afetado. Como diz Deleuze,
“Na aparência, são duas proposições muito simples: uma é cinética, a outra é dinâmica. Contudo, se a gente se instala verdadeiramente no meio dessas proposições, se a gente as vive, é muito mais complicado e a gente se torna então espinosista antes de ter percebido o porquê” (DELEUZE, 2002, p. 128).
Fica claro que ‘tornar-se espinosista’ e ‘instalar-se no meio destas proposições’ ganha
toda sua força precisamente pelo ethos que instaura. É no plano da experiência que se
manifesta o justo alcance destas colocações, pois é uma nova forma de estar no mundo, de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!coordenadas espaço-temporais do tipo hecceidades. Pois você não dará nada às hecceidades sem perceber que você é uma hecceidade, e que não é nada além disso.” (idem, p. 320).
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compor com o mundo que está em jogo. Uma vez que aquilo que se dá na experiência não é
passível de ser plenamente recoberto por princípios que a regulariam e limitariam do exterior,
a experiência se torna experimentação. Trata-se de entrar em sintonia com estes diferentes
regimes de velocidade e lentidão, pois é ‘pela velocidade e lentidão que a gente desliza entre
as coisas, que a gente se conjuga com outra coisa: a gente nunca começa, nunca se recomeça
tudo novamente, a gente desliza entre, se introduz no meio, abraça-se ou se impõe ritmos’
(idem). As coisas, sejam elas orgânicas, inorgânicas, naturais, artificiais, etc. parecem se
animar e ao mesmo tempo em que se multiplicam desde seu interior, vêem proliferar as
bordas pelas quais são criados pontos de contato com o que lhes é exterior, de maneira que
estas fronteiras se tornam flutuantes, móveis, continuamente tracáveis e retraçáveis.
“Todo ponto tem seus contrapontos: a planta e a chuva, a aranha e a mosca. Nunca, pois, um animal, uma coisa, é separável de suas relações com o mundo: o interior é somente um exterior selecionado; o exterior, um interior projetado; a velocidade ou a lentidão dos metabolismos, das percepções, ações e reações entrelaçam-se para constituir tal indivíduo no mundo” (DELEUZE, 2002, p. 130).
Como podemos ver estas colocações ultrapassam o domínio de uma filosofia da arte,
mas guardam com ela um vínculo importante. É a partir das consequências extraídas desta
relação com o plano das forças, com este plano de composição e experimentação, que se
coloca a linha de corte entre arte como empreendimento vital e criação e a mera representação
ou proliferação de clichês20.
A captura de forças diz respeito não só a um certo modo concreto de ‘funcionamento’
da arte (questões relativas ao ato de criação, materialidade da obra, modos e efeitos sobre a
recepção, etc), mas também a seus enlaces sutis e ao mesmo tempo vigorosos com a vida
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!20 Para Deleuze e Guattari não há arte representativa: “nenhuma arte, nenhuma sensação jamais foram representativas” (1992, p.248)
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prática (reverberação sobre outros planos de atividade e práticas sociais). Na verdade, a nosso
ver, estas distinções são de difícil demarcação, sendo válidas apenas à título de clareza
expositiva tendo em vista que é precisamente seu ‘modo de funcionamento’ que engendra seu
modo peculiar de reverberação e produção de efeitos.
Como afirma Sauvagnargues,
“a captura de forças abre à filosofia da arte uma via nova. Contra a hermenêutica que chapa a obra sobre o sujeito, contra a interpretação estrutural ou sociológica que encontra na obra a efetividade de estruturas objetivas, a captura de forças permite substituir a relação forma-matéria, pelo par material forças. Colocando em contato as forças heterogêneas que produzem uma captura inédita, a obra associa criador e receptor em um devir real que dá conta da mutação das culturas.” (SAUVAGNARGUES, 2006, p. 107).
O que está em jogo na arte, e que faz dela um ‘empreendimento vital’, é o constante
relançamento sensível, ou do sensível, em condições de experimentação. A noção de captura é
importante pois dá conta deste caráter de presença e coação, de um encontro com um ‘fora’
que mobiliza a sensibilidade, força o pensamento e termina por engendrar a criação de um
novo modo de vida, uma nova maneira de compor com o mundo. Ou sendo mais precisos, de
compor um mundo.
Seja o cinema, a literatura, a música, ou qualquer outra modalidade artística, trata-se
sempre de pensar como o trabalho sobre o sensível e do sensível opera sob vias outras que
aquelas submetidas às necessidades da ação ou ainda, ligadas ao encadeamento de
representações segundo a ordem da significação e do discurso. De uma certa maneira o
dispositivo artístico coloca em jogo um processo de dupla face: libertação do sensível e via
sensível.
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Os grandes poetas sempre disseram que a linguagem é por demais gasta, e que seu
trabalho é o de limpá-la. Redescobrir nas palavras seu poder virginal. Poder este que não deve
ser confundido com uma origem casta, pois diz respeito à uma potência sempre renovada.
“Introduzir o delírio no verbo”, esclarece Manoel de Barros (2001, p. 15). Francis Ponge, por
sua vez, busca dar uma imagem mais concreta tomada de empréstimo da pintura. Ele diz para
supormos:
“Matisse por exemplo.... para fazer seus quadros, só tivesse um grande pote de tinta vermelha, um grande pote de amarelo, um grande pote, etc...., um mesmo pote onde todos os pintores desde a antiguidade (os franceses, digamos), e não somente todos os pintores, todos os zeladores de prédios, todos os encarregados de canteiros de obras, todos os camponeses tivessem molhado o pincel, e depois pintado com isso. Eles mexeram o pincel lá dentro, e depois vem Matisse e pega esse azul, esse vermelho, imundos desde sempre [...]. E é preciso que ele dê a impressão de tinta pura! Coisa realmente difícil de conseguir.”(PONGE, 1997, p. 141).
Não teria sido Ponge mais realista do que imaginava em seu exemplo? A saturação dos
meios de expressão não é a situação (cada vez mais preemente) dos pintores, dos fotógrafos,
dos cineastas? Porquê não dizer, dos músicos? Não nos encontramos hoje diante do perigo do
soterramento diante da proliferação vertiginosa das imagens (auditivas/visuais), ou sendo
mais precisos, diante de uma certa configuração sócio-política (em um sentido amplo) que
tem como um de seus mecanismos/efeitos uma política das imagens nas quais estas
funcionam apenas como índices ou disparadores de esquemas prêt-à-porter de significação e
ação?
Como dizem Deleuze e Guattari (1992):
“O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página em branco; a página ou a tela já estão de tal modo cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso antes de tudo apagar, limpar, laminar, até mesmo retalhar, para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão”(DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 262).
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Trata-se portanto de libertar a matéria expressiva de suas ligações usuais, de seus
esquemas significativos ou clichês. Na verdade poderíamos dizer mais precisamente que a
matéria só alcança a expressividade quando liberta destas ligações usuais, quando se coloca
como um meio de indeterminação por onde passa essa lufada de caos, de maneira a lançar o
regime sensível para fora de seus quadros habituais de referência. O trabalho operado no
material sensível visa restituir a ele sua integralidade e sua força próprias, como se esboça na
fórmula de Godard “não é sangue, é vermelho” (GODARD apud DELEUZE, 1985, p. 34). E
isto não é pouca coisa, como nos lembra o crítico de cinema Serge Daney (2007), numa
sociedade em que se diz ‘eu vejo’como sinônimo de ‘eu entendo’. É a literalidade do mundo
que se coloca como livro aos olhos do artista e que, se este for feliz em seu processo de
criação, é levada adiante na obra. Pensar a arte como captura de forças é retirá-la do regime
das significações discursivas (e das representações mentais e privadas de um sujeito) fazendo
fugir o plano sensível do regime da interpretação. É isso o que está em jogo quando Deleuze
(1992) fala em devolver à imagem sua integralidade, trabalhar na literalidade da imagem.
Uma imagem21 não representa nada, não comunica nada, nada lhe falta pois ela possui
realidade própria.
“De uma arte à outra, a natureza das imagens varia e é inseparável das técnicas: cores e linhas para a pintura, sons para a música, descrições verbais para o romance, imagens movimento para o cinema, etc. E, em cada caso, os pensamentos não são separáveis das imagens, eles são completamente imanentes às imagens. Não há pensamentos abstratos que se realizariam indiferentemente em tal ou tal imagem, mas pensamentos concretos que não existiriam senão por estas imagens e seus meios” (DELEUZE, 2003, p. 194)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!21 Cabe ressaltar que Deleuze trabalha aqui com a noção bergsoniana de imagem presente em Matéria e Memória. A imagem não é um duplo, uma representação de um sujeito. Em suas palavras: “Existem imagens, as coisas mesmas são imagens, porque as imagens não estão na cabeça, no cérebro. Ao contrário, é o cérebro que é uma imagem entre outras. As imagens não cessam de agir e reagir entre si, de produzir e de consumir. Não há diferença entre as imagens, as coisas e o movimento” (DELEUZE, 1992, p. 57).
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É o regime da interpretação que supõe algo que lhe falte e que funcionaria como o
suporte de sua existência. Desta maneira se ‘invoca uma transcendência, pára-se o movimento
para introduzir uma interpretação no lugar de experimentar’ (DELEUZE, 1991, p. 20). Algo
exterior à imagem viria a se sobrepor à ela como um decalque. Este algo ‘exterior’ realizaria o
que Deleuze chama de um ‘golpe de estado’ que ‘normalizaria’ e ‘regularia’ aquilo que se
apresenta. Mas Deleuze repete reiteradas vezes, não se trata de interpretar, mas de
experimentar. Falar em captura de forças ou dos blocos de sensações é retirar a arte do regime
da interpretação para colocá-la sob o plano da experimentação sensível. A literalidade da
imagem implica ou é correlata à um trabalho rizomático da percepção. A obra funciona então
como um programa de experimentação.
Coloca-se em jogo a produção da ‘sensibilidade no sensível’, ou seja, a instauração de
um regime de experiência sensível de outra ordem que aquela recognitiva, na qual tudo aquilo
que nos comparece é imediatamente revertido em esquemas pré-definidos de ação ou
interpretação. O desafio do artista é então fazer a forma alcançar este ponto em que se vê
assombrada pelas forças que nela atuam. Trata-se de fazer vibrar a forma de maneira a tornar
visível ao mesmo tempo sua materialidade e a ação das forças. É isto um percepto. Como
lembra José Gil (1996), o percepto envolve três níveis coexistentes de percepção:
“uma percepção trivial (e trivialmente cognitiva) das formas (certa paisagem de Giorgione representa um campo, casas, etc.); a percepção de um outro espaço ou ‘lugar’ em que o olhar descobre, de maneira não-trivial, outros movimentos e outras relações entre as formas, as cores, os espaços, as luzes; e por fim, a percepção do intervalo entre estas duas percepções” (GIL, 1996, p. 290).
É a partir da apreensão do intervalo que se abre um plano de movimento onde as forças
animam as formas ao nível da percepção trivial, abrindo caminho para uma apreensão
‘estética’. Há ainda uma outra passagem esclarecedora:
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“As formas da marinha de Turner reverberam de um movimento em fim que arrebata consigo mil outras sensações de luz num ‘horizonte’ infinito: constrói-se um plano de movimento onde surgem forças que investem as formas. As forças não se põem, todavia, ao serviço das formas, como se a sua função fosse dar vida a estas últimas (manifestando assim a presença de um ser). A marinha de Turner não revela nem ‘o ser’ nem a essência de uma marinha: abre o olhar sobre o infinito do movimento das forças que nos ‘religam’ a uma marinha (não a esta marinha-real-referente ou não à sua idéia, mas àquilo mesmo, às próprias formas pictóricas, que Turner criou na tela).” (idem, p. 301).
O artista compõe uma sensação quando faz um meio material alcançar uma vibração, uma
faiscação, um ziguezague, como se algo corresse dentro de si mesmo. Distante do conceito
que marcou o elementarismo associacionista e a psicologia clássica, para Deleuze e Guattari a
sensação não é simples, mas sintética.
Cada sensação está em diversos níveis, em diferentes ordens ou em vários domínios. De modo que não há sensações de diferentes ordens, mas diferentes ordens de uma mesma sensação. É próprio da sensação envolver uma diferença de nível constitutiva [...]. Daí o caráter irredutivelmente sintético da sensação” (DELEUZE, 2007, p.44/45).
É essa vibração que se espraia e ganha os mais diversos domínios, como uma fagulha que
disparasse um rastilho que se desdobrasse em múltiplas conexões. “O objeto de arte
desencadeia e liberta nas suas formas um jogo de forças num plano infinito de movimento:
liberta o infinito, e oferece-lhe um ‘medium’ onde desdobrar-se e desenrolar-se. É isto uma
obra de arte” (GIL, 1996, p. 301). O sucesso ou o fracasso do artista na composição da obra
deriva de seu sucesso ou fracasso na construção deste medium.
Se falamos anteriormente em “plena complementaridade, enlace de forças como
perceptos e de devires como afectos” é porque há uma dupla captura. No material expressivo
e do material expressivo. A composição de forças no percepto é condição da sensação, do
poder de afecção que responde pelo encontro do espectador com a obra.
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A obra de arte emite forças que ressoam no espectador, tecendo-se assim um plano de
movimento entre a obra e aquele que a percebe, de maneira que não se pode mais falar em
termos de sujeito e objeto. O regime da percepção se vê transformado. Por isso dizíamos que
a literalidade da imagem artística implica ou é correlata de um trabalho rizomático da
percepção. Esta entra em um regime de experimentação. Estamos fora da ordem da
comunicação, pois trata-se de ‘conexão, contágio e mestiçagem num plano único infinito’
(GIL, 1996, p. 302). Daí falarmos que uma obra nos pega ou não; pois ‘conectamo-nos com
ela ou não nos conectamos; construímos um plano com as nossas próprias forças e com as que
emanam do objeto ou ficamos ‘no exterior’ (limitados à mera percepção trivial das formas)
(GIL, 1996, p. 302). Dizemos que a obra nos pega quando se instaura uma zona de
vizinhança, de indiscernibilidade, um afecto ou um devir.
“Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em via de nois tornarmos, e através das quais nos tornamos” (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 334).
O artista é então um mostrador de afectos, criador de afectos, pelos perceptos ou visões
que nos dá. Não é somente em sua obra que ele os cria, pois ele nos apanha no composto e
nos faz transformarmo-nos com eles (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 227). Há uma
frequentação daquilo que é não eu. É neste sentido que Deleuze fala da arte frequentemente
como um encontro. É todo um regime de reverberação de forças que entra em jogo,
produzindo um movimento cuja origem e caminhos são inauditos. Paul Klee falava de
“um certo fogo que surge, que se acende, que avança através das mãos para atingir a tela, que incendeia a tela, que salta em faíscas, fechando o círculo ao retornar para o seu lugar de origem: alcançando os olhos e continuando seu avanço.” (KLEE, 1964, p. 38)
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Emprestamos nosso corpo aos fluxos a-centrados e intensivos do mundo que vibram na
obra. Entrar nela é seguir os fios e circuitos que a partir dela se impõem; e para fazê-lo é
preciso manter-se ainda na inocência de seu fazer-se, de seu desdobrar-se. Tudo o que
comparece na obra é matéria de expressão pois não guarda ainda a chave total de seu sentido.
Este sentido é tênue e depende de....e de..... e de..... e...... somos tragados por estes vastos
circuitos. Como diz Zourabichvili,
“o contra-senso seria pensar que a visão desencadeia a evocação: é ela ao contrário que procede ao acoplamento de um conjunto de traços objetivos e de uma imagem mental que se selecionam mutuamente. E ela se aprofunda por retornos sucessivos ao objeto, um novo aspecto do objeto sendo revelado ou passando ao primeiro plano em ressonância com uma nova camada psíquica” (ZOURABICHVILI, 2004b, p. 30).
A relação que se empreende então com a obra seria mal compreendida se pensada como um
mero acoplamento entre uma percepção objetiva e uma projeção imaginária, pois é da ordem
de uma experimentação afetiva. Por isso podemos dizer que a arte nos trabalha. Na verdade,
nós somos trabalhados todo o tempo, tudo o que vivemos, tudo o que vimos, sentimos,
sofremos, manejamos, enfim, a própria vida é este trabalho. Mas por incrível que pareça a
própria vida, as necessidades e exigências que a compõem seja no plano orgânico, seja no
plano das relações coletivas e sociais, faz obscurecer estes meios de trabalho, isto que
comparece como matéria de um trabalho sobre nós mesmos. Como diz Fernando Pessoa, ou
melhor, Bernardo Soares, “a vida prejudica a expressão da vida” (PESSOA, 1986, p. 175). É
por meio da arte que o trabalho desta matéria pode vir à tona. Não no sentido de explicar
aquilo que somos (na verdade isto também pode ocorrer, mas não é o mais importante); mas
sim no sentido de que nos vemos ao mesmo tempo como significação sedimentada e como
matéria movente, ou seja, no sentido de que nos implicamos naquilo em que estamos em via
de nos tornarmos. Sentimos.
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Foi Walter Benjamim quem, sobre Proust, afirmou:
“ele está convencido da verdade de que não temos tempo de viver os verdadeiros dramas da existência que nos é destinada. É isso que nos faz envelhecer, e nada mais. As rugas e dobras do rosto são as inscrições deixadas pelas grandes paixões, pelos vícios, pelas intuições que nos falaram, sem que nada percebêssemos, porque nós, os proprietários, não estávamos em casa” (BENJAMIM, 1994, p. 46).
A arte era para Proust, então, um chamado às muitas vidas não vividas. Envelhecemos não
por aquilo que vivemos, mas por aquilo que deixamos de viver. Há toda uma miríade de
pequenos universos que surgem e evanescem, que se entrecruzam e se abrem, e que nós
simplesmente ignoramos. Para além das necessidades adaptativas, temos também o hábito de
nos reportar a nossas experiências pelo viés do saber discursivo que as qualifica, como se toda
experiência tivesse por fim a construção de um ‘texto’. Assim, nos colocamos
instantaneamente fora do plano da experiência, pois deixamos de lado tudo aquilo que é
exterior a inteligibilidade deste ‘texto’, ao plano de coerência ‘narrativa’ da vida. Mas a
sensibilidade permite que experimentemos muito mais do que aquilo de que temos
consciência. Ao trazer a tona estas linhas menores, estes pequenos universos deixados de
lado, a arte nos convoca continuamente a habitar, ou melhor, nos captura e faz entrever este
plano mais amplo da experiência. Engendra-se uma criação de possíveis, uma nova forma de
afetar e ser afetado, logo, de compor com o mundo. De compor um mundo. Por isso quando
uma obra nos toca sentimos algo como um giro e ao mesmo tempo abertura, um sopro. A obra
não é maravilhosa, é ‘maravilhante’ como diz Fellini (1986, p. 143). Pois ela nos põe em
contato com um plano de virtualidade que coexiste com o plano da experiência cotidiana. Daí
a estranha impressão de um silêncio polifônico. Todos aqueles que foram em algum momento
impactados por uma obra, foram já habitados por essa estranha sensação de um giro em falso,
de uma iminência fulgurante e ao mesmo tempo sempre postergada de um novo universo.
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Sentimos como que um alargamento interior que não se preenche. E alguma coisa vibra. É
isto uma sensação. Como diz Friederich Schiller, “nós nos encontramos simultanemante no
estado de supremo repouso e de suprema agitação; disso resulta a maravilhosa emoção para a
qual a inteligência não possui conceito e nem a língua nome” (SCHILLER, 1943, p.208).
É certo que essa experiência traz em si seus riscos, seu matiz de angústia e de
intolerável uma vez que é todo um sistema de referências, de pontos de orientação de ação e
significação que são colocados em jogo. Como diz Deleuze, a partir de um conto de
Fitzgerald, se dá uma fissura:
“a fissura se faz sobre esta nova linha, secreta, imperceptível, marcando um limite de diminuição de resistência, ou o aumento de um limite de exigência: não suportamos mais o que suportávamos antes, ainda ontem; a repartição dos desejos mudou em nós, nossas relações de velocidade e lentidão se modificaram, um novo tipo de angústia nos vêm, mas também uma nova serenidade” (DELEUZE, 1996, p.153).
Vemos aqui como se abre e se desdobra uma dimensão ético-política, pois o que está em
jogo é a criação de um nova sensibilidade, a irrupção de novas formas de sentir, pensar e agir,
seja no plano individual ou coletivo. Uma criação de possíveis. Como afirma Sauvagnargues:
“o artista se torna o operador de uma transformação do gosto que respinga sobre os modos. A
arte, clínica da sociedade, expõe sua crítica social ao mesmo tempo que testemunha novos
tipos de subjetivação” (SAUVAGNARGUES, 2006, p. 29).
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2. Arte e vida: experiência estética, conversão da atenção e a possibilidade de uma
abertura
2.1 Arte como experiência em John Dewey
O propósito manifesto de John Dewey em Art as experience, um conjunto de palestras
proferidas na Universidade de Harvard em 1932 e publicadas em 1934 em volume único na
obra que leva este título, era o de “restabelecer a continuidade da experiência estética com os
processos normais do viver” (DEWEY, 2005, p.9). Suas colocações se voltam contra aquilo
que ele denomina de ‘concepção museológica da arte’, cujo poder se reflete em nossa
excessiva reverência a obras de arte consagradas e que nos leva a pensar a arte como sendo
profundamente desconectada da vida. Para Dewey a própria idéia de uma ‘obra de arte’,
paradoxalmente, constitui um obstáculo para a compreensão do fenômeno artístico. A partir
dela somos inclinados a esquecer a dimensão processual da arte para tomá-la como um
produto bem acabado e separado das condições que a tornaram possível. Uma série de fatores
históricos, como por exemplo a constituição dos museus no contexto da consolidação do
imperialismo e do nacionalismo europeus, assim como o desenvolvimento do capitalismo,
participam, segundo Dewey, deste movimento de afastamento entre arte e vida comum. No
entanto, a démarche de seu pensamento não se volta para o delineamento destas condições
históricas de afastamento, mas sim para a descrição da dimensão processual da arte. Para isto
empreende um détour ao se voltar para aquilo que ele denomina como os ‘processos normais
do viver’, e que constituirá a base de sua compreensão desta dimensão. Daí a importância do
conceito de experiência, por ele assim definida:
“experiência, no grau em que é experiência, é vitalidade potencializada. Ao invés de significar estar fechado em sentimentos e sensações privadas, significa comércio ativo e alerta com o mundo; em seu ápice significa a completa interpenetração do self com o mundo dos objetos e acontecimentos. Ao invés de significar submissão ao capricho e a desordem, ela permite nossa
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única demonstração de estabilidade que não é estagnação mas é rítmica e em desenvolvimento. Porque a experiência é processo de realização de um organismo em suas lutas e sucessos em um mundo de coisas, é arte em germe. Mesmo em suas formas mais rudimentares, ela contém a promessa daquela prazerosa percepção que é a experiência estética” (DEWEY, 2005, p. 18-19).
A experiência é pensada em termos processuais, o desenrolar rítmico das relações de um
organismo com o meio que o circunda. As necessidades e possibilidades de ação dos
organismos vivos vão constituindo graus cada vez mais complexos e variados de interação
com o meio, de forma que é a modulação deste processo que desenha as linhas gerais da
experiência. As ações dos seres vivos direcionadas ao suprimento de suas necessidades e,
portanto, voltadas à diminuição da distância existente entre eles e seu meio, produzem elas
mesmas novas necessidades e, consequentemente, um novo distanciamento, o que requer
nova mobilização de forças. O que é importante ressaltar, é o caráter contínuo e processual
desta interação, já que há sempre um jogo de aumento de tensão e resolução desta tensão. Se a
distância em relação ao meio se torna muito grande, o processo é interrompido e o organismo
sucumbe. Neste caso há uma resolução das tensões, e portanto um equilíbrio, mas este
equilíbrio toma a forma de uma estagnação absoluta. A morte é assim um grau ‘zero de
tensão’, mas alcançada ao alto preço da completa aniquilação das forças de um organismo. É
a questão da adaptação que está em jogo, mas esta é colocada como processo sempre
expansivo de equilibração. Numa vida que se desenrola, a retomada de um equilíbrio nunca é
o retorno a um estado anterior, pois é enriquecida pelo estado de disparidade e resistência pelo
qual ela passou. “Aqui estão em germe o balanço e a harmonia alcançadas por ritmo” (idem,
p. 13), e por isso Dewey afirma que “a arte é prefigurada nos processos do viver” (idem, p.
25). A medida que os seres se complexificam esses movimentos rítmicos de luta e realização
vão ganhando também graus cada vez mais variados e prolongados, incluindo uma variedade
infinita de subritmos. O surgimento dos processos conscientes não marca assim uma ruptura
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entre o homem e as ditas ‘escalas inferiores’ de vida, mas aponta para uma crescente
matização, uma gama maior de nuances tanto nas possibilidades de ação quanto nos meios de
realização.
“O que era um simples choque torna-se um convite; a resistência se torna algo a ser usado nas disposições mutáveis da matéria; meios estáveis tornam-se veículos para a execução de uma idéia. Nestas operações, um estímulo orgânico torna-se o portador dos significados, e as respostas motoras são transformadas em instrumentos de expressão e comunicação; elas não mais são simples meios de locomoção e reação direta. Enquanto isso, o substrato orgânico permanece como a base aceleradora e profunda. Sem as relações de causa e efeito na natureza, a concepção e a invenção não poderiam existir. Sem as relações de processos de conflito rítmico e satisfação na vida animal, a experiência ocorreria sem planejamento e padrão. Sem os órgãos herdados dos ancestrais animais, idéia e finalidade existiriam sem um mecanismo de compreensão” (DEWEY, 2005, p. 25-26)
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Mais importante do que o estabelecimento de uma diferença profunda entre o humano e
as outras escalas da vida é ressaltar o fato de que o equilíbrio entre o ser vivo e o ambiente é
dinâmico e envolve a potencialização das forças da vida. É neste sentido que, enquanto
contínuo processo de movimento e culminação (ou realização), experiência é vitalidade
potencializada.
Mas se Dewey começa a discussão a partir da questão da experiência, parte em seguida
para a definição do que é uma experiência. Pois, segundo ele, grande parte de nossas
experiências habituais, ou em suas palavras “a vida institucional da humanidade”, são
incompletas. Há na base de nossas sociedades ocidentais a idéia de que organização social
implica a compartimentalização da vida. Estes diferentes compartimentos são
institucionalizados, gerando uma ruptura cada vez maior entre ocupações e interesses, ações e
percepções, emoções e práticas. Nossos sentidos trabalham desconectados entre si e o
pensamento se desdobra à margem da sensibilidade e do afeto. Nossas ações não são guiadas
por nossos insights e não encontram a fina articulação e o alcance que teriam se o fossem. As
forças mobilizadas em nossas ações e idéias não encontram sua completa realização pois
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sofrem a constante intervenção de solicitações externas. A experiência não encontra assim sua
integralidade pois suas variações internas e seus diversos momentos não são integrados num
todo coerente e as forças que foram mobilizadas neste processo não são levadas a termo,
sendo interrompidas antes de seu completo esgotamento. Levantamos barreiras entre estas
diferentes esferas e tomamos como naturais distinções que na verdade são da ordem do efeito.
Desta forma podemos chegar a conclusões simétricas como, por exemplo, as de que um artista
não pensa e que o trabalho intelectual exclui a dimensão afetiva. Ou ainda, que toda ação é
cega e que toda percepção é inativa. Ao trabalhar a partir do conceito de experiência Dewey
busca embaralhar estas categorias. Ou melhor, busca trabalhar fora de seus quadros, tornando
evidente que há uma dimensão de certa maneira mais informe a partir da qual estas categorias
serão posteriormente estabelecidas. Dewey chama a atenção para o fato de que algumas
palavras amplamente utilizadas em nosso cotidiano trazem ainda em si as marcas destes
atravessamentos, ou destes, poderíamos dizer, curto-circuitos. É o caso, como aponta Dewey,
da palavra sense (sentido):
“’Sentido’ cobre uma ampla gama de temas: o sensório, o sensacional, o sensível, o sensato e o sentimental, além do sensorial. Inclui quase tudo, desde o puro choque físico e emocional até o próprio sentido – ou seja, o significado das coisas presente na experiência imediata. Cada termo se refere a alguma fase e aspecto real da vida de uma criatura orgânica enquanto a vida acontece por meio dos órgãos sensoriais. Mas sentido, como significado tão diretamente incorporado na experiência como o ser é o próprio significado iluminado, é o único significado que expressa a função dos órgãos sensoriais quando eles são carregados para a realização plena. (…) Este material não pode se opor à ação, porque o aparato motor e a própria ‘vontade’ são os meios através dos quais esta participação é continuada e dirigida. Não pode ser oposto ao ‘intelecto’, porque a mente é o meio através do qual a participação torna-se fértil através do sentido; através do qual os sentimentos e valores são extraídos, retidos e colocados para demais utilidades no relacionamento da criatura viva com sua vizinhança” (DEWEY, 2005, p. 22).
