A monstruosidade como performance: construção midiática dos monstros no esporte

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VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013. www.conecorio.org 1 A monstruosidade como performance 1 Construção midiática dos monstros no esporte Resumo Este artigo tem como objetivo analisar a construção midiática dos monstros do esporte a partir de questionamentos acerca da natureza performática dos sujeitos- atletas. Direcionamos nossas discussões a partir de questionamentos que levam em consideração a necessidade de brutalizar o esportista, o esforço como elemento preponderante para tornar o esportista monstruoso e o reconhecimento da monstruosidade nos indivíduos. Uma premissa se sobressai: a monstruosidade no esporte dá margem para o afeto? Para problematizar essas questões três eixos de análise se fazem presentes: 1) o monstruoso em consequência do esforço; 2) a monstruosidade como meio para alcançar sublime; e 3) os limites da monstruosidade física na prática do esporte. Palavras-chave: esporte; mídia; monstro; performance. Na narrativa midiática sobre o esporte – no âmbito nacional ou internacional – a tendência a elencar esportistas como heróis, deuses, monstros, mitos numa construção épica dos sujeitos, sempre se fez presente. Sobre as narrativas de heróis na construção de ídolos no futebol, por exemplo, existe um extenso material teórico de Helal (2001, 2002, 2011) que tem como proposta discutir a identificação do público com a história de vida e a trajetória esportiva dos atletas desse desporto. E o Brasil é um país conhecido internacionalmente pela sua paixão pelo futebol e, neste esporte, noções como “talento” sempre pareceram ter mais valor sobre o “esforço” – sugerindo narrativas que apelam para questões ligadas a um “dom” do que como algo fruto de uma preparação. “Chega a ser até uma crítica contundente chamar um jogador de ‘esforçado’. Esta é uma maneira de se dizer que o sujeito não tem talento, porém se esforça” (HELAL, 2001, p. 138). 1 Trabalho apresentado no GT 4 – Representação Social e Mediação Socioculturais do VI Congresso de Estudantes de Pós-Graduação em Comunicação, na categoria pós-graduação. UERJ, Rio de Janeiro, outubro de 2013.

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013.

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A monstruosidade como performance1 Construção midiática dos monstros no esporte

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar a construção midiática dos monstros do esporte a partir de questionamentos acerca da natureza performática dos sujeitos-atletas. Direcionamos nossas discussões a partir de questionamentos que levam em consideração a necessidade de brutalizar o esportista, o esforço como elemento preponderante para tornar o esportista monstruoso e o reconhecimento da monstruosidade nos indivíduos. Uma premissa se sobressai: a monstruosidade no esporte dá margem para o afeto? Para problematizar essas questões três eixos de análise se fazem presentes: 1) o monstruoso em consequência do esforço; 2) a monstruosidade como meio para alcançar sublime; e 3) os limites da monstruosidade física na prática do esporte. Palavras-chave: esporte; mídia; monstro; performance.

Na narrativa midiática sobre o esporte – no âmbito nacional ou internacional –

a tendência a elencar esportistas como heróis, deuses, monstros, mitos numa

construção épica dos sujeitos, sempre se fez presente. Sobre as narrativas de heróis na

construção de ídolos no futebol, por exemplo, existe um extenso material teórico de

Helal (2001, 2002, 2011) que tem como proposta discutir a identificação do público

com a história de vida e a trajetória esportiva dos atletas desse desporto. E o Brasil é

um país conhecido internacionalmente pela sua paixão pelo futebol e, neste esporte,

noções como “talento” sempre pareceram ter mais valor sobre o “esforço” –

sugerindo narrativas que apelam para questões ligadas a um “dom” do que como algo

fruto de uma preparação. “Chega a ser até uma crítica contundente chamar um

jogador de ‘esforçado’. Esta é uma maneira de se dizer que o sujeito não tem talento,

porém se esforça” (HELAL, 2001, p. 138).

