A Economia Solidária e os Bancos Comunitários de Desenvolvimento: o paradigma da colaboração...
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Faculdade de Ciências Sociais
Curso de Graduação em Relações Internacionais
SÃO PAULO 2015
GABRIELA NÉSPOLI DE CAMARGO
A Economia Solidária e os Bancos Comunitários de Desenvolvimento:
o paradigma da colaboração como alternativa de desenvolvimento no
atual sistema econômico internacional
GABRIELA NÉSPOLI DE CAMARGO
A Economia Solidária e os Bancos Comunitários de Desenvolvimento:
o paradigma da colaboração como alternativa de desenvolvimento no
atual sistema econômico internacional
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como exigência parcial para a graduação em
Relações Internacionais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
sob a orientação de Lúcia Maria Machado Bógus.
SÃO PAULO
2015
"A proper community, we should remember also, is a commonwealth: a place, a
resource, an economy. It answers the needs, practical as well as social and
spiritual, of its members-among them the need to need one another. The answer to the present alignment of political power with wealth is the restoration of the
identity of community and economy." – Wendell Berry1
1 Wendell Berry é romancista; poeta, ativista ambiental;,crítico cultural, agricultor e defende as economias locais, as comunidades agrícolas e as instituições familiares. O livro The Art of the Commonplace reúne 21 de seus ensaios, que oferecem uma alternativa rural para a cultura urbana em expansão. BERRY, Wendell. Racism and Economy. In: The Art of the Commonplace: The Agrarian Essays. Counterpoint Press, 2003, p. 63.familiares.
SUMÁRIO:
1. Introdução................................................................................................................... 05
2. Os impasses do sistema econômico e financeiro atual............................................... 07
3. Enquadramento teórico - A Economia Solidária e o paradigma da colaboração....... 17
4. Os Bancos Comunitários de Desenvolvimento.......................................................... 25
4.1 O Banco Palmas - Fortaleza (CE), Brasil................................................................. 25
4.2 Os Bancos Comunitários de Desenvolvimento do Brasil......................................... 27
5. Desafios e possibilidades da Economia Solidária e dos Bancos Comunitários de
Desenvolvimento............................................................................................................ 35
6. Considerações finais................................................................................................... 41
7. Referências bibliográficas.......................................................................................... 43
5
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo deriva de uma inquietação com o desenvolvimento que os
principais atores do sistema internacional, Estados e grandes corporações, parecem
buscar no contexto da globalização. Um modelo principalmente econômico, no qual as
preocupações com a sociedade e o meio ambiente são colocadas em segundo plano.
Esta preocupação conduziu à investigação do campo da Economia Solidária como uma
alternativa de desenvolvimento no atual sistema econômico internacional, uma vez que
esta abordagem se propõe a considerar indivíduos, sociedades e meio ambiente na
formulação de estratégias de crescimento.
Assim, a proposta deste trabalho é apresentar a Economia Solidária e os Bancos
Comunitários de Desenvolvimento como soluções potenciais aos problemas
econômicos, sociais e ambientais da agenda internacional atual, os quais aparentam se
colocar além das possibilidades e disposições do paradigma neoliberal.
O primeiro capítulo apresenta as características da globalização e os principais
efeitos desse processo, dando destaque à concentração do poder econômico e político
nas mãos de grandes corporações; paralela ao enfraquecimento de políticas sociais e
mecanismos de redistribuição de renda por parte dos Estados. O intuito é levantar as
limitações da perspectiva neoliberal de desenvolvimento para responder a desafios
mundiais como a a desigualdade social, a pobreza e a fome, os quais permanecem
latentes no contexto da globalização.
A Economia Solidária é exposta no segundo capítulo como uma abordagem com
potencial para melhorar o cenário atual e promover o desenvolvimento social
sustentável e a inclusão social, equilibrando aspectos econômicos, sociais, políticos e
ambientais. São apresentados um breve contexto do surgimento da Economia Solidária
no mundo; algumas definições e nomenclaturas da Economia Solidária; os princípios
sobre os quais está baseada - tais como a colaboração, a solidariedade e a auto-
organização democrática - e as diversas esferas sobre as quais este conjunto de práticas
se propõe a atuar.
Para auxiliar na compreensão das iniciativas que compõem a Economia
Solidária, no terceiro capítulo é elaborada uma apresentação sobre o Banco Palmas e os
Bancos Comunitários de Desenvolvimento no Brasil. Considerando-os como uma das
formas de empreendimento solidário mais bem desenvolvidas no Brasil e no mundo,
apresento um breve contexto histórico e institucional do surgimento e crescimento
destas organizações; além de suas principais características e formas de atuação, a
6
exemplo da rede de produtores e consumidores, a moeda social e os fóruns de
desenvolvimento locais.
Finalmente, o quarto e último capítulo discorre sobre os desafios da Economia
Solidária e dos Bancos Comunitários de Desenvolvimento e as possibilidades para
potencializar a sua atuação e alcance. Cinco impasses de natureza educacional;
econômica; institucional e jurídica são discutidos; e três caminhos são apresentados
como forma de romper com tais impasses. Nesse ponto, fica evidente a importância da
articulação conjunta entre organizações de Economia Solidária; governos; universidades
e demais atores para o fortalecimento e a expansão do campo da Economia Solidária.
7
2. OS IMPASSES DO SISTEMA ECONÔMICO E FINANCEIRO ATUAL
O atual sistema econômico e financeiro está imerso em uma série de problemas de
ordem econômica, social, cultural e ambiental. A desigualdade social e os impactos
ambientais são duas destas questões que têm atraído considerável atenção internacional,
e há décadas são observados com preocupação.
Após o colapso financeiro de 2008, provocado principalmente pelo descontrole no
processo de especulação financeira liderado por grandes corporações transnacionais,
tais questões - que já costumavam ser objeto de inquietação de organizações não-
governamentais - ganharam força e passaram a ser questionadas mais ativamente por
governos e pelo grande público. Apesar de não ser o primeiro colapso da história do
capitalismo, o evento de 2008 abalou a política e a sociedade internacional por conta da
dimensão dos prejuízos causados, demonstrando a necessidade de repensarmos o
paradigma econômico vigente, no qual a economia parece operar em função da
concentração da riqueza.2
A década de 80 representa um marco para esse tema, por conta da crise do Estado
de Bem Estar Social e sua substituição pelo modelo neoliberal de desenvolvimento. No
plano internacional, o neoliberalismo é marcado pela expansão das empresas
transnacionais, pela internacionalização do capital e pelo surgimento de uma nova
divisão internacional do trabalho, na qual as forças produtivas e as relações de produção
se desterritorializam, ainda que de maneira desigual, contraditória e simultaneamente
combinada3. Já no plano nacional, o modelo se estrutura sobre a redução da intervenção
estatal nos processos econômicos, a partir da privatização e desregulamentação de
empresas e instituições governamentais - levando a tentativa de criação do "Estado
mínimo" - e sobre a abertura das economias nacionais ao mercado global4. Boaventura
de Souza Santos sintetiza as orientações da doutrina neoliberal para os Estados:
2 LITAER, Bernardo; PRIMAVERA, Heloísa. Moedas complementares, bancos comunitários e o futuro que podemos construir. In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando, São Paulo, A9 Editora, 2013. 3 VICENTE, Maximiliano Martin. História e comunicação na ordem internacional. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, p. 127; IANNI, Octavio: Globalização e Neoliberalismo, São Paulo em Perspectiva, 1998, p. 27. 4 Ianni define o Estado Mínimo como aquele que apenas estabelece e fiscaliza as regras do jogo econômico, mas não joga. No neoliberalismo, "o poder estatal é liberado de todo e qualquer empreendimento econômico ou social que possa interessar ao capital privado nacional e transnacional." IANNI, Octavio: Globalização e Neoliberalismo, São Paulo em Perspectiva, 1998, p. 27. COX, R.W. “Critical political economy”. In: HETTNE, B. (org.). International political economy (understanding global disorder). Londres, Zed Books, 1995.
8
"(...) as economias nacionais devem abrir-se ao mercado mundial e os preços domésticos
devem tendencialmente adequar-se aos preços internacionais; deve ser dada prioridade à
economia de exportação; as politicas monetárias e fiscais devem ser orientadas para a
redução da inflação e da dívida pública e para a vigilância sobre a balança de
pagamentos; os direitos de propriedade privada devem ser claros e invioláveis; o setor
empresarial do Estado deve ser privatizado; a tomada de decisão privada (...); a regulação
estatal da economia deve ser mínima; deve reduzir-se o peso das políticas sociais no
orçamento do Estado, reduzindo o montante das transferências sociais, eliminando a sua
universalidade, e transformando-as em meras medidas compensatórias em relação aos
estratos sociais inequivocamente vulnerabilizados pela atuação do mercado."5
O fortalecimento do paradigma neliberal desequilibra as relações de poder em
favor do capital, tanto em relação aos Estados, quanto aos cidadãos nacionais. Com
isso, fontes de poder econômico não representativas passam a incidir sobre a autonomia
de governos e sociedades, em escala mundial6. A crescente e generalizada liberalização
das atividades econômicas (produção, distribuição, trocas e consumo), visando a
expansão da produtividade, da competitividade e dos lucros do setor privado em
mercados nacionais, regionais e mundiais, permite, pouco a pouco, que as estruturas de
poder político e econômico sejam ocupadas por grandes corporações7. Conforme afirma
Cox, “o mercado irrompe livre de quaisquer barreiras nacionais, submetendo a
sociedade global às suas leis” (COX, 1995: 39). Neste contexto, Saskia Sassen observa
o surgimento de uma "nova ordem institucional privada ligada à economia global", na
qual as exigências do mercado são incorporadas pela institucionalidade estatal, e o
dualismo entre Estado e Mercado praticamente deixa de existir8.
A revolução nas tecnologias de informação, comunicação, transporte e produção
impulsiona a disseminação das políticas neoliberais, que atingem não apenas os países
capitalistas, mas também os socialistas e os em desenvolvimento (IANNI, 1998: 27).
Em meados da década de 80, o termo "globalização" é popularizado pela imprensa
financeira internacional9, fazendo referência, inicialmente, à expansão extraordinária da
5 SANTOS, Boaventura de Sousa. Os processos da globalização. In: A globalização e as ciências sociais. Editora Cortez, 2ª edição, 2002, p. 29 e 30. 6 ARCHIBUGI, Daniele; HELD, David; KÖHLER, Martin. Re-imagining Political Community. In: Studies in Cosmopolitan Democracy, Stanford University Press, Califórnia, 1998. 7 DOWBOR, Ladislau. Democracia Econômica - Alternativas de gestão social, 2012. Disponível em www.dowborg.org. 8 SASSEN, Saskia. Sociologia Da Globalização. Porto Alegre. Editora Artmed. 2010, p. 32. 9 RIBEIRO, Wagner Costa. Globalização e Geografia em Milton Santos, Universidade de São Paulo, 2002.