Se o conceito de experiência dá a direção do pensamento de Dewey, a idéia de uma
experiência visa, ao mesmo tempo, tornar esta direção mais evidente e precisa no que diz
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respeito a sua ligação com a arte. Pois o artigo uma aponta precisamente para uma qualidade
da experiência, sua qualidade estética. Mas caminhemos por partes.
Uma vez que a experiência é um processo de interação entre o organismo vivo e seu
ambiente, num jogo de ação e recepção que ocasiona a constante reorganização de forças,
ações e materiais, ela é portanto um processo contínuo. No entanto, como expusemos logo
acima, ainda que se dê continuamente, a experiência muitas vezes é incompleta. Seus
diferentes elementos e momentos não se articulam, a sucessão de ações é mecânica e as forças
envolvidas são interrompidas antes de se esgotarem. Seja por pressões externas, seja por uma
letargia interna, nesses casos a experiência não alcança sua plenitude. Por outro lado, há certas
experiências que se destacam deste fluxo corrente, pois os materiais e elementos
experienciados seguem seu curso até sua completa realização e assim ganham um aspecto de
totalidade, se individualizando em uma experiência. Como marca Dewey, é comum nos
lembramos de experiências deste tipo dizendo: “aquilo foi uma experiência!”. Um trabalho
terminado de forma considerada satisfatória, um jogo de xadrez, uma conversa ou ainda uma
refeição podem ser experiências deste tipo, desde que os diversos momentos que as integram
se encaminhem para sua completa realização. Podemos até não saber encadear os diferentes
acontecimentos envolvidos ou recordar em detalhes cada cena do que se passou, mas temos a
impressão de uma totalidade, de que aquela experiência pela qual passamos guarda uma
qualidade específica que a faz distinta do conjunto de nossas outras vivências. Nas palavras de
Dewey:
“Uma experiência possui uma unidade que lhe confere seu nome, aquela comida, aquela tempestade, aquela ruptura de amizade. A existência dessa unidade está constituída por uma qualidade única que penetra toda a experiência, apesar da diferença de suas partes constitutivas. Unidade que não é nem emocional, nem prática, nem intelectual, porque estes termos denominam distinções que a reflexão pode estabelecer no interior dela. No discurso sobre uma experiência, somos forçados a usar tais adjetivos de interpretação. Estudando uma experiência após sua
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ocorrência, podemos observar que uma propriedade, mais do que outra foi dominante, de maneira a caracterizar a experiência como um todo” (DEWEY, 2005, p. 38).
Toda experiência integral, a qual nos referimos como uma experiência, guarda em si um
movimento de variação interna que só é interrompido em função da satisfação das condições
que o levaram a ser iniciado. Há, paralelamente ao aspecto dinâmico, uma relação de parte e
todo na qual as partes guardam sua distinção, mas ainda assim se articulam intimamente em
relação ao todo. É a esta integração interna que Dewey dá o nome de qualidade estética.
Assim, uma experiência sempre possui qualidade estética. O trabalho de um pensador
envolvido em uma especulação filosófica não é, neste sentido, diferente do trabalho de um
artista ao realizar uma obra de arte. Conforme a citação acima, é apenas a posteriori que
qualificamos a experiência do pensador como intelectual, pois enquanto a experiência se dá,
no momento em que a especulação filosófica trilha seus rumos, sua bifurcações, seus
impasses e hipóteses, ela é também emocional, volitiva e prática. Se tomamos a experiência
da especulação filosófica como meramente intelectual, o fazemos por confundir a experiência
em si com o resultado ao qual ela chegou. Mas uma conclusão não foi sempre uma entidade
separada e independente, e sim a resolução ou o acabamento final de um movimento que
envolveu indecisões, bifurcações, impasses, similaridades, confluências, etc., tendo por fim a
resolução das tensões envolvidas. Os inimigos do estético não são portanto nem o prático nem
o intelectual. Mas sim estes dois limites opostos: a sucessão lassa, que não começa em
nenhum lugar específico e não caminha em nenhuma direção; e o marasmo, a constrição, a
estagnação completa que não implica em nenhuma ação, nenhum movimento. A marca que
confere à experiência sua qualidade estética é o processo de conversão das tensões em um
movimento integrado, o qual Dewey busca descrever quase poeticamente:
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“A experiência, como o respirar, é um ritmo de inspirações e expirações. Sua sucessão é pontilhada e tornada um ritmo pela existência de intervalos, pontos nos quais uma fase cessa e a outra está latente e em preparação. [...] Cada lugar de descanso na experiência é um padecer em que são absorvidas e empregadas as consequências de um fazer anterior e, a menos que o fazer seja o do total capricho ou o da rotina pura, cada fazer traz em si próprio um significado que foi extraído e conservado. Como no avanço de um exército, todos os ganhos já efetuados são periodicamente consolidados, e sempre em vista do que se fará depois. Se nos movemos rápido demais, afastamo-nos da base de suprimentos – dos significados acumulados – e a experiência é aturdida, pobre e confusa. Se perdermos tempo demais após havermos extraído um valor líquido, a experiência perece de inanição” (DEWEY, 2005, p. 58).
É certo que se Dewey estabelece uma continuidade entre diversas experiências,
aproximando o trabalho intelectual do trabalho artístico por exemplo, ele também marca
pontos de afastamento. Um destes é a colocação de que, do fato de que toda experiência que
tenha o sentido pregnante de uma experiência possua qualidade estética, não se segue que
todas estas sejam experiências estéticas. Afirmamos acima que a conclusão de um raciocínio
nem sempre foi uma entidade independente, mas isso não significa que ela não possa vir a
alcançar este estatuto. Uma determinada conclusão pode vir a ser utilizada como premissa em
um outro campo de investigações, ela configura assim o que Dewey denomina um resíduo
auto-suficiente. Isto não acontece com um obra de arte. Um romance não se resume a seu
capítulo final ou a uma ‘mensagem’ que seria transmitida pelo livro, mas vale pela própria
experiência da leitura, temos assim de passar pelo livro. Os efeitos muitas vezes duradouros
desta experiência derivam de sua continuidade em relação às operações envolvidas no longo e
cumulativo processo de interação com o mundo que chamamos viver.
Uma vez que vimos que para Dewey uma experiência, seja ela prática, intelectual ou de
qualquer outra natureza, possui sempre qualidade estética, qual o lugar da arte e da
experiência estética stricto sensu? Para além da proposta explícita e central da estética
deweyana de aproximar a arte dos “processos normais do viver”, nota-se ao longo de Art as
experience o esforço de Dewey por superar toda uma série de dicotomias tradicionais como
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belas-artes e artes aplicadas, erudito e popular, material e ideal, pensamento e sentimento,
estético e cognitivo ou prático, ou ainda artistas e público em geral. Mais do que erigir
distinções nítidas, há um esforço da parte de Dewey em propor continuidades e associações.
Desta forma, ainda que distinções se façam presentes, elas não ganham traços fortes em seu
pensamento. Isto fica evidente em sua discussão acerca do uso dos termos artístico e estético.
Como ressalta Dewey, não há na língua inglesa (assim como não há em português) uma
palavra que dê conta dos diferentes sentidos que atribuímos separadamente a artístico e
estético. É comum utilizarmos o termo artístico para um fazer, para o ato da produção de uma
obra ou a realização de uma peformance, como a encenação de um papel, uma dança, a
recitação de um poema, etc. Há sempre um trabalho sobre uma matéria física, seja ela o
próprio corpo ou algo que lhe é exterior, daí a importância assumida pela idéia de execução.
Dewey marca que por vezes a arte chega mesmo a ser definida como a perfeição na execução.
Por outro lado, o termo estético se encontra ligado à percepção e à fruição de uma obra ou
performance, ao prazer experimentado diante destas. Marca a posição do espectador mais do
que aquela do artista. O conceito de experiência estética visa exatamente aproximar essas
duas noções, pois ainda que haja possíveis distinções a serem estabelecidas estas não devem
configurar uma separação. A perfeição na execução, ou uma mera precisão técnica não
garantem a qualidade de uma obra ou de um artista. Dewey cita Cézanne, que segundo ele não
é extremamente técnico, mas é inegavelmente um grande pintor. Por outro lado, há grandes
performers que não são grandes ‘esteticamente’ (DEWEY,1934, p.49). A arte extrapola a
questão da técnica. Para Dewey, “para ser verdadeiramente artística, uma obra deve ser
necessariamente também estética – ou seja, feita para ser gozada na percepção receptiva”
(idem, p. 49). Não se trata de negar a técnica, e Dewey bem à sua maneira concreta e direta,
não se cansa de ressaltar a importância das conexões motoras tanto na produção quanto até
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mesmo na recepção estética. Saber olhar ou ouvir implica ter as conexões motoras disponíveis
e preparadas, pois aquilo que vemos e ouvimos é em parte aquilo que podemos também fazer.
E essa preparação advém em grande parte da técnica. Um músico que ouve uma performance
é capaz de realizar mentalmente os caminhos e dificuldades de uma execução musical, isto se
faz presente em sua escuta. De um certo ponto de vista, as conexões motoras fazem também
parte dos órgãos dos sentidos, pois lhes são ligados e o funcionamento destas duas instâncias
é intimanente articulado em uma experiência completa. A experiência estética mobiliza assim
o corpo inteiro. Mas o que Dewey quer ressaltar em seu esforço por unir o artístico e o
estético por meio do conceito de experiência, é o fato de que nesta o fazer e o sofrer22 estão
em contínua e mútua relação. Não só se alternam num processo contínuo, mas se unem na
percepção. É isso que proporciona sentido. A extensão e a significação de uma experiência
são dadas a partir do âmbito e do conteúdo destas relações. Assim, por um lado, a experiência
de uma criança pode ser intensa, mas não ganha o devido alcance pois as relações entre o
fazer e o sofrer são “fracamente captadas” já que lhes falta o aparato da experiência passada
para lhe conferir profundidade e extensão. Por outro lado, ninguém nunca alcança um grau de
maturidade que lhe permita perceber todas as conexões envolvidas. A experiência se encontra
sempre neste ‘caminho do meio’. O artista, por sua vez, não cria apenas uma obra, mas por
meio dela cria uma experiência. Que deve ser continuamente recriada por aqueles que da obra
desfrutam. “Em uma palavra, a arte, em sua forma, une as mesmas relações de fazer e
padecer, a energia de ida e de vinda, que faz com que uma experiência seja uma
experiência”(DEWEY, 2005, p. 50). Os atos de criação e de fruição de uma obra não se
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!22 A tradução para o português dos verbos que Dewey usa continuamente para falar da dimensão receptiva da experiência, como ‘undergo’ e ’suffer’, pode trazer alguma dificuldade pois em português os verbos ‘padecer’ e ‘sofrer’ tem a conotação de algo doloroso. No entanto, isso não impede que os utilizemos neste contexto, pois como o próprio Dewey ressalta, há nesta dimensão da experiência algo que muitas vezes é tido como difícil e doloroso. Cabe apenas ressaltar que eles são prioritariamente utilizados em seu sentido mais amplo de ‘ser acometido por’.
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encontram assim como pólos totalmente opostos, já que tanto a criação artística envolve uma
dimensão receptiva (ou passiva) quanto a recepção ou a fruição estética envolve uma
dimensão ativa.
1.3.1 A dimensão receptiva do ato de criação
A importância da dimensão receptiva no ato de criação é ressaltada por Dewey a partir
de dois aspectos: tanto naquilo que leva o artista a criar quanto no próprio processo de criação
da obra. Dewey cita uma passagem do poeta Samuel Alexander: “O trabalho do artista
procede não de uma experiência imaginativa completa à qual a obra de arte corresponde, mas
sim da excitação apaixonada sobre a matéria... O poema do poeta é arrancado dele pelo tema
que o excita” (ALEXANDER apud DEWEY, 2005, p. 67). Há portanto uma agitação, um
acúmulo de energias ou nas palavras de Alexander, uma ‘excitação apaixonada’, que não só
mobiliza a atenção do artista como o leva a trabalhar. Segundo Dewey, todo ato de expressão
(que é como Dewey se refere ao ato de criação) envolve este grau de excitação, que é o que
faz com que aquilo que apareceria no mundo objetivo como simples objeto de
reconhecimento ou obstrução para determinados fins, se torne meio para a criação. Da mesma
forma, toda sorte de coisas que foram retidas a partir das experiências passadas do artista e
que de outro modo se enrigeceriam pela rotina tornando-se nada mais que esquecimento,
ganham nova vida e por isso se tornam “coeficientes em novas aventuras e vestem um traje de
novo significado” (DEWEY, 2005, p. 63). Há assim, em função da ‘excitação apaixonada’ e
da emoção, uma percepção revigorada não só do mundo exterior como também de si mesmo,
que arranca o poema do poeta. O verbo arrancar não comparece aqui gratuitamente, pois dá o
sentido de uma violência, de um estado de mobilização das forças em um processo de criação
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que guarda ao mesmo tempo uma certa estranheza, pois o artista não domina completamente
aquilo que o leva a criar, assim como sua própria criação. Isto está presente também na
citação de Alexander na afirmação de que a obra de arte não corresponde a uma experiência
imaginativa completa por parte do autor. É na medida em que a criação vai ganhando corpo,
que as idéias do autor vão, paralelamente, se tornando claras e ganhando corpo elas próprias.
Como afirma Dewey: “O ato de expressão não é algo que sobrevenha à uma inspiração já
completa. É o levar adiante até a conclusão uma inspiração, por meio do material objetivo da
percepção e do imaginário” (DEWEY, 2005, p. 69). Essa afirmação é de extrema importância
pois impede que incorramos em um erro que, segundo Dewey, invadiu a teoria estética e cujos
efeitos podemos constatar ainda hoje: tomar a expressão como um simples ato de dar vazão a
um impulso. “Descarregar é se ver livre de, liberar; expressar é permanecer, levar adiante em
desenvolvimento, desenvolver até o fim. [...] O que é às vezes chamado um ato de auto-
expressão seria melhor denominado como auto-exposição; ele expõe caráter - ou a falta dele -
para outros” (idem, p. 64). O ato de expressão que culmina com a produção de uma obra de
arte é um processo, uma construção no tempo, e não uma emissão instantânea. Isto não
significa apenas que leva tempo para o autor concluir sua obra, mas sim que este processo é
“ele mesmo uma interação prolongada de algo proveniente do self com condições objetivas,
um processo no qual ambos adquirem uma forma e uma ordem que não possuíam
anteriormente” (idem, p. 67-68). Há um intenso trabalho sobre a matéria, que configura, ao
mesmo tempo, a obra e o autor. Isto é importante pois fica claro que a relação do autor e com
a obra é muito diferente daquela na qual um sujeito no pleno exercício de sua vontade impõe
uma forma a uma matéria inerte. Em arte trabalha-se sobre um regime de constante
vulnerabilidade diante da matéria (seja esta uma cor, um som, uma palavra, etc.), uma vez que
as relações estabelecidas entre o artista e a matéria, seus meios de expressão, são relações de
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força. O músico Ray Charles, por exemplo, descreve esta relação como uma luta. Segundo
ele, sentar-se no piano sempre representou preparar-se “para uma luta, na qual o piano quase
sempre venceu”. Neste sentido, o artista de certa forma “encarna nele mesmo, a atitude do
percebedor enquanto trabalha” (DEWEY, 2005, p. 50), pois enquanto trabalha ele é guiado
pela percepção dos rumos que a obra vai ganhando. Há sempre um propósito inicial, mas no
processo de ganhar corpo e materialidade surgem novos matizes, novas orientações,
reformulações de toda ordem, de forma que há sempre uma percepção envolvida no processo
de criação. É o que diz também o pintor Francis Bacon em suas entrevistas ao crítico David
Sylvester:
“no meu caso, toda pintura – e quanto mais velho fico, mais isso é verdade – é fruto do acaso. Bom, prevejo em pensamento, prevejo a imagem, mas dificilmente ela será executada como fora prevista. Ela se transforma em decorrência da própria pintura. Eu uso pincéis muito grossos, e, por causa da maneira como trabalho, muitas vezes não sei o que a tinta fará, e ela faz muitas coisas que são muito melhores do que se seguissem estritamente minhas ordens. Isso seria obra do acaso? Talvez alguém dissesse que não, porque acaba tornando-se um processo seletivo que começa com algo imprevisto, selecionado para ser preservado. A pessoa, é claro, procura conservar a vitalidade do imprevisto mas preservando também a continuidade” (SYLVESTER, 1995, p. 16).
No processo de criação o artista é, então, continuamente guiado pela apreensão das
relações entre aquilo que já fez e o que deve fazer em seguida. É a partir destas percepções
particulares, assim como da percepção de como aquele conjunto pintado se concatena com o
produto final que entrevê, que o artista se guia enquanto realiza a obra. Dewey chega a
apontar, por exemplo, que a arquitetura contemporânea sofre uma desvantagem estética, tendo
obstáculos mais difíceis de serem contornados, já que o processo de realização é por demais
separado da concepção. Segundo Dewey um dos fatores que podem ser atribuídos à qualidade
estética das catedrais medievais é que no processo de construção destas, a idéia motriz e sua
incorporação objetiva eram processos razoavelmente simultâneos, pois as plantas eram
desenvolvidas na medida do crescimento das edificações. Um ponto importante a ser
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ressaltado é que esta apreensão das relações entre a ação a ser realizada e a recepção (ou o
sofrimento, o padecimento) daquilo que já realizou, apreensão esta que guia o artista, não é
intelectual. É uma apreensão direta que se dá no próprio plano da percepção. Assim, o
trabalho é artístico na medida em que duas funções de transformação são efetivadas por uma
única operação, uma vez que ao depositar o pigmento na tela, ou ao imaginá-la depositada
nela, as idéias e sentimentos do pintor também são ordenados. “Apenas por meio de uma
progressiva organização do material ‘interno’ e ‘externo’, em conexão orgânica um com
outro, pode alguma coisa ser produzida que não seja um documento aprendido ou uma
ilustração de algo aprendido.” (DEWEY, 2005,p. 78).
1.3.1 A dimensão ativa do ato de recepção
Segundo Dewey é mais difícil expor a dimensão ativa envolvida na percepção estética.
Neste caso somos levados quase diretamente a crer que aquele que percebe ou frui uma obra
de arte apenas apreende o que já está lá em sua forma acabada. Mas, no entanto, receptividade
não é passividade. Dewey ressalta que somos muito frequentemente passivos em nossa
relação com o ambiente que nos circunda. Seja por medo do gasto desnecessário de nossas
energias, seja pela constante pressão exercida pelas necessidades que temos de cumprir
diariamente, nos furtamos a propriamente perceber. Nos contentamos a permanecer no plano
do reconhecimento. E segundo Dewey a diferença entre as duas atitudes é imensa.
“Reconhecimento é percepção interrompida antes que tenha a chance de se desenvolver
livremente” (DEWEY, 2005, p. 54). No reconhecimento a coisa a ser percebida é logo
deixada de lado, pois dela retiramos apenas alguns traços proeminentes que nos servirão para
a realização de um outro propósito que não a percepção em si. O que se coloca em
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funcionamento portanto é muito mais um esquema de identificação, um estereótipo, cujo
efeito é o distanciamento do objeto inicial, pois parte-se dele para outra coisa. Neste
funcionamento não há também qualquer traço de comoção ou de envolvimento mais denso do
percebedor, pois uma vez que as relações se estabelecem no plano dos estereótipos tudo se
torna “cômodo demais para que desperte uma consciência vívida. Não há suficiente
resistência entre o antigo e o novo, que assegure a consciência da experiência que é tida”
(idem, p. 55).
Na percepção temos um cenário completamente diferente. Sem dúvida há um estado de
“docilidade do eu” que visa acolher e dar espaço aquilo que se apresenta. No entanto isto não
significa uma simples espontaneidade ou um relaxamento qualquer do organismo.
“A percepção é um ato de saída de energia a fim de receber, e não uma retenção de energia. Para tornarmo-nos impregnados de um assunto, temos primeiramente de submergir nele. Quando somos apenas passivos frente a um cenário, este nos oprime e, por falta de atividade de resposta, não percebemos aquilo que nos esmaga. Temos de fazer um chamado à energia e lançá-la como uma resposta a fim de assimilar” (DEWEY, 2005, p. 55).
O ato de perceber não se resume portanto a uma recepção fria de algo já dado, mas
requer uma intensa atividade que visa não só situar o organismo nesta condição de docilidade
receptiva como também levá-la adiante. Submergir naquilo que se nos apresenta é buscar
seguir seus rumos, ensaiar ligar os elementos que são apresentados seja entre si, seja ao
conjunto de experiências, saberes e idéias de que já dispomos, num contínuo processo de
reconstrução e experimentação. Neste processo lançamo-nos em nós mesmos para retornar ao
objeto percebido, e assim levamos continuamente a percepção adiante. Dewey ressalta: “para
perceber, um espectador precisa criar sua própria experiência” (idem, p. 56).
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Neste processo, deve-se dizer, não há algo como o ver e o ouvir mais a emoção, pois a
experiência como um todo é penetrada emocionalmente. Não basta portanto estar diante de
uma obra para percebê-la, ao menos esteticamente. Dewey dá o exemplo das hordas de
curiosos sendo levados por guias pelos corredores dos museus como um exemplo de
percepção enfraquecida. Ter a atenção chamada para certos pontos, saber relacionar as obras a
seus autores ou momentos históricos não consitui a relação viva e perpetrada de emoção que
Dewey define como percepção estética. Há um trabalho a ser realizado por aquele que
percebe, assim como pelo artista. Para Dewey:
“aquele que, por ser demasiadamente preguiçoso, frívolo ou obstinado nas convenções, não efetue esse trabalho, não verá, nem ouvirá. Sua ‘apreciação’ será uma mistura de fragmentos do saber em conformidade com normas de admiração convencional e com uma confusa, mesmo se genuína, excitação emcional” (DEWEY, 2005, p. 56).
Uma vez que fizemos continuamente referência ao papel da emoção seja no ato de
criação e expressão, seja no ato de percepção, cabe aqui ressaltar um ponto para o qual Dewey
chama atenção e que é de extrema importância. Temos o hábito de pensar as emoções como
se estas fossem entidades encapsuladas, invariáveis e idênticas a si mesmas. Felicidade,
medo, raiva, curiosidade entre outras, são tratadas como se fossem tão simples e compactas
quanto os nomes que damos a cada uma delas. Pensamos uma emoção como se fosse uma
coisa, um “tipo de entidade que entra já pronta em cena, uma entidade que pode durar muito
ou pouco tempo, mas cuja duração, cujo crescimento e curso é irrelevante para sua natureza”
(DEWEY, 2005 p. 43). No entanto, a emoção ao mesmo tempo que qualifica um determinado
conjunto de momentos ou elementos, é ela mesma matizada neste processo, ganhando traços
singulares. Falarmos apenas, por exemplo, em medo, é por demais vago e abstrato. Há uma
enormidade de sutilezas e nuances que ao se fazerem presentes, fazem com que o medo
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assuma formas específicas. Uma emoção possui sempre coordenadas concretas que não são
irrelevantes para sua natureza. Dewey afirma:
“Salvo nominalmente, não há tal coisa como a emoção de medo, ódio, amor. O caráter único, induplicável das situações e eventos experienciados impregnam a emoção que é evocada. Fosse a função do discurso reproduzir aquilo a que se refere, nós nunca poderíamos falar de medo, mas apenas medo-daquele-carro-em-particular-que-vem-vindo, com todas as suas especificações de tempo e lugar [...]. Uma vida seria muito curta para reproduzir uma única emoção em palavras.” (DEWEY, 2005, p.70)
A emoção requer portanto um espaço onde desenvolver-se e um tempo para desdobrar-se. E
podemos dizer que a experiência, como um todo, é emocional, mas isso não significa que
existam nela coisas separadas denominadas emoções.
A arte goza aqui de um privilégio especial no que se refere a questão da abordagem
das emoções. Enquanto os diferentes saberes que se voltam para elas ou que as têm dentro de
seu campo de problemas, como a psicologia, a filosofia e a psiquiatria por exemplo, só
conseguem abordá-las indiretamente, representando-as por meio de termos simbólicos e
dentro dos quados de uma narratividade que implica uma sequência linear e lógica, a arte cria
situações concretas nas quais todas os diferentes matizes emocionais podem ser evocados em
sua força original. Mas aqui devemos ser cautelosos. Dizer que a arte é privilegiada na criação
de uma experiência emocional concreta não significa, de modo algum, dizer que a emoção
comparece diretamente. A diferença entre expor uma emoção diretamente e compor com ela
(levando-a adiante por meio de materiais como sons, imagens e palavras) é a mesma que
separa um simples arroubo emotivo ou uma obra pífia e risível, de uma obra consistente que
guarda em si a potência de produzir efeitos duradouros. Expressar o medo artisticamente não
é o mesmo que gritar na frente das câmeras ou expor algo que seria reconhecidamente
perigoso. No ato de expressão a emoção não é diretamente manifestada, mas comparece
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indiretamente ao selecionar materiais que lhe são afins. “No desenvolvimento de um ato
expressivo, a emoção opera como um ímã atraindo para si material apropriado” (DEWEY,
2005, p.72). Uma experiência é emocional, mas isto não significa que haja nela uma coisa
separada denominda emoção. Isto nos leva a uma outra consequência importante: a emoção
não é aqui algo pessoal e privado. As emoções estão unidas a eventos e objetos em seu
movimento, estão portanto no mundo e não encapsuladas no sujeito. No ato de expressão a
emoção não só arregimenta em torno de si o material apropriado, mas mergulha estes
materiais, elementos e situações em suas tintas, fazendo ao mesmo tempo com que esses
ganhem seu matiz e ela ganhe seus contornos. Todo o trabalho do artista é fazer a emoção
sobreviver nestes materiais. A partir do que Dewey afirma sobre a emoção e o ato de
expressão pode-se dizer que a emoção singular de uma experiência trabalha ela mesma sobre
o artista, produz a excitação apaixonada a que se refere Samuel Alexander e faz com que o
artista busque levá-la adiante em sua obra. Como afirma Dewey, o que falta a todos aqueles
que não são artistas não é a emoção inceptiva ou a habilidade na execução, mas “a capacidade
para martelar uma idéia e emoção vagas em termos de algum meio definido.” (idem, p. 78).
Se o artista é bem sucedido, a emoção sobrevive na obra, está impressa nela. E o espectador
que possui o ímpeto de entrar no regime da obra entra, ele próprio, no regime da emoção ali
presente.
Assim Dewey propõe que a organização dinâmica da forma artística se funda na
experiência. Esta é definida como o processo contínuo de interação do ser vivo com o meio,
num jogo de ações e recepções que ocasionam a reorganização de energias, ações e materiais.
O mesmo ritmo de acumulação e resolução de tensões que se estabelece a partir deste jogo se
faz presente também na forma artística.
