5. Em busca de uma melhor explicacao

24
Em busca de uma melhor explicação do conhecimento do conhecimento, do homem e da realidade. Georgeocohama D. A. Archanjo ** Introdução Este texto é um texto ainda em construção. Vem ao longo do tempo se fazendo. Agora, inclusive, com a colaboração explicativa do jovem Tiago Saboia, em alguns trechos, considerados herméticos para alunos neo-universitários. Pelo título já se percebe a preocupação do autor sobre a necessidade do estudante não só de filosofia, mas como de todo e qualquer conhecimento específico, compreender como é possível o conhecimento humano, assimilando a idéia de que esse fenômeno se dá concomitantemente com a construção do homem e da realidade. Por ora, é o que se pode considerar como uma introdução também em construção. I. – A perplexidade do cosmos O universo está aí, sempre esteve e sempre estará. Não há princípio nem fim. É essa totalidade eterna e infinita. É a luta incessante dos seus elementos constituintes que criam e se recriam, que formam e se transformam, através de bangs e big bangs. Dessa luta infernal nasce a vida, “representação e presentificação de químicas passadas”. “Vida é bactéria”, na sua faina de retirar dióxido de carbono, produzindo oxigênio. Logo, a vida é um fenômeno, um fato, um ponto que se dá no Universo, multidiverso. Multidiverso, pois, os fenômenos que cercam o homem são dinâmicos, mutáveis. Cada coisa na natureza, no movimento que lhe é próprio, tende a transformar-se no seu oposto. Vemos o menino transformar-se em velho, o dia tornar-se noite, o que 1

Transcript of 5. Em busca de uma melhor explicacao

Em busca de uma melhor explicação doconhecimento

do conhecimento, do homem e da realidade.Georgeocohama D. A. Archanjo **

Introdução

Este texto é um texto ainda em construção. Vem ao longo dotempo se fazendo. Agora, inclusive, com a colaboraçãoexplicativa do jovem Tiago Saboia, em alguns trechos,considerados herméticos para alunos neo-universitários.

Pelo título já se percebe a preocupação do autor sobre anecessidade do estudante não só de filosofia, mas como de todoe qualquer conhecimento específico, compreender como épossível o conhecimento humano, assimilando a idéia de queesse fenômeno se dá concomitantemente com a construção dohomem e da realidade.

Por ora, é o que se pode considerar como uma introduçãotambém em construção.

I. – A perplexidade do cosmos

O universo está aí, sempre esteve e sempre estará. Não háprincípio nem fim. É essa totalidade eterna e infinita. É aluta incessante dos seus elementos constituintes que criam ese recriam, que formam e se transformam, através de bangs ebig bangs.

Dessa luta infernal nasce a vida, “representação epresentificação de químicas passadas”. “Vida é bactéria”, nasua faina de retirar dióxido de carbono, produzindo oxigênio.Logo, a vida é um fenômeno, um fato, um ponto que se dá noUniverso, multidiverso.

Multidiverso, pois, os fenômenos que cercam o homem sãodinâmicos, mutáveis. Cada coisa na natureza, no movimento quelhe é próprio, tende a transformar-se no seu oposto. Vemos omenino transformar-se em velho, o dia tornar-se noite, o que

1

outrora estava vivo morrer, e a primavera transmutar-se eminverno.

Parece, assim, que as coisas tendem a se transformar, e comisso tornar-se o contrário do que eram. Não é espantoso?! Comoa mesma coisa que estava viva, agora, é o seu oposto? Como aclaridade do dia se transforma na treva da noite? O mesmoobjeto passa a ser o contrário do que era. Porém, continuariaainda sendo o mesmo?

Este espanto inicial com a mudança das coisas para o seuoposto é que deu origem ao pensamento filosófico. Aristótelesdizia, por exemplo, que “a filosofia nasce do espanto”. O quepreocupava os primeiros filósofos era a explicação de como avariedade de coisas na natureza podia seguir um rumo queterminava no polo contrário ao que começara. Como encontraruma explicação para tamanha perplexidade?

O começo da história da filosofia surge com esta tomada deconsciência. Isto é dito porque para perceber estacomplexidade é necessário que se tenha consciência dela, quesó é possível, na vida.

Na vida, há a consciência da vida. A consciência daconsciência, a razão. A partir da consciência de algo, do queexiste é que a consciência se dá conta de si. Ë, no processode conscientização-construção do real que a consciência se dáconta de si. É sabendo algo, apreendendo-o, construindo-o, quese sabe que se sabe. Eis a razão. É na práxis, na atividadeque a razão se constituirá como razão humana, quando ocorre asuperação do conhecimento sensorial, do conhecimento natural,do intuir (um saber sem saber como sabe), num saber racional,um saber construtivo, um saber que constrói o conhecimento,conhecimento que representa o conhecido, mas não é oconhecido, é a sua abstração. É, mas não é. É o significado dosignificante, mas não é o significante. O saber sensorial é osentir, é um saber concreto. É um mundo objetivo concebido“sob a forma de objetos ou de dados sensoriais, e não comoatividade humana, como práxis”. Daí a dificuldade para seaprender a conhecer racionalmente. Este conhecimento, estanova forma de conhecer requer ações sistemáticas, metódicas,ordenadas, em resumo, esta nova forma de conhecer requerestudo, diferentemente do conhecer espontâneo, abrupto,

2

sensorial. Esse modo de conhecer produz um novo ser, o serhumano, um animal que transcende a animalidade, um serabstrato-concreto, espiritual-material que, conseqüentemente,produz um novo mundo, um duplo mundo, um mundo real e um mundoconceitual. Daí as dificuldades, as incapacidades, osempecilhos, os obstáculos, as lutas, as resistências, osenliços, toda uma indústria de falsas realidades no sentido deimpedir a proximidade com o real, com o concreto. Daí anecessidade do estudo, do estudar para compreender tudo. Daí osentir e o perceber para conceber, para criar. Daí ainevitabilidade da reflexão, do estudo.

II. – Sobre a reflexão humana

Se estudar fosse uma atividade espontânea, toda ahumanidade seria estudiosa, cientista, filósofa, sábia,constituída de artistas. Os desconhecedores do real, dascoisas e da realidade, praticamente não existiriam. Como não éassim, o que se vê, o que existe é um mundo de poucosestudantes e de menos estudiosos ainda. E raros são oscientistas e filósofos. Principalmente pelos modos de produçãoeconômico-sociais ocorrentes, ao longo da história dadesigualdade social e econômica, pela injusta distribuição derenda, o que gera, consequentemente, a ignorância, a inculturaou o que se denomina cultura vulgar, de massa,instrumentalizada, industrializada. São “prisioneirosguardados sob ferros em uma caverna”. É a maioria dahumanidade condenada ao limite das sombras, a perceber somentesombras, a viver eternamente no mundo das aparências, dastrevas, alienados. E para SE LIBERTAR, para ter conhecimento,para CONHECER LUCIDAMENTE, CLARAMENTE, tem que pagar. Oconhecimento deixa de ser público para ser privado. É otolhimento da transcendência. Isso tudo implica a existênciade diversos graus e espécies de conhecimento humano e que esteconhecimento está subordinado a diversas classes e categoriasde pessoas, ainda mais que o homem se define e se reconhececomo um ser de conhecimento, embora, ainda se veja, como HOMOECONOMICUS. E quanto mais profundo o conhecimento maisdesenvolvido o homem, mais amplo o real, mais avançada arealidade, porque o homem, o conhecimento e a realidade sãouma única e só existência, uma coisa só que se apresenta nessadiversidade. A unidade na sua diversidade.

