A Estrutura Simbólica do Monumento de Mafra: entre Heliópolis e o número 666

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A ESTRUTURA SIMBÓLICA DO MONUMENTO DE MAFRA Entre Heliópolis e o número 666 Manuel J. Gandra Resumo O Monumento de Mafra é uma réplica de Heliópolis, a Cidade do Sol. Com efeito, a planta do Real Edifício configura, com base no respectivo módulo regulador ou cânone, o quadrado mágico do Sol. O referido quadrado comporta os primeiros 36 números dispostos segundo uma grelha de 6 x 6, de molde que o valor linear, na horizontal, vertical ou diagonal, seja 111 e o valor global 666, também correspondente ao número total de compartimentos ou casas da obra emblemática do Magnânimo. Este estudo intenta ainda evidenciar os nexos tópicos e semânticos entre o Monumento de Mafra, a Pedra de Mistério da ermida de São Julião (Carvoeira) e o Caminho das Almas, constituído por vários cruzeiros com quadrados mágicos e labirintos de letras inspirados numa tradição hermética de origem helenística e neo-pitagórica, que une esse local, sede da “corte” de Mateus Álvares, o falso Dom Sebastião da Ericeira, ao cemitério de Nossa Senhora do Ó. 9 __________________ * Licenciado em Filosofia (Faculdade de Letras – Universidade Clássica de Lisboa). Investigador. Docente no IADE. Responsável pelo Centro de Documentação e Informação de História Local do Concelho de Mafra (Câmara Municipal de Mafra). Director do Centro Ernesto Soares de Iconografia e Simbólica [www.cesdies.net]. Um dos subscritores do movimento Monumento de Mafra Virtual [www.monumentomafravirtual.net.]

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A ESTRUTURA SIMBÓLICA DO MONUMENTO DE MAFRAEntre Heliópolis e o número 666

Manuel J. Gandra

ResumoO Monumento de Mafra é uma réplica de Heliópolis, a Cidade do Sol. Comefeito, a planta do Real Edifício configura, com base no respectivo móduloregulador ou cânone, o quadrado mágico do Sol. O referido quadradocomporta os primeiros 36 números dispostos segundo uma grelha de 6 x6, de molde que o valor linear, na horizontal, vertical ou diagonal, seja 111e o valor global 666, também correspondente ao número total decompartimentos ou casas da obra emblemática do Magnânimo. Esteestudo intenta ainda evidenciar os nexos tópicos e semânticos entre oMonumento de Mafra, a Pedra de Mistério da ermida de São Julião(Carvoeira) e o Caminho das Almas, constituído por vários cruzeiros comquadrados mágicos e labirintos de letras inspirados numa tradiçãohermética de origem helenística e neo-pitagórica, que une esse local, sededa “corte” de Mateus Álvares, o falso Dom Sebastião da Ericeira, aocemitério de Nossa Senhora do Ó.

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__________________* Licenciado em Filosofia (Faculdade de Letras – Universidade Clássica de Lisboa).Investigador. Docente no IADE. Responsável pelo Centro de Documentação e Informaçãode História Local do Concelho de Mafra (Câmara Municipal de Mafra). Director do CentroErnesto Soares de Iconografia e Simbólica [www.cesdies.net]. Um dos subscritores domovimento Monumento de Mafra Virtual [www.monumentomafravirtual.net.]

E eu declaro a todos os que ouvem as palavras da profecia deste livro: “se alguém lheacrescentar alguma coisa, Deus fará vir sobre ele os flagelos descritos neste livro; e sealguém tirar alguma palavra do livro desta profecia, Deus tirar-lhe-á a sua parte da Árvoreda Vida e da Cidade Santa descrita neste livro.

APOCALIPSE, XXII, 18-19

Deixou de gerar controvérsia a assunção, até há poucos anospolémica, de que o Monumento de Mafra teve Heliopolis, a Cidade do Sol,por modelo. Dessa constatação decorre, porém, uma consequência já nãosusceptível de um consenso tão alargado: a adesão a um tal paradigmaimplica a adopção de todas as respectivas qualidades intrínsecas, de entreas quais sobressai uma de natureza aritmológica, que se consubstancia nonúmero triplo 666, cuja carga pejorativa, de resto, contestada por distintoshermeneutas da Kabbalah hebraica – segundo cuja doutrina simplesmentemanifesta Sorath, o Espírito do Sol –, advém da circunstância deser a expressão aritmosófica da palavra grega (língua adoptada pelovidente de Patmos) ATTEIV, a Besta que “subiu da terra”, descrita noApocalipse.

Visando esclarecer, na medida do possível, a questão, enunciarei,sucintamente, algumas das suas facetas mais notáveis.

De facto, o Monumento de Mafra é o exemplo vivo de um peculiarmodo de conceber e dar testemunho da tradição milenarista e escatoló-gica nacional. Explicitado com irrepreensível rigor iconográfico, osurpreendente programa iconológico definido por D. João V é tudomenos óbvio para o observador, invariavelmente impreparado (outrasvezes despreparado).

Por ser a Casa de Deus, o espaço de um templo é expressamenteconcebido para propiciar o contacto da humanidade com a divindadetranscendente, mas também com a imanente, manifestando, como tal, umcomplexo universo de referências cosmológicas, ideológicas e de fé,encarnadas por símbolos e liturgias (que não deixam de ser símbolos). Alegibilidade de uns e de outras será tanto mais efectiva quanto maisproficiente for o observador no concomitante conhecimento dos dogmase sistemas de ideias subjacentes às formas (geométricas, aritmológicas,etc.), bem como no controle e capacidade de direccionar para elas a suaintuição (educada pela oração mental, decorrente dos exercícios espiri-tuais propostos por todos os credos religiosos, sem excepção).

Se uma tal empresa é complexa quando se trata de abordar asimbólica de um templo, muito mais problemática se revelará quando,

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como sucede no caso vertente, o mesmo santuário é simultaneamente des-tinado a Deus e reivindicado pelo Rei para sua habitação 1.

Uma das repercussões de tal ideário no Monumento de Mafra éenfatizada pela reiterada alusão à divisão duodecimal, cuja importânciadoutrinal foi sublinhada por Lucas (VI, 13-17) e Mateus (X, 2) 2,consubstanciada nos 12 pórticos do edifício, nos 12 Apóstolos do Cordeiro,presentes na Galilé da Basílica, ou nas 12 x 12 [144 = Santa Jerusalém]moedas lançadas pelo esmoler do Magnânimo sobre a pedra fundamental.Porém, a repercussão da numerologia sagrada no Monumento de Mafranão se esgota, tão só, neste valor. Outro número recorrente, tradicional-mente associado ao eschaton nacional, merece também referência. Trata-sedo número 17, sob esta forma, da de algum dos seus múltiplos (34, 51, etc.),ou ainda sob a do seu valor secreto, 153, que exprime a soma dos valoresdos nomes dos Apóstolos, fundamento da Cidade Santa (i. e., 1530), segun-do Mateus (9 x 170 [= Nova Jerusalém]) e Lucas (10 x 153 [= Os Espirituais]).

Convirá então recordar, meramente a título de exemplo:

1. o lançamento da primeira pedra do Monumento de Mafra teve lugar nodia 17 de Novembro de 1717; 2. a Basílica (Casa ou Tabernáculo do Rei, que encarna a divindadecreditada ao Sol!) conta com 3 + 7 + 7 = 17 candelabros, ou Luzes diantedo Trono, nas três capelas principais, circunstância naturalmente evoca-dora da Presença do Todo Poderoso (Shaddai), bem como da teofania deMetraton, Príncipe do Mundo e princípio activo da Shekinah (a presençafeminina existente em Deus, que paira sobre a décima séfira, Malkhuth [=Reino], de todos os cabalistas, cristãos incluídos!). A soma de 3 + 7 + 7 éequivalente a 3 + 14 ou ainda a 3,14, i. e., ∏ (Pi), número irracional, porintermédio do qual se passa do esquadro (Terra) ao compasso (Céu), i. e.,do Pólo Terreno (Metraton —314— O Príncipe do Mundo — D. João V)para o Pólo Celeste da Criação (Schaddai — 314);

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1 Com efeito, etimologicamente entendida, uma basílica (termo derivado do grego, basileus,Rei) é a Habitação Real por excelência, primitivamente destinada a uma mera utilizaçãoprofana. Em Atenas, era numa basílica que o Arconte-Rei administrava a justiça. Em Roma,as basílicas serviam de tribunais e também de bazares e mercados. Só a partir do séc. IVcomeçariam a ser transformadas em templos. Isto porque os Bispos de Roma, já sobprotecção imperial, ao escolherem os mais notáveis de entre os edifícios públicos, para osadaptarem ao culto cristão, preferiram as basílicas, não só porque eram espaçosas, masporque possuíam planta vagamente cruciforme.2 Havia de ser retomada pelo Doutor Seráfico, São Tomás de Aquino, o qual fariacorresponder os 12 Apóstolos às 12 contemplações da Fé ou artigos do Símbolo, às 12 Tribos,às 12 pedras do peitoral do Sumo-Sacerdote, aos 12 Anjos, aos 12 Patriarcas e às 12 Portasda Jerusalém Celeste.

3. cada uma das pilastras do corpo da Basílica, sustenta uma cornucópiacom três velas e uma vez que as pilastras são 34 (17 do lado Norte + 17 dolado Sul) outrora, quando se rezavam matinas solenes, eram acesas 102velas (i. e., 34 x 3 velas, ou 17 x 6, ou ainda 17 x 3 x 2) 3;4. as três ruas, que desenham um tridente diante da Basílica, formamentre si ângulos de 17º;5. primitivamente, cada carrilhão (um na torre do Norte, outro na torre doSul) contava com 51 sinos (3 x 17);6. o Monumento de Mafra possui 17 pára-raios.

Todavia, o mais explícito argumento, com vista à dissipação dashesitações que, porventura, possam subsistir quanto à índole solar doedifício, reside num elemento patente a todos quantos rumam à Basílica,etimologicamente a Casa do Rei.

Com efeito, o Carrocel, desenhado no empedrado do patim do Adroque antecede o templo, constitui um dos mais evidentes sinais do quevenho afirmando. Frei João de Santa Ana descreve-o nos seguintes termos:

No meio da grande praça, que fica ao poente do edifício, e para onde olhao principal frontispício dele, principia a formar-se o Adro por uma rampa cercadade 24 pilares de mármore branco formando um semicírculo, cuja principalentrada se acha designada na planta pelo n. 1. O xadrez de toda a rampa éformando de seixos brancos, e pretos com várias cintas de pedra entre eles tambémem semicírculos. Desde a entrada principal até ao primeiro patim tem de cadalado uma ordem de pedra mais larga cortada com cavidades para que nãoescorregue quem passar por elas, porque se vão elevando à proporção que a rampase eleva. Tem esta de comprimento no meio até à entrada do patim, que se lhesegue 85 palmos e de largo de norte a sul junto ao patim 125. O n. 2 na plantadesigna o primeiro patim do Adro o qual está cercado até aos pilares da rampacom dois lanços de degraus, de sete cada lanço e um patamar entre os dois lanços,os quais também cercam o segundo patim, como logo se dirá. Tem o primeiropatim de norte a sul 125 palmos; e contando também o espaço ocupado pelosdegraus, que estão de um e outro lado, tem 180 palmos. Todo o seu pavimento éum xadrez de seixos brancos e pretos. Tem de largo de nascente a poente 70palmos. Deste se sobem sete degraus para o segundo patim designado na plantapelo n. 3 no qual estão as colunas entre os cinco pórticos do Átrio. Tem este patimde comprimento de norte a sul 25 palmos e de largo desde os degraus até à parededos pórticos 39. O seu pavimento é de mármores brancos, azuis e encarnados ecomo fica mais alto que o primeiro patim, por isso é cercado de 21 degraus emtrês lanços de sete cada um. [...]. Segue-se do exposto, que todo o Adro temde comprimento desde o princípio da rampa até à parede dos pórticos,

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3 Frei João de Santa Ana, Real Edifício visto por fora e por dentro, 1828, fl. 270.

A pesca miraculosa dos 153 peixes no Lago TiberíadesEste episódio, narrado pelo discípulo amado, foi interpretado por muitos hermeneutas, acomeçar pela patrística grega, como aquele que encerra a chave da constituição da igreja deCristo. Note-se que quer o número 153 como o 276 (Actas, XXVII, 37: número de almas salvas numnaufrágio) acham-se presentes no Novo Testamento, associados ao tema “saído do mar”. 34(2 x 17) = está à distância de uma unidade e meia de ser um múltiplo perfeito de 276 (45 x34). Acresce ainda que as palavras gregas para A Rede (To diktuon) e Peixes (Ichtus) equivalemcada uma ao número 1224, correspondendo os 153 peixes pescados a 1/8 desse valor. Odiagrama obtém-se dando expressão geométrica ao cânone exposto pelo Evangelista João(XXI, 3-11):B. Sete Apóstolos encontram-se nas margens do Lago Tiberíades onde vão pescar; SimãoPedro entra numa embarcação e os restantes seguem-no, embarcando também (João, XXI, 3).C. Sem ser reconhecido, Jesus surge na praia ao raiar do dia, perguntando-lhes se têm algopara comer, ao que eles respondem negativamente, circunstância que origina que diga:“Lançai a rede para a banda direita do barco e achareis”; lançando-a, já não a puderam tirar,“pela multidão dos peixes”. O arco deste círculo contém a vesica piscis, isto é, O Peixe —Cristo, o qual, dividido em 16 partes iguais — dezasseis pequenos peixes, perfaz o total de153 peixes pescados (i. e., 1 + todos os números até 16), (idem, 4-6). A. Reconhecendo Jesus, Pedro cinge-se “com a túnica [porque estava nú]” e lança-se à águapara regressar mais depressa à praia. Os restantes regressam a terra no barco (distante dapraia, “uns duzentos côvados”), trazendo a rede cheia de peixes, “e sendo tantos não serompeu a rede” (idem, 7-11).Se se orientar o diagrama de molde a colocar a rede na base, ele traduzirá a cosmologiaexposta no Timeu (50a-53c) de Platão: a rede na água representando o mundo sensível emconstante mutação; a esfera superior, o mundo inteligível, sede de todas as leis universais,arquétipos da manifestação; a esfera intermédia é a da humanidade que participa de ambosos mundos sensível e inteligível, espiritual e material, eterno e efémero. Numa perspectiva cristã, os três mundos correspondem às três Pessoas ou Hipóstases, numesquema idêntico à representação de uma Trindade trono de graça: A. Pai; B. Espírito Santo (Logos ou mediador entre Deus e o homem); C. Filho.O diagrama aplica-se na perfeição ao Monumento de Mafra, mais uma vez tornandoevidente a ideia que presidiu à sua edificação: fazer dele uma réplica da Jerusalém Celeste,a nova igreja destinada a imperar sob o Novo Céu profetizado no Apocalipse.

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que dão entrada para o Átrio, 200 palmos e de largo 180 contando os degraus,que o cercam de um e outro lado 4.

Efectivamente, patente a todos quantos rumam à Basílica (e sãocompelidos a caminhar sobre ele), o Carrocel expõe o seu enigma aospassantes de cujo discernimento e argúcia, não houvessem sidoprogressivamente deseducados, se esperaria a decifração.

De autêntico cosmograma se trata, subtilmente transposto para aVila de Mafra e, mutatis mutandis, para Portugal inteiro, expressando ainiludível vontade de geometrizar tão característica do Barroco 5.

O Sol físico e da Monarquia, como módulo regulador do Monumento de MafraCerca de um século antes da consagração dessa doutrina pela Igreja (1820), O Sol daMonarquia portuguesa rege, a partir da varanda central da Sala da Benção, um sistemaheliocêntrico. As quatro faces do quadrângulo “olham em linha recta para os quatro ventosprincipais e os quatro ângulos dele olham para os quatro intermédios” (Frei João de Santana).O grupo de sete degraus (6 + patamar = Sabat de descanso) implica a semana da Criação.A rampa semicircular contém as esferas ou órbitas (coroas circulares brancas) dos 6 restantesastros então considerados (7, contando com o Sol), separadas por coroas circulares pretas,indicadoras do vazio existente entre aquelas. Na coroa circular branca periférica erguem-se24 penitentes, simetricamente divididos por um caminho mediano, em dois grupos de 12, narazão das vinte e quatro horas do dia, separadas pelo meio-dia ou meridiana sem sombra.O quadrado, cujo lado corresponde à distância entre o ponto central do Astro Rei e a linhaexterna da coroa circular periférica, é o módulo regulador de todo o Monumento de Mafra.

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4 Real edifício Mafrense visto por fora e por dentro […], fl. 49-50. Sucede-lhe um labirinto mar-móreo, estabelecendo a fronteira entre o profano (adro) e a antecâmara do sagrado (galilé).5 O heliocentrismo, como paradigma da vera monarquia, iniludível neste conjunto, apesarde heterodoxo, tivera já no quinhentista frei Heitor Pinto um lídimo expositor: “[…] o bompríncipe e prelado é um Sol comum a todos, que vigia sobre seu povo com muitos olhos,estando sempre no meio como o Sol, que está no meio dos sete planetas”. Cf. Imagem da VidaCristã, Diálogo da Justiça, cap. V, v. 1, Lisboa, 1940, p. 173.

Dois corpos tangentes, um quadrangular, outro semicircular, narazão, respectivamente, do mundo físico (espaço com seus quatrohorizontes) e do mundo espiritual (tempo, ritmado pelo movimentocircular dos astros), fundem-se para se homogeneizar. No centro, o AstroRei da Visão de Ezequiel (clone e duplicado do Rei Astro, Dom João V)expede os seus raios em todas as direcções, evocando a imagem de umaroda e desenhando imensa máquina de que o monarca é, concomitante-mente, o motor e o eixo, centro imóvel e módulo regulador. Em torno a sievoluem mais ou menos rapidamente, conforme a proximidade ou afas-tamento, os grandes e os pequenos, numa espécie de fototropismo face aoCorpo glorioso do Sol monárquico, o qual, à semelhança de um relógio,ordenada e cerimonialmente os rege, enquanto membros do seu corposimbólico.

No próprio dia da aclamação de Dom João V, Manuel Lopes deOliveira definia o papel do Magnânimo nos seguintes termos: “Diatambém dos em que o Sol lá dessas altas esferas começa a voltar para estenosso hemisfério seu rosto e seus benéficos raios. E assim El-Rei nossoSenhor, esplendíssimo Sol Oriente da nossa Lusitânia voltando para estesseus vassalos os raios da sua beneficência, queira aceitar os nossosobsequiosos rendimentos” 6.

“Ao Rei o estatuto de Sol e aos conselheiros o estatuto de Lua”Emblema XXXIII (Non in una sede morantur), incluído por Frei João dos Prazeres emO Princípe dos Patriarcas (Lisboa, 1690).

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6 Cf. Número Vocal, exemplar católico, Lisboa, 1702, p. 407.

Tridente gerado pelo módulo regulador do Monumento de MafraO módulo regulador do Monumento de Mafra gera um Tridente (à imagem do que ocorreno Palácio de Versalhes): as duas Vias laterais, perfeitamente simétricas (um ângulo de 17ºsepara-as da central), constituem a extensão natural dos torreões, ditos do Rei e da Rainha(prefiguração das Ruas do Ouro e da Prata, da Baixa pombalina), do mesmo modo que ocaminho meridiano do Sol físico e da Monarquia (que prolonga a Varanda da Bênção namítica Avenida ou Estrada do Sol que se tem admitido haver sido planeada por D. João V)prefigura a Rua Augusta, via triunfal dos heróis (apolíneos laureados).

Ora, uma vez que o Sol da monarquia lusa passa por ser o próprioPai da Pátria e a medida de todas as coisas públicas, não poderá oMonumento de Mafra tê-lo tido por bitola também?

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Basílica - MandalaDemonstração da anatomia cúbica da Basílica de Mafra.

Monumento - CuboUma lenda afirma que o Monumento de Mafra possui quatro pisos enterrados no subsolo.Tal não se verifica, de facto, mas a tradição contribui para demonstrar na prática aconfiguração cúbica do edifício, a partir da sua fachada poente (a única sempre adoptadapara o identificar).

