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A cultura popular e suas emergências contemporâneas:
o caso do "Tambor de Machadinha"
Ricardo Moreno de Melo1
Resumo
Este texto visa discutir a emergência de práticas culturais identificadas com os setores subalternos da sociedade contemporânea a partir de uma pesquisa empírica sobre a prática de uma expressão lítero-musical-coreográfica denominada “Tambor” praticada na cidade de Quissamã no norte do estado do Rio de Janeiro. A pesquisa empírica foi feita em 2006, quando da realização de trabalho de mestrado em Etnomusicologia, e problematiza o retorno da prática acima referida após aproximadamente 35 anos de inatividade. Em torno dessa retomada vão surgir questões tais como memória social, patrimonialização e espetacularização das culturas populares entre outras.
Palavras chave: Cultura Popular; Etnomusicologia; Novos Quilombos.
Abstract
This paper aims to discuss the emergence of cultural practices identified with the subaltern sectors of contemporary society from an empirical research on the practice of a literary-musical-choreographic expression called "Tambor" practiced in the city of Quissamã northern state of Rio de Janeiro. Empirical research was made in 2006 when the completion of the master's thesis in Ethnomusicology and discusses the return of the aforementioned practice after about 35 years of inactivity. Around this recovery will emerge issues such as social memory, and patrimonialization and spectacularization of popular cultures among others.
Keywords: Popular culture; Ethnomusicology; New Quilombos.
Esse texto visa, a partir de uma pesquisa empírica sobre a prática de uma expressão
lítero-musical-coreográfica denominada "Tambor", praticada na cidade de Quissamã no
norte do estado do Rio de Janeiro, discutir, ainda que brevemente, a emergência
1 Graduado em Música pela UNIRIO, mestre em Etnomusicologia e doutorando em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Músico, professor do IFRJ e do CBM – Conservatório Brasileiro de Música - Centro Universitário, onde ministra a disciplina Cultura Popular Brasileira. Trabalhou como assistente de pesquisa para o IPHAN no registro do Jongo como patrimônio imaterial brasileiro e integrou a equipe de revisão e atualização do Guia do Folclore Fluminense para o INEPAC/RJ. [email protected]
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contemporânea de práticas culturais identificadas com os setores subalternos da sociedade.
A pesquisa empírica, cujo título é Tambor de Machadinha: devir e descontinuidade de
uma tradição musical em Quissamã, foi realizada em 2006 quando da elaboração de
trabalho de mestrado em Etnomusicologia. Esta área de estudos situa-se entre a Música e a
Antropologia, e em alguns centros universitários pelo mundo é chamada de Antropologia
da Música. O grupo pesquisado é denominado “Grupo de Jongo2 Tambores de
Machadinha”, e é formado por jovens e por pessoas mais velhas consideradas antigas
conhecedoras dessa prática: os mestres, como via de regra são chamados.
A Fazenda Machadinha, locus principal da pesquisa, está situada na área rural do
município de Quissamã, no norte-fluminense. Esta localidade é composta por 46 casas de
uma antiga senzala; ruínas da antiga casa-grande da fazenda; e uma igreja do início do
século XIX. O objetivo era o de pesquisar a manifestação do "Tambor" ou "Jongo", como
eles também chamam, praticado pelos remanescentes dos antigos escravos ligados à cultura
da cana-de-açúcar naquela localidade. A pesquisa visava entender a relação dessa prática
cultural com a vida social da comunidade.
Em fins de 2004, quando fiz duas visitas à comunidade, o "Tambor" parecia uma
manifestação em estado de declínio confirmando as impressões da antropóloga Maria Laura
Viveiros de Castro Cavalcanti (1987), cuja pesquisa é da década de 1980. Em abril de 2005,
quando iniciei a pesquisa de campo, no entanto, o "Tambor" estava sendo reconfigurado
como um espetáculo e esta retomada não estava ocorrendo de modo convergente, ou
melhor, os interesses dos atores em questão, em torno do movimento do "Tambor"
atendiam a interesses diferenciados, mas os setores envolvidos não dispunham dos mesmos
recursos simbólicos e materiais3. A assimetria gerada pelas posições diferenciadas dos
atores não impedia, no entanto, que “os de baixo” se posicionassem frente aos poderes
hegemônicos. Estava em curso uma negociação em torno do "Tambor", pela constituição
de uma memória.
2 Os termos "Jongo" e "Tambor", segundo me foi informado em Machadinha, foram sempre utilizados como sinônimos. O uso do primeiro, no entanto, passou a ter mais peso nesse momento de retomada da prática em função do reconhecimento do Jongo como patrimônio imaterial brasileiro com sua inclusão no Livro das Formas de Expressão em 2005. 3 Destaco como atores principais desse momento de rearticulação do "Tambor" a Prefeitura de Quissamã através de suas secretarias de cultura e a de turismo, a ONG 3H e a comunidade de Machadinha.
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Este artigo, então, tem o objetivo de refletir sobre um fenômeno já bastante comum
na atualidade que é o reaparecimento de práticas tradicionais no seio das sociedades
contemporâneas. Ver-se-á no decorrer do texto que este fenômeno ocorre em escala
internacional e via de regra está associado a questões tais como patrimonialização das
culturas populares; processos identitários comunitários, regionais ou nacionais; turismo,
entre outras. No caso do Brasil ocorre também o fato de que a reatualização de práticas
culturais de comunidades negras, possibilita às mesmas obter o título de propriedade da
terra na condição de “terras quilombolas”. Na seção seguinte, tratarei de forma descritiva a
prática do "Tambor" e o contexto no qual ele se desenvolve.
O "Tambor de Machadinha" é uma dança de roda realizada no terreiro por homens e
mulheres, sempre à noite4, ao som de dois tambores. Alguns praticantes afirmavam que
os tambores não tinham nomes específicos, eram do mesmo tamanho e o que os
diferenciava era o diâmetro. Para outros, no entanto, o mais largo era chamado de “tambor”
e o de menor diâmetro chamava-se “cundum”. Na ocasião da pesquisa o conjunto de
tamboreiros era formado por três integrantes. Quanto ao calendário, não havia data
específica para fazer a festa do " T ambor", “bastava querer”, como me foi dito. Fazia-se
o círculo, os tamboreiros dentro da roda tocando sentados no tambor5, e entrava um
indivíduo por vez. Os tambores eram confeccionados com “um pau do mato ocado”, que
significa um tronco escavado do qual se fechava uma das extremidades com couro de boi
bem esticado. A madeira utilizada era o "monjolo branco"6 e o instrumento pesava mais ou
menos 20 kg com aproximadamente um metro e vinte centímetros de altura.