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Há no seio da experiência, poderíamos dizer da vida, certos momentos em que a
experiência alcança sua plenitude. No interior dessas experiências, ditas plenas, suas
diferentes fases são intimamente articuladas e as forças que lhe são interiores seguem seu
curso até sua completa realização, produzindo uma qualidade emocional e um sentido de
totalidade. É isso que, segundo Dewey, garante sua qualidade estética. Assim, sempre que
uma experiência alcança sua plenitude, possui qualidade estética. Na bela formulação de
Richard Shusterman acerca das teses de Dewey: “a experiência estética está sempre
transbordando sobre nossas outras atividades, ampliando e aprofundando-as”
(SHUSTERMAN, 1998, p. 239). Isso fica evidente quando Dewey discute a distinção entre
reconhecimento e percepção. O reconhecimento é uma percepção interrompida antes que esta
possa se desenvolver plenamente. No reconhecimento há sempre a intervenção de um
propósito outro que a percepção por si mesma, o que faz com que esta seja desviada, ou
interrompida. Uma vez que o que está em jogo é prioritariamente a realização de um
propósito, é a mera aplicação de esquemas pré-formados de identificação que guia a
experiência, de forma que tudo aquilo que não se enquadra nestes esquemas, ou ainda, que
não servem à realização do propósito, são excluídos da experiência. Esta não respira, pois não
lhe são permitidas flutuações ou mesmo impasses que possivelmente a alimentariam, levando-
a a diante. Como ressalta Dewey, não há no reconhecimento qualquer comoção interior pois
não há suficiente atrito entre o novo e o velho para que se desperte a consciência ou qualquer
emoção. “Mesmo um cachorro que late e abana feliz a cauda ao ver o retorno de seu dono é
mais plenamente vivo ao receber seu amigo do que um humano que se contenta com a mera
recognição” (DEWEY, 2005, p. 55). Já o ato de percepção, como foi dito anteriormente, é um
ato de saída de energia e procede por meio de ‘ondas que se estendem serialmente por todo o
organismo” (idem, p.57). Para de fato perceber devemos submergir na matéria percebida, e
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isto está longe de representar uma passividade, pois implica uma intensa atividade de
experimentação. Assim a percepção, no sentido em que é uma experiência levada adiante e
segue seu curso até a realização de suas potencialidades, é uma experiência que transborda o
mero reconhecimento possuindo qualidade estética.
Falar da arte a partir da experiência estética é portanto privilegiar uma qualidade da
experiência. Como ressalta Shusterman, esse é o ponto mais importante da estética deweyana.
A essência e o valor da arte não estão nos objetos e performances a serem fetichizados e
comercializados, mas na potencialização da experimentação engendrada nos processos de
criação e percepção destes. Por meio da arte somos conduzidos a ter uma atitude renovada em
relação às circunstâncias e exigências da vida ordinária. E seu poder não cessa sequer quando
acaba a ação direta de percepção. Ela continua a agir por canais indiretos. (DEWEY, 2005). É
aí que reside a controversa ‘funcionalidade’ da arte, defendida por Dewey. A arte intensifica
nosso contato com o mundo, amplia nossos canais de comunicação com aquilo que nos
circunda ou nos habita e, consequentemente, potencializa nossa capacidade de experimentar.
Quando Dewey se contrapõe aqueles que defendem a ‘arte pela a arte’, ou seja, contra aqueles
que defendem a arte como ‘desinteressada’ e portanto desconectada de outros modos de
experiência, o faz a partir desta constatação. Tentar preservar a nobreza da arte negando
qualquer interesse presente nela ou situando-a acima de qualquer valor instrumental seria,
segundo Dewey, um erro decorrente da contraposição equivocada entre valor intrínseco e
valor funcional. Parte-se do pressuposto que tudo aquilo que possui um valor funcional não
pode possuir um valor intrínseco já que seria apenas um meio para alcançar um fim em
particular. Mas a funcionalidade da arte é global. Não reside em algum fim em particular, mas
sim na satisfação da criatura viva como um todo. Temos o exemplo dado por Shusterman:
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“O canto de trabalho nos campos de colheita não apenas fornece aos camponeses uma experiência estética de satisfação, mas seu entusiasmo se estende ao trabalho, estimulando e enriquecendo-o, ao mesmo tempo que estabelece um espírito de solidariedade que permanece mesmo depois do fim das atividades. A mesma funcionalidade, largamente expandida, pode ser encontrada nas obras normalmente qualificadas como arte” (SHUSTERMAN, 1998, p. 238-239).
A importância da arte é então a de que ela “mantém vivo o poder de sentir o mundo
comum em sua plenitude” (DEWEY, 2005 p. 281) e todo pensamento que se volta para a arte
é estéril, segundo Dewey, se não chama atenção para isso.
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Segundo Henri Bergson nossa percepção ordinária, nossa forma cotidiana de perceber,
é por demais limitada, uma vez que se coloca como tributária da ação e é voltada para
necessidades adaptativas. “De fato não seria difícil mostrar que, quanto mais estamos
preocupados em viver, tanto menos estamos inclinados a contemplar, e que as necessidades da
ação tendem a limitar o campo da visão” (BERGSON, 2006b, p. 157). Assim, em seu
funcionamento habitual a percepção se encontra regida por um princípio utilitário, operando
recortes seletivos no campo perceptivo em função das necessidades da ação. Por sua vez, a
arte comparece como o terreno onde a percepção pode se libertar deste regime. Ou em suas
palavras, “bastaria a arte, portanto, para mostrar que uma extensão das faculdades de perceber
é possível” (idem, p. 156). A percepção, poderíamos dizer estética, se distancia assim da
percepção em seu funcionamento cotidiano, constituindo uma relação com o objeto (ou ainda,
com aquilo que se apresenta como dado sensível) que ultrapassa o mero reconhecimento
devido ao interesse que nele depositamos tendo em vista a ação, abrindo espaço para que se
possa apreendê-lo em sua potência de novidade. Mobiliza-se, neste sentido, uma outra
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dinâmica atencional. Nota-se, portanto, a importância da questão da ‘extensão das faculdades
de perceber’, caracterizada também como ‘conversão da atenção’, no contexto de suas
considerações acerca da arte, assim como a relevância destas questões no que concerne à
questão do conhecimento, alcance este que se vislumbra a partir da colocação de Bergson de
que ‘essa conversão da atenção seria a própria filosofia` (idem, p. 159). Os desdobramentos
desta questão, ou a aproximação entre a filosofia e a arte, são temas de extrema importância
tratados pelo autor. No entanto, o que nos interessa aqui mais especificamente é o
funcionamento da atenção e o alcance que ganha esta suspensão do regime habitual de
funcionamento da percepção.
De que maneira podemos efetivamente pensar a especificidade de tal dinâmica
atencional? Um primeiro e importante ponto refere-se ao que foi apontado acima e que
comparece amplamente no texto de Bergson A percepção da mudança (2006b): a percepção
estética como extensão da faculdade de perceber. O artista é, nas palavras de Bergson, um
distraído, ou seja, alguém desligado do lado positivo e material da vida, cuja percepção é
desinteressada, e por isso é aquele que vê e que nos faz ver o que habitualmente não vemos
(BERGSON, 2006b). Sendo a percepção habitual tributária da ação, “ela isola, no conjunto da
realidade, aquilo que nos interessa; mostra-nos menos as coisas mesmas do que o partido que
delas podemos tirar” (idem, p. 158). O campo perceptivo representa assim um conjunto de
ações possíveis dentro de um espectro de possibilidades. Na percepção estética, tanto do
artista em seu ato de criação quanto do espectador ao desfrutar da obra, esse encadeamento
percepção-ação (ou nos termos de Bergson, esse equilíbrio sensório-motor) é rompido. É
interessante notar a proximidade destas colocações de Bergson com que é colocado por
Maurice Blanchot em seu texto A linguagem da ficção (1997). Ali Blanchot aponta para a
diferença que uma simples frase como ‘o chefe telefonou’ assume se ouvida no dia a dia por
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um empregado (por exemplo) ou se lida em um romance. Quando em seu uso diário, a frase
lança o ouvinte em uma série de ações possíveis tendo em vista as conhecidas relações de
hierarquia e os atos conseqüentes requeridos por elas. A linguagem tem aqui um valor de sinal
que aponta para esse conjunto de ações. Já em um romance, sofre-se de uma ‘pobreza
original’ uma vez que há um universo ainda por se revelar ao leitor. Tudo se passa como se
entrássemos em uma esfera onde o sentido está menos garantido e portanto as palavras não
mais se contentassem com seu valor de sinal, daí a necessidade por parte do leitor de um
certo ‘tateio’.
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‘Aqui a linguagem sofre uma transformação radical porque convida o leitor a realizar sobre as próprias palavras a compreensão do que se passa no mundo que lhe é proposto, e cuja única realidade é ser objeto de uma narrativa. Gostamos de dizer de uma leitura que ela nos prende; a fórmula responde a essa transformação: o leitor é efetivamente preso pelas coisas da ficção que ele recebe das palavras, como propriedade delas; adere a elas com a impressão de estar preso, cativo, febrilmente retirado do mundo, a ponto de sentir a palavra como a chave de um universo de magia e fascinação onde nada do que ele vive é reencontrado” (BLANCHOT, 1997, p. 80-81).
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Para além da importante análise de Blanchot acerca do estatuto da linguagem, o que
vale notar aqui é a necessidade de uma certa atitude exploratória por parte do leitor. Atitude
esta que consiste em uma certa mobilização atencional na qual se dá um jogo entre a abertura
para aquilo que o objeto traz (para além daquilo que uma ação interessada captaria) e as
relações que o leitor é capaz de realizar. É aqui que as considerações de Bergson, presentes
em Matéria e memória (1999), acerca da distinção entre reconhecimento atento e
reconhecimento automático ganham importância. Este último é representativo de nossa
atitude natural. O exemplo dado por Bergson (1999) é o de uma caminhada em uma cidade
familiar, em que não nos atemos ao caminho percorrido. Nossos passos parecem seguir uma
ordem sem que seja necessária a intervenção da consciência, a percepção se desdobra em ação
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de maneira automática. ‘Há inicialmente, no limite, um reconhecimento no instantâneo, um
reconhecimento de que apenas o corpo é capaz, sem que nenhuma lembrança explícita
intervenha. Ele consiste numa ação, e não numa representação’ (idem, p. 103). Para além
desta situação limite, o reconhecimento atento se dá quando esse encadeamento percepção-
ação, esse equilíbrio sensório-motor, se rompe e nos obriga a um esforço de atenção. Ou seja,
nos obriga, como diz Théodule Ribot23, a nos determos sobre um determinado objeto. No
entanto, Bergson critica a posição de Ribot uma vez que este não caminha para além desta
constatação, captando do fenômeno apenas seu aspecto negativo, ou seja, seu movimento de
detenção. Mas uma vez que nos detemos, o que se passa? Não se trata mais do esboço de um
movimento prefigurado a partir de uma ação futura e possível sobre o objeto. O espírito não
se volta para o futuro, mas se abre à irrupção da memória. A análise de Bergson ressalta aqui
esse entrecruzamento entre a percepção e a memória, mas de uma maneira singular. Este
entrecruzamento não se dá da maneira como classicamente se colocava, ou seja, em uma
direção linear que parte da imagem do objeto para encontrar sua contrapartida mnésica
possuída pelo sujeito. De acordo com Bergson,
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‘se a percepção exterior, com efeito, provoca de nossa parte movimentos que a desenham em linhas gerais, nossa memória dirige à percepção recebida as antigas imagens que se assemelham a ela e cujo esboço já foi traçado por nossos movimentos. Ela cria assim pela segunda vez a percepção presente, ou melhor, duplica essa percepção ao lhe devolver, seja sua própria imagem, seja uma imagem-lembrança do mesmo tipo. Se a imagem retida ou rememorada não chega a cobrir todos os detalhes da imagem percebida, um apelo é lançado às regiões mais profundas da memória, até que outros detalhes conhecidos venham a se projetar sobre aqueles que se ignoram’ (BERGSON, 1999, p. 114-115).
O que se nota portanto é que esse entrecruzamento não se dá em uma linha reta, que
parte do objeto e se afasta cada vez mais dele. Pelo contrário, no reconhecimento atento há
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!23 Thédule Ribot (1839-1916), psicólogo francês citado por Bergson em sua discussão acerca da atenção.
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sempre um retorno ao objeto, daí a possibilidade de ao nos atermos, ou seja, ao estarmos
atentos, desdobrar novos elementos do objeto que não se faziam evidentes inicialmente. A
imagem utilizada por Bergson é a de um circuito fechado, envolvendo o sujeito e o objeto, e
que comporta graus distintos de expansão. Constitui-se um sistema no qual o que se atinge ou
o que se mobiliza são planos distintos tanto do objeto quanto do sujeito, comportando graus
cada vez mais variados de complexificação e de distensão. O funcionamento atencional tal
como proposto por Bergson não se assemelha portanto ao deslizamento de um feixe de luz de
foco a foco, mas sim a um circuito elétrico onde todos os elementos se encontram em um
estado de tensão mútua, produzindo um contínuo movimento no qual se caminha a partir de
um sistema de coordenadas constantemente revistas. Aqui é importante atentar para as
palavras de Bergson,
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‘que não se veja aqui uma simples questão de palavras. Trata-se de duas concepções radicalmente diferentes do trabalho intelectual. De acordo com a primeira, as coisas se passam mecanicamente e através de uma série inteiramente acidental de adições sucessivas.[...] Na segunda, ao contrário, um ato de atenção implica uma tal solidariedade entre o espírito e seu objeto, é um circuito tão bem fechado, que não se poderia passar a estados de concentração superior sem criar circuitos completamente novos envolvendo o primeiro, e que teriam em comum apenas o objeto percebido’(BERGSON, 1999, p. 119).
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Cabe dizer que ao buscarmos aproximar a questão do reconhecimento atento à questão
da conversão da atenção ligada à percepção estética, o fazemos tendo em vista uma colocação
de Deleuze (1985) que nos leva a ressaltar uma distinção entre a função e o funcionamento do
reconhecimento atento. Pois é certo que se se fala em reconhecimento, vê-se que se faz
presente ainda uma dimensão representativa da experiência, ligada às necessidades da ação e
à história de um sujeito. “É certo que o reconhecimento atento, quando tem êxito, se faz por
meio de imagens-lembrança: é o homem que encontrei semana passada em tal lugar....mas é
justamente este êxito que permite ao fluxo sensório-motor retomar seu curso temporariamente
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interrompido” (DELEUZE, 1985, p. 75). Estamos ainda muito próximos de um plano
voluntário de funcionamento cognitivo, no qual a percepção e a memória operam regidas pelo
princípio utilitário. Por isso Deleuze afirma, e deixa entrever que Bergson se encontra também
as voltas com essa com conclusão, que o reconhecimento atento nos ensina muito mais
quando fracassa do que quando tem êxito. “Quando não conseguimos nos lembrar o
prolongamento sensório-motor permanece em suspenso, e a imagem atual, a percepção ótica
presente, não se encadeia nem com uma imagem motora, nem mesmo com uma imagem
lembrança que pudesse restabelecer o contato” (idem). Assim abre-se espaço para o mergulho
em um plano de experiência em que os mais vastos e diferentes circuitos se cruzam,
permanecem uns correndo atrás dos outros, de maneira que novos aspectos do objeto são
desdobrados assim como novas dimensões subjetivas, diferentes extratos de memória, são
mobilizadas. Este mergulho é de extrema importância uma vez que comporta uma abertura
para o novo. Esta dimensão criadora do ato atencional e sua relação com a cognição, que pode
ser vislumbrada na análise bergsoniana, é ressaltada também por Kastrup,
'atiçado pela perturbação que opera uma fissura no domínio sensório-motor, o reconhecimento atento realiza um trabalho de construção. Percorrendo múltiplos circuitos em sucessivos relances, sempre incompletos, realiza diferentes construções, cujo resultado é um reconhecimento sem modelo mnésico pré-existente. Enfim o importante do reconhecimento atento, tal como descrito por Bergson, é a revelação da construção da percepção através do acionamento dos circuitos e da expansão da cognição. A percepção se amplia, viaja percorrendo circuitos, flutua num campo gravitacional, desliza com firmeza, sobrevoa e muda de plano, produzindo dados que, enfim, já estavam lá. A atenção atinge algo “virtualmente dado” construindo o próprio objeto através dos circuitos que a atenção percorre' (KASTRUP, 2007).
Pode-se perceber então a articulação e a importância da discussão acerca da atenção no
que diz respeito à percepção estética, assim como sua relação com um plano mais amplo da
experiência. O contato com a arte comporta a possibilidade desta fissura no equilíbrio
sensório-motor, quebrando assim o encadeamento percepção-ação e abrindo espaço para a
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experiência, pois há uma mobilização subjetiva que se afasta da atitude natural e que, por um
lado, permite ao espectador 'habitar' o objeto estético em seus diversos planos de sentido e
afecção, e, por outro lado, permite que esse 'passeio' ganhe uma potência criadora, uma vez
que reverbera em diferentes dimensões subjetivas, produzindo transformações que muitas
vezes lançam raízes para muito além do momento presente. Há uma passagem presente no
Livro do Desassossego de Fernando Pessoa (ou mais precisamente, de Bernardo Soares), que
nos parece dar a justa descrição e dimensão deste atravessamento de múltiplos circuitos:
Vou num carro elétrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, letras. Neste vestido da rapariga que vai em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram — pois que o vejo vestido e não estofo — e o bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separa-se-me em retrós de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E imediatamente, como num livro primário de economia política, desdobram-se diante de mim as fábricas e os trabalhos — a fábrica onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez o retrós, de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto ao pescoço; e vejo as seções das fábricas, as máquinas, os operários, as costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes procurar estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto: vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses escritórios... Todo o mundo se me desenrola aos olhos só porque tenho diante de mim, abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar irregular regular verde escuro sobre um verde claro de vestido.
Toda a vida social jaz a meus olhos.
"
Para além disto pressinto os amores, as secrecias [sic],a alma, de todos quantos trabalharam para que esta mulher que está diante de mim no elétrico, use, em torno do seu pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós de seda verde escura fazenda verde menos escura.
Entonteço. Os bancos do elétrico, de um entre-tecido de palha forte e pequena, levam-me a regiões, distantes, multiplicam- se-me em indústrias, operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo.
"
Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira. (PESSOA, 1986, p. 93).
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As considerações de Henri Bergson acerca da conversão da atenção ganham um
especial interesse por mostrar que a atenção não é um processo homogêneo, mas possui
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uma variedade de gestos que permitem a modulação da percepção, levando-a para além
de sua dimensão unicamente utilitária. Daí a a importância da análise bergsoniana para a
percepção estética, uma vez que esta mobiliza um funcionamento atencional que não se
esgota no ato de 'prestar atenção' e no qual a relação sujeito-objeto escapa ao modelo
utilitário. Pode-se dizer mesmo que esta relação sujeito-objeto é ela própria
ultrapassada. A experiência com a arte traz em si, portanto, a possibilidade de instaurar
uma fissura no encadeamento percepção-ação, a partir da qual uma nova forma de
relação do sujeito com o mundo e consigo mesmo se estabelece. A questão da
conversão da atenção assume assim um alcance mais amplo, uma vez que se dirige à
potência criadora da experiência.
2.3 O regime da experiência estética: interesse x desinteresse
Dewey afirma que seu propósito é de “restabelecer a continuidade entre a experiência
estética e os processos normais do viver” (DEWEY, 2005, p.9). Seguir o projeto de fundar a
experiência estética na vida não seria um movimento exatamente oposto ao de Bergson, que
afirma ser a percepção estética um regime de experiência no qual há uma reorientação da
atenção e um afastamento dos interesses da vida prática? Não seria um contra-senso de nossa
parte buscar aproximar um conceito de experiência estética que se afirma fundado nos
processos normais do viver e outro que postula ser esta exatamente um desvio do regime de
experiência comprometido com a ação e com as necessidades adaptativas?
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Em nosso entender, esse contra-senso é apenas aparente. É certo que há distinções e
nuances importantes a serem tratadas, mas isso não impede que busquemos retraçar as linhas
que os aproximam, linhas estas que consideramos de extrema importância.
Quando Bergson afirma a percepção estética como percepção ‘desinteressada’, parece
situar-se nas antípodas do pensamento de Dewey. Uma vez que o interesse segundo Dewey
representa uma ligação intensificada com o mundo, defender um conceito de experiência
estética marcado pelo signo negativo do desinteresse representaria a aceitação da tese que
coloca em pólos opostos arte e vida. No entanto, se seguirmos mais de perto, veremos que
esta oposição pode ser matizada.
Buscamos delinear a experiência estética como um regime de específico de
experiência no qual a atitude natural/habitual se encontra em suspenso e o fizemos
precisamente no sentido de valorizar o tema da experiência em seu sentido forte, de
experimentação. A arte comparece como o espaço, ou ainda, como a prática, onde isso é
potencializado. Não se trata de escapismo ou renúnica ao mundo mas, pelo contrário, da
abertura de um espaço ou de um volume da experiência que permita um mergulho renovado
neste. É como diz Deleuze: “nada de abandonar a terra. Mas tornar-se tanto mais terrestre
quanto se inventa leis do líquido e do gasoso de que a terra depende.” (DELEUZE, 1992, p.
167). O desinteresse marca apenas a condição de que uma experiência se dê e seja levada
adiante, por isso pode ser aproximado daquilo que José Gil chama de uma desimplicação
implicada (GIL, 1996). Não se trata em hipótese alguma de uma atitude de relaxamento do
espírito que levaria a um frívolo ‘não importa o quê’, mas sim de um alargamento e de um
mergulho na experiência enquanto e como esta se dá. Como já afirmava William James em
seu clássico Princípios de Psicologia, temos o hábito de “não prestar atenção às sensações
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como fatos subjetivos, mas simplesmente usá-las como degraus, para passar ao
reconhecimento das realidades, cuja presença elas revelam” (James, 1952, p.150). Há, nesta
atitude habitual, sempre algo exterior ao plano da experiência e que de certa forma direciona
aquilo que nela devemos encontrar. Desta maneira são operadas seleções, estabelecem-se
recortes, obliteraram-se alguns elementos em prol de outros, de forma que não se abre espaço
para o contato com o novo, para a singularidade de um encontro. Defender a importância do
desinteresse parece portanto ser o mesmo que defender a possibilidade de que a experiência
seja encorpada pelo inesperado e imprevisto, por aquilo que lhe comparece pelas bordas,
lateralmente. Aquilo que poderia ser excluído, tomado com um elemento sem sentido,
participa do circuito e o alimenta. Algo para o qual Dewey parece também querer apontar ao
falar em fazer as forças alcançarem sua plena realização ou em manter vivo o poder de sentir
o mundo em sua plenitude. Não se trata apenas de dizer que entramos em contato com mais
coisas, mas que somos trabalhados por elas, por isso a experiência ganha um novo alcance e
uma nova qualidade24. Dizer que a experiência estética vale por si mesma significa apenas que
ela não é passível de ser substituída por qualquer outra, não encontra equivalente uma vez que
cresce por dentro e acolhe o inesperado, comporta uma singularidade. Por isso a experiência
estética transborda e amplia a experiência comum.
Em síntese parece ser possível concluir que o desinteresse, que para Bergson
comparece como condição e traço marcante da experiência estética, e o extremo interesse, que
marca a funcionalidade global e a integralidade da experiência estética em Dewey, se
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!24 Isto é importante de ser ressaltado pois a noção de desinteresse é controversa e se presta a confusões grosseiras e não raras. Um exemplo é a crítica empreendida por Noel Carrol (2005) que chega a afirmar que a noção de desinteresse é “particularmente irritante”. Sobre a teoria da da experiência estética enquanto desinteressada ele afirma: “ela pressupõe que uma condição necessária da experiência estética reside no fato de crer que ela vale por si mesmo. Ora, isso é falso » (CARROL, 2005, p. 125). Mas fica claro que quem incorre numa confusão é o próprio Carrol, ao situar a discussão no plano das motivações e crenças daqueles que passam pela experiência. Seguindo sua linha de argumentação deveríamos perguntar a alguém que foi a um concerto, por exemplo, se ele(a) o fez apenas para ouvir a música ou se o fez por algum outro motivo. No primeiro caso a experiência seria estética, no segundo não. Fica evidente que situando a discussão nestes termos resta apenas, de fato, o desinteresse em seu sentido ordinário.
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aproximam ao marcarem a possibilidade de abertura aos diversos e imprevistos movimentos
da vida.
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1. Jacques Rancière: a partilha do sensível e as condições do debate acerca de uma
política da arte
Vivemos um momento no qual deixamos para trás a chamada ‘utopia estética’, ou
seja, a crença de que a radicalidade da arte traria como consequência uma tranformação
igualmente radical das condições e formas de existência coletiva, nos diz Jacques Rancière
(2002). Mas disto não se segue que seja agora possível traçar um quadro mais simples das
relações entre arte e política. Pelo contrário. Segundo Ranciére (2002, 2004, 2005a, 2005b,
2007, 2008a, 2008b), é preciso que repensemos a maneira como comumente concebemos
estas relações. Se deixarmos de lado, como este propõe, as falsas questões relativas à
modernidade estética#& e a uma suposta ruptura pós-moderna, veremos ainda que há uma
enorme variedade de matizes nisto que Rancière coloca como o ‘presente pós-utópico’ da
arte. Há desde posições que vão de um extremo onde se reafirma a radicalidade da arte, mas a
custo disso esta é separada de toda conotação política ou mais ainda, de toda relação com
outras esferas de experiência; até um outro extremo, no qual o que se rejeita é toda espécie de
radicalidade, seja ela política ou artística, reafirmando-se a possibilidade e a necessidade da
arte em colocar-se em continuidade com propostas políticas, mas tomando estas propostas
políticas em seu sentido mais ‘modesto’. Dentro do amplo espectro que se abre entre as duas
posições extremas mencionadas acima há uma infinidade de alianças inauditas, estratégias
variadas, paradoxos fundadores, posições antagônicas assentadas sob um mesmo solo, etc. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!#& Rancière considera a noção de modernidade estética problemática. Segundo ele: “a idéia de modernidade é uma noção equívoca que gostaria de produzir um corte na configuração complexa do regime estético das artes, reter as formas de ruptura, os gestos iconoclastas, etc, separando-os do contexto que os autoriza: a reprodução generalizada, a interpretação, a história, o museu, o patrimônio...Ela gostaria que houvesse um sentido único, quando a temporalidade própria ao regime estético das artes é a de uma co-presença de temporalidades heterogêneas. A noção de modernidade parece, assim, como inventada de propósito para confundir a inteligência das transformações da arte e de suas relações com as outras esferas da experiência coletiva” (RANCIÈRE, 2005a, p. 37). Voltaremos a esta questão mais adiante.
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Assim, segundo Rancière, para que possamos melhor compreender a dimensão política da arte
devemos evitar alguns dos lugares comuns que proliferam na contemporaneidade. Não se trata
portanto de escolher uma dentre duas vias: a da chamada ‘arte engajada’ ou seu suposto
contrário, a que defende a ‘arte pela arte’. Ou ainda, assumir o discurso desencantado do pós-
modernismo ou sua suposta contrapartida, que seria a aposta na vocação de vanguarda da arte
e que selaria o élan de uma modernidade que liga as conquistas da novidade artística àquelas
da emancipação. Antes de assumir alguma das posturas contraditórias que nos são dadas
como opções a serem escolhidas, trata-se de, como o próprio Rancière afirma à maneira
foucaltiana, ‘restabelecer as condições de inteligibilidade do debate’ (RANCIÈRE, 2005a, p.
13). E ele o fará em uma série de textos e livros que buscam analisar as intrincadas relações
entre dois campos que tomamos comumente como separados e bem delimitados, o da política
e o da arte.
