descrição do processo de desenvolvimento emocional

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1 Descrição do processo de desenvolvimento emocional do ponto de vista de Winnicott Pretende-se, aqui, fazer uma apresentação linear do processo de desenvolvimento emocional do ponto de vista de Winnicott, a descrevendo-o em função do tipo de relação, ou modos de ser, que o indivíduo tem com o ambiente, considerando, nesse sentido, três grandes períodos: dependência absoluta, dependência relativa e rumo à independência 1 ). b Esses modos de ser-no-mundo são descritos por Winnicott não tanto em termos das relações de objeto impulsionadas pela vida instintual, mas em relação à linha que leva os indivíduos do estado de nãointegração inicial para os diversos tipos e graus de integração, da dependência absoluta inicial em relação ao ambiente para o estado dinâmico da independência relativa, do estado de nãoser para o de ser-no-tempo etc. c Tal maneira de apresentar o desenvolvimento emocional significa não só uma redescrição desse processo do ponto de vista da psicanálise, mas também a apresentação de uma perspectiva que pode ser útil para diversas outras áreas do conhecimento, tais como, mais diretamente, a medicina, a enfermagem, a educação e a assistência social, dado que abre a possibilidade de cuidados preventivos e de cuidados com o ambiente, não se limitando à compreensão do mundo interno, tal como o desenvolvimento inicial da psicanálise teria levado a considerar. Meu objetivo é escrever de um texto conciso e de fácil compreensão, mesmo para aqueles que não estão habituados com a teoria psicanalítica, oferecendo uma 1 Winnicott, 1960c, pp. 45-6. Estarei citando Winnicott pela classificação feita por Knud Hjulmand (1999), considerando que a publicação de suas obras completas seguirá este padrão de referência (cf. Abram, 2008; Hjulmand, 2007).

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Descrição do processo de desenvolvimento emocional

do ponto de vista de Winnicott

Pretende-se, aqui, fazer uma apresentação linear do processo de

desenvolvimento emocional do ponto de vista de Winnicott,a descrevendo-o em função

do tipo de relação, ou modos de ser, que o indivíduo tem com o ambiente, considerando,

nesse sentido, três grandes períodos: dependência absoluta, dependência relativa e

rumo à independência1).b Esses modos de ser-no-mundo são descritos por Winnicott

não tanto em termos das relações de objeto impulsionadas pela vida instintual, mas em

relação à linha que leva os indivíduos do estado de nãointegração inicial para os

diversos tipos e graus de integração, da dependência absoluta inicial em relação ao

ambiente para o estado dinâmico da independência relativa, do estado de nãoser para o

de ser-no-tempo etc.c

Tal maneira de apresentar o desenvolvimento emocional significa não só uma

redescrição desse processo do ponto de vista da psicanálise, mas também a apresentação

de uma perspectiva que pode ser útil para diversas outras áreas do conhecimento, tais

como, mais diretamente, a medicina, a enfermagem, a educação e a assistência social,

dado que abre a possibilidade de cuidados preventivos e de cuidados com o ambiente,

não se limitando à compreensão do mundo interno, tal como o desenvolvimento inicial

da psicanálise teria levado a considerar.

Meu objetivo é escrever de um texto conciso e de fácil compreensão, mesmo

para aqueles que não estão habituados com a teoria psicanalítica, oferecendo uma

1 Winnicott, 1960c, pp. 45-6. Estarei citando Winnicott pela classificação feita por Knud Hjulmand

(1999), considerando que a publicação de suas obras completas seguirá este padrão de referência (cf.

Abram, 2008; Hjulmand, 2007).

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compreensão geral dos processos empíricos em jogo no decorrer do processo de

desenvolvimento emocional, como se estivéssemos seguindo uma linha reta (o que

certamente é fictício e tem apenas um objetivo pedagógico. Também busco apresentar

ao leitor um conjunto de referências que possam ajudá-lo a encontrar os temas e os

conceitos citados na obra de Winnicott, contribuindo para a tarefa de estudo e pesquisa

nessa área.

Há diversas maneiras de avaliar a natureza e a magnitude das contribuições da

obra de Winnicott, tanto para a psicanálise quanto para outras áreas do conhecimento

dependentes de uma compreensão científica do desenvolvimento emocional do ser

humano. Apoiando-me nestas leituras,d bem como na minha própria compreensão de

sua obra, dediquei-me, neste texto, a uma descrição do processo de desenvolvimento,

procurando manter-me, tanto quanto possível, próximo àquilo que pode ser considerado

referentes factuais, afastando-me, por assim dizer, dos conceitos especulativos (ou seja,

são construções auxiliares de valor apenas heurístico) tão comuns nas descrições

metapsicológicas.e

Aceitando a incompletude dessa descrição, procurei seguir uma linha sobre a

qual as conquistas e as dinâmicas relacionais e pessoais pudessem ser apreendidas de

uma maneira clara, na busca de um texto no qual o leitor, que não teve ou não tem

familiaridade ou contato com a obra de Winnicott, pudesse seguir como se estivesse

assistindo ao desenvolvimento de um indivíduo ideal, proporcionando uma visão de

conjunto num texto relativamente curto. Não creio que haja algo propriamente novo na

exposição que procuro apresentar, a não ser o fato de fazê-la à minha maneira e de

fornecer uma apresentação concisa desse processo, bem como as dinâmicas específicas

envolvidas.

3

Winnicott apresentou a linha mestra de sua teoria do desenvolvimento no seu

livro Natureza Humana.2 Pode-se afirmar que Natureza Humana (1988) está para

Winnicott como Três ensaios sobre a sexualidade (1905) está para Freud, reescritos

durantes anos; tanto um como outro autor apresentam nesses textos suas descrições do

processo de desenvolvimento emocional do ser humano, do ponto de vista da

psicanálise.f

Winnicott enfatiza sua perspectiva de trabalho e pensamento, afirmando-se e

caracterizando-se como um autor preocupado com a teoria do desenvolvimento: “Vocês

já devem ter percebido que, por natureza, treinamento e prática sou uma pessoa que

pensa de modo desenvolvimental”.3 Não se trata de uma preocupação apenas teórica,

mas de uma procura pela descrição de processos que possam esclarecer tanto a

organização saudável quanto a patológica do ser humano, tendo em vista a possibilidade

de agir, seja de forma profilática seja curativa, nesse processo: “Estamos debatendo a

natureza humana e nos achamos particularmente interessados nos processos de

desenvolvimento e no que chamaríamos de etiologia na investigação de uma

enfermidade”.4g A preocupação central com o processo de desenvolvimento o leva a

procurar o que seria o desenvolvimento saudável, porque é com base nessa referência

que os vários tipos de doenças poderiam efetivamente ser pensados, ou seja, essa

2 Cf., em outros textos de Winnicott (1945h, 1958j, 1960c, 1965h, 1965m, 1965n, 1965r, 1965t, 1965vf,

1971f, 1989n), apresentações mais ou menos sistemáticas de sua teoria do desenvolvimento. Ver também

em textos seus que tocam nesse tema, de forma menos sistemática que os anteriores, informações

complementares importantes para a compreensão desse processo (1948b, 1953a, 1955c, 1962a, 1963a,

1963c, 1965p, 1965vd, 1970b, 1989vk, 1989vl, 1996k, 1996o).

3 Winnicott, 1984h, p. 42.

4 Winnicott, 1989xh, p. 349.

4

compreensão visa, em última instância, à possibilidade de construir a saúde5 h e de tratar

e prevenir as doenças: “precisamos chegar a uma teoria do desenvolvimento normal

para podermos ser capazes de compreender as doenças e as várias imaturidades, uma

vez que já não nos damos mais por satisfeitos a menos que possamos preveni-las e curá-

las. Não aceitamos esquizofrenia infantil mais do que aceitamos poliomelite ou a

condição da criança espástica. Tentamos prevenir, e esperamos ser capazes de conduzir

à cura onde quer que haja anormalidade que signifique sofrimento para alguém”.6

É interessante notar que Winnicott reconhece que há diversos modos ou

perspectivas para descrever esse processo, quer pela psicanálise quer por outras

perspectivas teóricas ou disciplinas, cabendo ao pesquisador aprender com todas elas,

aprofundando, assim, sua maneira de descrever o processo: “Não é necessário

adotarmos um método único e exclusivo para a descrição do ser humano. É bem mais

lucrativo familiarizar-se com o uso de cada um dos métodos de abordagem

conhecidos”.7 Não se trata, a meu ver, de uma posição eclética ou da tentativa de fazer

uma síntese, mas sim a compreensão de que diversas descrições podem levar a diversas

percepções de um processo complexo, redundado em mais precisão no modo de

apresentar esse processo.

Creio que, aqui, Winnicott se aproxima de Freud quando este comenta as

contribuições que uma determinada disciplina pode dar a outra, produzindo incitações

que cada disciplina deve levar em conta no seu próprio campo léxico e semântico. Diz

5 Para um estudo sobre a noção de saúde, veja: Winnicott (1971f, p. 30; 1954a, p. 336; 1958m, p. 420;

1960c, p. 47; 1965q, p. 53; 1965r, p. 80, p. 87; 1965s, p. 216; 1965vc, p. 64; 1967b, p. 137; 1971f, p. 21,

p. 29; 1971g, p. 75; 1971r, p. 93; 1986f, p. 111; 1986h, p. 31; 1987a, p. 79; 1988, p. 137, p. 148; 1996p,

p. 95; 1996f, pp. 236-237), Phillips (1988, p. 108).

6 Winnicott, 1965vc, p. 65.

7 Winnicott, 1988, p. 25.

5

Freud, no seu texto Totem e tabu: “É uma falha necessária dos trabalhos que tentam

aplicar os pontos de vista da psicanálise aos temas das ciências do espírito a de oferecer

tão pouco dos dois ao leitor. Assim se restringem a ter um caráter de incitação; eles

fazem ao especialista proposições que ele deverá tomar em consideração no seu

trabalho”.8

Winnicott não sistematizou sua teoria do desenvolvimento em uma única obra e,

ainda que ele afirme que “os estágios iniciais jamais serão verdadeiramente

abandonados”9 – o que nos levaria a considerar que as dinâmicas de todas as fases

estariam mais ou menos presentes em todos os momentos (ainda que essas dinâmicas

tenham tido um determinado início localizável e diferenciável no tempo cronológico) –,

pode-se seguir uma linha que vai desde o início mais profundo até o seu fim, como a

morte, considerada, então, como sendo a última das experiências, a experiência que

finaliza o processo de desenvolvimento.

Para Winnicott a psicanálise é uma psicologia dinâmica i, ou seja, ocupada com

o desenvolvimento emocional do indivíduo. Trata-se, portanto, de uma psicologia que

se ocupa dos sentimentos, da vida efetiva das pessoas, suas emoções e instintos,

considerando-se que grande parte da vida psíquica é fruto de processos inconscientes,

que são, para ele, sempre referidos a relações interhumanas, desde o seu início mais

remoto. Ao diferenciar essa psicologia de outras perspectivas de entendimento sobre o

desenvolvimento infantil, ele especifica o lugar da psicanálise em relação outras formas

de entendimento:

8 Freud, 192-13, p. 283.

9 Winnicott, 1988, p. 179.

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O exame preliminar do âmbito marcado pela pediatria psicossomática apenas

demonstrou a necessidade de se compreender o desenvolvimento emocional do

indivíduo. Do lado somático, o pediatra baseia tudo na anatomia e na fisiologia,

do lado psíquico deveria existir uma disciplina equivalente. A psicologia

acadêmica [aquela associada não ao estudo das pessoas, mas ao estudo de

funções, tais como a percepção, a avaliação da inteligência, realização de testes

cognitivos, etc.] não nos fornece a resposta. A única possível é a psicologia

dinâmica [a que abarca o desenvolvimento emocional e relacional do ser

humano, seja com ele mesmo seja com o ambiente no qual vive] ou, em outras

palavras, a psicanálise.10

A noção de psicologia dinâmica em Winnicott e o ponto de vista dinâmico em

Freud (que é uma das características principais da metapsicologia freudiana) não se

referem ao mesmo tipo de “dinâmica”; os termos têm num e noutro autor sentidos

diferentes. Para Freud, dinâmica diz respeito ao suposto jogo de forças que determina o

indivíduo;11 em Winnicott, ela se refere às efetivas relações interhumanas que

constituem o ser e o vir a ser de uma pessoa no mundo.

Isso não significa que Winnicott tenha abandonado a totalidade do que Freud

propôs, ainda que ele reconheça diversos aspectos insuficientes ou inapropriados da

teoria psicanalítica freudiana. Winnicott entende o desenvolvimento da psicanálise tal

como ocorre no amadurecimento de toda ciência, seja ela natural ou social. O progresso

só pode ser entendido tendo em vista a tradição. Nesse sentido, pode-se determinar tanto

a herança freudiana quanto a diferença que Winnicott tem com Freud. Winnicott

10 Winnicott, 1988, p. 51.

11 Cf. Fulgencio (2003, 2008a) para uma análise detalhada do que é o ponto de vista dinâmico para Freud.

7

reconhece sua formação no quadro da teoria freudiana12 mas explicita nem tudo que

Freud fez continua sendo aceito: “há certas coisas em que Freud veio a acreditar que nos

parecem, a mim e a muitos outros analistas, não serem, de modo algum, corretas – mas

isso não importa. O fato é que Freud começou uma abordagem científica do problema

do desenvolvimento humano [...] legou-nos um método a ser utilizado e desenvolvido,

pelo qual poderíamos conferir as observações de outros e fazer as nossas próprias”.13

Em termos gerais, Winnicott constata que Freud fez o trabalho fundamental,

fornecendo um método14 para que fosse possível abordar e agir sobre o

desenvolvimento emocional do ser humano, descobrindo com isso aspectos

fundamentais do processo de desenvolvimento, tais como o complexo de Édipo, a

sexualidade infantil, o inconsciente reprimido. No entanto, Winnicott também observa

que Freud e outros analistas (tais como Melanie Klein) erraram (wrong)15 ao projetar a

dinâmica do complexo de Édipo (que caracteriza a criança madura que se relaciona

como pessoa inteira como outras pessoas também reconhecidas como inteiras) para

fases mais primitivas do desenvolvimento.

Podemos dizer que Winnicott refez a teoria psicanalítica, seja introduzindo

novos fatos e fatores a serem considerados no processo de desenvolvimento emocional,

seja redescrevendo, com base nessas descobertas, o que outros psicanalistas fizeram.

Como dizem Greenberg & Mitchell (1983), trata-se da maneira de Winnicott contar a

sua história da psicanálise:

12 Cf. Winnicott, 1965t, p. 29; 1989f, p. 437.

13 Winnicott, 1965t, p. 29. Cf. em Fulgencio (2010) uma análise das transformações que Winnicott fez em

alguns nos conceitos estruturais da psicanálise de Freud (inconsciente, realidade psíquica, sexualidade,

complexo de Édipo).

14 Cf. Winnicott, 1965t, p. 29.

15 Cf. Winnicott, 1965va, p. 157.

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Winnicott conserva a tradição de maneira curiosa, em grande parte distorcendo-

a. A sua interpretação dos conceitos freudianos e kleinianos é tão idiossincrática

e tão pouco representativa da formulação e intenção originais deles a ponto de

torná-las às vezes, irreconhecíveis. Ele reconta a história das ideias

psicanalíticas não tanto como se desenvolveu, mas como ele gostaria que

tivesse sido, reescrevendo Freud para torná-lo um predecessor mais claro e mais

fácil da própria visão de Winnicott.16

Além de explicitar outras fases mais primitivas do processo de desenvolvimento

emocional, para as quais a sexualidade e os instintos não são os motores últimos da

existência, também modificou o modo de teorizar o processo de desenvolvimento do ser

humano. Em outros termos, Winnicott rejeitou as especulações teóricas que

caracterizam a metapsicologia utilizada na psicanálise freudiana, abandonando

conceitos tais como o de forças psíquicas, energias psíquicas ou aparelhos psíquicos,

considerando que a natureza humana precisa ser descrita e teorizada numa linguagem j

adequada à natureza humana.

Para ele, cada uma das fases do processo de desenvolvimento deve ser descrita

com uma linguagem específica, sendo um erro aplicar a linguagem de uma fase à outra:

“A linguagem de uma parte específica é inadequada para as outras”.17 Mais ainda, cabe

àquele que procura descrever esse processo, fazê-lo numa linguagem simples,

objetivando tornar visível e acessível os fenômenos e as dinâmicas que estão sendo

abordados: “um escritor da natureza humana precisa ser levado constantemente em

16 Greenberg & Mitchell, 1983, p. 139.

17 Winnicott, 1988, p. 52.

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direção a uma linguagem simples, longe do jargão do psicólogo, mesmo que tal jargão

possa contribuir para revistas científicas”.18

A psicanálise, como toda psicologia científica dedicada à compreensão da

constituição saudável e patológica do ser humano, necessita de uma teoria geral do

desenvolvimento, aplicável a todos os casos e a todos os problemas pertinentes a seu

campo de formulação e resolução de problemas. Em Freud, essa teoria é apresentada em

termos do desenvolvimento da vida instintual, a sua teoria do desenvolvimento da

sexualidade. Em Winnicott, temos uma teoria do desenvolvimento emocional que, além

de incluir a questão da administração da vida instintual nas relações interpessoais,

também abarca outros aspectos da existência afetiva, estabelecendo, por assim dizer,

duas linhas paralelas, sobrepostas, do desenvolvimento: a que diz respeito ao

desenvolvimento do ego (focada na questão do ser, da continuidade de ser, de ser a

partir de simesmo e das reações a este tipo de experiência de simesmo) e a relacionada

ao desenvolvimento do id19 (focada na administração das pressões instintuais antes e

depois que a conquista da unidade do sujeito psicológico tenha sido feita, e que a

própria vida instintual tenha sido integrada no campo do self ou, em outros termos,

integrada como algo que advém do indivíduo e não vivida como sendo pressões

externas a esta unidade do sujeito psicológico).20

18 Winnicott, 1957o, p. 121.

19 Para uma compreensão do sentido da noção de id em Winnicott, veja Fulgencio (2013b).

20 Veja em Loparic (2007) uma análise do lugar da sexualidade na obra de Winnicott, em que ele aponta

para essas duas linhas do desenvolvimento (ou, como ele prefere, do amadurecimento), denominando-as

de linha identitária e linha instintual. Veja também, em Scarfone (2011), um estudo sobre a sexualidade

em Winnicott, como também a coletânea, organizada por Caldwell (2005), Sex and Sexuality:

Winnicottian Perspectives.

10

Ao descrever, em temos gerais, o processo de desenvolvimento, Winnicott diz:

“Seria lógico descrever o desenvolvimento do ser humano desde a concepção,

gradualmente prosseguindo através da vida intrauterina, o nascimento, passando em

revista o bebê que aprende a andar e a criança em fase de latência, e depois o

adolescente, e mais tarde alcançando o adulto maduro, pronto para ocupar um lugar no

mundo, e que depois envelhece e, afinal, morre”.21 Traçando esse quadro geral,

Winnicott tem em mente a linha mestra sobre a qual o desenvolvimento emocional do

ser humano se dá, não tanto o problema da administração da vida instintual, mas algo

mais amplo que, mesmo incluindo a vida instintual, não é redutível a ela: “A base de

todas as teorias sobre o desenvolvimento da personalidade humana é a continuidade, a

linha da vida, que provavelmente tem início antes do nascimento concreto do bebê”.22

Com isso, há uma mudança no modelo de homem utilizado pela psicanálise,

alternando o lugar e o valor dado à sexualidade e às pulsões. Pode-se considerar que

Winnicott substituiu a noção freudiana da pulsão (conceito fundamental convencional,

em relação ao qual, mesmo sendo um ser mítico, não se pode prescindir) pela de ser e

necessidade de ser,k considerando-a, então, um novo fundamento ontológico para a vida

afetiva do ser humano. Para ele, a noção de ser é uma experiência psicológica,

ontologicamente falando, anterior às determinações instintuais, além de considerá-la um

“ser mítico”, tal como Freud relacionou a noção de pulsão. Winnicott não se apoia

diretamente numa proposição filosófica, nem busca as definições do que é o Ser para,

depois, aplicá-la aos fenômenos; ao menos não faz isso nos seus textos. Se percorrermos

a sua obra à procura do uso do termo ser e da expressão continuar a ser, encontramos

21 Winnicott, 1988, p. 51.

22 Winnicott, 1968d, pp. 79-80.

11

desde referências usuais até usos propriamente conceituais, nos quais ele associa essa

noção com sua concepção sobre o que é a natureza humana, sobre o que versa a vida.23

Fazendo, aqui, uma síntese de suas referências, com o objetivo de elaborar um

primeiro esboço dessa noção, podemos afirmar que:

- em 1950, Winnicott alude ao sentimento de continuidade de ser como uma

experiência sustentável por um ambiente relativamente estável;24

- em 1954, menciona a experiência do sujeito psicológico que chega à situação

em que se integra num Eu Sou que se diferencia do mundo, lembrando que esse Eu Sou

advém de uma situação anterior que a fundamenta, a experiência de ser; primeiro Sou e

depois um Eu Sou;25

- em 1960, Winnicott toma a continuidade de ser como fundamento da estrutura

da natureza humana, afirmando que esse ser não é reativo, e que a reação aniquila o

ser;26

- ainda nesse mesmo texto, toma a noção de ser, de continuidade de ser, de

tendência inata à integração e de força do ego praticamente como sinônimos,

caracterizando a estrutura ontológica da natureza humana, dando a essas noções um

valor epistemológico análogo ao que Freud dá ao conceito de pulsão;27

- em 1966, associa a noção de ser com a de criar um mundo no qual esse ser

possa habitar, bem como reconhece que há pessoas que jamais chegam a ser;28

23 Cf. Winnicott, 1967b, p. 137.

24 Cf. Winnicott, 1965t, pp. 39-40.

25 Cf. Winnicott, 1989xd, p. 331.

26 Cf. Winnicott, 1960c, p. 47.

27 Cf. Winnicott, 1960c, p. 51.

28 Cf. Winnicott, 1984b, p. 125.

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- ainda nesse ano, relaciona a noção de ser com a de elemento feminino puro,

distinguindo este do elemento masculino puro (fazer), acentuando que a experiência

fundamental de ser nada tem a ver com a vida instintual;

- em 1963, aponta para o fato de que há condições para Ser e, com base nesse

tipo de integração, poder relacionar-se com o mundo, colocando em evidência aquelas

situações traumáticas em que o indivíduo viveu certos acontecimentos quando ainda era

imaturo para “estar lá”, ou seja, viveu certos acontecimentos mas não pôde

experimentá-los, ou seja, colocá-los na área em que o self os apreende sem ser

aniquilado;29

- em 1967, novamente coloca em evidência a questão de ser-no-mundo, como

fundamento ontológico da saúde30, afirmando que a vida versa justamente sobre essa

necessidade de ser;31

- em 1968, pensando nas diversas integrações do processo de desenvolvimento

afetivo, reconhece na unidade Eu Sou um grande salto ou conquista que muda a relação

com o mundo, mas também mostra que antes do Eu Sou há um Sou que lhe dá

fundamento;32

- ainda em 1968, reafirma que o Sou (dado inicialmente pela sustentação

ambiental) precede o Eu Sou, e que este último precede o Eu Faço;33

- em 1970, a noção de ser é identificada como ser a partir de simesmo, como um

gesto espontâneo, associando essa experiência com a noção de criatividade e tomando-

29 Cf. Winnicott, 1974.

30 Cf. Winnicott, 1971f, p. 10.

31 Cf. Winnicott, 1967b, p. 137.

32 Cf. Winnicott, 1984h, p. 43.

33 Cf. Winnicott, 1971l, p. 177.

13

as, todas elas, como mais uma maneira de descrever o que caracteriza a natureza

humana no seu fundamento ontológico;34

- mas é na Parte IV do seu livro Natureza Humana (publicado postumamente,

em 1988, mas escrito e reescrito durante toda a sua vida desde 1954) que encontramos

uma abordagem mais ampla da noção de ser e da continuidade de ser como modo de

caracterizar ontologicamente o que é o homem e de onde ele vem, colocando a

sexualidade e a vida instintual em um papel secundário (ainda que importante).