3

Daí não existir violência mais monstruosa do que secondenar o inominado pré-humano a pagar para estudar, paraevoluir, tornar-se humano ou condená-lo a permanecereternamente na pré-humanidade. Esta é uma lei do capitalismo,este modo de produção recentemente considerado como natural(F. Fukuyama-1989). É como se o homem não fosse um sercultural, mas é o que ele é, embora resultante de um processoevolutivo natural, de uma luta incessante, ele só se constituicomo ser humano culturalmente! É um ser que não é umaferramenta, ao contrário, “ele faz suas próprias ferramentas,e desempenha todas as diferentes funções usando máquinas eferramentas separadas” (John Lewis, 1968). O homem não é umser especializado como os outros animais porque ele seautoconstrói, se autoproduz, é um vir-a-ser, não nasce dado,não surge pronto e acabado, não é uma ferramenta.

E é nesta luta evolutiva que surge a necessidade de estudarcomo um modo de prosseguir a evolução, agora como uma evoluçãodotada de consciência, direcionada, um desenvolvimento em doismundos, no mundo da natureza e no mundo da cultura.

Assim é que, quando um ser humano começa a estudar, estudarqualquer assunto, qualquer coisa, física, história,matemática, filosofia, religião, arte, qualquer conhecimentoespecífico, significa que ele alçou um grau acima dos demais,portanto passa a ser diferente, a ser um acadêmico,universitário, ou um autodidata, um ser de nível superior,sensível, cientista, artista, sábio. Um ser de racionalidade.E esta pretensa ou não superioridade se encontra no fato dedeixar de ser apenas um ser sensorial, em não pensar ou agirde modo vulgar, fragmentariamente, mecânico, ao nível do sensocomum, dito popular, mas em agir criticamente, ir às raízesdas coisas, dos objetos dos fenômenos, do real, da realidade,ser intuitivo/analítico, reflexivo, articulado, coerente,intencional, enfim um estudioso. Isso demanda dedicaçãolúdica, sensibilidade do artista-cientista, do artista-filósofo (ciência, arte e filosofia, uma coisa só, marcadapela teleologia da ratio humana, de que é isso aí).

Eis o milagre! O milagre da humanidade! O milagre da razãoconceitual!

Einstein dizia que “há duas formas de encarar a vida: uma,é acreditar que milagres não existem, a outra é acreditar quetudo que existe é milagre”.

4

Para Millor Fernandes, “milagre é o espantoso que seencontra com o inacreditável”.

Para nosotros milagre é a estupefação diante da maravilha,do prodígio. Milagre é a tomada de consciência daquilo que nãose conhece, a percepção de que desconhecemos algo, de que arealidade, ao menos, sob certo aspecto, ainda é ignorada pornós. Logo, é a consciência da inconsciência.

Milagre é a perplexidade intuitiva de McLuhan quandoafirmava que “o mundo em que vivemos é de faz-de-conta, que nossas fábricas,empregos, bancos e bolsas não são mais reais do que castelos imaginários...Vivemos neste mundo como sonâmbulos, em repetições de um pesadelo emlooping”.

Milagre é o que destaca o intolerante escritor baiano JoãoUbaldo Ribeiro, criador do Padre Eusébio e do SargentoGetúlio, o mais contemporâneo discípulo de Gregório de Matos ede Jorge Amado, quando, ao escrever uma crônica dominicalchamada “a realidade, essa desconhecida”, se espanta com ofato de muita gente acreditar piamente que existe umarealidade: “É evidentíssimo que não existe realidade nenhuma,ou pelo menos existem diversas realidades, infelizmente nemsempre à escolha do freguês”.

E é nesta linha de miraculosa intuição humana que JohnBrockman, no seu interessante livro (Einstein, Gertrude Stein,Wittgenstein e Frankenstein – reinventando o universo), daCompanhia das Letras, estica o insight do pensador canadense,destacando que:

“O homem cria instrumentos e depois se molda à imagem deles. A realidade éfabricada pelo homem. O universo é uma invenção, uma metáfora.”

“O coração é uma bomba” é uma declaração que todos aceitamos como umtruísmo. O cérebro é um computador é um enunciado que muitos agora começam aaceitar. Isaac Newton criou uma metodologia mecanicista A metodologia de Newtoninfluenciou a perspectiva reducionista que levou a medicina a examinar corações,pulmões e fígados - em suma, a compreender o corpo humano principalmente emtermos de suas partes constitutivas.

Agora, em conseqüência da tecnologia de computadores, um médico retirauma amostra de sangue, analisa-a com o auxílio de computador e recebe umrelatório cifrado com centenas de informações para diagnóstico. Em vez demáquinas, nós nos vemos como um processo de informação. A metáfora mudacontinuamente.

5

Seja qual for a linguagem descrita a que tenhamos chegado, o compreender arealidade torna-se realidade. Não dizemos que o coração parece uma bomba. Ele éuma bomba.

A idéia de que a realidade não é mais que a rede imaterial e transitória denossa linguagem descritiva já foi formulada de vários modos por vários pensadoresimportantes. Um dos mais iminentes dentre eles foi o físico Werner Heisenberg que,em seu famoso princípio de incerteza, demonstrou que a realidade em seu nível maisfundamental, ou subatômico, é mais “criada” do que “observada” pelos físicos.

Da mesma forma, o lingüista Benjamin Lee Whorf assinalou que nenhumindivíduo pode fazer uma descrição absolutamente imparcial da realidade,colocando-se acima das restrições de sua linguagem.

O poeta Wallace Stevens escreveu extensamente sobre o primado da teoria dadescrição. A esse respeito, ele considerava o mundo como sendo, ao mesmo tempo,a ficção suprema e a única coisa sobre a qual valia a pena refletir. Ele escreveu que“a crença última é a crença numa ficção, que sabemos ser ficção, nada maishavendo. A extraordinária verdade é a de saber que ela é uma ficção e que nelacremos de bom grado”.

Em 1973, Brockman expôs, numa conferência, em Big Sur, naCalifórnia, a ideia geral do universo como invenção, comoficção última, a partir do quadro conceitual sugerido peloartista James Lee Byars sobre a importância dos “Steins” nabase da consciência pós-moderna.