Antes de nos centrarmos neste plano mais geral de suas análises, contudo, será
elucidativo seguir mais de perto algumas de suas considerações presentes no recente texto,
Les paradoxes de l’art politique (2008b). Ali Rancière se volta para um certo conjunto de
estratégias e práticas estéticas que buscam reafirmar a vocação da arte em resistir à
dominação econômica, ideológica e estatal. Este conjunto não é homogêneo, chegando
mesmo a assumir formas não apenas divergentes mas até mesmo contraditórias. Vemos
alguns artistas que transformam símbolos midiáticos e publicitários em estátuas monumentais
para que tomemos consciência do poder de atração destes símbolos, outros que enterram
silenciosamente os monumentos invisíveis dedicados aos horrores do século; uns buscam
tornar visíveis as maneiras pelas quais se constróem as representações dominantes das
identidades subalternas, outros nos propõem afinar o olhar diante de personagens com
identidades flutuantes ou indecifráveis; alguns participam da produção das máscaras e
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bandeiras dos manifestantes em suas manifestações contra o poder globalizado enquanto
outros se introduzem sob falsas identidades nas reuniões e nos canais de comunicação das
grandes figuras deste poder; vemos ainda alguns utilizarem os museus para demonstrar novas
máquinas ecológicas e outros posarem nos subúrbios pobres dispondo de pedras ou signos em
néon com o intuito de criarem um novo ambiente e consequentemente novas relações sociais;
vemos importantes obras de museu serem levadas para serem expostas em bairros pobres e,
por outro lado, dejetos deixados por visitantes destes museus serem alçados à condição de
obra. Os exemplos de Rancière são muitos e voltaremos mais concretamente a alguns deles
adiante. Se reportarmos esta situação ao contexto brasileiro, veremos também alguns
exemplos, seja em propostas mais tradicionais como aquelas presentes no cinema ficcional
recente, onde o foco político se concentra na questão temática, a partir da exposição de temas
como a violência e as desigualdades sociais em filmes como “Cidade de Deus” e “Tropa de
Elite”, por exemplo, até outras empreitadas como a produção de filmes realizados pelos
próprios moradores de comunidades carentes, como o projeto ‘Cinco vezes favela – agora por
nós mesmos’#', passando ainda por propostas de outros campos estéticos, como aquelas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
26 Projeto ainda em desenvolvimento proposto pelo cineasta Cacá Diegues e por Renata de Almeida Magalhães, que consiste na realização do longa-metragem “Cinco Vezes Favela - agora por nós mesmos” a ser escrito, dirigido e realizado por jovens cineastas moradores de comunidades carentes do Rio de Janeiro, a partir de um tema central definido: a favela. Como consta no site: www.5xfavela.com.br, os objetivos do projeto são! “1. Capacitar mão de obra nova e inédita para o mercado de trabalho formal do cinema brasileiro.2. Tornar esses jovens porta-vozes deles mesmos, testemunhando através do cinema suas próprias vidas.3. Intervir com idéias novas e novos modos de fazer na evolução do cinema brasileiro. Os filmes feitos por esses jovens cineastas buscam a imagem nunca vista; ou que só pode ser vista, por dentro, do jeito que eles a registram. O conjunto desses filmes será, em breve, um novo e inevitável ponto de referência para cinema brasileiro contemporâneo”. Se destacamos este projeto e aqui transcrevemos seus objetivos isto se deve à duas razões. Em primeiro lugar, no sentido de deixarmos entrever o estatuto ambíguo (política e esteticamente) de sua proposta, já que ao mesmo tempo se coloca como um novo modo de fazer cinema e como capacitação de mão de obra para a indústria cinematográfica. Da mesma maneira, afirma-se como busca pela ‘imagem nunca vista’ e como possibilidade de tornar os jovens envolvidos ‘porta-vozes’ deles mesmos. Contudo, pré-determina o universo sobre o qual devem se voltar esta ‘nova imagem’ e esta ‘voz própria’: a favela. Em segundo lugar, porque o caráter ambíguo, a nosso ver, aqui presente, é paradigmático da discussão que percorreremos neste capítulo. !
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presentes nas artes plásticas onde materiais inusitados como ketchup, açúcar, lixo e poeira
ganham o mundo da arte, como nas obras de Vik Muniz, por exemplo.
Como diz Rancière, esta vontade de repolitizar a arte se manifesta em estratégias e
práticas muito diversas, mas esta diversidade não representa apenas uma multiplicidade de
meios para atingir um mesmo fim. Ela atesta algo mais profundo e que aponta para uma
incerteza quanto ao fim perseguido e à própria configuração do terreno onde se dão estas
disputas. Há portanto uma incerteza de base quanto ao que seja a política e sobre as
realizações da arte, daí o interesse de Rancière em se voltar para ‘as condições de
possibilidade do debate’, que remetem exatamente para a constituição das linhas que limitam
(separando e reunindo ao mesmo tempo) os campos da arte e da política. No texto citado,
Rancière parte da consideração de que há algo de comum que reúne todas estas diversas
práticas contemporâneas: seus modelos de ‘eficácia’. Os efeitos políticos da arte são
garantidos quando esta nos ‘mostra’ os estigmas da dominação, quando ridiculariza os
grandes ícones do poder, quando sai de seus lugares próprios e se transforma em prática
social, etc. Rancière denuncia então uma estranha ‘esquizofrenia’ nas políticas da arte, que
reiteram continuamente um convite a novas práticas e propostas estéticas, mas continuam
assentadas sob modelos de eficácia que vêm sendo contestados à pelo menos dois séculos.
Rancière propõe então que tomemos uma ‘distância histórica’, para que possamos
compreender a que modelos respondem nossas expectativas e juízos em matéria de política da
arte.
Aqui vemos comparecer um tema trabalhado mais detalhadamente por ele em A
Partilha do sensível (2005a): o dos diferentes regimes de identificação das artes presentes na
tradição ocidental. Um regime de identificação pode ser definido como “um modo de
articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos
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de pensabilidade de suas relações, implicando uma determinada idéia da efetividade do
pensamento” (RANCIÈRE, 2005a, p. 13). Cabe, portanto, um pequeno détour, onde
exporemos estes diferentes regimes a fim de melhor compreender suas considerações acerca
do ponto de cruzamento entre arte e política, assim como sua crítica aos ‘modelos de
eficácia’, que subjazem em alguns dos discursos e práticas contemporâneas.
1.1 Os três grandes regimes ocidentais de identificação da arte: regime ético das
imagens, regime representativo ou poético das artes, e regime estético
Segundo Rancière podem ser distinguidos na tradição ocidental três grandes regimes:
um regime ético das imagens, o regime representativo ou poético das artes, e o regime
estético.
No regime ético das imagens não há ainda propriamente a identificação de ‘arte’, no
singular. Há apenas artes, enquanto distintas maneiras de fazer. Este regime é marcado
fundamentalmente pela problemática platônica das imagens: podemos fazer imagens das
divindades? A divindade em imagem é ela uma verdadeira divindade? Se sim, é ela tornada
imagem como deveria ser? A questão das maneiras de fazer é assim atrelada e secundária à
questão da imagens, que são objeto de um duplo problema: quanto à sua origem, do que
decorre seu teor de verdade, e quanto à sua destinação, ou seja, aos usos que dela são feitos e
dos efeitos que podem vir a induzir. Rancière chama atenção para o fato de que não faz
sentido a afirmação, segundo ele corrente, de que Platão submete a arte à política, já que
como foi dito não há arte no singular. É no interior das diversas maneiras de fazer, e segundo
o quadro de sua origem e destinação, que se estabelecerá a linha que demarca as artes
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verdadeiras daquelas que ficam restritas ao estatuto de simulacros. A percepção e o juízo
acerca das imagens produzidas deriva portanto de sua verdade intrínseca e dos efeitos
produzidos nos indivíduos e na coletividade, ou seja, a questão fundamental concerne ao
ethos, daí Rancière designar tal regime como ético.
O regime representativo/poético das artes se distancia do regime ético na medida em
que identifica a arte a partir do par poiesis/mímesis. Rancière o denomina poético pois é no
quadro das ‘maneiras de fazer’ que as artes serão identificadas e julgadas, e representativo
pois é a representação ou mímesis que organiza essas maneiras fazer, de ver e julgar. A
mímesis aqui não comparece como um princípio normativo que determina que a arte deva
fazer cópias. Rancière ressalta que esta é ‘o vinco na distribuição das maneiras de fazer e das
ocupações sociais que torna as artes visíveis” (RANCIÈRE, 2005a, P. 31). É a partir da
concepção aristotélica de mímesis que se pode melhor compreender a delimitação no interior
deste conjunto de ‘maneiras de fazer’. Uma passagem de Renée Bouveresse nos ajuda na
compreensão desta concepção:
“Aristóteles não contesta que a arte seja imitação. Mas ele reabilita a imitação como ‘natural’, ou seja, verdadeira. A arte não é ignorância ou ilusão, mas uma atividade conforme à natureza. A fórmula célebre da Física: ‘a arte imita a natureza’ não significa que a arte deva copiar ou reproduzir a natureza. Ele deve rivalizar com ela, [...] a imitação não se limita à uma representação disto que as coisas são. É legítimo imitar também isto que as coisas parecem ser, o verossímel (vraisembable), ou isto que elas deveriam ser, o ideal” (BOUVERESSE, 1998, p. 16).
O acento dado ao caráter de construção, evidenciado no privilégio dado aos princípios
de inteligibilidade da fabricação da ação trágica, onde importa a narração da ação, a re-
apresentação de homens agindo, a orquestração destas ações, seus conflitos e desenlaces, mais
do que a fidelidade a um modelo, é, segundo Rancière, uma das grandes operações efetuadas
pela mímesis aristotélica. Abre-se espaço para um domínio de visibilidade das artes a partir de
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um fazer, cuja legitimidade é aferida a partir de formas de normatividade que atentam para
critérios como:
“separação do representável e do irrepresentável, distinção de gêneros em função do que é representado, princípios de adaptação as formas de expressão aos gêneros, logo, aos temas representados, distribuição das semelhanças segundo princípios de verossimilhança, critérios de distinção e de comparação entre as artes, etc...” (RANCIÈRE, 2005a, P. 31).
A construção artística é tomada enquanto doação de forma a uma matéria, mas os critérios de
legitimação desta construção, deste fazer, se encontram, como atestam as citações de
Bouveresse e Rancière, ainda na natureza. O prazer estético daqueles que contemplam as
obras advém precisamente desta adequação. Assim, na lógica representativa as artes ganham
um regime de visibilidade na medida em que, por um lado, se autonomizam, no momento em
que as diversas maneiras de fazer, ver e julgar se organizam a partir da noção de mímesis, e,
por outro lado, essa autonomia comparece articulada a uma ordem geral das ocupações e das
maneiras de fazer da coletividade. Há assim uma
‘relação de analogia global com uma hierarquia global das ocupações políticas e sociais: o primado representativo da ação sobre os caracteres, ou da narração sobre a descrição, a hierarquia dos gêneros segundo a dignidade de seus temas, e o próprio primado da arte da palavra, da palavra em ato, entram em analogia com toda uma visão hierárquica da comunidade” (RANCIÈRE, 2005a, P. 32).
Na virada do século XVIII para o XIX se estabelece o que Rancière denomina regime
estético das artes. Se Rancière fala em regime estético das artes e não simplesmente em
estética, é para mostrar sua distância em relação à concepção de que a estética configura uma
disciplina autônoma e específica#(. Aqui cabe, no entanto, um pequeno parênteses.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!27 Desde o surgimento da obra Aesthetica de Baumgarten na metade do século XVIII (primeria parte em 1750, segunda parte em 1758) esta questão se arrasta mobilizando em torno de si temas que vão desde a possibilidade de sua autonomia até a constituição de seu objeto. Cf Souriau (1990), Lacoste (1986), Jimenez (1999), Ferry
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Há em Rancière um uso do termo estética em dois planos distintos. Essa questão
constitui o ponto de partida de suas análises, sendo o ponto central do livro A partilha do
sensível (2005a). Conforme assinalado logo acima, a estética não constitui para Rancière, uma
disciplina autônoma ou específica, uma ciência ou filosofia da arte em geral. Mas sim, uma
dimensão de base de toda política. Aqui Rancière faz questão de marcar o corte em relação
aquilo que Walter Benjamim denunciara como ‘estetização da política’, que seria algo como
uma ‘espetacularização do poder’, uma ‘captura perversa da política por uma vontade de arte’
(RANCIÈRE, 2005a, p. 16) e que teria tido no nazismo seu momento mais marcante. A
política sempre teve sua ‘estética’, que ‘é um recorte dos tempos e espaços, do visível e do
invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na
política como forma de experiência’ (idem). Esta dimensão estética da política remete
portanto àquilo que Rancière define como partilha do sensível. A relação entre estes conceitos
já havia sido assim por ele explicitada em Políticas da escrita (1995):
“pelo termo de constituição estética deve-se entender aqui a partilha do sensível que dá forma à comunidade. Partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto comum e, inversamente, a separação, a distribuição dos quinhões. Uma partilha do sensível é, portanto, o modo como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas. Antes de ser um sistema de formas constitucionais ou de relações de poder, uma ordem política é uma certa divisão de ocupações, a qual se inscreve, por sua vez, em uma configuração do sensível: em uma relação entre os modos do fazer, os modos do ser e os do dizer; entre a distribuição dos corpos de acordo com suas atribuições e finalidades e a circulação do sentido; entre a ordem do visível e do dizível” (RANCIÈRE, 1995, p. 7)
É apenas a partir dessa dimensão primeira de estética que se pode falar em ‘práticas
estéticas’, ou nas formas de arte tal como as concebemos. O regime estético das artes é
portanto, uma dentre outras formas possíveis de configuração dentro desta constituição mais
geral. A nosso ver, a utilização de um termo outro que ‘estética’ para designar este regime
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!(1990), ou ainda a revista Magazine Littéraire n. 414 (2002) que apresenta um pequeno mapeamento da situação da estética na contemporaneidade, assim como uma boa bibliografia introdutória.
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pouparia o risco de muitas confusões indesejadas, mas Rancière não o faz. Cabe mais uma vez
destacar que há assim uma ‘estética da política’ que é distinta, e mais geral, que as ‘políticas
da arte’ dentro do regime estético.
Fechado este parênteses, voltemos à sua caracterização do regime estético das artes.
Este regime rompe com o sistema de hierarquias presente no modelo representativo e que
permitia o estabelecimento de uma qualificação da arte no interior das ‘maneiras de fazer’. A
arte continua portadora de uma denominação no singular, mas será a partir de um modo
específico do ser sensível de seus produtos e não mais a partir de um critério pragmático de
produção. “O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no singular
e desobriga esta arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gêneros
e artes.” (RANCIÈRE, 2005a, p. 33). O sensível na arte, ou em outras palavras, o ser sensível
de seus produtos, é tomado como desconectado das formas habituais da experiência, é um
sensível estranho a si mesmo, dotado de uma ‘potência heterogênea’. Esta formulação é o
‘núcleo invariável’ das identificações da arte que configuram o pensamento estético e as auto-
definições das artes próprias à idade moderna:
“A descoberta por Vico do ‘verdadeiro Homero’ como poeta apesar de si mesmo, o ‘gênio kantiano’ que ignora a lei que produz, ‘o ‘estado estético’de Schiller, feito da dupla suspensão da atividade do entendimento e da passividade sensível, a definição dada por Schelling da arte como identidade de um processo consciente e inconsciente, [...] a idéia proustiana do livro interiamente calculado e absolutamente subtraído à vontade; idéia mallarmeana do poema do espectador-poeta, escrito sem ‘aparelho de escriba’ pelos passos da dançarina iletrada; prática surrealista da obra expressando o inconsciente do artista com as ilustrações fora de moda dos catálogos ou folhetins do século precedente; idéia bressoniana do cinema como pensamento do cineasta extraído dos corpos dos ‘modelos’ que, repetindo sem pensar as palavras e gestos que dita para eles, manifestam, sem o seu conhecimento ou o deles, a verdade que lhes é própria, etc.” (RANCIÈRE, 2005a, p. 33).
A idéia de uma modenidade estética identificada com uma ‘linha simples de passagem
ou ruptura’ entre o antigo e o moderno, cujo momento mais marcante teria sido a passagem à
não-figuração na pintura, é assim contestado por Rancière. Como já apontamos, esta idéia é
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considerada ao mesmo tempo simplista e confusa. Em primeiro lugar, segundo Rancière, a
ruptura com o modelo mimético não se iniciou com o ato de recusa da figuração pela pintura
abstrata, que teria alcançado sua ‘pureza anti-representativa’ ao abandonar a ilusão
perspectivista da terceira dimensão encontrando na superfície bidimensional seu ‘medium
próprio.’ Como diz Rancière, “essa superfície não tem nada de ‘própria’. Uma ‘superfície’
não é simplesmente uma composição geométrica de linhas. É uma forma de partilha do
sensível” (RANCIÈRE, 2005a, p. 21). Em segundo lugar, o ‘pulo para fora da mímesis’ não
teve seu momento inicial com a recusa da figuração, mas com o realismo na literatura. Este
não consiste na valorização da semelhança, mas na quebra dos limites em que esta
funcionava. Assim é o realismo de autores como Balzac, Victor Hugo ou Flaubert, por
exemplo, que subverte as hierarquias temáticas presentes no regime representativo, quebrando
suas oposições entre temas dignos de representação ou não, seja trazendo a vida da rua ou o
vestuário de indivíduos comuns como tema, seja adotando ‘um modo de focalização
fragmentada, ou próxima, que impõe a presença bruta em detrimento dos encadeamentos
racionais da história” (idem, p. 36). Rancière propõe então que abandonemos esta noção de
modernidade, que se coloca como uma ruptura com o antigo, para que se compreenda a
especificidade do regime estético das artes, que não opõe o antigo ao moderno, mas é ‘antes
de tudo um novo regime de relação com o antigo’ (idem, p. 36).
É o estado estético de Friederich Schiller que, segundo Rancière (2002, 2004, 2005a,
2005b, 2008b), se configura como a manifestação exemplar do regime estético das artes.
Partindo da formulação kantinana da experiência estética enquanto ‘livre jogo’ das faculdades
presente na Crítica do Faculdade do Juízo, Schiller#) leva adiante as consequências políticas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!28 A respeito dos pontos de aproximação e afastamento entre as considerações de Kant e Schiller acerca do juízo estético cf. Christian Hamm (2009).
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da universalidade estética ao vê-la como mediadora de um novo sentimento de humanidade.
A experiência estética, como definida já na analítica do belo kantiana, consiste em uma
experiência sensível específica, aquela em que se instaura um livre jogo das faculdades, fruto
de uma dupla suspensão: suspensão do poder cognitivo dos conceitos do entendimento
determinando os dados sensíveis e suspensão correlativa do poder da sensibilidade de impor
objetos de desejo.
“A forma apreendida pelo julgamento estético não é nem a de um objeto do conhecimento e nem a de um objeto do desejo. É esse nem...nem.... que define a experiência do belo como experiência de uma resistência. O belo é o que resiste, ao mesmo tempo, à determinação conceitual e à atração dos bens consumíveis” (RANCIÈRE, 2007, p. 130).
Essa é a fórmula primeira que rompe com o regime representativo da arte, onde era
precisamente a concordância entre uma forma de determinação intelectual e uma forma de
apropriação sensível que governava a questão da arte. Schiller leva adiante a idéia kantiana do
livre jogo e assinala que a humanidade realiza sua liberdade quando joga, quando suspende as
determinações das conexões ordinárias para dar forma à existência. Na décima quinta carta
das Lettres sur l’éducation esthétique de l’homme Schiller (1943) afirma que uma
humanidade deve existir ali onde o instinto sensível e o instinto formal se fundam no instinto
de jogo. O objeto do instinto sensível é a vida, ali designada como toda existência material e
toda presença sensível imediata. O objeto do instinto formal é a forma, no sentido tanto
figurado como próprio, compreendendo todas as qualidades formais das coisas e todas as suas
relações com as faculdades pensantes. O objeto do instinto de jogo será a forma viva, ou a
beleza. A beleza não é somente vida, nem somente forma. Dizer que ela é o objeto do instinto
de jogo é tomar a palavra em seu senso normal de ausência de constrangimento, já que a alma
que contempla a beleza escapa ao constrangimento tanto da lei quanto da necessidade. A
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experiência do belo, essa experiência sensível ‘em suspenso’, desconectada das hierarquias
que comumente a estruturam, é representada na descrição de Schiller da experiência diante da
estátua de uma ‘cabeça ociosa’ e sem corpo, a da deusa Juno Ludovisi:
“Não são nem a graça nem a dignidade que nos falam no rosto soberbo de uma Juno Ludovisi; não são nem uma nem outra, pois são todas duas junto. A divindade nos traços de mulher reclama nossa adoração, enquanto que a mulher semelhante à divindade inflama nosso amor. Mas enquanto que, exultantes, nós nos abandonamos a seu charme celeste; seu bastar-se celeste nos assusta.Toda sua pessoa se funda nela mesma e nela permanece: ela é um mundo completamente fechado; como se estivesse para além do espaço; ela não se abandona nem resiste; não há aqui forças que estariam em luta com outras forças nem falha por onde o tempo pudesse fazer irrupção. Nós somos irresistivelmente tomados e atraídos por seu charme, mantidos à distância por seu bastar-se. Nós nos encontramos simultanemante no estado de supremo repouso e de suprema agitação; disso resulta a maravilhosa emoção para a qual a inteligência não possui conceito e nem a língua nome” (SCHILLER, 1943, p.208).
Rancière chama a atenção para o alcance que está em jogo nesta descrição:
“O que essa cabeça ociosa, indiferente, simboliza é a neutralização da oposição entre a atividade e a passividade, isto é, da partilha do mundo entre a classe dos homens ativos e, que são os homens ‘do lazer’ e a dos homens passivos, a dos homens destinados à passividade do trabalho reprodutor. [...] O que Schiller assinala a seu modo é essa nova forma de existência das obras de arte, que se dá num modo de visibilidade que confunde materialmente a distribuição dos lugares e das funções, e uma forma de experiência que confunde a relação funcional das identidades sociais e dos ‘equipamentos corporais”(RANCIÈRE, 2005b, p. 5).
Podemos entrever assim a abertura para pensar o alcance e a forma política que assume
a ruptura com o modelo representativo a partir da suspensão das determinações sensíveis
presente no que Rancière denomina regime estético das artes que, segundo ele, nos é
contemporâneo. Voltemos agora então mais precisamente ao ponto em que havíamos deixado
a análise de seu texto mais recente, Les paradoxes de l’art politique.
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1.2 A crítica a uma política da arte fundada no modelo pedagógico
Como assinalávamos naquele momento, Rancière afirma que o modo de pensamento
que sustenta a visada política da arte ainda se encontra ligado, após ao menos dois séculos de
crítica, ao modelo representativo:
“é forçoso constatar que esta tradição é ainda dominante mesmo nas formas que se querem artística e políticamente subversivas. Supõe-se que a arte nos torna revoltados ao nos mostrar coisas revoltantes, que ela nos mobiliza pelo fato de se mover fora do ateliêr ou do museu e que nos transforma em opositores do sistema dominante ao se negar ela mesma como elemento deste sistema. Coloca-se sempre como evidente a passagem da causa ao efeito, da intenção ao resultado, senão quando o artista é inábil ou o destinatário incorrigível”(RANCIÈRE, 2008b, p. 57).
Em 1760, no texto Lettres sur les spectacles, Rousseau já contestava a pretendida lição
de moral presente na peça O Misantropo (Le misanthrope) de Molière. Para além da
mensagem que Molière visava transmitir, o que Rousseau contestava era a linha reta que
partia da intenção de um autor à receptividade do espectador. Esta linha reta supunha, como é
comum no regime representativo, o teatro como um grande espelho onde os espectadores
eram convidados a ver na história apresentada seus modos de comportamento, seus vícios e
virtudes. O teatro oferecia, a partir das situações apresentadas, modelos que permitiam a
reorientação no mundo, seja no sentido da aquisição de virtudes, seja no sentido do
afastamento dos vícios. Rancière aponta que esta ‘vocação edificante’ do teatro, e da arte em
geral, está aparentemente longe de nossa maneira de pensar e sentir, mas a lógica causal que a
subjaz não. Como ele diz:
“Nós seguramente não acreditamos mais na correção dos modos pelo teatro. Mas amamos ainda crer que a representação em resina de tal ou tal ídolo publicitário nos colocará contra o império midiático do espetáculo ou que uma série fotográfica sobre a representação dos colonizados pelo colonizador nos ajudará a fugir das armadilhas da representação dominante das identidades.” (RANCIÈRE, 2008b, p. 59).
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Rancière chama então este modo de pensamento que baseia a política da arte em sua
‘vocação edificante’, de modelo pedagógico de eficácia da arte. Nele, signos sensíveis que
representam um certo estado de coisas são dispostos segundo a intenção de um autor, e
engajar-se em seu reconhecimento é engajar-se em uma certa leitura do mundo. É a partir
desta leitura que se orientará (ou reorientará) nossa ação no mundo, segundo as intenções
pretendidas pelo autor. Pressupõe-assim um continuum sensível entre a produção das
imagens, gestos e palavras e a percepção de uma situação que requer o engajamento de
pensamentos, sentimentos e ações do espectador. A crítica colocada por Rousseau já no fim
do século XVIII apontava assim para este continuum, ou seja, para o próprio dispositivo
colocado em jogo. Rousseau ressaltava que antes de ser difusora de comportamentos, modelos
de ação ou representações a serem decifradas, a arte consiste na “disposição dos corpos, na
decupagem de espaços e de tempos singulares que definem as maneiras de estarem juntos ou
separados, em face de ou em meio à, dentro ou fora, próximos ou distantes” (RANCIÈRE,
2008b, p. 61). No entanto, segundo Rancière, apesar da pertinência da crítica de Rousseau,
sua posição é ela mesma, ainda problemática. E também significativa do ponto de uma vista
de uma análise da contemporaneidade. Pois contra esta mediação representativa do teatro,
Rousseau propunha uma outra cena, uma cena onde não houvesse uma distância entre
espectadores e atores, onde a comunidade se fizesse presente a ela mesma. Para Rancière,
Rousseau retoma aqui uma antiga polêmica platônica, que opunha ao simulacro da mímesis
teatral, a boa mímesis da ‘coreografia da cidade em ato, movida por seu princípio espiritual
interno, cantando e dançando sua própria unidade’ (idem, p. 61). Define então o modelo
proposto por Rousseau como arqui-ético: “no sentido em que os pensamentos não são mais
objetos de lições trazidas pelos corpos ou imagens representadas mas são diretamente
encarnados em modos, em modos de ser da comunidade’. (idem, p. 62). Rancière marca que
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esse modelo não cessou de acompanhar a modernidade, a idéia da arte tornada forma de vida.
Ainda que os dispositivos sejam diferentes daqueles propostos na primeira metade do século
XX (a obra de arte total, o coro do povo em ato, a sinfonia futurista ou construtivista) a lógica
que subsiste é a mesma: um modelo de arte que deve suprimir-se a si mesmo, um teatro em
que o espectador deixa de sê-lo para tornar-se ator, a performance que faz sair a arte do museu
para se constituir como gesto na rua, ou ainda a anulação da separação no interior do museu
entre arte e vida. Para Rancière, grande parte da discussão em torno da política da arte se
encontra, ainda hoje, enredada no interior dos pólos constituídos por estas duas pedagogias: a
pedagogia da mediação representativa e a pedagogia da imediatez ética#*. Na primeira, é a
partir do encadeamento de signos realizado pelo artista que o espectador poderá compreender
sua leitura do mundo e engajar-se nela. Há um jogo de proximidade e distância que permitirá
a interpretação de um conjunto de representações e que culminará na tomada de consciência
de uma determinada condição. Na segunda, o espectador deve ser arrancado de sua condição e
ser levado a encarnar uma nova posição, a posição de um membro ativo em uma comunidade
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!29 Haveria ainda segundo Rancère um outra via que é aquela adotada por certos filósofos, artistas e teóricos que inscrevem a importância da arte na contemporaneidade sob a rubrica das vanguardas. Estas teriam como missão “testemunhar o que há de irrepresentável”. A arte guardaria sua radicalidade, ou sua autonomia, ao se afastar de outros domínios de identificação onde poderia perder-se (notadamente os projetos totalitários e a estetização mercantil da vida). Nesta linha, que segundo Rancière (2002, 2004, 2007) pensa a arte basicamente a partir de uma reinterpretação da analítica do sublime kantiano, só há arte ali onde a inscrição sensível seria como uma apresentação negativa, ou seja, ali onde a manifestação sensível é signo de seu próprio fracasso enquanto apresentação. O sublime traz, nesta interpretação, a marca da inscrição de um poder do Outro do qual o espírito é irremediavelmente refém e cujo esquecimento conduz à todas as catástrofes totalitárias e à todas as formas de estetização mercantil da vida. Daí a tarefa política das vanguardas artísticas de ‘testemunhar isso o que há de irrepresentável’. Rancière coloca a figura de Lyotard como emblemática deste tipo de posição e comenta: “Para Lyotard, esse sonho de uma humanidade senhora de si não é apenas ingênuo, mas criminoso. É ele que se realiza no genocídeo nazista. O extermínio dos judeus da Europa é de fato o extermínio do povo testemunha da dependência do espírito em relação à lei do Outro. A resistência da arte consiste, assim, em produzir um duplo testemunho: testemunho da alienação inultrapassável do humano e testemunho da catástrofe que surge da ignorância dessa alienação.” (RANCIÈRE, 2007, p. 139). Grifo nosso.
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livre das representações. Por isso a passagem da cena teatral ao ‘coro’$+ é paradigmática, pois
marca a realização concreta de um novo laço social e de uma nova coletividade.
