A cultura popular e suas emergências contemporâneas: o caso do "Tambor de Machadinha"

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10 A cultura popular e suas emergências contemporâneas: o caso do "Tambor de Machadinha" Ricardo Moreno de Melo 1 Resumo Este texto visa discutir a emergência de práticas culturais identificadas com os setores subalternos da sociedade contemporânea a partir de uma pesquisa empírica sobre a prática de uma expressão lítero-musical-coreográfica denominada “Tambor” praticada na cidade de Quissamã no norte do estado do Rio de Janeiro. A pesquisa empírica foi feita em 2006, quando da realização de trabalho de mestrado em Etnomusicologia, e problematiza o retorno da prática acima referida após aproximadamente 35 anos de inatividade. Em torno dessa retomada vão surgir questões tais como memória social, patrimonialização e espetacularização das culturas populares entre outras. Palavras chave: Cultura Popular; Etnomusicologia; Novos Quilombos. Abstract This paper aims to discuss the emergence of cultural practices identified with the subaltern sectors of contemporary society from an empirical research on the practice of a literary- musical-choreographic expression called "Tambor" practiced in the city of Quissamã northern state of Rio de Janeiro. Empirical research was made in 2006 when the completion of the master's thesis in Ethnomusicology and discusses the return of the aforementioned practice after about 35 years of inactivity. Around this recovery will emerge issues such as social memory, and patrimonialization and spectacularization of popular cultures among others. Keywords: Popular culture; Ethnomusicology; New Quilombos. Esse texto visa, a partir de uma pesquisa empírica sobre a prática de uma expressão lítero-musical-coreográfica denominada "Tambor", praticada na cidade de Quissamã no norte do estado do Rio de Janeiro, discutir, ainda que brevemente, a emergência 1 Graduado em Música pela UNIRIO, mestre em Etnomusicologia e doutorando em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Músico, professor do IFRJ e do CBM – Conservatório Brasileiro de Música - Centro Universitário, onde ministra a disciplina Cultura Popular Brasileira. Trabalhou como assistente de pesquisa para o IPHAN no registro do Jongo como patrimônio imaterial brasileiro e integrou a equipe de revisão e atualização do Guia do Folclore Fluminense para o INEPAC/RJ. [email protected]

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A cultura popular e suas emergências contemporâneas:

o caso do "Tambor de Machadinha"

Ricardo Moreno de Melo1

Resumo

Este texto visa discutir a emergência de práticas culturais identificadas com os setores subalternos da sociedade contemporânea a partir de uma pesquisa empírica sobre a prática de uma expressão lítero-musical-coreográfica denominada “Tambor” praticada na cidade de Quissamã no norte do estado do Rio de Janeiro. A pesquisa empírica foi feita em 2006, quando da realização de trabalho de mestrado em Etnomusicologia, e problematiza o retorno da prática acima referida após aproximadamente 35 anos de inatividade. Em torno dessa retomada vão surgir questões tais como memória social, patrimonialização e espetacularização das culturas populares entre outras.

Palavras chave: Cultura Popular; Etnomusicologia; Novos Quilombos.

Abstract

This paper aims to discuss the emergence of cultural practices identified with the subaltern sectors of contemporary society from an empirical research on the practice of a literary-musical-choreographic expression called "Tambor" practiced in the city of Quissamã northern state of Rio de Janeiro. Empirical research was made in 2006 when the completion of the master's thesis in Ethnomusicology and discusses the return of the aforementioned practice after about 35 years of inactivity. Around this recovery will emerge issues such as social memory, and patrimonialization and spectacularization of popular cultures among others.

Keywords: Popular culture; Ethnomusicology; New Quilombos.

Esse texto visa, a partir de uma pesquisa empírica sobre a prática de uma expressão

lítero-musical-coreográfica denominada "Tambor", praticada na cidade de Quissamã no

norte do estado do Rio de Janeiro, discutir, ainda que brevemente, a emergência

1 Graduado em Música pela UNIRIO, mestre em Etnomusicologia e doutorando em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Músico, professor do IFRJ e do CBM – Conservatório Brasileiro de Música - Centro Universitário, onde ministra a disciplina Cultura Popular Brasileira. Trabalhou como assistente de pesquisa para o IPHAN no registro do Jongo como patrimônio imaterial brasileiro e integrou a equipe de revisão e atualização do Guia do Folclore Fluminense para o INEPAC/RJ. [email protected]

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contemporânea de práticas culturais identificadas com os setores subalternos da sociedade.

A pesquisa empírica, cujo título é Tambor de Machadinha: devir e descontinuidade de

uma tradição musical em Quissamã, foi realizada em 2006 quando da elaboração de

trabalho de mestrado em Etnomusicologia. Esta área de estudos situa-se entre a Música e a

Antropologia, e em alguns centros universitários pelo mundo é chamada de Antropologia

da Música. O grupo pesquisado é denominado “Grupo de Jongo2 Tambores de

Machadinha”, e é formado por jovens e por pessoas mais velhas consideradas antigas

conhecedoras dessa prática: os mestres, como via de regra são chamados.

A Fazenda Machadinha, locus principal da pesquisa, está situada na área rural do

município de Quissamã, no norte-fluminense. Esta localidade é composta por 46 casas de

uma antiga senzala; ruínas da antiga casa-grande da fazenda; e uma igreja do início do

século XIX. O objetivo era o de pesquisar a manifestação do "Tambor" ou "Jongo", como

eles também chamam, praticado pelos remanescentes dos antigos escravos ligados à cultura

da cana-de-açúcar naquela localidade. A pesquisa visava entender a relação dessa prática

cultural com a vida social da comunidade.

Em fins de 2004, quando fiz duas visitas à comunidade, o "Tambor" parecia uma

manifestação em estado de declínio confirmando as impressões da antropóloga Maria Laura

Viveiros de Castro Cavalcanti (1987), cuja pesquisa é da década de 1980. Em abril de 2005,

quando iniciei a pesquisa de campo, no entanto, o "Tambor" estava sendo reconfigurado

como um espetáculo e esta retomada não estava ocorrendo de modo convergente, ou

melhor, os interesses dos atores em questão, em torno do movimento do "Tambor"

atendiam a interesses diferenciados, mas os setores envolvidos não dispunham dos mesmos

recursos simbólicos e materiais3. A assimetria gerada pelas posições diferenciadas dos

atores não impedia, no entanto, que “os de baixo” se posicionassem frente aos poderes

hegemônicos. Estava em curso uma negociação em torno do "Tambor", pela constituição

de uma memória.