Segundo Winnicott, saúde significa continuidade de ser. Ser, aqui, tem um

sentido muito específico, significa ser a partir de simesmo e não como uma reação: “A

alternativa a ser é reagir, e reagir interrompe o ser e o aniquila”.35 Noutro momento de

sua obra, ele marca claramente que a questão do SER é anterior e mais fundamental,

ontologicamente falando, do que a questão da sexualidade:

Finalmente, gostaria de enfocar a vida que uma pessoa saudável é capaz de

viver. O que é a vida? Não preciso saber a resposta, mas podemos chegar a um

acordo: ela está mais próxima do SER do que do sexo. Diz Lorelei: “Beijar é

muito bom, mas uma pulseira de diamantes dura para sempre”.36 Ser e se sentir

reak dizem respeito essencialmente à saúde, e só se garantirmos o ser é que

poderemos partir para coisas mais objetivas. Sustento que isso não é apenas um

julgamento de valor, mas que há um vínculo entre a saúde emocional individual

e o sentimento de se sentir real. Não há dúvida de que a grande maioria das

pessoas dão como certo que se sentem reais, mas a que preço? Em que medida

estarão elas negando um fato, ou seja, que poderia haver o perigo de elas se

34 Cf. Winnicott, 1986h, pp. 23-24.

35 Winnicott, 1960c, p. 47.

36 Loos, Anita (1935). Gentleman Prefer Blondes. New York: Brentano, 1935.

14

sentirem irreais, possuídas, ou de não serem elas mesmas, de sucumbirem para

sempre, de perderem a orientação, de serem desligadas do próprio corpo, de se

sentirem aniquiladas, de não serem nada e não estarem em lugar nenhum? A

saúde não está associada à negação de coisa alguma.37

A necessidade de ser e a tendência inata à integração38

l correspondem a dois

impulsos ou motores básicos da natureza humana, isto é, dizem respeito aos aspectos da

ontologia ou do modelo de homem proposto por Winnicott, que não é mais redutível ao

padrão naturalista proposto por Freud (o homem como um aparelho movido por forças e

energias, impulsionado pelas pulsões), mas se coloca como um modelo mais próximo

ao que os fenomenólogos e alguns filósofos consideram ser o modo específico de ser do

ser humano, às vezes denominado Dasein.m

O desenvolvimento dos modos de ser do ser humanotambém é pensado por

Winnicott em termos de integração: no espaço, no tempo, da psique com o soma, da

instintualidade no self, das ambiguidades, do amor e do ódio etc. Diz Winnicott: “De

forma oculta se inicia no lactente e continua na criança uma tendência inata para a

integração da personalidade, tendendo a palavra integração a ter um significado cada

vez mais complexo à medida que o tempo passa e a criança se torna mais velha”.39 Essa

tendência não é um fato puramente biológico cuja determinação leva o indivíduo para

fins biologicamente determinados. Ela não agiria por si só na determinação do processo

de desenvolvimento emocional, independentemente ou sobrepondo-se ao meio; ao

37 Winnicott, 1971f [1967], p. 18.

38 Cf., para um estudo deste tema, Winnicott, 1945d, p. 224; 1988, P. IV, Cap. 2. Integração; 1965r

[1963], p. 83; 1971d, p. 210 ;1968g, p. 188; 1958f, p. 276; 1984h, pp. 42-43.

39 Winnicott, 1963d, p. 90.

15

contrário, para que essa tendência possa realizar-se, é necessário que o meio ambiente

sustente ativamente o ser desde o início.

A integração corresponde, pois, a uma das perspectivas de compreensão e de

descrição do processo de desenvolvimento emocional, começando no estado originário

em que o bebê é nãointegrado, e terminando no momento em que ocorre a última das

integrações, quando finaliza a história do indivíduo, com a morte – este fato paradoxal

que é, ao mesmo tempo, desintegração e integração. Afirma Winnicott: “A integração

começa imediatamente após o início da vida, mas em nosso campo de trabalho nunca a

podemos considerar como óbvio. Devemos estar conscientes de seu funcionamento e

observar suas flutuações”.40 O processo de integração é, por um lado, referido a uma

tendência inata e, por outro, impulsionado, ou causado, tanto por fatores internos (as

excitações) como por fatores externos (a provisão ambiental): “A tendência a integrar-

se é ajudada por dois conjuntos de experiências: a técnica pela qual alguém mantém a

criança aquecida, segura-a e dá-lhe banho, balança-a e a chama pelo nome, e também as

agudas experiências instintivas que tendem a aglutinar a personalidade a partir de

dentro”.41 Pode-se, pois, considerar que a expressão processo de desenvolvimento tem

também como sinônimo processo de integração.

Não basta que o tempo passe para que a tendência à integração e a continuidade

de ser ocorram. Winnicott explicita: “Neste lugar que é caracterizado pela existência

essencial de um ambiente sustentador, o ‘potencial herdado’ está se tornando uma

‘continuidade de ser’”.42 A necessidade básica do existir humano (tanto do bebê, da

criança quanto do adulto) é a de ser e de continuar a ser, o que implica em um processo

40 Winnicott, 1945d, p. 224.

41 Winnicott, 1945d, p. 224.

42 Winnicott, 1960c, p. 47.

16

de integração. Tudo aquilo que quebra a continuidade de ser, num momento em que

essa quebra não pode ainda ser suportada, é vivido como trauma e atrapalha ou paralisa

o processo de desenvolvimento emocional: “Trauma significa quebra de continuidade

na existência de um indivíduo”.43 Caberá ao ambiente reconhecer as necessidades

específicas da criança, dando-lhe as condições para que ela seja e continue sendo: “o

processo de maturação depende, para se tornar real na criança, e real nos momentos

apropriados, de favorecimento ambiental suficientemente bom”.44

É necessário ressaltar que a necessidade de ser e de continuar sendo, bem como

a tendência inata à integração, só podem ser realizadas com a ajuda do ambiente. É

nesse sentido que Winnicott reconhecerá a dependência como um fato fundamental

sempre a ser considerado no processo de desenvolvimento emocional. A esse respeito,

ele esclarece:

Fundamental a tudo isso é a ideia de dependência individual, sendo a

dependência o princípio quase absoluto, e alterando-se gradativamente, e de

maneira ordenada, para a dependência relativa e no sentido da independência. A

independência não se torna absoluta e o indivíduo, visto como uma unidade

autônoma, nunca, de fato, é independente do meio ambiente, embora existam

maneiras pelas quais, na maturidade, ele possa sentir-se livre e independente,

tanto quanto contribua para a felicidade e para o sentimento de estar de posse de

uma identidade pessoal.45

43 Winnicott, 1971f, p. 4. Cf. em Fulgencio (2004) algumas observações para a compreensão da

especificidade da noção de trauma em Winnicott, num estudo comparativo com as concepções de Freud.

44 Winnicott, 1963d, p. 91.

45 Winnicott, 1968g, p. 188.

17

A concepção de Winnicott sobre as dificuldades da vida de um ser humano com

outros seres humanos não é ingênua; ele sabe que a vida é difícil nela mesma46, que a

existência, infantil e adulta, é repleta de ambiguidades e dificuldades,47 mas que é

próprio da saúde experimentar a vida como algo que vale a pena n. Se focarmos o

processo de desenvolvimento emocional nesse aspecto do desenvolvimento que vai da

dependência para a independência, e nos perguntarmos sobre o que faz o ambiente para

ajudar ou atrapalhar esse desenvolvimento, então, poderemos obter uma ou outra

orientação para aquilo que chamamos tratamento psíquico, bem como para o problema

da educação infantil e da profilaxia em saúde mental.

Um dos desenhos, de Winnicott dedicados a figurar a relação de sustentação

ambiental e a existência do self, como um ser-no-mundo, é a de um círculo dentro do

outro. Essa figuração mostra um modelo básico para as relações interhumanas que é, ao

mesmo tempo, simples e base de situações mais complexas da existência, servindo

também como base do seu modelo clínico, expresso, talvez, por expressões tais como “o

bebê na barriga da mãe”, “o bebê no colo da mãe”, o ser-com, o ser-no-mundo etc. Diz

Winnicott, explicitando sua posição:

A continuidade do ser significa saúde. Se tomarmos como analogia uma bolha,

podemos dizer que quando a pressão externa está adaptada à pressão interna, a

bolha pode seguir existindo. Se estivéssemos falando de um bebê humano,

diríamos “sendo”. Se, por outro lado, a pressão no exterior da bolha for maior

ou menor do que aquela em seu interior, a bolha passará a reagir à intrusão. Ela

se modifica como reação a uma mudança no ambiente, e não a partir de um

46 Cf. Winnicott, 1945h, p. 40; 1969o, pp. 424-425; 1986f, p. 107; 1958m, p. 417.

47 Cf. Winnicott, 1984e, p. 241; 1986h, p. 23; 1971g, p. 95; 1971f, p. 10, p. 18.

18

impulso próprio. Em termos do animal humano, isto significa uma interrupção

no ser, e o lugar do ser é substituído pela reação à intrusão.48 o

Nessa figuração, a expressão do self (sem constrição) – sinônimo espontâneo –

só pode ocorrer se houver a sustentação ambiental, seja se adaptando seja estando lá

para receber a comunicação, isto é, para que o gesto espontâneo se complete o ambiente

precisa estar lá para recebê-lo, acolhê-lo, entendê-lo, caso contrário o gesto cai no vazio

e a reação toma conta do processo.

Esse modelo da bolha foi utilizado por Winnicott para representar a relação entre

o indivíduo e o ambiente, especialmente no que diz respeito aos momentos mais

precoces do desenvolvimento. Num artigo de 1958, ele comenta mais explicitamente

esse modelo, com a apresentação e comentário de duas figuras:

48 Winnicott, 1988, p. 148.

A Fig. 1 mostra como, por uma adaptação ativa às necessidades do bebê, o ambiente lhe permite manter-se em isolamento sem ser perturbado. O bebê nada sabe. Nesse estado, ele faz um movimento espontâneo e o ambiente é descoberto sem perda da sensação de ser.

A Fig. 2 mostra uma adaptação falha, que resulta em intrusão do ambiente sobre a criança, levando-a a reagir. A sensação de ser é perdida nessa situação, e pode ser readquirida somente por uma volta ao isolamento. (Nota-se a introdução do fator tempo, significando que há um processo em andamento).

49

Articulando, agora, as características gerais do processo de desenvolvimento

emocional com a exigência de rejeitar teorizações especulativas sobre esse processo,

apresentarei, no que se segue, uma descrição do processo que vai da origem até aquela

fase, já muito saudável e madura, na qual o complexo de Édipo e a vida sexual infantil

têm um significado real e podem, inclusive, gerar conflitos e sintomas neuróticos;

seguindo, então, para uma descrição de algumas das características fundamentais da

fase de latência, da adolescência e da maturidade, termina-se, na velhice, com o

momento em que o ser volta para o nãoser.

Ao procurar redescrever o processo de desenvolvimento emocional colocando

em evidência o tipo de relação que o ser humano tem com o mundo (ambiente) em que

vive e com o qual se relaciona, Winnicott pensa em três fases, em função do tipo de

dependência que o indivíduo tem em relação ao ambiente: dependência absoluta,

dependência relativa e rumo à independência.50 Essas fases correspondem a um critério

novo para classificar e entender o processo de desenvolvimento, que fornece algo que

49 Winnicott, 1953a, pp. 309-310. Um diagrama muito parecido com este encontra-se em Natureza

Humana (1988, P. IV, Cap. 4, pp. 148-9).

50 Winnicott, 1960c, pp. 45-46.

20

até então não havia sido teorizado e que se mostra útil e eficiente para o

desenvolvimento do trabalho clínico, seja no setting psicanalítico seja fora dele.

Winnicott esclarece:

Possuímos a única formulação realmente útil, que existe, da maneira pela qual o

ser humano psicologicamente se desenvolve de um ser completamente

dependente e imaturo para um estado maduro relativamente independente. A

teoria é excepcionalmente complexa e difícil de ser enunciada de modo sucinto,

e sabemos que existem grandes lacunas no nosso entendimento. Apesar disto,

existe a teoria, e, desta maneira, a psicanálise efetuou uma contribuição que é

de modo geral aceita, mas, usualmente, nãoreconhecida.51

O modo de relação de dependência que o indivíduo tem em seu ambiente

corresponde também a uma forma de compreender o grau de saúde ou de adoecimento

de uma pessoa: “A maturidade individual implica um movimento em direção à

independência, mas não existe essa coisa chamada ‘independência’. Seria nocivo para a

saúde o fato de um indivíduo ficar isolado a ponto de se sentir independente e

invulnerável. Se essa pessoa está viva, sem dúvida há dependência!”.52

Adam Phillips (1988), ao diferenciar a posição de Winnicott da de Freud,

acentua esse aspecto do homem como sendo um animal dependente, mais do que um

animal caracterizado pela ambiguidade (amor e ódio) nas suas relações com os outros:

Enquanto Freud se preocupava com as enredadas possibilidades de satisfação

pessoal de cada indivíduo, para Winnicott essa satisfação seria apenas parte do

panorama mais amplo das possibilidades para a autenticidade pessoal do

51 Winnicott, 1989vk, p. 94.

52 Winnicott, 1971f, p. 3.

21

indivíduo, o que ele chamará de “sentir-se real”. Na escrita de Winnicott, a

cultura pode facilitar o crescimento, assim como o pode a mãe; para Freud, o

homem é dividido e compelido, pelas contradições de seu desejo, na direção de

um envolvimento frustrante com os outros. Em Winnicott, o homem só pode

encontrar a simesmo em sua relação com os outros, e na independência

conseguida através do reconhecimento da dependência. Para Freud, em resumo,

o homem era o animal ambivalente; para Winnicott, ele seria o animal

dependente, para quem o desenvolvimento – a única “certeza” de sua existência

– era a tentativa de se tornar “separado sem estar isolado”. Anterior à

sexualidade como inaceitável, havia o desamparo. Dependência era a primeira

coisa, antes do bem e do mal.53

Partindo da dependência inicial, o ser humano amadurece, na saúde, em direção

a uma dependência ou independência relativa. A própria saúde passa a ser caracterizável

como um modo de relação na qual o indivíduo é, ao mesmo tempo, dependente e

independente do mundo em que vive.

Retornando à caracterização do que ocorre em cada uma das grandes fases do

desenvolvimento, da dependência absoluta à independência relativa, pode-se afirmar

que, para Winnicott: na fase da dependência absoluta, o bebê não sabe que existe que

um ambiente do qual depende, e vive total e absolutamente nessa dependência; na fase

da dependência relativa, o bebê começa a perceber que há um mundo que se adapta

mais ou menos a ele; e, na fase rumo à independência, ocorre a distinção eu-mundo,

com todo o trabalho que envolve e impulsiona o relacionamento com o outro.

53 Phillips, 2007 [1988], p. 29.

22

Winnicott também se ocupou em pensar o processo de amadurecimento em

termos das integrações que vão ocorrendo ao longo do desenvolvimento, considerando

que isso seria um avanço significativo e desejável, até mesmo para Freud. Diz

Winnicott: “sinto que Freud daria as boas vindas a um trabalho novo [...] um universal

no desenvolvimento emocional do indivíduo, ou seja, a tendência integradora que pode

conduzi-lo a um status de unidade”.54 A centralidade dada ao processo de integração é

retomada em diversos momentos, referindo-se ao que ele considera um horizonte

saudável para o desenvolvimento,55 pensadonão tanto em termos do que fazemos como

nossos “objetos”, mas como somos no mundo: “Gostaria de examinar o que ocorre nos

primeiros estágios do desenvolvimento da personalidade. A palavra-chave aqui é

integração, que abrande quase todas as tarefas do desenvolvimento. A integração leva o

bebê a uma categoria unitária, ao pronome pessoal “eu”, ao número um; isso torna

possível o EU SOU, que dá sentido ao EU FAÇO”.56

Nessa direção, ele chega mesmo a classificar os pacientes, que chegam aos

consultórios das analistas, em função dos níveis e tipos de integração pessoal,

distinguindo-os em três tipos: 1) aqueles que “funcionam em termos de pessoa inteira,

cujas dificuldades localizam-se no reino dos relacionamentos interpessoais”; 2) aqueles

que são recém-chegados a essa condição, cujas personalidades só agora começaram a

integrar-se e a tornarem-se algo com o que é possível contar; e 3) aqueles que estão num

modo de ser emocional “remota e imediatamente anteriores ao estabelecimento da

54 Winnicott, 1989xa, p. 244.

55 Winnicott, 1987b, p. 132.

56 Winnicott, 1971f, p. 11.

23

personalidade como uma entidade, e anteriores à aquisição do status de unidade em

termos de espaço-tempo”.57

Considerando, então, esses parâmetros, descreverei as conquistas e integrações

do processo de desenvolvimento afetivo, das integrações pessoais, tendo como ideal o

que deveria ocorrer na saúde. Tomo precauções profiláticas em relação aos termos a

serem utilizados, tanto no que se refere a usar uma linguagem adequada para cada fase

quanto na tentativa de evitar o uso de formulações muito abstratas, que nos distanciaria

da percepção dos fatos em jogo nesse processo.

1. Fase da dependência absoluta

Em termos da história de um indivíduo, é difícil, para não dizer obscuro, afirmar

em que momento ele surge e morre como um ser humano. No entanto, é possível

reconhecer dois pontos no tempo, passíveis de relativa precisão de data e hora, que são

o da concepção58 e o da morte do corpo. Entre uma coisa e outra, temos a existência da

natureza humana. Ao caracterizar o que é a natureza humana, Winnicott esclarece: “a

natureza humana é uma amostra temporal da natureza humana” (1988, p. 11), querendo

com isso dizer que: 1) há uma natureza humana passível de ser estudada objetivamente

(o que seria tarefa de uma ciência, tal como a psicanálise); 2) que essa natureza humana,

cuja existência (em termos de cada indivíduo) pode ser descrita, tem características

universais (pelo menos nos últimos milênios) passíveis de serem expostas numa teoria

geral do desenvolvimento pessoal, bem como características particulares, que

constituem a singularidade de cada pessoa; 3) que essa natureza humana só pode ser

caracterizada como algo dado no tempo, de forma dinâmica, ou seja, na sua história de

57 Winnicott, 1955d, p. 375.

58 Cf. Winnicott, 1988, p. 47.

24

relacionamentos inter-humanos, jamais como um dado ou ente isolado; 4) mais ainda (o

que digo agora não está contido analiticamente nessa frase de Winnicott, mas na sua

obra como um todo), que a compreensão da natureza humana depende da distinção e do

entendimento do que ocorre nas diversas fases da existência, reconhecendo

primordialmente que há um longo processo que faz com que um ser humano possa

conquistar o status de unidade dinâmica – tal como a chama de uma vela, sendo sempre

em movimento, mantém a sua unidade – e ter um lugar para viver, no qual ele sente a

vida como algo real, como sendo a sua vida, valendo a pena de ser vivida (tanto em

relação a simesmo quanto aos seus relacionamentos interpessoais), apesar das

dificuldades inerentes à própria existência.

Esse processo, numa perspectiva ideal de um amadurecimento saudável, parte do

fato da concepção, percorre um longo caminho que vai de um estado de nãointegração

inicial até chegar à distinção entre o Eu e o nãoEu, e chega, mais adiante, se tudo dá

certo, a um estado no qual há uma pessoa inteira que se relaciona com os outros como

pessoas inteiras, e que prossegue na miríade de relações e experiências vividas nesse

estado de maturidade, até que seja vivida a última das experiências, com a morte. A

descrição completa está fora de questão; trata-se, pois, de identificar alguns aspectos e

conquistas fundamentais desse processo, diferenciando e caracterizando o que ocorre na

saúde e o que é considerado psicopatologias.