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Traçados reguladores da montea (alçado) da Basílica de MafraO duplo quadrado (duplo módulo regulador do Monumento de Mafra), rectângulo Phi (ø)ou Secção Áurea, presente no traçado do frontispício da Basílica, ocorre em alguns dos maisfamosos edifícios sagrados do mundo, entre os quais a Câmara do Rei da Grande Pirâmidede Quéops e o Templo de Salomão. Isto porque, para os mestres construtores tradicionais, asintonia com a matriz universal só será efectiva na condição de o templo haver sidoadequadamente edificado, de acordo com um sistema matemático preciso (aritmológico egeométrico). Todavia, a justa medida do templo não se confina apenas à arquitectura. Ageometria da imaginária há-de, igualmente, ser sujeita a estrito controlo matemático ouiconométrico, porquanto só uma imagem bem delineada constituirá um convite para que adivindade a habite. Os cânones de proporções serão ainda complementados por umcuidadoso desenho das expressões, posturas, trajes e atributos. Todos estes requisitos foramtidos em conta na estatuária encomendada para a Basílica de Mafra. Aliás, em Carta, datadade 14 de Fevereiro de 1731, remetida para Roma, José Correia de Abreu sublinharia que ocânone da estatuária teria de equivaler “à décima parte do palmo por que está feita a RealObra de Mafra”. A disposição da estatuária também ela seria meticulosamente ponderada.No frontispício, por exemplo, as duas imagens de São Domingos e de Santa Clara, àesquerda do observador, ostentando luzes visíveis (archote, livro e custódia) representam o mundo sensível, enquanto, à direita, os dois expoentes taumatúrgicos da luz invisível, SãoFrancisco e Santa Isabel da Hungria, tornam manifesto o mundo inteligível, supra-sensívelou da intuição. Na Varanda da Benção, destinada às suas Aparições, competiria ao Reiproceder à harmonização dessas duas categorias de humanidade, à Luz Augusta da suaMajestade Pia e Sacra (reconduzindo-as à unidade, simbolizada pela Secção Áurea).Sucessivos rebatimentos do quadrado que delimita a fachada da Basílica (= móduloregulador do Monumento de Mafra), originam um rectângulo V 5 (paraíso na terra), o qual

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define exactamente o local de contacto (a base do lanternim) do céu (lanternim em cujodossel se manifesta a pomba do Espírito Santo) com a terra (templo = paraíso na terra).

Traçados reguladores do alçado dos corpos laterais da fachada poente e dos torreões doMonumento de Mafra

O módulo regulador do Monumento de Mafra constitui a chave da medida e da proporçãoobtidas. Convém sublinhar que a planta dos torreões replica exactamente o móduloregulador.

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A comprovação por intermédio do dia ton grammon (com o auxíliode linhas ou construções geométricas) vem corroborar a hipótese expostaacima. Com efeito, o raio da circunferência com centro no Sol, em cujoâmbito se inscreve a máxima extensão do sistema heliocêntrico doCarrocel, é uma medida recorrente no edifício e, se aplicada à sua plantageral, configura um quadrado mágico de 6 x 6 (denominado do Sol), cujovalor total equivale ao famoso número solar 666, citado no Apocalipse etambém correspondente ao número total de compartimentos ou divisõesdo Real Edifício, consoante a computação proposta por Frei João deSanta Ana!

37 x 3 (1+1+1) = 111 (Inteligência do Sol)37 x 6 (2+2+2) = 22237 x 9 (3+3+3) = 33337 x 12 (4+4+4) = 44437 x 15 (5+5+5) = 55537 x 18 (6+6+6) = 666 (Besta)37 x 21 (7+7+7) = 77737 x 24 (8+8+8) = 888 (Jesus)37 x 27 (9+9+9) = 999[…]37 x 40 = 1480 (Cristo)

Aritmosofia do quadrado mágico do Sol (6 x 6)O quadrado mágico 6 x 6 foi um dos mais importantes símbolos adoptados para figurar oSol em virtude da presença do número perfeito 6, consoante Santo Agostinho no-lo assinalaem A Cidade de Deus (livro XI, cap. 30), decerto influenciado pelo pitagorismo neo-platónico:o cubo possui 6 faces e a sua duplicação por números irracionais, que o oráculo ordenou aossacerdotes délios, havia de converter-se num dos problemas predilectos dos construtores daAntiguidade e do Renascimento; os números 1 (sexto), 2 (terço) e 3 (metade) quandomultiplicados e somados igualam 6; os numerais desde 1 até 36 inscritos no quadradomágico do Sol igualam 111, linearmente (na horizontal, na vertical, na diagonal), e 666,globalmente. O número primo 37, sagrado segundo Pitágoras (no triângulo rectângulo, delado 3, 4, 5, o ângulo superior mede 37º) e Platão, tem, entre outras, a particular propriedadede produzir múltiplos com dígitos repetidos (números triplos 111, 222, 333, etc.), aos quaissempre a aritmosofia atribuíu significado solar. Além disso 666 e 888 são duas das ratiosubjacentes à formação da escala musical e ao princípio da harmonia, uma das hipóstases doLogos (Criador).

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MEDALHAS-AMULETO DO MUSEU DE BERLIM

Deus do sol, em pé, sobre um leão, indicando o domicílio do Sol no signo do Leão. No verso, a inscrição Nachyel, sinónima de “Inteligência do Sol”, juntamente com oquadrado mágico respectivo: 36 quadrículas com os numerais de 1 a 36.

Selo solar em honra da estrela Basilisco, diminutivo do grego basileus (rei), sinónimo dolatim regulus (única estrela de primeira magnitude da constelação do Leão). O Sol e a Luaacham-se representados numa das faces, conjuntos com a estrela Regulus, figurando umaspecto astral que ocorreu no dia 19 de Agosto de 1705. O verso ostenta o quadrado mágicodo Sol, inscrito num hexágono, expressão do número perfeito 6.

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A planta do Monumento de Mafra como quadrado mágico de 6 x 6 módulos reguladoresOs quadrados mágicos são instrumentos capazes de captar e virtualmente mobilizar umpoder, circunscrevendo-o na representação do número daquele que é o detentor de talpoder. São guarnecidos de números inteiros positivos, diferentes, de modo que a soma dosnúmeros que figuram sobre uma mesma linha (horizontal, vertical ou diagonal) seja semprea mesma. A planta do Monumento de Mafra é expressão do quadrado mágico do Sol (6 x 6).

De resto, para convenientemente descodificar o Monumento deMafra torna-se indispensável recorrer reiteradas vezes ao livro atribuídoao vidente de Patmos, e, designadamente, aos enunciados consagrados àNova ou Celeste Jerusalém pelos exegetas, significativo número dos quaispropôs a reconstituição dela à imagem do seu protótipo, o Templo deSalomão.

A essa mesma luz, não posso deixar de considerar sintomática aomnipresente insistência da parenética coeva do Magnânimo, masigualmente dos panegiristas de serviço, na atribuição da Basílica de Mafraao Salomão da Lei da Graça (Dom João V) 7, para tabernáculo de Santo

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7 Ver do subscritor: A ideia do Monumento de Mafra: Arquitectura e Hermetismo, in BoletimCultural ’94, Mafra, 1995, quadro 2, p. 31.

António, por antonomásia chamado Arca do Testamento, que o mesmo édizer Arca da Aliança.

Nesse conspecto, o esplendor litúrgico que revestiram oscerimoniais, quer do lançamento da pedra fundamental do Monumentode Mafra, em 17 de Novembro de 1717, quer da sagração da sua Basílica,em 22 de Outubro de 1730, torna-se argumento decisivo.

Tabela iconografando as alfaias litúrgicas indispensáveis na celebração de uma Missa dePontifical (no interior da Basílica de Mafra, sobre o pórtico axial)

Lançamento da Pedra Fundamental

João V mandou armar a Basílica em madeira pintada, de acordocom o projecto ao tempo aprovado. De abóbada, uma vez que a erguidaem madeira fora destruída por uma tempestade que se abateu sobreMafra na madrugada de 14 para 15 de Novembro, serviram velas denavio forradas interiormente com panos de brim, cobertos de tafetásencarnados e amarelos. Razes pendiam das paredes. As portas e janelasforam guarnecidas com cortinas de damasco, de franjas e galõesdourados. Mais tafetás vermelhos decoravam a fachada.

Na capela-mor erguiam-se dois sitiais de tela branca. O doEvangelho, sobre seis degraus e com dossel, destinava-se ao rei; o daEpístola, sobre três e sem dossel, foi reservado para o Patriarca DomTomás de Almeida, achando-se ladeado por credências cobertas desumptuosos paramentos, destinados à Missa de Pontifical (aquela que,

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por definição, só o Sumo Pontífice pode celebrar ou presidir!), e deopulentas peças de prata. Noutra credência estavam a pedra que devia serbenzida, de jaspe (como preconiza o texto do Apocalipse para fundamentoda Nova Jerusalém), marcada com cruzes, medindo 55 cm de com-primento, e a portadora da inscrição comemorativa, além de uma urna demármore, na qual ficariam encerrados: um cofre de prata dourada com ospergaminhos do voto régio e do benzimento da primeira pedra e da cruzerecta na igreja, dois frascos com os santos óleos, duas caixas de pratadourada com o Agnus Dei de Inocêncio XI e o de Clemente XI e dozemedalhas (quatro de ouro, quatro de prata e quatro de bronze).

Medalhas de autor desconhecido, lançadas nos Alicerces, junto com aPedra Fundamental, do Convento de Santo António

Não há notícia de existir exemplar algum destas medalhas (em qualquer dasvariantes de ouro, prata ou cobre), expressamente cunhadas para comemorar olançamento da primeira pedra do Monumento de Mafra, em 17 de Novembrode 1717. Depois de bentas, as doze medalhas foram colocadas em duas caixas de ouroredondas acompanhadas por duas lâminas do mesmo metal, uma com o AgnusDei de Inocêncio XI e outra com o Agnus Dei do Pontífice reinante. Essas duascaixas foram seguidamente depositadas nos alicerces da capela-mor, da partedo Evangelho, juntamente com uma arca de ouro contendo a escritura real edois vidrinhos de óleo santo.

1.Ø (?); cunhada nas variantes de ouro, prata e cobreA - “Os retratos de El-Rei e Rainha com uma letra (na orla), que dizia:JOANNES V. PORTUGALLIAE ET ALGABRIORUM REX, ET MARIANA DEAUSTRIA CONJUX”.R - “A planta do Convento com a seguinte letra: D. ANTONIO LUSITANO.MAFRA 1717”.

2.Ø (?); cunhada nas variantes de ouro, prata e cobreA - “O insigne português Santo António em uma nuvem sobre o altar e El-Reide joelhos diante dele com as mãos levantadas e a seguinte letra (na orla): INCOELIS REGNAT, INVOCATUR IN PATRIA”.R - “A frontaria do templo com duas torres e zimbório com letra, que dizia:dIVO ANTONIO ULYSSIPONENSI DICATUM. No pórtico do templo aseguinte letra: JOANNES V. PORTUGALLIAE REX MANDAVIT. MAFRAE1717”.A descrição do Reverso, dada por Frei Cláudio da Conceição, acrescenta algunsdetalhes da maior importância: “O sumptuoso templo, que se lhe consagrava,

mostrando na perspectiva duas altas torres nas ilhargas, no meio o zimbório,as portas do templo para o poente e o Convento da parte esquerda, por assimestar nesse tempo delineado, que depois [...] se variou de planta [...]”. Nela sedivisam os contornos específicos do único projecto (dos quatro elaborados, oultimo dos quais em 1728) que, com propriedade, se pode atribuir a Ludovice.

3.Ø (?); cunhada nas variantes de ouro, prata e cobreA - “O retrato do Pontífice reinante Clemente XI com uma letra (na orla), quedizia: CLEMENS UNDECIMUS PONTIFEX MAXIMUS”.R - “As armas do Pontífice com esta letra: PONTIFICATUS ANNO 17”.

4.Ø (?); cunhada nas variantes de ouro, prata e cobreA - “O retrato do Ilustríssimo e Reverendíssimo Patriarca com a seguinte letra[na orla]: THOMAS I. PATRIARCHA ULYSSIPONENSIS OCCIDENTALIS”.R - “As suas armas com esta letra [no exergo]: SANCTI ANTONII ULYSSIPO-NENSIS TEMPLUM À JOANNE V. PORTUGALLIAE REGE DESIGNATUMCONSTRUCTUM LAPIDEM IN SIGNUM POSUIT. ANNO DNIM.DCC.XVII”.

Para o monarca havia, junto à coluna do cruzeiro, uma tribuna emforma de leito, com balaústres de ébano e cortinas de brocado vermelho.Juncos e espadanas cobriam o chão, o qual se achava atapetado comalcatifas verdes.

Às 8.30 horas da manhã do dia solene chegou o Rei ao terreiro dotemplo, seguido pela corte, todos a cavalo, cuja pompa dos jaezes seequiparava à das galas dos cavaleiros. Acompanhavam-no: lateralmente areal guarda alemã e atrás a cavalaria com seus clarins. Logo se organizoua procissão para entrar na igreja. À frente marchava a comunidade dosfrades arrábidos; depois, sucessivamente, o clero local, os músicos,capelães de sobrepelizes, acólitos patriarcais, subdiáconos, capelães decapa magna com capelos de arminho e pluviais, beneficiados, cónegos depluviais de tela branca e mitras bordadas com pedras preciosas (cada umprecedido pelos seus criados nobres e seguido por caudatários desobrepelizes sobre os hábitos patriarcais), o Patriarca vestido com peçasriquíssimas e coberto com mitra de pedras, os protonotários patriarcaiscom roquetes e capas magnas, o Rei, a corte, o juiz e o corregedor, osvereadores e, por fim, o povo, à volta de três mil pessoas.

Feita a benção, cujo cerimonia D. João V acompanhou com o ritualnas mãos, dirigiu-se a procissão para o local em que a pedra devia sercolocada, junto do altar-mor, da qual foi portador o Patriarca. Depostas,essa e a da inscrição, e também a suprareferida urna de mármore, na cova

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aberta para o efeito lançou o geral de São Bernardo, esmoler mor, dozemoedas de cada espécie de dinheiro corrente no reino (12 x 12) de ouro,prata e cobre.

Este acto concluído, regressaram todos aos respectivos lugares naigreja, na mesma forma processional, para assistirem às restantes funçõese à missa, da qual disse D. Gabriel Chimbali, mestre de cerimónias daPatriarcal, que nunca vira, nem sequer em Roma, tanta magnificência emparamentos e cópia de sacerdotes, nem pomposo rito, nas missaspontificais. Só em lugar de cardeais eram cónegos os celebrantes.

Acabada, finalmente, a função, quis o monarca dar uma públicaprova do seu empenhamento na obra e da sua devoção. Dom João Vpegou numa pedra de palmo e meio, que estava num cesto dourado, e, -carregando com ela, foi depositá-la junto da que fora benzida. Os fidalgosque o secundavam tomaram outras pedras iguais, assentes em cestosprateados e acompanharam o soberano, levando o visconde de Ponte deLima a sua à cabeça.

Sagração da Basílica

No dia 18 de Outubro de 1730, chegaram a Mafra os cardeais daCunha e da Mota, os bispos de Leiria, Portalegre, Pará e Nanquim, emcoches de aparato, seguidos de farta criadagem e de muitas azémolascarregadas e cobertas com reposteiros bordados.

A 19 chegaram o Rei, o Príncipe do Brasil, Dom José, e o InfanteDom António, em coches sumptuosos, acompanhados pelos criados daCasa Real. A 20, entrou na vila o Patriarca, num coche riquíssimo, ao qualseguiam o de Estado e mais quatro com os seus criados.

No dia 21, de manhã, o deão da Sé Patriarcal, revestido de capa deasperges e com mitra encarnada, ante D. João V e a família real, realizoua benzedura dos paramentos e das peças litúrgicas, assim como dospainéis dos altares laterais. A seguir, benzeu o convento com todas assuas dependências: noviciado, refeitórios, dormitórios, celas, etc.

À tarde, na capela do Hospício do Espírito Santo (sito nologradouro da actual Quinta da Raposa), fizeram os arrábidos, com apresença do Rei e da corte, as vésperas da dedicação da Basílica, às quaisse seguiu uma procissão até à mesma; ao seu desfile assistiu o monarca ea família real da Varanda da Benção.

À noite, numa sala do palácio, armada em capela, sigilou oPatriarca as relíquias dos apóstolos e evangelistas que no dia seguintedevia colocar no altar-mor. Depois, cantaram-se as matinas dos Após-

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tolos, com a presença do Rei e da família real, que, de seguida foram ouviras do Hospício, cantadas desde a meia-noite até às três da madrugada. Amesma exacta sucessão de actos repetiu-se durante os oito dias seguintes.

No dia 22, o primeiro da sagração, as funções religiosascomeçaram às 7 horas da manhã, tendo concluído às 3 da madrugada.

No terreiro, cortado por uma rua toldada com panos de brim parapassar a procissão, postou-se em forma, às 5 horas da manhã, a tropa,composta de cavalaria e infantaria. Às 6 horas, ingressaram os frades noseu convento, onde já estava o Rei com os príncipes, os quais assistiram àmissa rezada na sala De Benedictione, depois da qual João V deu beija-mãoà corte por ser esse dia o seu natalício. Pelas 7 horas, chegaram a rainha,a princesa, os infantes Dom Pedro e Dom Francisco. Daí a meia horasurgiu a procissão, debaixo de cujo pálio ia o Patriarca com magníficopluvial branco e mitra recamada de pedras preciosas, seguido pelo Rei,pelas altezas e pelos fidalgos da corte, cobertos de galas custosas, à com-pita. Primeiro, o Patriarca deu beija-mão; depois, cantadas uma Antífona ea Ladainha de Todos os Santos, benzeu o sal e a água.

Enquanto fez a aspersão em si próprio, nas pessoas reais, noseclesiásticos e no povo, cantou-se a antífona Asperges Me.

Era a seguinte a disposição do vestíbulo, cujo pavimento estavaalcatifado: à esquerda, sobre quatro degraus, o trono patriarcal com cadeirae dossel de tela branca e o régio e das altezas com cadeiras e dossel de velu-do carmesim guarnecido de ouro. Defronte, encostados aos arcos, bancosde espaldares, cobertos de razes, para os cónegos e bancos rasos, cobertostambém de razes, para os beneficiados. Ao fundo, do lado meridional, a tri-buna da Rainha, da Princesa do Brasil e das suas damas. À direita, umacredência com várias peças: caldeirinha, hissope, aspersórios, jarros epratos, de prata dourada, e sal moído; sobre um escabelo um grande vasode prata, em concha, com água. Junto dos degraus da porta e sobre umacredência ficava o cerimonial e defronte, o faldistório.

Findo o sobredito acto, ordenou-se novamente a procissão,levando cada beneficiado um castiçal com vela acesa. Durante o rodeio daBasílica aspergiu o Patriarca as suas paredes com água benta. Chegado àporta nela bateu três vezes com o báculo dizendo: Attolite portas principesvestras... ao que o diácono, do interior, respondeu: Quis est iste Rex gloriae?Retorquiu o Patriarca: Dominus fortis et potens in praelio.

Outras duas circumambulações efectuou a procissão, batendo àporta o Patriarca. À terceira, porém, respondeu ele e todo o clero: Dominusvirtutum ipse est Rex Gloriae, dizendo depois em triplicado Aperite. Entãose abriu a porta. Antes do ingresso fez o Patriarca uma cruz com o báculoacompanhada da frase: Ecce crucis signum, fugiant fantasmata cuncta.

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Pela nave estavam distribuídos, a distâncias iguais e formandocruz, montículos de cinza, sobre os quais o Patriarca gravou com o báculo,os alfabetos grego e latino, com as letras recortadas em papelão.