Para Brockman, os “Steins” são o físico Albert Einstein, aescritora Gertrude Stein, o filósofo Ludwig Wittgenstein e oDr. Frankenstein – Norbert Wiener – certamente o inventor daprimeira inteligência artificial, das idéias cibernéticas.

Na palestra, cada Stein simbolizava, resumidamente paranós, o seguinte:

“Einstein representava a revolução ocorrida na física do século vinte e queculminou num universo em que a realidade é a teoria, onde espaço e tempo nãoexistem salvo em relação ao observador, onde todas as representações da naturezasão de ordem matemática, onde há um limite fundamental do conhecimento físicona forma do meio pelo qual o percebemos. A idéia da curvatura do espaço, umespaço que não pode ser experimentado diretamente por nossos sentidos, é talvez oexemplo mais óbvio em que o universo deixa de ser percebido e passa a ser maisclaramente um ato mental. O universo não é. Ele apenas está”.

Gertrude Stein foi a primeira escritora a integrar em sua obra a idéia de umuniverso indeterminado e descontínuo. A linguagem era uma recriação intelectual.Ela usava a linguagem para negar preocupações com o significado ou com arepresentação. Como ela mesma ressaltou: “queria escrever como se todo instante

6

de escrita fosse completo em si mesmo, não como se estivesse conduzindo a algumacoisa”. Uma rosa é uma rosa. E um universo é um universo.

Ludwig Wittgenstein afirmava que “os limites da minha linguagem são oslimites do meu mundo”; “o fato místico não está no modo como as coisas são nomundo, mas em que haja mundo”.

As teorias cibernéticas de Norbert Wiener ampliaram nossacompreensão dos sistemas auto-organizados, sejam eles máquinas, idéias, sistemasecológicos ou relações humanas. O universo de Wiener interatua infinitamenteconsigo mesmo. Se a física newtoniana nos ensinava que o importante eram aspartes, Wiener demonstrou a importância dos padrões que articulam as partes. Eleassentou as bases para o advento da revolução da inteligência artificial.”

Ou seja, as teorias influenciam de tal modo a visão que ohomem possui da realidade, que para a maioria de nós a ela seconfunde com o próprio real. As concepções explicativas doreal, ou seja, as teorias, são instrumentos que melhorpermitem o conhecimento do mundo, mas isto não significa que ateoria explique cristalina e completamente o complexo universoque nos envolve.

Exemplo primoroso nos é fornecido pela cartografia. Pormais que um mapa seja perfeito, indicando todos os recortes dolitoral, e marcando com perfeita exatidão os limites entre asregiões, este mapa nunca será o próprio território, mas serásempre uma reprodução gráfica do que retrata. Para que o mapafosse exatamente igual ao território mapeado teria de possuiras mesmas dimensões daquilo que representa, o que não fazqualquer sentido.

Da mesma forma, por mais que seja eficaz uma teoria, elajamais se confundirá com a própria realidade, assim como omapa do Brasil não é o Estado Brasileiro. Uma teoria sempreterá respeitado seu lugar de eficaz instrumento paracompreensão da realidade, assim como o mapa nos auxilia acompreender os aspectos geográficos do território, mas estaimportante ferramenta não pode alcançar a primazia de sesubstituir ao próprio real. É como querer navegar nos rios deum mapa hidrográfico.

De qualquer sorte, as teorias que almejam explicar o realforam produtos de um espanto inicial, como resposta ao espantoda multiplicidade de fenômenos que envolvem o ser humano,conforme já assinalado. A teoria representa, por este aspecto,uma criação humana para responder às exigências dacomplexidade do real.

7

III. – O despertar para a Filosofia

Isso é criação e é o milagre da cognição, a natureza quese conhece a si mesma, por uma de suas peças, de suas partes,a unidade na sua diversidade. O surgimento das concepçõesracionais, lógicas (ou seja, diferentes de uma visão mítica oureligiosa) do universo, se inicia com Tales de Mileto, noséculo VI a.C., quando inaugura a ciência filosófica ou afilosofia científica, na hélade, o maravilhoso mundo grego, aoafirmar: “a água é a origem e a matriz de todas as coisas”,“tudo é um”. A abstração metafórica lógica (?).

Na lição de Nietzsche, “a filosofia grega parece começar com umaidéia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas.Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: emprimeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; emsegundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar,porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento:“Tudo é um”. A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidadecom os religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e no-lo mostracomo investigador da natureza, mas, em virtude da terceira, Tales se torna oprimeiro filósofo grego”.

Pela primeira vez na história das civilizações, nahistória da humanidade prescinde-se dos deuses, dosobrenatural para explicar o real, para demonstrar o porquêdas coisas, construir, elaborar a representação abstrata doreal, criar a realidade conceitual. É uma nova razão, um logos,uma ratio, um nous, um novo e efetivamente modo, método humanode se representar o real, de se construir a realidade, de sefazer o universo, de se demonstrar o conhecimento,construindo-se a si mesmo, o objeto e o próprio conhecimentológico, concomitantemente, simultaneamente, dialeticamente.Eis o milagre!

Portanto, as raízes da ciência ocidental estão entranhadasno período inicial da filosofia grega do século VI a.C.,provocando o despontar, o nascimento de uma nova razão, arazão científica que se revela na demonstração racional (umapropriedade intrínseca ao próprio homem, desprovida de umpoder sobrenatural).

8

Ou seja, enquanto que nas explicações míticas não háquestionamentos ou demonstrações seguidas por regras estritasde validade formal, no pensamento filosófico-racional toda equalquer convicção tem de estar aparada em razõessuficientemente demonstradas. Com isso não se quer dizer que opensamento mítico-religioso seja desprovido de “razão” ou nãofaz qualquer sentido. Pelo contrário. Porém, a maneira em quetal pensamento se estrutura obedece a outras “regras”. Já opensamento filosófico segue os princípios básicos da lógica,sendo eles, o da identidade, o da não-contradição, o do terceiro excluído e o darazão suficiente.

O princípio da identidade diz que todo objeto é igual a simesmo. Apesar de parecer absurdamente óbvio, é este princípioque nos permite distinguir as coisas umas das outras,diferenciando-as. Ademais, este princípio é a base doraciocínio matemático, já que uma equação é uma expressãoalgébrica que possui um sinal da igualdade no meio.

O princípio da não-contradição afirma que uma coisa nãopode ser e não-ser ao mesmo tempo, sob o mesmo modo e mesmacircunstância. Este papel que você tem em suas mãos, não podeser uma árvore ao mesmo tempo em que você o lê, por exemplo.Assim, se um enunciado que diz “o céu é azul” é verdadeiro,seu oposto (“o céu não é azul”), necessariamente será falso.Aqui se vê uma nítida diferença entre o pensamento mítico e oracional, pois nas mitologias, é comum vermos seres mágicosque são várias coisas ao mesmo tempo. “A contradição existepara a afirmação e negação simultâneas, mas não para umaafirmação que poderá ser negada num outro tempo”.