Da fecundação até o nascimento, aquilo que é quase e simplesmente uma

extensão da mãe desenvolve-se tomando forma e vida própria, mas mantendo uma

continuidade com a mãe-ambiente.p Nesse período, ainda que muitas diferenciações

possam ocorrer, a mãe é o bebê e o bebê é a mãe, numa unidade indissociável... até

mesmo do ponto de vista do observador, essa unidade é reconhecida. Aqui, os cuidados

maternos se confundem com os cuidados que a mãe tem consigo mesma; num certo

25

sentido, a mãe não precisa fazer nenhuma ação (consciente ou não) para comunicar-se

ou adaptar-se ao seu bebê ainda na sua barriga, o atendimento das necessidades desse

bebê ocorrem de maneira quase que direta. No que se refere ao início, quando o bebê

está, ainda, na barriga da mãe, a existência psíquica se confunde com a somática: “É

possível assumirmos com certeza que a partir da concepção o corpo e a psique

desenvolvam-se juntos, a princípio fundidos, e gradualmente tornando-se distinguíveis

um do outro”.59

Com o amadurecimento no útero chegando a termo, o bebê precisa nascer para

ter atendida a sua necessidade de ser, ou seja, o ambiente vai tornando-se

vagarosamente inadequado para a permanência do bebê. Com o nascimento, a mãe-

ambiente, que envolvia o bebê por todos os lados, amando-o por todos os lados, passa,

agora, a sustentar e amar o bebê como algo que está fora dela: “O bebê muda de

condição de ser amado por todos os lados para a condição de ser amado somente de

baixo para cima”.60 A mãe, que é ainda mãe-ambiente, precisará saber o que seu bebê

precisa para poder atender às suas necessidades específicas, só que, agora, de uma

forma ativa, exigindo dela que compreenda (descubra) o que é que o seu bebê precisa

em tal e tal momento, com tal e tal incômodo ou reclamação etc.

A mãe encontra-se, com a ajuda da natureza, num estado propício para essa

compreensão do seu bebê, um estado – que Winnicott caracteriza como sendo o de

preocupação materna primária q – que a torna apta a realizar uma comunicação

profunda ou direta (comunicação evidentemente não verbal e não propriamente mental)

com aquilo que o bebê precisa para SER e continuar sendo, seja no que diz respeito às

59 Winnicott, 1958f, p. 274.

60 Winnicott, 1988, p. 151.

26

necessidades instintuais e corporais seja no que se refere às necessidades relacionais.

Em termos mais sintéticos, a mãe sustenta o ser do bebê.

Do ponto de vista do bebê, suas necessidades são atendidas como se fosse uma

consequência natural daquilo que ele está vivendo. Ele não tem, ainda, maturidade para

saber o que precisa ou mesmo para alucinar objetos (o seio, por exemplo); suas

necessidades o levam a procurar algo em algum lugar, mas sem saber o quê,61 sem

saber exatamente o que pode satisfazê-las. Quando a mãe, que entende o que o bebê está

procurando, coloca, por exemplo, o seio exatamente no lugar em que o bebê procura

algo (supondo que seja isso que corresponde à necessidade do bebê), este pode

significar essa experiência dando a ela o seguinte sentido: era justamente isso que eu

precisava!

Winnicott descreve – opondo um bebê que mama numa mamadeira numa

instituição e um que mama no seio de uma mãe dedicada – a miríade de adaptações que

a mãe faz para que o bebê possa ter essa experiência na qual o seio surgiria das suas

necessidades:

Se a mãe amamentar ao peito, vemos como ela deixa que o bebê, mesmo o mais

pequenino, fique com as mãos livres, de modo que, quando ela expõe o seio, a

tessitura da pele e seu calor possam ser sentidos; além disso, a distância entre o

seio e o bebê pode ser calculada, pois o bebê dispõe apenas de uma reduzida

nesga de mundo onde colocar objetos, aquela nesga que pode ser alcançada pela

boca, as mãos e os olhos. [...] Mais cedo ou mais tarde haverá um contato entre

o mamilo materno e a boca do bebê. [...] Gradualmente, a mãe capacita o bebê a

compor na imaginação aquilo que ela realmente tem para lhe oferecer, e o bebê

começa a levar o mamilo à boca, e alcançá-lo até a raiz com as gengivas e

61 Cf. Winnicott, 1954a, p. 340; 1988, p. 120.

27

mordê-lo, talvez mesmo a chupá-lo. Depois há uma pausa. As gengivas soltam

o mamilo e o bebê desvia-se da cena de ação. A ideia do seio desvanece-se.62

Esse tipo de experiência do bebê, de adaptação do ambiente, de comunicação

profunda e direta realizada ativamente pela mãe que, em suma, diz respeito ao

atendimento às necessidades de ser da natureza humana, se repetem no dia a dia dos

cuidados maternos e da existência. O bebê dá sentido às suas vivências corporais e aos

cuidados ambientais, que têm importância e são coloridos semanticamente com tais e

tais qualidades ou significados – é isto que Winnicott designará inicialmente como

elaboração imaginativa das funções corporais.r A esse respeito, Winnicott explicita:

Na teoria psicanalítica, geralmente se assume que o ego é um ego corporal, isto

é, que a estrutura total da personalidade é construída sobre o funcionamento do

corpo e sobre a fantasia que acompanha o funcionamento do corpo. Usei o

termo “imaginative elaboration of function” para descrever essa teoria da

fantasia e da realidade psíquica como sendo, em sua origem, uma elaboração de

função. Um exemplo de função seria colocar o polegar na boca. Para o bebê

humano, porém, essa função é elaborada. Ela nunca é tão simples. Significa ter

o controle do polegar, o qual representa todos os outros objetos, que são dessa

maneira reunidos e colocados em contato com a boca etc. etc. Em outras

palavras, a função tem um significado para o indivíduo, a princípio bastante

simples, mas depois altamente complexo.63

É importante notar que não se trata, para o bebê, de representar suas

experiências, mas de sim de dar sentido e importância a elas. Além disso, essas

62 Winnicott, 1949d, p. 50-52.

63 Winnicott, 1987b, p. 77, carta de 19/11/1958 a Victor Smirnoff.

28

vivências e esse modo de dar sentido aos acontecimentos humanos ou inter-humanos

ocorrem repetindo-se no tempo e no espaço, o que gera, no bebê, um antes e um depois

pessoal, um aqui e ali pessoal, ou seja, um tempo e um espaço que dizem respeito

àquele bebê; um tempo e um espaço, por assim dizer, subjetivos (é esse tipo de

subjetividade que caracterizará os objetos com os quais o bebê se relaciona nesse

momento). O que ocorre com seu corpo, com suas experiências sensórias e relacionais,

com a vivência de estados de excitação e de estados tranquilos – todas essas

experiências sustentadas pelo ambiente – tornam também possível outro tipo de

experiência que une aquilo que ocorre com o corpos do bebê com o que não é corpo, e

faz parte do sentido dado ao corpo e da experiência assim vivida, isto é, ocorre uma

união que integra a psique ao soma ou, em outros termos, “a psique está começando a

elaborar-se em torno do funcionamento corporal”.64

Nota-se também que, nesse momento, o bebê ainda não existe sem a sustentação

do ambiente (a mãe-ambiente, por assim dizer). Do ponto de vista do próprio bebê, sua

existência é tal que o ambiente também é ele mesmo, não havendo distinção entre uma

coisa e outra; do ponto de vista do observador, vemos uma mãe e um bebê, mas, do

ponto de vista do bebê, há uma única existência.t O bebê, diante dessa experiência que

faz aparecer e desaparecer aquilo que satisfaz as suas necessidades, vive a ilusão de que

a satisfação de suas necessidades é uma consequência que advém naturalmente de suas

necessidades elasmesmas: “Se a mãe se adapta suficientemente bem, o bebê conclui que

o mamilo e o leite são os resultados de um gesto produzido pela necessidade ou são

consequências de uma ideia que veio montada na crista de uma onda de tensão

64 Winnicott, 1965vf, p. 25. Sobre o desenvolvimento psicossomático como parte do processo de

integração, veja: 1954a; 1971d, p. 203; 1988, Parte 1, Cap. 4, referindo-se; 1988, Parte 4, Cap. 2.

29

instintiva”.65 É como se aquilo que satisfaz a necessidade fosse algo criado pela única

coisa que existe... a criança, ela mesma! Tudo é satisfeito como que advindo dessa sua

criação ou dos gestos espontâneos ou criativos. Do ponto de vista do observador, é o

ambiente que atende às necessidades do bebê, mas, do ponto de vista do bebê, não há

ambiente, há apenas ele e os objetos aparecem e desaparecem na exata medida da

necessidade, como frutos da sua própria criação.

É por isso que Winnicott diz que o bebê vive, nesse momento, uma ilusão de

onipotência,66 ou seja, o que ele encontra é, na verdade, uma criação dele (advém dele);

em outros termos, o bebê cria o seio que encontra: “O lactente experimentando a

onipotência sob a tutela do ambiente facilitador cria e recria o objeto, e o processo

gradativamente se forma dentro dele e adquire um apoio na memória”.67 Esse seio que o

bebê encontra é o seio de que ele precisa; é o seio da sua necessidade (se a mãe se

adaptou adequadamente) e não exatamente o seio objetivamente dado; é, pois, além de

real, um seio subjetivo (pois é uma construção do bebê, certamente sustentada pelo

ambiente, mas permanece, para o bebê, como uma construção sua). Os objetos com os

quais o ele se relaciona – nesse momento em que ocorre uma adaptação adequada do

ambiente, fornecendo ao bebê o que está de acordo com as suas necessidades – é um

objeto subjetivo,u criado (do ponto de visto do bebê) por ele. Esse objeto subjetivo não é

nem interno nem externo (dado que não há, ainda, a diferença interno-externo),

tampouco o objeto entre uma coisa e outra, objeto transicional; ele é o próprio bebê.

Esclarece Winnicott: “O bebê é o seio (ou objeto, ou mãe etc.); o seio é o bebê. Isto está

65 Winnicott, 1988, p. 130.

66 Cf. Winnicott, 1988, p. 126, pp. 130-131; 1965j, p. 164; 1960c, p. 38, pp. 46-47; 1971f, p. 25; 1974, p.

73; 1965n, p. 56; 1964h, pp. 369-370; 1971g, p. 101-102; 1965d, p. 154; 1984b, p. 125; 1955c, pp. 360-

363; 1986h, p. 39; 1949m, p. 78; 1971h, pp. 49-50.

67 Winnicott, 1965j, p. 164.

30

na ponta extrema da falta inicial de estabelecimento que o bebê tem de um objeto como

nãoEu, no lugar onde o objeto é 100% subjetivo, onde (se a mãe se adapta

suficientemente bem e não de outra maneira) o bebê experiencia onipotência”.68

Esse conjunto de experiências que dizem respeito à geração de um tempo e um

espaço subjetivo no qual o bebê vive, que articula os acontecimentos corporais com

determinados sentidos e com registros existenciais que dão certos coloridos semânticos

às vivências corporais, que dão a ilusão (para o bebê) de que ele está criando aquilo que

satisfaz suas necessidades, dando também a própria experiência do criar (uma vez que

essa ação ou gesto criativo é algo que faz parte do bebê e não do ambiente), constituem

um tipo de integração do bebê, na qual as experiências são vividas. Essa integração

poderia também ser caracterizada como experiências de simesmo verdadeiro,v uma vez

que advém, do ponto de vista do bebê, dele mesmo, como um gesto não impulsionado

de fora, mas dele mesmo. Essas experiências de simesmo também podem ser

relacionadas ao que Winnicott nomeou como sendo um núcleo sagrado da

personalidade. A esse respeito, Winnicott declara:

Sugiro que normalmente há um núcleo da personalidade que corresponde ao eu

verdadeiro da personalidade split; sugiro que este núcleo nunca se comunica com o

mundo dos objetos percebidos, e que a pessoa percebe que não deve nunca se

comunicar com, ou ser influenciado pela realidade externa. Este é meu ponto

principal, o ponto do pensamento que é o centro de um mundo intelectual e de meu

estudo. Embora as pessoas normais se comuniquem e apreciem se comunicar, o

outro fato é igualmente verdadeiro, que cada indivíduo é isolado, permanentemente

sem se comunicar, permanentemente desconhecido, na verdade nunca encontrado.

Na vida e vivendo, esse fato duro é amenizado por se compartilhar o que

pertence a toda a gama de experiência cultural. No centro de cada pessoa há um

68 Winnicott, 1972c, p. 150.

31

elemento nãocomunicável, e isto é sagrado e merece muito ser preservado.

Ignorando por um momento as experiências ainda precoces e perturbadoras da

falha da mãe-ambiente, eu diria que as experiências traumáticas que levam à

organização das defesas primitivas fazem parte da ameaça ao núcleo isolado, da

ameaça dele ser encontrado, alterado, e de se comunicar com ele. A defesa consiste

no ocultamento ulterior do self, mesmo no extremo de suas projeções e de sua

disseminação infindável. Estupro, ser devorado por canibais, isso são bagatelas

comparados com a violação do núcleo do self, alteração dos elementos centrais do

self pela comunicação varando as defesas. Para mim isso seria um pecado contra o

self.69

É na ação criativa do bebê, sustentada pelo ambiente, que surge, ao mesmo

tempo, a experiência do simesmo e o encontro com o objeto (subjetivo, criado pelo

bebê). Para usar um esquema gráfico que expressa esse fato, é como traçar a curva que

dá, ao mesmo tempo, o côncavo e convexo, o simesmo e o objeto subjetivo, ligando-os

como uma criação do simesmo em direção a esse objeto. Pergunta: quem faz o traço?

Resposta: é o bebê com a ação adaptativa adequada do ambiente.

objeto

simesmo

69 Winnicott, 1965j, p. 170.

32

O bebê passa a ter a experiência de um simesmo que, do ponto de vista do

observador, só existe porque o ambiente foi suficientemente bom, adaptando-se às

necessidades daquele bebê, dentro de um espaço de tempo que não o decepciona na sua

expectativa de ser atendido.w No início, essa vivência não é exatamente contínua, mas

intermitente. É a sua repetição, sustentada pelo ambiente, que tornará tal integração – ou

tais integrações, para ser mais preciso – estável.

Esse simesmo, assim experienciado, não é ainda um eu interno porque ainda não

há dentro e fora; o bebê é uma unidade com a mãe e esse simesmo só existe com essa

sustentação ambiental: o ambiente (que é, ao mesmo tempo, a mãe-objeto e a mãe-

ambiente, para o bebê) é parte constituinte do simesmo. É nesse sentido Winnicott pôde

afirmar que o bebê, enquanto entidade em si mesma, não existe. Diz Winnicott: “isso

que chamam de bebê não existe. [...] se vocês mostrarem um bebê, mostrarão também,

com certeza, alguém cuidando desse bebê, ou ao menos um carrinho no qual estão

grudados os olhos e os ouvidos de alguém. O que vemos, então, é a “dupla

amamentante”.70

Ainda que do ponto de vista do observador se veja ao menos dois corpos,x do

ponto de vista do bebê só existe aquilo que diz respeito a ele, sem nenhuma

caracterização de exterioridade; a realidade do simesmo, dos objetos, do tempo e do

espaço é, para o bebê, uma realidade subjetiva. Explicita Winnicott: “Para o bebê, o

70 Winnicott, 1958d, p. 165. Ver, em Fulgencio (2013a), uma análise explicitando os sentidos dos termos

self, ego, Eu Sou, pessoa inteira em Winnicott.

33

mundo externo não está diferenciado, assim como não existe mundo interno ou pessoal,

e uma realidade interna”.71

No entanto, e talvez já desde o primeiro início (considerando esse início, agora,

como sendo o nascimento), há pequenas anacronias entre a necessidade e o atendimento

dessas necessidades, anacronias que, na saúde (do bebê e do ambiente) podem ser

toleradas pelo bebê sem que ele sinta a sua linha da vida, sua continuidade de ser,

quebrada. Passo a passo no desenrolar desse primeiro período, em que as primeiras

tarefas do desenvolvimento emocional são realizadas e as conquistas iniciais adquiridas

(temporalização, espacialização, envolvimento da psique com o soma y, constituição do

simesmo primário) – sempre lembrando que nada disso é uma conquista para sempre,

ainda que possa, na saúde, ter mais e mais estabilidade –, o bebê está cada vez mais

fortalecido ou integrado, ou seja, ele poderá tolerar, num grau maior, as pequenas falhas

ambientais, ainda que esse processo não seja exatamente linear.

Com a repetição dessas experiências, nessas condições, o bebê amadurece, isto

é, ele pode ter suas experiências integradas sem precisar defender-se de uma invasão

ambiental, sem precisar se ocupar com o ambiente. É o ambiente que se adapta (do

ponto de vista do observador), mas é o bebê que cria o ambiente (do ponto de vista do

bebê). O bebê simplesmente tem garantida sua continuidade de SER como algo que ele

sente como advindo naturalmente do fato de existir e ter suas necessidades atendidas.

Winnicott denomina esse período como o da dependência absoluta72 porque o bebê não

só depende totalmente do ambiente como também não tem a mínima ideia de que

depende desse ambiente, vivendo num estado de ilusão de onipotência.

71 Winnicott, 1965s, p. 216-217.

72 Cf. Winnicott, 1968c, p. 194; 1955c, p. 371.

34

2. Fase da dependência relativa

Passados aproximadamente os quatro primeiros meses, o bebê já amadureceu o

suficiente para passar à segunda fase do desenvolvimento emocional, na qual o

ambiente (a mãe) não precisará realizar uma adaptação tão intensa e poderá, ou melhor,

até mesmo deverá, falhar num grau maior do que o da fase da dependência absoluta.

Sobre a necessidade da falha ambiental no processo saudável do desenvolvimento

emocional, explicita Winnicott: “Essas condições [para o desenvolvimento] começam

com um alto grau de adaptação por parte da mãe às necessidades do lactente, e

gradualmente se tornam uma série de falhas de adaptação; essas falhas são outra vez

uma forma de adaptação, porque estão relacionadas com a crescente necessidade da

criança enfrentar a realidade e de conseguir separação e o estabelecimento de uma

identidade pessoal”.73

Na continuidade do processo de desenvolvimento emocional, na qual Winnicott

reconhece o fenômeno da desilusão (também associado ao desmame74), o bebê se torna

amadurecido a ponto de ter uma maior tolerância (do que ocorria no período anterior) à

falha ambiental (evidentemente, em doses adequadas a cada bebê). Essas falhas podem

ser vividas sem que o bebê sinta quebrada sua continuidade de ser ; sendo assim, se faz

necessário que: 1) as falhas sejam adequadas (quer dizer suportáveis) àquele bebê e, 2)

o bebê passe a contar com novos recursos advindos do seu amadurecimento, dentre eles

o início dos processos mentais.75 No entanto, é a partir da experiência anterior, da ilusão

da onipotência, que a desilusão (a correspondente entrada do princípio de realidade)

73 Winnicott, 1963d, p. 91.

74 O desmame não significa propriamente “não mamar mais no seio”, mas, sim, mudar o modo de relação

e de adaptação com a mãe.

75 Cf. Winnicott, 1954a, pp. 333-338.

35

pode ser vivida e aceita: “Não há nenhuma desilusão (aceitação do princípio da

realidade), exceto com base na ilusão”.76

Na continuidade dessas experiências do bebê com a mãe, com a passagem de

uma adaptação quase absoluta para uma de menor grau (gradativa e progressivamente

em menor grau), a mente ou os processos mentais começam a surgir como um tipo de

especialização da psique.z A maturidade alcançada até esse momento – com o início do

paulatino afastamento da mãe (diga-se desadaptação em doses homeopáticas) – fornece

a possibilidade de o bebê ter a experiência do reconhecimento de que tais e tais

necessidades, seguidas de tais e tais fatos, tais e tais movimentos e manuseios de seu

corpo, associados a tais e tais barulhos etc., possam ser significados como “se... então”

“daqui a pouco chegará o que necessito”, “a comida (o seio) vem chegando)” etc. Pode

até mesmo ser que o bebê continue, por exemplo, chorando (mais ou menos

intensamente), mas isso – quando o ambiente atende o bebê num momento ou num

espaço de tempo tolerável para aquele bebê de uma maneira adequada (ou seja, o

ambiente é suficientemente bom para aquele bebê) – não significa ruptura da

continuidade de ser.

Dizendo de outra maneira, o ambiente não desaponta aa o bebê, o seio aparece

naquele espaço de tempo em que é tolerável não ser atendido, ou seja, o ambiente é

confiável. No entanto, ao mesmo tempo em que os processos mentais ajudam o bebê na

tolerância à falha relativa da adaptação do ambiente, ocorre uma perturbação na

experiência de ilusão de onipotência, dado que a necessidade não é atendida como que

naturalmente, derivando dela mesma (ou do simesmo), já que o ambiente não se adapta

mais como antes, ou seja, o poder do bebê criar o que satisfaz suas necessidades não é

reiterado. Ocorre, então, uma desilusão da sua ilusão de onipotência. Winnicott se refere

76 Winnicott, 1986h, p. 32.

36

a esse contexto como sendo o de uma desilusão - palavra que ele usa também como

sinônimo de desmame77 -, ou ainda, noutra maneira de referir-se ao tipo de

acontecimento em jogo neste momento, ele diz: “O desmame implica numa

amamentaçãoo bemsucedida, e a desilusão implica no fornecimento bemsucedido de

espaço para a ilusão”.78 Ou seja, é justamente porque o bebê teve, por um período de

tempo, experiências satisfatórias de ser atendido pelo seio materno, gerando, como

conquista emocional do bebê, o sentimento de ser atendido, de confiança em ser

atendido, incorporando, assim, a mãe e a sustentação ambiental, que poderá haver

espaço para que o bebê, agora sem o seio, possa elaborar imaginativamente (pela ilusão)

modos substitutos de satisfazer suas necessidades (certamente, considerando certos

limites nesse proceder).

Em outros termos, o ambiente começa a surgir como algo que não é mais

totalmente subjetivo como era no período inicial. O bebê entra em um período que

Winnicott caracteriza como o de dependência relativa,79 com o surgimento vagaroso de

algo que o bebê experiencia como sendo nãoele, fora dele. O caminho até o

reconhecimento da realidade externa está sendo trilhado, mas ainda estamos longe desse

ponto no qual o mundo externo é reconhecido como dado objetivamente fora do bebê.

Com a adaptação absoluta do início e a continuidade da adaptação relativa – que

se segue, num processo de desenvolvimento emocional saudável – fornecendo um

ambiente confiável, poderá surgir no bebê a confiança (ou fé) na satisfação de suas

necessidades de ser; digamos que surge a capacidade de ter “fé em...”.80 Trata-se, em

verdade, da confiança, dada pela adaptação ambiental, de que a necessidade (de ser) 77 Winnicott, 1984b, p. 240.

