A BANALIDADE DO MAL, O BULLYNG E A EDUCAÇÃO CONTRA A BARBÁRIE

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A BANALIDADE DO MAL, O BULLYNG E A EDUCAÇÃO CONTRA A BARBÁRIE INTRODUÇÃO Há um passado no meu presente Um sol bem quente lá no meu quintal Toda vez que a bruxa me assombra O menino me dá a mão E me fala de coisas bonitas que eu acredito Que não deixarão de existir: Amizade, palavra, respeito, caráter, bondade alegria e amor Pois não posso Não devo Não quero Viver como toda essa gente Insiste em viver E não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal (Milton Nascimento e Fernando Brant: “Bola de meia, bola de gude”) É absolutamente necessário recuperar as possibilidades da infância. Que fantástico seria se toda criança e todo jovem pudesse ter um passado advogando a favor do seu presente e inspirando a sua luta pelo futuro. O singelo poema que nos serve de epígrafe cumpre bem o papel de sinalizar o fio condutor desse texto, pois a centralidade da memória na história de vida é o seu tema principal, da mesma forma que é o nosso. Como reafirmação do que se registrou desse passado transmutado em valores, os poetas descrevem uma atitude, uma decisão perante a vida: “não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa

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A BANALIDADE DO MAL, O BULLYNG E A EDUCAÇÃO CONTRA A BARBÁRIE

INTRODUÇÃO

Há um passado no meu presenteUm sol bem quente lá no meu quintalToda vez que a bruxa me assombra

O menino me dá a mão

E me fala de coisas bonitas que eu acreditoQue não deixarão de existir:

Amizade, palavra, respeito, caráter, bondade alegria e amorPois não posso

Não devoNão quero

Viver como toda essa genteInsiste em viver

E não posso aceitar sossegadoqualquer sacanagem ser coisa normal

(Milton Nascimento e Fernando Brant: “Bola de meia, bola de gude”)

É absolutamente necessário recuperar as possibilidades

da infância. Que fantástico seria se toda criança e todo

jovem pudesse ter um passado advogando a favor do seu

presente e inspirando a sua luta pelo futuro. O singelo

poema que nos serve de epígrafe cumpre bem o papel de

sinalizar o fio condutor desse texto, pois a centralidade

da memória na história de vida é o seu tema principal, da

mesma forma que é o nosso. Como reafirmação do que se

registrou desse passado transmutado em valores, os poetas

descrevem uma atitude, uma decisão perante a vida: “não

posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa

normal”. Nesta frase, inadvertidamente, apontam para o

problema que elegemos discutir, à luz dessa reflexão

primeira sobre o passado, qual seja: o bullying.

Alguns outros autores, nem sempre poetas, foram por

nós convocados como companheiros de percurso. Recuperando o

conceito1de “banalidade do mal” de Hannah Arendt,

pretendemos analisar a configuração dominante na sociedade

brasileira hoje, do ponto de vista da sociabilidade

(aspecto definidor do que pode ser concebido como

“humanidade”), que é, por um lado, o desmoronamento de

vínculos familiares e de grupos de referência tradicionais

como a escola, a igreja, etc. e, por outro a violência nos

relacionamentos interpessoais (algumas vezes simbólica, mas

muitas vezes implicando riscos físicos bem concretos2,

conforme afirmado por Gilberto Velho - 2005, s/p).

AS BASES DO TECIDO SOCIAL

Para falar sobre sociabilidade, convidamos Marcel

Mauss em seu clássico“Ensaio sobre o Dom”, texto a partir do

qual, desde a fundação das ciências antropológicas, fomos

levados a compreender quais são as operações básicas que

1 A autora provavelmente discordaria que se trata de um conceito (nosentido de algo fechado e definido para sempre) e talvez concebesse aideia muito mais como uma formulação descritiva de um modo de ser, umapossibilidade da existência humana. 2 É claro que a violência simbólica, assim dita por não utilizar formasvisíveis de exercício de violência, pode gerar, também, consequências bem concretas, como no caso do bullying, que será discutido neste trabalho.

definem os processos de troca contínua que configuram a

mola propulsora do nascimento e da continuidade dos

relacionamentos humanos: dar – receber - retribuir. Quais

seriam os objetos/conteúdo dessas trocas essenciais?