1 Trabalho apresentado no GT 4 – Representação Social e Mediação Socioculturais do VI Congresso de Estudantes de Pós-Graduação em Comunicação, na categoria pós-graduação. UERJ, Rio de Janeiro, outubro de 2013.

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O Atleta do futebol – ou de esportes cuja performance individual pode se

sobressair à coletiva – dotado desse suposto talento excepcional, no imaginário

coletivo, mantém uma distância dos fãs do esporte e dos demais atletas o que faz,

desse atleta diferenciado, um herói:

Para viciar no esporte, basta uma distância entre o atleta e o espectador – uma distância grande o suficiente para fazer o espectador acreditar que seus heróis vivem em outro mundo. É assim que os atletas se transformam em objetos de admiração e desejo (GUMBRECHT, 2007a, p. 15-16).

A alteridade faz com que o reconhecimento do público sobre sua própria falta

de habilidade/preparo para aquele tipo de competição, nas quais aqueles atletas se

sobressaem, seja transformado em admiração. Essa distância marcará a posição do

espectador de esportes do esportista profissional de alto rendimento2. E é nesse limite

entre o comum e o humanamente impossível é que habita a noção de monstruosidade.

No esporte, a monstruosidade está no esforço, na construção de equipes invencíveis,

na superação dos limites físicos, enfim, na busca pelo sublime.

O esforço do monstro

Demarcados os espaços, iniciamos nossa discussão sobre a construção do

monstro no esporte partindo do elemento “corpo em esforço”. Como a noção de

monstruosidade se baseia principalmente na ideia de alteridade, concordamos com Gil

(2000) quando este diz que:

Os monstros, felizmente, existem não para nos mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser. Entre estes dois pólos, entre uma possibilidade negativa e um acaso possível, tentamos situar a nossa humanidade de homens (GIL, 2000, p. 168).

2 Segundo Hernandez (2006), o esporte de alto rendimento é aquele que maior apelo midiático e econômico. A natação, o atletismo, o MMA, esportes coletivos como o vôlei, o futebol, o basquete, são alguns exemplos de esportes de alto rendimento.

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Tomando mais uma vez o exemplo do jogador Zico, Helal (2001) atenta para

o fato de que este atleta foi considerado um craque de laboratório, ou seja, “de um

planejamento ‘científico’, com a ajuda de médicos, nutricionistas, e modernas

técnicas e aparelhos de educação física, surgiu uma grande estrela do nosso futebol”

(HELAL, 2001, p. 143). Vendo as partidas desse jogador, podemos observar que nos

quesitos técnicos, esse esforço está evidente menos em seu corpo físico do que em sua

precisão em detalhes como cobrança de faltas, penalidades e até mesmo na marcação.

O esforço de Zico para se tornar um jogador de alto rendimento, ou seja, um atleta

com uma performance acima do praticado em níveis não-profissionais, faz com que

sua técnica, aliada ao talento do jogador, seja aperfeiçoada.

Contrera (2004) alerta que essa busca pelo aperfeiçoamento não é algo recente

em nossa sociedade.

E o homem moderno prosseguiu nessa empreitada de ‘aperfeiçoamento da natureza humana’ guiado durante toda a Modernidade por uma visão de mundo, e da natureza humana, herdeira do pensamento cartesiano que propõe uma visão de homem que o equipara às máquinas, criando as primeiras concepções cibernéticas que até hoje geram muitos enganos, sinalizando a incapacidade ainda existente de se perceber as enormes e profundas diferenças entre os sistemas vivos e os sistemas artificiais (CONTRERA, 2004, p. 128).

Na literatura e no cinema, o personagem do Frankenstein tem destaque. A

criatura monstruosa nasceu nessas artes com a ânsia do homem moderno, embalado

pela Revolução Industrial, de dominar a natureza e construir um corpo perfeito, acima

de todos os limites humanos. Sua construção não pressupõe um esforço do próprio

monstro, mas simboliza os primórdios do desejo pelo sublime nas obras de ficção. No

esporte não existem rupturas nessa mentalidade: os atletas de alto rendimento

representam essa continuidade na busca pelo sublime.