Encontramos aqui a discussão apresentada por Rancière em Le spectateur émancipé
(2008a), na qual situa aquilo que define como o paradoxo do espectador no centro das
relações entre arte e política. Este paradoxo pode ser assim formulado:
“não há teatro sem espectador [...]. Ora, dizem os acusadores, é problemático ser espectador, por duas razões. Primeiramente olhar é o contrário de conhecer. O espectador está diante de uma aparência ignorando o processo de produção desta aparência ou a realidade que ela recobre. Em segundo lugar, é o contrário de agir. A espectadora permanece imóvel em seu lugar, passiva. Ser espectador, é estar separado ao mesmo tempo da capacidade de conhecer e do poder de agir.” (RANCIÈRE, 2008a, p. 8).
O espetáculo teatral (expressão que para Rancière inclui todas as formas de espetáculo -
ação dramática, dança, performance, etc. – que colocam corpos em ação diante de um público
reunido) assume neste sentido um caráter paradigmático. Segundo Rancière, desde o
romantismo alemão o teatro, mais do que qualquer outra forma de arte, se encontra associado
ao pensamento de uma coletividade viva, o lugar privilegiado de uma revolução estética onde
‘o público passivo dos espectadores deveria se transformar em seu contrário: o corpo ativo de
um povo colocando em ato seu princípio vital’ (idem, p. 11). A presença deste tipo de
pensamento pode ser ilustrada a partir da fala de um dos mais importantes teóricos
contemporâneos da estética teatral, o alemão Hans-Thies Lehman:
“O teatro não é apenas o lugar dos corpos submetidos à lei da gravidade, mas também o contexto real em que ocorre um entrecruzamento único de vida real cotidiana e de vida esteticamente organizada. Ao contrário do que ocorre em todas as artes do objeto e da comunicação midiática, aqui tanto o ato estético em si (a representação teatral) quanto o ato da recepção (assistir à representação) têm lugar como uma ação real em um tempo e em um lugar determinados. Teatro
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!30 Segundo o Vocabulaire d’esthétique, de Étienne Souriau, o termo ‘coro’ vem do grego e remete ao ‘conjunto de pessoas que dançavam e cantavam (e, primitivamente, a área onde elas evoluíam). As três artes da dança, da poesia e da música, ali se encontravam reunidas” (Souriau, 1990, p. 367). O que Rancière ressalta é seu lugar especial no pensamento platônico. “Ao teatro e à escrita, Platão opõe uma terceira forma (de estruturação do regime das artes) como boa forma de arte, a forma coreográfica da comunidade que dança e canta sua própria unidade” (RANCIÈRE, 2005a, p. 18). A forma coreográfica é assim importante pois representa “o movimento autêntico, o movimento próprio dos corpos comunitários” (idem).
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significa um tempo de vida em comum que atores e espectadores passam juntos daquele espaço em que a peça teatral e os espectadores se encontram frente à frente. A emissão e a recepção dos signos e sinais ocorrem ao mesmo tempo31.”(LEHMAN, 2007, p.18).
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Como havíamos assinalado acima, Rancière marca que é novamente a problemática
platônica da distinção entre ‘coro’ e ‘teatro’ que está em jogo. Mas desta situação o discurso
daqueles que defendem um teatro político mantém as premissas e muda a conclusão. Para
Platão a conclusão é de que o teatro é algo que constitui um problema para a comunidade,
pois é o lugar da ilusão e da passividade que deveriam ser suprimidas em uma comunidade
livre. No discurso contemporâneo o que se coloca é a necessidade da construção de um novo
teatro: “um teatro sem espectadores, onde aqueles que assistem (assistants) aprendem em
lugar de serem seduzidos pelas imagens, onde se tornam participantes ativos em lugar de
serem voyeurs passivos” (idem, p. 10).
Aqui cabe à título de clareza, já que estamos cruzando diversos textos de Rancière, um
breve esclarecimento. As colocações de Rancière presentes neste texto constituem uma crítica
que funciona em dois planos: um mais específico e circunscrito a este texto, que se volta para
a idéia de teatro como encarnação privilegiada de uma coletividade viva; e um outro, mais
amplo, que se volta para uma linha de pensamento (filiada à crítica debordiana do espetáculo)
que acaba por fazer uma equivalência entre visão-exterioridade-despossessão de si. Esta
equivalência constitui o cerne do dispositivo estético-político que, ao mesmo tempo, sustenta
tanto o paradoxo do espectador quanto uma política da arte enredada nos dois pólos
‘pedagógicos’ citados na referência ao texto Les paradoxes de l’art politique: o da mediação
representativa e o da imediatez ética. Esta segunda questão é mais ampla e, apesar de incluir a
questão do teatro e de sua dimensão política, está para além dela, ganhando maior força ao
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!31 Grifos do autor.
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atravessar os diversos textos reunidos no livro Le spectateur émancipé (e de uma certa
maneira toda sua discussão acerca das relações entre arte e política). É este o caminho que
privilegiaremos de forma que o caso do teatro é utilizado aqui como um exemplo dentre
outros no que diz respeito à questão da política da arte. Cabe frisar que isto nos parece estar
em estreita sintonia com o pensamento de Rancière uma vez que, por um lado, este é crítico
da idéia do teatro como modelo privilegiado ou emblema daquilo que seria uma ‘coletividade
viva’ e, por outro lado, este se esforça por tornar claro que há uma mesma lógica em
funcionamento na tarefa política que as diferentes modalidades artísticas se dão. São os
diversos fios que ligam estas questões, seus impasses e consequências que, esperamos, se
tornem claros no percurso que realizamos aqui.
Segundo Rancière, há no campo do teatro duas grandes fórmulas emblemáticas da
tentativa de ‘retirar’ o espectador de sua passividade: o teatro épico de Brecht e o teatro da
crueldade de Artaud. No primeiro, trata-se de interromper os mecanismos de identificação do
espectador. É preciso assim apresentar um espetáculo estranho, um enigma cujo sentido deve
ser desvendado de forma que o espectador saia de sua condição passiva para assumir aquela
do pesquisador que oberva os fenômenos e busca suas causas. No segundo, é precisamente
essa distância racional que necessita ser abolida. O espectador deve ser arrancado de sua
calma condição de observador para adentrar no ‘círculo mágico da ação teatral onde ele
trocará o privilégio de observador racional pelo da posse de suas energias vitais integrais’
(idem, p. 10). É importante salientar, contudo, que a nosso ver não se trata de negar a
qualidade e a importância do teatro épico de Brecht ou do teatro da crueldade de Artaud, nem
mesmo negar que haja ali qualquer efeito político. Trata-se apenas de apontar que estes efeitos
não compõem uma transmissão calculável: choque sensível, tomada de consciência intelectual
e ação política (no caso de Brecht) ou choque sensível, ação política (no caso de Artaud).
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Encontramos aqui o mesmo quadro anteriormente descrito por Rancière: um discurso
que coloca como condição da efetividade política da arte sua própria supressão enquanto
mediação, seja por meio de uma tomada de consciência, como na pedagogia da mediação
representativa, seja por meio da liberação de uma ação concreta, como no caso da pedagogia
da imediatez ética. Nestes dois casos, a condição para que a arte seja política é retirar o
espectador de sua condição de espectador, pois, novamente, ser espectador é ser ao mesmo
tempo aquele que não sabe e aquele que não pode agir$#. Mas como diz Rancière, ‘ser
espectador não é a condição passiva que seria necessário que transformássemos em atividade.
É nossa situação normal’ (RANCIÈRE, 2008a, p. 23). Não há um ponto privilegiado de ação
ou de conhecimento, estamos todos em meio a um mundo em que algumas faces se nos
apresentam obscuras, outras cujas lições já nos foram ensinadas, algumas possibilidades de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!32 É interessante fazer aqui uma breve menção ao texto de Gilles Deleuze (1976) Un manifeste de moins. Ali Deleuze aponta como o teatro de Carmelo Bene, operando por meio da subtração (ou neutralização) dos elementos de poder tanto no teatro (aquilo que é representado na cena teatral: Reis, Princípes, os Mestres, o Sistema) quanto do teatro (aquilo que sustenta o poder do teatro como representação: o Texto, o Diálogo, o Ator, o Diretor, a Estrutura) engendra uma outra via de política teatral. Uma política mais modesta - “O teatro evidentemente não muda o mundo e nem faz a revolução” (idem, p.120) - mas não menos potente. Não se trata assim de erigir um teatro popular, um teatro para o povo, pois este é sempre um teatro da ‘representação dos conflitos’ (e aqui, apesar do reconhecimento de sua importância, surge novamente o nome de Brecht a ser criticado) um teatro majoritário já ‘normalizado’ ou ‘institucionalizado’ com suas figuras representativas. Recusa-se também as vias do teatro de vanguarda, do psicodrama, do teatro ‘esteta’ (onde os conflitos formalizados se tornam ‘abstratos e geométricos’) ou ainda do teatro místico (no qual a representação é abandonada para que este se torne “vida comunitária e ascética ‘fora do espetáculo’” (idem, p.123). Trata-se antes de fazer fugir um estado majoritário, de produzir linhas de variação contínua, de ‘constituir de alguma maneira uma figura da consciência minoritária, como potencialidade de cada um’ (idem, p. 125). E Deleuze completa: “Tornar uma potencialidade presente, atual, é completamente diferente de representar um conflito” (idem). Esta ‘consciência minoritária’ não é portanto de forma alguma a representação do estado de fato de um ‘grupo’ excluído ou subordinado à uma figura maior que lhe serve de pólo referencial ou unidade de medida que lhe fixa a lei, mas sim um devir-minoritário no qual pode-se se engajar e que faz fugir as linhas que desenham esta figura maior. Estamos aqui longe de uma tomada de consciência psicanalítica, marxista ou ainda brechtiana, pois não se trata de uma consciência que ofereça soluções e interpretações. Pelo contrário: “é quando a consciência abandona as soluções e as interpretações que ela conquista então sua luz, seus gestos e seus sons, sua transformação decisiva” (idem, p. 130). E são as palavras de Henry James as trazidas por Deleuze para descrevê-la: “Ela havia terminado por saber tanto que ela não poderia mais nada interpretar; não havia mais obscuridades que lhe fizessem ver claramente, não restava senão uma luz crua” (idem). Segundo Deleuze é esta potência que está em jogo no teatro, assim como na arte em geral; potência esta que nos faz sentir menos sós, pois por meio dela tornamo-nos qualquer um ou, em outras palavras, alcançamos todo mundo. A nosso ver, os ecos destas considerações deleuzeanas (ainda que aqui expostas brevíssimamente e apenas em uma nota de rodapé, a título da fluência de leitura do corpo do texto) poderão se fazer sentir ao longo de toda a discussão com Rancière aqui realizada.
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ação já encaminhadas, outras ainda por traçar. Isso se torna obscurecido por todo um conjunto
de pressuposições e equivalências que sustentam este paradoxo do espectador:
“equivalências entre público teatral e comunidade, entre olhar e passividade, exterioridade e separação, mediação e simulacro; oposições entre coletivo e individual, imagem e realidade vivente (viva), atividade e passividade, possessão de si e alienação” (RANCIÈRE, 2008a, p. 13).
É aqui que Rancière cruza a questão do espectador com a questão da emancipação$$
intelectual tal como havia sido trabalhada por ele em Le maître ignorant (1987). Pois a lógica
de uma distância a ser suprimida, ou em seus termos, de uma ‘mediação auto-evanescente’,
que subjaz ao paradoxo do espectador, é a mesma que se faz presente na relação pedagógica
descrita e criticada por ele no texto citado. Nesta relação todos os esforços do mestre e do
aluno caminham em uma só direção: redução progressiva da distância que os separa. Mas
Rancière aponta que esta distância não pode ser reduzida senão sob a condição de ser recriada
continuamente, já que para substituir a ignorância pelo saber, o mestre deve sempre dar um
passo à frente, recolocando entre ele e o aluno uma nova ignorância. Segundo Rancière a
razão é simples:
“Na lógica pedagógica o ignorante não é somente aquele que ainda ignora isto o que o mestre sabe. Ele é aquele que não sabe aquilo que ignora nem como o saber. O mestre não é somente aquele que detém o saber ignorado pelo ignorante. Ele é também aquele que sabe fazer disso um objeto de saber, em qual momento e segundo qual protocolo” (RANCIÈRE, 2008a, p. 14).
Não há ignorante, ou seja, qualquer um que entre neste imenso mecanismo de construção de
ensino, que não tenha aprendido a partir de sua própria presença no mundo já uma massa de
coisas, que tenha formulado suas hipóteses no acaso de seus encontros e de seus próprios
erros e acertos. Mas o fato é que na verdade isto não entra em jogo, já que este tipo de saber
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!33 Sabemos que o conceito de emancipação possui uma longa trajetória na história das idéias políticas, mas no restringimos aqui ao sentido trabalhado por Rancière.
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para o mestre não é senão um saber de ignorante e o que faltará sempre, segundo Rancière,
para o ignorante (a menos que devenha ele próprio mestre) é o saber da ignorância, “o
conhecimento da distância exata que separa o saber da ignorância” (idem, p. 15). Pois o que
está presente no protocolo de transmissão do saber, e que o mestre assim como o ignorante
sabem, é que a ignorância não é um saber menor, mas um não saber, ‘o saber não é um
conjunto de conhecimentos, mas uma posição’. Uma distância que se reproduz no eterno
‘passo a frente’ que separa mestre-ignorante. Como diz Rancière:
“Ela é a metáfora do abismo radical que separa o comportamento do mestre daquele do ignorante, porque separa duas inteligências: aquela que sabe em que consiste a ignorância e aquela que não o sabe. É, antes de mais nada, essa distância radical que o ensino progressivo ordenado ensina ao aluno. Assim ele verifica incessantemente em seu ato, sua própria pressuposição, a desigualdade das inteligências” (RANCIÈRE, 2008a, p. 15).
É essa verificação interminável, traço fundamental deste regime pedagógico, que o
personagem abordado por Rancière em Le maître ignorant, Jacotot, denomina
‘embrutecimento’. À este regime ‘embrutecedor’ Jacotot, que ensinava o idioma francês sem
dominá-lo (daí o título do livro de Rancière), opunha uma efetiva emancipação intelectual.
Esta emancipação é a verificação da igualdade das inteligências. Isto não se confunde com
uma atribuição de valor igual a todas as manifestações de inteligência, mas consiste na
‘igualdade à si da inteligência em todas as suas manifestações’ (idem, p. 16). Segundo ele
não há duas inteligências separadas por um abismo, mas sempre uma mesma inteligência
colocada em funcionamento. A citação é longa, mas elucidativa:
“o animal humano aprende todas as coisas como aprendeu inicialmente sua língua materna, como aprendeu a se aventurar na floresta das coisas e dos signos que o circundam a fim de tomar lugar entre os humanos: observando e comparando uma coisa com uma outra, um signo com um fato, um signo com outro signo. Se o iletrado conhece somente uma prece de cor, ele pode comparar este saber com aquilo que ainda ignora: as palavras desta prece sob o papel. Ele pode aprender, signo após signo, a relação disto que ignora com isso o que sabe. Ele o pode se, a cada passo, ele observa isto que está diante dele, diz isto que viu e verifica isto o que disse. Deste ignorante, soletrando os signos, ao cientista que constrói hipóteses, é sempre a mesma inteligência que está
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em funcionamento, uma inteligência que traduz signos em outros signos e que procede por comparações e figuras para comunicar suas aventuras intelectuais e compreender isto que uma outra inteligência busca lhe comunicar. Este trabalho poético de tradução está no coração de toda aprendizagem34” (RANCIÈRE, 2008a, p.16).
Colocar o processo de aprendizagem como um processo poético de tradução já
demonstra o deslocamento que visa ser operado. O que está em jogo neste processo de
emancipação é superar a colocação de que há uma distância radical a ser superada apenas por
um ‘expert’. Pois a distância que o ignorante tem a atravessar não é aquela entre sua própria
ignorância e o saber do mestre, mas o caminho traçado entre isto que ele já sabe e isso que ele
ainda ignora, mas que pode aprender. A distância não é um mal a se abolir, pois constitui a
condição normal de toda comunicação. O mestre não ensina aos alunos seu saber, mas os faz
melhor praticar a arte de traduzir, de se aventurar na floresta de coisas e signos, de mobilizar
suas experiências neste processo, de traduzi-las em palavras ou ainda de colocar estas mesmas
experiências e palavras sempre à prova. Isto que o ‘mestre ignorante’ ignora é a distância
embrutecedora, que situa já de antemão a inegalidade das inteligências. “Toda distância é uma
distância factual, e cada ato intelectual é um caminho traçado entre uma ignorância e um
saber, um caminho que sem cessar abole, com suas fronteiras, toda fixidez e toda hierarquia
de posições” (idem, p. 17).
Podemos entrever aqui não só o enlace a ser realizado por Rancière entre esta discussão
e a questão do paradoxo do espectador, como também as ressonâncias entre as questões
levantadas nos dois textos citados. O que atravessa estes textos é a a exposição crítica de uma
política da arte baseada em um modelo ‘pedagógico’. Por isso Rancière faz deslizar sua
análise entre modalidades artísticas distintas (como o teatro, a fotografia, o cinema, literatura,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!34 Grifo nosso.
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as videoinstalações, etc.). Sua preocupação maior é o modo de inteligibilidade da dimensão
política da arte que subjaz a estes diferentes campos. Não se trata de dizer que todas estas
diferentes modalidades não possuem singularidades e são uniformes em todos os sentidos,
mas de apontar que há um mesmo solo no que diz respeito à compreensão da maneira de
serem políticas. O pensamento de Rancière é marcado pelo atravessamento de fronteiras e
opera por deslocamentos que continuamente reconfiguram os quadros em que se estabelecem
pontos de continuidade e ruptura. Por isso uma primeira leitura de suas teses pode parecer, ao
mesmo tempo, extremamente simplista ou, pelo contrário, sinuosa e complexa.
Este modelo pedagógico que marca toda uma política da arte, possui assim uma dupla
face. Por um lado, a pressuposição de que o espectador, enquanto tal, é aquele que se encontra
no plano da aparência e da alienação, pois ver é o contrário de saber e de agir. Por outro lado,
realizar ou colocar em funcionamento uma política da arte seria tranformar este quadro, e para
isso dever-se-ia ‘arrancar’ o espectador desta condição, seja por meio de uma tomada de
consciência, seja por meio de uma ação direta. Temos aqui a ‘pedagogia da mediação
representativa’, no vocabulário de Les paradoxes de l’art politique (Os paradoxos da arte
política), ou ‘Paradigma brechtiano’, no vocabulário de Le spectateur émancipé (O espectador
emancipado) por um lado; e, por outro lado, a ‘pedagogia da imediatez ética’ e a ‘lógica de
Artaud’, respectivamente$&. O que estas pedagogias possuem de comum não só entre si, mas
também em relação à prática embrutecedora, é a suposição de uma identidade entre causa e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!35 Aqui é interessante notar que o paradigma brechtiano comparece nos dois textos, mas a ‘lógica de Artaud’ desaparece da análise presente em Les paradoxes de l’art politique. O que indica uma hesitação, a nosso ver justificada, quanto à assimilação do trabalho de Artaud a uma lógica pedagógica. Essa hesitação se justifica, a nosso ver, pois no teatro da crueldade de Artaud não se trata de engajar o espectador em uma ação política. A ação sob os espectadores, ou que os espectadores são ‘levados’ a realizar nos espetáculos, não visa a concretização de uma comunidade transparente à si. Há um trabalho direto sobre o corpo e suas ações, mas este trabalho é um meio de abertura, uma desestratificação do corpo visando a criação de novas modalidades e relações afetivas. A ação faz parte portanto de uma estratégia de produção de suspensão, e não de garantia ou concretização de um efeito político. O ‘atletismo’ de Artaud é, como destaca Deleuze (2007), afetivo.
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efeito (aquilo que o aluno deve aprender é o que o mestre lhe ensina; isto que o espectador
deve ver é aquilo que o artista lhe faz ver; isto que ele deve sentir é o que artista lhe
comunica) que vem acompanhada de uma certeza: a necessidade de ultrapassar o abismo que
separa a passividade da atividade. Mas Rancière se pergunta se não é exatamente a vontade de
suprimir esta distância que a cria.
2. A reviravolta estética e a suspensão como política da arte
O que a lógica que subjaz a estas pedagogias encobre é o modo de eficácia (ou
efetividade) política próprio da arte no regime estético: o da suspensão, ou dissenso. Esta
efetividade é assim paradoxal, pois se cumpre precisamente ao instaurar uma descontinuidade,
uma suspensão ou um dissenso, entre as formas sensíveis da produção artística e as formas
sensíveis mobilizadas em sua recepção. Rancière (2005b) assinala que essa ‘neutralização
estética’ foi muitas vezes tratada por uma certa sociologia, e cita a obra ‘A distinção: crítica
social do julgamento’ de Bourdieu (2007), como uma forma de dissimular a realidade da
incorporação social da recepção estética e do mercado de bens simbólicos, o que dissimularia
a consciência crítica da realidade e consequente criaria obstáculos a uma ação social para
tranformá-la. Rancière qualifica esta posição como uma aliança a baixo custo entre
progressismo científico e progressismo político, que perde o ponto principal do que constitui
cerne da eficácia política desta distância ou neutralização estética: a suspensão de toda relação
determinável entre a intenção de um artista, uma forma sensível apresentada em um espaço
artístico, o olhar de um espectador e um estado da comunidade. É essa potência de disrupção
que está em jogo na ‘indiferença radical’ da Juno Ludovisi descrita por Schiller.
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“O ‘instinto de jogo’ próprio à experiência neutraliza a oposição que tradicionalmente caracterizaria a arte e seu enraizamento social: a arte se definia pela imposição ativa de uma forma à uma matéria passiva e esse efeito a colocava em acordo com uma hierarquia social onde os homens de inteligência ativa dominavam os homens da passividade material” (RANCIÈRE, 2008b, p. 64).
2.1 Uma nova relação com o sensível: arte, filosofia e resistência
A importância do conceito schilleriano de instinto de jogo é também ressaltada por
François Zourabichvili no texto O jogo da arte (2007), no qual discute a lógica da tríade arte-
filosofia-resistência. Segundo ele, de uma certa maneira à la Rancière, antes de nos
perguntarmos o que pode a arte ou o pensamento filosófico ‘neste mundo que não vai nada
bem’ (idem , p.97), ou seja, antes de nos perguntarmos sobre a efetividade dos efeitos
políticos que podem produzir a arte e o pensamento filosófico; cabe buscar compreender de
que maneiras são construídos os laços que unem esta tríade. E a concepção schilleriana possui
uma posição peculiar neste contexto. Pois a partir dele a filosofia depara-se com um ponto de
clivagem diante de um problema: “a determinação como condição da existência e ao mesmo
tempo forma de sua alienação” (ZOURABICHVILI, 2007, p. 102). Este problema não nasce
da filosofia de Schiller, mas encontra ali um ponto de abertura de duas vias. Antes de
expormos estas duas vias cabe colocar que esta questão vem daquilo que Zourabichvili chama
de reviravolta estética da filosofia. Aqui o próprio Zourabichvili afirma concordar com
Rancière quando este coloca que a estética não é uma disciplina à parte ou autônoma. Mas faz
questão de marcar que enquanto Rancière a coloca como um regime histórico de identificação
da arte, ele a coloca como um acontecimento na história da filosofia. Assim, antes de
pertencer à história do discurso sobre a arte, a estética pertence à história da filosofia. Talvez
não haja aqui uma lacuna tão grande, pois quando Rancière fala de um ‘regime estético das
artes’, na verdade se refere a uma forma de pensar a arte, a um acontecimento na história do
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pensamento que reconfigura os quadros de produção, compreensão e fruição da arte. Isto pode
ser atestado em seu texto Existe uma estética deleuzeana? (2000), onde afirma:
“para mim, a palavra ‘estética’ não designa uma disciplina. Não designa uma divisão da filosofia, mas uma idéia do pensamento. A estética não é um saber sobre as obras, mas um modo de pensamento que se desdobra acerca delas e que as toma como testemunho de uma questão: uma questão que se refere ao sensível e à potência do pensamento que o habita antes do pensamento” (RANCIÈRE, 2000, P. 505).
A diferença talvez consista no fato de que Zourabichvili dá uma maior ênfase às
consequências desta reviravolta estética para a própria filosofia, o que faz surgir a
necessidade até mesmo de reconfigurar a própria questão sobre o que seja pensar, como
atestam suas palavras:
‘é um acontecimento tão íntimo à filosofia que chega a ser o nome de uma problemática coextensiva a toda filosofia, ou melhor, de um gesto problemático que para a filosofia consiste em se reatribuir um sentido, gesto que cada filósofo deve fazer por conta própria, dando-lhe sua significação e modalidade: logo, a estética também afeta a filosofia das ciências e a filosofia política” (ZOURABICHVILI, 2007, p. 102).
A nosso ver estas duas linhas de argumentação se aproximam não só na negação da
estética como uma disciplina autônoma mas também na medida em que, cada um à sua
maneira, reafirmam a importância da ‘ruptura estética’, ou de um trabalho de suspensão, no
que diz respeito à dimensão política da arte.
Zourabichvili divide sua argumentação em quatro momentos, que permitem melhor
compreender a junção entre arte, filosofia e resistência:
“1 – a confusão sensível como aquilo que resiste à filosofia; 2 – o jogo como princípio de resistência próprio à arte; 3 – a extensão desse princípio à filosofia que, por sua vez, torna-se resistente; 4 – a resistência à si como jogo sempre específico e critério discriminante do verdadeiro jogo” (ZOURABICHVILI, 2007, p. 108).
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Se Zourabichvili traz a questão da reviravolta estética da filosofia, é exatamente para
mostrar como o que ali está em jogo é uma reorientação na relação que o pensamento
estabelece com o sensível. E daí a importância que assume a arte no contexto das relações
com o pensamento filosófico e político. Desde Platão todas as filosofias reconhecem a relação
do pensamento com o sensível, mas definem, ainda que de diferentes maneiras, o caminho do
pensamento e da filosofia como o da subtração a seus limites. “Pensar existe somente no
horizonte da representação, distinta e intelectual, como negação da representação confusa ou
sensível” (idem, p. 97). Segundo Zourabichvili é isso que em meados do século XVIII, a
partir da obra Aesthetica de Baumgarten, começa a se reconfigurar. A relação do pensamento
com o plano sensível deixa de ser colocada como acidental, ou seja, deixa de ser colocada
como um momento a ser superado; daí não haver a possibilidade de se tomar a relação com o
sensível sob o signo da negação. Para pensar a si mesma, a filosofia deve pensar a
consistência do sensível, ou seja, pensar aquilo que resiste a ela. Zourabichvili então afirma:
“a filosofia confronta-se com uma tarefa aparentemente contraditória: estabelecer uma relação
entre o confuso-sensível como tal, mas, para não trair a si mesma, só pode fazê-lo produzindo
o seu conceito distinto” (idem, p. 98) O confuso só se insere na filosofia como aquilo que dela
se furta. Segundo Zourabichvili, é necessário ‘ler as páginas de Baumgarten que nunca lemos’
(idem, p. 98) para vermos como ali a confusão do sensível e a distinção do pensamento não
comparecem ligados apenas pela lógica do negativo, já que o confuso é a ‘consistência
específia e positiva do sensível” (idem). É aí que ganha importância a arte, pois esta
configurará um ponto de apoio, ou uma relação enunciável, neste caminho entre a filosofia e o
confuso (ou o sensível). A arte propõe um outro caminho ao pensamento: não mais do
confuso ao distinto, mas do confuso ao confuso, ‘em uma operação que a eleva à sua própria
perfeição’ (idem, p. 99). Zourabichvili resume assim então, essa reviravolta estética:
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• A confusão sensível resiste à ordem do conceito, remete a conceitos especiais
que somente a arte produz, conceitos do individual complicado
• A filosofia supera esta resistência indiretamente produzindo conceitos daquilo
que a arte faz (e não os que a arte produz), produzindo portanto os conceitos
dos conceitos da arte; ou seja, instituindo a estética (idem, p. 99).