O princípio do terceiro excluído diz respeito ao fato deque nenhuma afirmação pode ser mais do que verdadeira oufalsa. Todo enunciado, ou é verdadeiro, ou falso. Não háterceira possibilidade (daí o nome “terceiro excluído”). Sedigo “a maça é vermelha”, esta proposição só pode ou serverdadeira, ou seu contrário. Não há meio termo. Contudo,alguém poderia dizer “e as questões de múltipla escolha?”.Mesmo nestes casos, ao se deparar com várias escolhas, apenasuma delas é verdadeira, e as outras são falsas, o que não fogedo binômio caracterizado pelo princípio do terceiro excluído.

Por fim, há o princípio da razão suficiente. Alguns não oconsideram como princípio lógico, tal como os outros três,porém, em virtude de sua importância para a história dafilosofia, teceremos um breve uma breve definição deste

9

princípio. Segundo sua interpretação, tudo o que acontece sedá por uma razão para haver acontecido desta forma, e não deoutra. Por mais improvável ou mesmo impossível que seja arealização de um evento qualquer, sua aparição sempre pode serexplicada por uma razão suficiente. Logo, tudo que acontecetem uma razão suficiente para ser assim e não de outro modo.Um célebre filósofo que se notabilizou, entre outras coisas,pela larga utilização deste princípio, foi o alemão GottfriedLeibniz (1646-1716). “O princípio da razão suficiente costumaser chamado de princípio de causalidade para indicar que arazão afirma que para tudo o que existe ou acontece há umacausa (nada é sem causa, costuma-se dizer para referir-se aoprincípio de razão suficiente)”.

Estes princípios são como que as pedras angulares dopensamento filosófico ao longo dos seus milênios deexistência. Os filósofos pré-socráticos romperam com atradição mitológica que os precedia exatamente pelo fato derespeitarem esses princípios ao explicar a realidade.

Daí em diante, isto é, desde os pré-socráticos é possívelconsiderar algumas linhas de pensamento, de compreensão doreal, de explicação do conhecimento, de filosofias: estasconcepções estão impregnadas de história, e se manifestam nahistória, configurando-se segundo a divisão estabelecida pelahistoriografia iluminista nos períodos antigos, medieval,moderno e contemporâneo. Assim, o racionalismo transcendentalsocrático-platônico e o realismo-moderado de Aristóteles, sãoexemplos da filosofia antiga; as concepções de SantoAgostinho, São Bernardo de Clairvaux, Alberto Magno, DunsScoto, Nicolau de Cusa e Tomás de Aquino são expressões dafilosofia medieval; o empirismo inglês (Francis Bacon, ThomasHobbes, John Locke, David Hume, George Berkeley, J. StuartMill); o racionalismo moderno de René Descartes; o criticismode Immanuel Kant, a monadologia de Gottfried W. Leibniz, adialética de George W. Hegel, Karl Marx e Friedrich Engels,eis os principais movimentos intelectuais que compõem afilosofia moderna; a filosofia analítica e o positivismológico (os lógicos-matemáticos e os neopositivistas em geral),a fenomenologia de Edmund Husserl/Martin Heidegger/Merleau-Ponty/Jean Paul Sartre, o estruturalismo de Levi-Strauss,Ferdinand de Saussure e Trubetzkoy, o pragmatismo de CharlesSanders Peirce/William James e John Dewey, são grandesexpoentes do fenômeno da pós-modernidade, que vai da

10

“desconstrução” dos dogmas modernos, ao neopragmatismo,configurando o que se conhece por filosofia contemporânea.

IV. – A construção do conhecimento

A representação abstrata, a explicação, a compreensão, aconstrução do mundo, do real pelo próprio real, já que aconsciência faz parte do próprio real, não é de maneira algumapacífica, simples. Ao contrário, parece ser profundamentecomplexa. No entanto, embora essa complexidade epistemológicase dê ao nível do entendimento, como diria Kant, não deixa deser uma operação da razão, que é terraqueamente universal. Deum modo geral o mundo se reconhece, explica-se, isto é, temtomado consciência de si mesmo através dessas correntesfilosóficas ou epistemológicas, por assim dizer.

Essas reflexões, todas elas, justificam-se pelo desejo dese conhecer o que for possível sobre o conhecimento: questõesgnosiológicas, epistemológicas ou ontológicas.

De um modo geral, os filósofos consideram que “a essênciado conhecimento nos conduz para o coração da metafísica, poiso seu estudo envolve a consideração da natureza e da estruturaontológica do sujeito e do objeto, isto é, da consciência e domundo”.

E Sartre é mais contundente quando afirma que: “Se, de fato,toda metafísica presume uma teoria do conhecimento, toda teoria do conhecimentopresume uma metafísica”.

Numa de suas belíssimas crônicas inteligentes e plenas deproficiência, publicada na Folha de São Paulo, o tricampeãomundial de futebol, médico e ex-professor universitário, hojeum diletante comentarista esportivo, Tostão, observa que “Freuddizia que tudo que seus pacientes descobriam após anos de análise, eles já sabiam.O mesmo acontece com os grandes craques. Eles realizam jogadas surpreendentes,belíssimas, mas não sabem como e porquê. Há um saber que antecede opensamento e o raciocínio lógico. Numa fração de segundos, o craque percebe osmovimentos e a posição do corpo dos companheiros e dos adversários, calcula avelocidade e a trajetória da bola, sabe o ponto exato onde ele vai chegar e decide oque fazer. Tudo isso sem pensar”.

11

O neurolinguista Dr. Lair Ribeiro, num de seus primeiroslivros, considerados como de auto-ajuda “O SUCESSO Não Ocorrepor Acaso”, RJ, Ed. Objetiva, 1993, p. 97, explica que “oconhecimento pode chegar ao mundo de várias formas” e ressalta que “hámuitas centenas de anos, em algumas regiões da África, as mulheres grávidas queestivessem com o parto atrasado bebiam o esperma do marido, e isso desencadeavao trabalho de parto. Quem ensinou isso às mulheres africanas? Hoje, sabe-se que oesperma é rico em uma substância chamada prostaglandina, e por isso tem apropriedade de estimular a contração interina”. E continua: “Nossos avós nosaconselhavam a tomar canja de galinha antes de deitar quando estávamosresfriados ou com alguma infecção. A canja de galinha é rica em ornitina e arginina,dois aminoácidos essenciais que estimulam a liberação do hormônio de crescimento(GH), liberado três horas após dormirmos. O GH não nos faz crescer mais depois deadultos, mas ajuda na transformação de gordura em músculos e estimula o sistemaimunológico”.