Absolutamente tudo: palavras, presentes, alimentos,

esposas3, roupas, olhares, sentimentos, cuidados, etc.Todas

elas constituem o conceito de “reciprocidade”.

A GUERRA COMO NECESSIDADE E COMO DIÁLOGO NÃO

INTERROMPIDONAS SOCIEDADES TRADICIONAIS

Vida social é igual a: reciprocidade - continuidade de

trocas, que devem ser, na maioria das vezes, pacíficas. Na

maioria das vezes não significa sempre, obviamente. Ora,

seria o caso de pensarmos na existência de “trocas – não –

pacíficas”? Certamente. É o que nos foi ensinado por outro

antropólogo: Pierre Clastres, em duas grandes obras: A

Sociedade Contra o Estado e Arqueologia da Violência. Onde encontramos

investigações profundas sobre o significado da guerra e da

violência para a existência humana, já que esses são

aspectos persistentes através de nossa história.

3 O significado das mulheres para a cosmologia e organização social étema clássico da pesquisa antropológica e conta com inúmeraspublicações a respeito, sendouma das mais importantes, sem sombra dedúvidas “As Estruturas Elementares do Parentesco” de Claude-Lèvi-Strauss.

É preciso, antes de prosseguir mais um passo, sermos

minuciosos com as análises de Clastres. É que elas são

essenciais e não merecem ser mal compreendidas. Segundo o

autor, a imanência da guerra nas sociedades arcaicas tem um

sentido político muito claro: é uma espécie de consciência

difusa que impede a agregação de suas pequenas unidades

territoriais/populacionais, impedindo, consequentemente, a

eliminação das inúmeras diferenças históricas e culturais

contidas em cada uma. Manter a fragmentação é preservar-se

na diferença cultural que dificulta a constituição de

Estados Nacionais.

De forma bem resumida: as sociedades que fundaram a

existência humana se constituíram como sociedades sempre

prontas para a guerra, por que são sociedades contra o Estado.Pode-se

dizer que – de certa forma – Clastres afirma um anarquismo

praticamente “instintivo” como elemento essencial nas

primeiras formas de organização social. Evitar o surgimento

da organização estatal significava manter a horizontalidade

primordial, fundadora das relações humanas: a

reciprocidade. Nesse sentido, a dose de violência utilizada

nas guerras entre grupos tribais, seria algo estritamente

necessário para a possibilidade mesma de reprodução

histórica desses mesmos grupos.

VIOLÊNCIA ESSENCIALMENTE DESTRUTIVA: GENOCÍDIO E ETNOCÍDIO

Permanecemos ainda com Clastres, evocando os conceitos

de genocídio e etnocídio que não se confundem com a noção

de guerra. No contexto da guerra estamos diante de grupos

que se opõem, onde ambos compartilham os mesmos

significados sobre a guerra, suas armas e suas estratégias.

No contexto do genocídio como no etnocídio as possibilidades de

comunicação estão a priori interditadas. Não são confrontos

entre os soldados ou os guerreiros de um povo contra os do

outro povo. Trata-se de grupos que decidem por razões não

militares e não políticas atacar um povo ou parcela dele,

por outras razões, derivadas de preconceitos e

discriminações diversas.

Seguindo ainda de perto o texto de Clastres, passamos

a outra distinção conceitual. Se dividirmos os grupos

sociais entre existência física e existência cultural,

saberemos que o genocídio elimina a parte física, enquanto o

etnocídio se dedica ao extermínio cultural. Os processos de

colonização empreendidos pelos europeus tanto no século

XVI, quanto no XIX, foram ao mesmo tempo genocídios e

etnocídios. A perseguição nazista igualmente. Mas, há

inúmeras formas de etnocídio acontecendo todos os dias, a

cada vez que alguém decide destruir crenças, valores,

práticas, rituais de outros grupos sociais, apenas pelo

fato de não espelharem a si próprios ou ao seu grupo de

referência.