Na capela-mor estavam dois tronos, um para o Rei e a Rainha, àesquerda, o outro para o Patriarca, à direita. Fronteiras, do lado daEpístola, ficavam duas grandes credencias, uma com incenso em grão emoído, e sal, em pratos de prata dourada, aspersórios, uma garrafa deprata com vinho branco, duas bandejas com cal e pó de pedra, outra vaziapara nela se fazer a argamassa, pratos de prata com o avental para opatriarca, toalhas para limpar o altar e três velas pequenas, uma taça deprata para a água benta, algodão para limpar os óleos das sagrações; aoutra com os castiçais do altar, turíbulos e navetas, caldeirinhas e hissopesde prata, tudo disposto segundo as rubricas do Pontifical Romano.

Chegado ao altar-mor o Patriarca benzeu a água, a cinza, o vinhoe o sal, descendo, depois, até à porta da Basílica na qual riscou duascruzes com o báculo. Voltando ao altar-mor, sete vezes o rodeou enquan-to cantava o Salmo Miserere e o aspergia com água benta. Passou depois arodear três vezes a Basílica, como fizera no exterior, aspergindo-lhe asparedes com a dita água. Aspergiu também o pavimento, em cruz, desdeo altar-mor até à porta.

Cantada a antífona Vidit Jacob, de novo aspergiu o chão e o ar,lançando a água na direcção das quatro partes do mundo. A seguir, pôs oavental e fez o cimento. [...]

Em todos estes oito dias os serviços começavam às 8 horas da manhãe acabavam às 3 da madrugada, com permanente assistência de D. João V,da família real e da corte, que tomavam as refeições nas tribunas da igreja.

Eram 7.30 horas, quando o Patriarca se retirou para descansar,porém, o rei continuou firme no seu posto. Àquela hora entraram no coroos frades para cantar Sexta e Noa, depois do que passaram ao Refeitórioseguidos pelas pessoas reais e pela corte. Aí a iluminação era feita portrinta candeeiros de latão de quatro lumes cada um. Antes de se sentaremcantaram a benção da mesa. Uma vez sentados, entoou o leitor o primeiroponto de leitura oportuna, depois do qual o provincial deu o sinal para seservir. Então, D. João V, o Príncipe Dom José e o Infante Dom António,depostos chapéus e espadins, começaram a servir os frades, conduzindoos pratos em tábuas redondas apropriadas. À ordem régia, para rápidodespacho do serviço, imitaram-nos os camaristas régios: os marqueses deCascais e do Alegrete, os condes de Assumar, de Aveiras, de São Miguele de Povolide.

Acabado o repasto, voltou a comunidade ao coro, cujos cadeiraistinham sido colocados durante esse intervalo. Neles também se sentaram

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as pessoas reais. E aí, em descanso, estiveram todos desde as 9 às 11 horas,tempo gasto por Frei Fernando da Soledade, ilustre cronista franciscanoda Província de Portugal, com o seu erudito sermão. Seguiram-se aomesmo as Vésperas da dedicação da Basílica e, depois, as Completas.À função, porém, ainda faltava o coroamento, que lhe foi dado pelasMatinas de São João Capristano, cantadas pela comunidade desde a meiahora às 3 da madrugada. Só então o rei e os seus familiares regressaramao palácio para dormir.

Todas estas cerimónias acompanhou atentamente D. João Vi porum Pontifical Romano, verificando se não faltava um gesto, uma palavra,etc.

Posto isto, formou-se novamente a procissão para ir buscar àcapela do palácio as relíquias lá depositadas. Assentes estas pelo Patriarcaem andor próprio, outra volta à igreja executou o préstito. Depois, todosa postos nos seus lugares, pronunciou o Patriarca uma prática acerca dasexcelências dos templos sagrados, lembrando ao Rei, como fundadordeste, a obrigação de o dotar a preceito para sua conservação e parasubsistência dos seus ministros, e lembrando aos frades arrábidos o deverde rogar a Deus pela saúde e pelo feliz aumento de sua Majestade. Talprática foi a meio interrompida pelo primeiro diácono com a leituraadequada de dois decretos do Concílio Tridentino, os quais proibiam, sobgraves penas, defraudar os bens eclesiásticos e ordenavam o pagamentodos dízimos à Igreja.

Fez-se, depois, o benzimento do altar-mor, acto de grandecomplexidade litúrgica: antífonas, salmos, unções de óleos santos,aspersões de água benta, incensações, etc. Sagrou, também, o Patriarca, ascruzes do altar-mor, do cruzeiro e da nave, e no meio do altar meteu umacaixa de prata dourada com as relíquias dos Apóstolos.

Eram 5 horas da tarde quando acabou esta parte da sagração.Começou, então, a Missa de Pontifical, que foi cantada com extraordináriapompa, quer em virtude do precioso dos paramentos, quer pelaqualidade dos sacerdotes e talento dos cantores. Estes eram os daPatriarcal, selecionados entre os melhores que havia em Roma. O acom-panhamento musical foi feito por seis órgãos. No exterior, os sinos dastorres repicaram estrondosamente.

No final, o Patriarca subiu à Varanda da Benção, daí tendo lançadoa bênção ao povo que enchia o terreiro.

De todos os edifícios religiosos existentes em Portugal, o temploprincipal do Monumento de Mafra é o único ao qual compete compropriedade o nome de basílica, porquanto seria concebido paradesempenhar a função de igreja de um Paço Real e edificado por um

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monarca em cuja pessoa andaram efectivamente unidos Império ePontificado.

Se é, pois, indesmentível que Dom João V governou o Impériocomo Rei-Sol, o Pontificado administrá-lo-ia como Quase-Deus, tendo porcapelão um Patriarca Quase-Papa.

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Seiscentos e sessenta e seis (666) é o famoso número triangularsagrado de 36 ou valor secreto de 62 :

2 x 333 (divindade e mistério trino de Deus)

123 + 231 + 312 ou 132 + 321 + 213 (manifestações dos três termos da Trindade)

666 = triangulação de 36153 (número da missão de Jesus) = triangulação de 17

O capítulo XVII, versículo 36 não ocorre em nenhum outro livro bíblico, salvo em 1 Samuel,XVII, 36 (David, o Bom Pastor precursor de Cristo, vence Golias = Anticristo, deca-pitando-o com uma espada = Palavra de Deus) e em 2 Reis, XVII, 36 (o povo é advertidocontra os falsos deuses e avisado de que apenas deve adorar o Senhor)!Os números triangulares 666, 703 e 2701 são múltiplos de 37.666 = 6 x 111 = 6 x (3 x 37) isto é, 18 x 37 ou (6 + 6 + 6) x 37Assim: 666 = 18 x 37; 703 = 19 x 37; 2701 = 37 x 73. O perímetro dos satélites do número 2701 (36 x 6) compreende 216 cálculos, isto é 6 x 6 x 6,a soma dos atributos de 666.

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2 2 +3 2 + 5 2 + 7 2 + 11 2 + 13 2 + 17 2

(soma do quadrado dos 7 primeiros números primos) 6 + 6 + 6 + 6 3 + 6 3 + 6 3

(soma dos dígitos de 666 e dos cubos dos seus dígitos)313 + 353

(soma de dois primos palíndromos 8 consecutivos)DCLXVI

(seis primeiros numerais romanos por ordem decrescente do respectivovalor) 9

O número 666, valor guemátrico do termo apousia (= ausência doEspírito Santo) e antónimo de cobertura para a cabeça (= mitra, em Ezequiel,XXI, 25-27) e vinda de Cristo (cujo valor guemátrico, em ambos os casos, é2015), ocorre na Bíblia em três circunstâncias distintas, aludindo:

1. Ao número de talentos que Salomão recebia anualmente da Rainha deSabá (1 Reis, X, 14): “E era o peso do ouro que se trazia a Salomão a cadaano seiscentos e sessenta e seis talentos [...]”;

2. Ao número dos filhos de Adonicam repatriados do cativeiro babilónico(Esdras, II, 13): “Filhos de Adonicam: seiscentos e sessenta e seis”;

3. Ao número da Besta que “subiu da terra” (Apocalipse, XIII, 11-18): “E visubir da terra outra Besta, e tinha dois chifres semelhantes aos de umcordeiro, e falava como o dragão. E exercia todo o poder da primeiraBesta na sua presença e fez que a terra e os que nela habitam adorem aprimeira Besta, cuja chaga mortal fora curada. E fez grandes prodígios demaneira que até fogo do céu fez descer à terra, à vista dos homens. Eengana os que habitam na terra com prodígios que lhe foi permitido quefizesse em presença da Besta, dizendo aos que habitam na terra quefizessem uma imagem à Besta que recebera a ferida da espada e vivia.

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8 Diz-se do número ou frase que tem o mesmo sentido, quer se leia da esquerda para adireita, quer da direita para a esquerda.9 A totalidade deles forma o número 1666 (MDCLXVI), razão por que o ano de 1666 chegoua ser apontado como o mais propício para a manifestação, quer da Besta, quer do Messias(beneficiando da circunstância, o judeu Sebatai Sebi autoproclamara-se Messias, em Esmirna).Ver, de António Vieira, Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo e Defesa perante oTribunal do Santo Ofício. Cf. Luís Martins, Padre António Vieira e o ano de 1666, in Vária Escrita,n. 5 (1998), p. 139-199. Inúmeras outras variantes hermenêuticas do número 666 são elencadaspor Mike Keith, The Number of the Beast [http:// users.aol.com/s6sj7gt/mike666.htm].

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10 Alguns exegetas asseveram que o Sinal da Besta (da segunda que há-de “subir da terra”),aposto na mão direita (a do trabalho) ou na testa (o pensamento), sem o qual ninguémpoderá vender ou comprar seja o que for, será qualquer coisa semelhante a um selo oumarca, havendo até quem advogue tratar-se de um chip subcutâneo, do código de barras oudo acrónimo da World Wide Web (www = vau + vau + vau = 6 + 6 + 6). Num sentidoespiritual, o Sinal da Besta ou Anticristo será a antítese do Crisma ou Baptismo da Face (marcado Espírito Santo e da sua presença).11 Forma que apenas se lê em Gálatas, VI, 17: “Desde agora, ninguém me inquiete, porquetrago no meu corpo as marcas do Senhor Jesus”.

Foi-lhe concedido que desse espírito à imagem da Besta, para quetambém a imagem da Besta falasse e fizesse que fossem mortos todos osque não adorassem a imagem da Besta. E fez que a todos, pequenos egrandes, ricos e pobres, livres e servos, lhes seja posto um sinal na suamão direita ou nas suas testas para que ninguém possa comprar ouvender, senão aquele que tiver o sinal, ou o nome da Besta, ou o númerodo seu nome. Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule onúmero da Besta, porque é o número de um homem, e o seu número é:seiscentos e sessenta e seis.”

Por seu turno a expressão O Sinal da Besta, Charagma([Khar’-ag-mah] derivado do verbo charasso = gravar), selo, sinal 10, distintode stigma [estigma, incisão], do verbo stizo = estigmatizar, incidir 11, ocorresete vezes no Apocalipse:

XIII, 16-17: “E fez que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livrese servos, lhes seja posto um sinal na sua mão direita ou nas suas testaspara que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tiver osinal, ou o nome da Besta, ou o número do seu nome.

XIV, 9: “E seguiu-os o terceiro anjo, dizendo com grande voz: “Se alguémadorar a besta e a sua imagem, e receber o seu sinal na sua testa ou na suamão, [...]”.

XV, 2: “E vi um como mar de vidro misturado com fogo e também os quesaíram vitoriosos da Besta e da sua imagem e do seu sinal e do número doseu nome, que estavam junto ao mar de vidro, e tinham as harpas de Deus”.

XX, 4: “E vi tronos e assentaram-se sobre eles e foi-lhes dado o poder dejulgar; e vi as almas daqueles que foram degolados em virtude dotestemunho de Jesus e da palavra de Deus e que não adoraram a Besta,nem a sua imagem e não receberam o sinal nas suas testas nem nas suasmãos; e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos”.

XVI, 2: E foi o primeiro e derramou a sua taça sobre a terra e fez-se umachaga má e maligna nos homens que tinham o sinal da Besta e queadoravam a sua imagem”.

XIX, 20: “E a besta foi presa e com ela o falso profeta que diante dela fizeraos prodígios, com que enganou os que receberam o sinal da Besta eadoram a sua imagem. Estes dois foram lançados vivos no ardente lagode fogo e de enxofre”.

XIV, 11: “E o fumo do seu tormento sobe para todo o sempre; e não têmrepouso, nem de dia nem de noite, os que adoram a Besta e a sua imageme aquele que receber o sinal do seu nome”.

Em três casos distintos há menção na Bíblia de uma marca aposta emalguém, sempre literal e visível:

Ezequiel, IX, 4 e 6: “Deus disse-lhe: ‘Vai pela cidade, atravessa Jerusalém efaz uma marca na fronte dos homens que gemem e se lamentam por causadas abominações que nela praticam. [...]. Velhos, jovens, virgens, meninose mulheres, matai-os a todos e exterminai toda a gente; mas não toqueisnaqueles que foram marcados na fronte’. [...]”.

Apocalipse, IX, 1-4: “E o quinto anjo tocou a sua trombeta e vi uma estrelaque do céu caíu na terra e foi-lhe dada a chave do poço do abismo. E abriuo poço do abismo e subiu fumo do poço, como o fumo de uma grandefornalha e com o fumo do poço escureceu-se o sol e o ar. E do fornovieram gafanhotos sobre a terra; e foi-lhe dado poder, como o poder quetêm os escorpiões da terra. E foi-lhes dito que não fizessem dano à ervada terra, nem a verdura alguma, nem a árvore alguma, mas somente aoshomens que não têm nas suas testas o sinal de Deus”.

Apocalipse, XIII, 16-17: “E fez que a todos, pequenos e grandes, ricos epobres, livres e servos, lhes seja posto um sinal na sua mão direita ou nassuas testas para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele quetiver o sinal, ou o nome da Besta, ou o número do seu nome”.

O facto de o texto bíblico referir que o número da Besta “é onúmero de um homem” (o homem foi criado no sexto dia), originou aatribuição dele a personalidades muito diversas, preferencialmente chefesmilitares e estadistas 12. Contudo, nem a instituição pontifícia seria

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12 António Vieira, rejeita a hermeneutica católica, a qual interpreta a Besta como o Anticristo,preferindo identificá-la com Maometis (Maomé = Islão). Cf. Defesa perante o Tribunal do SantoOfício, v. 2, p. 14-15, 256 e 261. No século XIX, foi Napoleão o candidato mais popular, na

poupada, porquanto o nome da Besta não é aplicável apenas a umapessoa específica, podendo constituir também um título.

[Napoleão] Buonaparte, equivalente guemátrico da Besta, segundo um códice da BN de Lisboa.

Alguns exegetas admitem que o conteúdo do Apocalipse se reportaà própria época da sua redacção e que o número 666 se aplica especi-ficamente a Cæsar Nero, que governou Roma de 54 a 68 d. C, e não a algumoutro indivíduo posterior. Este ponto de vista, adoptado pela IgrejaCatólica, esvazia o Apocalipse de toda a sua carga profética, sendoconhecido por preterismo.

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centúria seguinte seria Hitler o designado. Aleister Crowley, por exemplo, auto-intitulou-seA Besta (Master Therion). Anoto, a propósito, que nenhum dos 769 deputados da UniãoEuropeia ousa ocupar o lugar 666 do hemiciclo do Parlamento Europeu, o qual é mantidosempre vago.

Os preteristas adoptam formas inusitadas do nome de Nero, taiscomo Nero Cæsar ou Cæsar Nero, adicionando-lhe um N, de que resulta afórmula Neron Cæsar. Seguidamente transliteram o latim em aramaico,obtendo a expressão NRWN QSR, a qual, quando utilizados osequivalentes numéricos das respectivas letras, soma 666 (sem o Nacrescentado o resultado será 616, número que ocorre em algunsmanuscritos, sendo, porém, considerado por vários exegetas, caso, entreoutros, de Ireneu, como erro de algum copista):

Um exemplo desta fórmula foi, recentemente, detectado num dosManuscritos do Mar Morto. Contudo, existe um problema insanável nocálculo supracitado, pois, consoante as regras da guematria hebraica,quando a letra N ocorre duas vezes na mesma palavra, a segundaocorrência assume o valor de 700, o que faz NRWN QSR equivaler a 1316e não já a 666.

Na língua grega, à semelhança da hebraica, não há algarismos. As letras gregas e hebraicas servem também de números. Um dos sistemas numéricos helénicos mais remotos (o dos

números áticos) foi introduzido por Atenas e usava símbolos para osnúmeros chave 1, 5, 10, 50, 100, etc.

Os símbolos individuais eram repetidos sempre que necessário(até um máximo de quatro vezes) para se obter o número desejado.

Este sistema apresentava semelhanças com o ulterior romano,excepto porque era sempre aditivo (repetitivo), ao invés do sistemaromano que era também subtractivo.

Outro sistema, o jónico ou milésio, deve ter sido criado no séc. VIa. C., tendo sido oficialmente adoptado em Atenas no século I a. C, emsubstituição do sistema ático que entrara em decadência.

Para representar números os helénicos usavam as letras do seualfabeto (alfa-numérico), segundo um sistema décimal ao qual faltava ozero. Assim, necessitavam de 27 diferentes símbolos para representarnúmeros até 999: nove para as unidades; nove para as dezenas; nove para

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Nun = 50Resh = 200Waw = 6Nun = 50

Qoph = 100Samech = 60Resh = 200

as centenas. Porém, uma inevitável dificuldade surgiria, uma vez que oalfabeto grego apenas possuía 24 letras e eram necessários 27 símbolos.Para suprir tal defeito, recuperaram letras de alfabetos obsoletos, comodigamma (6) koppa (90) e sampi (900). Digamma tornar-se-ia conhecida peladesignação stigma porque se aparentava às letras sigma e tau ligadasentre si.

Quando era preciso representar um número onde ocorria umzero, como por exemplo 209, escreviam-se apenas as letras sigma e theta,ou como 300, apenas a letra tau.

GREGO HEBRAICO

Digamma, Koppa e Sampi são, no quadro dos valores numéricos das letras do alfabeto grego,signos exclusivamente utilizados para designar números, não possuindo o estatuto de letrasdo alfabeto.

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Para distinguir as letras normais dos números, era adicionadauma linha horizontal sobre as letras que os figuravam, ou apenas umapóstrofo, no final da representação.

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De acordo com a mundividência tradicional, um número não selimita a exprimir uma mera quantidade, sendo detentor de carácter eidentidade próprias, efectivamente o vínculo sintáxico essencial àgeometria oculta da língua. A disciplina, que faz dos números palavras (evice-versa) e consiste no cômputo do equivalente numérico de cada letranuma palavra, expressão ou nome (e por extensão, no somatório dosvalores numéricos dessas letras, com vista à obtenção de um númeroúnico), denomina-se isopsephia [isso = igual + psephos = pedrinha (kalkuli)]ou guematria. Amplamente divulgada, raras são as fontes clássicas, a Bíbliaincluída, que a dispensaram.

Os Padres da Igreja não poderiam, por conseguinte, prescindirdela no seu afã exegético dos Evangelhos. Ireneu, no ano 170, testemunhaa vitalidade do método, precisamente ao debruçar-se sobre o significadodo número da Besta. Apesar de tudo, mostrar-se-ia mais inclinado a“esperar pela realização da profecia” que deitar-se a adivinhar a quempoderia adequar-se, porquanto, admitia, “há muitos nomes conhecidosque possuem este número” 13.

As tentativas para encontrar um candidato para o número 666,haviam de tornar o Papa, uma das suas mais verosímeis encarnações.

De entre a panóplia de títulos adoptados pelo Papado 14, um dosmais recorrentes, o de Vicarius Filii Dei (= substituto, ocupante de umlugar em vez do Filho de Deus), utilizado pela primeira vez no Sínodo deRoma (495), reportando-se ao papa Gelásio, tornou-se também um dospreferidos dos hermeneutas (designadamente os protestantes) para

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13 Adversus Haereses, livro 5, cap. 30.14 Episcopus (Supervisor) e Papa (Pai) são considerados os mais antigos de quantos títuloshaviam de ser creditados ao bispo de Roma. Outros: Pontifex (construtor de pontes, à imagemdos Imperadores Romanos), Pontifex summus (séc. VI), Dux Cleri (Capitão do Clero), etc.Inocêncio III (1189-1216) marcou o culminar do processo de definição dogmática dasprerrogativas e da supremacia papais, a ele se devendo a enfâse especial doravante atri-buída ao título de Vigário de Cristo.