Vale acrescentar o fato de macacos na Ásia que após ingeriros alimentos freqüentemente roubados dos aldeões e se sentiremmal iam comer carvão vegetal que aliviava a sua indisposiçãoestomacal. O carvão fazia um efeito similar ao sal de fruta.

Há inumeráveis exemplos de conhecimento que pressupõem tudomenos a razão analítica que resulta do agir pré-humano.

No entanto, não há o homem, nem a realidade (objeto) e nemo conhecimento sem a relação-interação intencional-inconsciente (instintiva) que se estabelece entre o ser animale a coisa que se tornam nesta relação-interação, ao longo dotempo, do mesmo modo, (embora nunca igual), sujeito e objeto,respectivamente, e que neste ato (relação-interação) nascetambém o conhecimento, a consciência, a consciência daconsciência, isto é, o conhecimento se torna, portanto, aabstração no momento em que se evidencia pela repetição símileda ação não-consciente.

Isto quer dizer que o homem não nasce pronto, cheio dehabilidades, dominando o mundo com seu conhecimento e ciência.Nasce, sim, com capacidades. É só observar como as crianças nocomeço de suas vidas mal dominam as palavras, sua relação como conhecimento vai se formando ao longo do tempo.

Ora, o conjunto dos conhecimentos adquiridos permite umainterpretação da realidade. Porém, todo novo conhecimentoadquirido e acoplado ao já existente permite que se veja arealidade de uma nova forma, o que por sua vez dá aoportunidade de conhecê-la por outro ângulo.

12

É como aprender uma língua. Ao aprender palavras novas deum idioma, amplia-se o conhecimento sobre as coisas naquelalíngua. E este novo conhecimento apresenta uma faceta do realque antes se desconhecia. Esta novidade abre novas portas doconhecimento.

É por isto que o ser humano está em contínuo movimento, numincessante percurso dialético que permite que conheça ascoisas e seja influenciado por elas, num constante jogo deinfluências recíprocas. É por isto que o ser humano não possuiuma natureza pronta e acabada.

O homem é um animal quadrúpede nenhum, ou um “terceirochipanzé”. Nasce, ou melhor, surge como um animal inominado,um vir-a-ser, um ser que só será se se autoconstruir, se auto-gestar, ao se tornar um “bípede implume”, um ser que setornará racional através da ação existencial, adquirindo aconsciência de si, no processo de tudo conhecer, de tudoconstruir-reconstruindo. Enquanto os outros seres, os animais,os outros animais, mamíferos ou não, já nascem sendo leão,lobo, equinos, bovinos, suínos etc., o homem é um ser que setorna homem, que se transforma em homem, e ao se tornar homem,ao se perceber no mundo, compreenderá o mundo num processo deconstrução-compreensão, fundado no trabalho e,conseqüentemente, na comunicação.

Paulo Freire, após lhe ser conferida a medalha deLibertador da Humanidade, na Assembléia Legislativa do nossoEstado, por iniciativa da deputada e professora Maria JoséRocha, destacou, interpretando um texto de Ciência eExistência, de Álvaro Vieira Pinto, que:

“Na história nossa, dos homens e das mulheres, remotíssima, em determinadomomento da experiência no mundo, os seres humanos começaram a inventar apossibilidade de fazer alguma coisa a mais do que estar no mundo. Os outrosanimais não deram esse salto. Ficaram no mundo e sequer, possivelmente,perceberam que nós, seus companheiros de história, ao iniciarmos algo mais do queestar no mundo, começamos a experimentar uma forma diferente de estar nomundo, porque uma forma acrescida de estar no mundo, que era estar com omundo.”

“E, no momento em que nós começamos, estando no mundo, a ficar com o mundo,demos um salto extraordinário, porque o estar no mundo, que se alonga ao ficarcom o mundo, implicou, necessariamente, o começo da presença do ser humanocomo presença histórica. Agora, mais do que estar no mundo, ficando com o mundo

13

criamos o tempo, quer dizer, começamos a nos refazer. E foi exatamente, isso que,durante um processo bastante longo, gestou a possibilidade de termos consciênciado mundo e uma consciência de nós. Quer dizer, não seria possível pular de “nomundo” para “com o mundo” sem transar o tempo. E a transa do tempo gerahistória que, por sua vez, nos regesta, nos recria.”

“Isso seria inviável se não fosse possível, ou se não tivesse sido possível que um não-eu de todos, um não-eu, que era o mundo, nos constituísse como um eu. Ou seja, foiexatamente o mundo, como contrário de mim, que disse a mim: “Você é você”. E foiexatamente este eu que ficou eu, pela contradição do mundo como um tu-meu, queme fez dizer que o mundo é este, o mundo é isso. “Então, a consciência do mundo, aconsciência da presença do contrário, criou em mim a consciência de mim”.

Isso só ocorre por conta da organização evolutivaresultante de uma complexidade de variáveis, condicionantesinumeráveis que contribuem para a conscientização, inclusive efundamentalmente, das ações ainda inconscientes, mas nocaminho da construção da consciência.

Não fora assim, como se explicar os casos de meninos-lobo,na Índia; do garoto selvagem encontrado numa florestafrancesa; e o enigma de Kaspar Hauser, na Alemanha?

Assim, o conhecimento é a construção, ao mesmo tempo, dosujeito de conhecimento - o homem; da realidade (significadoabstrato-concreto), fundada no mundo real (significante),objeto a conhecer; e dele próprio, conhecimento, abstraçãoorgânica, significado-simbólico. O conhecimento é assim um atomúltiplo, triplo, a um só tempo, indivisível que se faz emtrês – trigêmeos. É uma interação.

O um e o dois fazem do três tudo. Isto é, o um e o dois éum só, porque o dois, o homem, é do um, o real (o mundo-natureza-coisa) que se faz em três, para ser de si conhecido.Tudo é um. É o nascimento de tudo, embora o tudo aí jáexistisse sem sê-lo, por não saber de si. Embora, o em-sisomente possa ser apreendido por mim, portanto, na minhaindividualidade, porque ele o é na sua totalidade.

Que isto significa? Que a relação de conhecimento écomposta por três partes, o homem (sujeito que conhece), omundo (objeto que é conhecido), e o conhecimento, que é oproduto da interação entre o homem e o mundo. Os “três sefazem um” significa a união indissolúvel entre as três parteselementares e essenciais que compõem a relação deconhecimento. Assim, não há conhecimento sem uma consciênciapensante (o homem), bem como este não seria possível sem um

14

objeto ou sobre um objeto. É por isto que esta tríade éinseparável da produção do conhecimento.

Somos uma coisa só: o homem, o real (o mundo) e oconhecimento. Somos uma realidade co-inciente. Isto é, umanimal que se conhece na relação com o outro e com a natureza.A mãe “vive” no filho que gesta.