BULLYING, A DESCONSIDERAÇÃO EXTREMA DO “OUTRO”

Tanto o genocídio quanto o etnocídio recusam ao grupo

ou indivíduodiferente o mesmo estatuto de humanidade

desfrutado pelo grupo do “eu”. Recorrentemente, conforme

afirmou em extrema lucidez Lúcio Kowarik, ocorre um

processo de demonização ou maleficação do “outro”, que é

percebido como alguém (ou como grupo) desprovido do direito

de ter direitos, única e exclusivamente pelo fato de ousar

ser diferente.

Tendo como alvo existências supostamente maléficas ou

demoníacas a ação discriminatória, inúmeras vezes

exterminadora, passa por ato heróico, missão civilizatória

ou espiritual. As disputas e perseguições religiosas

existentes na atualidade figuram como exemplo transparente

e, segundo pensamos, alarmante, desse tipo de

discriminação. Estamos diante de processos sociais que se

configuram a partir de determinadas concepções sobre

pessoas e grupos portadores de alguma espécie de “mal”,

cuja essência tida como maléfica é utilizada para

justificar massacres discursivos (ou mesmo físicos),

atualizados através de todos os meios de comunicação

disponíveis e, também, nas relações face a face.

Parece que continuamos bem sintonizados com o mundo

grego antigo, onde a essência do que se considerava “não

humano”, sintetizada na categoria: “bárbaro”, era

exatamente o outro, aquele que não pertencia ao grupo do

“eu”, o estrangeiro que, somente por ser outro, deveria ser

morto ou escravizado.

Fenômenos como o bullying, reeditam no cotidiano esse

processo de desconsideração extrema do outro. Diríamos que

ele se caracteriza por levar ao exagero discursos e ações

que há uns vinte anos atrás chamávamos de “brincadeira sem

graça”, “brincadeira de mau gosto” ou “brincadeira pesada”.

Elas eram no passado acontecimentos episódicos, condenados

tanto pelos adultos quanto pela maioria das crianças e

jovens. Vemos hoje um quadro rigorosamente invertido: as

brincadeiras “leves” e alegres são exceção, enquanto o

bullying torna-se cada vez mais corriqueiro, e reprovado

apenas por uma minoria de adultos, quanto por uma minoria

de crianças e jovens.Os ditos jocosos (piadinhas)

considerados engraçados agregam por vezes ofensa,

humilhação, preconceito e discriminação nua e crua. Sem

contar o quão normal está se tornando rir do infortúnio, da

violência e da tragédia alheia.

TEMPOS SOMBRIOS: OS PERIGOS DE UM MUNDO HEDONISTA

Estamos vivendo em tempos sombrios, para usar a célebre

expressão de Bertold Brecht (apropriada também por Hannah

Arendt4)num poema em que mostrou sua desolação por causa da

falta de solidariedade humana e de responsabilidade social

para com os desprovidos e injustiçados de seu tempo,4 Retomaremos essa questão adiante.

imaginando o triste legado a ser deixado para as gerações

futuras:

Que tempos são estes, em que é quaseum delito falar de coisas inocentes.Pois implica silenciar tantoshorrores! Esse que cruzatranquilamente a rua não poderájamais ser encontrado pelos amigosque precisam de ajuda?

Através de inúmeras violências socialmente

consolidadas, instituídas, formal ou informalmente, emerge

o fenômeno do bullying, como ponta de um iceberg, indicando

que algo muito maior existe, numa região oculta, para além

daquilo que salta imediatamente aos olhos. Que tal

procurarmos, então, regiões mais profundas que possam

elucidar melhor aquilo que todos estão vendo?

O antropólogo José Carlos Rodrigues pode nos ajudar

agora. Em seu texto sobre infância e poder, publicado há

cerca de 20 anos, encontramos um diagnóstico sobre os

problemas do mundo atual que segundo nossa apreciação

permanece 100% válido. Dizia Rodrigues, evocando a

filosofia grega clássica, que a maior parte dos problemas

referentes a comportamentos infantis excessivamente

rebeldes e sem limites, sociabilidades estilhaçadas e até

mesmo a violência são construtos de uma história social

fundamentada numa perspectiva hedonista. A busca por aquilo

que suscita prazer imediato seria, segundo o autor, o fio

condutor das escolhas do nosso tempo. Tal motivação teria

sido sedimentada pela instauração e proliferação do

consumismo, sobretudo – no caso brasileiro –após os anos

1960.