O couro era fixado na madeira com o recurso de pregos7. Quando do momento de
sua utilização nas festas do "Tambor", o mesmo era esquentado à beira das fogueiras para se
chegar ao som desejado.
4 Refiro-me a antes do processo de espetacularização, pois esta condiciona a prática aos horários e espaços combinados. 5 Em um livro de um viajante suíço do século XIX, o barão J. T. Tschudi (1954?), às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo, encontra-se uma ilustração cujo título é: “escravos conversando”. O título sugere uma cena prosaica e espontânea – na verdade parece mais que os negros estão posando para uma “fotografia”. Entre os diversos negros retratados encontram-se dois portando tambores na posição descrita por alguns dos participantes do "Tambor de Machadinha". 6 Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss o "monjolo" é uma árvore da família das leguminosas, subfamília mimosóides, nativa do Brasil, cuja ocorrência se dá em diversos estados, entre eles o Rio de Janeiro (HOUAISS, 2001). 7 Artur Ramos identifica essa técnica de preensão do couro na madeira para a confecção do tambor como de procedência da África banto. Em suas pesquisas Ramos registrou vários nomes para esses tambores: ingomo em Pernambuco, ingomba e ainda outros. Acredita que se trata do mesmo ngomba ou angoma que é descrito pelos missionários e viajantes como instrumento do povo Lunda, em Angola. Afirma que, diferentemente, os atabaques de procedência yorubas se valem da utilização de cordas e cunhas para esticar o
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Há na parte da dança do "Tambor de Machadinha" um elemento característico: a
“saca”. Esta é uma espécie de marcação rítmica feita com o corpo pelo bailarino. A
antropóloga e etnomusicóloga Elizabeth Travassos, que colaborou na década de 1980 com
um estudo sobre a fazenda Machadinha, conceitua “saca” como “termo musicológico
local que designa certas marcações rítmicas estruturais, sejam elas executadas com o
corpo ou com instrumentos musicais” (TRAVASSOS, 1986, p.180). Pelo que foi possível
observar, fazendo o cruzamento da leitura rítmica dos toques dos tambores com os
movimentos da dança, a saca corresponde, em alguns tipos de toques, a uma figura de
staccato8 realizada no tambor. A saca também servia para indicar quem estava sendo
convidado para ingressar na roda9.
Outro aspecto da dança, citado por todos os entrevistados da velha geração de
praticantes do Tambor de Machadinha, é um momento de extrema empolgação em que o
dançarino se ajoelha e se espoja no chão, rolando o corpo em várias direções. Rossini
Tavares de Lima, citado por Edison Carneiro (1974), utilizou os termos “visagens” e
“micagens” para se referir a esses movimentos que ele viu nos batuques paulistas. Consta
também, em um livro de José Ramos Tinhorão (1988), o relato de um alemão que, ainda no
século XVII a serviço do governo holandês em Pernambuco, descreve uma cena de dança.
Diz o alemão: “E assim gastam também certos dias santificados, numa dança ininterrupta em
que se sujam tanto de poeira, que às vezes nem se reconhecem uns aos outros”
(TINHORÃO, 1988, p. 30).
Em Machadinha, não há nome específico para esses movimentos. Foi possível,
porém, ver um pouco dessas “micagens” em uma das apresentações do grupo de "Tambor"
em uma apresentação em Quissamã. O Sr. Garaúna, um dos mais antigos participantes do
grupo, foi o protagonista da façanha. Um pouco “alto” pela ação de bebida alcoólica e
empolgado com a apresentação, o Sr. Garaúna, sem prévia combinação com o grupo,
relembrou esses antigos movimentos outrora muito praticados pelos jongueiros. De todo
modo, segundo o próprio Garaúna, ele ainda foi um pouco comedido, não rolando no chão
como se fazia outrora, apenas se ajoelhando diante dos tambores. No dia seguinte o
encontrei em sua casa, e ele confirmou que era assim que se fazia antigamente, e que ele só couro (Ramos, 1979, p. 230). O historiador Robert Slenes acrescenta que ngoma é um “vocábulo quase universal para ‘tambor’ na África bantu” (Slenes, 1999, p.179). 8 O staccato refere-se a um tipo de articulação musical no qual determinadas notas, ou apenas uma de um conjunto frásico sofrem ou recebem um destaque na execução. Através desse recurso a nota fica mais destacada. 9 Segundo Carneiro em muitas manifestações populares de origem afro-brasileira, essa vênia com intenção de fazer alguém adentrar a roda era realizada através da umbigada (Carneiro, 1974).
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não deitou no chão porque estava de roupa branca, mas que no passado eles rolavam
tanto que saíam com as roupas completamente sujas. Ele acrescentou que foi criticado por
isso e lhe pediram para não mais proceder dessa forma. Essa passagem é interessante para se
pensar as novas questões que o processo de espetacularização traz para o grupo no que diz
respeito aos valores de uso e de troca da prática do "Tambor". Pretendo nesse texto discutir
justamente os novos significados e papéis que essas práticas passam a ter e desempenhar
quando de suas emergências contemporâneas.
Culturas populares em transformação
Ruínas
Os estudiosos da cultura popular e do folclore costumam tomar a Europa do século
XVIII como um marco no qual se inicia uma espécie de interesse sistemático em
torno das práticas culturais das camadas subalternas. Esse interesse nasce sob o signo da
perda e do extravio, pois o intenso processo de industrialização e a concomitante
urbanização da sociedade estavam remodelando as relações sociais e concorrendo,
supostamente, para a extinção das práticas culturais das comunidades tradicionais. Mas não
era somente o avanço industrial que concorreria para a extinção dessas práticas, pois desde o
século XVI as ações das religiões cristãs reformadas bem como da contrarreforma católica,
atuavam em uma perspectiva normatizadora no sentido de impedir determinadas práticas
vistas como reminiscências de cultos pagãos.