Temos aqui, de forma bem abreviada, o primeiro ponto traçado por Zourabichvili: o
movimento que aproxima arte e filosofia (via relação do pensamento com a sensibilidade). O
segundo diz respeito não mais propriamente à relação entre arte e filosofia, mas ao princípio
de jogo como sendo ‘o princípio de resistência próprio à arte’. Aqui entra a importância de
Schiller que parte do conceito de jogo presente em Kant, mas o leva mais adiante. E porque
isto se daria? Segundo Zourabichvilli porque Schiller vai além da idéia kantiana de que na
experiência estética o espírito não conhece, mas joga, não se sujeitando às determinações
cognitivas. Ele dá ao conceito de livre jogo um maior impulso, pois o que ressalta é
precisamente a questão da liberdade que “certamente só se realiza quando apta à dar forma à
existência, isto é, quando lei moral e verdadeira lei política começam e encontram sua
condição na própria capacidade estética – o poder de contemplar a aparência”
(ZOURABICHVILI, 2007, p. 100). Não se trata mais de escapar das aparências, mas de nelas
se elevar e saber permanecer.
“Há sempre real em demasia, estamos nele enviscados, submissos ao acaso das determinações e ao interesse ou à paixão que nos remete a uma ou outra determinação. Ora, contemplar é suspender as determinações, é interromper o encadeamento firmado que caracteriza o ordinário da vida humana, ordinária passiva para, destarte, poder começar a jogar com formas puras” (idem).
O que o jogo da arte instaura então é uma capacidade de unir passividade e atividade do
espírito, receptividade material e poder formador, e isto torna pensável ‘a transição entre o
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reino sensível da necessidade e o reino moral da lei’ (idem , p. 101). Isto para o que
Zourabichvili quer chamar atenção é o fato de que aquilo que a filosofia descobre no seio da
arte é ‘o próprio princípio de resistência’ (idem). É aqui que o papel de indeterminação, ou
suspensão, ganha força. “Só há existência fixada; consequentemente, seria vão opor-se à
determinação, mas essa determinação, ordinariamente passiva, deve poder converter-se em
determinação ativa [...], e essa conversão da determinação supõe a transição por um estado de
indeterminação.” (ZOURABICHVILI, 2007, p. 101). Reencontramos aqui a sintonia com o
pensamento de Rancière e o ponto em que abrimos um desvio em sua análise para nos
voltarmos às considerações de Zourabichvili. É este ponto de equivalência entre passividade e
atividade do espírito que se faz presente no instinto de jogo de Schiller e que ganha
importância política na medida em que embaralha as determinações que estruturam uma
organização da comunidade, que tanto Zourabichvili quanto Rancière vão destacar.
Passamos assim ao terceiro ponto marcado por Zourabichvili e que nos faz voltar às
duas vias que se abriam no pensamento a partir da reviravolta estética e da descoberta do jogo
como princípio de resistência. Lembremos a questão que instaura estas duas vias: a
determinação como condição da existência e ao mesmo tempo forma de sua alienação. A
confusão sensível deixa de ser um ponto de partida ou uma borda e passa ser um recurso. Mas
isso se dá segundo dois caminhos diferentes: uma via dialética que coloca “o negativo como
generatividade incessante dos conteúdos uns pelos outros, em que a determinação perde todo
valor ou toda veracidade como tal para somente recuperá-la no movimento que a engendra de
uma outra e a abole em uma terceira” (idem, p. 102); e uma segunda via, fora dos quadros da
dialética: o da suspensão. É essa segunda via a valorizada por Zourabichvili, pois
“a estética como acontecimento íntimo da filosofia só se realiza plenamente naqueles pensadores que estabeleceram uma relação efetiva com a arte e o fizeram sob certas condições, a saber, quando a diferença do sensível torna-se problema e resiste ao pensamento, e quando o próprio
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pensamento resiste ao mesmo tempo que a arte, mediante sua capacidade de suspender as oposições e a partilha da significação: notadamente naqueles que – como Blanchot, Deleuze e Derrida – sentiram-se intimados pela fórmula de Bartleby36, ‘eu preferiria não’, que inquieta porque suspende toda alternativa37” (ZOURABICHVILI, 2007, p. 103).
O que está em jogo é uma operação de suspensão, uma neutralização das alternativas
que nos são oferecidas e que parecem já desenhadas em uma determinada situação. A
suspensão interrompe as escolhas alternativas de sim e de não, incidindo portanto na própria
constituição do campo de possíveis ou de significações. É uma abertura ou criação de
possíveis. É neste sentido que a suspensão é uma operação paradoxal, tal como também havia
ressaltado Rancière a partir de Schiller, pois configura uma operação ativa que instaura um
ponto de ‘neutralização da oposição entre a atividade e a passividade’. Ou ainda, nas palavras
de Zourabichvili:
“Trata-se sempre de um estado de indeterminação ou de neutralização ativa em que o devir-ativo encontra-se paradoxalmente correlato à renúnica da ação, e a resistência proporcional, à capacidade de se desengajar. Entretanto, esse desengajamento procede decerto de uma invenção, e não de uma simples abstenção: não é aquilo de que se parte, mas aquilo a que se chega por meio de mil e uma malícias e estratégias que permitem suspender temporariamente o domínio da determinação, deslocá-la e reconfigrá-la, pois, em todo caso, a indeterminação não é um meio no qual se possa habitar. Ora, na filosofia contemporânea isto se tornou uma espécie de evidência: de fato, é nesses ilhéus de resistência que se reconfigura o ‘campo de possíveis’, como dizia Deleuze, ou a ‘partilha do sensível’, como diz hoje Jacques Rancière (em cada um destes autores a reconfiguração se articula no enigmático ponto de junção da arte, da filosofia e da política. Em outras palavras, se, por um lado, a arte e a filosofia em seu momento estético são políticas através da ação que exercitam sobre uma ordem de determinação sempre comum, por outro, a política encontra-se no âmbito da percepção ou da micro-percepção)” (ZOURABICHVILI, 2007, p. 104).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!36 Bartleby é um personagem da novela de Herman Melville: Bartlebly, o escriturário: uma história de Wall Street. 37 É certo que esta segunda via traz ainda a forte marca da fenomenologia de Husserl, notadamente a partir do conceito de redução fenomenológica (épokhé), que seria precisamente uma suspensão, ou uma ‘colocação entre parênteses’, dos juízos naturais acerca da existência das coisas. E isso é apontado por Zourabichvili. No entanto, este aponta que Husserl ainda manteria o conceito de determinação intacto, pois ‘a operação fenomenológica sempre produz essa desagradável impressão de que volta, por fim, a nos dar o que já tínhamos de saída – com exceção da fundação: o suspenso retorna fundado, tendo passado pela experiência validadora do sentido dado em plena presença” (ZOURABICHVILI, 2007, p. 103).
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A arte e a filosofia se aproximam assim pois encontram na neutralização, ou na
suspensão, o princípio de toda resistência. Como diz ainda Zourabichvili, ‘a filosofia toma
emprestado a arte, o seu gesto de criar meios#$ de indeterminação’ (idem, p. 105). E por isso
este falava em tornar a confusão sensível um recurso. A liberdade instaurada pelo ‘livre jogo’
presente na experiência estética não é mais da ordem da ‘instauração de um estado possível’,
mas passa pelo poder de divergir. Zourabichvili reforça este ponto ao afirmar que o ‘fazer
face à’ que marca a etimologia da palavra resistência, neste contexto, ‘é da ordem da
dissidência imprevisível, e não da oposição frontal’ (idem).
2.2 Dissenso e política: rompimento do sensível com a ordem da evidência
Vemos aqui a ressonância com o que vínhamos ressaltando no pensamento de
Rancière. Pois para este, se a experiência estética toca a política é exatamente por embaralhar
diferentes temporalidades, diferentes regimes de apresentação sensível, de significação e de
ação, ou seja, é por se configurar como uma experiência de dissenso. Para Rancière é este o
ponto principal onde se cruzam a arte e a política, pois o dissenso está no ‘coração da
política’. E define: “Isto que entendo por dissenso não é o conflito de idéias ou sentimentos. É
o conflito de vários regimes de sensorialidade.” (RANCIÈRE, 2008b, p. 66). Ele está no
coração da política já que a política antes de ser definida por um quadro institucional ou de
leis, e antes de ser uma luta pelo poder ou o exercício deste, é a própria configuração de um
espaço político. É a decupagem de esferas particulares de experiência e de ocupações comuns,
ou ainda, o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!38 O grifo é do autor. Mas neste mesmo ponto há uma nota da tradução onde se esclarece: “ ’Meios’ (milieux), no sentido físico, por exemplo, corpo ou ambiente onde se passam fenômenos especiais, e não ‘meios’ (moyens), isto é, maneira ou via por onde se chega a algum fim.” (ZOURABICHVILI, 2007, p. 105).
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sujeitos que participam ou não delas, definindo a distribuição de regimes de visibilidade,
enunciação e competências. Reencontramos aqui o tema da partilha do sensível. “A política é
a atividade que reconfigura os quadros sensíveis no seio dos quais se definem os objetos
comuns” e, portanto, “como Platão nos ensina, a contrario, a política começa quando há
ruptura na distribuição dos espaços e das competências” (RANCIÈRE, 2008b, p. 66). O
exercício político então rompe aquilo que Rancière denomina ‘ordem da polícia’. Esta ordem
responde a uma lógica dos corpos em seu devido lugar, que destina os indivíduos e grupos ao
comando ou a obediência, definindo previamente maneiras de ser, ver e dizer; funcionando
assim como uma ‘evidência sensível de ordem natural’. É precisamente o processo de ruptura
desta ‘evidência’ que constitui o exercício político. Nas palavras precisas de Rancière: “a
política é a prática que rompe esta ordem da polícia que antecipa as relações de poder na
evidência mesmo dos dados sensíveis$*”.
É neste sentido que a experiência estética ganha sua força política e se afasta da
adaptação mimética ou ética das produções artísticas com fins sociais. Estas se colocam ainda
em continuidade com os quadros habituais, participando da ordem ‘policialesca’ que apenas
prolonga conexões sensório-motoras já existentes ao funcionar dentro de uma lógica de
antecipação dos efeitos. Vale aqui a fórmula de Godard que Deleuze não se cansa de utilizar:
“não uma imagem justa, justo uma imagem” (DELEUZE, 1992, p. 53). Não seria esta mesma
ordem policialiesca que instaura o conjunto de pressuposições e oposições que subjaz e que
torna possível o paradoxo do espectador?
“O que permite declarar inativo o espectador sentado em seu lugar, senão a oposição radical anteriormente colocada entre o ativo e o passivo? Porque identificar olhar e passividade, senão pela pressuposição de que olhar é se comprazer na imagem e na aparência, ignorando a verdade que está por trás da imagem e a realidade exterior ao teatro? Porque assimiliar escuta e passividade senão pela preconceito de que a fala é o contrário da ação? Essas oposições – olhar/saber,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!39 Grifo nosso.
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aparência/realidade, atividade/passividade – são outra coisa que oposições lógicas entre termos bem definidos. Elas definem propriamente uma partilha do sensível, uma distribuição a priori das posições e das capacidades e incapacidades ligadas a essas posições (RANCIÈRE, 2008a, p.18) ”.
Na experiência estética enquanto experiência de dissenso o que está em jogo, portanto,
não é a incorporação de um saber, de uma virtude ou de um habitus. “É ao contrário, a
dissociação de um certo corpo de experiência” (RANCIÈRE, 2008b, p. 67). Trata-se de
colocar em jogo a instauração de um regime de abertura da experiência, que mobiliza um
outro exercício sensível ou um outro regime cognitivo que se coloca fora dos quadros das
experiências de reconhecimento ou recognição, engendrando portanto uma outra política de
subjetivação.
É interessante notar aqui como é sobre este plano que incide grande parte dos efeitos de
uma cultura de massa capitalista. Em primeiro lugar, porque se se pode dizer que há uma
indústria cultural de massa isto se dá pela existência de um vasto sistema de ‘cálculo
comunicacional’, no qual a lógica de consumo impõe o esforço pelo gerenciamento e
minimização de qualquer defasagem ou ‘ruído’ entre os modos de apresentação e os pólos
receptores, de forma que o sentido seja determinado antes mesmo que se produza a percepção.
Isto está em jogo também naquilo que Walter Benjamim formulara como prática de
‘disponibilização’. Poderíamos citar exemplos de outros domínios, mas as investidas e os
efeitos desta prática são particularmente evidentes no caso da música. Dispomos de celulares
que podem não só armazenar, mas também tocar nossas músicas prediletas. Ainda mais,
podemos colocá-las como ‘toque personalizado’ de nossos aparelhos....
Caberia perguntar em que sentido esse tipo de dispositivo ou ‘disponibilização’ nos
aproxima da música. Que modos de relação com a música ela engendra. Não se trata de
defender que haja um único modo de relação privilegiado com a arte ou ainda de afirmar que
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para que se mantenha viva sua potência esta deve se manter em uma ‘aura’ de unicidade e
solenidade. Trata-se sim, de sair do discurso fácil que estabelece uma linha reta entre
disponibilização de objetos artísticos e possibilidade de experiência. Foucault já chamava a
atenção para isto. A citação é longa, mas certeira:
“Tenho a impressão de que muitos dos elementos destinados a dar acesso à música acabam empobrecendo a relação que se tem com ela. Há um mecanismo quantitativo em jogo. Uma certa eventualidade na relação com a música poderia preservar uma disponibilidade de escuta, e uma flexibilidade da audição. Mas, quanto mais essa relação é frequente (rádio, discos, cassetes), mais familiaridades se criam; hábitos se cristalizam; o mais frequente se torna o mais aceitável, e rapidamente o único admissível. Produz-se uma ‘facilitação’ como diriam os neurologistas. Evidentemente, as leis do mercado acabam por se aplicar facilmente a este mecanismo simples. O que se põe à disposição do público é o que ele escuta. E o que de fato ele acaba escutando, porque é o que lhe é proposto, reforça um certo gosto, estabelece os limites de uma capacidade bem definida de audição, delimita cada vez mais um esquema de escuta. Será necessário satisfazer essa expectativa etc. Assim, a produção comercial, a crítica, os concertos, tudo o que aumenta o contato do público com a música tende a tornar mais difícil a percepção do novo. Certamente o processo não é unívoco. E também é verdade que a familiaridade crescente com a música amplia a capacidade de escuta e dá acesso a diferenciações possíveis, mas esse fenômeno tende a se produzir somente à margem; em todo caso, ele pode permanecer secundário em relação ao grande reforço do adquirido, se não houver um esforço para vencer as familiaridades. Não defendo, e isso é evidente, uma rarefação da relação com a música, mas é preciso compreender que o dia-a-dia dessa relação, com todas as injunções econômicas que a ela estão associadas, pode ter esse efeito paradoxal de enrijecer a tradição. Não é preciso dar acesso à música mais rara, mas a uma convivência com ela menos determinada pelos hábitos e familiaridades” (FOUCAULT, 2006, p. 394).
Cabe ainda apontar que a internet possui um papel significativo neste contexto, na
medida em que parece intensificar ou acirrar estes efeitos que se dão em direções díspares;
por um lado abertura incessante de possibilidades de descoberta; por outro proliferação de
familiaridades e modos de recepção automatizados. Janice Caiafa também chama atenção
para isso:
“Nossa época é marcada por uma valorização da disponibilidade. A figura do banco de dados é exemplar desse processo. Também o é o enaltecimento das redes de informática na medida em que nos disponibilizariam ‘o mundo’. Claro que nos é dado esperar que alguma coisa valiosa possa nos vir daí. A disponibilidade, contudo, não garante esse valor. Ao contrário, a profusão estabelece a relação do consumo, ao preço do comprometimento de uma densidade fundamental para a criação. Por outro lado, é fato que essa infinita disponibilidade, no que tange às redes de informática, vive neste momento mais do anúncio do que de uma existência efetiva.” (CAIAFA, 2000, p. 25).
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Podemos dizer, para retomar a formulação de alguns parágrafos acima, que se a ordem
da polícia ‘antecipa as relações de poder na evidência mesmo dos dados sensíveis’, a
experiência estética é política porque rompe esta ordem, e o faz porque nela o sensível deixa
mesmo de ser uma evidência, ou seja, não possui um correlato direto ou uma significação já
previamente garantida. Para Rancière quem melhor resumiu a relação paradoxal entre a
materialidade sensível da obra de arte, com sua ‘indiferença radical’, e seu efeito, foi Rainer
Maria Rilke no poema consagrado ao Torso Arcaico de Apolo%+ (curiosamente uma outra
estátua ‘mutilada’):
Não sabemos como era cabeça, que falta,
De pupilas amadurecidas, porém
O torso arde ainda como um candelabro e tem,
Só que meio apagada, a luz do olhar, que salta
E brilha. Se não fosse assim, a curva rara
Do peito não deslumbraria, nem achar
Caminho poderia um sorriso e baixar
Da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.
Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
Pedra, um desfigurado mármore, e nem já
Resplandecera mais como a pele de fera.
Seus limites não transporia desmedida
Como uma estrela; pois ali ponto não há
Que não te mire.Força é mudar de vida.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!%+ Tradução de Manuel Bandeira. Em: Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio , 1986 p. 183
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Esse torso sem cabeça, mas cuja potência de visão é total, impõe em sua passividade
radical uma mudança de vida. Na trilha do que Schiller havia já assinalado, Rancière refaz o
caminho da potência política desta suspensão a partir de um outro exemplo, desta vez fora dos
quadros da produção artística. É um texto aparentemente ‘apolítico’ que figura no jornal
revolucionário operário Le tocsin des travailleurs:
“Sentindo-se em casa enquanto ainda não terminou o piso do cômodo em que trabalha, ele desfruta da tarefa; se a janela se abre para um jardim ou domina um horizonte pitoresco, por um instante ele repousa seus braços e plana em idéias para a espaçosa perspectiva, gozando dela melhor do que os proprietários das casas vizinhas” (RANCIÈRE, 2005b, 2008b).
O que está no coração desta passagem é a disrupção da linha que liga a atividade dos
braços àquela do olhar. Abre-se um novo espaço de vida, pois um novo corpo se forja na
medida em que se liberta das linhas pré-traçadas pelo ‘trabalho que não pode esperar’ (idem,
2008b). Rompe-se a partilha do sensível que estabelece uma distribuição entre aqueles que
são livres para olhar e aqueles que devem ficar imersos no trabalho braçal. Entre os braços e
os olhos uma fenda se abriu, uma pequena loucura, que ganha o corpo e aquele espaço
produzindo uma ruptura na ‘economia policialesca das competências’. Não é portanto por
engano que este texto figura em um jornal revolucionário.
“A possibilidade de uma voz coletiva dos operários passa então por esta ruptura estética, por esta dissociação das maneiras de ser operário. Pois a questão nunca foi para os dominados de tomar consciência dos mecanismos da dominação, mas de se construir um corpo votado a outra coisa que à dominação. Não se trata [...] de adquirir um conhecimento da situação mas ‘paixões’ que sejam inapropriadas à esta situação” (RANCIÈRE, 2008b, P. 69).
Para sairmos um pouco da esfera de exemplos de Rancière, não foi o rock uma tal
paixão nos anos 50 e 60? Um extravasamento de energia que lançava ‘para fora do campo de
dança usual, o casal de corpo colado e pé no chão’ (WISNIK, 1989,p. 217), fazendo no meio
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dos anos 50 as moças brancas da américa média se soltarem de seus pares e girarem sobre os
tornozelos até os sub-solos encalorados, suados e negros do sul do sonho americano? ‘Uma
sobra de energia típica do mundo elétrico-mecânico, que fazia os corpos voarem e girarem
rapidamente em todas as direções’ (idem), fazendo-os entrelaçaram-se das mais variadas
maneiras e com as mais variadas substâncias, criando ao final dos anos 60 um desalinho nos
cabelos e no caminho que os levava na direção da grande sombra da guerra que ali pairava?
Diante da guitarra elétrica, esta ‘harpa farpada’, de Jimmi Hendrix, não se forjava um novo
corpo, de uma nova juventude?
Essa ‘ruptura estética’ que abre espaço para um corpo capaz de novas paixões, de novas
distribuições afetivas e, portanto, votado ‘a outra coisa que à dominação’, deriva, antes de
qualquer efeito visado por uma obra em particular, de um dispositivo que coloca em jogo uma
nova forma de disposição perceptiva que é correspondente à forma de existência sensível
característica da obra de arte. Este dispositivo é parte da ‘estética da política’ que configura a
partilha disto que é visível, disto que se pode dizer a partir desse vísível e da distribuição de
competências para fazê-lo. O museu, a sala de cinema, o livro, o teatro, a sala de concerto são
modos de partilha do espaço e do tempo que configuram ou instituem modos de apresentação
sensível que, por sua vez, produzem efeitos na reconfiguração da experiência comum. Entrar
em um museu, por exemplo, não significa apenas estar em um espaço onde se dispõem obras
penduradas na parede, mas implica entrar em um outro regime de sensibilidade. Regime este
marcado pela ‘neutralização’ ou ‘suspensão’ das conexões sensíveis comuns. Ali maçãs,
girassóis ou mesmo os quadros emoldurados que os suportam, não possuem ligação direta
com macieiras, com o sol ou mesmo com a vontade daquele que manejava os pincéis. Estar
em um museu é alcançar um certo ‘anonimato’. Ao menos de direito, tornamo-nos ‘qualquer
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um’. E entendemos aqui esse tornar-se ‘qualquer um’ na direção do que Deleuze e Guattari
(1980) afirmam acerca do devir todo mundo,
“Se é tão difícil ser ‘como’ todo mundo, é porque há uma questão de devir. [...] Pois todo mundo é o conjunto molar, mas devir todo mundo é outro caso, que põe em jogo o cosmo com seus componentes moleculares. Devir todo mundo é fazer mundo, fazer um mundo. À força de eliminar, não somos mais do que uma linha abstrata, ou uma peça de quebra-cabeça em si mesmo abstrata. É conjungando, continuando com outras linhas, com outras peças que se faz um mundo, que poderia recobrir o primeiro, como em transparência. [...] É neste sentido que devir todo mundo, fazer de todo mundo um devir, é fazer mundo, é fazer um mundo, mundos, isto é, encontrar suas zonas de vizinhanças e suas zonas de indiscernibilidade” (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 342).
As formas estabelecidas de existência estão em suspenso, os caminhos que levam das coisas
aos olhos, dos olhos às mãos e das mãos ao mundo estão embaralhados e se abrem a desvios.
E isso produz efeitos políticos. Apenas estes efeitos não definem uma estratégia política da
arte como tal, nem uma contribuição calculável da arte à ação política. !
Segundo Rancière, a política da arte consiste no entrelaçamento de três lógicas
heterogêneas: a de uma política da estética, a do trabalho ficcional e a das estratégias
metapolíticas. Há inicialmente, como apresentamos logo acima, uma política da estética, ou
seja, o efeito político das formas de estruturação da experiência sensível próprios a um regime
da arte. No regime estético das artes, como já foi também aqui apresentado, estas formas
passam pela constituição de espaços neutralizados, pela perda de destinação das obras e sua
consequente disponibilidade indiferente, pelo entrelaçamento de temporalidades heterogêneas,
pela igualdade dos sujeitos representados e anonimato daqueles a quem as obras se
endereçam. Estas propriedades caracterizam um domínio singular de experiência, aquele que
permite definir a arte no singular, em lugar dos critérios imanentes às práticas artísticas e à
hierarquização que poderia se estabelecer entre coisas que pertencem a arte e aquelas que não.
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Tem-se assim a produção de um efeito democrático singular que não depende das intenções
dos artistas e cujo efeito não é determinável em termos de subjetivação política.
É dentro deste primeiro quadro mais geral que temos as estratégias dos artistas e que
Rancière define como trabalho ficcional.
“A ficção não é a criação de um mundo imaginário oposto ao mundo real. Ela é o trabalho que opera dissensos, que muda os modos de apresentação sensíveis e as formas de enunciação mudando os quadros, as escalas ou os ritmos, construindo relações novas entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua significação. Este trabalho muda as coordenadas do representável” (RANCIÈRE, 2008b, p. 72).
Para além da importância da colocação de que a ficção não é um domínio da aparência,
um domínio apartado do real, e sim uma nova articulação entre formas de visibilidade e
formas de enunciação, vale notar também a idéia de trabalho. É o ‘como’ que se ressalta, já
que cada estratégia ganha um valor singular dentro do conjunto de problemas em que se
inscreve. Há propriamente um ato de criação, um trabalho sobre um meio de expressão, seja
ele imagem, palavra, som, etc, que visa operar esta nova articulação, fazer ver aquilo que não
era visto, colocar em relação aquilo que antes era indiferente, abrir novas linhas de afecção. A
criação ficcional não consiste portanto em contar histórias, mas em buscar operar uma
reconfiguração das linhas que configuram o mundo sensível e suas relações com regimes de
afetos e significações. Mas isso se faz sob a condição de uma não antecipação dos efeitos.
“As imagens da arte não fornecem armas para os combates. Elas contribuem para desenhar configurações novas do visível, do dizível e do pensável, e, por isso mesmo, uma paisagem nova do possível. Mas elas o fazem apenas sob a condição de não antecipar seu sentido e seus efeitos” (RANCIÈRE, 2008c, p. 113).
Um bom exemplo disso pode ser visto no contexto da discussão empreendida por
Rancière (2008c) acerca da destinação política das imagens. Essa criação ficcional cujos
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efeitos não podem ser antecipados é então por ele ilustrada a partir de um trabalho da
fotógrafa francesa Sophie Ristelhueber%".
Vemos, segundo Rancière, uma ‘idílica’ paisagem pastoral, onde a vegetação baixa, as
oliveiras e as pedras se integram harmoniosamente junto a uma estrada onde se encontra uma
pilha de pedras. Esta pilha, no entanto, tem seu sentido delineado no conjunto de imagens ao
qual pertence: a série WB (West Bank), onde são representadas barreiras israelitas em estradas
palestinas. Para Rancière o trabalho de Sophie Ristelhueber é significativo uma vez que ela se
recusa a fotografar “o grande muro de separação que é a encarnação da política de um Estado
e o ícone midiático do ‘problema do Oriente Médio’” (RANCIÈRE, 2008c, p. 114). Suas
lentes se voltam antes para estas pequenas barragens erigidas pelas autoridades israelitas, e ela !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!%"Há uma reprodução desta foto no livro de Rancière. A reprodução aqui apresentada foi retirada de http://www.stephengdewyer.com/Borders_between_Capital_and_Its_Other_the_Photographs_of_Sophie_Ristelhueber.html. Consultado em 06/10/2009.
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o faz (como em várias outras desta série) em plongée, de maneira que elas fiquem de certa
forma integradas na paisagem. Assim para Rancière, Sophie Ristelhueber
“fotografou não o emblema da guerra mas as feridas e cicatrizes que ela imprime em um território. Ela produz assim talvez um deslocamento de um usado afeto de indignação para um outro afeto mais discreto, um afeto de efeito indeterminado, a curiosidade, o desejo de ver mais de perto. Eu falo aqui de curiosidade, falei acima de atenção. Estes são, com efeito, afetos que embaralham as falsas evidências dos esquemas estratégicos; são disposições do corpo e do espírito onde o olho não sabe de antemão isso o que vê nem o pensamento o que deve disso fazer. Sua tensão aponta assim na direção de uma outra política do sensível, uma política fundada sobre a variação da distância, a resistência do visível e a indecidibilidade do efeito. As imagens mudam nosso olhar e a paisagem do possível se elas não são antecipadas por seu sentido e não antecipam seus efeitos.” (RANCIÈRE, 2008c, P. 114).
Cabe notar que é emblemático que este exemplo seja tirado de um campo como o da
fotografia, onde o estatuto das imagens produzidas abriga a constante tensão entre o
documental e o ficcional. Trata-se de sair do caminho fácil que estabelece fronteiras rígidas
entre certos dispositivos artísticos e seu caráter documental ou ficcional, como se por um lado
toda fotografia fosse documental ou, por outro lado, todo trabalho imaginativo fosse ficcional,
no sentido dado por Rancière. Neste sentido é interessante vermos uma crítica recente do
cineasta e crítico brasileiro Eduardo Escorel (2009) ao filme ‘Salve Geral’ de Sérgio Rezende.
O filme recria os ataques de uma organização criminosa que pararam a cidade de São Paulo
em 2006, para contar a história da inserção de uma mãe, a personagem Lúcia, no submundo
das organizações criminosas e carcerárias na tentativa de salvar o filho, Rafa, que fora preso.