Esse imperativo hedonista transmutado em consumismo

cada vez mais exagerado, onde predomina o gosto por tudo

quanto seja descartável, tem construído ao sabor da

história social do nosso tempo um desapego generalizado por

tudo o que exala conservação. Preservar, resguardar,

consertar, cuidar para não estragar, para não destruir,

para não acabar... recomendações relegadas a um passado

distante que a ninguém parece interessar.

A VULGARIZAÇÃO DO CONCEITO DE TRAUMA E SUAS CONSEQUÊNCIAS

PARA A EDUCAÇÃO

Segundo Rodrigues, esse mesmo hedonismo invadiu as

concepções de educação infantil – desavisadamente, talvez –

e, em conjunto com as transformações no ritmo de vida das

pessoas, principalmente das mulheres5, propiciou o

surgimento de novas gerações de crianças e jovens que não

querem reconhecer limites aos seus impulsos, desejos e

fruições emocionais. Nesse trecho é interessante trazermos

alguns argumentos da pedagoga Tânia Zagury, quando ela

explica, dentro da história da educação, a origem dessa

5 Que não são mais cuidadoras full time das crianças e da família.

dificuldade com os “limites”. As concepções psico -

pedagógicas que apareciam nas revistas de divulgação

científica voltadas para um público de classe média,

principalmente entre os anos 1960/70, criticavam o

autoritarismo presente nas formas de educação tradicional,

e estavam absolutamente corretas. O problema – que só se

apresentou concretamente após os anos 1980 –é que não houve

a preocupação de informar o que deveria ser posto no lugar

da tradição e do autoritarismo para garantir o

compartilhamento de regras e valores que mantivessem a

viabilidade do bom convívio social. É como se nesse momento

da história as preocupações com o bem estar dos indivíduos

passassem a ocupar um espaço maiore relegassem ao

ostracismo as preocupações com o coletivo.

Esse predomínio psico - pedagógico do indivíduo foi

alcançado a partir do conceito de trauma, numa versão

popularizada é claro, informando a prescrição de que não

deveríamos “contrariar” as crianças, nem impor limites de

forma autoritária, para evitar que fossem “traumatizadas”

pelos excessos de rigor do mundo adulto.

Ninguém, em princípio, discordaria da crítica ao

autoritarismo e aos rigores excessivos da educação à moda

antiga. Parece-nos, entretanto, que os excessos cometidos a

partir dessa mesma crítica, têm gerado problemas sérios e

de difícil solução para as gerações que vieram após esse

momento histórico. Recorremos, mais uma vez, ao texto de

Zagury para explicar o equívoco e o vazio que estamos

tentando sinalizar. Segundo a autora, que se reconhece como

mãe e educadora dessa geração de transição, os adultos

acreditaram que se fossem honestos, transparentes,

cumpridores das regras e generosos para com as crianças

iriam receber em troca, de forma automática, honestidade,

transparência, cumprimento das regras e generosidade. Mas,

isso não aconteceu. E, a partir desse equívoco, não se

sabia exatamente como proceder com as crianças: manter-se

numa postura “anti-trauma” e não conseguir os resultados

esperados, retornar aos rigores do passado ou fazer o quê?

Diante desse quadro, vemos uma inversão total dos

atributos geracionais: são as crianças e jovens que estão

no comando. Eles decidem o querem ou não comer; o que

querem ou não vestir; o que querem ou não fazer. E se são

eventualmente contrariados pulam, saltam, gritam, batem no

adulto, rasgam a roupa, jogam o presente fora, xingam,

ameaçam, etc. ficando os adultos muitas vezes em situações

verdadeiramente vexatórias. É como se o mundo adulto, que

deveria cuidar da boa formação das futuras gerações

estivesse totalmente destituído de poder para o exercício

de suas atribuições sociais.

É como se o suposto “perigo do trauma”, agregado às

jornadas intensas de trabalho exercidas tanto por homens

quanto por mulheres, tivesse criado uma espécie de vazio

nas concepções educacionais e na responsabilidade cuidadora

e formadora das gerações mais velhas perante as mais novas.