Chi Xi Stigma (digamma)600 60 6

sugerirem a sinonímia entre o substituto de Cristo, e a Besta, ou Anticristo(à semelhança do antipapa = substituto do papa 15).

Durante o pontificado de Eugénio III (1145-1153) a expressãoVicarius Filii Dei designava o bispo de Roma, tendo, ulteriormente, sidoescolhida pela própria Igreja para designar genericamente todos os seusministros, desde o Papa, aos sacerdotes paroquiais. Inocêncio III(1198-1216) seria o primeiro pontífice a explicitamente atribuir ao Papa oestatuto de Vigário de Cristo (Vicarius Christi = substituto de Cristo), ideiaulteriormente avalizada e definida pelos concílios de Florença (1439) eVaticano I (1870). Já o concílio Vaticano II denominaria os bispos, emgeral, vigários e legados de Cristo (Lumen Gentium).

O título de Vicarius Filii Dei havia de ser enfatizado pela própriaSanta Sé, recorrendo a um documento apócrifo, conhecido por Doação deConstantino, creditado à segunda metade do séc. VIII, eventualmenteforjado na sequência da legitimação (754) de Pepino, o Breve, e dadinastia carolíngia em detrimento da merovíngia, pelo papa Estêvão II, oqual havia de receber do monarca recém-ungido a promessa da cedênciados territórios itálicos, posteriormente chamados do Vaticano, conquis-tados pelos lombardos a Bizâncio.

ROMIITH ou ROMITI DUX CLERI (Capitão do Clero)

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15 Anti, em grego, não só significa contra (oposição), como em lugar de, em substituição de. Apalavra grega antichristos não consta do Apocalipse, ocorrendo no Novo Testamento apenas na1ª Epístola de João (II, 2-22) e na 2ª Epístola de Paulo aos Tessalonicenses (II, 3-4).

Titulo citado pelo luterano JohannesGerhard (1582-1637), in Adnotationesin Apocalypsin, p. 110 e pelo reitor deBerlin, Andreas Helwig [ou Helwich](1572-1643), in Antichristus Romanus.

Titulo citado por Walter Brute (ouBritte), sectário de Wycliff, inRegistrum, p. 356 e pelo reitor deBerlin, Andreas Helwig [ou Helwich](1572-1643), in Antichristus Romanus.

LATEINOS – ECCLESIA ITALIKA

Pormenor da Doação de Constantino por Gianfrancesco Penni,na Sala di Costantino (Vaticano)

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Títulos citados pelo luteranoJohannes Gerhard (1582-1637), inAdnotationes in Apocalypsin, p. 110.Antes, Ireneu (Adversus Haereses,livro 5, cap. 30, § 3) interpretaraLateinos (homem que fala latim)como o nome do quarto impériode Daniel (VII, 7).

VICARIUS FILII DEI

Título citado pelo reitor de Berlin, Andreas Helwig [ou Helwich] (1572-1643), in AntichristusRomanus.

VICARIUS FILII DEI NA TRIPLA TIARA PAPAL

1. Reprodução da tripla tiara usada pelo papa Gregório XVI (1831-1846), na missa da Páscoade 1845, a qual ostentava o título Vicarius Filii Dei;2. O papa João XXIII, coroado com a tripla tiara; 3. João Paulo II trocou a tripla tiara pela mitra, referida por Ezequiel (XXI, 25-27) como oantónimo aritmosófico do número 666...

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1. 2 3

Primitivamente, integrada nas Decretais do Pseudo-Isidoro(c. 847-853) e, ulteriormente (c. 1148), consagrada no Decreto de Graciano(Corpus Iuris Canonici, prima pars, dist. 96), também conhecido porConcordia Discordantium Canonum, seria Leão IX o primeiro pontífice a citaroficialmente a Doação de Constantino, numa carta que remeteu ao Patriarcade Constantinopla, Michael Caerularius.

A Igreja abandonou a defesa da autenticidade da Doação deConstantino, apenas após César Baronius ter publicado os Anais Eclesiásticos,em 1592, o que não impediu que o título Vicarius Filii Dei continuasse aconstar do Canon e de outras publicações católicas até ao século XIX.Pretendia a Igreja com tal reivindicação provar a legitimidade da suajurisdição e soberania sobre Roma e os Estados pontifícios 16. A elaboradafraude, uma das mais famosas da História Europeia, já fora denunciada, em1440, por Lorenzo Valla, o qual, por ter provado que havia sido forjadaalguns séculos após a morte de Constantino (337 d. C.), condenaria as suasobras a serem incluídas no Index Librorum Prohibitorum de 1559 17.

*

Um exame atento ao contexto morfológico de Mafra e seu aropode revelar-se de enorme pertinência para corroborar os contornossemânticos do exposto até aqui.

Assim, a povoação da Paz, outro dos nomes de Salém ou Jerusalém,sita a Norte de vila, justamente no alinhamento da fachada poente do RealEdifício, é contemporânea da fundação do Monumento de Mafra.

O padroeiro da igreja paroquial trecentista, o apóstolo SantoAndré (do grego: an, andrós, homem, i. e., Adão), situa-se entre JoãoBaptista e a Jerusalém Celeste, encarnando a passagem da Aliança doSinai à de Cristo, encerrando, por conseguinte, o ciclo da profecia naposteridade de Jacob. O seu papel inscreve-se entre dois mundos (este e ovindouro), duas cidades santas (a terrestre e a celeste), duas portas (da Fée do Conhecimento Perfeito ou Caridade) dois santos (o Baptista e o

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16 Contrariando a reivindicação da Igreja, na Doação de Constantino, a frase Vicarius Filii Deié título exclusivo de Pedro, jamais aplicado aos seus sucessores, tão só denominados vigáriosde Pedro (Vicarius Petrus).17 Cf. Christopher B. Coleman, The Treatise of Lorenzo Valla on the Donation of Constantine, YaleUniversity Press, 1922. A Doação de Constantino foi publicada por Brunner-Zeumer, DieConstantinische Schenkungsurkunde, Berlim, 1888, achando-se traduzida para inglês por ErnestF. Henderson, in Select Historical Documents of the Middle Ages, Londres, 1910, p. 319-329.Deste autor conservam-se duas obras na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra:Elegantiarum Latinae Linguae, libri sex (Lião, 1541 e 1551 [2-18-6-5 e 6 = 2 exemplares]) eFerdinandi, Regis Aragoniae, libri tres (Paris, 1521 [2-56-6-11]).

Evangelista). Juntamente com Pedro, Tiago e João, foi um dos quecolocaram a Jesus a questão primordial quanto à destruição do Templo e aoFim do Mundo: “Quando hão-de suceder estas coisas? E que sinal haveráde quando todas elas se começarem a cumprir?” (Marcos, XIII, 3-5).

A localidade da Paz situa-se no exacto alinhamento da fachada poente do Real Edifício.

Na Jerusalém Celeste toda a Natureza Humana dispersa sereunirá no Adão Primordial, reparador e divino, símbolo da Vida Eterna,expresso na cruz aspada (X) que identifica Santo André com o Sol deJustiça e a Cidade Solar (Heliópolis) que desce do Alto (X = 10 = Tétractys= número perfeito por excelência) 18.

Porém, se esta circunstância constitui a fase ómega (final) doenigma mafrense, o momento alfa (inicial ou principial) e sua autênticapièce de resistence, esconde-se sob a aparência de uma história de contornospitorescos, quase prosaicos, que achei consignada pela primeira vez porJosé António de Abreu, vogal secretário da Comissão do Tombo dos Bens daCoroa, em Agosto de 1851, da qual o jornalista Paulo Freire havia detornar-se o arauto no século XX 19.

Refiro-me à Avenida ou Estrada do Sol que se tem admitido haversido planeada por D. João V para unir em linha recta o seu Monumento aoAtlântico. O Dr. Carlos Galrão aventa a hipótese de se tratar de lenda 20,talvez desfigurada com o tempo, inspirada num folheto do humoristaTomás de Pinto Brandão:

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18 Cf. Manuel J. Gandra, Apocalipse de Esdras: ecos nas letras e na arte portuguesas, Mafra, 1994.19 Mafra, in Guia de Portugal, v. 1, Lisboa, 1924, p. 567.20 O Concelho de Mafra (27 Mar. 1937).

[...] E é que há-de vir, da Ericeiradireito a Mafra um canal,por onde os barcos caminhem,e seja estrada naval [...]. 21

Avanço agora uma explicação diversa.É que prolongando o eixo do já referido Tridente para poente (pela

R. Serpa Pinto), até atingir o litoral, a linha resultante une a Real Obra àermida de São Julião e da sua consorte, Santa Bazilissa (Carvoeira),virgens e mártires de Antioquia 22, justamente a cidade da actual Síria,onde os discípulos de Jesus adoptaram o nome de cristãos (Actos, XI, 26)e onde a Igreja de Pedro institui a sua primeira sede.

A Estrada do Sol, iniciada na Basílica de Mafra, termina na ermida de S. Julião e Santa Basilissa

Nesse templo, autêntica antecâmara do de Mafra, porquanto osseus patronos corporizam, conforme as iniciais dos seus nomes atestam,as colunas Jakin e Boaz, acha-se a demonstração definitiva da cubatura do

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21 Descrição de Mafra: Romance, 1725.22 O Santoral festeja S. Julião de Antioquia a 16 de Março, porém, localmente (Carvoeira), atradição manda celebrá-lo no dia 9 de Janeiro, efeméride reservada a S. Julião Hospitaleiro(séc. IV), natural e mártir (em Antínoo) do Egipto, cuja divindade tutelar, Isis, é, por sinal,figurada num dos magníficos (apesar de maltratados pelo salitre e pelo homem) painéis azule-jares da capela, consagrados às proezas hagiográficas do casal. Confusão, ou sincretismo,decerto intencional, conforme se extrai de uma obra contemporânea dedicada a D. Maria Ipelo seu autor, Joaquim da Nóbrega Cão e Aboim, e intitulada Vida de S. Julião, esposo de SantaBaziliza virgens, e martyres de Antioquia […] com huma Dissertação previa sobre a pluralidade dosSantos do mesmo nome […], Lisboa, Régia Oficina Tipográfica, 1790 [BN: R 27507 P].

Monumento de Mafra. Com efeito, sob a galilé de São Julião abriga-se aPedra de Mistério 23, na realidade a planificação da Pedra Cúbica, cujosquadrados mágicos já transformados em pentáculos, são o corolário damestria guemátrica de um ilustre cabalista 24, porventura familiarizadocom o acervo da Biblioteca do Palácio Nacional, onde os investigadoresencontrarão quanto necessitam para refazer o percurso filosófico queproponho 25.

A Pedra de Mistério da ermida de São Julião e Santa Bazilissa (Carvoeira)

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23 Cf. Gabriel Pereira, Pelos Subúrbios e Vizinhanças de Lisboa, 1910, p. 188.24 Exímio cultor da Guematria (cálculo do valor numérico das letras e das palavras), daTemura (permutação de letras e de palavras) e do Notarikon, escrita abreviada (de Notarius),a qual assume duas formas principais: 1. cada letra é considerada abreviatura de umapalavra; 2. as letras iniciais, as médias ou as finais de uma palavra são deslocadas de modoa formarem outra ou várias palavras.25 Nomeadamente, um par de edições proibidas do De Occulta Philosophia de Agrippa[PNMafra: 2-51-13-1 (s. l., 1535); 2-51-4-3/4 (Haia, 1727, 2 vols.)], além dos quatro volumesraríssimos, e igualmente proibidos, da Kabbala Denudata de Knorr von Rosenroth [PNMafra:2-49-4-8/11 (Salzbach, 1677-1678)], a qual inclui o AEsch Mezareph (Fogo Purificador), expres-sa e exclusivamente dedicado às operações com quadrados e pentáculos mágicos. VerManuel J. Gandra, A Filosofia Hermética em Portugal e no acervo da Biblioteca do Palácio Nacionalde Mafra, in Boletim Cultural ‘93, Mafra, 1994, p. 11-74; Mafra Mítica, Hermética e Simbólica deA a Z, in Da Vida, da Morte e do Além, Mafra, 1996, p. 197-199 e Da Face oculta do Rosto daEuropa: prolegómenos a uma História Mítica de Portugal, Lisboa, 1997, p. 136-138.

A Pedra de MistérioTrata-se, em suma, de um labirinto octogonal centrado num delta ocupado por um solradiante (a Trindade divina), a cujas faces se acham adossados três quadrados mágicos: umde ordem 7 (Vénus) e dois de ordem 9 (Lua). Transformados em pentáculos mediante asubstituição dos números por labirintos de letras, legíveis a partir do centro de cada um dosquadrados (podendo as casas vazias ser completadas com o mesmo texto disposto do centropara a periferia). O labirinto de ordem 7 (cruzeiro de 13 letras) contém o nome de SIVLIAM(S[ão] Julião), enquanto nos de ordem 9 (cruzeiro de 17 letras) se lê o de SBAZILIZA (S[anta]Bazilissa) e �MATVTINA (Estrela Matutina), uma das denominações tradicionais da Vénusauroral, mas, acima de tudo, uma das Litânias da Virgem, a RAINHA (Bazilissa) ou AVEMARIA cuja protecção é duas vezes invocada: ORA PRO NOBIS. A legenda ECCECRUCEM DOMINI (Eis a Cruz do Senhor), associada ao monograma crístico JHS, podequerer aludir à Cruz (ou trabalhos) a que o candidato a decifrador se condena para lograr adecifração. Se associados, os dois quadrados de ordem 9 geram outro de ordem 27, contendo729 números (9 x 9 = 81 x 9) = o cômputo exacto de dias (365) e noites (364) num ano!Anote-se ainda que a casa central de tal quadrado mágico é ocupada pelo número solar 365.

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Eis-nos, pois, em presença de um espectacular exemplo, aliás, oúnico conhecido em Portugal, de associação de quadrados mágicos comlabirintos de letras. Em conexão com ele, unindo a capela de São Julião aocemitério da Carvoeira (anexo à igreja de Nossa Senhora do Ó), subsisteo Caminho das Almas, espécie de Via Sacra, edificada entre 1779 e 1833,actualelmente constituída por cinco cruzeiros: São Julião (ex-voto),Valbom, Baleia, Estrada da Senhora do Ó e Cemitério da Senhora do Ó 26.

Além de relacionados com a devoção das Almas do Purgatório,quatro desses cruzeiros, inspiram-se numa tradição hermética anti-quíssima de origem helenística e neo-platónica.

Localização do Caminho das Almas que une a capela de São Julião ao cemitério de Nossa Senhora do Ó

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26 Félix Alves Pereira reporta a existência de mais um “cruzeiro do género” na Fonte dasAmoreiras, o qual, entretanto, terá sido destruído. Cf. Por Caminhos da Ericeira: notas arqueo-lógicas e etnográficas, in O Arqueólogo Português, v. 19 (1914), p. 329-331. O Caminho das Almasfoi, ulteriormente, acrescido de uma alminha, no Rossio de Valbom, e de dois outroscruzeiros: o do milagre da burra (ex-voto, datado de 1880, sito junto do antigo caminho entreValbom e a Baleia) e o da Carvoeira. Ocupei-me do assunto na comunicação S. Julião: domaravilhoso pagão ao cabalismo cristão através dos enigmas barrocos, apresentada no SimpósioMafra Barroca, realizado no âmbito da Homenagem a Ayres de Carvalho (26 de Setembro de1992). Sobre o cruzeiro ex-voto de 1880, cf. do subscritor, o verbete Alminha, in Da Vida, daMorte e do Além: aspectos do Sagrado na região de Mafra, Mafra, 1996, p. 161-162 e Ex-votosbidimensionais do Concelho de Mafra, in Boletim Cultural ’98, Mafra, 1999, p. 283.

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Desconheço quem possa ter sido o autor, ou autores, do programadeste conjunto a todos os títulos notável pelo ineditismo de que sereveste, mas não me admiraria que Manuel Teixeira 27, o ilustre cabalistajá citado, pudesse ter estado implicado na sua concepção que creio tersubjacente a imperiosa necessidade de sufragar (conduzindo-as aodescanso eterno) as almas em tribulação de todos os massacrados pelastropas do duque de Alba, exactamente no território em apreço, emconsequência da sua adesão ao levantamento popular liderado peloaçoriano Mateus Álvares, episódio que havia de ser consagrado como odo Falso D. Sebastião da Ericeira (1585) 28.

Porém, antes de prosseguir, convém tentar lançar alguma luz sobrea origem misteriosa e a história dos quadrados mágicos e dos labirintos deletras.

1. Quadrados mágicos

Obtêm-se quadrados mágicos mediante a disposição de umasucessão mágica (conjunto de numerais inteiros, positivos, diferentes e suces-sivos), de 1 a n2, numa matriz de n x n casas ou quadrículas, de modo que asoma dos n números que figuram sobre uma mesma ortogonal (linha oucoluna, horizontal, vertical ou diagonal 29) seja constante (sempre a mesma).

O número n de casas ou quadrículas de cada um dos seus ladosconstitui a ordem do quadrado (3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9), enquanto o número totalde casas ou quadrículas corresponde ao quadrado da ordem. No caso deum quadrado mágico regular, a soma de todos os n números calcula-se comrecurso à fórmula n (n2 + 1) / 2, denominando-se constante mágica 30.

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27 O seu apelido cifrado encontra-se gravado em baixo-relevo no cruzeiro das Almas,situado junto à ermida. É citado no testamento de João Fernandes da Conceição, ermitão deS. Julião (2 de Dezembro de 1764), falecido no ano de 1766, tendo herdado o seu capote.28 Consulte-se a este propósito: O Falso D. Sebastião da Ericeira e o Sebastianismo, Mafra, 1998;Manuel J. Gandra, Dicionário do Milénio Lusíada: Impérios do Divino, Sebastianismo e QuintoImpério, v. 1, Lisboa, 2003, sv. Mateus Álvares (inclui resenha sistemática da bibliografia e daiconografia, p. 314-317).29 Diz-se da recta que une o canto superior esquerdo ao canto inferior direito (ou o cantosuperior direito ao canto inferior esquerdo) de um quadrado, contendo um número de cadalinha e um da cada coluna. As paralelas a esta diagonal principal contêm n elementos, umde cada linha e um de cada coluna, e formam diagonais quebradas. Um quadrado que nãoé mágico por as suas diagonais principais ou por uma delas não o serem chama-se semimá-gico. Por outro lado, um quadrado é panmágico se todas as diagonais (principais e quebradas)são mágicas. Não existem quadrados panmágicos de ordem 3, nem cuja ordem seja divisí-vel por 3. Existem três quadrados panmágicos diferentes de ordem 4, dezasseis quadradospanmágicos regulares de ordem 5 e cinquenta e quatro panmágicos regulares de ordem 7.30 Um quadrado mágico diz-se bimágico quando substituindo cada número pelo seuquadrado continua mágico. Um quadrado bimágico chama-se trimágico se os cubos dos seus

Todo o quadrado mágico pode sofrer certas transformaçõesgeométricas que não modificam realmente os números que o formam. Asseguintes são aplicáveis a todos os quadrados mágicos.

1. Troca concomitante de duas linhas equidistantes do centro;2. Troca dos quartéis do quadrado. No caso de um quadrado de

ordem ímpar, a troca dos quartéis é acompanhada de uma troca nasortogonais medianas, horizontal e vertical;

3. Subtracção de uma mesma constante a cada um dos seuselementos;

4. Multiplicação de todos os seus elementos por um mesmonúmero (diferente de zero);

5. Supressão da orla (ortogonais extremas: 1ª e última colunas e 1ªe última linhas) de um quadrado mágico orlado.

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elementos formam também um quadrado mágico. E assim sucessivamente, denominando-semultimágicos tais quadrados.