2 Os termos "Jongo" e "Tambor", segundo me foi informado em Machadinha, foram sempre utilizados como sinônimos. O uso do primeiro, no entanto, passou a ter mais peso nesse momento de retomada da prática em função do reconhecimento do Jongo como patrimônio imaterial brasileiro com sua inclusão no Livro das Formas de Expressão em 2005. 3 Destaco como atores principais desse momento de rearticulação do "Tambor" a Prefeitura de Quissamã através de suas secretarias de cultura e a de turismo, a ONG 3H e a comunidade de Machadinha.

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Este artigo, então, tem o objetivo de refletir sobre um fenômeno já bastante comum

na atualidade que é o reaparecimento de práticas tradicionais no seio das sociedades

contemporâneas. Ver-se-á no decorrer do texto que este fenômeno ocorre em escala

internacional e via de regra está associado a questões tais como patrimonialização das

culturas populares; processos identitários comunitários, regionais ou nacionais; turismo,

entre outras. No caso do Brasil ocorre também o fato de que a reatualização de práticas

culturais de comunidades negras, possibilita às mesmas obter o título de propriedade da

terra na condição de “terras quilombolas”. Na seção seguinte, tratarei de forma descritiva a

prática do "Tambor" e o contexto no qual ele se desenvolve.

O "Tambor de Machadinha" é uma dança de roda realizada no terreiro por homens e

mulheres, sempre à noite4, ao som de dois tambores. Alguns praticantes afirmavam que

os tambores não tinham nomes específicos, eram do mesmo tamanho e o que os

diferenciava era o diâmetro. Para outros, no entanto, o mais largo era chamado de “tambor”

e o de menor diâmetro chamava-se “cundum”. Na ocasião da pesquisa o conjunto de

tamboreiros era formado por três integrantes. Quanto ao calendário, não havia data

específica para fazer a festa do " T ambor", “bastava querer”, como me foi dito. Fazia-se

o círculo, os tamboreiros dentro da roda tocando sentados no tambor5, e entrava um

indivíduo por vez. Os tambores eram confeccionados com “um pau do mato ocado”, que

significa um tronco escavado do qual se fechava uma das extremidades com couro de boi

bem esticado. A madeira utilizada era o "monjolo branco"6 e o instrumento pesava mais ou

menos 20 kg com aproximadamente um metro e vinte centímetros de altura.

O couro era fixado na madeira com o recurso de pregos7. Quando do momento de

sua utilização nas festas do "Tambor", o mesmo era esquentado à beira das fogueiras para se

chegar ao som desejado.

4 Refiro-me a antes do processo de espetacularização, pois esta condiciona a prática aos horários e espaços combinados. 5 Em um livro de um viajante suíço do século XIX, o barão J. T. Tschudi (1954?), às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo, encontra-se uma ilustração cujo título é: “escravos conversando”. O título sugere uma cena prosaica e espontânea – na verdade parece mais que os negros estão posando para uma “fotografia”. Entre os diversos negros retratados encontram-se dois portando tambores na posição descrita por alguns dos participantes do "Tambor de Machadinha". 6 Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss o "monjolo" é uma árvore da família das leguminosas, subfamília mimosóides, nativa do Brasil, cuja ocorrência se dá em diversos estados, entre eles o Rio de Janeiro (HOUAISS, 2001). 7 Artur Ramos identifica essa técnica de preensão do couro na madeira para a confecção do tambor como de procedência da África banto. Em suas pesquisas Ramos registrou vários nomes para esses tambores: ingomo em Pernambuco, ingomba e ainda outros. Acredita que se trata do mesmo ngomba ou angoma que é descrito pelos missionários e viajantes como instrumento do povo Lunda, em Angola. Afirma que, diferentemente, os atabaques de procedência yorubas se valem da utilização de cordas e cunhas para esticar o

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Há na parte da dança do "Tambor de Machadinha" um elemento característico: a

“saca”. Esta é uma espécie de marcação rítmica feita com o corpo pelo bailarino. A

antropóloga e etnomusicóloga Elizabeth Travassos, que colaborou na década de 1980 com

um estudo sobre a fazenda Machadinha, conceitua “saca” como “termo musicológico

local que designa certas marcações rítmicas estruturais, sejam elas executadas com o

corpo ou com instrumentos musicais” (TRAVASSOS, 1986, p.180). Pelo que foi possível

observar, fazendo o cruzamento da leitura rítmica dos toques dos tambores com os

movimentos da dança, a saca corresponde, em alguns tipos de toques, a uma figura de

staccato8 realizada no tambor. A saca também servia para indicar quem estava sendo

convidado para ingressar na roda9.

Outro aspecto da dança, citado por todos os entrevistados da velha geração de

praticantes do Tambor de Machadinha, é um momento de extrema empolgação em que o

dançarino se ajoelha e se espoja no chão, rolando o corpo em várias direções. Rossini

Tavares de Lima, citado por Edison Carneiro (1974), utilizou os termos “visagens” e

“micagens” para se referir a esses movimentos que ele viu nos batuques paulistas. Consta

também, em um livro de José Ramos Tinhorão (1988), o relato de um alemão que, ainda no

século XVII a serviço do governo holandês em Pernambuco, descreve uma cena de dança.

Diz o alemão: “E assim gastam também certos dias santificados, numa dança ininterrupta em

que se sujam tanto de poeira, que às vezes nem se reconhecem uns aos outros”

(TINHORÃO, 1988, p. 30).

Em Machadinha, não há nome específico para esses movimentos. Foi possível,

porém, ver um pouco dessas “micagens” em uma das apresentações do grupo de "Tambor"

em uma apresentação em Quissamã. O Sr. Garaúna, um dos mais antigos participantes do

grupo, foi o protagonista da façanha. Um pouco “alto” pela ação de bebida alcoólica e

empolgado com a apresentação, o Sr. Garaúna, sem prévia combinação com o grupo,

relembrou esses antigos movimentos outrora muito praticados pelos jongueiros. De todo

modo, segundo o próprio Garaúna, ele ainda foi um pouco comedido, não rolando no chão

como se fazia outrora, apenas se ajoelhando diante dos tambores. No dia seguinte o

encontrei em sua casa, e ele confirmou que era assim que se fazia antigamente, e que ele só couro (Ramos, 1979, p. 230). O historiador Robert Slenes acrescenta que ngoma é um “vocábulo quase universal para ‘tambor’ na África bantu” (Slenes, 1999, p.179). 8 O staccato refere-se a um tipo de articulação musical no qual determinadas notas, ou apenas uma de um conjunto frásico sofrem ou recebem um destaque na execução. Através desse recurso a nota fica mais destacada. 9 Segundo Carneiro em muitas manifestações populares de origem afro-brasileira, essa vênia com intenção de fazer alguém adentrar a roda era realizada através da umbigada (Carneiro, 1974).