Ou seja, a maior parte dos adultos, além de não saber muito

bem como conduzir a educação, começou também a não ter

tempo para dedicaraos mais novos.

Acompanhamos, portanto, o percurso da construção dessa

inversão de papéis geracionais, que nos fez compreender o

contexto em que o hedonismo consegue predominar, impondo o

prazer próprio (desde criança) acima de qualquer regra,

norma de convivência, ou interesse coletivo. Esse cenário,

se não explica completamente por que o bullying se alastra em

todos os lugares de convivência, no mínimo sinaliza a

congruência de alguns fatores que devem ser considerados

quando o elegemos como objeto de análise.

A BANALIDADE DO MAL E A INTERPRETAÇÃO DO BULLYING

Chegamos ao momento de nossa exposição em que

convidaremos Hannah Arendt a acrescentar algo de seu às

nossas análises. Trata-se da ideia de banalidade do mal. Nossa

autora cunhou essa expressão no contexto do julgamento de

um dos protagonistas do genocídio nazista: Adolf Eichmann.

Hannah conviveu brevemente com esse personagem na condição

de repórter de um jornal norte – americano, para cobrir o

seu julgamento em Israel, no ano de 1961.

As ações praticadas por Eichmann foram

indubitavelmente cruéis. Como funcionário do governo alemão

sob o domínio do Terceiro Reich , concebeu os campos de

concentração, assim como as formas de extermínio em massa

dos judeus. Comandou a perseguição, aprisionamento, os maus

tratos e o genocídio. Não há como ter dúvidas sobre os

efeitos maléficos de tudo o que praticou como membro de

alto escalão do staff nazista.

Cara a cara com a personagem, Hannah Arendt

verdadeiramente se surpreendeu ao verificar que esse ser

humano, que nossos pressupostos inconscientes levariam a

crer ser um psicopata, um desequilibrado, enfim, alguém que

exibisse alguma forma de “anormalidade”, possuía todos os

requisitos de um homem perfeitamente comum: bom filho, bom

pai, cidadão cumpridor de seus deveres. Além disso, não

apresentava qualquer tipo de sintoma que pudesse ser

interpretado como “doente mental”, “personalidade bipolar”,

“esquizofrenia”, nada que confortasse o nosso desejo de

responder à pergunta: como e por que uma pessoa consegue

praticar tanta maldade?

Tal descoberta lembra os militares latino-americanos

envolvidos com prisões, torturas e mortes em períodos de

ditadura, que entrevistados recentemente falam com muita

tranquilidade do período e, na maior parte das vezes, não

demonstram qualquer arrependimento ou embaraço por ter

participado de tamanhas maldades.

Hannah, através de seu trabalho, de suas reflexões e,

sobretudo, através de sua perplexidade, nos coloca diante

do grande embaraço de reconhecermos a banalidade do mal,

insinuando que não haveria resposta para nenhuma das

seguintes indagações: qual a “natureza” do mal? Que

características um ser humano precisa portar para ser

maléfico? A maldade é necessariamente planejada por seu

praticante? Qualquer pessoa pode realizar ações geradoras

de mal? O praticante do mal pode não se arrepender?

Todas as perguntas – sem resposta definitiva – nos

reconduzem à perplexidade de Arendt: não há como localizar

o mal, descobrir sua essência e seu modo de funcionamento,

propiciando nos prevenirmos contra ele, nem mesmo

aprendermos como exterminá-lo aqui ou ali. O mal não está

em lugar nenhum, nem pode ser explicado por fórmulas

precisas. Os atos podem gerar malefícios como consequência

e esses atos podem ser cometidos por qualquer um, pois, não

há como prever que pessoa poderá ou não praticar a maldade.

Não há um perfil, não há uma essência.

Retornamos, então, à interpretação da dinâmica do

bullyingna sociedade brasileira atual. Estamos vivendo tempos

sombrios, onde os valores da preservação dos vínculos e das

regras de conduta capazes de reproduzir a “reciprocidade”

foram postos em segundo plano, correndo risco de extinção.