Melancolia I[maginativa] (1514)Gravura (239 x 168 mm) deAlbrecht Dürer, inspirada nosescritos de Henricus de Gandavo,e de Corne l ius Agr ippa(cf. Panofsky, 1923), bem como nosconceitos expostos por MarsilioFicino, no De Vita Triplici, e porPico della Mirandola, na Apologiade Descensu ad Inferos(cf. FrancêsYates, The Occult Philosophy in theElizabetian Age, 1979). Recuperaçãoneoplatónica do conceito deMelancolia, o mais inferior doshumores, subordinado a Saturno,simbolizado pelo cão e pela ampu-lheta (Chronos). Ao invés do admi-tido vulgarmente, o quadradomágico de ordem 4 nada tem a vercom Saturno, andando antes asso-ciado a Júpiter, justamente ocurador da Melancolia.

Breve História dos Quadrados Mágicos

650 a. C.Shu Ching menciona pela primeira vez o Lo Shu (Carta do Rio), eventualmenteo quadrado mágico de ordem 3, segundo a lenda, desenhado na carapaça deuma tartaruga que saía de um rio.

Lo Shu e respectivas versões hebraica e islâmica

c. 500 a. C.Lun Yu reporta-se à Carta do Rio.300 a. C.Chang Tzu refere o Lo Shu.56A planta do templo chinês Ming-T’ang reproduz um quadrado mágico deordem 3.80Ta Tai Li Chi faz a primeira menção indubitável a um quadrado mágico.Séc. IÉ devida a Nagarajuna a primeira referência a um quadrado mágico de ordem4, na Índia.130Theon de Esmirna alude, no Biblion, a um quadrado natural, vulgarmenteconfundido com um quadrado mágico.190?A Xu Yiu é creditada a primeira descrição de um quadrado mágico de ordem3, embora a fonte onde ocorre (Shu Shu Chi I), datável de c. 570, seja atribuídaa Zhu Luan.

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Séc. VIIIO alquimista muçulmano Jabir ibn Hayyan (baseando-se nas obras de Zozimuse de outros autores herméticos) explica a constituição do cosmos fazendo apeloao quadrado mágico de ordem 3.983Quadrados mágicos de ordem 5 e 6 ocorrem numa obra do matemático Ikhw’nal-Saf Ras’il, de Bagdad.c. 1200Quadrados latinos são usados como amuletos (sigilos associados aos planetas?)pelo matemático muçulmano Al-Buni, no Shams al-Marif.1275Yang Hui alude a quadrados mágicos de ordem diferente de 3.1315O matemático bizantino Emanuel Moschopoulos é o primeiro autor ocidentala referir os quadrados mágicos. c. 1384Primeira associação explícita dos quadrados mágicos aos planetas no Qtabsal-Anwar de Nadruni.Séc. XVA primeira série integral de quadrados mágicos de ordem 3 a 9 a ocorrer no oci-dente, surge num manuscrito latino existente em Cracóvia [Jagiellonian ms753].1450Luca Pacioli estuda os quadrados mágicos no De Viribus, adoptando asequivalências planetárias anteriormente propostas por Nadruni.1510Cornelius Agrippa, no De Occulta Philosophia (impresso em 1531), adopta tabelade equivalências dos quadrados mágicos de ordem 3 a 9 aos planetas expostapor Nadruni e Pacioli.1514Melancolia I de Dürer inclui quadrado mágico de ordem 4.1539Hieronimus Cardanus publica Practica Arithmetica, onde adopta uma tabela deequivalências entre quadrados mágicos e planetas inversa à exposta porNadruni e adoptada por Pacioli e Agrippa.Séc. XVIO rabi cabalista Joseph Tzayach (1505-1573), de Damasco, expõe um sistema deequivalências entre quadrados mágicos (de ordem 10, 11, 15, 20, etc.), planetase os sephirot.1640Cubos mágicos de Fermat.c. 1660Frenicle descobre os 880 quadrados mágicos de ordem 4.1710Sauveur descobre o primeiro cubo mágico.1750Quadrados mágicos elaborados por Franklin.

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Ordem do Quadrado Constante mágica Soma de qualquer

quadrado da ordem (soma global) ortogonal Planeta Metal (soma linear)

3 9 45 15 Saturno Chumbo4 16 136 34 Júpiter Estanho5 25 325 65 Marte Ferro6 36 666 111 Sol Ouro7 49 1225 175 Vénus Cobre8 64 2080 260 Mercúrio Liga de Prata9 81 3321 369 Lua Prata

Quadrados mágicos de ordem 3 (Saturno), 4 (Júpiter), 5 (Marte), 6 (Sol), 7 (Vénus), 8 (Mercúrio) e 9 (Lua)

Valor secreto = Valor secreto =n2 + n / 2 n3 + n / 2

Quadrado mágico do sítio do Adro do Judeu (Pêro Gil, Tavira)O quadrado de ordem 3 com inscrição hebraica, acha-se inscrito numa ardósia, encontradaem 1979 (cf. Dois documentos arqueológicos recentemente achados, sobre os judeus no Algarve peloDr. J. Fernandes Mascarenhas, Faro, 1980, p. 7-13).

Um quadrado mágico particular tem feito correr rios de tinta.Reporto-me, evidentemente, ao que ostenta a fórmula Sator Arepo TenetOpera Rotas (Deus domina a Criação e as Obras do Homem), o qualchegou a ser interpretado como uma invenção cristã destinada a cifrar oPadre-Nosso (Pater Noster), quando rezar tal oração constituía crimepunido com a pena de morte 31. Porém, a constatação de que esse quadra-do mágico, utilizando frases palíndromas (versus recurrentes), se encontradocumentado em contextos não cristãos antes de haver sido adoptadopelo cristianismo, fez essa tese cair por terra, suscitando desencontradashipóteses 32, aventadas à medida que a arqueologia ia exumandosucessivos testemunhos da sua difusão em Pompeia (Itália) 33, em

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31 Cf. G. de Jerphanion, La Formule magique SATOR AREPO ou ROTAS OPERA. Vieillesthéories et faits nouveaux, in Recherches de Science Religieuse, v. 25 (1935), p. 223-225 e J.Carcopino, Les Fouilles de Saint-Pierre et la Tradition - Le Christianisme secret du carré magique,Paris, 1953, p. 9-91.32 Ver, entre inúmera outra bibliografia: Hildebrecht Hommel, Die Satorformel und ihrUrsprung, in Theologia Viatorum, v. 4 (1952), p. 133-180; D. Fishwick, On the origin of the Rotas-Sator square, in Harvard Theological Review, n. 57 (1964); John Ferguson, The Religions of theRoman Empire, Itaca, 1970, p. 168 e fig. 70; Walter O. Moeller, The Mithraic Origin andMeanings of the Rotas-Sator Square, Leiden, 1973.33 Oriundos daqui, acham-se referenciados o da Casa de Publius Paquius Proculus e o daPalestra de Pompeia, anterior a 79 d. C., encontrado em 1938. Ver: J. Carcopino, ob. cit., p. 56;Charles Cartigny, Le Carré Magique Testament de Saint Paul, Cahors, 1984, p. 114-120; JustinoMendes de Almeida, Um curioso criptograma cristão (?) ou um enigma etno-epigráfico, in Anaisda Real Sociedade Arqueológica Lusitana, s. 2, v. 1 (1987), p. 37-43; etc.

Circenster (Gloucestershire, Grã-Bretanha) 34, em Oppéde (Vaucluse,França) 35, em Acquincum (Budapeste, Hungria) 36, em Dura-Europos(Síria) 37, em Rochemaure (Ardèche, França) 38, em Jarnac (Champagne,Charente, França) 39, em Conimbriga (Portugal) 40, etc.

O mundo cristão, é indubitável, não permaneceu imune aofascínio que o artefacto produzia, cristianizando-o como atestam exemplos(embora não palíndromos) de Castellum Tingitii (actual Ech-Cheliff,Argélia) de cerca de 328 e da igreja de Santianes de Pravia (Oviedo), do séc.VIII ou IX: SANCTA ECCLESIA e SILO PRINCEPS FECIT, respectiva-mente. No século IV, por exemplo, entre coptas e etíopes, era talismãafamado contra doenças e profiláctico utilizado pelas mulheres em traba-lho de parto. Em Bizâncio, as palavras inscritas no quadrado serviram paradenominar ora os três primeiros pastores que supostamente acorreram àgruta da Natividade, ora os próprios Reis Magos.

A partir do século XVI, o hermetismo proporcionar-lhe-ia umavitalidade acrescida, chegando mesmo a ser referido por um médicomilanês como remédio infalível contra a mordedura de serpente, citandoo caso de um homem que se teria curado por ter engolido três papéis coma fórmula Sator inscrita num quadrado 41.

Surgirá com frequência em Miscelâneas portuguesas dos séculosXVII e XVIII, onde é, geralmente, referido como uma forma de “escrita dia-bólica”, por se poder ler em mais de um sentido, incluindo o retrógrado.

Durante o século XIX há notícia de haver sido utilizado contra asdores de dentes, as mordeduras de serpente e de cães raivosos e osincêndios, tanto em Portugal, como no Brasil. Rocha Peixoto afirma terobservado o quadrado Sator tatuado nas costas de um presidiárioportuguês 42.

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34 Encontrado no campo fortificado romano de Corinium (Museu de Manchester). Cf.Cartigny, ob. cit., p. 126-127.35 Insculpido na porta de uma casa antiga da localidade. Idem, p. 125.36 Gravado numa telha. Idem, p. 122-124.37 Franz Cumont descobriu quatro artefactos nesta cidade, bastião da cultura helenística,fundada, cerca de 300 a. C., por Nikanor, general de Antígonos, irmão de Alexandre Magno.Idem, p. 120-121.38 Na igreja de São Lourenço desta localidade. Idem, p. 126-128.39 Idem, p. 128.40 Robert Étienne, Le “Carré Magique” à Conimbriga (Portugal), in Conimbriga, v. 17 (1978), p.15-34. Este autor advoga que o palíndroma em apreço é de inspiração estóica, uma vez quea expressão Sator omnias continet, com o sentido de que o cosmos é o gerador e o garante detudo e o demiurgo mantém a sua criação, ocorre no De Naturam Deorum (II, 86) de Cícero.Cf. também, Museu Monográfico de Conimbriga: Colecções, Lisboa, 1994, p. 65 e 165, n. 556.41 Cf. Jerphanion, ob. cit., p. 213.42 Cf. A Tatuagem em Portugal, in Revista das Ciências Naturaes e Sociaes, v. 2 (1893), p. 26-27 efig. 23.

Por seu turno, Leite de Vasconcelos registaria a ocorrência docriptograma em Santarém, onde adquiriu uma pequenina medalha emprata com ele inscrito 43, referindo-se-lhe reiteradamente como “fórmulamágica” destinada a afugentar as bruxas, “quando recitada à direita e àsavessas” 44.

2. Labirintos de Letras

Não sendo este o momento oportuno para historiar a evolução dolabirinto, tarefa árdua, de resto já empreendida por ilustres pesquisadoresdo símbolo e do mito 45, sempre convirá recordar que se trata de umcosmograma universal, indissociável de liturgias mágicas e religiosas,que partilha com as combinações circulares (concêntricas, duplas e

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43 Cf. Uma fórmula mágica, in O Archeologo Português, v. 23 (1918), p. 226 e 321-323 e inOpúsculos, v. 5, Lisboa, 1938, p. 542-546 e v. 7, Lisboa, 1938, p. 1314.44 Cf. Ensaios Ethnographicos, v. 3, p. 174; Revista do Minho, v. 1, p. 74-75; Revista Lusitana, v.6, p. 244, etc. No Fausto I de Goethe, a chamada Taboada da Bruxa (Hexenküche) é um quadra-do mágico de ordem 3.45 Ver, designadamente: Paolo Santancangeli, Le livre des labyrinthes: histoire d’un mythe etd’un symbole, Paris, 1974; Lima de Freitas, O Labirinto, Lisboa, 1975; idem, Almada e o Número,Lisboa, 1977; Gilbert Durand (coord.), Le Labyrinthe, Paris-Lisboa, 1985 (separata deColóquio/Artes, n. 62, 63 e 64, Set.-Dez. 1984 e n. 65, Mar.-Jun. 1985); Patrick Conty, LaGéométrie du Labyrinthe, Paris, 1997.

1. Medalha da colecção donumismata Dr. Isidoro FerreiraPinto, adquirida por J. Leite de

Vasconcelos;

2. Tijolo em argila crua, com afórmula palíndroma SATOR,

AREPO, TENET, OPERA,ROTAS, exumado em

Conimbriga [inv. 70.193].

triplas, com ou sem covinha central) e as covinhas, o simbolismo dopercurso da alma para o submundo uterino, seu ulterior regresso econsequente renascimento 46.

No Ocidente, a comum prevalência do símbolo e da alegoria nasmentalidades mediévica, renascentista e barroca, havia de transformar olabirinto no Caminho de Jerusalém, figura de um itinerário místico, pleno deciladas e dificuldades, que confronta a alma em demanda da Salvação eda Graça, a qual, mediante a penitência, as logra alcançar na Cidade deDeus ou Jerusalém Celeste.

O paradigma literário de tal processo passa por ser a Psychomachiade Prudêncio (348-410), depois retomado por Dante (Divina Comédia),Juan de Mena (El Laberinto), Jean Bouchet (Le Labyrinthe de Fortune), JoãoAmós Coménio (O Labirinto do Mundo e o Paraíso da Alma), para só citar osautores mais relevantes. Entre os portugueses cujas obras descrevem aperegrinação da alma no mundo como alegoria moral, salientam-se:Bernardim Ribeiro (Menina e Moça), José Pereira Veloso (Desejos da AlmaPiedosa, 1688), Soror Maria do Céu (A Preciosa, 1731), Leonarda Gil daGama, pseudónimo anagramático de Soror Madalena da Glória (Reino daBabilónia ganhado pelas armas do Empyreo, 1741), etc.

Mas se o labirinto, como conceito sinónimo de Tesouro, Compêndioou Súmula, foi, ao longo da Idade Média até ao Barroco (séc. XVII e XVIII),explorado pela literatura quase até à exaustão, as artes visuais nãoescapariam a uma contaminação previsível, face à riqueza e caráctermultifacetado do simbolismo desse percurso, simultaneamente difi-cultoso e lúdico, magistralmente teorizado pelo retórico Juan DiazRengifo, autor de uma Arte Poética Española, cuja edição princeps, deSalamanca, data de 1592 47.

Assim, três serão as modalidades principais de textos-visuaislabirínticos, a ter em consideração 48:

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46 A espiral expansiva que cria e protege o centro e a espiral contractiva que o conduz àdissolução, são conceitos implícitos no labirinto. A entrada no labirinto e a dissolução nocentro ocorrem apenas quando alcançada uma exigência indispensável: saber comopercorrer o caminho que até lá conduz. Petróglifos figurando labirintos são muito vulgaresem estações rupestres, especialmente nas do Norte de Portugal e da Galiza, acompanhadaspor covinhas e zoomorfos.47 Em Portugal, é notória a influência desta obra, cujo verdadeiro autor foi o jesuíta DiegoGarcia Rengifo (e não seu irmão Juan, em nome de quem circulou), em Filipe Nunes (ArtePoética e da Pintura e Symmetria, 1615) e Manuel da Fonseca Borralho (Luzes da PoesiaDescuberta no Oriente de Apollo, séc. XVIII).48 Consulte-se Ana Hatherly: A experiência do Prodígio: bases teóricas e antologia de textos-visuaisportugueses dos séculos XVII e XVIII, Lisboa, 1983 (na fig. 42 reproduz pormenor do cruzeirode S. Julião que denomina, por lapso, de “S. João da Ericeira”); Labirinto, in Dicionário da ArteBarroca em Portugal, Lisboa, Lisboa, 1989, p. 251-252; A casa das Musas: uma releitura críticaTradição, Lisboa, 1995.

Instruções destinadas à composição e decifração de Labirintos de versos (séc. XVIII)

Labirintos de versosDirectamente relacionados com o princípio do acróstico, o poeta

tem de decidir quais as letras que quer colocar nas casas que convêm àformação das figuras que deseja compor, as quais podem assumir umavariedade de formas quase infinita. São exemplos paradigmáticos os 23labirintos que abrem o Primus Calamus – Metametrica (Roma, 1663) de JuanCaramuel Lobokwitz, um dos quais, com a indicação de 14.996.480versos, apresenta o mesmo número de casas e no centro as palavrascarmine concelebret que também ocorrem no Labirinto Métrico, atribuído aLuís Nunes Tinoco. Esta modalidade assenta no domíno da ArteCombinatória, sistematizada por Raimundo Lullo e depois depurada porAtanásio Kircher e Leibniz (Dissertatio de Arte Combinatoria). Baseado nomesmo princípio de transposição combinatória de palavras existe ainda ocaso do Proteo Poético, divulgado por Ana Hatherly 49.

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Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, 1989, p. 251-252; A CAsa das Musas: uma releitu-ra crítica da Tradição, Lisboa, 1995.49 CF. A Experiência do Prodígio, p. 102.

Labirintos de letrasOs acrósticos cruzados (cancellatiflexus) de Porfírio (séc. IV) são,

geralmente considerados precursores dos de Venâncio Fortunato(530-c. 600), Rábano Mauro (780-826) 50 e respectivos discípulos medievaise barrocos. Manuel de Faria e Sousa (Fuente de Aganipe o Rimas Varias) citaPorfírio como o iniciador da técnica dos labirintos visuais.

Labirintos cúbicos: epígrafes do séc. XI, da igreja de S. Salvador de Moreira da Maia (Maia, Porto), formadas por Labirintos de Letras (desaparecidas no séc. XVII)

Não se trata de verdadeiros quadrados mágicos, uma vez que os textos não são palín-dromos. A leitura destes labirintos, que ainda eram observáveis na parede da igreja nasegunda metade do séc. XVII, foi realizada por Mário Jorge Barroca (cf. Epigrafia MedievalPortuguesa, n. 39, p. 117-121 e n. 51, p. 145-149) a partir da descrição consignada por FreiTimóteo dos Mártires (?-1686) na sua Crónica de Santa Cruz (v. 3, 1955-1960, p. 21-22).1. Inscrição comemorativa do início da construção da igreja: ERA MCXXX [1092]TRUCTESINDES GUTERREZ FECIT2. Inscrição comemorativa da sagração da igreja do mosteiro, fundado em 1027: ERA MCL[1112] MENDO ABBATE SACRATUR

Labirintos cúbicosComposições acrósticas, cujos lados possuem todos igual número

de letras, achando-se estas de tal modo escalonadas, que ocupam amesma ordem qualquer que seja o sentido da leitura, invariavelmenterealizada do centro para a periferia. São exemplos desta modalidadejustamente os quadrados da maioria dos cruzeiros do Caminho das Almas(Carvoeira).

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50 O padre João Baptista de Castro comenta os poemas de Mauro, fornecendo indicaçõessobre o método de leitura do De Laudibus sanctae crucis (831), na sua Recreaçam Proveytosa.

CRUZEIRO DE SÃO JULIÃO

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Registo azulejar policromo (4 x 3 azulejos), quase ilegível, em consequência da sua vanda-lização. Sabe-se, apesar disso (por uma legenda que evocava o evento: MEMORIA DE HUMGRAND/E [milagre] Q. FES S. JOLIÃO A JOA[o] / DASAFOR. NO ANO DE [?] ) ter figu-rado o Milagre, alegadamente protagonizado por um gaiteiro que acompanhava o Círio daÁgua-pé, o qual seria resgatado ileso, depois de ter caído na furna (ou Boca do Inferno),situada sob o cruzeiro. Emoldurando-o, a legenda epigrafada: ECCE CR/UCEM D/OMINI(Eis a Cruz do Senhor). A expressão PELAS ALMAS separa este registo de um labirinto deletras (de ordem 11), onde se lê PADRE NOSSO. Por sua vez, o d´sitico AVEMARIA, apar-ta-o do monograma de [Manuel] TEIXEIRA, mais que provável organizador do percursocabalístico, que denomino Caminho das Almas, unindo esta finisterra ocidental ao cemitériode Nossa Senhora do Ó. Como na generalidade dos demais caos, tradicionalmente reminis-centes da tradição clássica, segundo a qual as almas dos defuntos eram conduzidas para asIlhas afortunadas, situadas no extremo ocidente europeu, também neste particular, anual-mente revisitado pelo Círio da Água-pé, se assevera que “quem num biere cá em bida, demorto tem que bire” para lograra a entrada no Céu. A sílaba EI do monograma, porqueocorre duas vezes no nome, tem o dobro da dimensão das restantes, e a mesma que o Tinicial, maiúsculo. Ainda associado ao monograma e a uma caixa para esmolas (há muitodesaparecida) a justificação: P.[ara] A [ce]RA / I AZEITE D[e] S[ão] / IVLIAM. Numdegrau: MDCCLXXXIIII.