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não deitou no chão porque estava de roupa branca, mas que no passado eles rolavam

tanto que saíam com as roupas completamente sujas. Ele acrescentou que foi criticado por

isso e lhe pediram para não mais proceder dessa forma. Essa passagem é interessante para se

pensar as novas questões que o processo de espetacularização traz para o grupo no que diz

respeito aos valores de uso e de troca da prática do "Tambor". Pretendo nesse texto discutir

justamente os novos significados e papéis que essas práticas passam a ter e desempenhar

quando de suas emergências contemporâneas.

Culturas populares em transformação

Ruínas

Os estudiosos da cultura popular e do folclore costumam tomar a Europa do século

XVIII como um marco no qual se inicia uma espécie de interesse sistemático em

torno das práticas culturais das camadas subalternas. Esse interesse nasce sob o signo da

perda e do extravio, pois o intenso processo de industrialização e a concomitante

urbanização da sociedade estavam remodelando as relações sociais e concorrendo,

supostamente, para a extinção das práticas culturais das comunidades tradicionais. Mas não

era somente o avanço industrial que concorreria para a extinção dessas práticas, pois desde o

século XVI as ações das religiões cristãs reformadas bem como da contrarreforma católica,

atuavam em uma perspectiva normatizadora no sentido de impedir determinadas práticas

vistas como reminiscências de cultos pagãos.

Como aponta Renato Ortiz, é ainda no século XVI que vão surgir os primeiros

estudos cuja perspectiva era de inventariar as práticas populares com o objetivo explícito de

cerceá-las e impedir seus efeitos identificados como negativos para a construção de uma

verdadeira moral cristã. São obras de clérigos e sacerdotes cujos títulos, tais como

Antiguidades das pessoas comuns ou Observações sobre as antiguidades populares, apontam

para a forma como essas práticas eram percebidas, pois mesmo que elas fossem

contemporâneas dos religiosos que as estudavam, elas eram compreendidas como algo de

outro tempo que permanecia nas sociedades de então como uma espécie de resíduo de antigas

épocas. Foi também por essa perspectiva de negação da coetaneidade às classes subalternas,

em uma operação muito semelhante ao que fez a Antropologia com o “seus nativos” no

momento em que se instituía como disciplina científica (FABIAN, 2013), que o folclore

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como disciplina se desenvolveu na França na segunda metade do século XIX. Esses

estudos tomaram de empréstimo as noções de “sobrevivência” da Antropologia de Edward

Tylor, para justificar a negação da coetaneidade a esta alteridade que – diferentemente dos

distantes nativos da Antropologia evolucionista, que se encontravam em regiões distantes

da Europa –, encontrava-se em seu próprio país. Mas a operação de entender as práticas

populares como sobrevivências de um outro tempo transformava o camponês iletrado da

própria França em um outro estranho e ao seu jeito, um primitivo (BELMONT, 2011).

Mas, ainda antes das operações intelectuais de subalternização acima citadas que

tomaram forma quando da instituição da Antropologia como disciplina, na segunda metade

do século XIX, a ação repressiva dos poderes religiosos de um lado, e as novas formas de

sociabilidade urbanas surgidas no contexto do período pós-revolução industrial vão romper,

como aponta Burke (1989), uma antiga dinâmica na qual os universos culturais dos setores

nobres e letrados se misturavam eventualmente com os universos culturais de tradição oral.

Essa unidade, e é preciso que se utilize esse termo com muito cuidado, vicejou na Europa

durante toda a idade média e início da idade moderna, quando então é gradativamente

rompida e fragmentada. Burke ressalta os riscos de se adotar a partir dessa constatação da

referida unidade uma perspectiva na qual as dimensões conflitivas interclasses sejam

excluídas de modo a sobrar um quadro róseo e harmonioso. Até mesmo o modelo elite

versus povo tem que ser percebido em uma perspectiva mais heurística do que

propriamente real, pois as clivagens e matizações no interior desses dois polos ideais tornam

essas unidades muito mais complexas. De todo modo, no que diz respeito à relação entre a

elite e povo antes da ruptura, ele aponta uma assimetria na qual os setores letrados

tinham acesso às práticas culturais dos setores subalternos e delas tomavam parte, mas, por

outro lado, o inverso não era comum: os setores populares não tinham acesso a determinadas

atividades lúdicas e festivas que eram levadas a cabo pelas camadas letradas. Isso se

devia, possivelmente entre outros fatores, ao fato de que enquanto a transmissão das formas

populares era essencialmente através da oralidade, as formas de transmissão das camadas

superiores ocorriam por meio da escrita.

Ainda no que diz respeito às formas constrangedoras mobilizadas pelos setores

repressivos na Europa moderna com intenções de disciplinamento das camadas

populares, está a origem do livro Histoire des livres populaires10 tal qual nos conta

Michel de Certeau. O historiador francês afirma que este livro, um dos primeiros daquele

10 História dos livros populares.

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país a tratar o tema da cultura popular urbana em Paris, é o resultado das investigações

feitas no século XIX pelo subsecretário do ministério da polícia e também filólogo,

Charles Nisard, cuja incumbência era a de estudar os livros “perniciosos” que circulavam

entre o vulgo exercendo sobre este sua “ação deletéria”. Estes livros que se encontravam na

mira do funcionário da polícia, pertencia a um conjunto muito popular na França do século

XIX denominado littérature de colportage, algo equivalente no Brasil à tradição da

literatura de cordel. O episódio evidencia as tensões através das quais se moveram as

relações entre as culturas populares e os setores hegemônicos na Europa, mas não só neste

continente pois basta que lembremos da trajetória do samba em nosso país no início do

século ou ainda em outras práticas de origem afro-brasileira em períodos anteriores.