Não ocorrem acentuadamente em Zico as consequências do esforço sobre o

corpo. O que o torna um monstro, ou seja, uma alteridade no esporte é a sua técnica

diferenciada. Em outros casos, como o dos nadadores, dos lutadores de MMA (Mixed

Martial Arts), dos fisiculturistas, dos levantadores de peso, por exemplo, acontece

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uma modificação no corpo que os leva a um patamar performático inatingível para

pessoas comuns (não-esportistas). A performance de alto nível nesses esportes

pressupõe a diferenciação do corpo. Especialmente no Brasil, a relação entre corpos é

eminentemente cultural. Tanto na música quanto na literatura ficcional brasileira, as

curvas femininas e o traçado geométrico e bem definido do ideal de corpo masculino

têm bastante destaque. Os corpos seminus nas obras de Jorge Amado e nas músicas de

carnaval são alguns indícios de como o brasileiro se percebe e relaciona

corporalmente.

No esporte de alto rendimento, não é raro se fugir a essa hegemonia. No

fisiculturismo, por exemplo, as próprias noções de feminino e masculino podem ser

transformadas em formas novas e híbridas que se afastam do tradicional.

Em vez de continuar a pensar num tipo masculino de corpo feminino, uma mulher que está transformando o corpo pela prática do lançamento de disco ou de arremesso de peso pode aperfeiçoar e apreciar a descoberta de novos formatos do corpo, formatos que não são nem femininos nem masculinos no sentido convencional (GUMBRECHT, 2007a, p. 112)

Na edição online de março de 2011, a revista Rolling Stones do Brasil

publicou um perfil da ex-nadadora Rebeca Gusmão, um símbolo recente da

diferenciação corpórea da natação. No texto, elementos de alteridade física calcada na

monstruosidade estão presentes em toda descrição:

O universo de Rebeca é rodeado de termos que deixam explícita sua grandeza física, que vão dos apelidos (Kong, Muralha, Gigante) ao patrocinador pessoal, a bebida energética Mamute. Os esportes que vieram depois da natação - futebol e levantamento de peso - também seguem no ritmo da força e explosão muscular. Por trás do corpo de colosso, porém, esconde-se uma alma cujos prazeres - maquiagens, vestidos, idas ao salão - e medos (baratas!) são eminentemente femininos. São detalhes conhecidos apenas por um círculo restrito de família e amigos. "Essas pessoas conhecem a Rebeca mulher. Às outras pessoas, que não são desse ciclo, interessa a Rebeca atleta", ela afirma, categórica. "A atleta é uma pessoa competitiva, focada, mais séria, sempre tem uma consideração maior. A Rebeca pessoa é meiga, amiga, carinhosa, que gosta de conversar, de ser companheira", ela mesma define-se. "As únicas características que eu tenho em comum, atleta e pessoa, são as minhas medalhas"3 (Rolling Stones, março de 2011)

3 Disponível em: http://rollingstone.uol.com.br/edicao/54/forca-indomavel Acessado em julho/2013.

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Como no caso da nadadora sobressai o aspecto físico, o repórter tenta

humanizar esse corpo na tentativa de humanizar a atleta, diminuindo a distância entre

ela e um não-esportista comum.

Como afirma Gil (2000, p. 170), o monstro não se situa fora do domínio

humano: encontra-se no seu limite, portanto transformar o corpo em uma máquina por

meio de exercícios para chegar a determinado objetivo coloca o esportista no limite da

diferença entre o humano e o não humano, entre o culturalmente convencional e o

monstruoso. Isso vai fazer com que se estabeleça a diferença entre aqueles que vão se

lançar sobre um objetivo e aquele que irão apenas contemplar.