78 Winnicott, 1953a, p. 307.

79 Cf. Winnicott, 1968g, p. 188; 1960c, p. 45-46; 1965r, p. 83-84.

80 Cf. Winnicott, 1963d, p. 89, p. 94; 1986k, p. XIV.

37

será atendida, de que a linha da vida não será quebrada. Refere-se à capacidade de

acreditar ou ter fé (e não exatamente fé nisso ou naquilo), fé de que é possível SER, pois

o mundo que torna possível esse ser não desaponta. Esse mundo, por um lado, é

subjetivo e, por outro, é colocado lá, pelo ambiente, para que possa ser encontrado, é

um mundo que repetidamente mostrou-se corresponder (razoavelmente) às necessidades

do bebê, sem que fosse necessário ao bebê ir em busca de ou se adaptar para. Tendo fé

em... é possível tolerar, em certa medida, as falhas do ambiente e até mesmo certas

frustrações e ausências da mãe, desde que isso seja numa medida que não decepcione o

bebê.

Mas o bebê vive, ainda, no mundo subjetivo e habitando uma área de ilusão,

sustentado ativamente pelo ambiente. A continuidade homeopática (ou seja, na medida

de cada bebê) do processo de desilusão tornará possível tanto a continuidade daquelas

tarefas e conquistas iniciais (temporalização, espacialização) quanto, se tudo corre bem

nesse processo contínuo, mas não linear de integrações, as condições para que um novo

passo decisivo possa ser dado no processo de desenvolvimento emocional.

Na continuidade do desenvolvimento, com a conquista das integrações que

advêm da sustentação ambiental adequada ao processo de desilusão, ocorrerá o

surgimento de algo que num certo sentido materializa, num objeto, a área de ilusão na

qual o bebê continua habitando. Esse objeto que é ao mesmo tempo criado pelo bebê

(para atender à sua necessidade) e fornecido ou encontrado no ambiente: o objeto

transicional. A área de ilusão na qual o bebê vive subjetivamente (com seus objetos

subjetivos) é, agora, desde que o ambiente continue fazendo a sua parte (ou seja,

adaptando-se às necessidades do bebê ou da criança, sem quebra da continuidade de

ser), é habitada por outro objeto; em outros termos, essa criação do bebê encontra

objetos que têm existência para além da sua criação subjetiva: o objeto criado

38

subjetivamente é também encontrado na realidade objetiva. Diz Winnicott: “Do objeto

transicional, pode-se dizer que se trata de uma questão de concordância, entre nós e o

bebê, de que nunca formulemos a pergunta: Você concebeu isso ou lhe foi apresentado

a partir do exterior? O importante é que não se espere decisão alguma sobre esse ponto.

A pergunta não é para ser formulada”.81 É importante salientar que mais importante do

que o objeto é o modo como o indivíduo se relaciona com a realidade: “Não é o objeto

que é transicional. Ele representa a transição do bebê de um estado em que este está

fundido com a mãe para um estado em que está em relação como ela como algo

externo”.82

Esse objeto tem a característica de ser, por um lado, algo que tem extensão e/ou

qualidades empíricas específicas (cor, maciez, sonoridade etc.), e por outro, é uma

criação de importância afetiva para a criança. Não é nem totalmente uma criação

subjetiva da criança nem algo que existe independentemente dela; é algo que está nesse

entre o mundo subjetivo e o objetivamente dado, separando e unindo esses mundos.

O objeto transicional é usado tal como se fosse a mãe, no lugar da mãe, fazendo

as vezes da mãe, desde que esta seja efetivamente uma presença para a criança. Essa

presença quer dizer tanto uma presença física como uma certeza de que a mãe não

desapareceu (ou seja, ela pode estar ausente fisicamente, mas por um período de tempo

x, no qual a criança pode manter a presença da mãe mesmo na sua ausência física; para

além desse tempo a mãe morreu). O objeto transicional é símbolo da mãe, substitui a

mãe, mas num sentido específico no qual o faz na presença da mãe.83

81 Winnicott, 1953c, p. 28.

82 Winnicott, 1953c, p. 30.

83 Cf. Winnicott, 1953c, p. 19.

39

No entanto, se a mãe morre (quer dizer, desaparece por um tempo maior do que

o suportável para mantê-la viva ou presente), então a importância do objeto transicional

é inflacionada até a morte afetiva desse objeto (valor zero, nenhum interesse,

indiferença pelo objeto). Ele deixa de ser a mãe criada/encontrada/materializada num

objeto, passando a ser algo externo e sem valor para a criança;84 ou, então, num sentido

oposto, mas patológico, numa tentativa de negar a morte da mãe, ele transforma-se num

objeto fetiche ou um objeto que vem substituir a mãe morta, supervalorizando o objeto

como sendo a mãe, ou melhor, na tentativa de reencontrar a mãe que desapareceu (na

sua perspectiva para sempre, ou seja, para além da sua dimensão de tempo subjetivo

que pode considerar presente aquilo que está ausente, para além desse tempo não há

tempo e tudo é para sempre).bb

A vantagem em ter o objeto transicional, que faz as vezes da mãe, é que esse

objeto pode ser usado de uma maneira que a mãe não pode ser; ele pode, por exemplo,

ser colocado no bolso.

O objeto transicional está na raiz do símbolo, e também na raiz da cultura. A

natureza humana na sua vida cultural nada mais é do que a expansão desse espaço no

qual tem origem o objeto transicional. Diz Winnicott: “Para mim, o brincar conduz

naturalmente à experiência cultural e, na verdade, constitui o seu fundamento”.85

Com as experiências que a criança pode agora fazer, ocorre a possibilidade de o

bebê fazer um determinado tipo de uso dos objetos86 (objetos subjetivos e transicionais)

que resultarão na própria possibilidade de reconhecer objetos objetivamente dados

84 Cf. Winnicott, 1953c, p. 24.

85 Winnicott, 1971g, p. 147.

86 Cf. Winnicott (Cap. 34 de Explorações psicanalíticas).

40

como externos.87 Ao usar os objetos que cria-e-encontra, a criança também expulsa para

fora de si a sua criação, dando uma materialidade a ela. Esse objeto será manipulado

vivamente, como o leão que lambe carinhosamente o seu pedaço de osso, às vezes

destruindo-o, não por ódio ou raiva, mas por vivacidade para com o objeto amado.

Quando o objeto resiste a este uso sem ser destruído – num sentido amplo, poder-se-ia

dizer que, sendo usada, a mãe não decepciona nem retalia a criança –, então, diz-se que

o objeto sobreviveu e, ao sobreviver, pode ser amado como algo externo à criança.

Surge, então, uma realidade nãoEu que foi diferenciada do Eu pelo próprio uso do

objeto, expulsando esse objeto, por assim dizer, da área de ilusão e constituindo-o,

também numa mesma operação, a distinção Eu e NãoEu. Nesse momento, a criança

chegaria a um tipo de integração caracterizável pelo sentido da expressão EU SOU,

ainda que a criança não tenha adquirido a possibilidade de dizer ou pensar isso. Trata-se

muito mais de experimentar isso podendo diferenciar entre o Eu e o resto.88 Referindo-

se à sequência de experiências vividas, enumera Winnicott:

(1) O sujeito relaciona-se com o objeto [objeto subjetivo e objeto transicional].

(2) O objeto está em processo de ser encontrado, ao invés de ter sido colocado

pelo sujeito no mundo.

(3) O sujeito destrói o objeto.

(4) O objeto sobrevive à destruição.

(5) O sujeito pode usar o objeto.89

87 Cf. Winnicott, 1969i; todo o texto trata desse processo de constituição da realidade externa enquanto

tal.

88 Cf. Winnicott, 1971f, p. 31.

89 Winnicott, 1969i, p. 131.

41

O que é destruído não é o objeto, ele mesmo, na sua materialidade ou existência,

mas sim a sua característica de ser uma criação (tal como ocorre com os objetos

subjetivos), ou ainda, de ser criado-encontrado (tal como ocorre com os objetos

transicionais), configurando-se, então, nas suas qualidades (ou modo de relação do

sujeito) como um objeto que tem existência objetiva fora do sujeito, ou seja, como

objeto externo.

Neste ponto podemos compreender uma frase difícil de Winnicott, quando

afirma que o que é bom deve ser destruído.90 Por um lado, um objeto bom só é bom

porque é uma criação do bebê ou da criança, logo, algo que é criado em função e

adequado às suas necessidades (ainda que seja o ambiente que garanta essa operação

etc.). Por outro lado, como outro aspecto do que significa usar um objeto (que é bom),

também é sempre refeita a própria ação de criar o objeto, ou seja, será preciso,

paradoxalmente, destruí-lo no que ele era para que venha a ser criado no que ele é.

3. Rumo à independência: consideração (concern), latência, adolescência, vida

madura, envelhecimento e morte

Com a integração que leva à unidade básica do sujeito psicológico,

diferenciando-o do mundo, bem como com o reconhecimento de que há um mundo

nãoEu, temos o início de uma longa fase da existência na qual o indivíduo administra

sua relação com o mundoe é levado a lidar com seus impulsos amorosos e destrutivos,

suas pressões instintuais e seus prazeres-frustrações, sua dependência e sua

independência, sua espontaneidade-criatividade e sua submissão-opressão nas relações

interpessoais. Essa fase, por sua vez, deve ser dividida em subfases que, grosso modo,

90 Cf. Greenberg & Mitchell, 1983, p. 94.

42

distinguimos como sendo: a fase da consideração (concerncc), a latência, a adolescência,

a idade madura e o envelhecimento-morte.

3.1 Fase da consideração (concern)

A continuidade do processo de amadurecimento fornecerá uma infinidade de

experiências de simesmo, experiências de ser, que pouco a pouco vão se integrar entre

si. Num momento posterior do processo de amadurecimento, o indivíduo poderá

agrupar todas essas experiências do self num mesmo conjunto, integrando-as e podendo

conquistar a possibilidade de ser diferenciado do mundo, ou seja, a criança chegou à

fase do Eu Sou,91 em que diferencia mundo externo de mundo interno, mas ainda se

mantém na dinâmica de relação caracterizável como sendo de dois corpos.92 O aspecto

central, colocado com o motor e a linha sobre a qual se desenvolve o amadurecimento

do ser humano, é a integração, ou a tendência inata à integração. Ao pensarmos nessa

linha que levará o bebê da situação de nãointegração, que ele vive no início, às

experiências de ser, experiências de ser simesmo ou experiências de self, de conquistar

um self unitário ou o status do Eu Sou, e seguir, mais ainda, até o momento em que o

indivíduo é uma pessoa inteira que se relaciona com os outros e com simesmo como

sendo pessoas inteiras, podemos perceber de que maneira Winnicott entende a

passagem do ser ao fazer: “A integração conduz o bebê ao estado de unidade, ao

pronome pessoal ‘je’, ao número um; ela torna possível o ‘eu sou’, que dá sentido ao

‘eu faço’”.93 No processo de desenvolvimento afetivo, as primeiras experiências levam

a um Sou que só mais tarde chegará a um Eu Sou, bases, então, para o Eu faço. Diz

91 Cf. Winnicott, 1971f, p. 31.

92 Cf. Winnicott, 1958d, p. 165.

93 Winnicott, 1971f, p. 11.

43

Winnicott: “No decurso do desenvolvimento emocional do indivíduo, chega-se a um

estádio no qual se pode dizer que o indivíduo se tornou uma unidade. Na linguagem que

utilizei, este é o estádio do ‘eu sou’94, e (seja como for que o denominemos) o estádio

possui significação devido à necessidade do indivíduo de chegar a ser antes do fazer.

‘Eu sou’ tem de preceder o ‘eu faço’, pois, de outra maneira, ‘eu faço’ torna-se

desprovido de significado para o indivíduo”.95

Esse Eu é, na verdade, uma integração das diversas experiências de simesmo.

Enquanto o simesmo é um termo que diz respeito às efetivas experiências de um agente

responsável pelo ato de criar (seu gesto espontâneo, a criação do objeto subjetivo, do

objeto transicional e mesmo do uso do objeto) – também poder-se-ia supor o ato de

reagir às invasões ou falhas ambientais –, o Eu é o nome de um conjunto que agrupa em

si as diversas vivências ou experiências de simesmo. É nesse sentido que Winnicott

esclarece que o simesmo é um termo descritivo e o Eu é um termo teórico (um conceito

ou uma convenção):

Self não é um termo psicológico, mas uma palavra que todos nós usamos, e é

possível que Jung tenha contribuído mais do que Freud o fez para uma

compreensão do que ela significa ou pode significar. Foi o próprio Fordham

que me fez reconhecer com um choque que eu estava usando as palavras self e

“ego” como se fossem sinônimos, o que, naturalmente não são e não podem ser,

uma vez que self é uma palavra e “ego” uma expressão a ser usada por

conveniência com um significado com o qual se concordou.96

94 Cf. Winnicott, 1958g.

95 Winnicott, 1971l, p. 177.

96 Winnicott, 1964h, p. 371.

44

A partir desta conquista na integração de simesmo como algo que é diferente do

mundo externo, a chegada no status existencial do EU SOU,dd e seguindo o processo de

desenvolvimento emocional, a criança entra num contexto experiencial que Winnicott

caracterizou como estágio da consideração.Trata-se da sua maneira de compreender o

que Melanie Klein caracterizou como posição depressiva, nome que ele acha

inadequado, preferindo referir-se a este período como estágio da consideração.97 A

criança começará a perceber que ela ama e odeia o mundo fora dela, que esse mundo

pode satisfazê-la, mas também frustrá-la. Se em momentos anteriores a criança vivia

seus instintos como se fossem algo exterior a ela, como vindos de fora, assolando-a e

exigindo reação, agora, mais madura ela também realizará (se tudo der certo) a

integração dos seus instintos como advindos não de fora, mas dela mesma.

Inicialmente os instintosee são vividos como externos: “os instintos não estão

ainda claramente definidos como internos ao lactente. Os instintos podem ser tão

externos como o toar de um trovão ou uma pancada”.98 Vivendo numa dependência

absoluta do ambiente (num ambiente que se adapta o suficientemente), a criança vive a

ilusão de onipotência; do ponto de vista da criança, pode-se dizer que ela cria os objetos

dos quais necessita. Nesse momento, os instintos não podem ser uma criação do bebê,

mas algo que pressiona e perturba o seu SER, daí serem externos ao self. Só o conjunto

de integrações no processo de desenvolvimento emocional é que tornarão possível ao

indivíduo considerar as pressões instintuais como algo que advêm dele mesmo. Além

disso, será somente com a conquista do amadurecimento, que caracteriza o estágio

97 Cf. Winnicott, 1958b, p. 291; 1955c, p. 358; 1955d, p. 376; 1988, Parte III.

98 Winnicott, 1965m, p. 129.

45

edípico99 (integração como pessoa inteira), que a vida instintiva poderá ser considerada

sinônimo de vida sexual; daí a possibilidade de afirmar que, para Winnicott, a

sexualidade é uma determinada maneira específica de viver a vida instintual.100

Winnicott faz, pois, uma diferenciação entre dois aspectos da saúde: um ligado à

administração dos instintos (ou à administração da sexualidade) e outro que diz respeito

ao viver a vida a partir de simesmo, cujo modelo de referência é o brincar sem perda

demasiada da espontaneidade: “Os psicanalistas que enfatizaram corretamente a

significação da experiência instintual, e das reações à frustração, falharam em enunciar

com a mesma clareza, ou convicção, a imensa intensidade dessas experiências não

culminantes que são chamadas de brincar. Partindo, como fazemos, das doenças

psiconeuróticas, e com defesas do ego relacionadas à ansiedade que surge da vida

instintual, tendemos a pensar a saúde em termos do estado das defesas do ego. Dizemos

que há saúde quando essas defesas não são rígidas etc. Raramente, porém, chegamos ao

ponto em que podemos começar a descrever o que se parece à vida, à parte a doença ou

a ausência desta. Isto equivale a dizer que ainda temos de enfrentar a questão de saber

sobre o que versa a vida. Nossos pacientes psicóticos nos forçam a conceder atenção a

essa espécie de problema básico. Percebemos agora que não é a satisfação instintual que

faz um bebê começar a ser, sentir que a vida é real, achar que a vida é digna de ser

vivida. Na verdade, as gratificações instintuais começam como funções parciais e

tornam-se seduções, a menos que estejam baseadas numa capacidade bem estabelecida,

na pessoa individualmente, para a existência total, e para a experiência na área dos

99 Para um estudo da compreensão (redescrição) que Winnicott tem do complexo de Édipo, veja em

Marchiolli & Fulgencio (2013).

100 Cf. Winnicott, 1965m, p. 129; 1988 Parte 2, Cap. 2, bem como toda a Parte IV; e, na literatura

secundária, em: Phillips, 1988, por exemplo, na página 29 (ainda que isto esteja em diversas passagens de

seu livro); Green, 2005b, 2011; Loparic, 2007; Abram, 2005, 2008b; Scarfone, 2011.

46

fenômenos transicionais. É o eu (self) que tem de preceder o uso do instinto pelo eu

(self); o cavaleiro deve dirigir o cavalo, e não se deixar levar”.101

Ao diferenciar as necessidades do ego das satisfações dos instintos (necessidades

do id), Winnicott explicita o fato de, no início, o lactente viver as pressões instintuais

como sendo externas a ele:

Deve-se ressaltar que ao me referir a satisfazer as necessidades do lactente não

estou me referindo à satisfação de instintos. Na área que estou examinando os

instintos não estão ainda claramente definidos como internos ao lactente. Os

instintos podem ser tão externos como o troar de um trovão ou uma pancada. O

ego do lactente está criando força e, como consequência, está a caminho de um

estado em que as exigências do id serão sentidas como parte do self, não como

ambientais.102

Ao chegar à integração num EU, ocorre também uma série de outras integrações.

Dentre elas, a criança teráque viver com a dura realidade de que tem impulsos amorosos

e destrutivos em relação aos mesmos objetos que ela ama e odeia ao mesmo tempo; ela

percebe que a mãe que ela ama (aquela que satisfaz as suas necessidades) e a mãe que

ela odeia (aquela que o frustra, que falha na sua atenção às suas necessidades) é uma só,

mais ainda, que ela própria é responsável pelos seus impulsos, que podem danificar a

mãe. Num determinado momento de seu texto, Winnicott afirma que a criança percebe

que faz, fez e continuará fazendo buracos no corpo cheio de qualidades da mãe: “Se

101 Winnicott, 1967b, p. 137.

102 Winnicott, 1965m, p. 129.

47

quisermos, podemos usar palavras para descrever o que sente o bebê, dizendo: há um

buraco onde antes havia um corpo cheio de riquezas”.103

Com esse tipo de amadurecimento – no qual há um Eu e os objetos fora desse

eu, objetos amados e odiados, às vezes o mesmo objeto sendo amado e odiado,

construído e destruído –, a criança entra no inferno do sentimento de culpa. Sendo

assim, ela se vê concernida pelo amor e pelo ódio que reconhece como também dizendo

respeito a seus impulsos. É nesse momento e não antes dele que a lei do talião pode ter

algum sentido para a criança.

É importante notar que não é o ambiente que força o bebê ou a criança a

amadurecer; caso fosse assim, o amadurecimento seria uma reação à invasão ambiental.

É a sustentação ambiental que fornece as condições para que o bebê ou a criança possa

ter satisfeitas suas próprias necessidades de amadurecimento. São suas próprias

necessidades que a fazem percorrer o longo caminho em que o relacionamento com os

objetos transformar-se de relacionamentos com objetos subjetivos para com objetos

transicionais, até que, por fim, é possível admitir, tolerar e até mesmo relacionar-se com

os objetos objetivamente dados na realidade exterior.

Ao final do estágio da consideração, a criança chegará não só a integrar-se como

uma pessoa inteira, mas a reconhecer aquilo que é nãoEu, bem como as pessoas com as

quais se relaciona como sendo pessoas inteiras,104 que ela ama e odeia, deseja e

rechaça, não só em termos gerais, mas agora, com a integração de seus instintos, com o

amor e o ódio coloridos por fantasias relacionais acompanhadas de excitações e clímax.

A sexualidade e o complexo de Édipo, com as correspondentes fantasias e angústias

envolvidas, inclusive a fantasia de castração, tornam-se, só agora, um cenário no qual

103 Winnicott, 1955c, p. 363.

104 Cf. Winnicott, 1988, Parte II; 1955c, p. 357; 1956a, p. 393; 1955d, 376.

48

um romance familiar é encenado. Diz Winnicott, na sua redescrição da descoberta

freudiana do complexo de Édipo:

[Freud] Verificou existir uma situação triangular que não podia ser descrita

senão dizendo que o menino tinha amor pela mãe e estava em conflito com o

pai como rival sexual. O elemento sexual foi demonstrado pelo fato de que tais

coisas não aconteciam unicamente em fantasia: havia acompanhantes físicos,

ereções, fases de excitação com clímax, impulsos homicidas e um terror

específico: o medo de castração. Este tema central foi destacado e recebeu o

nome de complexo de Édipo, permanecendo ainda hoje como um fato central,

infinitamente elaborado e modificado, mas irrefutável. [...] Se o fato central do

complexo de Édipo for aceito, é imediatamente possível e desejável examinar

os aspectos em que o conceito é inadequado ou impreciso como diretriz para a

Psicologia Infantil.105

Chegamos, então, ao ponto em que Freud chegou, reconhecendo a sexualidade

infantil, quando tratou de seus pacientes neuróticos, para os quais a sexualidade e o

complexo de Édipo são um dos aspectos centrais da existência. Entretanto,

considerando uma diversidade de outros acontecimentos e fatos da existência díspares

das concebidas por Freud, Winnicott redescreve a teoria do complexo de Édipo e da

sexualidade noutras bases que não as físico-energéticas que caracterizam a

metapsicologia freudiana.

Em termos das experiências de simesmo, pode-se afirmar que o indivíduo segue

uma linha que vai do Sou para o Eu sou, que dá base ao eu faço, seguindo em direção,

na saúde, a um eu sou uma pessoa inteira que se relaciona com pessoas inteiras,

caminhando para um horizonte cada vez mais amplo (sempre sujeito a instabilidades,

105 Winnicott, 1947a, pp. 167-168.

49

regressões e progressões também dependentes do ambiente e da situação ambiental) do

eu sou um cidadão do mundo.