Como aponta Renato Ortiz, é ainda no século XVI que vão surgir os primeiros
estudos cuja perspectiva era de inventariar as práticas populares com o objetivo explícito de
cerceá-las e impedir seus efeitos identificados como negativos para a construção de uma
verdadeira moral cristã. São obras de clérigos e sacerdotes cujos títulos, tais como
Antiguidades das pessoas comuns ou Observações sobre as antiguidades populares, apontam
para a forma como essas práticas eram percebidas, pois mesmo que elas fossem
contemporâneas dos religiosos que as estudavam, elas eram compreendidas como algo de
outro tempo que permanecia nas sociedades de então como uma espécie de resíduo de antigas
épocas. Foi também por essa perspectiva de negação da coetaneidade às classes subalternas,
em uma operação muito semelhante ao que fez a Antropologia com o “seus nativos” no
momento em que se instituía como disciplina científica (FABIAN, 2013), que o folclore
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como disciplina se desenvolveu na França na segunda metade do século XIX. Esses
estudos tomaram de empréstimo as noções de “sobrevivência” da Antropologia de Edward
Tylor, para justificar a negação da coetaneidade a esta alteridade que – diferentemente dos
distantes nativos da Antropologia evolucionista, que se encontravam em regiões distantes
da Europa –, encontrava-se em seu próprio país. Mas a operação de entender as práticas
populares como sobrevivências de um outro tempo transformava o camponês iletrado da
própria França em um outro estranho e ao seu jeito, um primitivo (BELMONT, 2011).
Mas, ainda antes das operações intelectuais de subalternização acima citadas que
tomaram forma quando da instituição da Antropologia como disciplina, na segunda metade
do século XIX, a ação repressiva dos poderes religiosos de um lado, e as novas formas de
sociabilidade urbanas surgidas no contexto do período pós-revolução industrial vão romper,
como aponta Burke (1989), uma antiga dinâmica na qual os universos culturais dos setores
nobres e letrados se misturavam eventualmente com os universos culturais de tradição oral.
Essa unidade, e é preciso que se utilize esse termo com muito cuidado, vicejou na Europa
durante toda a idade média e início da idade moderna, quando então é gradativamente
rompida e fragmentada. Burke ressalta os riscos de se adotar a partir dessa constatação da
referida unidade uma perspectiva na qual as dimensões conflitivas interclasses sejam
excluídas de modo a sobrar um quadro róseo e harmonioso. Até mesmo o modelo elite
versus povo tem que ser percebido em uma perspectiva mais heurística do que
propriamente real, pois as clivagens e matizações no interior desses dois polos ideais tornam
essas unidades muito mais complexas. De todo modo, no que diz respeito à relação entre a
elite e povo antes da ruptura, ele aponta uma assimetria na qual os setores letrados
tinham acesso às práticas culturais dos setores subalternos e delas tomavam parte, mas, por
outro lado, o inverso não era comum: os setores populares não tinham acesso a determinadas
atividades lúdicas e festivas que eram levadas a cabo pelas camadas letradas. Isso se
devia, possivelmente entre outros fatores, ao fato de que enquanto a transmissão das formas
populares era essencialmente através da oralidade, as formas de transmissão das camadas
superiores ocorriam por meio da escrita.
Ainda no que diz respeito às formas constrangedoras mobilizadas pelos setores
repressivos na Europa moderna com intenções de disciplinamento das camadas
populares, está a origem do livro Histoire des livres populaires10 tal qual nos conta
Michel de Certeau. O historiador francês afirma que este livro, um dos primeiros daquele
10 História dos livros populares.
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país a tratar o tema da cultura popular urbana em Paris, é o resultado das investigações
feitas no século XIX pelo subsecretário do ministério da polícia e também filólogo,
Charles Nisard, cuja incumbência era a de estudar os livros “perniciosos” que circulavam
entre o vulgo exercendo sobre este sua “ação deletéria”. Estes livros que se encontravam na
mira do funcionário da polícia, pertencia a um conjunto muito popular na França do século
XIX denominado littérature de colportage, algo equivalente no Brasil à tradição da
literatura de cordel. O episódio evidencia as tensões através das quais se moveram as
relações entre as culturas populares e os setores hegemônicos na Europa, mas não só neste
continente pois basta que lembremos da trajetória do samba em nosso país no início do
século ou ainda em outras práticas de origem afro-brasileira em períodos anteriores.
Mas assim como na Europa do século XVIII, onde o receio de que as práticas
culturais das camadas mais baixas da população fossem extintas em função das razões
aludidas acima, há, no contexto contemporâneo, mais ou menos a partir do segundo pós-
guerra, o receio de que as indústrias culturais dos países centrais do capitalismo
associado ao fenômeno da globalização provoquem uma espécie de homogeneização
das práticas culturais levando as culturas locais dos países periféricos à ruína. Essa
discussão será melhor desenvolvida nas seções seguintes, mas de antemão adianto que
facilmente percebe-se que essa previsão não se cumpriu, e o reavivamento da prática do
"Tambor" na comunidade de Machadinha, objeto empírico dessas notas, se inscreve em um
grande arco de retomadas das práticas culturais comumente denominadas de
tradicionais, cumprindo nesse recrudescimento uma série de roteiros nos quais ocorrem
a presença de uma variada gama de atores. Cada um desses atores, socialmente
posicionados, joga suas cartas e mobiliza seus poderes agentivos no sentido de ampliar
seus capitais simbólicos e materiais.