(...) assistir a esportes captura de forma tão irresistível a atenção e a imaginação de tanta gente, como ele próprio. É um fascínio no sentido real da palavra – um fenômeno que paralisa os olhos, algo que atrai constantemente, sem indicar nenhuma explicação para a atração. Por essa capacidade de fascinar, o esporte exerce uma força transformadora, conduzindo seu olhar para coisas que normalmente ele não apreciaria, como lutadores grotescos de tão obesos, bonés de lã com dísticos ou corpos seminus sem nenhum interesse sexual. (GUMBRECHT, 2007a, p. 20)

Apesar de existir uma separação entre o esportista de alto rendimento e o

espectador, existe uma afeição por esses corpos monstruosos, pela diferença. O afeto

entre os dois pólos se dá pela sensação de proximidade com sublime. Com isso

entramos na segunda via de análise: a monstruosidade como meio para alcançar

sublime.

A monstruosidade como forma de alcançar o sublime

Os gregos participavam dos jogos olímpicos por acreditarem na proximidade

com os deuses que aquele evento traria. Nas odes de Píndaro, as vitórias olímpicas

eram vistas como acontecimentos da presença divina, isto é, como eventos que

excediam os limites do humanamente possível (GUMBRECHT, 2007b, p. 13).

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Segundo Gumbrecht, apoiado nos conceitos de Kant, ao contrário do belo que

diz respeito à forma do objeto e consiste em limitação, o sublime “será encontrado

num objeto sem forma, desde que a ilimitabilidade esteja apresentada nele”

(GUMBRECHT, 2007a, p. 41. Grifo do autor). Enquanto o belo está ligado a

sofisticação, à qualidade, o sublime está associado a quantidade.

O Sublime é ‘aquilo que é absolutamente grande [...] e comparado a ele todo o resto fica pequeno’. O sublime é aquilo que ameaça nos sobrepujar, e pode portanto causar ‘uma inibição momentânea dos poderes vitais’, enquanto o belo ‘traz consigo um sentimento de promoção da vida’ (GUMBRECHT, 2007a, p. 41-42. Grifo do autor).

Temos, dessa forma, o sublime materializado na busca pelos recordes, na

disputa no quadro de medalhas, na compulsão pela coleção de nocautes. O desejo pelo

sublime acaba deixando marcas no corpo do esportista. Para alcançar tais objetivos,

os atletas de alto rendimento utilizam do treino que é um elemento, no cotidiano do

esportista, que requer esforço que, por sua vez, leva a monstruosidade. Esse fato

mostra, mais uma vez, essa monstruosidade como uma alteridade entre esportista e

público.

A monstruosidade como uma separação entre o “nós” e o “outro” foi utilizada

em diversos momentos da história da humanidade. Pelo fato de o diferente causar

estranhamento, as civilizações européias quando chegaram à América, por exemplo,

trataram de se perguntar se eles eram humanos ou monstros.

Embora os índios e negros descobertos nos séculos XV e XVI em África e nas Américas se encontrassem aquém das fronteiras da monstruosidade, a sua humanidade foi objeto de dúvida: eram monstros, animais? Por outras palavras, a sua alteridade é móbil, não fixa e, por definição, instável. Segue sem cessar a interrogação que os desloca, ou seja, o declive do movimento das pulsões que conduz naturalmente ao monstro, último ponto de referência do Outro, com uma forma tão nítida e estável como era a sua iconografia (GIL, 2000, p. 173-174).

Quando o outro, o desconhecido, se mostra de uma forma invencível, surgiam

as narrativas de gigantes que dizimavam civilizações. O livro sagrado dos católicos, a

bíblia, é fonte inesgotável desse tipo de narrativa monstruosa. A invencibilidade no

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esporte também abre margem para a construção do mito de equipes ou atletas

monstruosos, isto é, invencíveis. A seleção brasileira que ganhou a Copa do Mundo

de Futebol de 1970 no México foi revestida com essa aura de uma monstruosidade

que está para além dos seus resultados. A quase impossibilidade da derrota daquele

time para qualquer outra equipe ajudou a criar uma mística parecida com as que as

civilizações antigas usavam para identificar um inimigo imbatível: a seleção de 1970

era um gigante, um monstro a ser derrotado.