3.2 Latência

Ao final da primeira infância, as pressões instintuais diminuem

significativamente, fruto de um processo que caracteriza o desenvolvimento biológico

do animal humano: “Como consequência deste fenômeno endocrinológico de adiamento

[da potência genital], o assim chamado período de latência, a criança deve extrair o

máximo proveito da identificação com os pais e outros adultos! e deve utilizar as

possibilidades de experimentação no decorrer dos sonhos e das brincadeiras, das

fantasias com ou sem a inclusão do corpo e dos prazeres corporais obtidos sem a ajuda

de outras pessoas”.106 Trata-se de um período no qual a criança é aliviada,

temporariamente, da “pesada tarefa de transformar e desenvolver os processos

instintivos”.107 Isso não significa um período sem conflitos, mas sim que esses conflitos

estão muito mais referidos às questões relativas ao desenvolvimento do ego, em termos

do conjunto de padrões pessoais e familiares da criança:

Seja qual for o estágio de desenvolvimento que se considere, são sempre os

conflitos do bebê ou da criança que são o tema central. É a tendência inata no

sentido da integração e do crescimento que produz a saúde e não a provisão

ambiental. Ainda assim é necessária provisão suficientemente boa, de forma

absoluta no princípio e de forma relativa em estágios posteriores, no estágio do

complexo de Édipo, no período da latência e também na adolescência. Tentei

106 Winnicott, 1988, p. 76.

107 Winnicott, 1958m, p. 38.

50

encontrar palavras que indicassem a diminuição gradativa da dependência da

provisão ambiental.108

Com a chegada da puberdade, com o surgimento de novos impulsos biológicos,

o indivíduo volta a ter que administrar seus instintos nas suas relações interpessoais,

utilizando-se, então, dos padrões de defesa contra a angústia, que já tinham se

organizado antes dessa nova investida da vida instintual.109 Nessa fase de latência,

momento em que as pressões instintuais não estariam agindo de forma muito intensa, a

criança saudável (que tem um ambiente estável, um ambiente com o qual ela não

precisaria se preocupar) pode dedicar-se ao enriquecimento de sua vida pessoal com o

aprendizado e a experimentação de uma diversidade de situações do compartilhar social

(pelo esporte, pelas reuniões, pela vivência escolar, pela descoberta das artes e das

atividades culturais e, enfim, por todo tipo de fenômeno que Winnicott caracterizou

como fenômenos transicionais, expressos na atividade de compartilhar o mundo,

brincando com os outros). Nesse sentido, o autor esclarece: “Crianças no período de

latência são intensamente perturbadas pela ruptura de seu ambiente doméstico, porque

nessa época elas não deveriam ter que se preocupar com estas questões, deveriam poder

tomar o ambiente como garantido para poderem enriquecer interiormente, através da

educação, da cultura e do brincar em todo tipo de experiência pessoal”.110

Isso prepara a criança para que esta possa entrar na puberdade e na adolescência

com um amadurecimento (leia-se integração) mais adequado, em termos do seu

sentimento de simesmo (que envolve certamente processos projetivos e identificatórios)

e de suas capacidades cognitivas. 108 Winnicott, 1965vc, p. 65.

109 Winnicott, 1958m, p. 38.

110 Winnicott, 1988, p. 173.

51

3.3 Adolescência

Com a puberdade, retoma-se o desenvolvimento e a pressão dos instintos, agora

com a criança em processo de adquirir duas novas potências: a força física, com a

possibilidade maior de machucar o outro e até mesmo matar, e a potência para copular e

gerar.111 De um modo geral, poderíamos dizer que o que ocorre com o adolescente é

semelhante ao que acontece com uma criança de 2-3-4-5 anos, vivendo intensamente

uma coleção de tendências contraditórias, no caso do aldolescente intensificadas por

essas duas potências, que são como que ferramentas que ele não sabe como usar de

forma adequada. Mas não se trata somente da administração da vida instintual, mas sim

de encontrar um lugar para simesmo, de encontrar a simesmo. A esse repeito, Winnicott

explicita: “Os púberes não se enganam com a ideia de que os impulsos instintivos sejam

tudo, e, de fato, eles estão essencialmente preocupados com ser, com estar em algum

lugar, com sentir-se reais e adquirir algum grau de constância objetal”.112 Antes de se

preocuparem com a maneira de relacionarem-se com os outros (na linguagem

psicanalítica, com os objetos que satisfazem ou frustram a vida instintual), ou seja, de

fazerem alguma coisa com esses objetos, os adolescentes têm o problema mais

fundamental de serem alguém em algum lugar: “De ser vem o fazer, mas não pode

existir o fazer antes do ser; esta é a mensagem que eles [os adolescentes] nos

enviam”.113

111 Winnicott é, dos autores clássicos (Freud, Klein, Bion, Lacan), o que mais escreveu diretamente sobre

a adolescência. Veja, num agrupamento de seus textos principais sobre a adolescência: 1955a, 1962a,

1964b, 1965u, 1966i, 1969a, 1969c, 1989ve.

112 Winnicott, 1971f, p. 20.

113 Winnicott, 1971f, p. 27.

52

Nessa procura, só as soluções próprias são verdadeiras e reais, nenhuma solução

externa (para os conflitos internos, para os conflitos e perturbações de identidade, para

os problemas advindos das escolhas objetais) pode ser aceita.114 É nesse sentido que

Winnicott afirma que os adolescentes não aceitam soluções falsas e que cabe aos pais e

aos que cuidam de adolescentes tolerar essa procura e a recusa por soluções que sejam

externas.

O fato a ser reconhecido é a imaturidade dos adolescentes. Elesoscilam entre

serem autônomos e dependentes, entre a vida infantil e a adulta. Na procura de suas

soluções, também buscam a simesmos. Eles precisam encontrar e serem encontrados,

não podem se deixar invadir ou submeter e, paradoxalmente, também precisam chegar a

simesmos para que possam encontrar e ser encontrados. Afirma Winnicott: “Na

adolescência, quando o indivíduo está sofrendo as mudanças puberais e não está ainda

pronto para se tornar um membro da comunidade de adultos, há um fortalecimento de

defesas contra o fato de serem descobertos, isto é, de ser encontrado antes de estar lá

para ser encontrado”.115

Nesse momento da vida, intensifica-se a referência a simesmo, e só o que é

pessoal é sentido como real e verdadeiro; o mundo é procurado e ao mesmo tempo

recusado, criticado, confrontado, o que leva, no mais das vezes, à radicalidade que

recusa a conciliação. Por um lado, os adolescentes são sozinhos, mas, por outro, se

agrupam em blocos identitários: “O que é verdadeiramente pessoal, e que é sentido

como real, deve ser defendido a todo custo, mesmo que isso signifique uma cegueira

temporária do valor de conciliação. Os adolescentes formam agrupamentos mais do que

114 Cf. Winnicott, 1989vl, p. 58.

115 Winnicott, 1965j, p. 173.

53

grupos, e por parecerem iguais enfatizam a solidão essencial de cada indivíduo”.116 O

amadurecimento do adolescente corresponde a uma ampliação do seu grupo existencial,

acompanhada de uma procura e defesa da sua identidade pessoal. A família e os pais,

como seu grupo de referência básica, serão usados para todo tipo de enfrentamento e de

suporte para sua procura, bem como de diferenciação e constituição de simesmo:

A base para o grupo é a vida em família, e sabemos o quanto é conveniente para

o adolescente que o lar original continue a existir, de modo que ele possa

rebelar-se contra o mesmo tanto quanto utilizá-lo, e de modo a que possam ser

feitas experiências com grupos diferentes e mais amplos sem a perda do grupo

original que possui uma pré-história, ou seja, que existia nos primeiros anos de

formação do indivíduo antes da latência.117

Considerando que a adolescência será, então, um período de imaturidade,

oscilação, experimentação, da vida em agrupamento e da solidão pessoal, ambas

intensificadas, cabe ao ambiente familiar (como também ao escolar e ao terapêutico)

servir como meio de sustentação para que esse conjunto de experiências e de

integrações da experiência possam ser vividos. Mesmo que caiba aos diversos

ambientes que cuidam dos adolescentes estarem aptos a fornecerem um contato humano

verdadeiro, facilitando suas experiências identitárias e instintuais, podendo apresentar e

mesmo impor, quando for ocaso, limites, um ambiente que não seja guiado pela máxima

“vigiar e punir”, mas que possa oferecer-se para o confronto afetivo verdadeiro,num

certo sentido, o que não significa nenhum niilismo, só o tempo pode resolver os

116 Winnicott, 1965j, p. 173.

117 Winnicott, 1988, p. 173.

54

problemas dos adolescentes: “A única solução para a adolescência é o amadurecimento

que o tempo trará, à medida que ela se transforma em estado adulto”.118

3.4 A idade madura

Passados, então, todos esses acontecimentos e as fases anteriores, quais seriam,

então, as características de um ser humano maduro saudável? Não se trata de afirmar o

que é um ser humano normal, que age segundo a norma estabelecida, mas sim de

explicitar quais as características de um ser humano que chegou numa identidade

própria sem perder a sua espontaneidade. No quadro de uma teoria do desenvolvimento

pessoal que foca sua compreensão na questão da continuidade de ser, na integração em

termos de um simesmo, no longo caminho que vai da dependência absoluta à

independência relativa do indivíduo, vinculada aos ambientes em que vive, Winnicott

caracterizará o que ele considera ser um indivíduo saudável:

A vida de um indivíduo são se caracteriza mais por medos, sentimentos

conflitantes, dúvidas, frustrações do que por seus aspectos positivos. O

essencial é que o homem ou a mulher se sintam vivendo sua própria vida,

responsabilizando-se por suas ações ou inações, sentindo-se capazes de

atribuírem a si o mérito de um sucesso ou a responsabilidade de um fracasso.

Pode-se dizer, em suma, que o indivíduo saiu da dependência para entrar na

independência ou autonomia.119

Esse ser humano maduro tem existência junto com os outros, dado que

maturidade também significa socialização, na qual o indivíduo pode atender a simesmo

118 Winnicott, 1989vl, p. 58.

119 Winnicott, 1971f, p. 30.

55

sem atentar contra a sociedade. O mundo é algo que também precisa ser aceito; ele está

lá antes que os indivíduos tenham chegado a ele e, possivelmente, será também um

legado deixado para outras gerações. Nesse sentido, a socialização implica uma luta

pessoal para não ser submetido e para transmitir os valores e os modos de ser dados

numa cultura, ou seja, o indivíduo também se sente responsável pelo ambiente em que

vive, lutando para melhorá-lo, às vezes para protegê-lo (até mesmo numa guerra),

defendendo não só este ou aquele membro, mas os ideais que constituem o seu grupo de

referência. O autor esclarece:

Digamos que na saúde, que é quase sinônimo de maturidade, o adulto é capaz

de se identificar com a sociedade sem sacrifício demasiado da espontaneidade

pessoal; ou, dito de outro modo, o adulto é capaz de satisfazer suas

necessidades pessoais sem ser antissocial, e, na verdade, sem falhar em assumir

alguma responsabilidade pela manutenção ou pela modificação da sociedade

em que se encontra.120

Na maturidade, reconhecendo que a vida é difícil de ser vivida e que a neurose

talvez seja a prova dessa dificuldade,ff o indivíduo tem a constante tarefa de negociar

seu mundo subjetivo com a realidade objetiva, seu ser (nunca objetivável) com a

necessidade de objetificação operativa da realidade externa e inter-relacional. A

maturidade corresponde também ao reconhecimento do que se é, do que se pode e do

que não está ao alcance de cada um, de modo que, com base em simesmo, seja possível

integrar-se na vida social. Diz Winnicott: “As pessoas têm que aceitar o que são e

aceitar a história de seu desenvolvimento pessoal, justamente com as influências e

120 Winnicott, 1965r, p. 80.

56

atitudes ambientais locais; elas têm que continuar vivas e, vivendo, tentar se relacionar

com a sociedade de modo a haver uma contribuição nos dois sentidos”.121

Mais ainda, a maneira como uma sociedade funciona, em termos de seu regime

político, também depende da maturidade ou imaturidade de seus membros. A vida

democrática – na qual é necessário tolerar as diferenças e as decisões tomadas por meio

de representantes eleitos – só é possível se os membros de uma sociedade forem

suficientemente maduros. Em sociedades em que não há um número suficiente de

pessoas maduras, o modo de funcionamento do Estado, daqueles que agem em nome do

Estado, tendem a ser adolescente, pré-adolescente e mesmo infantil.

Nesse caminho, é interessante lembrar o comentário de Winnicott, referindo-se à

psicologia do ditador. Para ele, há um fato que precisa sempre ser considerado, o de que

todo homem foi um dia dependente de uma mulher. Para aqueles em que essa

dependência foi vivida de uma maneira que não os invadiu, mas os sustentou, tal como

a suspensão hidráulica de um ônibus,122 essa dependência e sua lembrança não causa

nenhuma ameaça; mas, nos casos em que isso não ocorreu, há um medo da mulher que

causa reações patológicas significativas. Ainda que a situação de dependência da mãe-

ambiente, aqui referida à expressão “dependência de uma mulher”, corresponda a um

fenômeno universal, o medo da mulher (como o medo da dependência) corresponderia a

um fenômeno patológico reconhecível, por exemplo, no modo de ser dos ditadores:

Infelizmente, o medo de ser dominado não faz com que grupos de pessoas

evitem ser dominadas; pelo contrário, são atraídos para uma dominação

específica ou escolhida. De fato, se estudarmos a psicologia do ditador, é de

121 Winnicott, 1986f, p. 189.

122 Cf. Winnicott, 1965vc, p. 67.

57

esperar que se encontre, dentre outras coisas, que em sua luta pessoal está

tentando esforçadamente controlar a mulher cujo domínio ele inconsciente

ainda teme, procurando controlá-la servindo-a, atuando para ela e, por seu

turno, exigindo total sujeição e “amor”.123

O viver em sociedade implica, para Winnicott, habitar um espaço no qual o

indivíduo pode ser ele mesmo, compartilhando e se comunicando com os outros; só

dessa maneira, na qual ele sente que seu self (verdadeiro) pode agir, é que a vida vale a

pena de ser vivida. Outra maneira de dizer a mesma coisa, considerando que a

criatividade (em termos gerais) corresponde ao verdadeiro self em ação, é afirmar que

só sendo criativo é que o indivíduo tem o sentimento de que a vida vale a pena ser

vivida.124 Diz Winnicott, nesse sentido:

Seja qual for a definição a que cheguemos, ela deve incluir a ideia de que a vida

vale a pena – ou não – de ser vivida, a ponto de a criatividade ser – ou não –

uma parte da experiência da vida de cada um. Para ser criativa, uma pessoa tem

que existir, e ter um sentimento de existência, não na forma de uma percepção

consciente, mas como uma posição básica a partir da qual operar vivendo.125

Esse modo de ser-estar no mundo, que caracteriza a saúde, que faz com que a

vida valha a pena ser vivida, esse modo de ser-estar criativo corresponde também ao

123 Winnicott, 1964g, p. 11.

124 Veja nota 34.

125 Winnicott, 1986h, p. 23.

58

que Winnicott caracteriza como a ação de brincar: “É com base no brincar, que se

constrói a totalidade da existência experiencial do homem”.126

Winnicott evidencia a própria natureza humana como uma continuidade de ser

entre dois estados de nãoser − o de ainda não estar vivo e o de já não estar vivo127 – ou,

ressaltando a dimensão temporal da natureza humana: “O ser humano é uma amostra-

no-tempo da natureza humana”.128

3.5 Envelhecimento e morte

Com o envelhecimento, o indivíduo diminui seus ritmos para que possa passar

pela estreita porta final em que retorna ao nãoser, num caminho em que tende a voltar

para o estágio da dependência relativa e, por vezes, até mesmo absoluta. Mas sempre

(na saúde) mantendo a possibilidade de realizar, aprender e viver as experiências que

fazem a vida valer a pena ser vivida, inclusive a última das experiências, o selo da

saúde, em que o indivíduo dissolve-se no estado de nãoser.

De acordo com Winnicott, nós chegamos à vida, vindo de um estado de não

estar ainda vivo, que poderíamos caracterizar como sendo uma primeira morte,

realizamos nossa existência e, ao final, retornamos ao estado de não vida, a segunda

morte. A esse estado de nãovida de onde viemos ele denomina solidão essencial, o

ponto de partida e de repouso por vezes desejado: “Qual é o estado do indivíduo quando

o ser emerge do interior do nãoser? Qual o estado fundamental ao qual todo ser

humano, não importa a sua idade ou experiências pessoais, teria de retornar se desejasse

126 Winnicott, 1971r, p. 93.

127 Cf. Winnicott, 1988, p. 154.

128 Winnicott, 1988, p. 29.

59

começar tudo de novo?... se fosse recomeçar, o indivíduo teria de retornar ao estado de

solidão essencial”.129

A compreensão que o ser humano tem da morte é uma projeção do que seria a

experiência vivida em relação ao estado de nãoser inicial, o da solidão essencial:

“Muito do que geralmente é dito e sentido a respeito da morte, na verdade, se refere a

este estado anterior ao estar-vivo, no qual o estar sozinho é um fato e a dependência

ainda se encontra muito longe de ser descoberta”.130 Antes de ser dependente, o

indivíduo é sozinho, uma solidão na qual não há nada, nem self, nem nirvana. Com a

experiência do primeiro despertar,gg diz Winnicott, o indivíduo tem a ideia de que

existe um lugar de repouso absoluto de onde ele teria vindo, um estado cheio de paz no

qual ainda não estaria vivo, que poderia ser alcançado caso fosse possível fazer uma

regressão extrema.131

Quanto à morte, que advém depois do estar vivo, esta é, tanto para Freud quanto

para Winnicott, incognoscível, e a compreensão que o ser humano pode ter dela nada

mais é do que uma projeção desse estado inicial. Sendo assim, a passagem para a morte

é, certamente, um retorno à solidão essencial.hh

Envelhecer é retornar na linha do desenvolvimento emocional; o indivíduo

cresce para reencontrar o seu início no nãoser, regressando com maior ou menor grau a

seu estado de dependência em relação ao ambiente, mas integrando, na saúde, a sua

personalidade total na sua finitude. Winnicott explicita: “Há muito crescimento que é

crescimento para baixo. Se eu tiver uma vida razoavelmente longa, espero encolher e

129 Winnicott, 1988, p. 153.

130 Winnicott, 1988, p. 154.

131 Cf. Winnicott, 1988, p. 154.

60

tornar-me suficientemente pequeno para passar pelo estrito buraco chamado de portas

da morte”.132

Essa morte final corresponde, para Winnicott, à segunda morte, ii o voltar para

um estado de nãovida, de nãoser. Ela é, para o autor, a última das experiências, a que

faz a integração final do indivíduo e de sua história. É nesse sentido que Winnicott

enuncia a esperança de estar bem vivo quando a ineludível chegar: “Oh, Deus! Possa eu

estar vivo quando morrer!”.133

***

Com essa descrição do desenvolvimento emocional do ser humano, Winnicott

procurou fornecer uma elaboração teórica que fosse um estudo objetivo da natureza

humana. Sem desmerecer outras maneiras de buscar esse objetivo, ele aprofundou a

perspectiva psicanalítica sobre o desenvolvimento emocional do ser humano, não se

furtando a criticar e a dizer onde ele considerou que Freud e Klein erraram nas suas

propostas, mas também ciente da incompletude e dos erros que a sua proposta

necessariamente está sujeita.

Certamente tudo isto que foi aqui apresentado significa muito mais um ponto de

partida do que uma conclusão, um esboço em relação ao qual ainda há muito a

esclarecer.

132 Winnicott, 1984g, p. 249.

133 Cf. apud Clare Winnicott, 1989, p. 3.

61

Referências de fim de texto

a A proposta de Winnicott se insere no curso do próprio desenvolvimento da psicanálise

como uma ciência, tendo na compreensão da teoria do desenvolvimento uma linha que

vem sendo redescrita de diversas maneiras. Freud e Klein, cada um à sua maneira,

pensaram esse desenvolvimento em termos das relações de objetos impulsionadas pela

vida instintual. Pós-Freud, diversas são as tentativas de expansão dessa perspectiva.

Emde comenta, nesse sentido: “Mesmo seguindo seu modelo entrópico, Freud nos deu

uma base que pode hoje ser considerada em retrospectiva como em certos aspectos

possuidora de uma orientação desenvolvimentista. Uma versão inicial de complexidade

crescente organizada no desenvolvimento pode ser identificada em sua descrição de

etapas psicossexuais sucessivas e suas transformações na puberdade (Freud, 1905d),

bem como em seu interesse por estruturas crescentes de significado. Os autores

psicanalíticos subsequentes também forneceram um panorama para a orientação

desenvolvimentista antes de sua articulação na década de 1970. A teoria de Hartmann

(1930) [sobre a crescente diferenciação e estruturação do ego] pode ser vista como uma

teoria da crescente organização e complexidade no desenvolvimento. De modo

semelhante, Spitz (1959), seguindo Hartmann, fez uso de conceitos de sucessiva

diferenciação no desenvolvimento e teorizou sobre o aparecimento sequencial de

organizadores do ego em novos campos de interação. Erikson (1950) formulou, em

linhas bastante semelhantes [à de Hartmann sobre a crescente diferenciação e

estruturação do ego; e à Spitz (1959), sobre o aparecimento sequencial de organizadores

do ego], suas ideias de epigênese durante o ciclo de vida, com níveis cambiantes e mais

complexos de organização entre self e sociedade em cada nível [...]. Loewald (1960), ao

teorizar sobre o que chamou de ‘ação terapêutica’ [intervenção destinada a pôr o

desenvolvimento do ego em movimento], levou os conceitos desenvolvimentistas de

62

níveis mais elevados de integração para o processo de terapia psicanalítica propriamente

dito, considerando-a como uma experiência de desenvolvimento especial” (Emde, 2005,

p. 132). Grolnik (1990), por exemplo, enfatiza esses aspectos das contribuições de

Winnicott, afirmando: “Winnicott foi um desenvolvimentalista radical. Ele viu o

desenvolvimento de uma maneira tradicional, como uma interação entre os aspectos

constitucionais de determinadas tendências e o meio ambiente” (Grolnik, p. 28). Cabe

comentar, no entanto, que, apesar de inserir-se, em termos gerais, na tendência

tradicional que pensa o desenvolvimento como interação entre tendências

constitucionais e o meio ambiente, Winnicott redescreveu quais seriam essas

tendências, centrando a compreensãoo do processo de desenvolvimento na questão da

continuidade de ser: “A base de todas as teorias sobre o desenvolvimento da

personalidade humana é a continuidade, a linha da vida, que provavelmente tem início

antes do nascimento efetivo do bebê” (1987a, pp. 89-90). Ele apresentou, pois, uma

nova ontologia (centrada na necessidade de ser e na tendência inata à integração), bem

como descreveu como se organizam, se desenvolvem e mesmo adoecem os modos de

ser no mundo do ser humano, pensados tanto na experiência de ser ou não a partir de

simesmo, quanto nos modos de o indivíduo relacionar-se com o mundo, relações estas

impulsionadas ou não pela vida instintual.