O retorno do reprimido
Utilizo ironicamente esta expressão tão cara à psicanálise, por conta dela expressar
de forma direta e clara um processo através do qual as práticas culturais das camadas
subalternas vêm sendo revitalizadas nas sociedades contemporâneas. Este fenômeno tem
grande magnitude e tem sido estudado em vários lugares do mundo. As razões pelas
quais o fenômeno ocorre são as mais diversas, sendo necessário, portanto, o investimento
de pesquisas empíricas que possam iluminar a questão. A própria ideia de situações
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culturais emergentes traz à tona uma questão com a qual a Antropologia contemporânea
tem que se defrontar no seu processo de objetificação das culturas. O antropólogo português
Paulo Raposo analisa com acuidade o fato de a Antropologia ter sofrido o impacto do que
tem sido convencionado chamar de pós-modernidade, em particular no que diz respeito à
crítica às grandes narrativas e especificamente ao fato dela, a Antropologia, ter abandonado
certos “fundamentalismos epistemológicos” tais como trabalhar com a noção de “mundos
em extinção” e passando a abordar reflexivamente os “mundos emergentes” (RAPOSO,
2003). Essa transição apontada por Raposo é relevante na medida em que se tem claro que
não se está trabalhando com mundos em vias de extinção, como pensava a Antropologia
nos moldes malinowskianos, nem com resíduos de tempos passados, como nos moldes
folcloristas ou da própria Antropologia de viés evolucionista. O que propõe Raposo, assim
como outros autores dos quais tratarei em seguida nesta seção, é de indagar os novos papéis
e significados que podem ser percebidos nas práticas culturais entendidas como tradicionais
nos novos cenários nos quais elas passam a ser encenadas.
A análise dos diversos níveis de cultura que circulam nas sociedades industriais
contemporâneas feita pelo antropólogo José Jorge de Carvalho (1992) destaca um elemento
importante para esta análise. Para levar a cabo os cruzamentos entres esses níveis, Carvalho
retorna às formulações elaboradas na virada dos séculos XVIII para o XIX feitas pelos
pensadores Johann G. Herder e Goethe, para os quais a construção de uma humanitas,
ou seja, de um ideal de humanidade culturalmente integrada e desenvolvida, dar-se-ia com
a elaboração feita pelo homem culto a partir dos universos simbólicos provindos da
comunitas, isto é, da cultura pura, autêntica e espontânea da cultura oral camponesa. Estes
autores viam na cultura popular tradicional camponesa e, mais precisamente, na poesia
popular, um tipo de produção coletiva, desindividualizada, expressão dos anseios e desejos
de toda a coletividade. Era uma “poesia da natureza”, tão natural quanto as árvores e as
montanhas. Era tarefa do poeta letrado “promover a elevação moral e intelectual do homem
através da arte” universalizando, através de sua obra, os elementos produzidos no
âmbito do local e do comunitário. Goethe e Schiller, poetas românticos, chegaram a
lamentar o que viam ser a emergência de uma cultura popular urbana veiculada através de
uma indústria cultural em seus começos, por perceberem esta associada a uma tendência a
uma busca exagerada pela novidade. Se na produção comunitária não havia diferenças entre
produtores e consumidores, esta diferença ocorria no âmbito da poesia letrada, mas era
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superada na medida em que o consumidor deteria os códigos necessários para a
decodificação da obra, possibilitando assim a sua fruição integral.
É importante reter dessa perspectiva romântica a ideia de que a produção popular
camponesa situava-se quase fora do campo da cultura, numa espécie de área indefinida entre
esta e a natureza. Essa mesma perspectiva leva esta produção a uma situação de a-
historicidade, sendo algo que se desdobra no tempo idêntica a si mesma, sem se corromper.
Essa perspectiva vai exercer grande influência no pensamento antropológico concorrendo
fortemente, como já referido anteriormente, para aquilo que Johannes Fabian (2013) chamou
de negação da coetaneidade ao “nativo”. O que talvez mais interesse aos propósitos dessa
análise é perceber a necessidade de superação dessa perspectiva romântica, que de certa
forma transita ainda tanto no senso comum quanto em algumas visões de viés folclorista.
Importante, também, é a ideia de comunidade de iguais que, segundo a tradição romântica, a
produção popular expressa. Voltarei a esta ideia quando tratar na última seção, da
manifestação do "Tambor de Machadinha".
Outra inspiração teórica importante para as análises aqui desenvolvidas é a
perspectiva adotada por Nestor G. Canclini (1983) quando de suas reflexões em torno do
papel das culturas populares no capitalismo contemporâneo. Ora, se o avanço da
urbanização e da produção industrializada, inclusive no campo da produção simbólica, era
uma ameaça às práticas culturais como foi percebido ainda no século XVIII
configurando aquilo que criticamente o sociólogo francês Jean-Pierre Warnier (2000)
chamou de “teorias da convergência”11, em uma perspectiva semelhante aos alertas feitos
por Sahlins (1997) e Appadurai (2004), quanto ao que chamaram indigenização da
cultura12, Canclini vai justamente investir em compreender como as práticas indígenas
estavam ganhando novos contornos e significados a partir das inevitáveis fricções entre as
lógicas de produção locais e o mercado capitalista.
Canclini coloca muito claramente em seu ensaio Culturas populares no capitalismo,
cuja ênfase está sobretudo nas festas e nas artesanias indígenas em três cidades mexicanas do
final da década de 1970, que o avanço da industrialização naquele país longe de destruir as
produções artesanais assistiu a um grande crescimento da mesma. Aconteceu o mesmo com
11 Essas teorias reúnem um conjunto de ideias que acreditavam na inevitável homogeneização cultural em nível planetário em função dos processos de “erosão” causados pela gigantesca máquina das indústrias da cultura, quando estas entrassem em contato com as tradições culturais “locais”. 12 Por essa expressão tanto Appadurai quanto Sahlins tentam designar as estratégias dos grupos locais para incorporar ativa e criativamente as práticas alienígenas e usá-las em seus próprios termos .
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relação às festas que, mesmo com todo aparato de entretenimento criado e veiculado pelos
meios midiáticos massivos, transformaram-se e cresceram em número de participantes e
assistentes. Está claro que os significados tanto das artesanias indígenas quanto das festas
vão, a partir de seu ingresso em outro circuito, cumprir um novo papel. O que Canclini tenta
mostrar é que não há evidência empírica de que o modelo de produção capitalista seja
essencialmente contrário e aniquilador de formas tradicionais de produção. Antes, pelo
contrário, a produção artesanal vai cumprir, em um cenário de produção capitalista, um
papel secundário porém importante. Ele destaca alguns aspectos para a ocorrência
“combinada” entre os dois modos de produção: solucionar o desemprego rural,
resultado entre outros fatores de uma nova forma de produção capitalista no campo; as
necessidades contraditórias do consumo, que uma vez estandardizada pela produção em
série que a torna monótona, precisa de uma “ressignificação publicitária dos objetos”; o
turismo, com seu fascínio pela nostalgia das realidades sociais “autênticas”; e as políticas
públicas estatais, com vistas à construção de uma memória nacional ou local. Acrescento
que mais recentemente no Brasil no âmbito das políticas públicas tem-se a questão da
patrimonialização das culturas populares e mesmo alguns dispositivos constitucionais que
garantem a titulação da terra para comunidades negras que comprovem que algumas práticas
culturais mantidas guardam relação com a memória étnica da comunidade.