A forma com que o afeto foi criando sobre essa seleção foi tão importante que

o próprio governo brasileiro tentou usar a imagem da conquista para fins políticos de

suporte para a ditadura militar (HELAL; CABO; SILVA, 2011, p. 203). A estratégia

era usar o esporte como extensão do nacionalismo inflado – devido à invencibilidade

do time brasileiro – para a causa militar cujo slogan, pós-conquista de 70, passou a ser

“ninguém segura esse país”.

Recentemente, já no século 21, a seleção brasileira masculina de vôlei

conquistou, sob o comando do técnico Bernardinho, essa mesma vertente de

monstruosidade vencendo seguidamente seleções tradicionais nesse esporte, como

Itália, Iugoslávia (posteriormente Sérvia, Montenegro e Croácia), Rússia, quebrando,

dessa forma, uma tradição construída até ali na técnica, força e altura e estabelecendo

uma nova tradição com base em uma intensidade focada (GUMBRECHT, 2007b, p.

12), ou seja, um nível alto de concentração e foco.

Em novembro de 2005, o técnico da seleção brasileira de vôlei masculino,

Bernardinho, foi convidado pelo técnico da seleção de futebol naquela época, Carlos

Aberto Parreira, para dar a palestra de abertura do Footecon 2005, o 2º Fórum

Internacional de Futebol, no Rio de Janeiro. A ideia era que o técnico campeão

olímpico mostrasse como gerir pessoas, fazendo com que todo focassem no mesmo

objetivo4.

4 O evento teve cobertura do Portal Terra. Disponível em http://esportes.terra.com.br/futebol/copa2006/selecoes/interna/0,,OI777386-EI5583,00.html Acessado em jul/2013.

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Na construção da narrativa midiática sobre essa seleção comandada por

Bernardinho, na última década e início dessa, a imprensa esportiva utilizou alguns

clichês que ajudaram a reforçar a trajetória épica dos atletas dessa modalidade

esportiva. Observemos o lead da matéria do Portal UOL sobre as Olimpíadas de

Atenas:

E Davi bateu de novo o Golias. Na tarde deste sábado, a seleção brasileira masculina de vôlei derrotou a gigante Rússia por 3 sets a 0 (25-19, 25-13 e 25-23) e manteve a liderança do grupo B da Olimpíada. O time dirigido pelo técnico Bernardinho é o único invicto em Atenas (Portal UOL, 21/08/2004).

Nessas Olimpíadas, a média de altura da seleção brasileira era de 1,94m

enquanto adversários como a Rússia tinha média de 2,04m. A diferença de quase 10

cm ajudou e a vitória por três sets a zero ajudou a aumentar o feito da seleção

brasileira e a elevou a categoria de novo monstro daquele esporte a ser batido. A

estratégia utilizada, segundo o próprio técnico, e enfatizada nos textos sobre a partida,

foi o coletivo: os jogadores focaram o jogo de equipe, uma vez assumida a

inferioridade física, mas não técnica e coletiva.

‘A equipe foi constante. Forçamos o saque e quebramos o passe deles’, disse. ‘Temos que jogar sempre assim contra os russos. Senão, fisicamente, ele nos derrotam’, completou. Outro motivo de alegria para Bernardinho no jogo deste sábado foi a atuação do conjunto brasileiro em quadra. ‘Fiquei feliz porque não tivemos heróis. Todos jogaram muito bem’, explicou (UOL, 21/08/2004)5.

Ao contrário do ocorre em esportes individuais, o esforço e o treinamento não

marcam tão profundamente os corpos dos atletas dos esportes coletivos. A alteridade,

diferenciação entre esportistas e não-esportistas, se dá pela técnica apurada e pela

intensidade do foco no objetivo. Dessa forma, a união das características individuais

dos jogadores faz com que a equipe se torne algo monstruoso, imbatível. Como pano

5 Disponível em http://esporte.uol.com.br/olimpiadas/ultimas/2004/08/21/ult2280u287.jhtm Acessado em jul/2013.

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de fundo, a chance de vencer e o risco da derrota serão elementos costurados na

narrativa midiática para dar contornos dramáticos, épicos.