CRUZEIRO DE VALBOM

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O mais simples dos monumentos que constituem o Caminho das Almas. Sito num alto, seme-lhante ao próprio Monte do Calvário, curiosamente denominado Valbom (i. e., Vale Bom),revela, epigrafado no pé da cruz, o ano da respectiva erecção: 1794. No braço superior dela,próximo da extremidade, o monograma INRI epigrafado; já no braço inferior apresentainsculturas, avivadas a tinta azul, figurando (de cima para baixo): Vaso dos santos óleos,cálice do Santíssimo Sacramento, martelo, cavilha, lança de Longino e esponja de felcruzados em aspa sobre uma escada, torquês e caveira. Nas faces laterais observavam-se,outrora, diversos azulejos de figura avulsa, entretanto vandalizados, cujos temas, à excepçãode um, iconografando uma alma do Purgatório, é impossível identificar.

CRUZEIRO DA BALEIA

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Dois registos azulejares, sob os quais se observa uma depressão circular esvaziada (cujafunção nenhum dos residentes na localidade logrou esclarecer), ocupam-lhe a face Poente:o registo superior (3 x 3 azulejos) figura N. SRA. DA LAPA, consoante a legenda que osubscreve; o inferior (3 x 3 azulejos) iconografa uma entidade angélica no acto de resgataralmas do Purgatório, sendo subscrito: PELAS ALMAS DO P. /P.N. AVE MARIA / 1767.

CRUZEIRO DA ESTRADA DE NOSSA SENHORA DO Ó

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Epigrafado e azulejado, em todas as quatro faces. Face Norte: dois registos azulejares,figurando, o superior (2 x 4 azulejos), o Calvário e, o inferior (3 x 3 azulejos), S. Franciscointercedendo pelas Almas do Purgatório. Em torno daquele, a frase: ECCE CRV/CEM/DOMINI (Eis a Cruz do Senhor); emoldurando este: ALMAS / MATER DOLORO/ZAPELAS. À laia de supedâneo do conjunto, em duas linhas: PATER / NOSTRE. Num degrau:A ESMOLA Q DAIS / A VOS MESMO A DAIS. Face Sul: superiormente, registo azulejar(3 x 3 azulejos) figurando a VIRGEM/ DA PI/EDADE, conforme o dístico circundante.A expressão ORA PRONOBIS (Orai por nós) separa este registo do palíndroma de letras (deordem 11), em baixo, onde se lê SALVE RAINHA: nos quadrantes à direita (esquerda doobservador), a figuração do Sagrado Coração de Jesus (em cima) e de três pregos (em baixo);à esquerda (direita do observador), o Sagrado Coração de Maria (em cima) e a escada, alança e a esponja de fel, estas cruzadas sobre aquela (em baixo). Num degrau, a dataMDCCLXXIX. Face Nascente: quatro azulejos de figura avulsa, dos quais só o 1º e o 4º sãoidentificáveis: Jesus preso à coluna e Alma do Purgatório, com a legenda P.N. AVE Mª,respectivamente; sob eles a frase: IRMAM /SALVA / A CRUS / ACOMPA / NHE-TE /IEZVS. Num degrau (sobre uma caixa de esmolas desaparecida): PARA A MISSA / DASALMAS. Face Poente: quatro azulejos de figura avulsa, de cima para baixo: Cristo carrega aCruz; Ecce Homo; Senhor da Cana Verde; Alma do Purgatório, com a legenda P.N. AVE Mª.Num degrau ANNO DE 1779.

CRUZEIRO DO CEMITÉRIO DE NOSSA SENHORA DO Ó

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Epigrafado apenas na face voltada a Nascente, na qual se observam dois quadrados mágicosbípedes (detentores de uma ou mais casas de valor zero), separados pela data: 1833. Salta àvista que, no caso vertente, foi adoptado um sistema simbólico distinto do que se constata nosrestantes marcos do Caminho das Almas, autêntico dédalo psicopompa (condutor daquelas paraa sua morada celeste), onde prevalecem os labirintos quer de letras, quer cúbicos, com ou semrecurso ao método guemátrico. Aqui o preenchimento das casas de ambos os quadrados foirealizado mediante Notarikon. O quadrado superior, tradicionalmente denominado de Salomão(de ordem 3, com uma casa de valor zero), anda creditado a Apolónio de Tiana, ocorrendo emmiscelâneas mágico-herméticas muçulmanas dos séculos X e XI, onde, sob o nome de selo deGhazadi, é descrito como pentáculo destinado a facilitar o parto. A sua presença no centro deum cemitério conduz-me a presumir que se trate de uma alusão explícita à palingénese (mortee renascimento simbólicos), mas, porventura, não só, porquanto a frase B[a]Z[ileu]S ESTX[ristu]M, i. e., O Rei é o Cristo, torna-o susceptível de conotações messiânicas e, decerto, tam-bém sebásticas (o contexto não podia ser mais adequado), numa simbiose da mensagem vet-erotestamentária sobre o Messias (Êxodo, IV, 22) com a palavra do Evangelho (Marcos, I, 11;Mateus, XVII, 2-8): o Messias há-de encarnar, fazer-se Homem, ser Rei-Soberano do Universo(1 Cor., VIII, 4-6) e Luz das Nações (Isaías, IX, 1; Lucas, I, 78-79; etc.). Já a epígrafe insculpida noquadrado inferior permanece (ainda) parcialmente indecifrada, devendo sublinhar-se que asletras iniciais da 1ª e da 3ª linhas, P e C, respectivamente, por se acharem associadas a umponto [.] são abreviaturas. Enfim, a palavra na 4ª linha sugere, glosando Camões, que con-soante a subordinação ao AMOR do Cristo-Rei, tanto mais proficiente será a Alma Staurofila(amante da cruz) e adjuvante da Segunda Vinda do Salvador.

ADENDA

O Monumento de Mafra no Quinto Império: uma colectânea

Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões e toda a força do inimigo e nadavos fará dano algum.

LUCAS, X, 19

Erram ou fazem profissão de fé no desconhecido todos quantosperemptoriamente asseveram que a esperança sebástica implodiu emsetecentos. Só por inércia essa opinião discutível, de resto como todas asopiniões, tem podido persistir.

A verdade é que, no século XVIII, o sebastianismo ora assumiucontornos consentâneos com o despotismo iluminista, ora o adversoucorajosa e intransigentemente na mira de fazer passar a tese de que omonarca esclarecido se achava nos antípodas da Graça sacralizante doEncoberto Desejado.

Seja como for, D. João V, seu irmão, o Príncipe do Brasil, o filho,Dom José, e até Sebastião de Carvalho e Melo, entre outros, chegariam aser veementemente exaltados e identificados quer como os precursores,quer como a própria encarnação do Redentor oculto.

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Sebastião Pacheco Varela

Numero Vocal, Exemplar Catholico, e Politico, proposto no Mayor entre os Santos oGlorioso S. Joam Baptista: para imitaçam do Mayor entre os Principes o Serenissimo DomJoam V, Nosso Senhor [...]Lisboa, Manuel Lopes Ferreira, 1702, p. 41-49

[...] Ao tempo que Vossa Alteza [Dom João V] alegrou com seunascimento a Portugal [1686], esperava a curiosidade vã de alguns que aparecesseo prodigioso Encoberto, cumpridas as circunstâncias de seus ilusórios auspícios.Fundavam-se estes nos sinais e portentos que precederam a perda de El-rei DomSebastião, o desejado, e nas várias opiniões com que incertamente se refere omodo e o lugar de sua morte. Corroboravam-se com a protecção especial queCristo a este Império prometeu: dando-lhe inextinguível sucessão. Confirma-vam-se com os genéricos prognósticos que se hão-de cumprir no fim dos séculose com outros fatídicos individuais testemunhos, que a sincera credulidade faziaverídicos, por mais que o tempo os fosse descobrindo apócrifos. E tudo isto nãoera mais que um desafogo do amor com que a seus Reis veneram os Lusitanos, osquais vendo-se a estranho domínio sujeitos, vinculando a mistérios a isenção dotemido jugo, buscavam (se não foi favor divino para consolação de cativeiropenoso) alívios ao sentimento, pretextos ao desagrado, às opressões refúgio, àliberdade estímulo. Mas passando a ser engano da conjectura aquele entretimentoda esperança, ainda depois de restaurada a Monarquia, não se acabaram deextinguir os desejos, até que em Vossa Alteza se viram cumpridos.

Parece que a Divina Providência satisfez aos Sebastianistas com VossaAlteza da sorte que aos Discípulos com o Santo Baptista. Corria naquele tempofama vaga, que conforme a predição do Profeta viria o Encoberto e prometidoElias a restaurar (como se diz) a Terra Santa. E consultado Cristo Senhor nosso,desenganou a seus Apóstolos sagrados com o que já outra vez lhes tinha dito: queo Baptista era o prometido Encoberto. Assim também dirigiu Deus a verdadeiroobjecto a fidelidade ansiosa de alguns Lusitanos, porque achando em um Príncipenascido os requisitos que supunham no imaginado, demitindo a esperança demilagres supérfluos, sem tirar ao Reino o privilégio de escolhido, creem dagenerosa índole de Vossa Alteza os que sonhavam triunfos ao desejado Monarcae dizem que este João é aquele Elias, legítimo sucessor de sua dignidade suprema,vantajoso imitador de sua virtude heróica.

Certifica esta identidade de sujeitos a exacta computação de seusnúmeros, pois, conforme o estilo dos Anagramas numéricos, que já usavam osGregos antigos e hoje frequentam os modernos curiosos, tanto soma o título deVossa Alteza nascido, como a vinda do prometido Encoberto. Escrevo-o com ausada abreviação, sem a reverente declaração do D. G., porque sem duplicadasrepetições, em o próprio nome de João se apelida Vossa Alteza, Rei por graça deDeus:

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Falando Cristo daquele tempo último, em que há-de ser o verdadeiroEncoberto, dá a entender que o tempo se prove para se conhecer com pontua-lidade. E se provarem os Sebastianistas o tempo que assinalam os Anagramas,acharão que é Vossa Alteza o Encoberto que esperam, pois soma então o tempode sua vinda o ano do nascimento de Vossa Alteza. [...].

Descendo pois a singularizar a pessoa para adaptar proporcionalmente asemelhança, é Vossa Alteza por João e por Quinto o esperado vencedor dosMaometanos: pois o primeiro João foi o seu conquistador primeiro e o primeiroQuinto foi o seu temido assombro. O apelido numérico do futuro Dragão éseiscentos e sessenta e seis [...]. Este número do vaticinado Monstro há-de venceraquele Rei soberano, que até no nome quer mostrar-se Encoberto, mas os que pre-tenderam decifrá-lo entendem que será o inefável JEHOVA, que corresponde aoditoso João. Logo João deve chamar-se o Encoberto prometido, para sersemelhante ao profetizado. E por que se achem parecidos em tudo, precisamentehá-de ser João V, porque o nome de JOANNES não enche perfeitamente as vogaisde JEHOVA, senão quando se lhe junta a letra V. E pois em Vossa Alteza concor-rem todas as circunstâncias que na vinda do Encoberto se assinalam, Vossa Altezaé o Desejado, por quem Portugal suspira há tantos anos, e como tal destruirá osImpérios dos Agarenos e dos Otomanos, não com a presença da sua pessoa, mascom a eficácia de sua palavra, por Capitães felizmente obedecida.

Prognostica a Vossa Alteza estas felicidades o Signo em sua formaçãodominante, que desde então deve levantar-se a figura [...]. Teve pois Vossa Altezaseu princípio ao tempo que o Sol entra em Aquário e se este Signo (ao queimaginam os Astrólogos) promete em seus influxos venturas e domina sobre aCidade Santa, será Vossa Alteza o Príncipe mais ditoso e conquistador do SantoSepulcro. [...]. Receba Vossa Alteza deste Signo a influência, prevenindo-se com adevoção para a semelhança que, como é nimiamente venturoso, o fará a VossaAlteza grandemente feliz.

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Sebastianus . . . . . . . 628Promissus . . . . . . . . . 699Veniet . . . . . . . . . . 359

1686

Joannes . . . . . . . . . . .235V . . . . . . . . . . . . . . . 5Portug . . . . . . . . . . . 497Et Alg . . . . . . . . . . . . 133Rex . . . . . . . . . . . . 385Natus . . . . . . . . . . . . 431

1686

Anselmo Caetano Munhós de Abreu Gusmão e Castello Branco

Ennoea, ou applicaçaõ do entendimento sobre a Pedra Philosophal, pro edefendida Com os mesmos argumentos com que os Reverendissimos Padres AthanasioKircker no seu Mundo Subterraneo, e Fr. Bento Hieronymo Feyjoo no seu Theatro Critico,concedendo a possibilidade, negaõ, e impugnaõ a existencia deste raro, e grande mysterioda Arte Magna. Parte primeira. Offerecida ao Illustrissimo Senhor D. Francisco deMenezes, Conego da Santa Igreja Patriarchal, e do Conselho de Sua Magestade, etc. Por[...] Doutor da Universidade de Coimbra, Familiar do Santo Ofício, Médico doExcellentissimo Senhor Duque de Aveiro natural da antiquissima Villa de Soure.

Lisboa Ocidental, Nova Oficina de Maurício Vicente de Almeida morador aoArco das Pedras Negras, 1732-1733 [PNMafra: 2-33-9-19]

Dedicatória a D. Francisco de Meneses, cónego da Patriarcal

[...]. Viu o Evangelista João uma Igreja, ou uma Sé colocada no Céu, quetinha à sua vista um mar cristalino como vidro e diante do seu trono ardiam setelâmpadas. Na circunferência desta Sé havia vinte e quatro Tronos, ou assentos, emque se assentavam vinte e quatro Anciãos, coroados com Mitras Episcopais, ouCoroas de ouro. Estes vinte e quatro Anciãos [...] eram Sacerdotes que reinavam edominavam sobre a terra e sendo Reis que dominavam e reinavam, eram tambémo Reino de Deus [...].

[...] como nenhuma Igreja ou Sé tem mais semelhança do que com a SantaIgreja Patriarcal; porque tem à vista o mar e o Tejo que é quase mar [...].

E desta sorte se estabeleceu na Sacrossanta Basílica Patriarcal o QuintoImpério do Mundo e de Cristo, prometido por Cristo ao primeiro Rei de Portugal[...]. De maneira que o Quinto Império do Mundo sendo espiritual e de Cristotambém é temporal e dos Reis Portugueses. E tendo-o fundado Cristo na SantaIgreja Romana o estabeleceu depois na Sacrossanta Basílica Patriarcal [de Lisboa],que por ser Igreja junta e unida com o Palácio de El-Rei, entre El-Rei e oEclesiástico está repartido sem divisão o Quinto Império [...].

Finalmente, chegando o Reino de Portugal a ser Cabeça do Impériouniversal de todo o Mundo e a Santa Basílica Patriarcal [de Lisboa] o trono dacadeira de S. Pedro, serão os Ilustríssimos Senhores vinte e quatro CónegosEminentíssimos Cardeais da Santa Igreja Romana. Esta conclusão infiro eu daspremissas em que tão solidamente tenho fundado este discurso, porque se osSenhores Cónegos da Santa Basílica são os mesmos vinte e quatro Sacerdotes eBispos Anciãos do Apocalipse, que se representam nos Sacerdotes queantigamente havia no Templo de Jerusalém, como diz Alapide 25, porque tambémtinham suas cadeiras e tronos dentro do Templo, sólios verdadeiramente

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25 Cornélio Alapide, Com. in Apoc., cap. 4,4.

augustos, como são os dos Príncipes e Reis, e como agora têm os Bispos e osPontífices, por cujo respeito se chamam as suas igrejas Catedrais 26. Sendo osmesmos vinte e quatro Sacerdotes e Bispos Anciãos no sentir do padre Alapide,figura dos Cardeais da Santa Igreja Romana, chamada vulgarmente Capela doSumo Pontífice, em que se vê a imagem da Celeste Jerusalém, donde se derivou etirou a Santa Igreja de Roma como cópia de tão perfeito original, segundo concluio mesmo Alapide.

Bem se segue que também serão Eminentíssimos Cardeais da SantaIgreja Romana os Ilustríssimos Cónegos da Sacrossanta Basílica Patriarcal [deLisboa], que é tão semelhante à Santa Igreja de Roma, como a Igreja Romana àCidade de Jerusalém Celeste, porque assim como da Celeste Jerusalém se derivoua Igreja de Roma, da Igreja Romana, como de perfeitíssimo original, se tirou aperfeita cópia da Sacrossanta Basílica Patriarcal [de Lisboa].

À Santa Igreja de Roma também se chama vulgarmente Capela do SumoPontífice e até nesta circunstância se parece com a Igreja Romana a Santa BasílicaPatriarcal [de Lisboa], porque, sendo antigamente a Capela Real dos MonarcasLusitanos, ainda hoje é Capela dos mesmos Reis e o vulgo lhe chama Capela.Porém, não só é imagem da antiga Jerusalém e da Jerusalém Celeste, mas novaCidade de Jerusalém descida do Céu à terra e colocada onde a vêem os olhos doGrande João. [...]. Nenhuma coisa traz João o Grande mais diante de seus olhos doque o culto Divino e o ornato desta nova Cidade de Jerusalém, a quem a suamagnificência tem dado tanta riqueza que no Ouro e Prata e pedras preciosasexcede ao Templo da antiga Jerusalém no reinado de Salomão. Por isso Deus oama, como amou ao mesmo Salomão, eternizando-lhe o Reino, dilatando-lhe oImpério e, sobretudo, prometendo a El-rei D. Afonso I pelo Ermitão do Campo deOurique de pôr os olhos de sua misericórdia, como também Deus prometeu aEl-rei David pelo Profeta Nathan de estabelecer o Reino e firmar o trono de Israelem seu descendente Salomão, segurando que não apartaria dele a suamisericórdia 27. E se Deus pôs os olhos da sua misericórdia em João, o Grande,grande fundamento tenho para dizer que também como João está em graça deDeus, porque na graça de Deus está aquele Monarca com quem Deus usa da suamisericórdia. Por isso verá a Jerusalém Celeste o mesmo João que viu a novacidade de Jerusalém descida do Céu à terra. [...].

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26 Idem.27 Paralipómenos, XVII, 11-13.