Mas assim como na Europa do século XVIII, onde o receio de que as práticas

culturais das camadas mais baixas da população fossem extintas em função das razões

aludidas acima, há, no contexto contemporâneo, mais ou menos a partir do segundo pós-

guerra, o receio de que as indústrias culturais dos países centrais do capitalismo

associado ao fenômeno da globalização provoquem uma espécie de homogeneização

das práticas culturais levando as culturas locais dos países periféricos à ruína. Essa

discussão será melhor desenvolvida nas seções seguintes, mas de antemão adianto que

facilmente percebe-se que essa previsão não se cumpriu, e o reavivamento da prática do

"Tambor" na comunidade de Machadinha, objeto empírico dessas notas, se inscreve em um

grande arco de retomadas das práticas culturais comumente denominadas de

tradicionais, cumprindo nesse recrudescimento uma série de roteiros nos quais ocorrem

a presença de uma variada gama de atores. Cada um desses atores, socialmente

posicionados, joga suas cartas e mobiliza seus poderes agentivos no sentido de ampliar

seus capitais simbólicos e materiais.

O retorno do reprimido

Utilizo ironicamente esta expressão tão cara à psicanálise, por conta dela expressar

de forma direta e clara um processo através do qual as práticas culturais das camadas

subalternas vêm sendo revitalizadas nas sociedades contemporâneas. Este fenômeno tem

grande magnitude e tem sido estudado em vários lugares do mundo. As razões pelas

quais o fenômeno ocorre são as mais diversas, sendo necessário, portanto, o investimento

de pesquisas empíricas que possam iluminar a questão. A própria ideia de situações

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culturais emergentes traz à tona uma questão com a qual a Antropologia contemporânea

tem que se defrontar no seu processo de objetificação das culturas. O antropólogo português

Paulo Raposo analisa com acuidade o fato de a Antropologia ter sofrido o impacto do que

tem sido convencionado chamar de pós-modernidade, em particular no que diz respeito à

crítica às grandes narrativas e especificamente ao fato dela, a Antropologia, ter abandonado

certos “fundamentalismos epistemológicos” tais como trabalhar com a noção de “mundos

em extinção” e passando a abordar reflexivamente os “mundos emergentes” (RAPOSO,

2003). Essa transição apontada por Raposo é relevante na medida em que se tem claro que

não se está trabalhando com mundos em vias de extinção, como pensava a Antropologia

nos moldes malinowskianos, nem com resíduos de tempos passados, como nos moldes

folcloristas ou da própria Antropologia de viés evolucionista. O que propõe Raposo, assim

como outros autores dos quais tratarei em seguida nesta seção, é de indagar os novos papéis

e significados que podem ser percebidos nas práticas culturais entendidas como tradicionais

nos novos cenários nos quais elas passam a ser encenadas.

A análise dos diversos níveis de cultura que circulam nas sociedades industriais

contemporâneas feita pelo antropólogo José Jorge de Carvalho (1992) destaca um elemento

importante para esta análise. Para levar a cabo os cruzamentos entres esses níveis, Carvalho

retorna às formulações elaboradas na virada dos séculos XVIII para o XIX feitas pelos

pensadores Johann G. Herder e Goethe, para os quais a construção de uma humanitas,

ou seja, de um ideal de humanidade culturalmente integrada e desenvolvida, dar-se-ia com

a elaboração feita pelo homem culto a partir dos universos simbólicos provindos da

comunitas, isto é, da cultura pura, autêntica e espontânea da cultura oral camponesa. Estes

autores viam na cultura popular tradicional camponesa e, mais precisamente, na poesia

popular, um tipo de produção coletiva, desindividualizada, expressão dos anseios e desejos

de toda a coletividade. Era uma “poesia da natureza”, tão natural quanto as árvores e as

montanhas. Era tarefa do poeta letrado “promover a elevação moral e intelectual do homem

através da arte” universalizando, através de sua obra, os elementos produzidos no

âmbito do local e do comunitário. Goethe e Schiller, poetas românticos, chegaram a

lamentar o que viam ser a emergência de uma cultura popular urbana veiculada através de

uma indústria cultural em seus começos, por perceberem esta associada a uma tendência a

uma busca exagerada pela novidade. Se na produção comunitária não havia diferenças entre

produtores e consumidores, esta diferença ocorria no âmbito da poesia letrada, mas era

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superada na medida em que o consumidor deteria os códigos necessários para a

decodificação da obra, possibilitando assim a sua fruição integral.

É importante reter dessa perspectiva romântica a ideia de que a produção popular

camponesa situava-se quase fora do campo da cultura, numa espécie de área indefinida entre

esta e a natureza. Essa mesma perspectiva leva esta produção a uma situação de a-

historicidade, sendo algo que se desdobra no tempo idêntica a si mesma, sem se corromper.

Essa perspectiva vai exercer grande influência no pensamento antropológico concorrendo

fortemente, como já referido anteriormente, para aquilo que Johannes Fabian (2013) chamou

de negação da coetaneidade ao “nativo”. O que talvez mais interesse aos propósitos dessa

análise é perceber a necessidade de superação dessa perspectiva romântica, que de certa

forma transita ainda tanto no senso comum quanto em algumas visões de viés folclorista.

Importante, também, é a ideia de comunidade de iguais que, segundo a tradição romântica, a

produção popular expressa. Voltarei a esta ideia quando tratar na última seção, da

manifestação do "Tambor de Machadinha".

Outra inspiração teórica importante para as análises aqui desenvolvidas é a

perspectiva adotada por Nestor G. Canclini (1983) quando de suas reflexões em torno do

papel das culturas populares no capitalismo contemporâneo. Ora, se o avanço da

urbanização e da produção industrializada, inclusive no campo da produção simbólica, era

uma ameaça às práticas culturais como foi percebido ainda no século XVIII

configurando aquilo que criticamente o sociólogo francês Jean-Pierre Warnier (2000)

chamou de “teorias da convergência”11, em uma perspectiva semelhante aos alertas feitos

por Sahlins (1997) e Appadurai (2004), quanto ao que chamaram indigenização da

cultura12, Canclini vai justamente investir em compreender como as práticas indígenas

estavam ganhando novos contornos e significados a partir das inevitáveis fricções entre as

lógicas de produção locais e o mercado capitalista.

Canclini coloca muito claramente em seu ensaio Culturas populares no capitalismo,

cuja ênfase está sobretudo nas festas e nas artesanias indígenas em três cidades mexicanas do

final da década de 1970, que o avanço da industrialização naquele país longe de destruir as

produções artesanais assistiu a um grande crescimento da mesma. Aconteceu o mesmo com

11 Essas teorias reúnem um conjunto de ideias que acreditavam na inevitável homogeneização cultural em nível planetário em função dos processos de “erosão” causados pela gigantesca máquina das indústrias da cultura, quando estas entrassem em contato com as tradições culturais “locais”. 12 Por essa expressão tanto Appadurai quanto Sahlins tentam designar as estratégias dos grupos locais para incorporar ativa e criativamente as práticas alienígenas e usá-las em seus próprios termos .