9
produção e dos fluxos internacionais de bens, serviços e capitais; ao acirramento da
concorrência nos mercados internacionais; à maior integração entre os sistemas
econômicos nacionais10; e à preeminência de agências financeiras multilaterais, como o
Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, que sustentam o receituário
neoliberal11.
Enquanto fenômeno social complexo, a globalização apresenta uma dinâmica
heterogênea, seletiva, assimétrica e é dotada de uma geometria variável, provocando
impactos diferentes de acordo com o local; a população; a camada social e a área de
estudo analisada (SANTOS, 2002: 51).
Apesar disso, é comum que o discurso sobre a globalização seja feito por aqueles
que mais se beneficiaram dela, expondo apenas as os impactos positivos do processo.
Todavia, é ilusório pensar que as nova ordem internacional foi capaz de eliminar as
hirarquias do sistema mundial (SANTOS, 2002: 56). Um relatório da ONU publicado
em 2000 afirma: "Milhões de pessoas ao redor do mundo vivenciam a globalização não
como um agente do progresso, mas como uma força disruptiva e até mesmo destrutiva,
enquanto outros milhões são completamente excluídos de seus benefícios"12. Ladislau
Dowbor reforça esta crítica, responsabilizando a globalização pelo aumento da lacuna
entre uma minoria de países desenvolvidos, em conjunto com suas respectivas
empresas transnacionais, e uma grande parcela da população mundial. Para o autor,
enquanto o primeiro grupo vivencia os benefícios da globalização e se desenvolve no
ritmo acelerado das novas tecnologias, o outro se vê privado de suas formas tradicionais
de sobrevivência, sem acesso aos meios necessários para desfrutar das inovações
tecnológicas (DOWBOR, 2012: 5, 90).
O impacto da nova ordem internacional para o aumento da concentração de renda
a nível mundial é objeto de um amplo debate, uma vez que a correlação entre a 10 GONÇALVES, Reinaldo; BAUMANN, Renato; PRADO, Luis Carlos; CANUTO, Otaviano. A Nova Economia Internacional. In: Uma Perspectiva Brasileira, Ed. Campus, Rio de Janeiro, 1998. 11 Boaventura de Sousa Santos apresenta as três principais inovações institucionais do consenso neoliberal: restrições drásticas à regulação estatal da economia; novos direitos de propriedade internacional para investidores estrangeiros, inventores e criadores de inovações susceptíveis de serem objeto de propriedade intelectual; subordinação dos Estados nacionais às agências multilaterais tais como o Banco Mundial, o FMI e a Organização Mundial do Comércio. SANTOS, Boaventura de Sousa. Os processos da globalização. In: A globalização e as ciências sociais. Editora Cortez, 2ª edição, 2002, p. 32. 12 No original, em inglês, “Millions of people around the world experience it [a globalização] not as an agent of progress but as a disruptive and even destructive force, while many more millions are completely excluded from its benefits”. GRUMBERG, I.; KHAN, S. Globalization: The United Nations Development Dialogue - Finance, Trade, Poverty, Peace-Building. United Nations University Press, Nova Iorque, 2000.
10
globalização e os indicadores de desigualdade social domésticos (within-country
inequality) e internacionais (global inequality) é imprecisa e varia de acordo com as
métricas utilizadas, os países e os períodos analisados13. O relatório produzido pelo
Conselho Econômico e Social da ONU em 2005, dez anos depois da Cúpula Mundial
sobre Desenvolvimento Social de Copenhague, sugere que a desiguldade social mundial
teria melhorado entre 1980 e 200014. Todavia, grande parte deste progresso é atribuído
ao acelerado crescimento econômico da China e, em menor proporção, da Índia, o qual
reflete os ganhos dos segmentos mais pobres da sociedade às custas dos grupos de renda
média nestes dois países (DOWBOR, 2012: 92). Quando se exclui a China e a Índia da
análise, os dados revelam o oposto: um aumento no nível da disparidade de renda
mundial. O gráfico abaixo, retirado do relatório, expõe o processo:
Além do coeficiente GINI, outro indicador que aponta para o aumento da
disparidade de renda nas últimas décadas é o PIB per capita dos 20 países mais ricos,
em comparação com o dos 20 países mais pobres. Enquanto o PIB da faixa mais pobre
variou pouco entre 1962 e 2002, o da faixa mais rica teve um aumento considerável:
13 Para um detalhamento sobre o processo de mensuração da desigualdade social, e as diferentes nomenclaturas, consultar: ONU. Inequality on the rise? An assessment of current available data on income inequality, at global, international and national levels. 2012. 14 ONU. The Inequality Predicament: Report on the World Social Situation 2005. Nova Iorque, 2005.
11
Diante disso, o relatório conclui: "Um dos subprodutos mais visíveis da
globalização é o acesso a novos tipos de riqueza e a propensão a aumentar a
desigualdade"15 (ONU, 2005: 9). O ponto interessante do documento é que ele examina
não apenas a distribuição de renda e riqueza, mas também a distribuição de
oportunidades, de acesso, de participação e influência políticas, considerando as
dimensões econômicas, sociais, políticas e culturais.
Outro recente estudo que apresenta conclusões semelhantes é o Inequality on the
Rise, produzido pela ONU em 201216. O estudo relaciona o aumento da disparidade de
renda internacional à acentuação da desigualdade em nível doméstico, que tem crescido
em grande parte dos países emergentes e membros da OCDE17. Neste quadro, é
interessante observar que o Brasil é um dos poucos países a apresentar redução no
coeficiente GINI durante o período analisado, principalmente por conta do aumento do
salário mínimo nacional e de investimentos em programas sociais como o Bolsa
Família.
15 No original, em inglês: "One of the most visible by-products of globalization is access to new kinds of wealth and its propensity to increase inequality" 16 ONU. Inequality on the rise? An assessment of current available data on income inequality, at global, international and national levels. 2012. 17 Trinta e quatro países são membros da OCDE: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Coréia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, México, Noruega, Nova Zelândia, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Tcheca, Suécia, Suíça, Turquia. OCDE. Disponível em: http://www.oecd.org/about/membersandpartners/list-oecd-member-countries.htm
12
Os fatores responsáveis pelo aumento da concentração de renda nas últimas
décadas são múltiplos e se estruturam em torno do receituário neoliberal. A
liberalização financeira e comercial provoca mudanças na legislação, nas instituições e
no mercado de trabalho, que incluem a flexibilização de salários; a diminuição da
estabilidade do emprego; a redução das oportunidades no setor público; o declínio de
políticas de proteção social do trabalho e o enfraquecimento dos sindicatos de
trabalhadores. Com isso, o desemprego e o setor informal de trabalho se expandem e as
relações de trabalho se precarizam. Ademais, os adventos tecnológicos e a busca por
mais produtividade resultam na valorização dos trabalhadores especializados,
ampliando a diferença de remuneração entre estes e os trabalhadores do setor informal.
Em última instância, esses fatores conduzem à elevação das desigualdades de renda em
nível doméstico (ONU, 2005; 2012).
O acúmulo de poder econômico e político nas mãos de grandes corporações
transnacionais também está estreitamente relacionado ao alto índice de concentração de
renda e a outros impasses do sistema econômico e financeiro atual. De acordo com um
relatório publicado em 2014 pelo Credit Suisse, 1% da população mais rica do mundo
detém 50% de toda a riqueza do planeta18. Segundo uma pesquisa de 2011 do Instituto
Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica (EHT), 147 grupos controlam 40% do mundo
corporativo internacional, sendo 75% deles correspondentes a instituições financeiras e
18 CREDIT SUISSE. Global Wealth Report 2014, Credit Suisse, 2014.
13
a maioria pertencente a países da Europa ocidental e aos Estados Unidos19. No que se
refere ao setor de commodities, a concentração de poder é ainda maior: 16 grupos
comerciais controlam a maioria das trocas de grãos, energia e minerais de todo o
planeta20.
Com a globalização, dívidas públicas, títulos e ações se tornam uma das principais
fontes de investimento de empresas e indivíduos, já que prometem a obtenção de lucros
exorbitantes, em espaços relativamente curtos de tempo. A maior parte das corporações
está sediada em paraísos fiscais e pratica a especulação financeira-comercial sobre os
mais variados produtos, incluindo itens básicos para a sobrevivência humana, como
alimentos. As implicações desta atividade para a economia e a sociedade são diversas.
No processo de especulação financeira-comercial, fluxos de capital que poderiam ser
direcionados a atividades produtivas da economia real são drenados para fins
especulativos e alocados em paraísos fiscais, descapitalizando o setor produtivo, o
Estado e as comunidades (DOWBOR, 2012). De acordo com o Tax Justice Network
(TJN), o estoque de capitais aplicados em paraísos fiscais está entre 21 e 32 trilhões de
dólares, o que corresponde a cerca de um terço do PIB mundial, da ordem de 70 trilhões
de dólares21.
Além disso, é difícil desconsiderar a especulação como um dos fatores que
possibilita que, mesmo com a farta produção de alimentos atual, 805 milhões de pessoas
sejam atingidas pela fome22 e, anualmente, cerca de 3.1 milhões de crianças morram de
desnutrição ao redor do mundo23. Outra problemática é o aumento da instabilidade
econômica internacional e da frequência de crises financeiras. Colapsos como o de 2008
provocam a elevação da desigualdade em níveis domésticos, pois, em geral, são
remediados por meio de políticas de austeridade fiscal, que reduzem as oportunidades
de emprego e os salários - principalmente de trabalhadores não especializados (ONU,
2005: 11).
19 DOWBOR, Ladislau. O sistema financeiro atual trava o desenvolvimento econo mico brasileiro. Le Monde Diplomatique Brasil, Edição de Dezembro de 2014. 20 SCHNEYER, Joshua. Commodity traders: the trillion dollars club. Reuters, Nova Iorque, 2011. Disponi vel em: <http://www.reuters.com/article/2011/10/28/us-commodities-houses-idUSTRE79R4S320111028>. 21 HENRY, James; TAX JUSTICE NETWORK, The price of off- -shore revisited, 2012. Disponível em: <www.taxjustice. net/cms/front_content.php?idcat=148>. 22 FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). The State of Food Insecurity in the World 2014. Roma, 2014. Disponível em: http://www.fao.org/3/a-i4030e.pdf 23 THE LANCET. Série Maternal and Child Nutrition, 2013. Disponível em: http://www.thelancet.com/series/maternal-and-child-nutrition
14
Em relação à desigualdade em termos sociais, políticos e culturais, outro fator de
influência é o enfraquecimento dos mecanismos de redistribuição de renda, de
participação democrática dos cidadãos na gestão das atividades econômicas e das
políticas sociais em geral. Estes elementos são colocados em segundo plano sob o
paradigma neoliberal, que se assenta no princípio da competitividade e da redução de
custos 24 . A este cenário, Boaventura de Souza Santos atribui o processo de
dessocialização da economia, no qual o conceito de consumidor substitui o de cidadão e
o critério de inclusão deixa de ser o direito, para se tornar a solvência.