Todos estes itens mencionados por Canclini apareceram, em maior ou menor
grau, no processo de reemergência da prática do "Tambor de Machadinha". Como
argumentou Paulo Raposo, citado no início dessa subseção, não se trata de lidar com
“mundos em vias de extinção”, ou com resíduos de outras épocas, contribuindo assim com a
perspectiva de ver as práticas culturais das camadas subalternas como fora da História, como
numa certa mirada folclorizante. Essas práticas culturais são encenadas e realizadas por
grupos sociais dentro de determinadas contingências históricas e sociais e dessa forma
mobilizam seus poderes agentivos com vistas à obtenção de ganhos simbólicos e
materiais nos limites das condições de suas possibilidades. As tramas que se armam em
torno desses processos de reemergência são sempre complexas e multifacetadas.
Na próxima seção tentarei apresentar o caso da rearticulação da prática do "Tambor"
em Machadinha, cruzando minhas análises e observações com as teorizações dos autores
mencionados nesta seção.
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Culturas populares em transformação: o caso do Tambor de Machadinha”
Quando fiz minhas primeiras viagens à fazenda Machadinha, ainda como
investimento exploratório procurando saber qual o caminho que deveria seguir no trabalho
de pesquisa, tive a impressão de que faria um trabalho sobre memória, pois o "Tambor" já
não era uma prática regular na comunidade. A intenção, portanto, era registrar os cantos que
estivessem na memória dos moradores mais antigos. Qual não foi minha surpresa quando,
alguns meses depois de meu primeiro contato, em uma segunda viagem à fazenda
Machadinha, tive a notícia de que estava ocorrendo um processo de ressurgimento do
"Tambor", a partir da iniciativa da ONG 3H, em parceria com alguns dos mais antigos
membros da comunidade que eram conhecedores da prática. Situei esse ressurgimento
dentro de um amplo arco de rearticulação de práticas culturais populares. A retomada das
atividades do "Tambor" estava, portanto, se dando dentro de um conjunto mais amplo de
reemergências culturais e dentro de uma nova configuração atendendo a novas expectativas.
O "Tambor" estava sendo reconfigurado como um espetáculo (valor de troca) e,
dessa forma, deixaria de ser apenas uma prática lúdico-recreativa como foi no passado
(valor de uso). A sua retomada atenderia a necessidades diversas: geração de renda para os
moradores da comunidade de Machadinha, uma vez que as apresentações renderiam cachês
aos integrantes; constituição de uma memória identitária para a cidade de Quissamã, em seu
novo momento de modernização; e de constituição de um “capital cultural” para a
comunidade, na sua afirmação e reconhecimento como território quilombola. O
reconhecimento da comunidade como quilombo trazia implicações bem concretas tais como
a obtenção da posse legal das terras, conforme preconiza a Constituição Brasileira, no artigo
68 do ADCT13, incluído no texto constitucional de 1988, ou mais recentemente o Decreto-
lei 4.88714, de 20 de novembro de 2003. Saliento, no entanto, que a distinção entre valor de
uso e de troca precisa ser melhor observada e é usada aqui grosso modo precisando de
um maior refinamento que dê conta da complexidade que ela encerra. De todo modo,
acredito que mesmo sofrendo a transformação no sentido de virar um espetáculo não se
possa afirmar simplesmente que ela é apenas isso. Percebi em diversas situações de
13 Este decreto regulamenta os procedimentos administrativos necessários, para que se implemente a identificação, reconhecimento, delimitação e demarcação das terras, com vistas à titulação das mesmas, que venham a ser reconhecidas pelo Estado como terras de remanescentes das comunidades de quilombo. 14 Esse decreto regulamenta o procedimento para reconhecimento, identificação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos da qual trata o artigo 68 do ADCT.
21
apresentação ou mesmo de ensaio, ou mais ainda durante as entrevistas, o orgulho dos
componentes do grupo e de como a memória da prática em tempos passados vinha
carregada de emoções e sentimentos diversos.
O modo espetáculo de realização do "Tambor" pressupunha algumas transformações
quando comparado aos modos antigos da prática. A primeira delas que chama a
atenção é a perda do formato de roda, tão comum nas práticas de dança e música de
tradição afro-brasileira. O novo momento, em função da presença da plateia, exigia que a
antiga roda se transformasse em semicírculo, de modo que os integrantes ficassem de frente
para quem estivesse assistindo. Essa situação me parece bastante emblemática quando se
tem em mente aquela antiga definição de Goethe para o carnaval romano que ele viu em
sua juventude: “o carnaval romano não é uma festa que se dá ao povo, mas que o próprio
povo se dá a si mesmo” (GOETHE apud CARVALHO, 1992, p. 28).
A presença do público também pressupunha a alteração no que diz respeito à
duração das cantigas cantadas durante a prática. Como se trata de letras muito curtas,
geralmente uma quadra poética ou um dístico, as cantigas ficavam, no passado, repetindo
por muito tempo enquanto todos os presentes na roda iam tomando parte na dança.
Mas agora, considerando que existe uma audiência, convencionou-se a redução de cada
peça ao tempo médio de três minutos e meio, que é, por sua vez, o tempo de duração de uma
canção, que é o tempo ao qual a plateia já está habituada. Essa questão do tempo aqui tratada
pode ser entendida com maior profundidade quando se tem em mente as teorizações de
David Harvey sobre as relações espaciotemporais e suas derivações dos processos sociais
nos quais estão envolvidos. O tempo da festa pressupõe um determinado uso do tempo que
difere do tempo do espetáculo. Na festa, outros fatores entram em pauta como, por exemplo,
o nível de excitação e alegria em um determinado momento em que a cantiga é cantada,
fatores que podem encurtar ou alongar a sua execução. O tempo do espetáculo é o
tempo do controle racional e da medida previsível, é o tempo do relógio. Em uma
análise mais arrojada poder-se-ia dizer que o primeiro é o tempo cósmico, enquanto o
segundo é o tempo do capital.