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relação às festas que, mesmo com todo aparato de entretenimento criado e veiculado pelos

meios midiáticos massivos, transformaram-se e cresceram em número de participantes e

assistentes. Está claro que os significados tanto das artesanias indígenas quanto das festas

vão, a partir de seu ingresso em outro circuito, cumprir um novo papel. O que Canclini tenta

mostrar é que não há evidência empírica de que o modelo de produção capitalista seja

essencialmente contrário e aniquilador de formas tradicionais de produção. Antes, pelo

contrário, a produção artesanal vai cumprir, em um cenário de produção capitalista, um

papel secundário porém importante. Ele destaca alguns aspectos para a ocorrência

“combinada” entre os dois modos de produção: solucionar o desemprego rural,

resultado entre outros fatores de uma nova forma de produção capitalista no campo; as

necessidades contraditórias do consumo, que uma vez estandardizada pela produção em

série que a torna monótona, precisa de uma “ressignificação publicitária dos objetos”; o

turismo, com seu fascínio pela nostalgia das realidades sociais “autênticas”; e as políticas

públicas estatais, com vistas à construção de uma memória nacional ou local. Acrescento

que mais recentemente no Brasil no âmbito das políticas públicas tem-se a questão da

patrimonialização das culturas populares e mesmo alguns dispositivos constitucionais que

garantem a titulação da terra para comunidades negras que comprovem que algumas práticas

culturais mantidas guardam relação com a memória étnica da comunidade.

Todos estes itens mencionados por Canclini apareceram, em maior ou menor

grau, no processo de reemergência da prática do "Tambor de Machadinha". Como

argumentou Paulo Raposo, citado no início dessa subseção, não se trata de lidar com

“mundos em vias de extinção”, ou com resíduos de outras épocas, contribuindo assim com a

perspectiva de ver as práticas culturais das camadas subalternas como fora da História, como

numa certa mirada folclorizante. Essas práticas culturais são encenadas e realizadas por

grupos sociais dentro de determinadas contingências históricas e sociais e dessa forma

mobilizam seus poderes agentivos com vistas à obtenção de ganhos simbólicos e

materiais nos limites das condições de suas possibilidades. As tramas que se armam em

torno desses processos de reemergência são sempre complexas e multifacetadas.

Na próxima seção tentarei apresentar o caso da rearticulação da prática do "Tambor"

em Machadinha, cruzando minhas análises e observações com as teorizações dos autores

mencionados nesta seção.

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Culturas populares em transformação: o caso do Tambor de Machadinha”

Quando fiz minhas primeiras viagens à fazenda Machadinha, ainda como

investimento exploratório procurando saber qual o caminho que deveria seguir no trabalho

de pesquisa, tive a impressão de que faria um trabalho sobre memória, pois o "Tambor" já

não era uma prática regular na comunidade. A intenção, portanto, era registrar os cantos que

estivessem na memória dos moradores mais antigos. Qual não foi minha surpresa quando,

alguns meses depois de meu primeiro contato, em uma segunda viagem à fazenda

Machadinha, tive a notícia de que estava ocorrendo um processo de ressurgimento do

"Tambor", a partir da iniciativa da ONG 3H, em parceria com alguns dos mais antigos

membros da comunidade que eram conhecedores da prática. Situei esse ressurgimento

dentro de um amplo arco de rearticulação de práticas culturais populares. A retomada das

atividades do "Tambor" estava, portanto, se dando dentro de um conjunto mais amplo de

reemergências culturais e dentro de uma nova configuração atendendo a novas expectativas.

O "Tambor" estava sendo reconfigurado como um espetáculo (valor de troca) e,

dessa forma, deixaria de ser apenas uma prática lúdico-recreativa como foi no passado

(valor de uso). A sua retomada atenderia a necessidades diversas: geração de renda para os

moradores da comunidade de Machadinha, uma vez que as apresentações renderiam cachês

aos integrantes; constituição de uma memória identitária para a cidade de Quissamã, em seu

novo momento de modernização; e de constituição de um “capital cultural” para a

comunidade, na sua afirmação e reconhecimento como território quilombola. O

reconhecimento da comunidade como quilombo trazia implicações bem concretas tais como

a obtenção da posse legal das terras, conforme preconiza a Constituição Brasileira, no artigo

68 do ADCT13, incluído no texto constitucional de 1988, ou mais recentemente o Decreto-

lei 4.88714, de 20 de novembro de 2003. Saliento, no entanto, que a distinção entre valor de

uso e de troca precisa ser melhor observada e é usada aqui grosso modo precisando de

um maior refinamento que dê conta da complexidade que ela encerra. De todo modo,

acredito que mesmo sofrendo a transformação no sentido de virar um espetáculo não se

possa afirmar simplesmente que ela é apenas isso. Percebi em diversas situações de

13 Este decreto regulamenta os procedimentos administrativos necessários, para que se implemente a identificação, reconhecimento, delimitação e demarcação das terras, com vistas à titulação das mesmas, que venham a ser reconhecidas pelo Estado como terras de remanescentes das comunidades de quilombo. 14 Esse decreto regulamenta o procedimento para reconhecimento, identificação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos da qual trata o artigo 68 do ADCT.

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apresentação ou mesmo de ensaio, ou mais ainda durante as entrevistas, o orgulho dos

componentes do grupo e de como a memória da prática em tempos passados vinha

carregada de emoções e sentimentos diversos.

O modo espetáculo de realização do "Tambor" pressupunha algumas transformações

quando comparado aos modos antigos da prática. A primeira delas que chama a

atenção é a perda do formato de roda, tão comum nas práticas de dança e música de

tradição afro-brasileira. O novo momento, em função da presença da plateia, exigia que a

antiga roda se transformasse em semicírculo, de modo que os integrantes ficassem de frente

para quem estivesse assistindo. Essa situação me parece bastante emblemática quando se

tem em mente aquela antiga definição de Goethe para o carnaval romano que ele viu em

sua juventude: “o carnaval romano não é uma festa que se dá ao povo, mas que o próprio

povo se dá a si mesmo” (GOETHE apud CARVALHO, 1992, p. 28).

A presença do público também pressupunha a alteração no que diz respeito à

duração das cantigas cantadas durante a prática. Como se trata de letras muito curtas,

geralmente uma quadra poética ou um dístico, as cantigas ficavam, no passado, repetindo

por muito tempo enquanto todos os presentes na roda iam tomando parte na dança.