"Os pobres são os insolventes (...). Em relação a eles devem adotar-se medidas de luta
contra a pobreza, de preferência medidas compensatórias que minorem, mas não
eliminem, a exclusão, já que esta é um efeito inevitável (e, por isso, justificado) do
desenvolvimento assente no crescimento econômico e na competitividade a nível global."
(SANTOS, 2002: 35)
A globalização também está indiretamente associada à intensificação das
mudanças climáticas nos últimos anos. A ampliação da extração de recursos naturais
para a produção, a expansão dos fluxos de comércio em escala global e a cultura
consumista de bens materiais são alguns dos aspectos que provocam uma escalada dos
impactos ambientais. Alterações climáticas como o aumento da temperatura atmosférica
e dos oceanos, o aumento do nível das marés e a intensificação dos desastres naturais
derivam principalmente da emissão de gases do efeito estufa, cujas maiores fontes são a
produção industrial, os transportes e o desflorestamento25. O Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) avalia que gases como o CO2, o
CH4 e o N2O cresceram 60% entre 1970 e 200526, sendo cerca de 78% destas emissões
provenientes da queima de combustíveis fósseis e da produção industrial27. Segundo o
relatório What is the impact of globalisation on the environment?, lançado em 2013 pela
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE):
24 STERN, Nicholas. The Economics of Climate Change, 2006. 25 HUWART, Jean-Yves; LOÏC, Verdier. What is the impact of globalisation on the environment? In: Economic Globalisation: Origins and consequences, OECD Publishing, 2013, p. 114 e 115. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1787/9789264111905-8-en 26 IPCC, Climate Change 2007: Synthesis Report. Contribution of Working Groups I, II and III to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change, Figure RiD.3(a). Genebra, 2007, p. 36. 27 IPCC. Climate Change 2014: Synthesis Report. Contribution of Working Groups I, II and III to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Core Writing Team, R.K. Pachauri and L.A. Meyer (eds.)]. Genebra, 2014, p. 5.
15
"As atividades humanas (principalmente a indústria, por conta de sua poluição dos
ecossistemas), a expansão urbana, a agricultura intensiva e a mineração - que provocam o
deslocamento de certas espécies - não são, em si mesmas, o resultado da globalização.
Mas a globalização implica a multiplicação dos canais de distribuição, criando novas
necessidades e novas demandas por produtos que são utilizados em todo o mundo. Ela
acentua a industrialização, a busca e a exploração de novas terras, subsolos e recursos,
enfraquecendo assim diveros ecossistemas" (OCDE, 2013: 114 e 115)28.
A degradação ambiental, intensificada pelo paradigma econômico extrativista e
consumista vigente, dificilmente será revertida nos próximos anos, principalmente por
conta da dimensão dos prejuízos já existentes. Este cenário, no entanto, só tende a piorar
na ausência de um esforço direcionado a estratégias de redução dos riscos relacionados
às mudanças climáticas. A perda da biodiversidade natural; a extinção das expécies; a
erosão dos solos; a escassez de recursos naturais essenciais à sobrevivência humana são
riscos que indicam um cenário de recessão, no qual as populações de baixa renda seriam
as mais afetadas. Conforme afirma um relatório do IPCC, publicado em 2014:
"From a poverty perspective, climate change impacts are projected to slow down
economic growth, make poverty reduction more difficult, further erode food security and
prolong existing and create new poverty traps, the latter particularly in urban areas and
emerging hotspots of hunger (...) Climate change is projected to increase displacement of
people. Populations that lack the resources for planned migration will experience higher
exposure to extreme weather events, particularly in developing countries with low
income. Climate change can indirectly increase risks of violent conflicts by amplifying
well-documented drivers of these conflicts such as poverty and economic shocks." (IPCC,
2014: 16).
Os riscos sociais e ambientais acima citados já deveriam ser suficientes para
impulsionar uma mudança do paradigma econômico atual. Além disso, os lucros das
grandes corporações também seriam afetados pela transformação dos ecossistemas
naturais. De acordo com estimativas, a totalidade dos impactos ambientais poderia
provocar, no futuro, a perda anual de 68 bilhões de dólares para a economia mundial
(OCDE, 2013: 115). Neste ponto, o relatório "The Economics of Climate Change",
28 No original, em inglês: "Human activities (particularly industry, because of its pollution of ecosystems), urban sprawl, farms and mining – which displace certain species – are not in and of themselves the result of globalisation. But globalisation implies the multiplication of distribution channels, creating new needs and new demand for products that are used around the world. It accentuates industriali- sation and the quest for and exploitation of new lands, subsoil and resources, thus weakening many ecosystems."
16
escrito por Nicholas Stern em 2006, é bastante assertivo. O relatório analisa os impactos
econômicos do aquecimento global e conclui que os benefícios de uma ação antecipada
e intensiva ultrapassariam em larga escala os custos de se lidar com os prejuízos
ambientais. Stern afirma: “A mudança climática apresenta um desafio único à ciência
econômica: trata-se da maior e mais abrangente falência do mercado já vista” (STERN,
2006).
As perspectivas elaboradas neste capítulo sugerem a limitação do paradigma
neoliberal para superar os grandes impasses atuais do sistema econômico e financeiro
internacional. A fim de responder a problemas como a desigualdade social e as
mudanças climáticas, é benéfico considerar estratégias de desenvolvimento social
sustentável, onde os aspectos econômicos, sociais, políticos e ambientais estejam mais
integrados e mais equilibrados.
17
3. A ECONOMIA SOLIDÁRIA E O PARADIGMA DA COLABORAÇÃO
As origens do conceito de Economia Solidária (ES) se referem aos movimentos
associativistas de operários europeus, que surgem durante o desenvolvimento do
capitalismo industrial, na primeira metade do século XIX. Esses movimentos,
efetivados na forma de sindicatos e cooperativas, insurgiam contra o cenário de
opressão e exclusão operária da época, carregando consigo o ideal de transformação
social do mundo do trabalho.
A principal e primeira referência cooperativa que se conhece foi idealizada por
Robert Owen (1771-1859), um reformista social galês. Combatendo o individualismo e
a concentração de riquezas, Owen investiu em diversas iniciativas - como a indústria
têxtil de New Lamarke a colônia cooperativa de New Harmony - cujos princípios eram
a valorização do ser humano sobre o capital e a igualdade de oportunidades. Na mesma
época, outras experiências também questionaram o sistema de produção industrial,
como o movimento das comunas e as cooperativas de consumo e de produção, lideradas
pelos Pioneiros Equitativos de Rochedale, em meados de 1800. Apesar de ter
enfraquecido com o passar dos anos, Rochdale serviu de exemplo para diversas
cooperativas do mundo inteiro, sendo responsável pelo crescimento do movimento
associativo do final do século XIX29.
Ao longo do tempo, outras experiências pontuais em países diversos também
apresentaram as características da ES. A título de exemplo, os distritos industriais
italianos apresentados por Robert Putnam, nos quais são estruturadas redes de
cooperação e busca-se a criação de capital social30 (SILVA); e as cooperativas de
microcrédito fundadas por Muhhamad Yunus, na década de 70, em Bangladesh, que
posteriormente viriam a constituir o Grameen Bank.
No entanto, o termo Economia Solidária só é definido em 2001, durante o I
Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (SILVA). À época, estavam em curso as
mudanças estruturais provocadas pela globalização e o conceito da ES se fortalece
como resposta de trabalhadores e movimentos sociais ao aumento da informalidade e à
precarização das relações de trabalho.
29 SILVA, Márcia Nazaré. A economia solidária e as novas possibilidades do mundo do trabalho. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9064&revista_caderno=25 30 PUTNAM, Robert. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. FGV Editora, 2000.
18
O conceito Economia Solidária é bastante amplo, comportando distintos
formatos, métodos e perspectivas organizacionais. Por esta razão, possui diversas
definições e títulos, que evidenciam diferentes características. Outras nomenclaturas
utilizadas para designar essa abordagem são Economia Social Solidária, Sócio
Economia Solidária, Humano Economia, Economia Popular e Solidária e Economia de
Proximidade31.
As Nações Unidas, por meio da Força-Tarefa de Economia Social e Solidária,
emprega o conceito de Economia Social Solidária de forma ampla e sua definição se
coloca como um importante ponto de partida para compreender o fenômeno:
"A Economia Social Solidária refere-se à produção de bens e serviços por um amplo
conjunto de organizações e empreendimentos que têm objetivos sociais e, geralmente,
ambientais explícitos, e são guiadas por princípios e práticas de cooperação,
solidariedade, ética e autogestão democrática. O campo da ESS inclui cooperativas e
outras formas de empreendimentos sociais, grupos de autoajuda, organizações
comunitárias, associações de trabalhadores da economia informal, ONGs que asseguram
a prestação de serviços, iniciativas de finanças solidárias, entre outros." (ONU, 2014: 4)
Ligeiramente mais aprofundada, a definição da Secretaria Nacional de Economia
Solidária, órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil, discorre
sobre os objetivos econômicos, sociais e ambientais a que se propõe a abordagem:
“(...) a Economia Solidária aponta para uma nova lógica de desenvolvimento sustentável
com geração de trabalho e distribuição de renda, mediante um crescimento econômico
com proteção dos ecossistemas. Seus resultados econômicos, políticos e culturais são
compartilhados pelos participantes, sem distinção de gênero, idade e raça. Implica na
reversão da lógica capitalista ao se opor à exploração do trabalho e dos recursos naturais,
considerando o ser humano na sua integralidade como sujeito e finalidade da atividade
econômica.32”
Para o economista Paul Singer, Secretário Nacional de Economia Solidária do
Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil, a ES se define como um modo de
produção caracterizado pela igualdade de direitos, no qual os meios de produção são de
posse coletiva dos trabalhadores. O economista procura reforçar a importância do
31 FÓRUM BRASILEIRO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA (FBES). Carta de princípios da Economia Solidária, III Plenária Nacional da Economia Solidária, 2003. Disponível em: http://www.fbes.org.br/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=63 32 MINISTÉRIO DO TRABALHO E DO EMPREGO DO BRASIL. Disponível em: http://portal.mte.gov.br/ecosolidaria/o-que-e-economia-solidaria.htm
19
caráter auto-gestionário, uma vez que os empreendimentos de ES são geridos pelos
próprios trabalhadores, coletivamente e de forma inteiramente democrática, já que cada
um deles têm direito a um voto nas questões que envolvem os rumos do
empreendimento33.