O objetivo de Winnicott não é ser original, mas exercer sua prática como clínico

e como algué que procura apresentar uma compreensão melhor do processo de

desenvolvimento emocional do ser humano: “Quanto a mim, sinto que preciso voltar ao

meu objetivo, que é apenas o tratamento de crianças doentes do ponto de vista

psiquiátrico, e a construção de uma teoria do desenvolvimento emocional do ser

humano – melhor, mais exata e mais útil” (1984 [1968], p. 51). Se outros pudram

chegar aos mesmo sresultados, se ele está retomando o que outros fizeram ou se outros

63

utilizam o que ele descobriu não tem, para ele, muita importância, como pode-se notar

neste comentário numa cara sua a Augusta Bonnard: “Quanto a eu ser o pai ou a m!ãe,

como a senhora diz, não tenho disso a menor idéia. Acho muito interessante quando

dois observadores chegam a conclusões similares, porque isso provavelmente significa

que eles estão preocupados objetivamente com coisas reais. Para mim não tem

importância alguma saber se eu disse primeiro alguma coisa, ou se ela foi dita primeiro

por Spitz. O que eu disse veio como uma evolução natural do meu próprio modo de

abordar essas questões. A senhora pode encontrar vestígios de tudo o que eu disse em

coisas que escrevi antes; e acho que poderia até ser engraçado entrar nesses detalhes e,

se eu desejasse, poderia afirmar que o dr. Spitz leu algo meu há dez anos ou que li algo

dele mais ou menos na mesma época. Espero que a senhora simplesmente não dê

importância ao fato de saber quem foi o pai e quem foi o padrasto” (1987b, p. 101). Esta

posição epistemológica de Winnicott, me parece semelhante à que Freud enuncia

quando escreve a Groddeck, explicitando que o objetivo do psicanalista não é ser

horiginal: “Ainda que eu esteja pronto a acolhe-lho dde braços abertos como nosso

colaborador, um ponto me inquieta : é que você tenha, ao que parece, tão pouco

conseguido vencer esta banal ambição que o faz aspirar à originalidade e à prioridade.

Se você está tão seguro do caráter autônomo de suas descobertas, porque você ainda

reivindicar originalidade? Por outro lado, você pode ter uma certeza sobre este ponto?

Você é seguramente dez ou quinze, talvez até mesmo vinte anos mais jovem do que eu

(1856). Não é possível que você tenha absorvido as idéias mestras da psicanálise de

uma maneira cryptomnésica? Da mesma maneira “donc” eu poderia explicar minha

própria originalidade? De qualquer maneira, de que serve lutar pela prioridade contra

uma geração precedente?” (Freud, S. (1960a). Correspondance 1873-1939. Paris:

64

Gallimard, 1979, p. 177, carta A Georg Groddeck Viena IX, Berggasse 19 de junho de

1917).

b A opção de tomar essas três fases como sendo uma classificação geral do processo de

desenvolvimento também foi fieta por Spelman (2013b); Dias (2001), por sua vez,

também se apóia nessa divisão, mas as amplia em número e diversidade, optando por

nomear a teoria do desenvolvimento de Winnicott como uma teoria do amadurecimento.

Ao consultar a obra de Winnicott, pode-se verificar que ele usa diversas

expressões ou termos para se referir à sua teoria do desenvolvimento: apenas

desenvolvimento, sem associar a algum outro qualificativo (1968j, p. 62; 1971f, p. 24,

26 e 31; 1989vl, p. 54); qualificando-a como sendo a teoria do desenvolvimento

humano (1965t, p. 21; 1968a, p. 194; 1996c, p. 194; 1996o, p. 45), pessoal (1968k, p.

59; 1996c, p. 194; 1971f, p. 31), do indivíduo (1989xg, p. 351; 1986c, p. 229), da

personalidade (1971f, p. 31), emocional (1945d, p. 218; 1958m, p. 422; 1965j; p.

163;1965va, p. 157;1968a, pp. 194-195;1971b, p. 14;1984h, p. 51; 1988, título da parte

Parte II do livro; 1989vl, p. 54; 1996c, p. 180), da infância (1968c, p. 194; 1971f, p.

27), da criança (1965n, p. 5); ou, ainda, como uma teoria do amadurecimento (1958f,

p. 276, 1963d, p. 94, 1965j, p. 164, 1965va, p. 177; 1989xg, p. 351). Como, então, optar

por uma terminologia ou outra?

Na procura de uma precisão terminologica para caracterizar a sua teoria do

desenvolvimento, pode-se considerar, como fazendo parte do horizonte teórico-

epistemológico de sua época, a diferença apresentada por Spitz, que denomina de

maturação “o desdobramento de funções filogeneticamente desenvolvidas, e, portanto,

funções inatas das espécies, que emergem no curso do desenvolvimento embrionário ou

aparecem após o nascimento, como tendências, e se tornam manifestas nos estágios

65

posteriores de vida” (Spitz 1979 [1965], p. 24-25); e de desenvolvimento “a emergência

de formas, de função e de comportamento, que constituem o resultado de interações

entre o organismo, de um lado, e o ambiente interno e externo, de outro. Isto é

frequentemente denominado “crescimento”, um termo que não usarei porque dá

margem a confusão. Infere-se, também, desta proposição referente ao estado de não-

diferenciação do recém-nascido que, ao nascer, não existe ego, pelo menos no sentido

usual do termo ” (Spitz 1979 [1965], p. 25).

Parece que nos momentos emque Winnicott precisa dar uma ênfase para

caracterizar a sua teoria do desenvolvimento, ele opta por colocar o qualificativo

emocional em destaque. Coloco em destaque, três momentos, quando: 1. ele caracteriza

qual é o foco central de suas preocupações: “a construção de uma teoria do

desenvolvimento emocional do ser humano – melhor, mais exata e mais útil” (1984

[1968], p. 51); 2. ele abra uma seção de seu artigo “Psicoses e Cuidados Maternos”,

com o subtítulo “Estágios Primitivos do Desnvolvimento Emocional” (1953a, p. 308);

3. ele nomeia a Parte II de seu livro Natureza Humana como “O Desenvolvimento

Emocional do Ser Humano”, lembrando que este livro corresponde a uma obra similar

aos Três Ensaios sobre a Sexualidade (Freud, 1905d), escrito e reescrito desde 1954 e

só publicado em 1988, texto no qual encontramos a apresentação mais mais sistemática

da sua teoria do desenvolvimento.

Nesse sentido, a escolha pela expressão teoria do desenvolvimento emocional,

me parece ser uma expressão mais harmônica com o contexto no qual Winnicott

elaborou suas teorias. Creio que outras denominações, para nomear a sua proposta,

atendem a interesses mais regionais, muito mais como expressão de interesses pessoais

e/ou institucionais, do que a uma perpectiva proposta por Winnicott.

66

c Essa linha do desenvolvimento é a da constituição do diversos graus do verdadeiro e

do falso selves, da integração das necessidades do ego com as necessidades instintuais,

do amálgama inicial com a mãe até a diferenciação entre o eu e os outros, da

incapacidade para brincar em direção à conquista dessa capacidade, da expansão da área

do brincar para o compartilhar do espaço social e cultural, das integrações necessárias

para que o adolescente torne-se um adulto, da fase de incompadecimento para a

possibilidade de se preocupar com os outros, da adaptação do ambiente ao bebê à

integração do adulto ao mundo sem perda em demasia da sua espontaneidade e, ao final,

do processo que leva à desintegração final, em função da morte, como sendo a última

das experiências.

d Dentre a vasta literatura dedicada ao estudo da obra de Winnicott, importantes para a

construção deste capítulo, bem como para o desenvolvimento de pesquisas sobre a obra

deste autor, indicarei minhas principais referências, agrupando-as em: catálogos

contendo listas de publicações e pesquisas dedicadas ao estudo da obra de Winnicott

(Fulgencio, 2007a; Karnac, 2007); manuais e dicionários (Abram, 1996; Newman,

2003); biografias (Rodman, 2003; Kahr, 1996); textos dedicados à caracterização do

lugar e da importância de Winnicott na história da psicanálise (Caldwell & Joyce, 2011,

2012; Green, 2005; Loparic, 2001; Roussillon, 1999); estudos da obra de Winnicott

(Abadi, 1996; Anfusso, 2009; Davis & Wallbrifge, 1981; Dethiville, 2008, 2013; Dias,

2003; Drapeau, 2002; Goldman, 1993; Gronlnick, 1990; Hughes, 1990; Kavaler-Adler,

2014; Lefèvre, 2012; Lehmann, 2003; Plot, 1997; Phillips, 1988; Rodulfo, 2008;

Roussillon, 1991; Safra, 1998; Spelman, 2013a, 2013b); e coletâneas de diversos temas

da obra de Winnicott (Bouhsira & Dureiux, 2004; Blanco & Libeman, 2008; Bezerra &

Ortega, 2007; Braconnier & Golse, 2012; Caldwell, 2000, 2002, 2005, 2007; Catafesta,

67

1997; Cyssau & Villa, 2006; Ferreira, 2007; Outeiral & Abadi, 1997; Sucar & Ramos,

2012). Cabe ainda citar, para fornecer referências que ajudem a compreender como a

obra de Winnicott tem sido avaliada no cenário internacional, verificar um conjunto de

artigos publicados no International Journal of Psychoanalysis (Blass, 2012, 2013,

Abram, 2012, 2013; Eigen, 2012, 2013; Bonaminio, 2012, 2013; Hanly, 2013;

Widlöcher, 2013), na sessão de controvérsias, que comentam as inovações clínicas que

Winnicott teria inserido na psicanálise no que se refere à análise de adultos.

e Em pesquisas anteriores, focadas na metapsicologia em Freud e em Winnicott,

esclareci qual é o sentido e a natureza da teorização metapsicológica em Freud, ou seja,

um conjunto de conceitos especulativos de natureza apenas heurística (Fulgencio,

2003); bem como, no que e refere à Winnicott, mostrei que ele rejeitou os principais

conceitos da metapsicologia de Freud, construindo sua teoria sem os conceitos de

pulsão, libido e de aparelho psíquico (Fulgencio, 2006b). Esse tipo de teorização talvez

possa ser denominável factual, por oposição à teorização especulativa que caracteriza a

metapsicologia. Confira uma discussão sobre a metapsicologia em Winnicott, num

diálogo, em andamento, no International Journal of Psychoanalysis (Fulgencio, 2005,

2007b, 2014?; Girard, 2010).

f Talvez a visão mais profícua para compreensão das propostas de Winnicott sobre o

desenvolvimento da psicanálise, sem fazer dele uma idealização que transformaria suas

propostas de conhecimento científico numa religião a ser seguida e defendida contra os

infiéis (excluindo e desqualificando todas as outras contribuições), seja a que o mantém

como um autor que, reconhecendo e se apoiando na tradição – “em nenhum campo

cultural é possível ser original, exceto numa base de tradição” (1967b, p. 138) – fez

68

progredir a compreensão (descrição) do processo de desenvolvimento emocional, sendo

freudiano e kleiniano, se assim quisermos, para além de Freud e de Klein. Esta sua

posição de cientista fica claramente explicitada quando ele afirma: “O leitor deve saber

que sou um fruto da escola psicanalítica, ou freudiana. Isso não significa que eu tome

como correto tudo o que Freud disse ou escreveu; isso seria em todo caso absurdo, visto

que Freud continuou desenvolvendo suas teorias – isto é, modificando-as (de modo

ordenado, como qualquer cientista) – até o momento de sua morte, em 1939” (1969t, p.

29). Para um estudo obre as continuidades e rupturas entre Freud e Winnicott, veja

Fulgencio (2010); sobre as redescrições que Winnicott fez de conceitos fundamentais da

teoria psicanalítica freudiana, cf. Fulgencio (2010f/w, 2013ics, 2013id, 2013ego,

2013superego, 2013narcissismo primário), Roussillon (2010); sobre continuidades e

rupturas entre Winnicott e Klein, ver Fulgencio (2008), Marchiolli (2013), Aguayo

(2002), Caldwell & Joyce (200?).

g André Green, por exemplo, reconhece que essa teoria de Winnicott lhe parece ser a

mais convincente para a compreensão do desenvolvimento afetivo do ser humano:

“Winnicott foi para mim o autor com uma concepção do desenvolvimento que

ultrapassa as de Freud e de Klein, acreditável e suficientemente imaginativa para se

fazer aceitar” (2010, p. 69).

h Considerar a inserção de uma noção de saúde na psicanálise pode causar

estranhamento, a ponto de Paul-Laurent Assoun conceber que tal proposição possa até

mesmo colocar Winnicot fora do campo psicanalítico: “Um psicanalista parte do

sintoma; nosso ‘antropólogo’ [Winnicott], assumindo o sentido deste termo, parte de

alguma outra coisa, a ‘saúde’” (2006, p. 67). A saúde para Freud só pode ser vista em

69

termos metapsicológicos: “A saúde, justamente, não se deixa descrever de outra

maneira que metapsicologicamente, em referência às relações de força entre as

instâncias do aparelho da alma que nós reconhecemos ou, se vocês quiserem, supomos,

deduzimos” (1937c, p. 241, nota 2). Em Winnicott, porém, ela é afirmada mais

descritivamente, salientando modos de ser e se relacionar que são positivamente

afirmados (ter uma vida própria, sentida como real, vivida a partir de simesmo,

adaptando-se ao mundo, mas sem perda em demasia da espontaneidade, saber cuidar de

simesmo como também dos outros com os quais se vive, poder assumir a

responsabilidade pelos sucessos e fracassos, sentir-se culpado, ter consideração com o

outro etc.). Tais descrições do que seria a saúde não se confunde com a noção de

normalidade. Veja também, para uma análise inicial desse tema, meu artigo “A ética do

cuidado psicanalítico para D. W. Winnicott” (2012).

i Veja, em Ellenberger (1995[1970]), uma análise e caracterização da psicologia

dinâmica, que considera a existência determinante dos processos psíquicos

inconscientes, incluindo como representantes dessa psicologia não só Freud, mas outros

autores, tais como Jung, Adler, Binswanger etc. Diz Ellenberger: “Permitam-me,

primeiramente, lembrar a definição de psiquiatria dinâmica. Trata-se do ramo da

psiquiatria que procura explorar, mobilizar e utilizar terapeuticamente, as forças

psíquicas inconscientes” (1995[1970], p. 227).

j A linguagem usada por Winnicott, díspar para cada fase do processo de

desenvolvimento emocional, corresponde a um princípio epistemológico para a

adequada descrição dos fatos. Esclarece Winnicott: “A linguagem de uma parte

específica é inadequada para as outras” (1988, p. 52). Phillips, no seu texto de 1988,

70

considerou que essa diversidade corresponderia a um excesso de criatividade de

Winnicott. A meu ver, trata-se muito mais de uma busca radical pela precisão conceitual

(cf. em Fulgencio, 2008b, uma resenha crítica desse livro de Phillips).

k Georges Amado (1978; 1979) apontou para a questão do ser na psicanálise, propondo

uma psychanalyse ontológica: "[esta] concerne não à psicanálise ela mesma, da qual ela

aceita os pressupostos sem acrescentar nem retirar o que quer que seja, sem a

inflexionar ou enrijecer; ela concerne à prática psicanalítica, considerando o discurso do

sujeito em análise como a palavra de seu ser”(1979, p. 29). Para ele, Winnicott aparece,

como o autor que teve a intuição do ser (1979, p. 46), dedicando-se a apontar diversas

proximidades entre a sua proposta e as de Winnicott (ser, desejar, comunicar, solidão,

isolamento, psique-soma, o nada etc.) (cf. 1979, todo o Capítulo II). Amado não se

dedicou, no entanto, a analisar cronológica e critivamente os momentos e os sentidos

(referentes) do uso da noção de ser ao longo da obra de Winnicott. Roussillon, por sua

vez, afirma que Winnicott, com a introdução da noção de ser na psicanálise, realizou

uma ruptura epistemológica, estabelecendo um verdadeiro canteiro de obras para o

desenvolvimento da psicanálise (2009, p. 123). No meu artigo “A necessidade de ser

como fundamento do modelo ontológico de homem para D. W. Winnicott”, de 2014,

me dediquei a mostrar que, pouco a pouco, ao longo da década de 1960, a noção de ser

na obra de Winnicott torna-se uma proposta fundamental, um novo fundamento

ontológico com suas correspondentes referências clínicas (referindo-a ao processo de

desenvolvimento emocional ou aos problemas/sintomas reconhecíveis no tratamento

psicanalítico, tais como o sentimento de futilidade, de que a vida não é real etc.).

André Green (2011[2005]), no seu artigo “Origines et vicissitudes de l’être dans

l’oeuvre de Winnicott”, criticou Winnicott, considerando que a noção de ser

71

corresponde a uma reação defensiva deste contra a angústia que sentia ante a

agressividade de alguns pacientes (suícídio), bem como diante do perigo de sua própria

morte, que se aproximava (em função de seus problemas cardíacos), além de ser

também uma reação patológica que negaria a sexualidade (excitação) materna na

relação com o bebê. Para Green, a noção de ser, necessidade de ser, sinônimo de

elemento feminino puro e de necessidade do ego, e sua disparidade com a noção de

necessidades do id, ou necessidades instintuais, não seria possível de ser sustentada.

Para ele (Green, André. (2007). Compulsion de Répétition et Principe de Plaisir.

Remémorer, répéter, perlaborer La clinique Psychanalytique Contemporaine. Paris:

Ithaque.), “a montagem pulsional está presente desde o início” (p. 133) e não haveria

sentido algum pensar que elas não ocorreriam em todas as situações. Ao retomar a

afirmação de Winnicott, que distingue a necessidade de ser como algo não redutível à

vida instintual – “o elemento feminino puro relaciona-se com o seio (ou com a mãe) no

sentido de o bebê tornar-se o seio (ou a mãe), no sentido de que o objeto é o sujeito.

Não consigo ver impulso instintivo nisso” (1971g, p. 113) –, Green considera que

Winnicott está supondo uma situação inicial idílica (2011, p. 79), na qual a relação mãe-

bebê não estaria associada com a vida instintual. No entanto, não me parece que seja

exatamente esta a proposta de Winnicott, dado que, para este, o corpo e suas pressões

estão presentes desde o início, no momento em que passa a existir uma organização do

sistema nervoso apta a dar sentidos aos acontecimentos corporais (Winnicott, 1965n, p.

55).

O corpo e a psique, que podemos nesse momento inicial também considerar,

respecitvamente, sinônimo de necessidades do id e necessidades do ego (enquanto

necessidade, ontológica, de ser), estão fundidos e não seria possível dissociá-los

(Winnicott, 1954a, p. 333), ainda que, ao longo do processo de desenvolvimento, as

72

necessidades de ser e as necessidades do id venham a ser, gradualmente, distinguíveis

uma da outra (Winnicott, 1958f, p. 274). Assim, no início seria fidedigno afirmar que as

necessidades do id (instintuais) são vividas como necessidades de ser (a fome, por

exemplo), ainda que a necessidade de ser não seja redutível à necessidade instintual. Ao

longo do processo de desenvolvimento, ocorre um tipo de diferenciação dessa situação

inicial e as necessidades de id tornam-se mais claramente díspares das necessidades de

ser (ou do ego); as necessidades instintuais (dentro de certos limites) são vividas como

diferentes das necessidades de ser.

Para esclarecer esse aspecto do pensamento de Winnicott, analisarei alguns

aspectos da relação inicial mãe-bebê e os modos como são experienciadas as pressões

instintuais tanto nesse momento inicial, considerando a extrema imaturidade do bebê,

quanto num momento mais tardio, no qual, tendo chegado à integração enquanto uma

pessoa inteira, a criança necessita administrar sua vida instintual nas suas relações

interpessoais.

Creio que Green não fez a distinção entre vida instintual e vida sexual. A vida

instintual está presente desde o início (com a condição de que haja um sistema nervoso

básico que possa dar sentido ao que é vivido pelo corpo), mas é vivida pelo bebê como

algo externo a seu self e que não está configurado de forma clara, passível de ser

associado (do ponto de vista do bebê) a um objeto que pode atender às suas excitações.

Temos que lembrar a distinção entre necessidade e desejo, considerando que este

implica um amadurecimento no qual uma determinada excitação alcança uma forma e

integração, recebe um determinado sentido, associado a objetos possíveis (inclusive

indicando a falta de objetos) de satisfazê-lo. É também nesse sentido que podemos

afirmar que a sexualidade corresponde a uma determinada maneira, complexa, de viver

73

a vida instintual; sendo assim, o corpo e as pressões instintuais estariam presentes desde

o início, ainda que as pulsões e a sexualidade não estejam.

Para que isso possa ser afirmado, é fundamental que façamos a distinção entre o

ponto de vista do bebê e o ponto de vista do observador. Como Green não faz essa

distinção, ocorrem diversos malentendidos na sua avaliação da obra de Winnicott.