Ao conhecer, como já mencionado, o homem constrói umarelação dialética com o mundo, que é a fonte do seuconhecimento, ao tempo em que é o objeto deste mesmoconhecimento. Assim, não há conhecimento “dado”, no sentido deser pronto e acabado, algo estático. Contrariamente, o saberse porta de modo dinâmico, pois muda as coisas e é mudado porelas. Porque o conhecimento não é o reflexo do mundo em mim,mas a construção da realidade no mundo.

A realidade é a cultura construída na natureza como umanova natureza, a natureza cultural. Ou seja, o homem cria arealidade, ao interpretá-la produz símbolos, crenças, arte,ciência tecnologia, e tudo isto integra o nosso real. Daí,quando o homem altera a natureza que encontra, impregna amudança com toda a sua cultura.

Para Hegel, Georg Hegel (1770-1831), o filósofo mais famosoda Alemanha na primeira metade do século XIX, “a razão não é apenaso entendimento da realidade como queria Kant, mas a própria realidade: o racionalé real e o real é racional”. É fato que o conhecimento não se dá forado real embora se constitua numa abstração, porque oconhecimento é a representação abstrata do real. É uma questãoteórica, apesar de o conhecimento ser um fenômeno práxico.

Cabe, no entanto, entender que “nem tudo que é real éracional”, como nos esclarece Herbert Marcuse (1898-1979), emRazão e Revolução. Pois, para Marcuse “essa era uma idéiaperigosa, pois nos leva a pensar que coisas reais – como osistema político existente – são necessariamente racionais”.“E nos lembrou que aquelas coisas que aceitamos como racionaispodem ser muito mais irracionais do que gostaríamos deadmitir”.

A vida humana é, portanto, uma vida cultural, consciente,histórica, extraída do mundo natural, no processo deconstrução tríplice acima explicado.

15

V. – As relações epistemológicas entre ohomem e o mundo

O mundo é uma coisa, é um nada que é tudo, algo a serconhecido-construído, que se torna objeto conhecido-construído. Isto é, a praia nunca foi praia, o mar nunca foimar, a floresta, a montanha, o rio, o lago, o sistemageocêntrico etc. etc. nunca foram senão a partir da construçãodo homem como recorte da sua existência intencional, daexistência humana, como concepção dada no existir, nanecessidade dada e criada, no mundo da cultura, que faz dohomem produto e produtor do seu próprio insight, no mundo o seumundo, insight que é abstração, conhecimento,representações/construções míticas, religiosas, artísticas oucientíficas e filosóficas, gradativamente como verdades,cópias do real.

O homem “cria” a realidade na relação que se entre ele e oreal. Quando se diz “o copo está sobre a mesa”, ocorre umarelação entre dois objetos que não está neles, mas em quem osrelaciona na sua consciência, no seu pensamento. Os enunciadosque são feitos sobre o real, quando se diz “isto é umafloresta”, ou “aquilo é um rio”, revelam o nosso modo derecortar o real, construindo a floresta ou o rio, como objetospara a consciência humana, para nós. Por isso pode-se dizerque a “praia nunca foi praia”, ou seja, nossa visão conceitualdo que é a praia é a realidade humana sobre o real, é o mundocultural, transcendental.

Embora tudo exista, sempre tenha existido e sempreexistirá, nada existe sem uma consciência da própriaexistência, isto é, o real existe, sempre existiu e existirá,sempre em transformação, em mudanças, mas se não houver umaconsciência dessa existência, consciência de si, do serparmenídico, do Uno, do Todo, é como se nada existisse. Istoporque as coisas só passam a existir para nós, depois que nosapercebemos dela, que tomamos consciência de que elas existem.Obviamente que a existência precede a essência, a consciência,consciência esta que se gesta na própria existência, num modusvivendi.

É um “cogitamus” não-cartesiano, resultado do fatohistórico, social, objetivo de que “nós pensamos”, o auto-conhecimento do ser, não inato, não conato nem congênito, mas

16

resultante da estrutura orgânica que cresce e se complexificaao longo do processo filogenético e sócioeducacional. Umaconsciência construída existencialmente numa estrutura dada, aprópria natureza socializada, humanizada, dialética, “não poruma evidência interior, mas por uma experiência exterior,social, histórica que engloba tanto a experiência objetiva do“eu conhecer os outros” como a experiência que eu não possodeixar de ter, do “eu sou conhecido pelos outros”“.

É essa consciência que ilumina o silêncio infinito doUniverso, criando a natureza cultural, ou melhor, a cultura danatureza, os deuses, os símbolos, as palavras, as metáforas,os cantos, os mundos do Mundo, o mundo platônico,aristotélico, cartesiano, kantiano, hegeliano, marxista,budista, taoísta, e haja mundo, e haja idéia de mundo,Filosofia é que não falta nem faltará, enquanto houver Mundocom CONSCIÊNCIA DE MUNDO.

Álvaro Vieira Pinto1 ensina que:

“A teoria do conhecimento tem de ser construída partindo não da subjetividadehumana, que, como tal, já é um produto secundário do processo da realidade, masda objetividade absoluta, da existência concreta do mundo em evoluçãopermanente, da vida, como dinamismo em expansão e complexidade crescente”.

O conhecimento é, em toda a sua escala, um modo de atuar do ramo doprocesso da realidade material que se especializou em forma de vida, e se constituipela evolução biológica. Por isso o grau que o conhecimento atinge em cada etapadessa evolução, ou seja, nas diversas espécies que se sucedem, representa sempre acaracterística mais saliente da realidade de cada espécie, na posição evolutiva emque se encontra.

A possibilidade de dominar a natureza, transformá-la, adaptá-la às suasnecessidades, este processo chama-se “conhecimento”.

O conhecimento existe desde que a organização da matéria começa a tomar ocaráter que a diferenciará, enquanto sistema vivo, do restante da natureza.

A largos traços, distinguimos três grandes etapas no processo doconhecimento: a) a fase dos reflexos primordiais; b) a do saber; c) a da ciência. Emtodas elas, a natureza intrínseca do conhecimento, a essência lógica que exprime asua realidade como fato objetivo, é sempre a mesma: é a capacidade que o ser vivopossui de representar para si o estado do mundo em que se encontra, de reagir a ele1 No seu famoso livro de 537 páginas, Ciência e Existência. Editora Paz e Terra -RJ, 1969. Resultado das aulas ministradas em Santiago do Chile, no Curso Avançado,no Centro Latino Americano de Demografia, durante o ano de 1967.

17

conforme a qualidade das percepções que tem, e sempre no sentido de superar osobstáculos, de solucionar as situações problemáticas, que se opõem à finalidade, aprincípio inconscientes, de sua sobrevivência como indivíduo e como espécie, maistarde tornada plenamente consciente na representação do mais desenvolvido dosseres vivos, o homem.”

A teoria crítica do conhecimento deve, portanto admitirestas duas premissas fundamentais: o conhecimento é umapropriedade geral da matéria organizada nas condições dematéria viva; e, ademais, em todas as suas modalidades setrata sempre de uma reação da matéria viva em face do mundocircunstante.