Apesar de distintas, grande parte das nomenclaturas e definições da ES indicam
iniciativas que funcionam com base nos princípios da governança participativa; da
solidariedade; da inovação; do envolvimento voluntário; da propriedade coletiva; do
comércio justo e do Buen Vivir34 (ONU, 2014: 11). Descrevem práticas instituídas sobre
laços de colaboração solidária e movidas por valores que consideram o ser humano
como o sujeito e a finalidade da atividade econômica, em lugar da maximização do
lucro e da acumulação privada de riqueza e de capital35. A ES busca mobilizar e
redistribuir recursos e excedentes em função das necessidades essenciais dos
indivíduos, a fim de promover a inclusão social. Assim, embora a rentabilidade seja
uma característica de alguns empreendimentos solidários, os lucros tendem a ser
reinvestidos localmente e redistribuídos com objetivos sociais, tais como o
empoderamento econômico e político dos mais desfavorecidos e a proteção ambiental
(ONU, 2014: 10).
A ES é muitas vezes vista como uma abordagem que serve exclusivamente às
populações de baixa-renda, por conta de suas características e objetivos sociais. De fato,
o potencial de transformação das iniciativas solidárias responde de forma direta ao
desenvolvimento de comunidades marginalizadas, que não possuem acesso a
oportunidades, fontes de conhecimento, bens e serviços36. No entanto, o principal fator
que distingue a ES de outras abordagens que visam solucionar os desafios de
desenvolvimento da atualidade não é o seu público-alvo, mas o seu caráter holístico e
multifacetado (ONU, 2014: 11). A interligação entre as diversas dimensões que estão
imersas neste conceito é apresentada na sequência.
33 SALLES DE OLIVEIRA, Paulo. Economia Solida ria - Entrevista com Paul Singer. Revista de Estudos Avançados, São Paulo, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v22n62/a20v2262.pdf 34 O conceito de Buen Vivir reconhece explicitamente o princípio de viver em harmonia na o apenas com pessoas diversas, mas também com a Mãe Natureza. ONU. Documento de Posicionamento pela Força-Tarefa de Interagências das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária (FTESS) - Economia Social e Solidária e o Desafio do Desenvolvimento Sustentável, 2014, p. 24. 35 FÓRUM BRASILEIRO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA (FBES). Carta de princípios da Economia Solidária, III Plenária Nacional da Economia Solidária, 2003. 36 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. The Reader: Social and Solidarity Economy, 3ª edição, 2013, p. 6 e 7.
20
A esfera econômica da ES comporta a noção de que a produção, a troca e o
comércio de bens e serviços devem responder às necessidades de comunidades locais e
internacionais (RIPESS). Visa a criação de oportunidades, a geração de emprego e
renda e a democratização do acesso ao financiamento para populações de baixa-renda e
pequenos empreendedores, por meio da concessão de microcrédito e da prestação de
serviços de intermediação financeira, por exemplo. É o caso das cooperativas
financeiras e das poupanças de base comunitária, como os Bancos Comunitários de
Desenvolvimento 37 , instituições autônomas e autossuficientes que diferem das
organizações financeiras tradicionais principalmente por sua capacidade de promover a
construção de comunidades, operando com base em valores como a confiança
interpessoal, a reciprocidade e o compartilhamento simétrico de informações. No
contexto da crise financeira de 2008, tais instituições se mostraram muito mais
resilientes do que os bancos tradicionais, sendo capazes de proteger os empregos locais
e contribuir para a regeneração das economias regionais (ONU, 2014, 19). Uma
evidência é que a Polônia, onde existem cerca de 470 bancos cooperativos - que
financiam atividades da economia real ao invés de drenar os recursos para fundos de
especulação financeira - foi apontada pelo The Economist como o país europeu que
melhor enfrentou o colapso de 200838.
Enquanto o modelo tradicional de micro-finanças, centrado na concessão de
empréstimos a particulares, se tornou demasiado orientado para o mercado e centrado
no crédito para consumo, os modelos alternativos de financiamento da ES demonstram
um potencial para reorientar as finanças para os objetivos sociais, para contribuir para a
redução da pobreza e para o desenvolvimento social sustentável (ONU, 2014: 19).
A dimensão social comporta um projeto de desenvolvimento local, com o objetivo
de impulsionar pequenos grupos e territórios negligenciados pelas políticas públicas39.
Uma das estratégias para tal é a criação de sistemas monetários locais, a partir de uma
moeda complementar40. Também chamada de moeda social, esta ferramenta é definida
por Cláudia Lúcia Bisaggio Soares como uma moeda paralela criada e administrada por
37 Uma apresentação sobre os Bancos Comunitários de Desenvolvimento do Brasil será elaborada no próximo capítulo, expondo as principais características de tais organizações. 38 DOWBOR, Ladislau. O sistema financeiro atual trava o desenvolvimento econo mico brasileiro. Le Monde Diplomatique Brasil, Edição de Dezembro de 2014. 39 SGUAREZI, Sandro. Autogestão e Economia Solidária: Limites e Possibilidades. Doutorado em Ciências Sociais pela PUC-SP, São Paulo, 2011, p. 30. 40 Mais informações sobre a moeda social serão apresentadas no próximo capítulo, articulando-as com a atuação dos Bancos Comunitários de Desenvolvimento.
21
seus próprios usuários, sem qualquer vínculo obrigatório com a moeda nacional41. Sua
circulação é baseada na confiança mútua entre aqueles que a utilizam voluntariamente, a
fim de recolocar a economia a serviço das finalidades sociais e reintegrar seus valores à
esfera sociocultural. Sendo utilizada apenas dentro do território circunscrito das
comunidades, a moeda complementar pode revitalizar e estimular a produção, o
consumo e a troca locais; reforçar o desenvolvimento econômico local e modificar os
valores e as relações sociais, gerando um comportamento cooperativo, que favorece a
inclusão social e promove a governança local e participativa (ONU, 2014: 20).
Conforme afirma um relatório produzido pela Força Tarefa de Economia Social
Solidária da ONU em 2014, o imperativo para promover o desenvolvimento econômico
local surge de contextos nos quais grande parte do excedente produzido localmente é
desviado e afastado da economia regional, a partir do consumo de bens e serviços fora
do território. Este processo não só afeta a renda local, mas também o potencial de
reinvestimento dos excedentes em infraestruturas sociais e econômicas regionais42.
A esfera política se reflete na organização coletiva e é o princípio norteador para o
modelo de administração característico da ES, fundado na democratização dos
processos decisórios e nas relações de trabalho cooperativas (SGUAREZI, 2011: 37).
Compõem esse modelo os mecanismos de autogestão e de governança participativa e
transparente com igualdade de voto nas determinações centrais para o futuro dos
empreendimentos. Por este caminho, os empreendimentos solidários buscam dar voz e
representação a indivíduos e comunidades; mobiliza-los para o sucesso das iniciativas;
assegurar a propriedade coletiva e a responsabilidade de todos sobre os resultados das
atividades. (RIPESS; ONU, 2014: 11). Para Singer, a principal vantagem desse formato
é o "desenvolvimento humano" que proporciona aos seus praticantes: "Participar das
discussões e decisões do coletivo, ao qual está associado, educa e conscientiza, tornando
a pessoa mais realizada, autoconfiante e segura"43. Esse "desenvolvimento humano" se
traduz, portanto, em um maior empoderamento de indivíduos e comunidades de seus
próprios processos de desenvolvimento (OIT, 2013: 13 e 14).
41 SOARES, Claudia Lucia Bisaggio. Moeda social: um conceito, uma proposta de tipologia, limites e potencialidades. NESOL, NESFI - Universidade Federal de Santa Catarina, p. 1. 42 ONU. Documento de Posicionamento pela Força-Tarefa de Interagências das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária (FTESS) - Economia Social e Solidária e o Desafio do Desenvolvimento Sustentável, 2014. 43 SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. Perseu Abramo, São Paulo, 2002, p. 21.
22
A respeito da questão ambiental, a ES compreende o reestabelecimento da ligação
entre a economia e a ecologia, defende a justiça ambiental44 e condena a lógica
tradicional da produção extrativista, procurando garantir que a atividade econômica
ajude a preservar os recursos naturais (ONU, 2014). As iniciativas solidárias trabalham
para a conscientização sobre os hábitos de consumo, promovem a formação de redes de
produtores e de consumidores locais e estimulam a agricultura familiar e urbana45. O
empoderamento de pequenos agricultores - os quais contribuem para a preservação da
natureza e para a segurança alimentar, à medida que tendem a utilizar métodos de
produção a baixos insumos e baixas emissões de carbono e a respeitar princípios e
práticas da biodiversidade e da agroecologia - compõe um forte eixo de atuação dos
empreendimentos solidários (ONU, 2014: 6). Com isso, a ES visa instigar populações a
adotarem uma postura crítica sobre os rumos do desenvolvimento que afetam
diretamente a natureza e o bem estar dos seres humanos46.
Construídas sobre princípios de cooperação, mutualidade, solidariedade e
reciprocidade, as atividades solidárias promovem o estabelecimento e o fortalecimento
de conexões entre pessoas que compartilham o mesmo território, o mesmo local de
trabalho, o mesmo espaço de convivência. Isso resulta na criação de uma identidade e
uma cidadania coletivas, de um sentimento comum, o qual, de acordo com Jacques
Defourny, constitui o principal fator de sustentabilidade das iniciativas solidárias47.
Segundo ele, são estes elos comunitários que mobilizam grupos de indivíduos a se
engajarem na resolução de problemas sociais por meio dos empreendimentos solidários.
Silvia Salazar complementa esta afirmação com a dimensão educativa dos
empreendimentos solidários:
"Embora a viabilidade econômica seja objetivo central nas unidades de economia
solidária, nossa hipótese central está fundamentada na perspectiva de que o que vem
sustentando essas práticas não é a sua rentabilidade econômica, mas os laços que os
grupos estabelecem no campo dos valores extra-econômicos. Ou seja, aspectos que
incidem na mudança de valores, comportamentos e atitudes. Um dos mais importantes, 44 O conceito de Justiça Ambiental refere-se ao tratamento justo e ao envolvimento pleno de todos os grupos sociais, independente de sua origem ou renda nas decisões sobre o acesso, ocupação e uso dos recursos naturais em seus territórios. REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL. Disponível em: http://www.justicaambiental.org.br 45 LE LABO DE L'ÉCONOMIE SOCIALE ET SOLIDAIRE. Disponível em: http://www.lelabo-ess.org 46 FÓRUM BRASILEIRO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA (FBES). Carta de princípios da Economia Solidária, III Plenária Nacional da Economia Solidária, 2003. 47 DEFOURNY, Jacques; CAMPOS, J. L. Monzon. Économie sociale: Entre économie capitaliste et économie publique, De Boeck, 1992.