Anselmo Caetano Munhós de Abreu Gusmão e Castello Branco

Oraculo Prophetico, Prolegomeno da Teratologia, ou Historia Prodigiosa, em que se dàcompleta noticia de todos os Monstros, composto, para confuzao de pessoas ignorantes,satisfaçaõ de homens sabios, exterminio de prophecias falsas, e explicaçaõ de verdadeirasprophecias. Parte primeira. Em que se exterminaõ as prophecias falsas. Consagrada aMarte, como quinto entre os planetas. Por [...], Doutor pela Universidade de Coimbra,Familiar do Santo Officio, e natural da Villa de Soure.Lisboa Ocidental, Nova Oficina de Maurício Vicente de Almeida, morador nos SeteCotovelos junto a S. Mamede, 1733, p. 86-96 [BN: SA 3112 P]

[…]VII

[...]. Porém como Deus, quando, e como quer, restaura no tempo futuro osmesmos sucessos, que já nos séculos passados aconteceram: Et Deus instaurat quodabut; quem poderá, pergunto com Salomão, compreender os incompreensíveisjuízos de Deus, penetrando, e sabendo com toda a certeza os seus conselhos, oupoderá excogitar aquilo mesmo, que Deus quer fazer com a sua divina, e livrevontade: Quis enim hominum poterit scire consilium Dei? Aut quis poterit cogitare quidvelit Deus? (Sap. IX, 13) A esta pergunta, que não tem fácil reposta, satisfez omesmo Salomão desenganado a todos os homens presumidos, e temerários, paraque se não atrevessem a exceder os termos, que Deus tinha limitado ao seuconhecimento; porque com as suas imaginações tímidas, e incertas não podemexcogitar, nem penetrar este segredo: Cogitationes enim mortalium timidae, etincertae (Ibid., 13.); e com as imaginações humanas temerosas, ou temerárias sãomuito incertas: Timidae, et incertae; incertas ficam também sendo todas as coisaspassadas, que Deus oculta no futuro à nossa imaginação: Ommia in futurumservantur incerta (Eccles., IX, 2). E a razão do que a mesma razão não alcança vema ser; porque ignorando os homens, e não podendo conhecer a razão de todas ascoisas, que Deus obrou no tempo passado, segundo entendeu Salomão: Et intellexiquod omnium operum Dei nullam possit homo invenire rationem (Eccles., VIII, 17); comesta ignorância do passado não pode a imaginação humana saber por algummodo o futuro: Quia ignorat praeterita, et futura nullo scire potest nuncio. Nenhumadúvida haveria em conhecerem os homens o futuro, se com toda a certezapenetraram, ou souberam o passado; porém a ignorância do passado lhes ocultao futuro. Como não sabem o que já foi, ignoram também o que há-de ser; e destasorte não profetizam, porque não sabem. É, contudo, tão confiada, atrevida etemerária a ignorância e imaginação dos homens, que até do nascimento dosMonstros pretende[m] tirar fundamentos para adivinhar os futuros. Imaginam,que o mesmo nome Monstro está dizendo, ou mostrando, ser qualquer Monstroum mostrador do futuro. Não é isto imaginação minha, senão etimologia de SantoIsidoro referida por Ambrosino: Monstrum, ex mente Isidori itanuncupatur, quiaaliquid futurum monstrando, hominos moneat (Ambrosino, In Monstror. Historia,

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cap. 2, fl. 325). Alucinados com esta etimologia, censuram alguns Momos, que meimputam, e não impugnam o X dato; e não gostam, em gastam da Ennoea, zombareu dos prognósticos, que se fazem pelos Monstros. Dizem que seguindo, oudevendo eu seguir aos Teratoscopos podia, ou devia prognosticar naquele papelgrandes felicidades a Portugal; porque este Reino é tão venturoso, que até osMonstros lhe vaticinam bons anúncios.

No ano de 1638 nasceu em Lisboa, conforme escreve Ambrosino, umMenino monstruoso, e ferozmente armado; porque na cabeça tinha um capacete,nas pernas umas botas, e pelo corpo todas as armas defensivas, com que oshomens militares costumam ir à guerra, formadas prodigiosamente de váriosapêndices de carne e pele: Nuper etiam na Civitate Olysiponensi, antiqua RegumLusitaniae Sede, anno salutis post millessimum, et sexcentesimum trigesimo octavo, exhonestis parentibus in lucem prodivit infans armatissimus: quandoquidem variae cutis etcarnis appendices ratione figurae, illa arma tutelaria representabant, quibus se homines adbellum profecturi munire solent, imò, eadem materia galeatus, et acreatus erat (idem, cap.7, fl. 585.); e não se pode negar, que este Monstro, nascido em tal ocasião, e com tãomisteriosa figura, anunciou a feliz aclamação do Senhor Rei D. João IV sucedidano ano de 1640 e o venturoso sucesso que teve este reino com a guerra defensiva.

Fundando-se neste discurso, queriam que eu fizesse este prognóstico:estado a corte de Lisboa dividida em duas Cidades Oriental e Ocidental, queambas juntas fazem um monstruoso corpo, nasceu na cidade de Lisboa Orientalum monstro de dois corpos femininos, que no primeiro de Outubro de 1732 pariuuma mulher preta, de tal sorte unidos pelas costas, que representavam um X.Porém, como um destes corpos tinha tão grande cabeça, que lhe impedia onascimento, e antes de sair do útero excitava funestíssimos sintomas, degoladapor um cirurgião português, morreu antes de sair à luz, e matou a própria mãeque lhe tinha dado a vida; e deste símbolo queriam, que eu inferisse, ouconjecturasse, que o ferro, ou a espada dos portugueses degolará no Império doOriente uma Grão Cabeça, e com este golpe morrerá também a negra mãe, que ativer gerado; e deste modo ficará unido o Império do Oriente com o do Ocidentedebaixo do domínio de um só Imperador, assim como em Lisboa já estão unidoso Ocidente, e o Oriente debaixo do Império de um só monarca. De maneira que adivisão de Lisboa em Oriental e Ocidental, mas unida em uma só Corte, prognos-tica que será a cabeça do Império Ocidental, e Oriental, quando os portuguesesdegolarem no oriente uma Grão Cabeça. Em semelhantes vaticínios nãofundamos nós os nossos prognósticos. Com outros Monstros provaremos estasmesmas profecias.

Não consta do Sagrado Texto, que Deus admoestasse aos homens, nemlhes revelasse nenhuns futuros com o nascimento dos Monstros; mas emmonstruosos símbolos fundou Deus as profecias. Em sete Vacas monstruosamenterobustas, ou fracas, e em sete Espigas monstrificamente gradas, ou falidas,mostrou Deus a Faraó a grande abundância, ou esterilidade do Egipto. Em umaestátua monstruosamente formada de quatro metais revelou Deus aNabucodonosor todos os Impérios do Mundo. Em uma monstruosa Árvore, queplantada no meio da terra assombrava todo o mundo, e tocava com os remates no

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céu, representou Deus a Nabucodonosor a futura tragédia da sua inconstantefortuna. E em quatro monstríficas Feras descobriu Deus a Daniel as futurasMonarquias. Com estes símbolos monstruosos, ou com estes, e outros Monstroscelestes, em que Deus profeticamente fala aos homens, e não com outro género demonstros, profetizaremos a Portugal as suas maiores e futuras felicidades; porquese Deus assim falou, quem com as palavras de Deus não profetizará: DominusDeus locutus est, quis non prophetabit? (Amos, III, 8) Seguindo, e entendendo nós aosverdadeiros profetas, não podemos enganar-nos em os nossos vaticínios, eguiando-nos só pelo Monstro não podíamos acertar nos seus prognósticos; porqueaos Monstros naturalmente gerados, e preternaturalmente produzidos, chamou,discreta e sabiamente, Aristóteles erros da Natureza; e guiado pelos seus errosninguém acerta.

VIII

Bastava, leitor cristão, este último fundamento, para exterminar doMundo todas as profecias falsas, que sobre o nascimento e figura dos Monstros,produzidos e gerados pela Natureza, fundaram supersticiosamente osTeratoscopos, e sobejam neste papel razões sólidas, e argumentos eficazes, paramostrarmos com toda a verdade e certeza, que os monstros celestes, criados, ourevelados por Deus, são as suas verdadeiras, e últimas vozes. Para ouvirmos só asvozes de Deus, emudecemos primeiro as palavras dos homens. Exterminámosentão as profecias falsas, para explicarmos agora as verdadeiras profecias; porquedeste modo se conhecerá melhor a verdade à vista da mentira. Não introduzimosna primeira parte deste Oráculo Profético todos os Monstros celestes, nem outrosMonstros, que se puderam ver na Teratologia, ou na História Prodigiosa, em que sedá completa notícia de todos os Portentos; porque para o nosso intento não eranecessário referir agora todos, senão alguns destes prodígios. Com esta mesmadisposição compusemos e principiamos já a impressão da segunda parte domesmo Oráculo, interpretando nele alguns monstruosos símbolos, e discorrendomoral e politicamente sobre as suas profecias; porque pediu a matéria (sobre queprovocados escrevemos) esta mesma proporção de figuras monstruosas, para queas duas partes deste monstrífero corpo, correspondessem ao todo desta obra, eficasse por este modo monstrífica em tudo a nossa ideia. Não lançámos osfundamentos deste dividido edifício, segundo os oradores ensinam os preceitosda Retórica, senão conforme os artífices guiam as regras da Arquitectura; porquepara também ser monstruosa esta máquina era mais necessária a proporção nafirmeza, do que a disposição na formosura.

Sobre alicerces tão sólidos, e firmes levantaremos, com a divina graça,não a Cidade e Torre de Babel, para subir e não chegar da terra ao Céu, porémmostraremos edificada uma Nova Igreja e Santa Cidade de Jerusalém, que desceue chegou desde o Céu à nossa terra. Esta é a santa e nova cidade de Jerusalém, quedo Céu viu descer o Evangelista S. João, preparada primeiro por Deus e adornada,como a Esposa para seu Esposo: Et ego Joannes vidi Sanctam Civitatem Jerusalem

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novam descendentem de Caelo a Deo paratam, sicut Sponsam ornatam viro suo(Apoc., XXI, 2); e como João viu já esta nova e Santa Cidade de Jerusalém descidalá do Céu, facilmente a descobriremos agora cá na terra; porque se não podeesconder à nossa vista uma Cidade, posta, ou colocada sobre o alto monte desteMundo: Non potest Civitas abscondi supra montem posita (Mateus, V, 14). Os olhos deJoão foram os primeiros exploradores, que viram e descobriram esta nova eúltima, ou única Maravilha do Mundo; e nós mostraremos ao Mundo as grandesMaravilhas do Céu, que Deus fez para nos mostrar por João. O primeiro arquitecto,que lançou o fundamento a esta grande Cidade, foi o Divino e Supremo Artífice;porque desceu do Céu traçada pela infinita sabedoria de Deus: Descendentem deCaelo a Deo paratam; e tudo isto, que Deus tinha disposto, é o mesmo, que João temvisto: Et ego Joannes vidi; mas sobre esta Celeste Maravilha, que João viu com seusolhos, e sobre o mesmo fundamento, que Deus pôs a esta Santa, e Nova cidade,descobriremos nós agora (com os seus auxílios) o maior e melhor Templo que vêe venera o Mundo; porque sendo Templo de Deus, fundado em uma Pedraangular, ou quadrada, que é Jesus Cristo, nosso senhor, também é uma CidadeSanta, que domina, como Imperatriz, e Senhora das Gentes, a todo o mundo.

Falando o Apóstolo S. Paulo nesta grande Cidade de Deus, confessa naprimeira Epístola aos Coríntios, que sobre o fundamento, que ele (ajudado com aDivina graça) pusera a este edifício, como tão sábio Arquitecto, sobreedificaráoutro Artífice: Secundum gratiam Dei, quae data est mihi, ut sapiens Architectusfundamentum posui: alius autem super aedificat (I Ad. Corinth., III, 10); e na carta, queao depois escreveu aos Efésios descreve esta cidade tão grande, populosa e unidacom o Templo de Deus, fundado sobre a Divina Pessoa de Jesus Cristo, como emuma Pedra quadrada, ou angular, que todos os homens do mundo são seusCidadãos, sem haver entre todas as suas Nações nenhuns hóspedes, estrangeiros,nem peregrinos; porque todos são moradores da mesma cidade, em que habitamCatólicos e todos os domésticos da Casa de Deus, sobreedificados sobre ofundamento dos Apóstolos e dos Profetas, que é Jesus Cristo, como Pedra angular,ou quadrada, em quem todo aquele Edifício cresceu, para ser o Templo do SantoDeus: Ergo jam non estis hospites, et advenae: sed estis cives Sanctorum, et domestici Dei:super aedificati super fundamentum Apostolorum , et Prophetarum, ipso summo angularilapide Christo Jesu: in quo ommis aedicatio constructa crescit in Templum Sanctum inDomino (Ad. Ephef, II, 10-20); e conforme a descrição, que o Apóstolo fez desteTemplo, unido, ou identificado com esta Santa Cidade: sobre a Cidade Santa sedescobre o Templo de Deus; porque ficando o Templo superior à mesma cidade:Aedificatio constructa crescit in Templum, fica por este modo, como separado e porcima da Cidade o Templo, ou Santuário, que possui um só príncipe, como viuprofeticamente Ezequiel: Principi quoque hinc et inde in separationem Sanctuarii etpossessionem Civitatis (Ezequiel, XLV, 7).

Este Santuário, ou Novo Templo de Ezequiel viu este profeta separado seteléguas da Cidade marítima, chamada Oriental, e Ocidental; porque tem por umlado ao Oriente, e pelo outro ao Mar, e a sua longitude se estende (como vemosem Lisboa) desde a parte Ocidental, até ao termo Oriental: Et contra faciempossessiones urbis: a latere maris usque ad mare, et a latere Orientis usque ad Orientem:

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longitudinis autem juxta unamquamque partem a termino Occidentali, usque adterminum Orientalem (idem). Mas ainda que se não pode esconder uma Cidadeposta sobre um Monte, nem se podia ocultar este Templo edificado sete léguaspor cima de tão grande Cidade, nenhum dos Expositores Sagrados descobriu atéagora esta Cidade, nem mostrou ao Mundo aquele Templo.

Todos os intérpretes confessam com as mesmas palavras de Ezequiel, quenão puderam vadear a profunda (conforme S. Jerónimo, e Vilhalpando)subterrânea corrente de um rio tão caudaloso e profundo (como o Tejo) que corriapor baixo do mesmo Templo e da Cidade, em que se representa (além doBaptismo, e doutrina Evangélica) a obscuridade e profundidade das profecias,como de si, e em nome de todos afirma o grande Alapide: Ego de me illud possumdicere, quod Ezechiel de se (cap. 47) et post eum docti interpretes: torrentem non potuipertransire, quoniam intumuerunt aquae profundi torrentis, quae non possunttransvadari (Alapide, Com. in Proph. Maior, fl. 16.). Porém, ainda que S. Jerónimolhe chama labirinto intrincado e tenebroso; Santo Agostinho o nomeia escurolabirinto e profundo oceano; S. Gregório o compara a estrada desconhecida eencoberta com a noite, e ao caminho só conhecido dos Espíritos celestes; efinalmente o Padre Alapide o assemelha a uma vereda incógnita a todos oshomens. O mesmo Doutor Máximo sem nomear o Reino, nem a Província aondeesteja estabelecido este Templo, sobre tão Santa e Católica Cidade, afirma ser aIgreja de Cristo, edificada sobre esta firmíssima Pedra, para edificação quotidianados seus Santos: Et nos ad Christi Ecclesiam referimus, et quotidie in Sanctis ejusaedificari cermmus; e acrescenta o Padre Alapide por lição de S. Gregório, Viegas,Maldonado, Barradas, Heitor Pinto, e António Fernandes, que este Templo deDeus e Santa Cidade de Jerusalém, que viu o profeta Ezequiel, é o Principado daIgreja de Cristo tão duplicado como Eclesiástico e Secular: Per templum, et urbemEzechielis significari duplicem in Ecclesia Christi principaeum, Ecclesiasticum etSaecularem (Alapide, Com. in Ezech. Synop., cap. 40, fl. 1173). Este PrincipadoSecular, e juntamente Eclesiástico da Igreja não esta na Itália, mas existe separado,e fora de Roma estabelecido em uns mosteiros, e varões religiosos, consagrados detodo a Deus como declara o mesmo Alapide: Templum, esse monasteria, virosquereligiosos, qui a Roma separati sunt, non tam loco, quam mente, actione, etcontemplatione, ut se totos Deo consecrent (idem).

Muitos conventos há hoje fora de Roma, em que está edificada a Igreja deCristo, que é a Nova, e Santa Cidade de Jerusalém, descida do Céu à terra,segundo entendeu o Padre Alapide, explicando com as palavras de S. João oreferido texto de S. Paulo: Sanctus Joannes videns Sanctam Civitatem Jerusalem novamdescendentem de Caelo, id est, Ecclesiam Christi (Alapide, Com. in Epistol. ad Ephes.,cap. 2, 20, fl. 488); mas nenhum Mosteiro de religiosos se acha na Cristandade, queesteja edificado sete léguas fora, ou por cima da Cidade marítima, chamadaOriental, e Ocidental, fundado sobre águas subterrâneas e tão adornado como aEsposa para o seu Esposo: Sicut Sponsam ornatam viro suo, senão esta nova e únicaMaravilha do Mundo, que ao mundo mostraremos estabelecida em Portugal,edificada em Cristo, sobreedificada em Mafra e sobre o fundamento, que lhe pôsS. Paulo, pelo Real, e invicto braço do Sábio e Augusto Apolo Lusitano, e pelas

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mãos dos Portugueses, para Corte do Quinto Império de Cristo, conforme ainteligência, que às palavras do Apóstolo deu o seu melhor expositor CornélioAlapide: Fundamentum Ecclesiae vestrae ego posui Apollo, et alii videant quod illi superaedificent, non autem quid de novo fundent (Com. in Epistol. ad Corinth, cap. 3, 11, fl. 215).

Para falarmos sem lisonja, diremos tudo pelas bocas e língua alheias, quesão os Monstros celestes propostos aos Infiéis e as profecias explicadas aosCatólicos; e nem assim seremos ouvidos neste Povo, como disse também Deuspela boca de S. Paulo: Quoniam in allis linguis et labiis aliis loquar populo huic: et necsic exaudiet me, dicit Dominus. Itaque linguae in signum sunt non fidelibus, sedinfidelibus. Prophetiae autem non infidelibus, sed fidelibus (idem, cap. 14, 21). Não sepode entender este texto de S. Paulo, senão com a difícil inteligência deste lugar,que cita no profeta Isaías: In loquela enim labii et lingua altera loquetur ad populumistum (XXVIII, 11); porque este texto, como diz Alapide, acomoda, ou com elealude o Doutor das Gentes ao dom de línguas de fogo que deu o Espírito Santoaos Apóstolos: Quia locum Izaiae adaptat dono linguarum Apostolis dato (Alapide,idem, cap. 14, 21, fl. 316); mas se não ouvir o Povo o que dissermos e temos faladopor tantas línguas de fogo, quantos são os Fenómenos, Cometas, Meteoros, e outrosMonstros Celestes, ouçam ao menos as Profecias, que não ficaram escuras, depoisde alumiadas com estas Luzes do Céu. Tinha Deus profetizado a Abraão umadescendência tão multiplicada como as Estrelas, a posse da Terra de Promissão, aperegrinação de seus descendentes, o cativeiro do Egipto, o trânsito do mesmoAbraão, e a restituição dos Hebreus à terra Prometida; e como a escuridade dasprofecias era tão grande como a noite, em que Abraão viu tudo isto com os olhosfechados, como quem estava dormindo, com um Meteoro, ou Fenómeno de fogo,semelhante a uma fornalha e a lâmpada acesa, que passava por entre as divisões,ou partes divididas dos animais sacrificados, alumiou Deus ao mesmo Patriarca,para ver, como diz Alapide, com aquela luz celeste o mistério de tão escurasprofecias: Cum ergo occubuisset sol, facta est caligo tenebrosa,etE apparuit clibanussfumans, et lampas ignis transiens inter divisiones illas (Alapide, Com. in Genes.,cap. 15, 17, fl. 163).

E se para entenderem as suas profecias alumia Deus aos Patriarcas, eProfetas com Meteoros do Céu, e Monstros Celestes, porque não acenderíamos nóstambém até agora estas Luzes Celestes, ou estas Línguas do Céu, para explicarmosvaticínios dos Profetas e Patriarcas aos homens, ou alumiarmos daqui em diantecom elas escuríssimas profecias?