Ainda no que diz respeito à espetacularização da prática do "Tambor", há uma
ocorrência que também pode ser útil para as reflexões aqui produzidas. A passagem à qual
me refiro, e que já foi mencionada anteriormente, diz respeito ao Sr. Manuel Garaúna, um
dos integrantes mais velhos do grupo e um dos poucos que ainda improvisava e compunha
novas cantigas. Sua presença era considerada como importante tanto porque era um dos mais
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velhos do grupo quanto por ter a habilidade e criatividade composicional. Mas, não obstante
essa importância por todos reconhecida, havia uma questão delicada: Sr. Garaúna, talvez
pela importância que tinha no grupo, ou talvez por sua personalidade idiossincrática,
costumava desrespeitar as convenções estabelecidas no programa do espetáculo. Uma das
vezes que pude assistir à apresentação do grupo, o Sr. Garaúna tomou a iniciativa de deitar
no chão e se ajoelhar à frente dos tambores. Ele foi bastante censurado por isso e alguns até
vincularam essas iniciativas ao fato de ele costumar ingerir bebida alcoólica antes das
apresentações. Indagado por mim quais as razões que o levaram a proceder daquela forma,
ele disse que esse modo de “brincar” sempre fora comum, e que no passado durante a dança
muitos dançadores agiam dessa forma. De fato, como apontado na seção anterior de
apresentação do "Tambor de Machadinha", existe na literatura especializada, já citada
anteriormente, confirmação de tal procedimento, mas o que chama a atenção e que interessa
a esta análise, é o fato de que essa passagem evidencia uma tensão na adequação entre os
dois mundos, o da festa e o do espetáculo. O segundo exige autocontrole por parte dos
integrantes do grupo de modo a se adequarem à lógica do espetáculo o qual possui espaço e
tempo racionalizados. O primeiro, pressupõe a espontaneidade, a memória da festa e a vazão
dos desejos sem os arranjos cênicos do espetáculo e a racionalização exigidas no segundo.
Na dissertação na qual investiguei a reemergência da prática do "Tambor”, em
Machadinha, eu introduzi uma seção na qual indagava a quem interessava este
ressurgimento. A intenção era problematizar as relações entre os diversos atores que
compunham a cena de modo a tornar clara as clivagens e os elementos conflitivos e de
negociação em torno do fenômeno. No que diz respeito aos interesses dos poderes públicos
representados na esfera governamental mais próxima, a prefeitura, através da secretaria de
cultura, havia em curso uma perspectiva que me parece interessante observar principalmente
quando vista da ótica da análise feita pelo antropólogo José Reginaldo Gonçalves (2002),
quando este analisa a constituição do patrimônio brasileiro à luz da teoria do símbolo do
psicanalista Jacques Lacan15
. Nessa perspectiva, determinados objetos na condição de
significantes vão operar no sentido de representar o mundo com o qual eles guardam uma
relação muito estreita. Acontece que a relação significante-significado dentro da “estrutura
do desejo”, tal qual teorizada por Lacan, buscará a tarefa impossível de transcender a
15 A análise de Gonçalves foi desenvolvida a partir das observações da professora Susan Stewart sobre o papel de certos objetos nas narrativas que se prestam a representações do mundo: relíquias, coleções, acervos, miniaturas, souvenirs, etc. que representam determinadas experiências de mundo e informam sobre as qualidades desse mundo.
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distância entre a representação e experiência fundido-as num todo imaginário. É nesse
sentido que um objeto etnográfico exposto em um museu pode cumprir o papel de ser, em
sua singular materialidade, a própria totalidade da cultura que representa em uma
objetificação que dá corpo à identificação ilusória entre a realidade desejada e o símbolo
que lhe representa.
Nas narrativas produzidas pela Secretaria de Cultura, a prática do "Tambor" é
apresentada como patrimônio cultural da cidade de Quissamã, em uma perspectiva que
oblitera as clivagens históricas e mesmo as inserções sociais contemporâneas do grupo que
efetivamente põe em cena a prática do "Tambor". A busca de transformar esta prática em
um recurso para o estímulo do turismo cultural, como anunciado claramente pelos órgãos
de promoção cultural da prefeitura, faz com que a prática do "Tambor", historicamente
identificada com uma comunidade de descendentes dos antigos escravos da cidade, seja vista
como um patrimônio comum à cidade e representativa da totalidade cultural do município de
modo que as clivagens e diferenças, históricas e contemporâneas sejam, ainda que no
domínio simbólico, ocultadas. Esse ocultamento das diferenças ocorre muito
sintomaticamente em um monumento em “homenagem” ao negro em Quissamã, que se
encontra em uma das saídas da cidade que justamente dá acesso à fazenda Machadinha.
O monumento apresenta um negro sem camisa, sem calçado e com uma calça curta
típica das gravuras que representam o negro escravo brasileiro. Nas mãos ele carrega uma
picareta, ou seja, o negro reduzido a sua dimensão utilitária, reificado como peça de uma
engrenagem produtiva. O texto que aparece logo abaixo da imagem nos informa da
intenção de reconhecer a importância do negro na formação da cidade. Diz o texto:
“homenagem pela contribuição e participação do negro na formação da raça, riqueza,
história, religião e cultura de Quissamã”. O texto acaba por se constituir em uma peça
eloquente da tentativa de escamotear os conflitos inerentes ao período da escravidão. Esta
não é mencionada e as contradições e interesses diversos ocultam-se através das palavras
“contribuição” e “participação” do negro na “formação da raça, riqueza, história, religião e
cultura” de Quissamã. Ora, “contribuição” e “participação”, termos cujo campo semântico
nos remete ao que é feito de forma voluntária ou espontânea, soam aqui como verdadeiros
eufemismos que elidem, ou tentam elidir, as relações de força implícitas no sistema
escravocrata. É possível ver nessa passagem o que Bourdieu (2005) chamou de
“eufemização” ou “dissimulação” discursiva que visa à construção de uma representação –
no caso, do negro. É possível também lembrar a assertiva de Le Goff, (1996) quando
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pensa um monumento na sua dimensão “enganadora”, quer dizer, portadora de uma
intencionalidade, mas que se pretende neutra, isenta de interesses ideológicos. Ele concluía
afirmando que era “preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar
esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos” (Le
Goff, 1996, p.548).