23
dentre tais aspectos, é a dimensão educativa que se constrói a partir da inserção dos
sujeitos sociais nas unidades de economia solidária” 48
Além de promover transformações nas esferas econômico-financeira; política;
social; ambiental e redimensionar o desenvolvimento para os territórios e comunidades
locais, a ES também tem potencial para articular a transição da economia informal para
o trabalho decente49, instaurar cidades e assentamentos humanos mais sustentáveis,
promover o bem-estar e o empoderamento das mulheres e estabelecer uma cobertura
universal de saúde50. Em conjunto, tais questões procuram responder aos desafios mais
abrangentes do desenvolvimento social sustentável 51 estabelecidos pela ONU na
perspectiva de uma agenda de desenvolvimento pós-2015. São eles: 1) Melhorar a
integração dos objetivos econômicos, sociais e ambientais; 2) Reduzir a pobreza,
estimular o trabalho decente, a igualdade de gênero e o desenvolvimento equitativo; 3)
Abordar as causas estruturais da crise global relacionadas com as finanças, os alimentos
e a energia; e 4) Criar resiliência para enfrentar as crises e os choques externos (ONU,
2014: 10).
No entanto, é preciso considerar que a ES é um conceito em construção, e que a
base de evidências relacionadas ao desempenho e a sustentabilidade de suas iniciativas
ainda é pouco desenvolvida52. A fim de esclarecer de que maneira os diferentes
formatos, métodos e perspectivas organizacionais da ES podem operar, será elaborada,
48 SALAZAR, Silvia Neves. Trabalho e educac a o nas pra ticas de economia solida ria: uma sociabilidade na perspectiva emancipato ria? Doutorado em Servic o Social pela PUC-RJ, Rio de Janeiro, 2008. 49 O Trabalho Decente é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da OIT: o respeito aos direitos no trabalho (em especial aqueles definidos como fundamentais pela Declaração Relativa aos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho e seu seguimento adotada em 1998: (i) liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; (ii)eliminação de todas as formas de trabalho forçado; (iii) abolição efetiva do trabalho infantil; (iv) eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação), a promoção do emprego produtivo e de qualidade, a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Disponível em: http://www.oitbrasil.org.br/content/o-que-e-trabalho-decente 50 Para o aprofundamento destas questões, consultar o Documento de Posicionamento pela Força-Tarefa de Interagências das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária (FTESS) - Economia Social e Solidária e o Desafio do Desenvolvimento Sustentável, 2014. 51 Estes incluem i) a transição da economia informal para o trabalho decente, ii) tornar a economia e a sociedade mais verdes, iii) o desenvolvimento econômico local, iv) as cidades sustentáveis, v) o bem- estar e o empoderamento das mulheres, vi) a segurança alimentar e o empoderamento dos pequenos agricultores, vii) a cobertura universal de saúde, e viii) as finanças transformadoras. Documento de Posicionamento pela Força-Tarefa de Interagências das Nações Unidas sobre Economia Social e Solidária (FTESS) - Economia Social e Solidária e o Desafio do Desenvolvimento Sustentável, 2014. 52 AMORIM, Andressa Nunes. Economia Solidária – princípios e contradições. Mestrado em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2010.
25
4. OS BANCOS COMUNITÁRIOS DE DESENVOLVIMENTO
4.1 O BANCO PALMAS - FORTALEZA (CE), BRASIL
No Brasil, a ES se desenvolveu a partir de instituições e entidades de suporte a
iniciativas associativas comunitárias e pela constituição e articulação de cooperativas
populares; redes de produção e comercialização; feiras de cooperativismo; entre outros
empreendimentos (MTE-BR). Nesse cenário, um dos principais exemplos de
empreendimento solidário do Brasil é o Banco Palmas, o primeiro Banco Comunitário
de Desenvolvimento (BCD), localizado no Conjunto Palmeiras, região periférica da
cidade de Fortaleza, no Ceará.
A história do Banco Palmas começa na década de 70, com a fundação da
Associação dos Moradores do Conjunto Palmeiras (ASMOCONP), cujo objetivo era
trazer infraestrutura para a região, que não dispunha de água, luz ou pavimentação. No
entanto, após duas décadas de conquistas - dentre as quais o fornecimento dos serviços
públicos básicos citados - começou a ocorrer um fenômeno de gentrificação no local,
uma vez que grande parte de seus habitantes originais não conseguia arcar com os
impostos e taxas referentes aos serviços públicos prestados e, por conta disso, estava
vendendo suas casas, partindo para outras periferias da cidade. Apesar de suas
habilidades para confecção, artesanato e gastronomia, a maioria destas pessoas estava
desempregada, por não ter experiência anterior no setor formal, e não tinha acesso a
crédito, por ter o nome restrito no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC). Mesmo os
poucos produtores do local não conseguiam comercializar seus produtos, pois as
famílias do Conjunto Palmeira faziam suas compras fora do bairro, onde conseguiam
preços mais baixos. A fim de responder a esses problemas de geração de renda, inclusão
financeira e desenvolvimento local, foi criado, em 20 de janeiro de 1998, o Banco
Palmas, visando estabelecer um círculo comunitário de produção, consumo, geração de
trabalho e renda e, com isso, reter a população original em seu território53.
A partir de um empréstimo de R$2.000,00 fornecido pela ONG Cearah Periferia,
as primeiras atividades do banco foram o estabelecimento de um cartão de crédito para
consumo, chamado PalmaCard. Este foi entregue a vinte famílias, sendo aceito apenas
53 PINHEIRO, Amanda; CARDOSO, Venusto. Democratização Da Economia E Inclusão Financeira: Desenvolvimento Socioeconômico Humanizado, Solidário E Sustentável A Experiência Do Banco Palmas. In: Direito e Economia I - CONPEDI/Universidade Federal de Santa Catarina, 1ª edição, 2014, p. 12 e 13.
26
em comércios locais. Outros serviços oferecidos foram a oferta de crédito produtivo e o
apoio às estratégias de comercialização de cinco produtores locais. (PINHEIRO;
CARDOSO, 2014: 13).
Ampliando e aprimorando suas atividades, o Banco Palmas permaneceu o único
BCD do país até 2003, quando o poder público e algumas associações comunitárias se
interessaram pela implementação de sua metodologia de desenvolvimento em outras
localidades (NESOL USP, 2013: 106). Diante disso, o Banco Palmas decidiu criar uma
nova instituição, o Instituto Palmas, oscip de microcrédito responsável por difundir a
tecnologia do Banco Palmas e apoiar a criação de outros bancos comunitários no Brasil
e em outros países, integrando-os em rede. Em 2005, a Secretaria Nacional de
Economia Solidária firmou uma parceria com a organização, passando a apoiar suas
atividades54.
Desde então, mais de cem BCDs foram criados no Brasil55, sendo a maioria no
Nordeste do país. O mapa a seguir, elaborado pela Rede Brasileira de Bancos
Comunitários de Desenvolvimento, ilustra o cenário:
54 SINGER, Paul. O banco comunitário de desenvolvimento como política pública de economia solidária. In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando. V. 1, 2013, p. 38. 55 INSTITUTO BANCO PALMAS. Mapa da Rede Brasileira de Bancos Comunitários de Desenvolvimento, 2013. Disponível em http://www.institutobancopalmas.org/rede-brasileira-de-bancos-comunitarios/
27
O Banco Palmas também expandiu suas parcerias e aprimorou suas atividades, e
hoje oferece serviços variados para as comunidades Conjunto Palmeira, Conjunto
Palmeira II, Planalto Palmeira, Sítio São João, São Cristovão, Maria Tomásia, Santa
Filomena, Ancuri, Castelão, Barroso, Caucaia, Ismael Silva, José Walter, Ocupação da
Mana, Patativa do Assaré, Jagatá, Santa Maria e Tamandaré.
Apesar de o Palmas ser a instituição modelo para o desenvolvimento da
metodologia denominada BCD, e de muitas pesquisas e estudos terem sido elaborados
com base em suas experiências, a apresentação a seguir tem como intenção fornecer um
panorama geral desse tipo de empreendimento solidário.
4.2 OS BANCOS COMUNITÁRIOS DE DESENVOLVIMENTO NO BRASIL
Durante a criação do Instituto Palmas, percebeu-se que, para transformar as
experiências e os aprendizados do Banco Palmas em uma estratégia de desenvolvimento
comunitário replicável, era necessário definir o que exatamente é um BCD, quais são as
suas características, seus objetivos, seu modo de funcionamento. O marco conceitual
para esse objeto de estudo se dá no ano de 2006, com a criação da Rede Brasileira de
Bancos Comunitários de Desenvolvimento, pelo Instituto Palmas. De acordo com a
definição da Rede:
"Bancos Comunitários de Desenvolvimento são serviços financeiros solidários em rede,
de natureza associativa e comunitária, voltados para a geração de trabalho e renda na
perspectiva da reorganização das economias locais, tendo por base os princípios da
Economia Solidária. Tem como objetivo dinamizar as economias locais, promover o
desenvolvimento do território e fortalecer a organização comunitária a partir da oferta de
serviços financeiros."56
Nesse sentido, os BCDs podem ser considerados empreendimentos sócio-
financeiros destinados a fortalecer economias de territórios com baixo índice de
desenvolvimento humano, a partir de dinâmicas associativas locais que promovem a
geração e ampliação da renda dos habitantes de tais territórios57.
56 MELO NETO, João Joaquim; MAGALHÃES, Sandra. Bancos comunitários de desenvolvimento: uma rede sob o controle da comunidade. Fortaleza, 2007, p. 7. 57 FRANÇA FILHO, Genauto. Por que os BCDs são uma forma de organização original? In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando. V. 1 São Paulo, 2013, p. 84.
28
No entanto, é fundamental observar a complexidade deste tipo de intervenção
para que possamos compreender a amplitude de sua atuação e de seus objetivos, os
quais perpassam a dimensão da oferta de serviços financeiros e do desenvolvimento
econômico. Na realidade, conforme afirmam Lietaer e Primavera, iniciativas como os
BCDs perdem sentido se a oferta de serviços financeiros não for norteada por um
conjunto de princípios tais como o fortalecimento comunitário; o planejamento e a
dinamização dos recursos socioeconômicos locais; a cooperação e a democracia58. O
desenvolvimento almejado é o solidário, ou seja, da comunidade como um todo e não
de apenas alguns de seus membros59.
Para isso, uma das esferas centrais dos BCDs é a articulação em rede dos
produtores e consumidores locais, que compõem a chamada economia de
"prossumatores", conforme denominação do Instituto Palmas. Duas linhas de crédito
colaboram para a criação desta rede: o microcrédito para a produção, concedido em
reais e voltado para o financiamento de empreendimentos locais; e o microcrédito para
o consumo, concedido em moeda social e necessário para que se criem as condições de
demanda dos produtos desenvolvidos a partir do microcrédito para a produção60
(NESOL-USP, 2014: 6; FRANÇA FILHO, 2013: 85).