Seundo Gumbrecht (2007a), o afeto pelo pelos esportistas pode se dar mesmo

quando o esforço modifica o corpo, ou seja, quando há monstruosidade:

Na imaginação grega, os deuses eram velozes e poderosos, munidos de potência erótica e apelo irresistível, eternamente embriagados ou insuportavelmente alertas, devastadoramente belos ou repulsivamente feios (GUMBRECHT, 2007a, p.75).

Sob o signo do hiperbólico, os heróis gregos atingiam o sublime e não

importavam os meios pelos quais eles o alcançassem. Como explicar uma

identificação afetiva por um indivíduo diferente? Mais precisamente: como é possível

ter afeto por um monstro do esporte?

Esses questionamentos mostram que existem contradições no termo “monstro”

uma vez que a figura monstruosa pode abrir margem para o afeto. De acordo com os

dicionários da língua portuguesa, afeto é “disposição de alma, sentimento”, “amizade,

simpatia, paixão”. É através dele que posicionamos os nossos direcionamentos sociais

de gosto e desejo. “Assim como na ópera, numa sinfonia ou num balé, os

espectadores do estádio assistem ao esporte como a uma performance, que difere

dessas outras experiências estéticas” (GUMBRECHT, 2007a, p. 49). Sob essa

perspectiva, podemos dizer que uma partida ou uma apresentação esportiva é

acompanhada por aqueles que têm por essa forma de sociabilidade um nível de apreço

maior, uma simpatia maior. Os atores dessa performance têm um objetivo e a graça, a

beleza está em alcançá-lo. Portanto, os fins justificam o apreço pelos mediadores.

Os limites da monstruosidade física

Passamos para a terceira via de análise da construção dos monstros no esporte:

a monstruosidade/alteridade física. Nesse tópico, um elemento que faz parte da

cultura do esporte prevalecerá: a superação dos limites. Na crônica esportiva, talvez o

maior destaque da alteridade físico-motora tenha sido Garrincha. Por ter as pernas

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levemente tortas, suas chances de obter sucesso no futebol eram pequenas, mas toda a

construção de seu mito gira em torno da superação dessa deficiência. O que poderia o

excluir do esporte tornou-se sua condição de jogador de destaque ainda mais

espetacular.

Famosos pelos dribles e pela precisão nos cruzamentos na ponta direita, o

jogador foi uma das peças fundamentais para a conquista do Mundial de Futebol de

1958. A cobertura jornalística de destaque na época era do jornal Manchete Esportiva

cujo principal jornalista era Nelson Rodrigues que em sua coluna, À Sombra das

Chuteiras Imortais, destacou, durante todo o mundial, o feito de superação do monstro

Garrincha:

Eu imagino o espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas, que vinha subverter todas as concepções do futebol europeu. Como marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável? Na sua indignação impotente, o adversário olhava Garrincha, as pernas tortas de Garrincha e concluía: - “Isso não existe!” (RODRIGUES, 1993, p. 53)

Hiperbólico e com discurso futebolístico beirando o épico, Nelson Rodrigues

completa ainda que Garricha “foi driblando um, driblando outro e consta inclusive

que na sua penetração fantástica, driblou até as barbas de Rasputin” (RODRIGUES,

1993, p. 53). A União Soviética, à época, jogava o que se chamava de “futebol

científico”. Perder para um adversário como o Brasil não seria absurdo, uma vez que

a técnica e as qualidades individuais se sobressaiam, mas ser vítima de uma

apresentação de um jogador cuja característica mais notável era as suas pernas tortas,

fez daquela vitória uma superação individual de um jogador monstruoso, um atleta a

ser batido dali em diante naquela competição.