Estamos vivendo tempos sombrios, onde se descartam os

objetos, as amizades, os parentes, os casamentos, as

divindades e a própria vida humana. Se tudo é, em

princípio, descartável e incessantemente substituído, ou

pensado como substituível, por que não descartar os seres

humanos? Não seriam as diversas formas de violência, os

assassinatos a sangue frio, frutos dessa mentalidade tão

afeita ao descarte?

O bullying retoma, então, no contexto de nossa análise,

o sentido da “ponta do iceberg”. Talvez ele seja a

manifestação/denúncia da rotinização do preconceito, da

discriminação, da demonização do outro, obrigando-nos a

parar para prestar atenção no que está acontecendo

exageradamente com nossas crianças e jovens, mas, também

com inúmeros adultos: um processo que podemos chamar talvez

de “desumanização”. E se podemos dizer que isso é um grande

mal porque é algo desagregador, destruindo a dignidade e o

respeito que todo ser humano deveria merecer, então temos

que reconhecer que essa maldade está sendo praticada pela

maioria das pessoas.

Nesse ponto, nos perguntamos junto com Hannah Arendt:

será que reconhecer a “banalidade”, a rotinização do mal,

significa afirmar que a maldade é algo que devemos encarar

com a mesma naturalidade com que entendemos que é “normal”

dormir, acordar, tomar banho, comer, beber, se relacionar,

ter filhos, aprender a falar, a andar, etc.? Certamente que

não. Ou seja, mesmo que algo se torne repetitivo, por isso

mesmo considerado comum numa determinada sociedade, num

período determinado, não significa que mereça ser encarado

comotranqüilo, desejável, recomendável como padrão

norteador para nossas ações cotidianas.

Mas, como essas atitudes maléficas se banalizam? A

resposta de Arendt, embora elaborada três décadas antes das

respostas de Rodrigues e Zagury apresenta extrema sintonia

com esses autores. Para ela isso se tornou possível a

partir do predomínio da superficialidade e da superfluidade

no contexto das sociedades de massa. Não seria essa

formulação uma maneira diferente de falar do “descarte”, do

individualismo e do hedonismo presentes em nossa sociedade

global?

Algo a mais deve ser esclarecido aqui. O “mal” de que

estamos falando não remete a uma interpretação moralista.

Trata-se, na verdade, de qualquer tipo de comportamento ou

ação que proporcione consequências destrutivas para a

humanidade, considerando o caráter eminentemente social que

define a própria natureza humana. Ou seja: atentar contra

as regras de sociabilidade é atentar - em alguma medida -

contra a preservação da humanidade.

EM TEMPOS DE ROTINIZAÇÃO DO BULLYING E DA VIOLÊNCIA: SERÁ

QUE A INFÂNCIA ACABOU?

Somos capazes, então, de reconhecer sintomas e

compartilhar diagnósticos sombrios, que nos fazem reler o

passado em busca de possibilidades melhores para o presente

e para o futuro. Lembramos que: a comunicação, a

aprendizagem, o cuidado mútuo e a transmissão de tudo isso

para as gerações novas são processos que nos dão

características próprias, humanas, diferenciando-nos dos

outros seres da natureza.

É exatamente dessas características rigorosamente

humanas que trata a educadora Sônia Kramer quando reedita o

conceito de “educar contra a barbárie”. Especialista em

educação infantil, a autora evoca as múltiplas capacidades

inerentes às crianças – um ser humano “em aberto” – para

nos lembrar que podemos reaprender todas as coisas, para

nos ensinar a sair do conformismo fatalista daqueles que

diagnosticam as violências e maldades do nosso tempo como

se revelassem uma condição histórica definitiva, sem saída.

Dentre esses diagnósticos fatalistas combatidos pela

autora encontra-se a ideia – transformada em senso comum –

de que a infância acabou. Percorrendo os caminhos da

análise sócio-política, Kramer desvenda o caráter

ideológico de tal diagnóstico, apontando os interesses de

classe e políticos a que a reafirmação dessa falsa verdade

serviria.