A moeda social é o instrumento utilizado pelos BCDs para garantir que o crédito
investido dentro do território e da rede local de "prossumatores" ali permaneça. De
acordo com França Filho, enquanto uma ferramenta de desenvolvimento utilizada pelos
BCDs, a moeda social possui um duplo caráter: econômico, de um lado, e social,
cultural, político ou simbólico de outro61. Do ponto de vista econômico, a função de tal
ferramenta é estimular o consumo de bens e serviços locais, produzidos pelos
indivíduos que compõem a rede de "prossumatores", para que os recursos internos a
esta rede permaneçam circulando localmente. Promovendo a internalização da renda
gerada pela própria comunidade, um grande benefício da moeda social é combater "a
lógica de reprodução da pobreza via evasão de renda pelo consumo fora da localidade" 58 LITAER, Bernard, PRIMAVERA, Heloísa: Moedas complementares, bancos comunita rios e o futuro que podemos construir. In Banco Palmas 15 anos: resistindo e inovando - Volume 1. São Paulo, 2013, página 109. 59 SINGER, Paul. É possível levar desenvolvimento a comunidades pobres? In: Economia Solidária e Autogestão: Encontros Internacionais. NESOL-USP; ITCP-USP; PW, São Paulo, 2007. 60 NESOL-USP. Metodologia de Implementação dos BCDs, 2014. FRANÇA FILHO, Genauto. Por que os BCDs são uma forma de organização original? In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando. V. 1 São Paulo, 2013, p. 83. 61 FRANÇA FILHO, Genauto. Por que os BCDs são uma forma de organização original? In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando. V. 1 São Paulo, 2013, p. 88.
29
(FRANÇA FILHO, 2013: 88). Nesse sentido, Singer ressalta:
"Cumpre notar que o uso generalizado de moedas sociais é um dos principais motivos do
apoio aos Bancos Comunitários dado pela Secretaria Nacional de Economia Solidária62. É
que essa ação, combinada à oferta de crédito para a promoção de atividades econômicas
em áreas empobrecidas cumpre a importante função de descentralizar a produção, o
trabalho e a distribuição no território, que a concorrência entre capitais tende a concentrar
nos assim chamados polos de desenvolvimento. "63
Além disso, a moeda social possui um caráter sociocultural e político, uma vez
que pode se tornar uma referência cultural local, um símbolo do sentimento de ligação
dos usuários com o seu território e entre si, iniciando o processo de construção de uma
identidade comunitária em torno da proposta de desenvolvimento endógeno. Existe
também uma dimensão educativa, pois a utilização dessa ferramenta implica numa
reflexão sobre a função social do dinheiro, o qual, no caso dos BCDs, retoma o seu
sentido de facilitador de trocas de produtos e serviços e de construtor de relações sociais
no território, perdendo o sentido de acumulação - já que somente é aceito na rede de
comerciantes locais, na forma de moeda complementar (NESOL-USP, 2013: 110;
LITAER; PRIMAVERA, 2013: 65).
O conceito de rede é, portanto, fundamental para a análise dos BCDs, pois afirma
uma ação que não tem um único sentido, não é direcionada a indivíduos, mas se
posiciona no território ampliado que é a comunidade (NESOL-USP, 2013: 108). Ao
articular moradores, comerciantes e instituições locais na busca por desenvolvimento
coletivo, essas iniciativas rompem com a lógica sistêmica onde recursos e consumidores
são alvo de concorrência e os lucros individuais tendem a ser maximizados acima de
todos os custos, passando a adotar o paradigma da confiança e da cooperação64. Além
disso, de acordo com Eisestein, este tipo de economia associativa local restaura a
conexão entre os aspectos sociais e materiais das relações pessoais, introduzindo uma
outra possibilidade de sociabilidade para os sujeitos, uma sociabilidade
multidimensional, na qual estes passam a ter relações mais adjacentes entre si e com o
seu território, e a observar melhor as necessidades uns dos outros, ao invés de
62 O contexto de formação da Secretaria Nacional de Economia Solidária será apresentado no capítulo seguinte. 63 SINGER, Paul. O banco comunitário de desenvolvimento como política pública de economia solidária. In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando. V. 1, 2013, p. 38. 64 NEIVA, Augusto; BRAZ, Juliana; MELO, Joaquim; TSUKUMO, Diogo. Solidarity Finance and Public Policy: The Brazilian experience of community development banks. NGLS, 2013, p. 5.
30
considerar somente suas necessidades individuais65. O autor afirma que a Economia
Local Solidária é uma forma de resgatar os laços comunitários, e consequentemente o
senso de responsabilidade coletiva pelas ações individuais, principalmente no que se
refere à produção e ao consumo:
"If the people who grow your food and make your stuff live in Haiti or China or Pakistan,
then their well-being or suffering is invisible. If they live nearby, you can still exploit
them perhaps, but you can’t easily avoid knowing it. Local economy faces us with the
consequences of our actions, tightening the circle of karma and fostering a sense of self
that includes others." (EISENSTEIN, 2012: 205)
O caráter associativo e comunitário é componente essencial dos BCDs, sendo
promovido desde o momento de criação da instituição gestora. Esta é composta pela
própria comunidade, a qual será responsável por desenvolver, gerenciar e executar os
serviços oferecidos pelo banco por meio de comitês executivos e de fóruns de
desenvolvimento locais, abertos a participação de todos. Atualmente, grande parte das
comunidades recebe de agentes externos (como o Instituto Palmas) a proposta de
implementação da metodologia dos BCDs em seus territórios. Nesse caso, tais agentes
são responsáveis por sensibilizar atores da própria comunidade para a composição da
instituição gestora, e por capacitá-los para a execução de determinadas tarefas, através
de cursos de ES e de gestão de BCDs (NESOL-USP, 2014: 8 e 10). Tal tarefa é de
extrema importância, pois, após o processo de formação, serão os próprios atores
comunitários que irão liderar atividades que exigem habilidades específicas, a exemplo
da assessoria técnica aos empreendimentos apoiados pela organização.
A "estratégia de desenvolvimento endógena"66 dos BCDs garante que, mesmo que
a comunidade já receba uma metodologia pronta de implementação de um banco
comunitário, será ela a responsável por adaptar o método e as atividades às suas
necessidades e especificidades de seu território. Nesse sentido, os BCDs reiteram o
caráter auto gestionário típico das organizações de ES, com o objetivo de responder às
necessidades reais da população local por meio de atividades socioeconômicas
(FRANÇA FILHO, 2013: 89). Conforme já citado, esta experiência de gestão
associativa é profundamente transformadora para a vida dos participantes e para a
65 EISENSTEIN, Charles. Sacred Economics: Money, Gift and Society in the Age of Transition. 2012, página 203. 66 NESOL-USP. Metodologia de Implementação de Bancos Comunitários de Desenvolvimento, 2014, página 6.
31
dinâmica comunitária do grupo, uma vez que pressupõe "o aprendizado de uma outra
cultura de relações de trabalho e de relações entre pessoas, num ambiente, em geral,
marcado por uma cultura política conservadora." 67
Processos como a dinamização dos recursos socioeconômicos locais, a regulação
dos produtos e serviços que circulam dentro da comunidade e o planejamento das
atividades do banco são feitos nos chamados fóruns de desenvolvimento locais, onde os
habitantes da comunidade podem discutir e traçar as diretrizes para o banco com base
em suas demandas concretas, num exercício de democracia local (FRANÇA FILHO,
2013: 89). Esses espaços são fundamentais para que os moradores passem a se articular
coletivamente e cultivem uma cultura democrática nos processos decisórios. Com isso,
o BCD ajuda a desmistificar o debate sobre a economia, uma vez que os temas das
discussões nos fóruns são apropriados pelos participantes a partir de suas experiências
na comunidade (FRANÇA FILHO, 2013: 86; NESOL-USP, 2013: 112). Conforme
afirma uma pesquisa sobre o Banco Palmas, elaborada pelo Núcleo de Economia
Solidária da USP68:
"Os trabalhadores do banco, os tomadores de crédito, os comerciantes, ou seja, a
comunidade como um todo, ao conhecer mais sobre os conceitos econômicos e os
mecanismos financeiros, contribui para o fortalecimento e a qualificação da participação
dos moradores no debate sobre o desenvolvimento do bairro e, como resultado,
potencializa as ações do banco. Todo o processo de formação e desenvolvimento do
banco só é possível se for feito coletivamente e entendido como uma ferramenta de
participação. Neste sentido, não são as ferramentas financeiras que produzem as
transformações, mas a forma de seu uso refaz o sentido da economia como o modo de
organização da vida e não como um sistema natural de competição por recursos,
consumidores, nichos de mercado e maximização dos lucros."
O conceito de "finanças de proximidade" se refere a dinâmicas financeiras que
reforçam os laços sociais entre os habitantes de um determinado território, por meio do
atendimento de suas necessidades econômicas69. Segundo França Filho:
" (...) as relações de proximidade constituem antes de tudo formas “sócio-aproximadoras”
67 FRANÇA FILHO, Genauto. Por que os BCDs são uma forma de organização original? In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando. V. 1 São Paulo, 2013, p. 87. 68 NESOL-USP. Banco Palmas: resultados para o desenvolvimento comunitário e a inclusão financeira e bancária. In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando - V. 1. São Paulo, 2013, p. 112. 69 JUNQUEIRA, Rodrigo; ABRAMOVAY, Ricardo. A sustentabilidade das Microfinanc as Solida rias. Revista de Administrac a o da USP (RAUSP), v. 40, n. 1 2005, p. 19-33.
32
(recuperando aqui um conceito antigo da sociologia de G.Gurvitch) de relações entre as
pessoas, convidando-as para um fortalecimento dos vínculos e das formas de
sociabilidade nos territórios, ao contrário dos mecanismos “sócio-afastadores” próprio
das relações impessoais que priorizam o individualismo e o interesse utilitário na relação"
(FRANÇA FILHO, 2012: 88)
Tal conceito está presente no processo de concessão de microcrédito dos BCDs,
tanto para a produção quanto para o consumo. Assim como qualquer instituição
financeira, esse tipo de empreendimento solidário também precisa de garantias e
informações sobre os solicitantes de crédito para que possa conceder empréstimos e
fazer investimentos. Essas informações são obtidas por meio da própria participação do
morador nas atividades do banco e da comunidade, ou através da figura do agente de
microcrédito70, responsável por visitar a casa ou o comércio dos solicitantes de crédito,
ouvir suas demandas e encaminha-las ao comitê de análise de crédito71. Em geral, o
comitê é formado pelo analista de crédito, pelos trabalhadores do banco comunitário e
por lideranças informais da comunidade. A importância deste grupo reside no caráter
coletivo e educativo do processo de decisão pelo qual é responsável, já que suas
determinações são resultado de um momento de reflexão conjunta dos participantes a
respeito de questões socioeconômicas que pautam a vida de todos (NESOL-USP, 2013:
111). Os critérios utilizados para a tomada de decisão também são relevantes, pois não
são apenas econômicos (a capacidade de pagamento do tomador), mas também sociais
(as condições de vida e a autêntica necessidade do sujeito tomador) e éticos (a conduta
social do tomador). O processo de concessão de microcrédito também demonstra,
portanto, a subordinação da ação econômica aos valores e práticas sociais tão própria
aos BCDs (FRANÇA FILHO, 2013: 88).