Mas agora, considerando que existe uma audiência, convencionou-se a redução de cada

peça ao tempo médio de três minutos e meio, que é, por sua vez, o tempo de duração de uma

canção, que é o tempo ao qual a plateia já está habituada. Essa questão do tempo aqui tratada

pode ser entendida com maior profundidade quando se tem em mente as teorizações de

David Harvey sobre as relações espaciotemporais e suas derivações dos processos sociais

nos quais estão envolvidos. O tempo da festa pressupõe um determinado uso do tempo que

difere do tempo do espetáculo. Na festa, outros fatores entram em pauta como, por exemplo,

o nível de excitação e alegria em um determinado momento em que a cantiga é cantada,

fatores que podem encurtar ou alongar a sua execução. O tempo do espetáculo é o

tempo do controle racional e da medida previsível, é o tempo do relógio. Em uma

análise mais arrojada poder-se-ia dizer que o primeiro é o tempo cósmico, enquanto o

segundo é o tempo do capital.

Ainda no que diz respeito à espetacularização da prática do "Tambor", há uma

ocorrência que também pode ser útil para as reflexões aqui produzidas. A passagem à qual

me refiro, e que já foi mencionada anteriormente, diz respeito ao Sr. Manuel Garaúna, um

dos integrantes mais velhos do grupo e um dos poucos que ainda improvisava e compunha

novas cantigas. Sua presença era considerada como importante tanto porque era um dos mais

22

velhos do grupo quanto por ter a habilidade e criatividade composicional. Mas, não obstante

essa importância por todos reconhecida, havia uma questão delicada: Sr. Garaúna, talvez

pela importância que tinha no grupo, ou talvez por sua personalidade idiossincrática,

costumava desrespeitar as convenções estabelecidas no programa do espetáculo. Uma das

vezes que pude assistir à apresentação do grupo, o Sr. Garaúna tomou a iniciativa de deitar

no chão e se ajoelhar à frente dos tambores. Ele foi bastante censurado por isso e alguns até

vincularam essas iniciativas ao fato de ele costumar ingerir bebida alcoólica antes das

apresentações. Indagado por mim quais as razões que o levaram a proceder daquela forma,

ele disse que esse modo de “brincar” sempre fora comum, e que no passado durante a dança

muitos dançadores agiam dessa forma. De fato, como apontado na seção anterior de

apresentação do "Tambor de Machadinha", existe na literatura especializada, já citada

anteriormente, confirmação de tal procedimento, mas o que chama a atenção e que interessa

a esta análise, é o fato de que essa passagem evidencia uma tensão na adequação entre os

dois mundos, o da festa e o do espetáculo. O segundo exige autocontrole por parte dos

integrantes do grupo de modo a se adequarem à lógica do espetáculo o qual possui espaço e

tempo racionalizados. O primeiro, pressupõe a espontaneidade, a memória da festa e a vazão

dos desejos sem os arranjos cênicos do espetáculo e a racionalização exigidas no segundo.

Na dissertação na qual investiguei a reemergência da prática do "Tambor”, em

Machadinha, eu introduzi uma seção na qual indagava a quem interessava este

ressurgimento. A intenção era problematizar as relações entre os diversos atores que

compunham a cena de modo a tornar clara as clivagens e os elementos conflitivos e de

negociação em torno do fenômeno. No que diz respeito aos interesses dos poderes públicos

representados na esfera governamental mais próxima, a prefeitura, através da secretaria de

cultura, havia em curso uma perspectiva que me parece interessante observar principalmente

quando vista da ótica da análise feita pelo antropólogo José Reginaldo Gonçalves (2002),

quando este analisa a constituição do patrimônio brasileiro à luz da teoria do símbolo do

psicanalista Jacques Lacan15

. Nessa perspectiva, determinados objetos na condição de

significantes vão operar no sentido de representar o mundo com o qual eles guardam uma

relação muito estreita. Acontece que a relação significante-significado dentro da “estrutura

do desejo”, tal qual teorizada por Lacan, buscará a tarefa impossível de transcender a

15 A análise de Gonçalves foi desenvolvida a partir das observações da professora Susan Stewart sobre o papel de certos objetos nas narrativas que se prestam a representações do mundo: relíquias, coleções, acervos, miniaturas, souvenirs, etc. que representam determinadas experiências de mundo e informam sobre as qualidades desse mundo.

23

distância entre a representação e experiência fundido-as num todo imaginário. É nesse

sentido que um objeto etnográfico exposto em um museu pode cumprir o papel de ser, em

sua singular materialidade, a própria totalidade da cultura que representa em uma

objetificação que dá corpo à identificação ilusória entre a realidade desejada e o símbolo

que lhe representa.

Nas narrativas produzidas pela Secretaria de Cultura, a prática do "Tambor" é

apresentada como patrimônio cultural da cidade de Quissamã, em uma perspectiva que

oblitera as clivagens históricas e mesmo as inserções sociais contemporâneas do grupo que

efetivamente põe em cena a prática do "Tambor". A busca de transformar esta prática em

um recurso para o estímulo do turismo cultural, como anunciado claramente pelos órgãos

de promoção cultural da prefeitura, faz com que a prática do "Tambor", historicamente

identificada com uma comunidade de descendentes dos antigos escravos da cidade, seja vista

como um patrimônio comum à cidade e representativa da totalidade cultural do município de

modo que as clivagens e diferenças, históricas e contemporâneas sejam, ainda que no

domínio simbólico, ocultadas. Esse ocultamento das diferenças ocorre muito

sintomaticamente em um monumento em “homenagem” ao negro em Quissamã, que se

encontra em uma das saídas da cidade que justamente dá acesso à fazenda Machadinha.

O monumento apresenta um negro sem camisa, sem calçado e com uma calça curta

típica das gravuras que representam o negro escravo brasileiro. Nas mãos ele carrega uma

picareta, ou seja, o negro reduzido a sua dimensão utilitária, reificado como peça de uma

engrenagem produtiva. O texto que aparece logo abaixo da imagem nos informa da

intenção de reconhecer a importância do negro na formação da cidade. Diz o texto:

“homenagem pela contribuição e participação do negro na formação da raça, riqueza,

história, religião e cultura de Quissamã”. O texto acaba por se constituir em uma peça

eloquente da tentativa de escamotear os conflitos inerentes ao período da escravidão. Esta

não é mencionada e as contradições e interesses diversos ocultam-se através das palavras

“contribuição” e “participação” do negro na “formação da raça, riqueza, história, religião e

cultura” de Quissamã. Ora, “contribuição” e “participação”, termos cujo campo semântico

nos remete ao que é feito de forma voluntária ou espontânea, soam aqui como verdadeiros

eufemismos que elidem, ou tentam elidir, as relações de força implícitas no sistema

escravocrata. É possível ver nessa passagem o que Bourdieu (2005) chamou de

“eufemização” ou “dissimulação” discursiva que visa à construção de uma representação –

no caso, do negro. É possível também lembrar a assertiva de Le Goff, (1996) quando

24

pensa um monumento na sua dimensão “enganadora”, quer dizer, portadora de uma

intencionalidade, mas que se pretende neutra, isenta de interesses ideológicos. Ele concluía

afirmando que era “preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar

esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos” (Le

Goff, 1996, p.548).