O que a crítica aponta, sob o título significativo de Violência e tranquilidade, é como a
tentativa presente no filme de se abordar o tema polêmico e atual da impossibilidade de se
manter alheio à violência nas grandes cidades brasileiras, esbarra nos limites de um roteiro e
de uma estrutura narrativa (espetacularização da violência, foco em personagens isolados e
laços familiares sob o pretexto de permitir identificação dos espectadores, etc.) que terminam
por esgarçar as possibilidades de reconfiguração dos quadros de percepção e interpretação
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daqueles eventos. A ‘seriedade’ ou a ‘riqueza’ da ‘discussão’ a ser levantada parece ser
tomada como garantida simplesmente pela escolha temática. Como afirma Escorel, “Salve
Geral primeiro oferece doses pesadas de violência, depois procura tranquilizar o espectador”
(ESCOREL, 2009, p. 49). Nenhuma reconfiguração da paisagem sensível se torna então
possível. Logo, poderíamos dizer seguindo Rancière, nenhum trabalho propriamente ficcional.
E o crítico termina por marcar,
“o documentário Entre a luz e a sombra, de 2007, dirigido por Luciana Burlamaqui, [...] é mais revelador do que Salve geral sobre a inquietação e o medo que tomaram conta da cidade de São Paulo durante a rebelião do pcc. A versão documental resulta menos assertiva ao preservar a incerteza sobre o que está ocorrendo e seus possíveis desdobramentos, enquanto o tratamento ficcional assume os fatos como prontos e acabados, tendendo a eliminar qualquer ambiguidade” (idem).
É interessante notarmos então como pode haver um trabalho mais propriamente
ficccional, no sentido dado por Rancière de criação de possibilidade de novas configurações
sensíveis e de enunciação, em um gênero ou tipo de produção das imagens aparentemente
mais ligado à ‘realidade’, no caso um documentário, do que em um filme que se coloca como
‘ficcional’, mas que só alcança este estatuto no plano da identificação de gênero. Vale notar o
comentário do crítico Ismail Xavier: “A verdade atual [...] é que são poucos os casos em que
um cineasta vai contra a tendência melodramática, procurando uma inserção histórica
diferente. Na situação brasileira de hoje, a pesquisa crítica de alternativas ocorre mais no
documentário do que na ficção%#” (MENDES, 2009, p. 86).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!42 É certo que a situação da produção cinematográfica brasileira é muito mais complexa do que pode transparecer a partir desta passagem. Mas se levantamos aqui estes breves pontos foi apenas na tentativa de reforçar a tese de Rancière, a nosso ver especialmente importante no contexto de uma arte ‘politizada’ no Brasil, de que a potência crítica de uma obra não deriva apenas da transposição de uma situação ou problemática ‘real’ para as telas ou qualquer outro meio de expressão artístico. Como diz Rancière: “arte e política têm em comum o fato de produzirem ficções. Uma ficção não consiste em contar histórias imaginárias. É a construção de uma nova relação entre a aparência e a realidade, o visível e o seu significado, o singular e o comum. (RANCIÈRE, 2005b, p. 10). E se dizemos que isso é especialmente importante no contexto brasileiro, principalmente no cinema, é
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As formas da experiência estética e as estratégias do trabalho ficcional caminham assim
no sentido da criação de uma ‘dissociação de um corpo de experiência’, a constituição de uma
‘paisagem inédita do visível’ onde se dão novas modalidades e novos ritmos de apreensão do
sensível. E neste sentido são políticas. Mas segundo Rancière, disso não se segue que se possa
traçar um caminho direto entre a micro-política destas reconfigurações da experiência à
constituição de um ‘nós’ que seria a instância de um coletivo político de enunciação.
“Se a política propriamente dita consiste na produção de temas que dão voz aos anônimos, a política própria à arte no regime estético consiste na elaboração do mundo sensível do anônimo, dos modos do isso e do eu, de onde emergem os mundos próprios dos nós políticos. Mas na medida em que este efeito passa pela ruptura estética, ele não se presta a nenhum cálculo determinável. É esta indeterminação que quiseram ultrapassar as grandes metapolíticas que assinalaram à arte a missão de transformação radical das formas de experiência sensível43”. (RANCIÈRE, 2008b, p.73)
Talvez seja interessante aqui retomarmos o fio da conversa que entreouvíamos com as
considerações de Zourabichvili. Na verdade, havíamos apresentado três, dos quatro pontos
presentes no texto O jogo da arte. A título de breve recapitulação cabe apenas lembrar que
estes pontos diziam respeito respectivamente: à reviravolta estética, em um movimento que
aproxima arte e filosofia a partir de uma nova relação com o sensível; ao jogo como princípio
de resistência próprio à arte; e a extensão deste princípio à filosofia, que por meio da operação
de suspensão presente no jogo, ‘toma emprestado a arte o seu gesto de criar meios (milieux)
de indeterminação’ e assim, resiste.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!devido ao fato de que muitas vezes o rótulo ‘crítica social’ encobre um esforço por público e sucesso comercial sob o verniz da ‘seriedade’ crítica. Novamente é Xavier que nos dá um exemplo: “Para mim esse filme [Cidade de Deus, do diretor Fernando Meirelles] é a máxima expressão do cinema brasileiro de resultados. Tem o pragmatismo dos cineastas da nova geração. Toma uma questão social contundente e trabalha pra criar, no plano formal, uma representação enxuta da guerra” (XAVIER, 2009, p. 84). E mais: “Há uma dificuldade cada vez maior de viver aquelas tensões que produziram o grande cinema moderno, agora resolvidas em favor da busca da comunicação que acaba por gerar uma rendição aos padrões éticos dominantes” (idem, p. 85). 43 Grifo nosso.
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Chegamos aqui ao quarto ponto apresentado por Zourabichvili. Este diz respeito
precisamente ao caráter singular de cada trabalho. Pois, como marca Zourabichvili, há uma
aposta presente em cada empreendimento artístico. Na linha do que argumenta Rancière, os
efeitos políticos da arte derivam de sua potência de suspensão, não se inscrevendo sob a
lógica da antecipação dos efeitos, daí este seu caráter de aposta. Mas o que Zourabichvili
busca reforçar é que deste fato não decorre uma espécie de ‘vale tudo’, onde as diferentes
apostas dos artistas e suas obras se equivalem. Se há uma suspensão das determinações, esta
suspensão deve ser alcançada a cada vez, ela não remete a um vazio mas é determinada.
“Entendo por isso que o lugar e a silhueta das determinações que nos encadeiam não são dados, mas sempre devem ser descobertos, reconhecidos e circunscritos. De tal modo que não há jogo em geral ou gesto universal de suspender, mas que o jogo suspensivo é sempre o objeto de um tato e de uma intervenção específica que devem ser descritos” (ZOURABICHVILI, 2007, p. 106).
As próprias vias de suspensão dependem então de uma ‘sensibilidade’, de uma percepção em
aberto em que, para falar nos termos de Rancière, o sensível esteja fora dos quadros da
‘evidência’. Como diz Zourabichvili na passagem citada, um ‘tato’.
Que fique claro, isto não implica uma volta sub-reptícia à lógica da antecipação dos
efeitos, mas representa um esforço no sentido de evitar um pensamento generalista e pouco
consistente. Zourabichvili aponta que é este tipo de pensamento que se faz presente em grande
parte do discurso contemporâneo da arte, onde se fala constantemente que certas obras ‘jogam
sobre’ certas questões. Segundo Zourabichvili trata-se de ‘jogar com’, pois
“ ‘jogar sobre’ é aludir ou piscar o olho: buscar uma mescla de conivência e de provocação acerca de uma referência reconhecida. [...] Propõe-se o encontro de significações heterogêneas e o vai-e-vem entre uma e outra tencionando uma confrontação reveladora, um contraste a ser assumido ou uma semelhança na aparente disparidade. Não é suficiente invocar uma ‘ressonância’ ou uma captura mútua de um termo pelo outro, cada um envolvendo uma perspectiva sobre a outra: isso explica a comunicação dos heterogêneos, mas não descreve seu modo, não descreve a especificidade de um jogo efetivo” (idem, p. 106).
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Devemos então sempre perguntar como se joga. É este como que nos tira da
generalidade e nos coloca em contato com a regra do jogo, que não é uma prescrição a priori,
mas a busca pela boa aposta, pelo estabelecimento de uma relação que não seja mera agitação
de termos heterogêneos mas contaminação por meio de uma jogada tocante. Esta regra,
segundo Zourabichvili, pode ser vista como uma retomada do conceito de forma de Schiller,
mas agora ‘não mais como forma do objeto dado, porém, como composição jogadora,
circulação das determinações colhidas e propostas fora do encadeamento presente no espírito
do destinatário” (idem). Estamos assim fora dos quadros de uma natureza humana universal já
que é na própria confusão sensível que o pensamento busca as determinações a serem
suspensas e também ali que encontra a chance sempre renovada de realizar a boa jogada.
“Todo agenciamento ficcional, todo agenciamento sonoro ou plástico evidenciado como um jogo procede ele mesmo de um jogo enquanto jogada, aposta e decisão arriscada sobre ‘aquilo que a situação é’, sobre aquilo que deve ser tocado e sobre a zona de aposta. Talvez haja na atividade artística um sentido de ganhar ou perder contíguo à regra proposta, e que se coloca sempre como sendo a do jogo certo, do jogo importante, do jogo que toca a determinação, isto é, do verdadeiro jogo, do jogo que será efetivamente jogo e no qual nossa existência irá, por um momento, suspender o peso da determinação” (idem).
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Já o que Rancière tenta enfatizar é que a tentativa por parte de certas políticas da arte de
ultrapassar a indeterminação da ruptura estética, ao invés de se colocar em continuidade com
um exercício fértil da política, ou nos termos de Zourabichvili de se consituir como boa
aposta, como aposta tocante, tem precisamente o efeito contrário. Para Rancière vivemos um
momento particular em que o espaço político é assombrado por aquilo que seria sua própria
negação: o consenso enquanto forma e horizonte últimos do pertencimento a uma comunidade
ética. Em suas palavras: “O consenso significa o acordo entre sentidos e sentido, ou seja, entre
um modo de apresentação sensível e um regime de interpretação de seus dados.”
(RANCIÈRE, 2008b, p. 75). Isto significa que para além de todas as divergências de ‘idéias e
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aspirações’, nós percebemos as mesmas coisas e lhes damos as mesmas significações. Há uma
formulação ainda mais precisa e elucidativa presente no texto Políticas da arte (2005b):
“O consenso é bem mais do que aquilo a que o assimilamos habitualmente, a saber, um acordo global dos partidos de governo e de oposição sobre os grandes interesses comuns ou um estilo de governo que privilegia a discussão e a negociação. É um modo de simbolização da comunidade que visa excluir aquilo que é o próprio cerne da política: o dissenso, o qual não é simplesmente o conflito de interesses ou de valores entre grupos, mas, mais profundamente, a possibilidade de opor um mundo comum a um outro. O consenso tende a transformar todo conflito político em problema que compete a um saber de especialista ou a uma técnica de governo. Ele tende a exaurir a invenção política das situações dissensuais. E esse déficit da política tende a dar um valor de substitutivo aos dispositivos pelos quais a arte entende criar situações e relações novas” (RANCIÈRE, 2005b, p. 14).
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Como ressalta o filósofo francês Elie During (2004), em um comentário sobre o texto de
Rancière Malaise dans l’esthétique, não se trata de pensar o consenso como ‘equivalência
universal ou reprodução do idêntico’, mas sim como assinalação não problematizada de
lugares, a assinalação de uma demarcação ‘própria’, “a distribuição dos lugares em função de
um próprio, segundo um princípio de separação que pretende colocar os elementos e seus
discursos em seu lugar” (DURING, 2004, p.4). O consenso é, nos termos de Rancière, de
ordem policial e não política. Devemos atentar para o fato de que uma simples apologia da
diferença não constitui um avanço político já que, como bem marca During, alimenta muitas
vezes um discurso inocente de ‘debate democrático’, onde cada um poderia afirmar e fazer
valer sua maneira de ser e seus pontos de vista, sendo o espaço político apenas um ajuste entre
estas diferentes posições que todos concordam em reconhecer nisto que lhes há de ‘próprio’.
Estamos aqui ainda no consenso, pois “do ponto de vista do consenso, nenhuma disputa é
problemática ou litigiosa; não há senão uma comunidade: sua unidade sendo colocada de
direito, não há nada mais a fazer senão acordar ou gerenciar as diferenças de fato” (idem, p.
4).
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Assim como podemos ver a partir da última frase da passagem citada de Rancière,
reforçada no texto de During, há algo como um ‘retraimento’ do espaço político que é
paralelo a uma tentativa da arte de se fazer política. Mas muitas vezes a ânsia por se fazer
política, por habitar este campo e se legitimar nesta tentativa traz em si um risco. Pois esta
‘legitimação’ é buscada pela via da garantia e da antecipação de seus efeitos. E fazê-lo é
trabalhar em uma vertiginosa e problemática proximidade com o consenso, que é o que há de
mais incipiente no contexto político contemporâneo. É precisamente isto que se faz presente
em uma série de propostas e práticas artísticas contemporâneas e que Rancière agrupa em
duas grandes vertentes%%: uma primeira colocada sob a rubrica de arte crítico/lúdica; e uma
outra, emblematizada pelas propostas da ‘estética relacional’%&.
Em primeiro lugar temos todo um conjunto de práticas e discursos que se colocam em
continuidade com a ‘figura estandartizada da arte crítica’ (RANCIÈRE, 2005b, p. 9) e que
tem como procedimento básico “o encontro de elementos heterogêneos, incompatíveis, que
instaura um conflito entre dois regimes sensíveis” (idem). Aqui é importante notar que
Rancière marca ao mesmo tempo uma continuidade e um ponto de desvio. Em primeiro lugar
temos uma continuidade, no que diz respeito ao procedimento básico, entre as propostas
contemporâneas e aquilo que Rancière coloca como uma ‘tradição da arte crítica’. Uma vez
que sua preocupação maior é apontar a unicidade da lógica que subjaz aos trabalhos
contemporâneos e à ‘tradição crítica’, Rancière não se prolonga sobre os nomes ou
movimentos que comporiam esta tradição - embore cite rapidamente no texto Les
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!44 Cabe notar que, a nosso ver, estas vertentes constituem apenas uma tentativa de Rancière de esboçar em linhas gerais um mapa dos riscos, logo, não visando dar conta da totalidade dos dispositivos e discursos presentes na contemporaneidade. 45 Reencontramos aqui a polaridade estabelecida entre uma ‘pedagogia da mediação representativa’ e uma ‘pedagogia da imediatez ética’.
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mésanventures de la pensée critique (2008d) o teatro épico de Brecht, o movimento
surrealista e trabalhos no campo da fotografia, como os de Martha Rosler e Josephine
Meckseper. Sua preocupação maior se volta então para o modo de funcionamento e a
consequência visada neste procedimento básico do ‘dispositivo crítico’, que consiste na
disposição sobre uma mesma superfície (seja ela uma imagem fotográfica, fílmica, um palco
teatral, uma instalação, etc) destes ‘elementos heterogêneos e incompatíveis’, tendo por fim
instaurar um jogo de representações que nos faria ‘tomar consciência’ de um estado de
coisas’. Nota-se a linha que liga este tipo de trabalho ao que Rancière havia colocado como
pedagogia da mediação representativa e que tinha no procedimento brechtiano de
‘distanciação’ (Verfremdung – efeito de alienação ou efeito-A) seu modelo emblemático. Mas
aqui tocamos no ponto de desvio citado acima. Ainda que Rancière seja crítico da idéia, como
já o expusemos, de uma política da arte baseada na ‘tomada de consciência’, já que como ele
afirma ‘não há razão para supor que o choque de dois modos de sensorialidade se traduza em
compreensão das razões das coisas’ (RANCIÈRE, 2008b, p. 74), este guardava para propostas
como as de Brecht ao menos a possibilidade da produção de efeitos interessantes (ainda que
inauditos) politicamente. Mas o que Rancière aponta é que não é isso que se passa em grande
parte dos trabalhos contemporâneos. Há na contemporaneidade a instauração de um contexto
‘consensual’ de globalização econômica em que ‘o choque dos elementos heterogêneos não
encontra mais sua analogia no choque político de mundos sensíveis opostos’ (idem, p. 76), de
forma que se perde a incisividade de seu encontro. Assim
‘a máquina desmistificadora começa a funcionar sozinha. Ela pode instaurar seu jogo entre um elemento qualquer e qualquer outro elemento, mas, a partir daí, não há mais nada em jogo neste jogo. O sentido do dispositivo se torna indecidível. Torna-se uma maneira de capitalizar a indecidibilidade de um dispositivo, sua oscilação entre várias sgnificações’ (RANCIÈRE, 2005b, p. 12).
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A arte crítica torna-se assim ‘lúdica’ trazendo à cena objetos e imagens do mundo
comum deslocados de seu contexto habitual, num jogo em que este simples deslocamento fala
por si só e não conduz senão a um indecidível. Nota-se aqui a nítida sintonia com os perigos
apontados por Zourabichvili ao falar das obras que ‘jogam sobre’, no sentido em que não
oferecem senão uma piscadela que funciona como uma ‘mescla de conivência e de
provocação acerca de uma referência reconhecida’. Temos por exemplo paródias de filmes
publicitários, estátuas gigantescas de ícones midiáticos, desenhos de George Bush com
orelhas de Mickey Mouse ou ainda instalações representando o intestino da máquina social
que tudo absorve e transforma em excremento. “O dispositivo se alimenta então da
equivalência entre a paródia como crítica e a paródia da crítica. Ele joga sobre a
indecidibilidade da relação entre os dois efeitos.” (RANCIÈRE, 2008b, p. 77). É por isso,
assinala Rancière (2005b), que podemos ter por exemplo, uma mesma exposição (realizada
em 2000) na qual se fazem presentes instalações que imitam brinquedos de parques de
diversão, mangás japoneses, novelas, sons de discoteca, etc., e cujo título muda
significativamente ao passar dos Estados Unidos, onde se intitulava Let’s entertain, para a
França, onde foi denominada Au-delà du spectacle. E Rancière conclui:
“num caso a etiqueta convidava a participar de uma arte ‘lúdica’, consciente da inexistência de qualquer separação efetiva entre seus dispositivos e os dispositivos comerciais que ela imita. No outro, ela convidava a ver na nova contextualização desses dispositivos, nas formas de apresentação da arte dos museus uma crítica do mundo espetacular da mercadoria” (RANCIÈRE, 2005b, p. 12).
Em segundo lugar, temos um conjunto de trabalhos e discursos artísticos que poderiam
ser reunidos sob uma proposta política de supressão da ‘mediação entre uma arte produtora de
dispositivos visuais e uma transformação das relações sociais’ (2008b). Os artistas não mais
produziriam objetos a serem vistos, mas sim intervenções diretas. A proposta emblemática
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aqui, segundo Rancière, é a da Estética Relacional de Nicolas Bourriaud. “O trabalho da arte,
em suas formas novas, ultrapassou a antiga produção de objetos à ver. Ele produz, desde
então, diretamente ‘relações com o mundo´, logo, formas ativas de comunidade”
(RANCIÈRE, 2008b, p. 77). O que se visa é o desfacelamento das fronteiras que separam os
espaços e objetos artísticos daqueles da vida cotidiana. Tudo isso sob a intenção de fundo de
‘consertar as falhas do vínculo social’ (BOURRIAUD, apud RANCIÈRE, 2005b, p. 15). O
próprio Bourriaud (1998) cita a empreitada de certos artistas como exemplos de dispositivos
que funcionariam neste sentido. Temos assim artistas como Rirkrit Tiravanija, que organiza
um jantar na casa de um colecionador e deixa-lhe o material necessário para a preparação de
uma sopa thai; Philippe Parreno que convida as pessoas a praticarem seus hobbies favoritos
no Primeiro de Maio em uma cadeia de montagem de uma usina; Noritoshi Hirakawa que
coloca um pequeno anúncio em um jornal para encontrar uma jovem menina que aceite
participar de sua exposição, ou ainda Pierre Huyghe que convoca pessoas para uma
montagem de elenco, coloca um aparelho de televisão a disposição do público e expõe as
fotografias dos trabalhadores em pleno trabalho a alguns metros do seu local de trabalho, etc.
Como se pode ver, trata-se sempre de privilegiar a constituição ativa e circunscrita de um
novo espaço de convívio e interatividade. O artista é então um ativista, alguém que intervém
no real produzindo um novo espaço concreto de comunicação e interatividade 46. No entanto,
aponta Rancière:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!46 Dada a importância dos Objetos Relacionais de Lygia Clark, assim como do conjunto de seu trabalho, na história da arte brasileira e, porque não, mundial, cabe assinalar já de antemão que apesar da proximidade terminológica uma grande distância separa suas propostas dos trabalhos contemporâneos que figuram nas esteiras da Estética Relacional. Como bem marca Suely Rolnik: “Estabelecer tal distinção é tanto mais importante, visto que este tipo de proposta continua na ordem do dia: refiro-me aqui aos trabalhos contemporâneos que se carcaterizam por um fascínio pela ‘interatividade’, onde aquilo que se costuma qualificar – e, mais recentemente teorizar – como ‘relacional’, se situa na verdade entre o que está na fachada das coisas e de nossos próprios corpos, e não por trás e através deles. Tais posturas permanecerão para sempre fundamentalmente estrangeiras a esta esfera onde tudo se descoisifica e as relações entre os corpos tornam-se
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“esta banalização mostra imediatamente seu reverso: a dispersão das obras de arte na multiplicidade das relações sociais não vale senão a ser vista, seja no caso em que o ordinário da relação onde não há ‘nada a ver’ é exemplarmente alocada no espaço normalmente destinado à exibição das obras; seja, pelo contrário, no caso em que a produção dos laços sociais na espaço público se veja provida de uma forma artística espetacular”. (RANCIÈRE, 2008b, p. 78).
Rancière (2005b, 2008b) cita, dentre outros, o exemplo significativo do trabalho
realizado cubano René Francisco exposto na 26ª Bienal de São Paulo. Com uma verba
concedida por uma fundação artística, mas que era destinada para a realização de uma
pesquisa sobre as condições de vida em um bairro pobre de Havana, René Francisco resolveu
reunir amigos artistas e fazer um mutirão para realizar as obras de reparo na casa de uma
senhora, moradora do bairro a ser pesquisado, por eles escolhida. A obra exposta na Bienal
consistia então em uma tela de tule onde estava impressa a imagem da senhora virada em
direção a um monitor, no qual se podia ver os artistas trabalhando nas obras de reparo.
Segundo Rancière é emblemático que esta obra tenha sido realizada em Cuba, um dos últimos
países comunistas, pois nos faz lembrar o sonho da arte revolucionária proposta pelo pintor
russo Malévitch: não mais fazer arte, mas construir diretamente as formas de uma vida nova.
No entanto, esta construção tem um caráter político ambíguo, já que o atestado de sua eficácia
política oscila entre a ajuda a uma população carente e a simples saída dos lugares naturais da
arte. Como marca Rancière: “a saída para o real e o serviço aos desfavorecidos não ganham
eles mesmos sentido senão na manifestação de sua exemplaridade no espaço do museu”
(RANCIÈRE, 2008b, p. 79). Da mesma maneira em casos como o do grupo de artistas The
Yes Men, constituído por artistas que se disfarçam e buscam se infiltar em reuniões de
grandes corporações comerciais ou políticas. Atitude esta que tem por objetivo revelar o
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!vivas – condição prévia para que se libere sua fecundidade recíproca que o trabalho de Lygia Clark pretendeu mobilizar.” (ROLNIK, 2006, p. 9).
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ridículo dos bastidores e o processo de mistificação que envolve as grandes mídias. Mas, nas
palavras de Rancière:
“Ao fazer o balanço de sua infiltração nos comités de campanha para a eleição de George Bush em 2004, os Yes Men falavam de um sucesso total que havia sido ao mesmo tempo um fracasso total: um sucesso total, já que eles haviam iludido seus adversários ao imitar perfeitamente seus argumentos e suas maneiras de ser. Um fracasso total pois sua ação permanecera perfeitamente indiscernível. Ela não seria discernível, de fato, senão fora da situação onde ela se inscrevia, exposta alhures como performance de artistas.” (RANCIÈRE, 2008b, p.82).
Este seria o problema inerente a toda política da arte centrada na idéia de uma
intervenção ‘direta no coração do real da dominação’ (idem). A mera ‘saída’ do domínio
habitual dos lugares da arte não alcança senão o valor de uma demonstração simbólica. Não
se trata portanto de discutir o sucesso do cruzamento de fronteiras entre a solidão artística e o
real das relações de poder, mas sim de saber ‘quais forças ela dá à ação coletiva contra as
forças da dominação que ela toma por alvo’ (idem, p. 83). E é precisamente este tipo de
questão que fica obscurecida nestas tentativas. A idéia de que o ‘novo artista’ deve ser
imediatamente político, tem por pano de fundo a oposição entre o real da ação política e o
simulacro da arte fechada nos museus, cinemas, palcos, etc. Mas é essa pressuposição ela
mesma que constitui problema e cujos efeitos são também nefastos, pois ao apagar as
fronteiras entre uma política da estética e uma estética da política ela acaba por, por um lado,
fazer evanescer ‘a singularidade das operações pelas quais a política cria uma cena de
subjetivação própria’ (idem); e, por outro lado, faz crescer a visão tradicional de uma arte
fechada em si mesma ou centrada apenas na intenção dos artistas. A citação de Rancière é
clara:
“Não há mundo real que seria o fora da arte. Há dobras e redobras do tecido sensível comum onde se reúnem e se separam a política da estética e a estética da política. Não há mundo real em si, mas configurações disto que é dado como nosso real, como o objeto de nossas percepções, de nossos pensamentos e de nossas intervenções. O real é sempre objeto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço onde se enlaçam o visível, o dizível e o factível. É a ficção dominante, a
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ficção consensual, que nega seu caráter de ficção ao se fazer passar pelo real ele mesmo e ao traçar uma linha de partilha simples entre o domínio deste real e aquele das representações e das aparências, das opiniões e das utopias. A ficção artística como a ação política cruzam este real, elas o fraturam e o multiplicam sob um modo polêmico” (RANCIÈRE, 2008b, p. 84).
Rancière (2005b, 2008b) fornece então dois exemplos de trabalho ficcional que
caminham neste sentido. O primeiro é um vídeo intitulado Dammi i Colori (Dê-me cor) de
Anri Sala, no qual é exposta a singular empreitada do prefeito da cidade albanesa de Tirana:
pintar as fachadas dos prédios de cores vivas. O prefeito Edi Rama, ele próprio pintor,
pensava assim não só poder transformar o quadro de vida dos habitantes, mas também criar
um ‘senso estético’ de apropriação do espaço coletivo, justamente em um momento em que o
país atravessava uma difícil passagem do comunismo para um regime democrático. No
vídeo%( podemos ouvir entre silêncios entrecortados por sons de obra e pelos sons da cidade,
a voz do prefeito explicando as razões que o levaram a pensar em tal empreendimento, sua
preocupação em fazer da capital mais pobre da Europa e onde se está ‘condenado pelo destino
a morar’, uma cidade onde ‘se escolhe viver’; como ‘a cor tem um impacto na intensificação
do ritmo da respiração’ e como ‘uma cidade onde as coisas se desenvolvem normalmente
deve usar as cores como vestidos e não como órgãos’, de forma que ali as cores substituíam
os órgãos. Ouvimos também o prefeito falar do paradoxo de ser aquela a capital mais pobre da
Europa, mas a única onde se discutia ardorosamente nas ruas e nos cafés questões de cores e
arte. Mas não se trata apenas de ouvir o depoimento de um prefeito pois, como marca
Rancière, o desfilar das imagens cria um constante jogo com suas frases, vemos por meio dos
travellings, desfilarem azuis, verdes, amarelos e laranjas, assim como por vezes a câmera se
aproxima da poeira e das ruas esburacadas que criam outras cidades sob as proposições do
prefeito. Por vezes a eloquência das cores corta o silêncio, e por vezes são elas que se tornam
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!47 Disponível em http://www.ubu.com/film/sala_dammi.html
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mudas e ‘indiferentes a todo projeto de transformação da vida’ (RANCIÈRE, 2005b, p. 15.).
E Rancière conclui: “a superfície da obra organiza assim a tensão entre a cor que a vontade
estética projeta sobre as fachadas e aquela que as fachadas refletem” (RANCIÈRE, 2008b, p.
87).