Outro serviço financeiro de destaque na atuação dessas instituições é a
correspondência bancária. Ela possibilita que uma gama de serviços bancários
tradicionais sejam oferecidos para a população local por meio do BCD, como a abertura
e o pagamento de contas. Para tanto, deve haver uma parceria institucional entre o BCD
e algum banco oficial, em geral, um banco público. Outros produtos que podem ser
70 França Filho observa que o trabalho de tais agentes, na realidade é uma espécie de mediação social, que envolve o acolhimento do outro, e o entendimento de suas necessidades. FRANÇA FILHO, Genauto. Por que os BCDs são uma forma de organização original? In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando. V. 1 São Paulo, 2013, p. 87. 71 Mais informações sobre o comitê de análise de crédito em NESOL - USP: Metodologia ���de Implementação ���de Bancos Comunitários de Desenvolvimento, 2014, p.13.
33
oferecidos pelo BCD são o micro-seguro; o pagamento de boleto bancário via celular
(moeda social eletrônica); o cartão de crédito solidário; o recebimento de títulos e
convênios (água, luz, telefone); o pagamento de benefícios e muitos outros, os quais
dependem de seu nível de amadurecimento institucional, criatividade e capacidade de
inovação (FRANÇA FILHO, 2013: 86; NESOL-USP, 2014: 6 e 9). O Banco Palmas,
por exemplo, disponibiliza serviços de correspondente bancário; crédito; micro-seguro;
pagamento por celular; abertura de contas; feiras solidárias (de culinária, moda, e
produtos locais) e a formação em economia solidária (SINGER, 2013: 38).
No entanto, para que tudo isso seja possível, a captação de recursos deve ser uma
atividade permanente dos BCDs. Esta pode se direcionar à obtenção de recursos
públicos (a exemplo da parceria traçada entre o Banco Palmas e o BNDES), ou mesmo
privados, na forma de doações, de excedentes obtidos por meio de festas e eventos
organizados no próprio âmbito da comunidade, ou até mesmo da venda de rifas. Além
de cobrirem os custos operacionais do banco - pagamento dos trabalhadores, contas de
energia elétrica, água, internet, materiais-, esses recursos devem compor, idealmente,
fundos de empréstimo próprios dos BCDs, para que estes adquiram mais autonomia na
formulação de suas políticas de crédito. Os subsídios destinados aos BCDs, portanto,
justificam-se pela utilidade social de suas práticas (NESOL-USP, 2014: 8, 9 e 15).
É importante esclarecer que todas as características dos BCDs citadas
anteriormente formam um conjunto de padrões gerais, variáveis de acordo com o
contexto e a experiência de cada iniciativa. Determinadas estratégias podem ter êxito
em um banco e em outro não, assim como novas ferramentas podem surgir no processo
de uma comunidade específica. Mudanças em contextos locais, e mesmo nas parcerias
que vão sendo estabelecidas também podem provocar variações nas atividades das
organizações. Isto é determinado pela própria metodologia de desenvolvimento dos
BCDs, que, por ser enraizada nas dinâmicas comunitárias locais, pressupõe que cada
BCD deve encontrar seus pontos fortes, a fim de potencializar as ações e articulações
existentes na comunidade (NESOL-USP, 2013 e 2014).
Os BCDs se constituem como uma das metodologias de ES mais bem
desenvolvidas no Brasil até o presente, e por esta razão, foram objetos de análise neste
capítulo. No entanto, assim como as demais organizações de ES, tais bancos enfrentam
inúmeros desafios para atingir todo o seu potencial de transformação social. Em busca
de caminhos que conduzam à ampliação das capacidades dos BCDs e do campo da ES
34
de uma forma geral, é preciso refletir sobre tais desafios e levantar suas possibilidades
de desenvolvimento.
35
5. DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA ECONOMIA SOLIDÁRIA E DOS
BANCOS COMUNITÁRIOS DE DESENVOLVIMENTO
Enquanto projeto plural para a criação de um novo paradigma econômico, a
Economia Solidária enfrenta alguns desafios para se desenvolver por completo. Este
capítulo apresenta cinco desafios vivenciados pelas iniciativas solidárias, em geral, e
pelos Bancos Comunitários de Desenvolvimento, em particular. São eles: 1) Fortalecer
os processos de formação, capacitação e qualificação dos trabalhadores das
comunidades; 2) Atingir a autogestão plena dos empreendimentos; 3) Competir com os
preços do mercado tradicional, promovendo o desenvolvimento local; 4)
Institucionalização e amadurecimento organizacional; e 5) A ausência de um marco
legal e de regulamentação específica para suas práticas72. Na sequência, são expostas
alternativas para superar estes entraves e promover a expansão do conceito e da prática
da ES em escala global. Dentre tais possibilidades, destaca-se 1) O fortalecimento da
ação estatal no fomento aos empreendimentos de ES, por meio da criação de um
ambiente institucional e jurídico favorável e do estabelecimento de parcerias entre
órgãos públicos e organizações solidárias; 2) A produção e disseminação de
conhecimento sobre o campo; e 3) A articulação na forma de redes nacionais e
internacionais das iniciativas locais e regionais de ES, com o auxílio da tecnologia.
O primeiro desafio para o desenvolvimento da ES se refere ao fortalecimento dos
processos de formação, capacitação e qualificação dos trabalhadores das comunidades.
Em geral, os participantes das iniciativas solidárias possuem uma origem social
humilde, tendendo à baixa escolarização. Uma vez inseridos nos empreendimentos,
estes se veem diante de tarefas complexas, onde o sucesso depende diretamente de suas
competências técnicas e administrativas (FRANÇA FILHO, 2013: 91). Além de ser
fundamental para o resultado das atividades, a qualificação profissional é essencial para
a autogestão plena das iniciativas - o segundo desafio. Isto pois, conforme afirma
Andressa Nunes Amorim, muitas vezes a baixa escolarização se coloca como um
entrave para a autogestão nos empreendimentos solidários, havendo casos nos quais os
indivíduos se abstêm da condução das atividades por não se sentirem preparados para a
72 AMORIM, Andressa Nunes. Economia Solidária – princípios e contradições. Mestrado em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2010, p. 111 e 112. FRANÇA FILHO, Genauto. Por que os BCDs são uma forma de organização original? In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando. V. 1 São Paulo, 2013, p. 92. FREIRE, Marusa Vasconcelos. A importância dos bancos comunitários para a inclusão financeira. In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando. V. 1 São Paulo, 2013, p. 42-60.
36
tarefa73. Isso propicia o estabelecimento de relações hierarquizadas indesejáveis no
interior dos grupos, já que apenas alguns se posicionam à frente da maioria das
iniciativas. Assim, a autogestão acaba por ocorrer apenas em aspectos específicos, em
discussões menos fundamentais, ou em situações na qual a presença de todos ou da
maioria é uma exigência formal.
Para entender o terceiro desafio, é preciso considerar que a ES não se desenvolve
num cenário ideal, mas sim num cenário de competitividade entre empresas com
produção em larga escala. A maior parte dos grupos produtivos solidários possuem
pequena estrutura produtiva, baixa capacidade tecnológica e, consequentemente, custos
de produção maiores do que os da grande indústria. Por conta disso, por vezes o preço
de seus produtos e serviços situa-se acima da média de outros semelhantes disponíveis
no mercado tradicional, dificultando que comunidades de baixa-renda, ou redes locais
de produtores-consumidores, possam adquirir tais produtos e serviços e, ao fazê-lo,
possam impulsionar o desenvolvimento de seus territórios. Nesta perspectiva, a ES, ao
invés de se instituir como uma nova lógica de desenvolvimento social sustentável com
geração de trabalho e distribuição de renda, crescimento econômico e proteção dos
ecossistemas locais, corre o risco de se tornar apenas mais uma forma de consumo. Um
consumo socialmente justo e ambientalmente responsável, mas exclusivo a um nicho de
mercado, composto por indivíduos com alta capacidade econômica e consciência cidadã
(AMORIM: 91, 92). O perigo neste caso é, conforme afirma Wellen, fortalecer-se o
"fenômeno da reificação que recebe subsídios dessa forma especial de relação
mercantil, na qual o cliente, ao comprar uma mercadoria, por um acréscimo de preço,
recebe como bônus certificados de solidariedade e cidadania"74.
O fortalecimento institucional das iniciativas solidárias e, em particular, dos
BCDs constitui o quarto desafio. O amadurecimento organizacional é essencial para que
esses empreendimentos possam exercer plenamente sua missão de mobilização local-
comunitária e sejam capazes de articular parcerias com os poderes públicos locais e
regionais, afim de potencializar suas atividades (FRANÇA FILHO, 2013: 92). Uma vez
institucionalizadas, as organizações solidárias também teriam mais capacidade de
73 AMORIM, Andressa Nunes. Economia Solidária - Princípios e contradições. Trabalho apresentado para obtenção de Mestrado em Política Social na Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, 2010, páginas 102, 111 e 112. 74 WELLEN, H. A. R. Contribuição à crítica da "economia solidária". Revista Katálysis. Florianópolis, v. 11, n. 1, 2008, p. 110.
37
pressionar o poder público em direção a uma regulamentação específica para as suas
práticas - o que se refere ao quinto desafio. A ausência de um marco legal dificulta o
processo de transferência de recursos financeiros, públicos ou privados, para tais
organizações, que necessitam desses investimentos para conceder microcrédito; para
investir na capacitação de seus profissionais; para arcar com parte dos custos de
produção dos bens e serviços e assim manter seus preços acessíveis para os membros
das comunidades, entre outras finalidades75. Segundo Marusa Vasconcelos Freire,
algumas questões de natureza normativa são fundamentais para a falência ou o sucesso
das iniciativas. Ao impelir as organizações da ES, em especial os BCDs, a adaptarem-se
a regras jurídicas estatuídas a sistemas de crédito baseados na racionalidade econômica
guiada pelo lucro, a máquina estatal se coloca como empecilho ao desenvolvimento
destes empreendimentos e à inclusão de comunidades nas finanças solidárias76. A autora
afirma: "Há, portanto, necessidade da edição de normas específicas para conferir
segurança jurídica às organizações sem fins lucrativos que se dedicam a tão relevante
missão, orientadas pela rentabilidade social" (FREIRE, 2013: 58).