Para alguns autores, porém, mais radicais, o conhecimento éalgo inerente a qualquer ser no mundo, orgânico ou inorgânico,vivo ou morto, animado ou inanimado. Para ilustrar talhipótese, pode-se recorrer ao interessante exemplo damineralogia. Ora, quem quiser aprender um pouco de mineralogiadeve examinar os livros que tratam da matéria. Mas, seperguntássemos: “de onde vêm os conhecimentos que estão nostratados de mineralogia?”, a resposta seria simples: nosminerais, pois foram extraídos deles as informações constantesnos livros. Assim, para alguns, todas as coisas refletem oconhecimento, e em algum nível, mesmo o mais elementar,constituem-se como portadores de conhecimento.

VI – O MarxismoEscorado na obra de Karl Marx e Friedrich Engels, o

marxismo surge no séc XIX e apóia-se em três grandes tradiçõesintelectuais: a filosofia alemã (sobretudo em Georg WilhelmFriedrich Hegel e Ludwig Feuerbach), a economia políticainglesa e o materialismo francês do séc. XVIII. Delas, Marxrecebe grandes influências que as mescla para fundar uma novateoria, centrado no conceito de materialismo histórico.

E o que significa esta teoria? Basicamente, o fato de que ahistória é feita pelos homens, e segue uma certa lógica, umaordem subjacente ao montante das ações humanas. Bom, isto jásignifica, de imediato, que não é Deus quem faz a história,nem apenas os heróis ou grandes homens, poderosos políticos,embaixadores ou filósofos, mas todos os homens. Implicatambém, que todo evento histórico tem a sua razão de ser pelofato de estar imerso numa lógica intrínseca à história. Ou

18

seja, toda mudança na organização de uma sociedade (ahistória), a princípio, poderia ser explicada pela alteraçãoda organização econômica de uma sociedade. Daí o“materialismo”. Para Marx, antes dos homens constituírem algumnível de “consciência social”, eles necessitam organizar-separa produzir os bens que são necessários ás suassobrevivências. Antes de tudo, precisamos sobreviver, diz-nosMarx. E a forma pela qual vencemos as dificuldades que anatureza nos impõe é a formação de uma organização social paraa produção de bens, que, sendo necessários para a perpetuçãoda espécie humana, condicionam todas as outras instituiçõessociais.

Daí, alguns considerarem o fato de que a filosofia de Marxé uma filosofia do “concreto”, pois toma por base as relaçõesbásicas e concretas nas quais os homens vivem para daí deduziralguma coisa sobre a realidade. Esta é uma das críticas queMarx dirige a Hegel. Para este, o pensamento é o “ser”, ouseja, é a fonte da realidade, seu fundamento último. Arealidade, é apenas o reflexo da Razão, do Espírito Absoluto.Marx, contrariamente, acredita que o “ser” é que determina opensamento, sendo este o reflexo das condições materiais nasquais o ser humano se encontra. Se assim não fosse, comoexplicar a mudança na psicologia das massas (um dos atributosda superestrutura), toda vez que se sucede uma alteração nasrelações de produção?

O conhecimento, portanto, estaria centrado no dadoempírico, concreto, material. No entanto, não no sentido queentendiam os empiristas, como Hume. Para Marx, o concreto nãosão necesariamente as coisas que tocamos, cheiramos, ouvimos eexperiementamos de maneira geral. Concretas são as relaçõesentre os seres humanos numa sociedade. Numa palavra, concretaé a práxis humana. Nos diz Marx que a idéia de concreto nosentido de Hume, nos leva ao paradoxo solipsista, ondeignoraríamos a consciência das relações intersubjetivas,acredidando apenas na existência do nosso proprio “eu”. Isto éum profundo engano, na medida em que as relaçõesintersujbetivas constituem o âmago da práxis, pois os homensprecisam uns dos outros para sobreviverem. Não podemos nosesquecer que a organização da produção é sempre social.Sozinho, um homem não é homem. Não realiza as suaspotencialidades. Por isso o concreto estaria fulcrado na

19

prática humana, constituída, obviamente, pelos homens e porseus semelhantes.

Isto nos leva à construção do método da economia políticade Marx. Esta se assenta nas idéias acima mencionadas, quedevemos partir do empírico para almejarmos a realidadeconcreta, tomando um caminho pelo qual nos cruzaremos com oabstrato. Daí a noção de que a lógica dialética supera adistinção entre lógica concreta e lógica formal (abstrata),pois ambas são sintetizadas num mesmo processo através do qualconceitualizamos certas relações concretas extraídas doempírico.

Vemos assim, portanto, que a práxis é o fundamento dafilosofia marxista. É por ela que atingimos a superação dascontradições entre matéria e espírito, ação e contemplação,teoria e prática. Na ação, o homem altera o seu objeto deconhecimento, na mesma medida em que o constitui e o conhece.Por isso somos históricos. A historicidade caracteriza-se pelamudança, pelo devir, por aquilo que “é” num momento, e depoisjá não é mais. Toda esta dialética do real é plasmada, em suadimensão social, pelo homem. A dialética da natureza encontrao seu fundamento da teoria da evolução das espécies. DaíGheorghi Plekhanov, grande teórico marxista russo, o “pai domarxismo russo”, dizer-nos que o marxismo é a realização nosestudos historio-sociológicos, da teoria darwninana daevolução.

VII - Conclusão: as concepções pós-modernassobre o conhecimento

A filosofia de Kant, por mais revolucionária e importanteque tenha sido, não colocou um ponto final na história dasideias sobre o conhecimento. Também, as ideias de Marx foramaceitas por uns, e refutadas por outros, dando continuidade aodebate sobre o tema. Assim, é interessante perceber como ateoria do conhecimento modificou-se ao longo da história dafilosofia. Depois destes filósofos, outros pensadorescontinuaram a debruçar-se na tarefa de compreender oconhecimento humano.

20

Para muitos historiadores da filosofia, atualmente vivemosnum período histórico-filosófico chamado de pós-modernidade.Este conceito designa o período que os historiadores conhecempor contemporaneidade, que situa-se aproximadamente entre omeado do séc. XIX e prolonga-se até os nossos dias. Bem, masentão o que caracterizaria, no sentido filosófico, todo esteperíodo? O que há de comum entre as mais diversas escolasfilosóficas surgidas neste tempo?

Em uma palavra, poderíamos dizer que todas elas, cada umapor meios distintos, criticam vários pressupostos contidos nopensamento moderno (período anterior à pós-modernidade).Alguns destes pressupostos seriam a racionalidade, a crença napossibilidade de um conhecimento objetivo da realidade, aacumulação progressiva de conhecimento, a crença no progressohistórico, econômico, social, moral, intelectual, dentreoutras crenças.