O outro exemplo dado por Rancière é do cinema e evoca também a questão das cores e
das formas de habitação a partir de uma trilogia do cineasta português Pedro Costa
(Ossos,1997; No quarto de Vanda, 2000; e Juventude em marcha, 2006) que aborda o
cotidiano de imigrantes cabo-verdianos e outros grupos de periferia de Lisboa. Para Rancière,
Pedro Costa “se concentra na relação entre a impotência e a potência dos corpos, na
confrontação das vidas com aquilo que elas podem. Ele se coloca assim no nó da relação entre
uma política da estética e uma estética da política” (RANCIÈRE, 2008b, p. 89). E o faz sem
se propor a conscientizar ninguém e sem oferecer sua ‘força de trabalho’ na construção de
casas, mas sim fazendo ‘apenas’ filmes. As mais simples imagens ali presentes, como as de
uma garrafa, de objetos sobre uma mesa, de pequenas sombras formadas pelas velas acesas
em uma construção sem eletricidade, longe de ‘estetizarem’ a miséria, criam uma disrupção
na interpretação corrente de que são apenas símbolos de um território devastado. O tratamento
quase pictural dado a elas marca essa potência de irrupção de uma beleza escondida que é ao
mesmo tempo também entrecortada pela errância dos personagens e de suas tentativas de
dizerem e viverem sua própria história.
“Pedro Costa coloca assim em obra uma política da estética, igualmente distanciada da visão sociológica pela qual a ‘política’ da arte significa a explicação de uma situação – ficcional ou real – pelas condições sociais, e da visão ‘ética’ que quer substituir a ‘impotência’ do olhar e da palavra pela ação direta. É ao contrário a potência do olhar e da palavra, a potência do suspense que eles instauram, que está no centro de seu trabalho. Pois a questão política primordial é a que diz respeito a capacidade de corpos quaisquer de se apossarem de seu destino” (RANCIÈRE, 2008b, p. 88).
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Rancière faz questão de ressaltar que estes exemplos não tem um sentido normativo,
que definiriam o modelo do que seria uma arte política. Segundo ele não há tais modelos.
Trata-se, pelo contrário, de ‘suspender’ este ímpeto por uma ‘via real’ que nos retiraria do
plano das imagens, sons e palavras ficcionais da arte, para nos levar ao ‘coração da ação
política’. Pois o que subjaz, silenciosa e perigosamente, a esta fantasia que envolve vias reais,
lugares de partida e pontos de chegada é todo um mapa de linhas já traçadas. E, para
retomarmos os termos anteriores da discussão de Rancière, é a ordem policialesca do
‘próprio’ ou a ficção consensual dominante que trabalha sob esta lógica de linhas já
estabelecidas. É a manutenção destas linhas que muitas vezes está em jogo na tentativa de
ultrapassar, via antecipação dos efeitos, a indeterminação presente na ‘ruptura estética’. É ela,
esta ordem policialesca, que está em jogo quando se dá à arte a tarefa política de ‘arrancar o
espectador de sua condição’, pois foi ela mesma que estabeleceu que ser espectador é ser ao
mesmo tempo aquele que não sabe e aquele que não pode agir. Assim temos de um mesmo
golpe a criação de uma demanda, e o caminho para sua solução. A criação de um fosso, a
pressuposição de uma desigualdade, e a saída dele por meio de uma antecipação dos efeitos. É
o funcionamento da lógica embrutecedora. E é precisamente o funcionamento desta lógica
que a emancipação corta. Pois como diz Rancière,
“A emancipação [...] começa quando coloca-se em questão a oposição entre ver e agir, quando compreende-se que as evidências que estruturam assim as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem elas mesmas à estrutura da dominação e da sujeição. Ela começa quando compreende-se que ver é também uma ação que confirma ou transforma essa distribuição de lugares” (RANCIÈRE, 2008a, p. 19).
Uma política da arte trabalha então no sentido da emancipação quando “recusa antecipar
seu efeito e leva em consideração a separação estética por meio da qual este efeito se produz.
É, enfim, um trabalho que, em lugar de querer suprimir a passividade do espectador,
reexamina sua atividade” (RANCIÈRE, 2008b, p. 85). Não se trata portanto de tirar o
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espectador de sua condição de espectador, ou seja, operar uma saída do plano sensível seja na
direção de uma tomada de consciência, seja na direção da ação. Do plano sensível não saímos
nunca, estamos nele enviscados. E isso não significa qualquer espécie de alienação ou
passividade. O problema está nas linhas já demarcadas de apreensão sensível, de ‘vias
facilitadas’ (lembrando a expressão utilizada por Foucault já citada aqui) entre a sensibilidade
e os regimes de interpretação e ação. São essas linhas já demarcadas que configuram a ordem
policialesca que ‘antecipa as relações de poder já na evidência do sensível’. A análise da
dimensão política da arte, a riqueza de seus dispositivos e a importância das questões em que
se inscreve, deve incidir precisamente sobre este ponto, sobre o cruzamento e disrupção no
traçado destas linhas. É para isso que Rancière chama a atenção quando coloca a dimensão
política da arte enquanto criação de um ‘corpo dissociado de experiência’, enquanto criação
de dissenso. É aqui que a emancipação corta a lógica embrutecedora por meio de uma
suspensão. Esta suspensão, ou ‘ruptura estética’, quebra a colocação do sensível sob a rubrica
da ‘evidência’. Por isso não se trata de uma antecipação dos efeitos já que
“Uma coisa é a redistribuição de lugares, outra é a exigência que [a arte]48 se dê por fim a reunião de uma comunidade colocando fim à separação do espetáculo. A primeira engaja a invenção de novas aventuras intelectuais, a segunda uma nova forma de assinalação dos corpos à seu bom lugar” (RANCIÈRE, 2008a, p. 21).
Deve-se levar a sério esta criação de uma ruptura estética que impede a antecipação dos
efeitos, pois é ela que permite que a arte contribua para “reforjar os quadros de nossas
percepções e o dinamismo de nossos afetos” (RANCIÈRE, 2008b, p. 91). É aí que se instaura
uma fértil política da arte uma vez que se “abrem passagens possíveis em direção a novas
formas de subjetivação política” (idem). Muitas vezes sob o verniz de seriedade das obras
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!48 No texto original Rancière diz neste momento ‘o teatro’, mas tendo em vista o conjunto de suas análises tanto no presente texto quanto em outros deste mesmo livro, acreditamos não ser abusivo substituir a expressão utilizada por ‘a arte’, dando assim um sentido mais geral à sua frase.
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políticas clarividentes e emancipadoras ou das mirabolantes instalações vanguardistas que
‘interagem’ com o espectador (sempre tendo em vista, nos dois casos, uma ação já delineada)
encontram-se nada mais do que linhas já traçadas ou regras de um jogo já bem definido. É um
jogo ‘de cartas marcadas’ e não um jogo ‘tocante’, como diria Zourabichvili. Podemos assim
chamar estas posições de voluntaristas. Baseiam-se num quadro já estabelecido, num
resultado já previamente calculado, cabendo apenas sua ‘realização’. Há um casamento entre
uma pobre visão de arte com uma infeliz aspiração política%*. Estas posições trabalham nos
quadros já dados do possível.
Mais importante então do que afirmar (ou negar) peremptoria ou antecipadamente os
efeitos políticos da arte, é tentar compreender a natureza de seus laços para que possamos
estar sempre atentos aos espaços e momentos onde estes efeitos podem surgir. Trata-se
sempre de pensar a efetividade política da arte ‘à quente’. Neste sentido há uma passagem
presente em uma entrevista de Rancière que é significativa:
“Em meu modo de ver, cabe sair desta temporalidade dos objetivos, do futuro oposto ao presente, para pensar em uma temporalidade do crescimento do presente ou do crescimento das potencialidades do presente, que não se definem mediante cálculos estratégicos, mas pelas capacidades novas que podem surgir, se desenvolver, se confirmar à cada momento.” (CEDILLO, FERNÁNDEZ-SAVATER, GARCÉS, 2007, p.3)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!49 Talvez possamos dizer ainda que há um classicismo nestas posições voluntaristas. Não haveria aqui sinais de uma herança de um pensamento filosófico-político já clássico que coloca o pensamento como liberação dos grilhões da sensibilidade e a ação política como exercício de uma vontade livre?
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CONCLUSÃO
Em todo o desenvolvimento da tese buscamos mostrar que há uma dimensão política
da experiência com a arte que incide sobre o plano da percepção. Podemos dizer que é sobre
esta linha que se cruzam nossos dois planos de análise, divididos nas duas partes que
compõem a tese. Na primeira parte buscamos seguir de perto uma discussão sobre a
percepção envolvida na arte e suas linhas de contato e desvio com o plano da experiência e da
vida comum. A percepção estética não foi tomada aqui enquanto privilégio de artistas ou de
pessoas especiais, não sendo fruto de uma expertise. Por outro lado, se falamos em percepção
estética é porque apontamos para a abertura de um desvio, uma mudança ou uma suspensão
no regime de funcionamento cognitivo habitual. Já na segunda parte seguimos uma outra
trilha, na qual partimos de um plano de discussão que é o das relações entre arte e política. A
partir das colocações de Jacques Rancière e de algumas contribuições trazidas também por
François Zourabichvili, pudemos ver que não se trata de pensar estas relações sob os moldes
de uma arte ‘engajada’, já que esta funciona sempre a partir da lógica da antecipação dos
efeitos, o que implica trabalhar sobre as linhas já dadas das relacões entre aquilo que se dá a
ver e o que se pode sentir e afirmar a partir do que se vê. Mas como Rancière aponta, “a
política é a atividade que reconfigura os quadros sensíveis no seio dos quais se definem os
objetos comuns” e, portanto, “como Platão nos ensina, a contrario, a política começa quando
há ruptura na distribuição dos espaços e das competências” (RANCIÈRE, 2008b, p. 66). A
questão da suspensão e do dissenso são importantes pois rompem, ao fazerem fugir e não ao
se oporem frontalmente como marca Zourabichvili, com esta ordem de determinações
sensíveis, esta ordem que Rancière chama policialesca e que antecipa as relações de poder na
evidência mesmo dos dados sensíveis. Se a experiência estética toca a política é exatamente ao
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embaralhar diferentes temporalidades, diferentes regimes de apresentação sensível, de
significação e de ação, ou seja, por alcançar um plano de indeterminação, um devir.
Consideramos, sem achar que isso esgota todas estas questões, que o ponto de contato se
dá precisamente na colocação de que a experiência com a arte lança a percepção em um
regime de experimentação. É neste sentido que o caráter estético de uma obra acompanha seu
caráter político, e é sob esta linha que se cruzam nossos dois planos de análise. Não é
necessário, cabe reforçar, partir de uma intenção do artista ou mesmo da temática abordada
por uma obra para que esta seja política, daí a importância das colocações de Jacques
Rancière e de sua crítica a um ‘modelo pedagógico’ de arte. Por isso, especialmente na
primeira parte, buscamos traçar um caminho que abordasse questões referentes à percepção e
à experiência com a arte, ainda que não completamente focados ou restritos à questão política.
Retomemos então alguns passos deste percurso, realizando um pequeno balanço deste
caminho de investigação da percepção estética e sua dimensão política. Partimos da
psicologia da percepção, mais especificamente dos trabalhos da escola gestaltista. O interesse
por estes trabalhos se deve à sua forma de colocação do problema da percepção. Esta é
pensada a partir da idéia de campo dinâmico, no qual as relações são primeiras em relação aos
termos ligados. Buscamos por meio das leituras de Arnheim e Simondon a possibilidade de
escapar de algumas limitações presentes nas teorias gestaltistas, principalmente no que
concerne ao acento dado à questão da estabilidade das formas e ao modelo de redução de
tensão. Deve-se ressaltar, contudo, que os trabalhos de Arnheim e Simondon, principalmente
deste último, possuem seus matizes próprios. No caso de Arnheim isto é mais sutil pois
embora haja ali uma tentativa de complexificar a idéia de equilíbrio, resta ainda um espaço
significativo concedido à questão da estabilidade das formas. Talvez esta preocupação derive
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de seu esforço por se distanciar dos estudos psicológicos sobre a experiência com a arte
pautados nas variáveis subjetivas. Arnheim trabalha basicamente do ponto de vista da
composição da forma artística e quando fala em estabilidade das formas, tem em vista uma
preocupação de valorizar as necessidades internas de composição da obra. Não se trata, como
ele mesmo marca, de assumir uma posição formalista, mas sim de buscar um princípio de
consistência interno à obra e que, em certo grau, é a garantia de sua qualidade estética. É
evidente sua preocupação em se distanciar de certos estudos psicológicos que ‘encaram a
atividade artística principalmente como um instrumento de exploração da personalidade
humana, como se entre arte e um borrão de tinta de Rorschach ou as respostas de um
questionário houvesse pouca diferença’ (ARNHEIM, 1991, p.3). No entanto, escapar das
armadilhas do subjetivismo não implica a necessidade de minorar a possibilidade de
diferenciação presente tanto no interior das obras quanto nas experiências que delas derivam.
E aqui a contribuição de Simondon parece permitir seguir um caminho mais fecundo, ainda
que este não trate especificamente de questões ligadas à arte, ao acentuar que a forma (no caso
da arte, a obra) não perde sua consistência e mesmo guarda uma potência de novas
atualizações ou individuações. A pregnância de uma forma é pensada a partir de sua
capacidade de “atravessar, de animar e de estruturar um domínio variado, domínios cada vez
mais variados e heterogêneos” (SIMONDON, 1989, p. 53).
Uma posição próxima é encontrada em Deleuze e Guattari (1992) quando afirmam que a
obra se conserva, ‘se mantém de pé’ pelos afectos, encontros e devires que é capaz de
produzir. Sabe-se o quanto as formulações de Simondon sobre o domínio pré-individual
possuem importância na obra de Deleuze e Guattari (1980). O que buscam em Simondon é a
possibilidade de sair do pensamento hilemórfico matéria/forma, entendendo a forma como
uma individuação modulada por forças. E Simondon encontra isso na psicologia da Gestalt, a
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partir das noções de campo, que incorpora e valoriza, e de equilíbrio, agora transformada na
de metaestabilidade. A noção de campo é importante pois permite pensar a totalidade como
conjunto de relações. É em função disto que Simondon situa o gestaltismo como não sendo
uma teoria molar nem molecular, pois o campo permite pensar a dupla determinação parte-
todo. Em outras palavras, o molecular condiciona o molar, assim como o molar também
condiciona o molecular. Por isso a forma coexiste com o plano das forças. Enfim, Deleuze e
Guattari afirmam, através de intercessores mais ou menos explícitos como Arnheim,
Simondon e a própria psicologia da Gestalt, que a arte não pode abrir mão da dimensão
expressiva, que concerne ao plano das forças, mas deve superar a dimensão recognitiva ou
representativa da percepção. Neste sentido, Sauvagnargues (2006) observa: “Conforme à
modulação simondoniana, as relações do criador com sua obra, da obra com seu público, do
artista com o corpo social, devem ser compreendidas como campos de individuação que
produzem indivíduos. A obra, mas também o artista são tais indivíduos. O valor crítico da
obra não se reduz mais à relação da escrita ao pensamento, nem àquela da obra à intenção. A
arte se abre sobre uma via impessoal, o potencial intenso de singularidades pré-individuais
que atravessa o campo social metaestável de individuação que serve de meio à sua
cristalização” (SAUVAGNARGUES, 2006, p. 110)
Analisando a contribuição de Dewey sobre a noção de experiência estética vimos como o
artista não cria apenas uma obra mas, por meio dela, cria uma experiência. O próprio artista,
durante seu processo de criação, é palco dessa experiência. No entanto, Dewey sublinha que
ela deve ser continuamente recriada por aqueles que percebem a obra. O importante aqui é
destacar que os atos de criação e de fruição de uma obra não são pólos totalmente opostos, já
que tanto a criação artística envolve uma dimensão receptiva (ou passiva) quanto a recepção
ou a fruição estética envolve uma dimensão ativa. Procurando estabelecer uma distinção entre
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a percepção habitual e a percepção do artista, Bergson por sua vez enfatiza que o que
caracteriza esta útima é seu afastamento dos interesses da vida prática, o que parece o oposto
do que afirma Dewey quando destaca a funcionalidade da experiência estética. No entanto,
concluimos que o desinteresse, que para Bergson comparece como condição e traço marcante
da experiência estética, e o extremo interesse, que marca a funcionalidade global e a
integralidade da experiência estética em Dewey, se aproximam ao marcarem a possibilidade
de abertura aos diversos e imprevistos movimentos da vida.
Na parte II trabalhamos a questão da política a partir do conceito de partilha do
sensível de Jacques Rancière. Partilha remete, ao mesmo tempo, à participação em um
conjunto comum e a um regime de separação e distribuição. A partilha do sensível é então o
modo como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a
divisão de partes exclusivas. Trata-se de uma relação entre os modos do fazer, os modos do
ser e os do dizer, ou ainda entre a distribuição dos corpos de acordo com suas atribuições e
finalidades e a circulação do sentido. Como coloca Rancière, o exercício político se dá no
processo dissensual de constituição e revisão destas linhas. Não na busca por sua manutenção.
E é aqui que a arte pode ganhar importância, na medida em que opera desvios nestas linhas,
produzindo fissuras nos caminhos que ligam um dado sensível a seus esquemas já dados de
interpretação e de distribuição de ações. É por esta via que se escapa às armadilhas de um
‘modelo pedagógico’ de atuação política da arte. Neste modelo tem-se como pressuposto que
o espectador é aquele que, ao se limitar a ‘ver’ (ou perceber), encontra-se privado de um saber
ou da capacidade de ação. Fazer uma arte política seria então tirá-lo desta condição. E então o
espectador deve perceber aquilo que o artista deseja que ele perceba. Uma linha de causa-
efeito liga as intenções de um artista e o que experimenta o espectador. Mas como marca
Rancière isso é inócuo, se não falso. A arte é política, pelo contrário, ao embaralhar estas
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diversas linhas que compõem um mapa sensível já dado. Trata-se, como ele diz, de ‘criar um
corpo dissociado de experiência’. Neste ponto vemos não só a ligação já indicada com as
colocações de Zourabichvili acerca da potência de resistência da suspensão, como também
com as colocações de Bergson e Deleuze que compareceram na primeira parte de nosso
trabalho. Essas últimas apontam para a potência da arte em produzir uma experiência singular,
na qual a distinção sujeito-objeto se encontra suspensa e uma zona de indiscernibilidade, um
devir - para usarmos a conceituação deleuzeana - é alcançado.
Estabelecer essa ligação é importante pois, a nosso ver, poder-se-ia pensar que quando
Rancière defende a ‘emancipação do olhar’ o que está em jogo é a defesa da possibilidade de
que o espectador afirme a ‘sua’ própria visão, a ‘sua própria’ interpretação. Mas isto seria
ainda muito pouco, pois não se trata de defender a possibilidade de uma ‘afirmação própria’,
mas sim de fazer fugir a interpretação assim como o ‘próprio’. Trata-se de alcançar um
regime de experimentação, uma zona de indeterminação, de devir, onde não cabe mais dizer
‘eu’. É isto o que está em jogo também na discussão bergsoniana acerca da conversão da
atenção. A percepção entra em um regime de experimentação em que não se vê mais limitada
a seus quadros habituais de referência, confronta-se com seus limites. A sensibilidade entra
em um regime de metaestabilidade, no qual os diferentes extratos que somos, ou que nos
habitam, se acendem e se fazem presentes: vemos ao mesmo tempo com olhos de pai e de
filho, de operário e vagabundo, sentimos como homem e animal, pedra e passarinho, nossos
olhos se desconectam de nossas mãos, e nossas mãos vêem por si mesmas, ouvimos das
palavras seu vai-e-vem e sua música, ou vemos da música o movimento das notas e dos
ventos, ou ainda tudo isso ao mesmo tempo. Dá-se uma abertura às mais sutis variações e
perturbações presentes no mundo. Ressoa aqui a colocação de Dewey de que a experiência
estética é vitalidade potencializada, pois nos abre ao mundo. Podemos nos lembrar também
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de Francis Ponge quando afirmava que a arte reativa este plano em que a percepção é
intimamente ligada aos afetos, pois perceber deixa de ser fixar qualidades para se tornar ponto
de abertura onde suas próprias condições de funcionamento são moventes. É uma nova
distribuição dos afetos que está em jogo. E consequentemente uma nova partilha do sensível.
Vemos assim como o sentido político presente na arte se desvia da rubrica e das
armadilhas da ‘arte engajada’. A arte é política não tanto por aquilo que ela dá, mas por aquilo
que ela convoca. E neste sentido seu caráter político segue de perto seu caráter estético. Partir
daquilo que a arte dá seria partir de seu efeito, mas não há garantia de seus efeitos. Melhor
dizendo, não há garantia da direção de seus efeitos. Como afirma Serge Daney (2007), é a
publicidade que parte deste direcionamento dos efeitos, não a arte. A arte é política enquanto
convoca uma sensibilidade, estabelece um novo modo de composição com o mundo.
O espectador comum compartilha as aventuras insólitas dos artistas. Por meio de sua
disponibilidade sensível e sua capacidade de ser afetado, estas aventuras recebem o sopro
suplementar que as faz sobreviver. São seus olhos, seus ouvidos e, porque não, todo seu
corpo, o campo de batalha. Estar diante de uma obra não é postar-se candidamente diante de
um objeto, mas sim ceder seu peito, suas idéias, sua memória, seus afetos para serem
livremente manejados, trabalhados, talvez despedaçados, unidos, enfim, transformados por
tudo aquilo que habita uma página, uma tela, um palco, alto-falantes, etc. Não raro o
espectador volta da aventura sem alguns de seus próprios personagens, pois ficaram pelo
caminho....
Em um momento em que o contato com a arte parece estar fadado a ser colocado nos
quadros da diversão ou da informação, isto nos parece de extrema importância. Não se trata
de conferir um grau ‘solene’ à experiência com a arte, como se todo traço de leveza, diversão
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ou prazer fosse algo a ser negado. Trata-se apenas de marcar que isto não é tudo. Como
afirma o crítico C. S. Lewis “Aqueles que somente buscam a felicidade vicária em suas
leituras são literariamente iletrados; mas aqueles que pretendem que nunca haja um
ingrediente desse tipo nas boas leituras estão equivocados” (LEWIS, 2009, p. 38).
Resguardar a importância da experiência com a arte do espectador é manter viva a
potência da arte de participar da partilha do sensível (Rancière, 2005), do regime das formas
que possibilita e regula a relação com o sensível, delineando não só o que, mas como algo
pode ser visível e audível, incluído ou excluído, e que compõe o próprio sentido do político.
Não por acaso Rancière (2008) afirma ser o conjunto de pressuposições e equivalências que
organizam nossos juízos acerca da posição do espectador uma questão central nas relações
entre arte e política.
O caminho que leva da percepção da arte à percepção transformada pela arte é circular,
e é no interior deste círculo que se coloca a questão das relações entre arte e vida. A atitude do
espectador que se abre aos diversos fios de afecção e sentido que se entrelaçam em uma obra é
equivalente à atitude daquele que busca situar-se em meio aos fios de sua própria vida e do
mundo. Há um cultivo da sensibilidade na arte. E isto não significa fazer de todo espectador um
crítico em potencial, desenvolver uma expertise que permitiria compreender ou interpretar
aquilo que se apresenta à sensibilidade. Muito menos reduzir o caráter de choque que pode
haver no contato com as obras. O cultivo da sensibilidade diz respeito a manter viva a
possibilidade de que estes choques, estes encontros, não sejam logo rechaçados e colocados sob
o signo da arbitrariedade. As palavras de Natalie Depraz, Francisco Varela e Pierre Vermersch,
ainda que situadas em um outro contexto de discussão, permitem vislumbrar o justo alcance
destas colocações:
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“o que está em jogo é dar a possibilidade de não se esmagar a realidade em uma forma de pensamento e sua linguagem já disponível, estabelecendo assim uma relativa e provisória zona de silêncio a partir da qual se começa uma relação renovada com a realidade vivida” (DEPRAZ, VARELA, VERMERSCH, 1999, p. 13).
É, a nosso ver, neste sentido que Blanchot afirmava ser a leitura o “sim silencioso que está no
centro de toda tempestade” (BLANCHOT, 1982, p. 261).
É certo que isto envolve a potência da obra e, como diz Zourabichvili, sua capacidade
de ser ‘tocante’. É certo também que este cultivo nunca é descolado de um corpo, de seus
limites, de seus trajetos, de suas regiões de intensidade, de suas zonas de atração e de seus
pontos de cegueira. Perceber, neste sentido, não é julgar, mas experimentar. Implica estarmos
situados a uma altura de nós mesmos em que todas estas regiões de si coexistem, confluem, se
cruzam, se chocam e se espalham.
Talvez o espectador que entra em um cinema, em uma galeria, que vai a um
espetáculo teatral ou musical, ou ainda, que se senta com seu livro numa poltrona tranqüila,
seja um pouco como alguém que se encontra na praia e resolve ir ao mar, atraído pelo
marulho ou pelo refrescar. Podemos andar em sua direção e pararmos logo ali, à beira.
Sentimos o cheiro do mar, vemos as ondas quebrando, mas a água batendo nos pés não nos
traz senão a estimativa de sua temperatura. Os pés continuam fundos na areia e o corpo seco.
Se entramos um pouco mais, começamos a sentir seus movimentos internos e a força que
parece primeiro querer nos derrubar pra em seguida nos mandar de volta a areia. Parece haver
uma resistência mútua, do mar nos empurrando pra fora e do corpo que teima em permanecer
de pé, manter ali dentro as posições que fazem sentido apenas do lado de fora. Mais do que a
água, sentimos o esforço resistente das pernas. Mas eis que, se a persistência do banhista e o
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mar permitirem, alguma coisa acontece. Parecemos encontrar a justa medida entre o
desprender-se e o fixar-se. Os pés podem vir a tocar o chão, mas não se prendem a ele, não
pertencem mais a ele. As leis ali são outras e saber nadar não é nada senão aprender isso de
corpo inteiro. As forças, os deslocamentos de volume, as ondulações laterais e correntes
superficiais ou profundas continuam presentes, mas as cruzamos à braçadas, submergindo,
ondulamos junto ou contra, ou ainda, apenas obedecemos seu vaivém. Entramos no mar. Há, é
claro, sempre o risco de que essa fina orquestração se quebre. Um caldo. As ondas, que nos
impõem essa sufocante falta de graça nos movimentos e são sempre tão surpreendentes
quanto grandes, parecem ser um aviso do mar de que, assim como às obras, nós nunca o
dominamos. Apenas com ele ondulamos.
Ao sair sentimos de leve o corpo balançar, ainda sob os efeitos do ritmo do mar.
Vemos também que estamos longe de onde estávamos ao entrar. Se formos apressados,
secamo-nos rápido, apagando os vestígios visíveis do encontro. Ou podemos, por outro lado,
deixar que o mar encontre, devagar, suas linhas próprias de penetração no corpo.
Reencontramos no final do trabalho, a idéia vaga, central, mas agora mais forte, que
nos movia de início: de que a arte coloca em jogo uma experimentação da percepção. E que
isto produz, muitas vezes, efeitos que se estendem para além do que se poderia prever. A arte
imprime no olhar a marca de que, como afirma Guimarães Rosa, “tudo, aliás, é a ponta de um
mistério” (ROSA, 2005, p.113). Aprendizado insólito que reúne duas coisas disparatadas, o
cotidiano e os confins do mundo e seu mistério. Há um investimento numa experiência
perceptiva singular, porque sustenta o olhar com aquilo que ele não pode ter. Algo como
comer um buraco. Faz coexistir no olhar aquilo que conhecemos e reconhecemos e ao mesmo
tempo suas várias pontas soltas. Isto não é fácil e dado, por isso implica aprendizagem, um
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cultivo. Aposta sempre renovada de estar na hora do mundo (DELEUZE e GUATTARI,
1980), essa aprendizagem tem suas condições, embora estas não sejam jamais determinantes:
uma obra que a encaminhe, pontas soltas que se liguem casualmente, o prazer de perceber.
Quanto mais contato temos com as obras - ao sabor dos gostos, desgostos, encontros e
desencontros - mais nos impregnamos de mundo, e quanto mais nos impregnamos de mundo,
mais obras nos chamam. Há uma frequentação das coisas, mas com um efeito inaudito: cresce
um silêncio. Estamos muito perto das coisas mas entrevemos suas pesadas bagagens, suas
roupas dobradas e seus perfumes escondidos. Coisa estranha, o mundo nos fala com um
silêncio na voz. Tudo é a ponta de um mistério.
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