Esse impasse de natureza jurídica está presente em diversos países, incluindo o
Brasil, que ainda não possui um marco legal regulatório das atividades solidárias
(FREIRE, 2013: 52). Mesmo assim, o país é tido como referência internacional no
apoio político à ES. A postura proativa do governo brasileiro pode ser observada na
criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), em 2003 77 ,
responsável por promover uma política nacional de ES. Conforme já citado, os reflexos
desta política são observados na disseminação da metodologia dos BCDs em território
nacional, primeiramente por meio da parceria estabelecida entre o órgão e o Instituto
Palmas, em 2005, e posteriormente por meio do Programa Nacional de Finanças
Solidárias, em 2010. Neste último, quatro entidades regionais - o Núcleo de Economia
Solidária da Universidade de São Paulo, a Incubadora Tecnológica de Economia
75 EQUIPE FINEP. Palmas para a inovação: ciência, tecnologia e inovação a partir da experiência de um banco comunitário. In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando. V. 1 São Paulo, 2013, p. 95. 76 FREIRE, Marusa Vasconcelos. A importância dos bancos comunitários para a inclusão financeira. In: Banco Palmas 15 anos: Resistindo e inovando. V. 1 São Paulo, 2013, p. 57 e 58. 77 O órgão foi criado no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, fruto de uma proposição da sociedade civil e da decisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, em 28 de maio de 2003. A Secretaria tem a missão de "viabilizar e coordenar atividades de apoio à Economia Solidária em todo o território nacional, visando à geração de trabalho e renda, à inclusão social e à promoção do desenvolvimento justo e solidário". MINISTÉRIO DO TRABALHO E DO EMPREGO DO BRASIL. Disponível em: http://portal.mte.gov.br/ecosolidaria/o-que-e-economia-solidaria.htm
38
Solidária da Universidade Federal da Bahia, a Associação Ateliê de Ideias do Espírito
Santo e o Capital Social da Amazônia - e uma nacional - o Instituto Palmas - receberam
apoio para desenvolverem projetos de manutenção e implantação de BCDs em todo o
território brasileiro (NESOL-USP, 2013: 114). O apoio do governo federal também se
materializa na forte colaboração instituída entre o BNDES e o Instituto Palmas, com o
BNDES fornecendo grande parte do fundo de crédito dos 40 BCDs ligados ao instituto
(SINGER, 2013: 38).
O caso brasileiro é um exemplo de como o poder público pode fomentar a
expansão do campo da ES e de como articulações entre organizações solidárias e
instituições públicas são essenciais para a construção de ações efetivas na produção de
um desenvolvimento integrado e comunitário (FINEP, 2013: 113). A primeira
alternativa para os impasses acima citados se baseia justamente na criação de um
ambiente político e jurídico favorável à realização do potencial das iniciativas
solidárias, por parte dos Estados (ONU, 2014: 8). Além das diversas políticas sociais;
fiscais; de crédito; de investimento; de educação que podem ser estabelecidas em busca
deste objetivo, os governos podem promover parcerias a fim de melhorar a capacitação
dos trabalhadores das comunidades, impulsionando o resultado dos empreendimentos
solidários e a sua autogestão plena. Também podem fornecer subsídios às atividades de
tais empreendimentos, para que os seus produtos e serviços possam ser ofertados a um
preço baixo e sejam adquiridos pelos moradores das comunidades, favorecendo o
desenvolvimento local. Finalmente, podem estabelecer uma regulamentação específica
para as práticas de ES, facilitando a transferência de recursos financeiros para as
organizações.
O segundo caminho para potencializar a ES em escala global envolve a produção
e disseminação de conhecimento sobre o campo. Além de estabelecer políticas
domésticas, os Estados podem promover canais de diálogo sobre a ES no plano
internacional, disseminando conhecimento sobre as políticas conducentes e os contextos
burocráticos e políticos que facilitam a real formulação e implementação de tais
políticas. Visto que a base de dados sobre o desempenho e a sustentabilidade da ES
permanece bem pouco desenvolvida, instituições acadêmicas e formadores de opinião
também podem desenvolver mapeamentos das experiências de empreendimentos
solidários em diferentes regiões, bem como estimular a produção de estudos sobre os
desafios que surgem tanto das dinâmicas internas quanto das dinâmicas externas das
39
iniciativas solidárias, nas suas relações com os agentes do mercado, com as
organizações e com os Estados (ONU, 2014: 22 e 23).
Trazendo luz para as diversas iniciativas já existentes no campo da ES, os
mapeamentos tem potencial para ajudar as organizações locais solidárias a se
organizarem em circuitos nacionais e internacionais. A transcendência do nível local78
para redes inter-territoriais colaborativas é o terceiro ponto a ser desenvolvido pela ES,
e é fundamental para que esta se estruture como um movimento sustentável, capaz de
mobilizar indivíduos, comunidades e governos no mundo inteiro79. Isto pois redes de
colaboração promovem o compartilhamento de ideias, estratégias, desafios entre as
iniciativas solidárias, e a busca por ferramentas que possam responder aos problemas
gerais do setor. Além disso, ao aproximar os variados atores solidários, as redes
auxiliam a formação de uma identidade coletiva, estruturada sobre as características que
possuem em comum. Também trazem mais visibilidade e reconhecimento para a
atuação das organizações, o que muitas vezes é revertido na transferência de mais
recursos para suas atividades80. Utilizando-se dos benefícios da tecnologia no contexto
da globalização, a Rede Brasileira de Bancos Comunitários e outros circuitos nacionais
e internacionais têm demonstrado que a articulação coletiva de organizações locais é um
caminho favorável ao desenvolvimento do campo da ES81.
Levantar os atuais desafios do campo da Economia Solidária é relevante para
refletir sobre possíveis soluções para o seu desenvolvimento, aprimoramento e
expansão. Os cinco desafios acima citados estão dispostos tanto internamente às
organizações de ES, relacionados ao seu modo de funcionamento, quanto externamente,
fazendo referência à forma como os empreendimentos de ES se relacionam com os
demais atores. Respondendo a tais impasses, as três alternativas demonstram que a
78 Esta afirmação faz referência somente à transcendência do nível local na forma de redes regionais, nacionais e internacionais de colaboração. É questionável o quanto uma organização solidária seria capaz de manter seus princípios originais caso ampliasse suas atividades para além do território circunscrito da comunidade onde surgiu, bem como os benefícios e prejuízos que esta mudança traria para a comunidade local. 79 UTTING, Peter. Social and Solidarity Economy: A Pathway to Socially Sustainable Development? UNRISD, 2013. Disponível em: http://www.unrisd.org/unrisd/website/newsview.nsf/(httpNews)/AB920B156339500AC1257B5C002C1E96?OpenDocument 80 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. The Reader: Social and Solidarity Economy, 3ª edição, 2013, P. 54, 55, 56. 81 Para informações sobre outras redes nacionais e internacionais de Economia Solidária, consultar ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. The Reader: Social and Solidarity Economy, 3ª edição, 2013, p. 54 - 66.
40
sustentabilidade e o futuro da ES dependem não apenas dos próprios atores da ES, mas
também de governos, de universidades e da sociedade de uma forma geral.
41
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou apresentar a abordagem da Economia Solidária e a
metodologia dos Bancos Comunitários de Desenvolvimento como vias para o
desenvolvimento social sustentável no cenário atual, pós globalização.
A procura por novos paradigmas de desenvolvimento se justifica pela
insuficiência da abordagem neoliberal para responder de maneira efetiva aos problemas
econômicos, sociais, culturais e ambientais intensificados pelo fenômeno da
globalização. Dentre eles, destaca-se o aumento da desigualdade social a nível
doméstico (within-country inequality) e a nível mundial (global inequality), além da
intensificação dos impactos ambientais nas últimas décadas.
O potencial da Economia Solidária para solucionar os grandes problemas da
agenda internacional contemporânea reside em seu viés holístico, bem como na
consideração de princípios que colocam o ser humano como o sujeito e a finalidade da
atividade econômica, em lugar da maximização do lucro e da acumulação privada de
riqueza e de capital. Os objetivos dos empreendimentos solidários são múltiplos,
revelando tal caráter abrangente: geração de emprego e renda; democratização do
acesso a financiamento para populações de baixa-renda e pequenos empreendedores;
empoderamento econômico e político de populações de baixa-renda; desenvolvimento
de economias locais; educação financeira; promoção da governança local e
participativa; fortalecimento de elos comunitários e do senso de responsabilidade
coletiva; promoção da justiça ambiental; preservação de recursos naturais; entre outros.
O conceito de Economia Solidária é relativamente recente, o que faz com que
base de evidências relacionadas ao desempenho e a sustentabilidade de suas iniciativas
ainda seja pouco desenvolvida. Além disso, parte considerável das finalidades dos
empreendimentos solidários é bastante sensível para ser mensurada de maneira objetiva,
a exemplo do fortalecimento dos elos comunitários em territórios circunscritos. Por esta
razão, este trabalho não se debruçou sobre a avaliação dos resultados dos
empreendimentos solidários.
Apesar disso, o Banco Palmas e os Bancos Comunitários de Desenvolvimento do
Brasil são apresentados como iniciativas solidárias de sucesso. Esta consideração é
baseada em critérios como a sustentabilidade da organização original - o Banco Palmas
completa dezoito anos em 2016, em ritmo de crescimento - e a replicação da
metodologia dos BCDs em escala nacional. Atualmente, existem mais de cem Bancos
Comunitários de Desenvolvimento em todo o Brasil.
42
No plano mundial e nacional, a Economia Solidária e os Bancos Comunitários de
Desenvolvimento, respectivamente, enfrentam desafios para se desenvolver por
completo. Estes revelam a importância da construção de ambientes institucionais e
jurídicos favoráveis à expansão de tais iniciativas, além da articulação conjunta entre os
atores do campo e parceiros, com destaque para parcerias com o setor público. Apesar
do trabalho não observar o plano institucional, jurídico e político de cada Estado onde
se manifesta a Economia Solidária, uma análise sobre o ecossistema brasileiro sugere
que o Brasil é um país relativamente avançado nesta questão, uma vez que dispõe de
órgãos públicos dedicados exclusivamente à Economia Solidária e de uma Rede
Brasileira de Bancos Comunitários de Desenvolvimento.
Dissertações futuras poderiam ser elaboradas traçando um panorama institucional
internacional da Economia Solidária. Outro possibilidade seria um mapeamento das
organizações solidárias já existentes no mundo, destacando suas diferenças e
semelhanças. Tais trabalhos poderiam auxiliar o processo de articulação dos atores
locais e regionais de Economia Solidária na forma de redes nacionais e internacionais,
potencializando assim a atuação do campo.
43
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