Endossando por completo os argumentos de Sônia,

gostaríamos de destacar o reforço que ela faz – mesmo que

de forma subliminar - à premissa de que é necessário que as

gerações adultas cuidem das crianças e jovens, ensinando a

eles que devem cuidar das próximas gerações. Assim,

reconhecer que os conteúdos de significado atribuídos ao

conceito de infância possam ter sofrido modificações é

apenas um corolário da percepção de sua historicidade. Daí

a inferir que, por causa dessa transformação conceitual, os

adultos não têm mais obrigação de cuidar das crianças e

jovens (!) além de não obedecer a qualquer lógica, seria

negar premissas definidoras do que há de “humano” na

humanidade. E aqui nos reencontramos – resguardando aportes

teóricos, filosóficos, e preocupações distintas - com todos

os autores que nos ajudaram a construir nossa análise.

PARA ENCERRAR

[...] mesmo no tempo mais sombrio temos o direitode esperar alguma iluminação, e que tal iluminaçãopode bemprovir, menos das teorias e conceitos, emais da luz incerta, bruxuleante e frequentementefraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidase obras, farão brilhar em quase todas ascircunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhesfoidado na terra (ARENDT,1987, p. 7).

O mundo adulto pode e deve recuperar as rédeas da

formação de nossas crianças e jovens. Deve, sobretudo,

recuperar o desejo e a disponibilidade emocional para

realmente cuidar das novas gerações.Tomemos como reforço de

nossa posição a fala de Leonardo Boff:

Sem o cuidado o ser humano deixa de ser humano. Se não receber cuidado desde o nascimento até a morte,o ser humano desestrutura-se, definha, perde sentido e morre.

Nosso autor retrata a necessidade de cuidados ao longo

de toda a biografia humana. Nesse ponto retomamos a poesia

de Milton Nascimento e Fernando Brandt que fala de um

adulto que, por ter sido muito bem cuidado quando

pequenino, recorre à memória de infância toda vez que se vê

aturdido, confuso, em apuros ou triste. Lembranças que

funcionam como um sol quente e luminoso em meio à escuridão

proporcionada pelos imprevisíveis e indesejáveis da vida.

No rol dos indesejáveis encontram-se costumes,

comportamentos, atitudes, com os quais aquele que tem uma

memória de infância alegre e aconchegante não consegue se

identificar: “Não posso aceitar sossegado qualquer

sacanagem ser coisa normal”. Os poetas prosseguem, dizendo

mais adiante: “(...) o solidário não é solidão, toda vez

que a tristeza me alcança o menino me dá a mão”. Uma

memória de infância bem construída, a partir de cuidados,

aconchego, solidariedade e alegria, torna-se eterna

companheira na resistência contra os mecanismos de

desumanização que possamos encontrar ao longo de nossa

história de vida.

Ao recuperarmos o sentido sedimentador de estruturas

solidamente humanas a serem plantadas na mais tenra

infância, estamos lidando , no plano individual, com as

mesmas premissas responsáveis pela constituição básica da

tessitura social. Asorganizações sociais tradicionais, com

suas infindáveis repetições de cerimônias de aniversários,

batismos, casamentos, iniciações, etc. rememoravam a cada

rito a necessidade da preservação dos vínculos, do dar –

receber – retribuir, para que a humanidade pudesse

reproduzir-se conservando bases de afeto e de memória

fortes e periodicamente renovados.

Todos os adultos devem responsabilizar-se pela

reconstrução dos alicerces humanitários a cada nova

geração. Assumir esse compromisso é educar contra a

barbárie, é estruturar-se metódica e apaixonadamente contra

os horrores do passado, sejam eles quais forem. É dedicar-

se a construir um presente que possa ser lembrado com

gratidão, com alegria e carinho e que possa servir como

suporte cada vez que precisarmos de reforço emocional e

ético.

Não há fórmulas mágicas nem instituições milagrosas: é

necessáriauma mudança geral de mentalidade, uma crítica

profunda de nossas próprias práticas, crenças, valores;

além de um grande desejo de se doar, de uma grande

disponibilidade para cuidar dos que nasceram depois de nós

e, por isso mesmo, dependem de nós.

REFERÊNCIAS

BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: Ética do Humano – Compaixão pela Terra. Petrópolis, Vozes, 2004.