Voltando especificamente ao caso da prática do "Tambor", esta é vista e expressa nos
discursos oficiais da cidade como um patrimônio comum do município que, simbolicamente,
tem o poder de evocar toda uma totalidade cultural num processo de “identificação ilusória”
fazendo dela uma herança cultural de todos, ao mesmo tempo em que expressa o conjunto
social como uma comunidade de iguais. Muito sintomática dessas tensões foi a ocorrência
de uma história contada pelo Sr. Manuel Garaúna, quando este me relatou em tom de
brincadeira um acontecimento no qual ele cantou para o prefeito da cidade, um antigo
canto que faz menção às tensões étnicas entre brancos e negros no período colonial, mas
que ali tomava forma e significados atualizados. Sr. Garaúna contou que mais de uma vez
cantou para o prefeito da ocasião, Sr. Armando Carneiro, homem branco de olhos claros
e pertencente a uma família importante na localidade desde o período colonial, um
canto16 no qual um certo trecho dizia: “samba nego / branco não vem cá / e se vier, pau vai
levar”. Segundo Sr. Garaúna, o prefeito sorria e dizia que o Garaúna estava “mexendo” com
ele. Tudo ficava por conta de uma brincadeira sem maiores desdobramentos, mas é
possível ver no episódio, ecos das tensões que longe de estarem superadas reaparecem, ainda
que em tom jocoso e amistoso, no momento em que a cidade tenta constituir uma memória e
a prática do "Tambor" joga um papel importante.
Neste ponto da análise gostaria de introduzir os aspectos referentes à participação da
prática do "Tambor" na constituição de um “capital cultural” para a comunidade, na sua
afirmação e reconhecimento como comunidade quilombola. No momento em que os grupos
rurais negros vislumbram no horizonte a possibilidade de conquistas de direitos e que
gradativamente eles vão tomando consciência dos mesmos, inicia-se um processo de
recuperação da memória e agenciamentos de elementos que lhes deem especificidade. Por
este viés explicativo é fácil entender o papel do "Tambor" nesse cenário de disputas
fundiárias que começava a ocorrer em Machadinha. A comunidade apresentava naquele
16 O texto da canção na íntegra é: “samba 'nego' / branco não vem cá / e se vier, pau vai levá / olha, esse 'nego' é meu, olha lá / bota mão nesse 'nego' devagar / tiririca, faca de cortar / e não me mata 'nego' de sinhá / olha, esse 'nego' é meu, olha lá / bota mão nesse 'nego' devagar”.
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momento um estado muito incipiente de entendimento desses direitos, mas a partir de
determinadas falas já era possível captar a compreensão da importância da prática do
"Tambor" naquela luta. Em minha última viagem à comunidade, estive com Cheiro17 , uma
das colaboradoras da pesquisa e participante muito influente do grupo, que, ainda que
pronunciando errado a palavra, me disse que sabia que ali eles eram todos “quilebela”.
Disse-me que em uma das reuniões com membros do SEPPIR18 já tinham dito a ela que
era importante continuar com o movimento do "Tambor". Nesse momento o grupo já
estava há quase dois meses sem se apresentar, mas com a veemência que a caracterizava,
ela disse que o "Tambor" iria para frente de qualquer jeito. Com ou sem as pessoas que na
ocasião ajudavam a organizar o grupo, “porque isso é uma coisa nossa e a gente tem que
manter”.
Ainda que não exclusivamente, o movimento de ressurgimento do "Tambor de
Machadinha" interessa, pelo lado dos moradores da comunidade, como item do passado do
grupo que está sendo mobilizado em um legítimo processo de invenção de uma tradição
(HOBSBAWM e RANGER, 1997), mas que não pode ser confundido com uma
estratégia falsa ou enganadora. Ele é invenção na medida em que toda comunidade é uma
“comunidade imaginada” (ANDERSEN, 2008) que, para se constituir, lança mão de
determinados itens que circunstancialmente lhe interessam, selecionando-os do fluxo do
tempo passado. A descontinuidade da prática do Tambor, o hiato temporal que ele sofreu
fez com que ele ressurgisse dentro de uma outra lógica e atendendo a outras expectativas. E
não poderia ser diferente. Essa ocorrência faz parte da dispersão que os objetos sofrem em
seu devir histórico. É possível perceber que veio a ocorrer neste novo contexto no qual a
prática é encenada, a transformação do "Tambor" no sentido de ter seu valor infletido de
valor de uso para valor de troca.
Práticas semelhantes ao "Tambor", como os batuques, samba rural paulista, coco,
etc., eram práticas lúdico-recreativas ligadas aos contextos das festas que as comunidades
“davam a si mesmas”. Elas não eram espetáculos. Elas eram “usadas” nos momentos de
recreação da comunidade.
17 O nome de batismo de Cheiro é Guilhermina e veio a falecer alguns anos após a pesquisa, em 2010. 18 Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Órgão federal que entre outras atividades atua no sentido de estabelecer iniciativas contra as desigualdades raciais no País (SEPPIR, 2006).
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Uma ocorrência que se deu no campo, um tanto por acaso, pode ser ilustrativa: certo
dia em que fiquei preso em Machadinha por conta de uma chuva que impedia minha
saída de lá, foi possível ver a comunidade se organizando para um evento festivo no qual
não havia nenhuma presença externa, a não ser a minha. Era um evento comum de fim de
semana, de intensa vivência comunitária, no qual todos se mobilizavam: as mulheres
preparavam a comida os homens arrumavam o salão e faziam o churrasco. Era realmente um
momento de relaxamento e descontração. A música que embalava a dança nesse momento
era o “forró”, projetado mecanicamente através de cd’s de grupos tais como: “Mastruz com
leite”, “Calcinha preta” e outros. Nesses momentos, não se dança mais o "Tambor". Isso
não implica que as pessoas vinculadas ao "Tambor" não tenham prazer em dançá-lo e
que a ele esteja reservado apenas um papel de representação. O jovem Renato, na ocasião
com quinze anos, e que participava como tamboreiro do grupo, exemplifica bem isso. Ele
afirmava apreciar muito o funk, mas que também gostava tanto do "Tambor" que tocaria
mesmo que não fosse remunerado. Na ocasião da pesquisa fiquei sabendo de uma
mobilização das crianças de Machadinha para a constituição de um grupo de "Tambor"
mirim. Isso sem dúvida atesta o envolvimento, inclusive dos mais jovens, na prática do
"Tambor", mas o que quero salientar é o seu novo lugar nos “usos” da comunidade. O seu
peso maior parece estar na sua nova condição de espetáculo, cumprindo os vários papéis que
apontei acima.