Voltando especificamente ao caso da prática do "Tambor", esta é vista e expressa nos

discursos oficiais da cidade como um patrimônio comum do município que, simbolicamente,

tem o poder de evocar toda uma totalidade cultural num processo de “identificação ilusória”

fazendo dela uma herança cultural de todos, ao mesmo tempo em que expressa o conjunto

social como uma comunidade de iguais. Muito sintomática dessas tensões foi a ocorrência

de uma história contada pelo Sr. Manuel Garaúna, quando este me relatou em tom de

brincadeira um acontecimento no qual ele cantou para o prefeito da cidade, um antigo

canto que faz menção às tensões étnicas entre brancos e negros no período colonial, mas

que ali tomava forma e significados atualizados. Sr. Garaúna contou que mais de uma vez

cantou para o prefeito da ocasião, Sr. Armando Carneiro, homem branco de olhos claros

e pertencente a uma família importante na localidade desde o período colonial, um

canto16 no qual um certo trecho dizia: “samba nego / branco não vem cá / e se vier, pau vai

levar”. Segundo Sr. Garaúna, o prefeito sorria e dizia que o Garaúna estava “mexendo” com

ele. Tudo ficava por conta de uma brincadeira sem maiores desdobramentos, mas é

possível ver no episódio, ecos das tensões que longe de estarem superadas reaparecem, ainda

que em tom jocoso e amistoso, no momento em que a cidade tenta constituir uma memória e

a prática do "Tambor" joga um papel importante.

Neste ponto da análise gostaria de introduzir os aspectos referentes à participação da

prática do "Tambor" na constituição de um “capital cultural” para a comunidade, na sua

afirmação e reconhecimento como comunidade quilombola. No momento em que os grupos

rurais negros vislumbram no horizonte a possibilidade de conquistas de direitos e que

gradativamente eles vão tomando consciência dos mesmos, inicia-se um processo de

recuperação da memória e agenciamentos de elementos que lhes deem especificidade. Por

este viés explicativo é fácil entender o papel do "Tambor" nesse cenário de disputas

fundiárias que começava a ocorrer em Machadinha. A comunidade apresentava naquele

16 O texto da canção na íntegra é: “samba 'nego' / branco não vem cá / e se vier, pau vai levá / olha, esse 'nego' é meu, olha lá / bota mão nesse 'nego' devagar / tiririca, faca de cortar / e não me mata 'nego' de sinhá / olha, esse 'nego' é meu, olha lá / bota mão nesse 'nego' devagar”.

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momento um estado muito incipiente de entendimento desses direitos, mas a partir de

determinadas falas já era possível captar a compreensão da importância da prática do

"Tambor" naquela luta. Em minha última viagem à comunidade, estive com Cheiro17 , uma

das colaboradoras da pesquisa e participante muito influente do grupo, que, ainda que

pronunciando errado a palavra, me disse que sabia que ali eles eram todos “quilebela”.

Disse-me que em uma das reuniões com membros do SEPPIR18 já tinham dito a ela que

era importante continuar com o movimento do "Tambor". Nesse momento o grupo já

estava há quase dois meses sem se apresentar, mas com a veemência que a caracterizava,

ela disse que o "Tambor" iria para frente de qualquer jeito. Com ou sem as pessoas que na

ocasião ajudavam a organizar o grupo, “porque isso é uma coisa nossa e a gente tem que

manter”.

Ainda que não exclusivamente, o movimento de ressurgimento do "Tambor de

Machadinha" interessa, pelo lado dos moradores da comunidade, como item do passado do

grupo que está sendo mobilizado em um legítimo processo de invenção de uma tradição

(HOBSBAWM e RANGER, 1997), mas que não pode ser confundido com uma

estratégia falsa ou enganadora. Ele é invenção na medida em que toda comunidade é uma

“comunidade imaginada” (ANDERSEN, 2008) que, para se constituir, lança mão de

determinados itens que circunstancialmente lhe interessam, selecionando-os do fluxo do

tempo passado. A descontinuidade da prática do Tambor, o hiato temporal que ele sofreu

fez com que ele ressurgisse dentro de uma outra lógica e atendendo a outras expectativas. E

não poderia ser diferente. Essa ocorrência faz parte da dispersão que os objetos sofrem em

seu devir histórico. É possível perceber que veio a ocorrer neste novo contexto no qual a

prática é encenada, a transformação do "Tambor" no sentido de ter seu valor infletido de

valor de uso para valor de troca.

Práticas semelhantes ao "Tambor", como os batuques, samba rural paulista, coco,

etc., eram práticas lúdico-recreativas ligadas aos contextos das festas que as comunidades

“davam a si mesmas”. Elas não eram espetáculos. Elas eram “usadas” nos momentos de

recreação da comunidade.

17 O nome de batismo de Cheiro é Guilhermina e veio a falecer alguns anos após a pesquisa, em 2010. 18 Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Órgão federal que entre outras atividades atua no sentido de estabelecer iniciativas contra as desigualdades raciais no País (SEPPIR, 2006).

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Uma ocorrência que se deu no campo, um tanto por acaso, pode ser ilustrativa: certo

dia em que fiquei preso em Machadinha por conta de uma chuva que impedia minha

saída de lá, foi possível ver a comunidade se organizando para um evento festivo no qual

não havia nenhuma presença externa, a não ser a minha. Era um evento comum de fim de

semana, de intensa vivência comunitária, no qual todos se mobilizavam: as mulheres

preparavam a comida os homens arrumavam o salão e faziam o churrasco. Era realmente um

momento de relaxamento e descontração. A música que embalava a dança nesse momento

era o “forró”, projetado mecanicamente através de cd’s de grupos tais como: “Mastruz com

leite”, “Calcinha preta” e outros. Nesses momentos, não se dança mais o "Tambor". Isso

não implica que as pessoas vinculadas ao "Tambor" não tenham prazer em dançá-lo e

que a ele esteja reservado apenas um papel de representação. O jovem Renato, na ocasião

com quinze anos, e que participava como tamboreiro do grupo, exemplifica bem isso. Ele

afirmava apreciar muito o funk, mas que também gostava tanto do "Tambor" que tocaria

mesmo que não fosse remunerado. Na ocasião da pesquisa fiquei sabendo de uma

mobilização das crianças de Machadinha para a constituição de um grupo de "Tambor"

mirim. Isso sem dúvida atesta o envolvimento, inclusive dos mais jovens, na prática do

"Tambor", mas o que quero salientar é o seu novo lugar nos “usos” da comunidade. O seu

peso maior parece estar na sua nova condição de espetáculo, cumprindo os vários papéis que

apontei acima.