Começamos este artigo mostrando o exemplo Zico, jogador que, em sua

biografia, tem destaque o fato de ele ter tido uma disciplina de treinos bastante

focada. Seguimos com o exemplo do coletivo nas conquistas da seleção brasileira

masculina de vôlei para mostrar como o esforço individual e coletivo são marcas das

conquistas na vida daquele jogador e dessa equipe. Enquanto que, correndo por fora,

Garrincha, cuja construção midiática do seu personagem se baseia mais na ideia de

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talento do que de esforço e, por isso, a sua monstruosidade está calcada em sua

superação dos limites físicos. Como mostra Bartholo e Soares (2011) analisando a

biografia do jogador escrita por Castro (1995):

São inúmeras as passagens que, ao narrar Garrincha como irresponsável, retiram o estatuto de jogador e transformam-no em criança. O biógrafo enfatiza as constantes faltas aos treinamentos, seus casos amorosos extraconjugais e suas constantes bebedeiras com amigos de sua cidade natal. ‘Sexo era sua principal ginástica. A outra [ginástica], a oficial, ele não gostava de fazer. E esta não era uma grande preocupação do clube’ (p.75) (BARTHOLO; SOARES, 2011, p. 65)

Além de estabelecer uma construção romântica da trajetória do jogador,

Castro (1995) ainda o coloca como indivíduo cuja infância se deu à margem da

civilização. O seu contato com as matas e rios na infância na cidade de Pau Grande,

no Rio de Janeiro. Castro constrói uma narrativa que aproxima o jovem Garrincha da

índole do “bom selvagem”, criando dessa forma uma alteridade: o jogador na infância

era o outro. “A civilização não era o elemento de Garrincha. A graça estava em

driblar, apenas driblar. Estava no futebol em estado selvagem e lúdico, que era como

os índios o jogariam, se soubessem” (CASTRO, 1995, p. 64).

Era preciso colonizá-lo, domesticá-lo, mas a construção da narrativa em torno

desse jogador mostra que ele se tornaria um monstro justamente por unir o talento à

superação, utilizando o lúdico como forma de se sobressair.

Considerações finais

Na mitologia grega, bem como na maior parte das narrativas monstruosas, o

monstro tem feições aterrorizante e tendem a gerar mais medo do que admiração. Os

centauros gregos eram dos poucos que eram envoltos de duas faces: uma boa e uma

má. Eram seres com o torso e cabeça humanos e o corpo de cavalo. Viviam nas

montanhas de Tessália e repartiam-se em duas famílias, os filhos de Íxion e Nefele,

que simbolizavam a força bruta, insensata e cega; e os filhos de Filira e Cronos,

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dentre os quais o mais célebre era Quíron, que representavam o contrário, a força

aliada à bondade, a serviço dos bons combates.

Ao contrário da monstruosidade que servia para taxar o diferente como o fora

do normal, a monstruosidade no esporte, seja ela em decorrência de um esforço,

simbólica – no caso das “equipes imbatíveis”– ou de superação físico-motora, é

passível de uma identificação, um afeto. O objetivo desse artigo foi mostrar, por meio

das três vertentes analíticas, que as questões de gosto e paixão no esporte são capazes

de subverter a visão sobre os corpos monstruosos em decorrência da prática esportiva

ou fruto de deficiências, mesmo no caso do Brasil, um país cujo culto ao corpo é uma

matriz cultural que ajuda a definir nossa cultura.

REFERÊNCIAS

BARTHOLO, Tiago Lisboa; SOARES, Antonio Jorge. Mané Garrincha como síntese da identidade do futebol Brasileiro. In: HELAL, Ronaldo. LOVISOLO, Hugo. SOARES, Antonio Jorge (Orgs). Futebol, jornalismo e ciências sociais: interações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.

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VI Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação – UERJ | UFF | UFRJ | PUC-RIO | Fiocruz

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 23 a 25 de outubro de 2013.

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