A encenação do "Tambor" como espetáculo traz consigo diversas
transformações. E para resumi-las listarei algumas que foi possível detectar: 1) As letras
não são mais improvisadas, e quase nem são mais compostas, sendo o repertório atual
estruturado com cantigas que estão na memória do grupo; 2) há atualmente um figurino
específico para a sua prática; 3) em vez de um dançarino no meio da roda, agora são dois; 4)
os praticantes são remunerados para dançar; 5) os tamboreiros tocavam sentados em seus
tambores, agora tocam sentados em cadeiras com os instrumentos à sua frente; 6) os passos
da dança sofreram algumas modificações, possivelmente a partir das sugestões do grupo
Brasil Mestiço19; 7) a duração dos pontos podia chegar até uma hora. Atualmente, eles
duram aproximadamente de dois a quatro minutos; 8) participação de crianças no grupo
atual.
19 A Associação Brasil Mestiço é uma ONG que atua na área de pesquisa da cultura popular e que na ocasião era contratada da ONG 3H para ajudar na formatação do "Tambor" como espetáculo.
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Ao tempo da pesquisa dos anos 1980 se ouviam cantigas de "Tambor" que
tematizavam a decadência do mesmo, tais como:
Tambor de Machadinha já foi muito bão Depois da poeira não presta mais não. Eu fui em Machadinha Não achei tambor Tambor não tem Em fui em Mandiqüera Não achei tambor Tambor não tem Tornei a voltar Não achei Tambor Tambor não tem Após a perspectiva de ressurgimento da prática, o grupo orgulhosamente passou a
cantar no início das apresentações, em um diálogo entre Cheiro e Sr. Garaúna, o canto:
Tambor morre Oi não morre não É por Nossa Senhora Da Conceição.
Aqui peço licença para um pequeno devaneio. Nossa Senhora da Conceição, a quem
a letra do canto faz menção, é uma das tantas variantes da mãe de Jesus, cuja especialidade é
a de auxiliar os partos difíceis. Talvez seja possível imaginar que o eco dos tambores chegou
às alturas, sensibilizou a Mãe Altíssima e dessa forma o "Tambor" ressurge. Ressurge na
memória de Cheiro, na irreverência do Sr. Garaúna, nas mãos de Cici20, no canto do Sr.
Gílson e na consciência dos jovens Leandro e Renato.
Conclusão
Através desse texto procurei discutir o fenômeno da ressurgência das práticas
tradicionais populares que ocorrem na contemporaneidade tomando como base empírica
uma prática lítero-musical-coreográfica realizada em uma comunidade rural da cidade de
Quissamã, a fazenda Machadinha. Esta prática é denominada "Tambor" e sua retomada foi
20 O nome de Cici era Valdecir dos Santos, e era tamboreiro do grupo. Veio a falecer alguns anos após a pesquisa.
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levada a cabo por moradores da comunidade de Machadinha, contando com adolescentes,
jovens e pessoas mais velhas, em associação com a ONG 3H e com apoio também dos
poderes municipais locais, principalmente a Secretaria de Cultura.
Na retomada dessas práticas, que tem sido observada em muitas cidades brasileiras
e mesmo em outros países, onde tem ocorrido por razões diferentes, é possível perceber que
determinados temas são recorrentes nesse fenômeno. Questões tais como criação de
identidades locais, patrimonialização das práticas culturais populares, iniciativas com vistas
à geração de renda para as comunidades detentoras das práticas são recorrentes nos
discursos que circulam entre os atores desse fenômeno. No caso do "Tambor de
Machadinha" a prática do "Tambor" estava sendo, no momento da minha pesquisa,
reconfigurada na forma de espetáculo e, dessa forma, deixaria de ser uma prática
lúdico-recreativa como foi no passado. A sua retomada atenderia a necessidades diversas:
geração de renda para os moradores da comunidade de Machadinha; constituição de uma
memória identitária para a cidade de Quissamã, em seu novo momento de modernização, e
de “capital cultural” para a comunidade, na sua afirmação e reconhecimento como
comunidade quilombola. O reconhecimento da comunidade como quilombo traz implicações
bem concretas tais como a obtenção da posse legal das terras, conforme preconiza a
Constituição Brasileira, no artigo 68 do ADCT, incluído no texto constitucional de 1988, ou
mais recentemente o Decreto-lei 4.8871, de 20 de novembro de 2003. Só recentemente tomei
conhecimento de que o pleito de reconhecimento da fazenda Machadinha como quilombo
veio a ter êxito estando hoje a comunidade reconhecida como tal. Naturalmente que o
reconhecimento não resolve todos os problemas e nem deve ser visto como um fim em si.
Novas lideranças jovens locais despontam e tentam se mobilizar para que a comunidade
venha a ser atendida em outros pleitos nas áreas de lazer, educação e saúde.
Para refletir sobre o fenômeno da rearticulação do Tambor em Machadinha procurei
me afastar da ideia de “tradição” como sinônimo de pureza, continuidade, permanência ou
sobrevivência. Minha visão foi, ao contrário, solidária a uma perspectiva que contemplasse
a ideia de negociação, descontinuidade e devir, percebendo no fenômeno elementos
contemporâneos que lhe dão sentido e significado.
O "Tambor" renasce, mas não é mais o "Tambor" de outrora, e nem poderia ser.
Agora cumpre um novo papel. Junto com ele emerge uma série de questões pertinentes à
contemporaneidade, pois os fazeres culturais, em sua concretude – ainda que simbólica
–, não estão fora da História. Ao contrário, imbricam-se com esta e compõem a sua própria
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carne. Achegam-se às crianças e, em suas vozes ainda inseguras de pequenos cantores, assim
como em seus corpos de pequenos bailarinos, materializa-se a continuidade descontínua de
uma tradição que em seu devir, se reinventa.
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