De um modo geral, creio que Green critica Winnicott por este último ter

abandonado alguns conceitos metapsicológicos. Suas críticas, relativas à

metapsicologia, podem ser reunidas da seguinte maneira: 1) Green, defendendo a

necessidade de aparelho psíquico, reconhece que Winnicott não a utiliza sem, no

entanto, discutir por que este não a usa (Green, 2005, p. 13); 2) Green defende a

necessidade e utilidade da noção de pulsão de morte (Green, 2010a), e critica Winnicott

por tê-la rejeitado, considerando que este o fez por motivos emocionais (2011),

introduzindo a questão do ser na psicanálise, bem como uma suposição de uma situação

idílica da relação mãe-bebê não referida às pulsões; 3) Green considera que não foi,

ainda, apresentada nenhuma teoria melhor para substituir a metapsicologia, apesar de

suas deficiências (1995, p. 7). Entretanto, também afirma: “Winnicott foi para mim o

autor com uma concepção do desenvolvimento que ultrapassa as de Freud e Klein,

credível e suficientemente imaginável para ser aceita” (Green, 2010b, p. 69).

Como perspectiva crítica geral, Green também não fez a distinção entre teorias

que descrevem os fatos (e suas relações) e teorias (metapsicológicas) que são

construções auxiliares metafóricas, ou seja, não diferencia a descrição dos fatos eles

mesmos e a “descrição metafórica” ou analógica que caracteriza o pensamento

metapsicológico. Ao não fazer esse tipo de distinção, misturando (sem ressalvas)

proposições descritivas com proposições especulativas, acaba por obscurecer suas

significativas descobertas clínicas na descrição de fenômenos importantes para o

74

desenvolvimento da psicanálise, por exemplo, considerando da mesma natureza sua

teoria da mãe-morta (cf. Kohon, 2009) e sua hipótese de uma função des-objetalizante,

mesmo que construções auxiliares teóricas como estas tenham seu valor heurístico.

Winnicott não encontrava nos conceitos metapsicológicos referentes necessários

para uma teoria que descrevesse os fatos que procurava entender. Observe, por

exemplo, a maneira como ele menciona o conceito de pulsão de morte, como um tipo de

jargão que mais obscurece do que esclarece alguns fenômenos: “Gostaria de dizer,

porém, que as coisas ficam confusas, na Sociedade, quando vários termos são usados

como se fossem plenamente aceitos. Tenho certeza de que você sabe exatamente o que

tem em mente quando diz: ‘partes perigosas... derivadas da pulsão de morte

[Todestriebe]... devem ser expulsas’, etc., etc. eu mesmo não sei o que você quer dizer,

e pelo menos metade da Sociedade deve sentir que você está dizendo ‘pulsão de morte’

[Todestriebe], em vez de usar as palavras ‘agressividade’ e ‘ódio’. Você talvez ache

que isso não tem importância, e não tem mesmo, no contexto de seu ensaio, mas seria

realmente muito útil para a Sociedade se conseguíssemos descobrir uma linguagem

comum. Qualquer hora dessas, quando você não tiver nada para fazer, que tal reescrever

aquela frase sem usar as palavras ‘pulsão de morte’, só por minha causa?” (Winnicott,

1987, p. 134). Creio que sua postura em relação à pulsão de morte é a mesma em

relação a outros conceitos metapsicológicos, tais como, mais claramente, o de aparelho

psíquico; no que diz respeito à libido, como energia psíquica, e à pulsão, como força

psíquica, isso não é tão evidente, exigindo uma argumentação e demonstração mais

extensa.

Desse ponto de vista, a recusa que Winnicott fez das noções de pulsão de morte

e de aparelho psíquico, criticada por Green, corresponde, a uma postura epistemológica

e metodológica de Winnicott, e não a uma solução de compromisso, uma reação

75

defensiva ante à agressividade e à sexualidade, principalmente a materna. Penso que

Winnicott rejeitou, consciente e racionalmente, a teorização metapsicológica porque

julga que esta obscurece a discussão, dado que os conceitos metapsicológicos, para ele,

não têm referentes claros e objetivos, dando uma ilusão de compreensão onde não há

compreensão alguma.

l Às vezes Winnicott se refere a uma tendência inata para a integração (1971f, p. 11;

1989xa, p. 244; 1988, Parte 4, Cap. 2) e em outros lugares a uma tendência para

integração numa unidade (1965n, p. 55) ou totalidade (1987b, p. 132), tendência à

maturidade, (1971f, p. 24), ao desenvolvimento (1958n, p. 402), etc., marcando que o

estado de integração corresponde a um critério de avaliação da saúde do indivíduo: “A

fim de examinar a teoria da esquizofrenia é preciso que tenhamos uma eficiente teoria

do crescimento emocional da personalidade [...]. O que preciso fazer é assumir a teoria

geral da continuidade, de uma tendência inata em direção ao crescimento e evolução

pessoal, e a teoria da doença mental como uma interrupção do desenvolvimento. [...]

Também posso dizer que o enunciado do desenvolvimento da primeira infância e da

infância em termos de uma progressão de zonas erógenas, que nos serviu tão bem em

nosso tratamento de neuróticos, não é tão útil no contexto da esquizofrenia como o é a

ideia de uma progressão da dependência (de início, quase absoluta) para a

independência” (1968c, p. 194).

m A obra de Winnicott pode ser considerada uma síntese, bem-sucedida, entre as

descobertas feitas por Freud (e seus desenvolvimentos pós-freudianos, especialmente

reconhecidos nas obras de Abraham, Ferenczi, Melanie Klein, e outros considerados

autores que desenvolveram a psicanálise tradicional) e as propostas da fenomenologia

76

psiquiátrica, da psicologia existencialista e da Daseinanalyse. Winnicott seria o

responsável por uma segunda tentativa de síntese, cabendo à Binswanger a autoria da

primeira. Nesse sentido, veja dois textos de Ellenberger (1958, 1959) que podem ter

influenciado Winnicott. Ainda que esta seja uma hipótese especulativa, dado que não

sabemos qual o conteúdo da biblioteca de Winnicott, não deixa de causar surpresa

encontrar grandes ressonâncias e similaridades entre as propostas da fenomenologia

psiquiátrica, da psicologia existencialista e da Daseinanalyse na obra de Winnicott,

especialmente no que se refere à questão do ser, do ser-no-mundo, da vida autêntica e

da busca pela autenticidade, quando lemos, neste autor, a sua maneira de referir-se à

experiência de ser (um dos fundamentos de sua ontologia), à criação do mundo e do

lugar em que vivemos (quando analisa a transicionalidade), a saúde como característica

do ser a partir de simesmo e a distinção entre falso e verdadeiro self.

n O que faz a vida valer a pena ser vivida é ela ser uma vida própria do indivíduo, ou

seja, vivida a partir de simesmo com base numa espontaneidade ou criatividade que

caracteriza a própria ação por simesmo (neste sentido, uma vida não reativa). Winnicott

diz, nesse sentido: “É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa,

que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida” (1971g, p. 95); ou ainda,

“Descobrimos que os indivíduos vivem criativamente e sentem que a vida merece ser

vivida ou, então, que não podem viver criativamente e têm dúvidas sobre o valor do

viver. Essa variável nos seres humanos está diretamente relacionada à qualidade e à

quantidade das provisões ambientais no começo ou nas fases primitivas da experiência

de vida de cada bebê” (197g, p. 102). Winnicott explicita, ainda, que a vida vale a pena

ser vivida se ela for real. Mas o que é uma vida real? Ele esclarece: “tudo aquilo que

provém do verdadeiro eu é sentido como real (e posteriormente como bom), seja qual

77

for a sua natureza, não importa o quão agressivo seja; e tudo aquilo que acontece ao

indivíduo enquanto reação à intrusão ambiental é sentido como irreal, inútil (e

posteriormente ruim), independente de o quão gratificante seja do ponto de vista

sensorial” (1955d, p. 389). Cf. Também, em Winnicott (1984e, p. 241; 1986h, p. 23;

1971g, p. 95, p. 102; 1971f, p. 10, p. 18), outras referências a essa questão.

o As figuras e diagramas usados por Winnicott são utilizadas com fins didáticos;

correspondem a uma tentativa de colocar em destaque quais os principais fatos e

dinâmicas que caracterizam uma determinada situação, sempre insuficientes, no

entanto, em relação à totalidade dos fatos, jamais os substituindo ou os reduzindo pelo

que o diagrama coloca em evidência. A esse respeito, Winnicott afirma: “Nenhum

diagrama é satisfatório, exceto temporariamente e apenas para a pessoa que o constrói.

Cada leitor poderá fazer, naturalmente, um diagrama capaz de descrever o que quer que

esteja sendo discutido na sua própria linguagem” (1988, p. 95).

A característica central de seus diagramas é descrever os fenômenos. Não são

especulações, metáforas, nem, propriamente, analogias, como as que Freud utilizava,

por exemplo, quando figurou o psiquismo como se fosse um aparelho composto por

sistemas que interagem entre si (querendo, com isso, fornecer um conteúdo empírico

para o fato, invisível, de que o psiquismo não é uma unidade) no Cap. 7 da

Interpretação dos sonhos (1900a) e, mais tarde, no “O Ego e o Id” (1923c). Para Freud,

especulações desse tipo (o psiquismo como se fosse um aparelho) são úteis, em termos

didáticos e na procura de relações, mas não correspondem aos fatos que ele mesmo está

tentando descrever. Para ele, as analogias correspondem à projeção de uma situação,

dinâmica ou de um fato conhecido, para fenômenos que não são conhecidos e

facilmente observáveis. A analogia é uma metáfora de valor apenas heurístico, ou seja,

78

há diferença de natureza entre os termos comparados por analogia. Já mostrei, em outro

lugar, que há um método analógico em Freud, fruto de sua formação como cientista (cf.

Fulgencio, 2008). Ele as considera construções auxiliares especulativas, que funcionam

como andaimes para a construção do edifício (teoria e descrições das efetivas relações

entre os fenômenos) da ciência psicanalítica. Referindo-se à analogia do psiquismo

como se fosse um aparelho, Freud esclarece: “Essas analogias visam apenas a nos

assistir em nossa tentativa de tornar inteligíveis as complicações do funcionamento

psíquico, dissecando essa função e atribuindo suas operações singulares aos diversos

componentes do aparelho. Ao que me consta, não se fez até hoje a experiência de

utilizar esse método de dissecação com o fito de investigar a maneira como se compõe o

instrumento anímico e não vejo nele mal algum. A meu ver, é lícito darmos livre curso a

nossas especulações, desde que preservemos a frieza de nosso juízo e não tomemos os

andaimes pelo edifício” (Freud 1900a, p. 589).

Lacan, por sua vez, apoiando-se em Freud, aprofunda esse procedimento

especulativo analógico, propondo o uso de um aparelho óptico para aprofundar o uso da

especulação de Freud. Lacan afirma, logo depois de ter lembrado a passagem de Freud

citada acima: “Inútil dizer-lhes que, como os conselhos são dados para não serem

seguidos, não deixamos desde então de tomar o andaime pelo prédio. Por outro lado, a

autorização que Freud nos dá de utilizar relações auxiliares para nos aproximarmos de

um fato desconhecido me incitou a dar provas de uma certa desenvoltura para construir

esquemas. Algo de quase infantil vai nos servir hoje, um aparelho de óptica muito mais

simples do que um microscópio complicado” (1975, p. 92-?). Lacan considera que as

instâncias do fictício aparelho psíquico devem ser entendidas por meio de um esquema

óptico, figurável pela denominada fase do espelho (1975, p. 147), e considera que esse

método analógico é adequado para apreender as dinâmicas e organizações psíquicas do

79

ser humano, o que ele aprofundará com outras figurações, bem como com formulações

algébricas.

(Freud, 1923b, p. 269) Fase do espelho (Lacan, 1975a, I, p. 174) Diagrama da dif. sexual (Lacan, 1975b, XX, p. 105)

Os diagramas e figurações propostos por Winnicott são de natureza diferente

dos de Freud e Lacan. Não são especulativos, tampouco a projeção de um conhecido

para um desconhecido e, nesse sentido, não são propriamente analógicos, ainda que

guardem em si certos aspectos metafóricos (já que não são os fenômenos eles mesmos).

Estão muito mais próximos de simplificações esquemáticas que buscam descrever os

aspectos essenciais de um fenômeno ou de uma situação do que de uma figuração

metafórica, que projeta uma situação conhecida (de determinada natureza) numa outra

desconhecida (de natureza diferente da primeira). Assim, os círculos concêntricos

desenhados por Winnicott correspondem à representação esquemática essencial daquilo

que descreve a situação: o bebê está na barriga da mãe, o bebê está no colo da mãe, a

criança na sua casa, na sua família, a pessoa no seu bairro, na sua cidade, enfim, o ser

humano como cidadão do mundo (cf. 1988, p. 88, self representado por uma esfera;

1988, p. 146, representação do self e do cuidado ambiental; 1953a, p. 309, figura 1,

diagrama procurando descrever a relação indivíduo-ambiente, visando a explicitar o que

ocorre quando o ambiente invade o indivíduo e quando o sustenta adequadamente). É

interessante, pensando nesse diagrama essencial, que Winnicott diga que “a vida é uma

longa sequência de saídas de cercados, riscos e desafios novos e estimulantes” (1965q,

80

p. 53), podendo essa fala, facilmente, remeter à noção de Dasein, ou seja, o modo de ser

do ser humano como aquele que é-com-o-outro. Ao mostrar como ocorrem as relações

iniciais, nas quais o ambiente se adapta às necessidades do bebê (num momento em que

não existe, para o bebê, uma realidade nãoself), quando o bebê não sabe do que

precisatampouco reconhece sua dependência, Winnicott traça os termos essenciais da

relação (o seio e o bebê) e indica a área de ilusão que se estabelece para o bebê

encontrar os objetos de que precisa como se adviessem de suas necessidades e não pela

adaptação ambiental (cf. 1988, p. 121, diagrama da área de ilusão de onipotência;

1953a, p. 309, figura 2, representação da primeira mamada teórica, ou seja, do conjunto

de cuidados iniciais que o bebê recebe quando o ambiente se adéqua, atendendo às

necessidades do bebê num tempo em que este não se decepciona nem perde a esperança

de ter sua necessidade atendida). Esse diagrama é modificado com a inclusão dos

objetos e fenômenos transicionais, figura 3, que interpõem ou realizam a área de ilusão

de onipotência, estabelecendo o diagrama das relações com os objetos e fenômenos

transicionais (1953c, p. 27; 1953a, p. 309). O esquema que descreve o ciclo benigno

(1988, p. 93), figura 4, por exemplo, não é propriamente figurativo, e não tem

semelhança alguma com algum dado da realidade factual; ele busca descrever as

dinâmicas relacionadas entre o indivíduo e suas relações (amorosas, destrutivas,

reparatórias) interpessoais. Outros diagramas procuram explicitar o que está presente

em cada momento do processo que leva os indivíduos da realidade subjetiva para a

realidade externa, indicando que a vida cultural (o lugar em que vivemos) está entre

essas duas realidades (cf. 1953a , p. 310, Fig. 5 e 6); ou, ainda, a cisão básica da

personalidade em casos patológicos (1953a, p. 310, Fig. 7).

Fig. 1 Fig. 2 Fig. 3

81

Círculos concêntricos (1988, p. 148) Seio-bebê, área ilusão-onipotência + Transicionalidade (1953c, p. 27)

Fig. 4 Fig. 5 Fig. 6 Fig. 7

Ciclo benigno (1988, p. 83) Passagem Realid. Subj p/ R-Ext. (1953a, p. 310) Cisão da Personalidade (1953a, p. 310)

Esses diagramas não são propostos numa lógica do como se, mas sim

propondo descrever esquematicamente os fenômenos eles mesmos (o que não deixa de

ter proximidades com o princípio geral da fenomenologia que visa a chegar às coisas

elas mesmas). O modo como Winnicott utiliza seus diagramas é um dos aspectos de seu

modo de teorizar, sempre à procura da maior proximidade possível com os fatos eles

mesmos. É notável que ele possa ser colocado no quadro de uma tradição inglesa

empirista. Sabemos pouco sobre os autores que lia, no entanto, Martin James, amigo de

Winnicott – (“Was Winnicott a Winnicottian?”, registro gravado em fita cassete,

disponível nos arquivos da Squigge Foudantion, em 1991), por ocasião do início dos

trabalhos do Winnicott Trust, comenta: “Winnicott tinha familiaridade com os textos de

82

Loke, Hume, Popper e Kuhn, e acreditava na ciência com sua ênfase na repetição das

experiências, e que ele seguia uma tradição empírica particular” (apud Spelman, 2013a,

p. 26) – coloca em evidência que ele tinha apreço por uma concepção de ciência como

prática de resolução de problemas empíricos, colocando a teoria em função da descrição

e resolução desses problemas.

p Ao falar do início, Winnicott está se referindo a algo que deve ser considerado até

mesmo antes do nascimento: “Estamos aludindo a processos que se referem

principalmente aos primórdios – ou seja – até mesmo ao período que antecede o

nascimento” (Winnicott, 1987b, p. 77, carta a Michael Fordham de 26/09/1955). Pode-

se tomar como caracterização e referente do início aquilo que Winnicott afirma como

sendo a experiência de ser: “Gostaria de postular um estado de ser que é um fato no

bebê normal, antes do nascimento e logo depois. Esse estado de ser pertence ao bebê, e

não ao observador” (1988, p. 148). No início, diz Winnicott, só do ponto de vista do

observador pode-se referir à unidade ao bebê. Na verdade, nunca há apenas um bebê,

mas sempre o bebê acompanhado, cuidado por alguém, um bebê e seu ambiente de

sustentação. É nesse sentido que Winnicott pôde afirmar “Isso que chamam de bebê não

existe [...] a unidade não é do indivíduo, a unidade é o contexto ambiente-indivíduo”

(1958p, pp. 165-166). O início corresponde ao momento em que o ser se apresenta,

momento em que ele advém de seu estado de nãoser, o que é sinônimo, para Winnicott,

de continuidade de ser: “A base de todas as teorias sobre o desenvolvimento da

personalidade humana é a continuidade, a linha da vida, que provavelmente tem início

antes do nascimento efetivo do bebê [...]" (1987a, p. 79). Esse início ocorre quando,

dadas as condições biológicas (um sistema nervoso organizado, sem que se diga o

quanto deve estar organizado, mas que se opõe à situação de uma criança anencefálica),

83

o ego (sinônimo, aqui de tendência inata à integração) pode dar sentido aos

acontecimento corporais. O início começa com o ego (enquanto uma tendência inata

para a integração) e não corresponde a um instante, um momento, mas a diversos desses

momentos ou despertares: “A primeira pergunta que surge com respeito ao que é

denominado ego é a seguinte: há um ego desde o início? A resposta é que o início está

no momento em que o ego inicia. [nota: É bom lembrar que o começo é uma soma de

começos]” (1965n, p. 56).

q O estado inicial da mãe quando do nascimento do bebê e, aproximadamente, nos seus

3 a 4 meses seguintes, corresponde ao que Winnicott denominou estado de preocupação

materna primária: “O meio suficientemente bom começa por um alto grau de adaptação

às necessidades individuais do bebê. A mãe é geralmente capaz por causa do estado

particular no qual ela se encontra: é o que eu chamei de preocupação materna primária”

(1971f, p. 24). Cf. Winnicott, 1958n (todo o texto é dedicado à preocupação materna

primária); ver especialmente pp. 401-403; 1960c, p. 52; 1996l, p. 78, 1971f, p. 24;

1996f, p. 236. Spelman (2013b, p. 11) associa o fenômeno descrito por Winnicott, na

descrição da interação mãe-bebê em termos da função de holding da mãe (que acima

especificamos somo sendo a preocupação materna primária, ou seja, como um dos

modos de funcionamento do holding materno), com o tendo um referente similar ao de

reverie materna de Bion

(

1955. Diferentiation of psychotic from nonpsychotic personalities. In: E.

B. Spiliuss (Ed.), Melanie Klein Today Volume 1 (pp. 59-76). London:

Routledge, 1988.

84

1961. A theory of thinking. In: E. B. Spiliuss (Ed.), Melanie Klein

Today Volume 1 (pp. 174-182). London: Routledge, 1988.

).

r A elaboração imaginativa, proposta especificamente por Winnicott e ausente em

outros autores, é uma capacidade inata – desde que exista um sistema nervoso que possa

servir de base de sustentação para sua realização, logo, uma criança anencefálica não

teria essa capacidade – que dá sentido aos acontecimentos existenciais. Inicialmente,

essa atividade inata dá sentido (registra, cataloga, diferencia) aos acontecimentos

corporais, para, no curso do processo de desenvolvimento emocional, tornar-se cada vez

mais complexa, sendo que desejar, sonhar, devanear, criar, bem como reagir aos

problemas existenciais (o que, classicamente, poderíamos identificar englobando os

mecanismos de defesa), poderiam ser considerados elaborações imaginativas dos

acontecimentos existenciais. Cf. em Winnicott (1988, p. 58, pp. 69-70; 1965vf, p. 25)

referências à elaboração imaginativa (cf. tb. em Loparic, 2000; Dias, 2003, pp. 104-110,

análises desta função). Em Winnicott (1965n, p. 55 e p. 59), há uma referência à

tendência inata à integração (que ele também nomeia como sendo o ego) como a

atividade que registra, cataloga e diferencia os acontecimentos corporais. A elaboração

imaginativa corresponde, pois, a uma maneira de dar sentido aos acontecimentos

existenciais, uma atividade que, nos seus diversos níveis de realização, fornece um

colorido semântico para a existência, a relação consigo mesmo e com os outros.

s Em Winnicott, ocorre uma modificação do quadro clássico que pensa as relações entre

o corpo e a alma, recolocando a questão em termos das relações entre a psique e o soma.