Dados os pressupostos e o contexto nos quais estãoinseridas estas escolas, destacaremos as principais filosofiaspós-modernas (sob o nosso ponto de vista), e falaremossucintamente sobre cada uma delas: filosofia analítica,estruturalismo, pragmatismo, fenomenologia, existencialismo,entre outras.

A filosofia analítica surge entre o final do séc. XIX ecomeço do séc. XX, e tem por fundadores os filósofos GeorgeMoore e Bertrand Russell. O nome pelo qual esta corrente éconhecida advém de um dos seus principais conceitos, o de“análise”. Mas análise de quê? A análise da linguagem. Istosignifica que, quando procuramos descobrir o significado dealgum termo, devemos observar a forma pela qual ele éutilizado comumente. Esta é uma crítica, de certa forma aosmetafísicos, quando estes insistiam na busca pelo “Ser” suascomplicadas significações. A resposta para os problemasfilosóficos, portanto, não seria encontrada num fundamento“abstrato-metafísico”, mas sim nas análises das proposiçõesque constituem os enunciados dos discursos. Dada a ênfase nalinguagem que esta escola permite, alguns a alcunham de filosofiada linguagem.

O estruturalismo, por sua vez, é um produto do séc. XX.Surge na teoria linguística de Ferdinand de Saussure eencontra apoio em toda a escola sociológica francesa (pelo

21

menos até a metade de séc. XX). A idéia básica desta “escola”nos diz que a cultura humana e os seus atributos (linguagem,instituições sociais, enfim), organiza-se como um sistema,cuja alteração da posição de um elemento neste sistema,implicará na mudança ou reorganização de toda a estrutura. Umsimples exemplo pode ser dado com a organização das letrasnuma palavra. Temos a palavra “boba” (um adjetivo formadopelas letras b/o/b/a) e “babo” (verbo babar no presente da 3ªpessoa no singular). Vemos como a alteração da posição dasletras na palavra, pode alterar todo o sentido da frase. Assimtambém acontece com as estruturas fundamentais da cultura:cabe aos estruturalistas encontrar, pois, os nexos que regulamas permutas entre os elementos. Lévi-Strauss, um dosrepresentantes desta corrente na antropologia, acredita que oincesto é uma “norma” cultural que regula a permuta entremulheres de uma família, por exemplo. No campo filosófico,têm-se destaque para as obras do francês Michel Foucault.Ainda que ele não se reconheça como estruturalista, algunsespecialistas em historiografia contemporânea, como PeterBurke, por exemplo, o classificam como um “membro marginal” da3ª fase da “Escola dos Annales”, que foi um marco nahistoriografia do séc. XX, de influência estruturalista. Ascarcterísticas “estruturalistas” nas obras de Foucault sãomais reconhecidas nas suas obras “históricas”, tais como “AHistória da Sexualidade”, onde a noção de história apresenta-se como um conjunto de estruturas, ou seja, configuraçõesculturais, que não possuem relação de linearidade e/oudependência com as suas subseqüentes. Assim, passa-se a nãomais fazer sentido a tríplice articulação do tempo em“passado-presente-futuro”, pois não há continuidade naapreensão do tempo.

O pragmatismo surgiu nos Estados Unidos, no séc. XX, e tempor principais representantes os filósofos Charles SandersPierce, William James e John Dewey. A concepção básica destaescola filosófica nos diz que a verdade de uma idéia,enunciado, teoria, ou pensamento qualquer só pode serverificado pelas conseqüências práticas que é capaz de gerar.Ou seja, verdadeiro é aquilo que é prático e útil para o todosocial. A verdade, pois não estaria localizada “no fundamentoúltimo da realidade”, mas sim na possibilidade que algumaidéia possua algum grau de contribuição ao “progresso” de umadeterminada sociedade. Uma nova concepção reformulada destaabordagem filosófica, batizada de “neopragmatismo”, irrompe

22

após à 2ª Guerra com vários filósofos (John Rawls, Davidson,Putnam, etc), sob a “liderança” de Richard Rorty. Atualmente,destaca-se o papel de Jurgen Habermas, que apesar de serconsiderado um “frankfurtiano”, enveredou-se pelas concepçõespragmatistas na sua fase mais “atual”.

A fenomenologia advém dos trabalhos de Franz Brentano noséc. XIX, e busca responder a pergunta acerca da natureza daconsciência. Para os idealistas, a consciência é uma formapura, que condiciona a forma pela qual enxergamos a realidade.A consciência, portanto, teria a sua essência num conjunto deestruturas que condiciona o pensamento. Para o realismo, noentanto, a consciência é um reflexo da própria realidade, coma qual entramos em contato através dos sentidos. Afenomenologia refuta ambas as teorias para conceber a idéia deque a consciência define-se pela sua intencionalidade. Istosignifica que a consciência tem a sua essência em atos, não emsubstancias. Mas quais seriam estes atos? Imaginação,especulação, volição, percepção, por exemplo. A essência daconsciência caracterizaria-se pelo que ela “faz” (por assimdizer), e não pelo que ela “é”. Um grande nome da história dafenomenolgia foi o alemão Edmund Husserl. Uma das suascontribuições consiste na inserção da própria consciênciaenquanto participante do mundo fenomênico. “Os trabalhos deHusserl influenciaram decisivamente a filosofia heideggeriana,onde encontramos várias noções que foram trabalhadas,inicialmente, por Hursserl.” Martin Heidegger, em suaprincipal obra, Ser e Tempo, esboça o projeto de umafenomenologia da presença, mostrando os vínculos indissolúveispostos entre a fenomenologia e o existencialismo. Para este, aresposta à pergunta do sentido do Ser, só se atinge quandocompletada uma análise existencial da presença (a Analítica),ou seja, uma compreensão do ser humano pela perspectivaexistencial. A fenomenologia, deste modo, contribuiu demaneira significativa para os trabalhos de Sartre,considerado o maior nome do existencialismo francês.

O existencialismo surge no final do séc. XIX, tendo os seusgermes nas teorias de Friedrich Nietzsche, Sören Kierkegaard,e Martin Heidegger, “reverte” toda a tradição racionalistacentrada em René Descartes. O existencialismo encontra no séc.XX na figura de Jean Paul Sartre um dos seus principaisrepresentantes. Influenciado pela fenomenologia, sobretudo noque toca aos trabalhos de Heidegger, Sartre concebe que o ser

23

humano só pode definir-se, ou seja, encontrar a sua essência,depois de existir (o que nos reporta à concepção heideggerianado primado ôntico/ontológico da “Analítica Existencial”).Isso, que talvez nos pareça bastante óbvio, representa anegação do “penso, logo existo” cartesiano, onde o homem sóexiste, porque antes pensa. Sartre inverte a situação ao dizerque o viver, é anterior ao pensamento. Como as vivências sãoindividuais, cada um encontrará a sua essência no caminhoparticular da sua existência, o que nega a ideia de umaessência humana universal.

24