A encenação do "Tambor" como espetáculo traz consigo diversas

transformações. E para resumi-las listarei algumas que foi possível detectar: 1) As letras

não são mais improvisadas, e quase nem são mais compostas, sendo o repertório atual

estruturado com cantigas que estão na memória do grupo; 2) há atualmente um figurino

específico para a sua prática; 3) em vez de um dançarino no meio da roda, agora são dois; 4)

os praticantes são remunerados para dançar; 5) os tamboreiros tocavam sentados em seus

tambores, agora tocam sentados em cadeiras com os instrumentos à sua frente; 6) os passos

da dança sofreram algumas modificações, possivelmente a partir das sugestões do grupo

Brasil Mestiço19; 7) a duração dos pontos podia chegar até uma hora. Atualmente, eles

duram aproximadamente de dois a quatro minutos; 8) participação de crianças no grupo

atual.

19 A Associação Brasil Mestiço é uma ONG que atua na área de pesquisa da cultura popular e que na ocasião era contratada da ONG 3H para ajudar na formatação do "Tambor" como espetáculo.

27

Ao tempo da pesquisa dos anos 1980 se ouviam cantigas de "Tambor" que

tematizavam a decadência do mesmo, tais como:

Tambor de Machadinha já foi muito bão Depois da poeira não presta mais não. Eu fui em Machadinha Não achei tambor Tambor não tem Em fui em Mandiqüera Não achei tambor Tambor não tem Tornei a voltar Não achei Tambor Tambor não tem Após a perspectiva de ressurgimento da prática, o grupo orgulhosamente passou a

cantar no início das apresentações, em um diálogo entre Cheiro e Sr. Garaúna, o canto:

Tambor morre Oi não morre não É por Nossa Senhora Da Conceição.

Aqui peço licença para um pequeno devaneio. Nossa Senhora da Conceição, a quem

a letra do canto faz menção, é uma das tantas variantes da mãe de Jesus, cuja especialidade é

a de auxiliar os partos difíceis. Talvez seja possível imaginar que o eco dos tambores chegou

às alturas, sensibilizou a Mãe Altíssima e dessa forma o "Tambor" ressurge. Ressurge na

memória de Cheiro, na irreverência do Sr. Garaúna, nas mãos de Cici20, no canto do Sr.

Gílson e na consciência dos jovens Leandro e Renato.

Conclusão

Através desse texto procurei discutir o fenômeno da ressurgência das práticas

tradicionais populares que ocorrem na contemporaneidade tomando como base empírica

uma prática lítero-musical-coreográfica realizada em uma comunidade rural da cidade de

Quissamã, a fazenda Machadinha. Esta prática é denominada "Tambor" e sua retomada foi

20 O nome de Cici era Valdecir dos Santos, e era tamboreiro do grupo. Veio a falecer alguns anos após a pesquisa.

28

levada a cabo por moradores da comunidade de Machadinha, contando com adolescentes,

jovens e pessoas mais velhas, em associação com a ONG 3H e com apoio também dos

poderes municipais locais, principalmente a Secretaria de Cultura.

Na retomada dessas práticas, que tem sido observada em muitas cidades brasileiras

e mesmo em outros países, onde tem ocorrido por razões diferentes, é possível perceber que

determinados temas são recorrentes nesse fenômeno. Questões tais como criação de

identidades locais, patrimonialização das práticas culturais populares, iniciativas com vistas

à geração de renda para as comunidades detentoras das práticas são recorrentes nos

discursos que circulam entre os atores desse fenômeno. No caso do "Tambor de

Machadinha" a prática do "Tambor" estava sendo, no momento da minha pesquisa,

reconfigurada na forma de espetáculo e, dessa forma, deixaria de ser uma prática

lúdico-recreativa como foi no passado. A sua retomada atenderia a necessidades diversas:

geração de renda para os moradores da comunidade de Machadinha; constituição de uma

memória identitária para a cidade de Quissamã, em seu novo momento de modernização, e

de “capital cultural” para a comunidade, na sua afirmação e reconhecimento como

comunidade quilombola. O reconhecimento da comunidade como quilombo traz implicações

bem concretas tais como a obtenção da posse legal das terras, conforme preconiza a

Constituição Brasileira, no artigo 68 do ADCT, incluído no texto constitucional de 1988, ou

mais recentemente o Decreto-lei 4.8871, de 20 de novembro de 2003. Só recentemente tomei

conhecimento de que o pleito de reconhecimento da fazenda Machadinha como quilombo

veio a ter êxito estando hoje a comunidade reconhecida como tal. Naturalmente que o

reconhecimento não resolve todos os problemas e nem deve ser visto como um fim em si.

Novas lideranças jovens locais despontam e tentam se mobilizar para que a comunidade

venha a ser atendida em outros pleitos nas áreas de lazer, educação e saúde.

Para refletir sobre o fenômeno da rearticulação do Tambor em Machadinha procurei

me afastar da ideia de “tradição” como sinônimo de pureza, continuidade, permanência ou

sobrevivência. Minha visão foi, ao contrário, solidária a uma perspectiva que contemplasse

a ideia de negociação, descontinuidade e devir, percebendo no fenômeno elementos

contemporâneos que lhe dão sentido e significado.

O "Tambor" renasce, mas não é mais o "Tambor" de outrora, e nem poderia ser.

Agora cumpre um novo papel. Junto com ele emerge uma série de questões pertinentes à

contemporaneidade, pois os fazeres culturais, em sua concretude – ainda que simbólica

–, não estão fora da História. Ao contrário, imbricam-se com esta e compõem a sua própria

29

carne. Achegam-se às crianças e, em suas vozes ainda inseguras de pequenos cantores, assim

como em seus corpos de pequenos bailarinos, materializa-se a continuidade descontínua de

uma tradição que em seu devir, se reinventa.

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