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Anselmo Caetano Munhós de Abreu Gusmão e Castello Branco

Sistema Medico, galeno – químico do Morbo Hungárico, ou do Sumo grau das Febresagudas, coléricas, ardentes, atrabiliárias, intermitentes, perniciosas, contínuas, malignas,e pestilentas, complicadas com todos os sintomas funestos, e mortais, especialmente comvómitos negros, e dejecções atrabiliárias, como foram as que na quadra do Outono do anode 1723 infestaram esta Corte de Lisboa Oriental, e Ocidental, chamadas vulgarmente:Vómitos Pretos. Segunda Parte. Consagrada, ao Misterioso, e Real numero quinário. DoAugusto, Potentíssimo, e Invictíssimo Senhor Dom João V. Rei de Portugal. [BN:cod. 10553]

DedicatóriaSenhor,Nunca esteve mais florense no orbe literário, a República das Letras, do

que no tempo, em que Vossa Majestade dominando o Mundo político se fez neletão respeitado pelas ciências, como obedecido pelas armas. Neste venturososéculo admirou o Mundo racional em Vossa Majestade a sabedoria de Mercúrio,junta com o valor de Marte; como nos tempos passados viu no Império de Octávioe de Tito, a ciência unida com o valor e o ceptro na mão da pena; porque ambosestes grandes heróis foram valorosíssimos Césares, e doutíssimos ImperadoresRomanos, muito honradores das ciências, e magníficos remuneradores dos varõessábios. Com estas duas excelências e prerrogativas, fingiu a supersticiosagentilidade a Júpiter com a mão direita armada de raios, e com a cabeça tão sabia,e fecundamente entendida, que dela nascera Minerva, Deusa das Ciências. Mas asabedoria, e valor, que em Júpiter é fábula com encarecimento, em VossaMajestade é verdade sem hipérbole; porque nas empresas militares é Marteinsensivelmente armado com os raios de Júpiter; e na compreensão de todas asciências, é Mercúrio universalmente consumado com a sabedoria de Minerva.

Assim o testemunham as Universidades e Academias, de quem VossaMajestade é Mestre e Protector. E o aclamam também as vitórias com que VossaMajestade meteu as luas otomanas, debaixo dos pés da Igreja Católica 28. Por issotodas as coroas do Universo, ou sejam de ouro como os Diademas dos Monarcas,ou de Louro como as aureolas dos sábios, em Vossa Majestade buscam econseguem a protecção, ou a defesa. Isto publica as alianças de todas as PotênciasDominantes e as obras de todos os Escritores; porque nenhum livro aparece hojeem Portugal, que não mostre no Real retrato, ou não diga na primeira folha, queVossa Majestade é o seu Augustíssimo e Magnificentíssimo Protector. Nemreinam pacíficos e seguros nos seus Tronos aqueles Monarcas e Príncipes maissoberanos, a quem o invencível braço de Vossa Majestade, não segura e sustentafirmes nas cabeças as coroas.

Este conhecimento, e notícia que tenho dos obséquios, que a VossaMajestade fazem os autores estrangeiros, sendo em mim obrigação, como vassalo,

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28 Apocalipse, 1, 2 e Salmos, LXXI, 7.

me anima também oferecer e consagrar estes cinco livros ao Misterioso e Realnumero quinto do Augustíssimo nome de Vossa Majestade, por serem compostosem seu obséquio, e impressos para utilidade dos seus vassalos. Considerando quereceberia Vossa Majestade esta pequena oferta, tão útil e necessária ao bemcomum, com a mesma clemência e incomparável piedade, com que mandousocorrer os seus vassalos na ocasião em que sua Liberalíssima magnificêncialivrou a corte de Lisboa de uma funesta Endemia, excedendo nesta piedosa egenerosa acção ao grande Imperador Tito I, quando com a sua excessivaprodigalidade, como verdadeiro Pai da Pátria, mandou socorrer a Roma aflita, einfeccionada com uma cruel pestilência. Por isso, com melhor fundamento, que aTito se deu então a Vossa Majestade o Epíteto de Pai da Pátria, Regalo, Delícia dogénero humano; porque com delícias, regalos e com inumeráveis remédios,consolou todos os enfermos e livrou da morte a infinitos homens.

Também, Senhor, servem algumas vezes as Majestades aqueles autoresque escrevem livros necessários para utilidade dos seus vassalos. E se, de passagem,ponderam, ou imortalizam as acções heróicas dos soberanos, com as mesmas penasfazem voar pelo Mundo a fama dos Reais Ceptros. Sepultadas estariam hoje nosmesmos túmulos, que escondem as cinzas dos Césares e dos Alexandres, as suasproezas e vitórias, se as não divulgaram no Mundo as penas imortais dos Cúrsios edos Suetónios. Não dependem as acções heróicas, e régias de Vossa Majestade emtudo excelsas e supremas de tão pequeno brado, para serem ouvidas comadmiração em todo o Mundo, porque os clarins da fama, com o seu contínuo eimortal alento, as publicaram sempre na dilatada esfera do Universo. Mas tambémelogiam às Majestades da Terra as vozes e os silêncios dos Mudos e dos Pequenos,que louvam, como disse El Rei David, a Majestade do céu 29. E quando eu nãopublicara, na primeira parte desta obra, a grande caridade com que VossaMajestade socorreu a pobreza e o povo de Lisboa, na mesma ocasião, em que seráo Mundo, que a vitória que alcançaram os Portugueses de tão cruel contágio, foiglorioso troféu da sua Real magnificência. Chamariam as mesmas pedras destacorte (como no triunfo de Cristo as de Jerusalém 30) em seu merecido aplauso,quando ingratamente emudecessem as nossas vozes, tomando por sua conta oinsensível, o agradecimento de tão grande e imortal benefício, que só podecompreender o racional e não sabe explicar a Língua.

Como Vossa Majestade fez estas grandiosas esmolas pelo amor de Deus,e por sua real grandeza, justo me parece repartir com Deus e Vossa Majestade asprimícias dos meus estudos ou dos estudos que não são meus, que só por serviçoda Divina e humana Majestade, e para utilidade dos homens, transcrevi de muitosvolumes, para juntar em seis livros, em que saem outra vez à luz, como Fénixrenascida das suas próprias cinzas. No primeiro livro, que é a primeira parte destaobra, provo com a certeza infalível da Fé Divina, que com as máximas da Políticahumana, que o verdadeiro e mais eficaz remédio de todas as moléstias, é recorrerprimeiro a Deus, implorando os seus auxílios. E nos últimos cinco livros, de que

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29 Gálatas, VIII, 3 e Mateus, XXI, 26.30 Lucas, XIX, 40.

consta a segunda parte, mostro conforme os preceitos da Arte Médica, que depoisdos auxílios Divinos obram seguramente os remédios humanos. Com esta mesmacoerência consagro a primeira parte a Deus, para que, sempre que o implorarmos,nos assista com os seus auxílios. E dedico a segunda ao número quinto do MaiorMonarca dos homens 31, para que a sua Real grandeza lhe facilite nestes livros osremédios, porque como ensina Cristo supremo senhor e Máximo Monarca detodos os Dominantes, quando os súbditos satisfizerem o que deverem a César e aDeus, hão-de dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César 32.

Não comparo, nem equiparo a César, a Real, e Augustíssima Pessoa deVossa Majestade, porque vence Vossa Majestade a César, quase como a Césarinfinitamente excede o mesmo Deus. De Júlio César, que sem controvérsia foi omaior Monarca do Mundo, tomaram, ou herdaram, o nome de Césares, todos osimperadores romanos, que por sucessão, eleição, ou tirania lhe sucederam noimpério. E compondo-se o nome César de cinco letras, com uma só e última letrados cinco caracteres, com que se escreve o Augustíssimo nome João V vencetambém Vossa Majestade a Júlio César, como com uma só batalha desbaratouJosué aos cinco reis das Amorreus, ou como David, com uma só das cinco pedras,derrubou por terra ao gigante dos Filisteus 33. Porque é tão superior às cinco letrasde Júlio, e de César, o Real número V, como o quinto Império do Mundo, do qualVossa Majestade é o primeiro Monarca, é supremo ao Império quarto de que JúlioCésar foi o principal imperador.

Na ordem misteriosa dos quatro impérios dos Assírios, Persas, Gregos eRomanos, foi o Romano o quarto império. Todos estes impérios revelou Deus aosprofetas na figura de quatro metais, Ouro, Prata, Bronze e Ferro, como naprimeira visão diz Daniel 34; ou quatro carroças, tiradas por outros tantos cavalosCastanhos, Murzelos, Pombos e Remendados, como viu Zacarias 35; ou quatroferas, Leão, Urso, Pardo e de outro Bruto, a quem o texto sagrado não dá outronome, declarando somente que é forte, terrível e admirável, como na segundavisão descreve Daniel 36; ou, finalmente, de quatro rodas, pelas quais tiravamquatro animais enigmáticos, Homem, Leão, Boi e Águia, como se vê na carroça deEzequiel 37. E a todos estes quatro impérios destruiu uma Pedra misteriosa, que navisão de Zacarias se chama Dominador de toda a Terra e na segunda profecia chamaDaniel quase Filho do Homem, que é também aquela Águia Real, que na carroça deEzequiel, voa sobre todos os quatro Animais 38, e significa (como as outrasfiguras), o Imperador do quinto império, porque aparece no quinto lugar,imediatamente depois do número quarto, em que esteve o Império Romano.

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31 Apocalipse, XIX, 17.32 Mateus, XXII, 21.33 Josué, X, 16 e 26 e 1 Reis, XXVII, 40 e 49.34 Daniel, I.35 Zacarias, I.36 Daniel, VII.37 Ezequiel, 1.38 Idem.

Nesta carroça de Ezequiel símbolo dos quatro impérios 39, representa a Águiaconforme os melhores Expositores a S. João Evangelista, que voando sobre todosos quatro Animais, também figura o Império quinto, e o seu Imperador 40. É certoque este é o quinto Império de Cristo, que o mesmo senhor fundou no primeiroRei de Portugal, para se perpetuar na sua décima sexta geração, que foi o SenhorRei D. João IV, para se estabelecer ou eternizar na sua descendência, ou proleatenuada 41, que sem controvérsia foi o Augustíssimo Senhor Rei D. Pedro II aquem Vossa Majestade sucedeu no ceptro, como legítimo sucessor e filho. E comoS. João sendo um e o último dos quatro Evangelistas, parece que não podia voarsobre todos os outros animais, que ocupavam os primeiros lugares, ficando ele noúltimo. Por isso, João, quando voa sobre João o quarto animal enigmático dacarroça de Ezequiel, era expressa figura de João V, porque em quinto lugar ficaJoão, remontando-se no voo sobre João o IV. Porque sobre o quarto não voa, nempode subir imediatamente outro número senão o quinto. Esta me parece razãoaltíssima, porque o quinto Império do Mundo, figurado em João, e prometido porCristo a outro João, descendente do Senhor D. Afonso I e da prole atenuada da suadécima sexta geração, não compete, nem pode competir a outro Monarca, senão aum Rei de Portugal, chamado João V, porque só ele, sendo João, voa sobre João oIV e como Águia, sobre outra Águia, símbolo e insígnia do quarto Império dosRomanos.

Assim voa, ou se remonta Vossa Majestade sobre César e sobre todos osMonarcas dos quatro Impérios dos Assírios, Persas, Gregos e Romanos, não só porrazão do nome de João, senão também por respeito do Real número V, porque émais augusto e pré-excelente, do que foi o número e nome dos mesmos Césares, porser animado o número quinário e sem alma o símbolo quarto 42, como são tambémdesanimados os metais e as rodas, que simbolizavam os quatro Impérios. Por isso,nas visões misteriosas de Daniel aparece o Império quarto comparado ao ferro, queé o mais vil e forte dos metais, ou uma terrível fera, sem nome, nem alma, que émaior vileza entre os brutos. Representando, pelo contrário, Ezequiel ao número Vna Águia, que só tem cinco letras no nome e com grande espírito voa sobre onúmero quarto, como se remonta sobre todas as aves do céu, consagrada por estacausa (como Imperatriz de todas), ao Deus Júpiter Supremo Monarca do fabulosoOlimpo. E se na visão do profeta Daniel é o nome de Vossa Majestade, quase Filhodo Homem, se como Dominador de toda a Terra não chega a ser divino, o seu heróico eelevado ânimo, o seu Real e sublime espírito, o canonizam por mais que humano.

Para exaltarem a Júlio César sobre os homens e para também o colocarementre os Deuses, escreveram os historiadores e poetas romanos que a sua alma setransformara em estrela, ou cometa brilhante, depois da morte do mesmo César 43,

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39 Cornélio Alapide, Com. in Apoc., cap. 4,4.40 Idem, fl. 959.41 Monarquia Lusitana, parte 3, cap. 5 e Crónica de Cister, V, 3 cap. 3. António Vieira, Palavra de Deus Empenhado, § VIII, fl. 58.42 Petrus Bung, De Myster. Numer.: De numer. V, fl. 249.43 Suetónio, lib. 1 n. 88, fl. 138.

porque no fim da sua vida, apareceu no céu por tempo de sete dias este luminosometeoro, e por memória deste imaginado prodígio, coroaram todas as estátuas deCésar com uma Estrela. Ainda quando fora verdadeiro este fingimento, oucrédula imaginação dos antigos romanos, fica Júlio César tão escurecido e inferiorà vista de João V, como fica um cometa comparado com um Astro e um meteoroà vista de uma Estrela. Porque se os Egípcios pintavam um Astro para significaro número V, com o número quinário mostra o seu nome Augusto que VossaMajestade é não só um grande e brilhantíssimo Astro do céu 44, mas que em sicompreende sempre todas as luzes nas conversões dos setes planetas. PorqueVénus e Mercúrio fazem a mesma conversão com o Sol 45. Porém, que muito é, sen-hor, que o número quinto representa a Vossa Majestade como estrela da primeiragrandeza e como todos os sete Planetas juntos, se este mesmo número com cincocírculos máximos compreende toda a Esfera Celeste 46. Esta é só a medida do Realnúmero do Augustíssimo nome de Vossa Majestade, e o dilatado espaço do seuquinto Império, porque todo o Mundo obedece a um Monarca, que só com o seunome ocupa e compreende toda a Esfera do Universo. E se por memória daquelameteorológica Estrela, coroaram os romanos com um só Astro todas as Estátuasde César, por razão do número V coroam a Vossa Majestade todas as luzes doFirmamento, aonde também há uma constelação em forma e com o nome de Cruz,para remate de seu Imperial Diadema.

Finalmente, senhor, com cinco palavras entendidas em seu verdadeirosentido, queria antes falar na Igreja o Apostolo S. Paulo, do que com dez milvocábulos proferidos com a língua 47. E com cinco letras quero eu também elogiarsem lisonja o misterioso número quinto com o Majestoso, Augusto, Famoso, Reale Admirável Templo de Mafra, quinta essência de todas as maravilhas do mundo,que só admiram os cinco sentidos e não explicaram dez mil línguas, o qual VossaMajestade edificou com a maior magnificência, para consagrar com grandepiedade à Religião Seráfica. Porque o seu grande Patriarca S. Francisco, e osAugustíssimos senhores Reis de Portugal são tão amados e favorecidos de CristoNosso Senhor, que só eles mereceram e conseguiram a honra de receber as cincochagas que o mesmo Senhor estima tanto, que ainda hoje as conserva em seusantíssimo corpo, como imortal troféu da sua morte. Com altíssima providência,e grande mistério, edificou Vossa Majestade em Mafra o Real Palácio, unido como Augustíssimo Templo, como edificou Salomão o Templo de Jerusalém juntocom o seu Palácio 48. Porque unindo-se também os religiosos e os exércitos, osmilitares e os pregadores e, armados todos com as cinco chagas de Jesus,conquistarão o mundo todo como César e a Terra Santa como Josué e adefenderão como David, com braços tão invencíveis como o do famoso JudasMacabeu. Entre os Imperadores, ou Césares Romanos, que se chamaram

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43 Suetónio, lib. 1 n. 88, fl. 138.45 Idem, ibidem.46 Idem.47 Epístola aos Corínteos, I, 1448 Paralipómenos, I, 25.

Constantinos, deveu o primeiro, chamado por antonomásia o Magno, toda a suagrandeza ao milagroso aparecimento da cruz, que do céu lhe segurou com estainsígnia todas as suas vitórias. E muito mais certificam os troféus e triunfos deJoão V, ou Magno, as cinco chagas de Jesus, que em forma também de cruz são asarmas, ou cinco quinas de Portugal, principalmente quando na mesma cruz ondeCristo prometeu a Vossa Majestade o quinto Império estão unidos os dois braçosde Cristo e de Francisco, para defenderem os portugueses com as suas cincochagas, que por triunfarem já da morte, não podem dar a Portugal senão vitóriase troféus.

Tão glorioso e misterioso é o número quinto, que até parece conduziu emos nomes daqueles grandes heróis Jesus, Josué, David, Judas, César, aos quaisjunto um Imperador chamado por antonomásia o Magno, para vencerem tantasvitórias e alcançarem por elas imortais triunfos. E agora noto eu, que só no quintopreceito do Decálogo proíbe Deus o Homicídio, porque parece providência sua,que o número V seja o seguríssimo asilo da imortalidade. O quinto não matará:Imortal faria a Vossa Majestade só o número V do seu Augustíssimo nome, se assuas heróicas acções e as suas virtudes católicas e cristãs o não tiveram jáimortalizado. Guarde Deus a Real e Augustíssima Pessoa de Vossa Majestade poreternos anos, para que, no felicíssimo Império de Vossa Majestade, dominePortugal o quinto Império do Mundo, que o mesmo Senhor em Vossa Majestadetem estabelecido para aumento da Igreja Católica, exaltação da Fé, glória dePortugal e ruína de seus inimigos.

Lisboa Ocidental, 7 de Setembro de 1729.

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PADRE TIMÓTEO DE OLIVEIRA

Sermão da Dedicação da Santa Igreja Patriarchal (Lisboa, 1748), p. 6 e 27 [BN: R 23279 P]

[...] Se ressuscitara Salomão, veria com assombro imitadas as riquezas do seufamoso templo; admiraria na Corte de Portugal uma Jerusalém nova, ou umanova esposa, soberanamente enriquecida para receber dignamente o DivinoEsposo [...]. Os Padres Alcazar e Turriano, explicando a visão, dizem com outros,que a Jerusalém nova é a Igreja Católica, a qual sucedeu à Igreja Hebreia [...] Sejaembora assim. Mas como a torrente dos Padres e Intérpretes aplicam esta visão doApocalipse aos templos dedicados a Deus, vendo eu no nosso as mesmascircunstâncias que naquela viu o Profeta, com maior razão posso dizer, e digo, quefalou particularmente do nosso a profecia [...].

***

ANÓNIMO

Eccos funebres das Vozes Saudosas, que chegárão de Portugal á India pela morte do muitoAlto, Poderoso, e Fidelissimo Rey, e Senhor D. João V. Communicados ao mesmo Reynode Portugal pelos religiosos da Companhia de Jesus, da Provincia de Goa. Lisboa, Francisco da Silva, 1753, p. 37-41 [BN: L 1308 A]

[...] fale por todos aquela maravilha erigida em Mafra consagrada ao insignePortuguês Santo António, porque basta esta para El-Rei perpetuar o seu nome naeternidade de seus mármores [...]. Cedam finalmente todas as sete maravilhas domundo, porque os fins das suas erecções não foram decorosos a seus fundadorese o fim daquele magnífico Convento foi tão glorioso a quem o fundou, quanto nosmanifestam hoje os afectuosos Cultos e Religiosos obséquios que nele fazem aDeus os esclarecidos Filhos do grande Patriarca S. Francisco [...] que outra coisahaviam de dar Salomão e D. João V sendo Reis e que outra coisa havia de receberquem põe e tira Reis, sendo Deus, senão Templos igualmente singulares pelamatéria, que pelo artifício, para que neles se visse louvada e adorada a SupremaMajestade. Foram sem dúvida uma [Templo de Salomão] e outra obra [Mafra],um e outro Templo, um e outro Santuário empresas magníficas de um e outroMonarca; mas não chegaram a ser Padrões em que ficassem completas asmemórias da sua Sabedoria, que é outra qualidade de que se reveste o nosso SolLusitano, quando entrou no Signo de Aries. Porque do Signo de Piscis, por ondepassou em silêncio, tomou somente o segredo, que é também efeito de Sábios [...]Mas o segredo para quê? Para dar alma aos negócios e para se conter nos ditos,entendendo que os de um Rei devem ser muito comedidos e muito considerados,e como nele foram sempre muito premeditadas as suas obras, foram também,conforme as de Isaías, muito advertidas e circunspectas as suas palavras [...].

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