A mente é considerada uma maneira específica de funcionamento da unidade psique-

85

soma. Há um problema terminológico e conceitual que exigiria que nos detivéssemos

para distinguir corpo, corpo vivo, soma, psique e mente, o que nem sempre está

evidente no texto de Winnicott. Creio que se pode dizer que os acontecimentos relativos

ao corpo, enquanto um dado biológico, recebem coloridos semânticos (via elaboração

imaginativa) que levam o corpo a ter uma realidade não redutível à sua existência

biológica – no início “a psique está começando a elaborar-se em torno do

funcionamento corporal” (1965vf, p. 25) –, e isso ocorre de uma maneira mais ou

menos complexa.A relação entre o que ocorre com o corpo e os sentidos dados a esses

acontecimentos corporais correspondem a um tipo de união entre duas realidades (para

Winnicott, o psique e o soma), sendo que os processos mentais seriam uma das

maneiras como essa união é vivida e utilizada.

t É a essa situação que Winnicott caracteriza como narcisismo primário: “Nos estágios

iniciais chegamos inclusive a uma situação em que somente o observador poderá

distinguir entre o indivíduo e o ambiente (narcisismo primário). O indivíduo não o

poderá fazer. E neste caso será mais adequado falar de um conjunto ambiente-indivíduo,

em vez de nos referirmos a um indivíduo” (1955c, p. 360). Ele considera inadequada

teoricamente a ideia de narcisismo primário (cf. 1955c, p. 360; 1955d, p. 380, pp. 383-

4; 1958g, p. 32; 1965j, p. 171; 1965n, p. 59; 1989xd, p. 331; 1958b, p. 297) como uma

integração e separação eu-mundo que não corresponde ao fato de que no início não há

uma realidade nãoself (cf. 1988, Parte IV, Cap IV e V). Sobre a noção de narcisismo

primário em Winnicott, veja Roussilllon (2010) e Fulgencio (2013c).

u A noção de objeto subjetivo é uma das grandes novidades propostas por Winnicott.

Não se trata de um objeto alucinado, nem imaginado, mas criado num mundo em que

86

não existe propriamente o bebê e objetos que são nãobebês, mas num mundo em que os

objetos são também o bebê (cf. Winnicott, 1965n, p. 56; 1965j, pp. 168-172; 1988, pp.

121-135, pp. 147-151; 1971b, p. 12; 1971l, p. 177; 1971va, p. 140). Poder-se-ia fazer

uma crítica aos que consideram Winnicott um teórico das relações de objeto –

especialmente Greenberg & Mitchell (1983) –, dado que o objeto subjetivo não seria

mais um objeto (não há, no caso dos objetos subjetivos, um sujeito que se relaciona com

um objeto, como dois aspectos ou elementos distintos da realidade: A se relacionando

com B). Sendo assim, Winnicott não seria propriamente um teórico das relações com os

objetos, no sentido que foi dado a essa expressão na história clássica da psicanálise, mas

sim, um teórico das relações com o ambiente.

v Winnicott introduz, na psicanálise, uma distinção entre um verdadeiro e um falso self.

O verdadeiro self seria a expressão espontânea do indivíduo a partir de simesmo, ou

seja, uma ação que ocorre como expressão e existência do simesmo que se afirma na

linha da continuidade de ser, por oposição às ações reativas (às falhas ambientais que

puxam ou empurram o indivíduo, ou ainda, que não estão presentes para sustentar

indivíduo) que aniquilam o ser e o self verdadeiro. Se temos em mente o diagrama da

bolha, vemos que o verdadeiro self é a expressão e ação do self quando a bolha apenas

sustenta a situação: é nesse sentido que a ação do verdadeiro self é espontânea e

criativa. O falso self corresponde a uma reação de defesa do indivíduo que, ante a uma

falha ambiental, recua para se proteger e insere outro self para se relacionar com o

ambiente. Dessa forma, o falso self tem sempre a função de proteger o verdadeiro. Na

verdade, todo indivíduo tem experiências de quebra na continuidade de ser (ou de falhas

ambientais), constituindo, assim, um falso self, que se organiza em diversos graus na

vida de uma pessoa. O que diferencia o falso self operativo, necessário à saúde, do falso

87

self patológico é o grau de domínio do falso ou do verdadeiro self na condução ativa da

existência e dos modos de ser no mundo. Os conceitos de falso self e verdadeiro self

aparecem em muitos momentos na obra de Winnicott, sendo um importante instrumento

(clínico e teórico) de suas propostas para o desenvolvimento da psicanálise. Para um

estudo inicial, alguns textos são fundamentais, a saber: os que se dedicam

explicitamente à análise desse conceito (1965m, 1986e), e os que abordam esse tema

como parte importante de suas análises sobre o self (1965j, 1971d, 1971r). Winnicott

afirma que os conceitos de falso self e verdadeiro self não correspondem a uma

invenção sua: "Este conceito em si não é novo. Aparece em várias formas em

psiquiatria descritiva e especialmente em certos sistemas religiosos e filosóficos. Por

certo existe um estado clínico real que merece estudo, e o conceito se apresenta à

psicanálise como um desafio quanto à etiologia” (1965m, p. 128). Quando se refere à

psiquiatria descritiva e a certos sistemas filosóficos e religiosos, certamente está se

referindo à psiquiatria fenomenológica (Jaspers, Minkowski) e às formulações

religiosas e filosóficas (Kierkegaard, Sartre e Heidegger), como também, a meu ver, às

propostas da psicologia existencialista (Rollo May, Erwin Straus, V. E. von Gebsattel,

Roland Kuhn, Ludwig Binswanger, Medard Boss; cf. em May, Angel & Ellenberger,

1958, uma coletânea que reúne trabalhos clássicos dos existencialistas; veja tb.

Ellenberger, 1958, 1959, dois textos que retomam quais foram as contribuições de

Kierkegaard, Heidegger e da fenomenologia no campo da prática clínica, psiquiátrica e

psicológica) e a de outros psicoterapeutas mais ou menos distantes da psicanálise. Neste

último sentido, na obra de Laing, inspirada numa attitude fenomenológica-

existencialista, de fundo fenomenológico-existencialista, também encontramos uma

referência ao falso e ao verdadeiro selves, referindo-se à questão da autenticidade, à

experiência de ser autêntico (ser e não ser simesmo) ou às situações em que a relação

88

inter-humana gera enlouquecimento – “o indivíduo sente o próprio self mais ou menso

divorciado ou desligado do corpo. O corpo é sentido mais como um objeto entre outros

objetos no mundo, do que como cerne do ser do indivíduo. Em vez de ser o âmago do

verdadeiro self, o corpo é sentido como o âmago de um falso self, que desligado,

imaterializado, ‘interior’ e ‘verdadeiro’ self considera com ternura, divertimento ou

ódio, conforme o caso” (Laing, O Eu Dividido, 1970 [1960], p. 73) –, também

associando suas análises ao que Searles descreveu como a ação de tornar o outro louco,

ou, ainda, o que Batson referiu-se como teoria do duplo vínculo (Laing, 1971 [1961],

Soi et les autres, pp. 156-190). O falso e o verdadeiro selves parecem, pois, retomar a

questão existencial fundamental (pensada, por Winnicott, no campo da psicanálise) que

coloca todo homem (mesmo que ele não a formule conscientemente) ante ao problema

de saber até se ele vive conforme a sua própria natureza ou, na linguagem de Winnicott,

até que ponto o homem tem uma vida que é sua, real, na qual interage com o mundo

sem perda demasiada da sua espontaneidade, ou seja, até que ponto um homem sente

que sua vida vale a pena ser vivida, por oposição aos sentimentos patológicos de que a

vida que vive não é própria, que é fútil, sem sentido ou sem esperança para se ter um

lugar para viver a partir de simesmo. Aqui, esse tema do falso e verdadeiro self encontra

o tema da saúde e da questão da vida que a vale a pena ser vivida (veja notas h e n).

w Não se trata de perfeição, mas de uma adaptação propriamente humana: “Este tipo de

comunicação [inicial, entre a mãe-ambiente e o bebê] é silencioso. O bebê não ouve ou

registra a comunicação, mas apenas os efeitos da confiabilidade, que são registrados no

decorrer do desenvolvimento. O bebê não sabe da comunicação, exceto pelos efeitos

provocados pela falta de confiabilidade. É aqui que há a diferença entre perfeição

mecânica e amor humano. Os seres humanos cometem muitos erros, e durante o tempo

89

em que a mãe cuida do seu bebê ela continuamente corrige essas falhas. Essas falhas

relativas, às quais se dá uma solução imediata, terminam por serem comunicadas e é

dessa forma que o bebê acaba tomando conhecimento do sucesso. A adaptação bem

sucedida dá uma sensação de segurança e um sentimento de ter sido amado. [...] são

inúmeras falhas, seguidas pelo tipo de cuidados que as corrigem, que terminam por

constituir a comunicação do amor, sustentada sobre o fato de ali haver um ser humano

que se preocupa” (1987d, p. 98).

x Diz Winnnicott: “Algumas vezes acreditamos, indolentemente, que antes da relação de

dois-corpos havia a relação de um corpo único, mas trata-se de um erro, e de um erro

óbvio, se olharmos com mais atenção. A capacidade para o relacionamento com um

corpo único vem depois do relacionamento de dois-corpos [...]” (1958d, p. 165). É da

unidade “dupla amamentante” que surgirá, na saúde, a integração que dá à criança seus

limites, estabelecendo-a como “um corpo” que se relacionará com “outro corpo”. Será,

ainda, depois de conquistada essa integração que leva a criança a reconhecer-se como

uma unidade, “um corpo”, que ela passará a relacionar-se com aquilo que é nãoEu como

outros corpos, primeiro de uma maneira dual, depois reconhecendo essa oposição

Eu/NãoEu, e, por fim, com uma série de outras integrações, a criança alcança a

integração que a faz sentir-se e relacionar-se como uma pessoa inteira com os outros

como “outras pessoas inteiras”, podendo estabelecer relações triangulares.

y Para Winnicott a oposição entre o corpo e a mente diz respeito a uma formulação

imprecisa, pois coloca como opostos referentes factuais que não são distintos nem

opostos entre si. Para ele, há, de um lado, o soma, e, de outro, a psique, sendo que “a

palavra psique, aqui, significa elaboração imaginativa dos elementos, sentimentos e

90

funções somáticas, ou seja, da vitalidade física” (1954a, p. 333); o soma pode ser

considerado como o corpo que vai receber ou ainda não recebeu sentidos (dados pela

elaboração imaginativa), isto é, o corpo que foi colorido semanticamente. No processo

de desenvolvimento afetivo, desde o seu início e cada vez mais (na saúde), “os aspectos

psíquico e somático do indivíduo em crescimento tornam-se envolvidos num processo

de mútuo inter-relacionamento. Essa integração da psique com o soma constitui uma

fase precoce do desenvolvimento infantil (1945d)” (1954a, p. 334, os itálicos são meus);

precoce, mas que segue por toda a vida. Esse envolvimento, integração, do soma com a

psique leva à unidade da existência psicossomática.

z Na saúde, o ambiente atende às necessidades do bebê, de modo que os acontecimentos

corporais, somáticos, recebem sentidos, contribuindo para a realização da integração

psicossomática, envolvendo o soma e a psique numa unidade. Essa unidade, o

psiquessoma por assim dizer, tem muitos modos de funcionar, muitos modos de ser no

mundo, e um deles corresponde a associações, julgamentos, previsões e mesmo

sistematizações, em maior ou menor graus, dos acontecimentos existenciais. É a esse

modo específico de funcionamento do psiquessoma que podemos denominar mente: “A

mente, então, será apenas um caso especial do funcionamento do psicossoma” (1954a,

p. 333). Em alguns casos patológicos, pode ocorrer um tipo de cisão, um tipo de

domínio da mente sobre a própria unidade psicossomática, que tem como objetivo lidar

com os modos de ser do indivíduo num mundo que (por ser falho na sua sustentação das

necessidades do indivíduo) acaba levando-o a ter que se ocupar do que seria tarefa ou

obrigação do ambiente: “Na saúde a mente não usurpa as funções do ambiente. Ela

permite que ocorra a compreensão e por vezes até mesmo a utilização de suas falhas

relativas” (1954a, p. 336).

91

aa Explicita Winnicott: “Desse modo a provisão natural é feita naturalmente para as

necessidades da criança, o que significa um alto grau da adaptação. Explicarei o que

quero dizer com esta palavra. Nos primórdios da psicanálise a adaptação só significava

uma coisa, satisfazer as necessidades instintivas da criança. Muitos erros de

interpretação se originaram da lentidão de alguns em entender que as necessidades de

um lactente não estão confinadas às tensões instintivas, não importa quão importantes

possam ser. Há um conjunto inteiro de desenvolvimento do ego do lactente que tem

suas próprias necessidades. A linguagem aqui é que a mãe ‘não desaponta seu nenê’,

embora ela possa e deva frustrar no sentido de satisfazer suas necessidades instintivas”

(1965r, p. 82).

bb Cf. na primeira versão do artigo “Objetos e fenômenos transicionais”, publicado no

livro Da Pediatria à Psicanálise, um comentário de Winnicott, diferenciando sua

concepção dos objetos transicionais de uma concepção (de Wulff) que compreenderia

esses fenômenos como “objetos fetiche”: “O exame do trabalho de Wulff nos leva a

crer que ele trouxe para a primeira infância algo que pertence, na teoria corrente, às

perversões sexuais. Não fui capaz de encontrar neste trabalho o espaço necessário para a

percepção do objeto transicional infantil como uma experiência precoce saudável. No

entanto, penso que os fenômenos transicionais são saudáveis e universais” (1953

[1951]), p. 330).

cc Maria Beatriz Simões Rouco me sugeriu que a palavra inglesa concern fosse

traduzida por consideração, o que parece mais próximo daquilo que comumente se diz

em relação ao comportamento que diz respeito ao reconhecimento do outro (você não

92

tem consideração pelo outro?) do que o neologismo concernimento, que remete a uma

compreensão mais abstrata dos fenômenos desta fase do desenvolvimento.

Em inglês temos

Consern

Consideration

dd “Há algo sempre difícil de ser lembrado: quão moderno é o conceito de indivíduo

humano. Talvez a luta para alcançar esse conceito se reflita no primeiro nome hebraico

para Deus. O monoteísmo parece estar muito vinculado à expressão EU SOU. Sou o

que sou. (Cogito, ergo sum é diferente: o sum aqui significa que tenho um sentido de

existência enquanto pessoa, que sinto em meu juízo que minha existência foi provada.

Mas aqui estamos preocupados com um estado nãoautoconsciente de ser, para além de

exercícios intelectuais de autoconsciência.) Será que este nome conferido a Deus (EU

SOU) reflete o perigo que o indivíduo sente de estar alcançando o estado de um ser

individual? Se eu sou, então o caso é que consegui agrupar isto e aquilo e reivindiquei

que isto sou eu, e que repudiei todo o resto; ao repudiar o nãoEu, insultei o mundo, por

assim dizer, e posso aguardar um ataque. Então, quando as pessoas chegaram pela

primeira vez ao conceito de individualidade, rapidamente colocaram-no no céu e lhe

deram uma voz que só um Moisés conseguia escutar” (1984h, p. 43). Veja também,

sobre essa fase, 1963d (p. 94) e 1971f (p. 31).

ee Devemos fazer uma distinção entre os instintos em Winnicott (drive, instinctual

drive) e a noção de pulsão em Freud. Ao definir o que são os instintos, Winnicott

93

afirma: “Instinto é o termo pelo qual se denominam poderosas forças biológicas que

vêm e voltam na vida do bebê ou da criança, e que exigem ação” (1988, p. 57). Trata-se

de uma posição diferente da de Freud, que considera as pulsões uma ideia abstrata, um

conceito entre o somático e o psíquico, enfim, um tipo de mitologia (cf., em Fulgencio,

2006b, uma análise da diferença entre a noção de instinto em Winnicott e a de pulsão

em Freud). A vida instintual, para Winnicott, sempre presente, além de se referir a

efetivos dados factuais (não sendo, portanto, uma abstração ou especulação, algo

mítico), não diz respeito, necessariamente, à vida sexual, dado que, nessa perspectiva, a

sexualidade corresponderia a uma determinada maneira, já amadurecida, de viver a vida

instintual. (Cf., em Fulgencio, 2013b, uma análise do que é o id como sinônimo de

pressão instintual, diferenciado-a do que é a vida sexual e a vida pulsional).

ff Winnicot reformula a classificação nosográfica do ponto de vista da psicanálise,

referindo-se a diversos modos de ser, utilizando vários critérios para caracterizar as

organizações afetivas e relacionais. Já comentei o fato de ele introduzir uma noção de

saúde (cf. nota h), mencionando um modo de ser no qual o indivíduo sente que sua vida

é real, pessoal, em relação com o outro e com a vida cultural, de uma maneira que o

indivíduo saudável se adapta ao mundo sem perder, em demasia, a sua espontaneidade,

podendo responsabilizar-se por seu estar-no-mundo, tanto nos seus sucessos quanto nos

seus fracassos. Esse estado de saúde define a neurose e, mais evidentemente, a psicose.

Ainda que para ele neurose não seja propriamente uma doença, pode se apresentar,

dependendo do grau de comprometimento do indivíduo, como uma patologia: “A

neurose propriamente dita não é uma doença, e deveríamos pensar nela em primeiro

lugar como um tributo ao fato de que a vida é difícil. Diagnosticamos neurose e

anormalidade somente quando o grau de perturbação está incapacitando a criança,

94

incomodando os pais ou sendo inconveniente para a família” (1958m, p. 420).

Winnicott procura estabelecer uma diferença pedagógica entre neuróticos e psicóticos,

seguindo a distinção clássica que considera que, tendo alcançado uma integração que

caracteriza uma pessoa inteira, o neurótico tem uma perturbação na sua vida relacional

interpessoal, enquanto o psicótico não alcançou ou perdeu essa integração e tem

perturbações na estrutura da sua personalidade. Em Natureza Humana, esclarece que os

neuróticos têm problemas com o viver, já os psicóticos lutam para chegar à vida para

poder vivê-la a partir de simesmos: “Suas dificuldades e problemas são especialmente

aflitivos. Por não serem inerentes, não fazem parte da vida, e sim da luta para alcançar a

vida – o tratamento bem-sucedido de um psicótico permite que o paciente comece a

viver e comece a experimentar as dificuldades inerentes à vida” (1988, p. 100).

Numa de suas tentativas de discriminar a neurose da psicose, ele declara: “Acho-

me, portanto, descrevendo a psiconeurose e distinguindo-a de outros estados

psiquiátricos. Naturalmente, em psiquiatria não existem fronteiras claras entre estados

clínicos, mas a fim de chegar a algum lugar, temos que fingir que existem. A alternativa

principal à psiconeurose é a psicose. Digamos que, na psicose, há um transtorno que

envolve a estrutura da personalidade. Pode-se mostrar que o paciente não se acha

desintegrado, ou irreal, ou fora de contato com seu próprio corpo ou com aquilo que

nós, como observadores, chamamos de realidade externa. Os problemas do psicótico

são desta ordem. Em comparação, na psiconeurose, o paciente existe como uma pessoa,

é uma pessoa total, que reconhece objetos como totais; acha-se bem-alojado em seu

próprio corpo e a capacidade de relacionamentos objetais está bem-estabelecida. Desde

esse ponto de vista, o paciente encontra-se em dificuldades, e estas surgem dos conflitos

que resultam da experiência dos relacionamentos objetais. […] Temos aqui dois

conjuntos de crianças, aquelas cujos estágios mais iniciais do desenvolvimento foram

95

satisfatórios e que tiveram problemas a que damos o nome de psiconeuróticos, e aquelas

cujos estágios mais iniciais de desenvolvimento são incompletas e esta qualidade

domina o quadro clínico. Assim, o importante a respeito da psiconeurose é que ela

constitui um transtorno daquelas crianças que são suficientemente sadias para não serem

psicóticas” (1989vl, pp. 53-54). Ao procurer caracterizar as psicopatologias, ele usa

critérios diferentes dos da psiquiatria como também dos s de Freud e Klein, centrados

na compreensão das R-O impulsionadas pela vida sexual. Winnicott, pensando nos

modos de ser do indivíduo no mundo, considera as seguintes distinções: os que foram

bem cuidados no início e os que não foram; os que amadurecem e os que não,

especialmente quando caracteriza a doença como imaturidade; os que se integraram e se

formaram como pessoas inteiras (os neuróticos),os recém-integrados (os deprimidos) e

os nãointegrados (psicóticos) (1955d, pp. 376-377). Para um estudo comparativo das

diferenças entre neurose e psicose em Winnicott, como ponto de partida para a

compreensão da sua redescrição da nosografia psicanalítica, veja: 1989vl, pp. 53-54, p.

97; 1953a, p. 306; 1956a, p. 393; 1958m, p. 417; 1955d, p. 375; 1963c, p. 197; 1989vk,

p. 94, p. 96; 1960c, p. 41; 1989xa, p. 191.

gg Diz Winnicott: “em algum momento próximo ao nascimento ocorre um grande

despertar, responsável pela diferença perceptível entre um bebê nascido

prematuramente e outro com nascimento pós-maduro. O primeiro ainda não está pronto

para a vida, e o segundo está sujeito a nascer num estado de frustração por ter sido

mantido à espera depois de estar pronto” (1988, p. 39); “A experiência do primeiro

despertar dá ao indivíduo a ideia de que existe um estado de não-estar-vivo cheio de

paz, que poderia ser pacificamente alcançado através de uma regressão extrema” (1988,

p. 154).

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hh A solidão essencial é um pressuposto lógico e existencial, corresponde ao lugar ou

estado de onde tudo começa antes de ter começado, um estado de nãoser de onde

adviria o ser, um estado de nãovida de onde viria a vida, um estado absoluto onde não

há ainda nenhum entorno-do-ser, ao mesmo tempo que ainda não existe um ser ou self

que possa ser acompanhado, daí a expressão solidão essencial. Explicita Winnicott: “No

princípio há uma solidão essencial. Ao mesmo tempo, tal solidão somente pode existir

em condições de dependência máxima. Aqui, neste início, a continuidade do ser do

novo indivíduo é destituída de qualquer conhecimento sobre a existência do ambiente e

do amor dele contido, sendo este o nome que damos (nesse estágio) à adaptação ativa de

uma espécie em dimensões tais, que a continuidade de ser não é perturbada por reações

à intrusão. [...] Com exceção do próprio início, não haverá jamais uma reprodução exata

desta solidão fundamental e inerente. Apesar disso, pela vida afora do indivíduo

continua a haver uma solidão fundamental, inerente e inalterável, ao lado da qual

continua existindo a inconsciência sobre as condições indispensáveis a este estado de

solidão” (1988, pp. 153-154).

ii Winnicott se refere à vida como a condição entre dois estados nãovivos, um antes de

viver e outro depois dele: “A vida da pessoa consiste num intervalo entre dois estados

de não-estar-vivo. O primeiro dos dois, a partir do qual emerge o estar-vivo, dá colorido

às ideias que as pessoas costumam ter sobre o segundo” (1988, p. 154).

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