1846) O que Portugal nos legou?; um balanço de 1808-1822 e as perspectivas do presente (2007)

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O que Portugal nos legou? um balanço de 1808-1822 e as perspectivas do presente Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org ; [email protected] ) 1. Um introdução em retrospectiva Aproximando-se as comemorações pelos 200 anos da vinda da família real portuguesa para o Brasil, em janeiro de 2008, caberia talvez fazer uma espécie de balanço em torno do que isto representou para o Brasil e sobre o quê, em decorrência desse fato, mudou na vida da jovem nação, então em fase de constituição, independentemente de continuar, durante alguns anos mais, a estar formalmente subordinada a Portugal (tendo passado a Reino Unido, isto é, a um estatuto quase pleno de autonomia, em 1816). Uma maneira de fazê-lo seria a de proceder uma espécie de confronto entre o “então” e o “agora”, ou seja, examinar a situação econômica do Brasil, tal como ela se apresentava em 1808, acompanhar as mudanças ocorridas a partir daí, até a independência ser consolidada, grosso modo em 1825, e verificar, então, o que se fizemos desde aquela época, ou seja, nos últimos 200 anos. É o que tentarei fazer no presente texto, mas confesso que uma grande pergunta me assalta a mente. Ela poderia ser formulada da seguinte forma: Por que o Brasil, desde o início do século XIX até este início de século XXI, falhou em realizar as promessas de desenvolvimento contidas na primeira e na segunda revoluções industriais, ocorridas ao longo do século XIX e no decorrer do século XX, como fizeram muitos outros países, e por que ele 1

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O que Portugal nos legou?um balanço de 1808-1822 e as perspectivas do presente

Paulo Roberto de Almeida(www.pralmeida.org; [email protected])

1. Um introdução em retrospectiva

Aproximando-se as comemorações pelos 200 anos da vinda da

família real portuguesa para o Brasil, em janeiro de 2008,

caberia talvez fazer uma espécie de balanço em torno do que

isto representou para o Brasil e sobre o quê, em decorrência

desse fato, mudou na vida da jovem nação, então em fase de

constituição, independentemente de continuar, durante alguns

anos mais, a estar formalmente subordinada a Portugal (tendo

passado a Reino Unido, isto é, a um estatuto quase pleno de

autonomia, em 1816).

Uma maneira de fazê-lo seria a de proceder uma espécie de

confronto entre o “então” e o “agora”, ou seja, examinar a

situação econômica do Brasil, tal como ela se apresentava em

1808, acompanhar as mudanças ocorridas a partir daí, até a

independência ser consolidada, grosso modo em 1825, e

verificar, então, o que se fizemos desde aquela época, ou

seja, nos últimos 200 anos. É o que tentarei fazer no presente

texto, mas confesso que uma grande pergunta me assalta a

mente. Ela poderia ser formulada da seguinte forma:

Por que o Brasil, desde o início do século XIX até este

início de século XXI, falhou em realizar as promessas de

desenvolvimento contidas na primeira e na segunda revoluções

industriais, ocorridas ao longo do século XIX e no decorrer do

século XX, como fizeram muitos outros países, e por que ele

1

falha, ainda e sempre, em acompanhar as tendências mais

dinâmicas do século XXI?

Em outros termos, e vista a mesma pergunta por outro

ângulo: o quê, exatamente, nos separa de 1808-1822 em termos

de realizações e conquistas? Ou ainda: será que somos, 200

anos depois, tão diferentes assim, do que éramos na conjuntura

do estabelecimento da família real portuguesa entre nós?

Estabelecida a hipótese de trabalho, os objetivos do

presente ensaio de revisão histórica poderiam ser assim

estabelecidos: quais eram as condições de partida do Brasil,

no contexto colonial português e europeu?; qual era o peso do

Estado, que sempre constituiu, então e agora, nossa

característica fundamental em termos de organização política e

social?; como era e como está, agora, o ambiente de negócios,

provavelmente pavoroso e piorando?; como andamos de

empreguismo estatal e de irresponsabilidade fiscal?; será que

essa mania de construir palácios para o setor público, como já

então se via, é nova?; como defendemos nossos recursos

naturais, econômicos, humanos e institucionais?; quais eram e

quais são as nossas deficiências essenciais nesse campo?; por

que as políticas adotadas por nossas elites conseguem ser tão

equivocadas nos planos macro e no micro?; qual foi o nosso

desempenho econômico em perspectiva comparada com outros

países?; como caminharam os outros?

Enfim, esta tentativa de balanço visa, simplesmente,

analisar de onde viemos e onde estamos atualmente. Acredito,

pessoalmente, que fizemos grandes progressos nestes 200 anos,

mas esses avanços podem, ainda assim, ser considerados

2

insuficientes, em vista de tudo o que poderíamos ou deveríamos

ter feito, e em face dos enormes desafios que ainda temos que

enfrentar para podermos apresentar-nos ao mundo, 200 anos

depois, como uma nação desenvolvida, o que ainda não somos.

Mas, desejo desde já deixar constância de um fato, que pode

ser considerado como uma mera opinião, mas ela vem sustentada

em uma infinidade de “provas materiais”:

Não, não creio que os portugueses – o povo ou a família

real – sejam culpados pelo que somos ainda hoje, ou seja, um

país industrialmente desenvolvido, mas socialmente iníquo,

economicamente avançado, mas socialmente atrasado,

cientificamente realizado, mas tecnologicamente mal dotado.

Não se devem aos portugueses nossos comportamentos atávicos e

nossos fracassos de modernização. Eles não podem responder

pelo que fizemos desde 1822. Nós mesmos somos responsáveis

pelo muito que conseguimos fazer neste período, em termos de

construção da nação, assim como devemos ser considerados

culpados pelo quadro lamentável no plano social ou educacional

que ainda contemplamos hoje.

Parte do que vou aqui dizer – pelo menos a conjuntura

histórica do “processo da independência”, como diria o

historiador Manoel de Oliveira Lima – encontra-se descrito com

maior grau de detalhe na minha contribuição, “A formação

econômica brasileira a caminho da autonomia política: uma

análise estrutural e conjuntural do período pré-

independência”, que constitui um dos capítulos da coletânea

coordenada por Rubens Ricupero e Luiz Valente de Oliveira,

3

sobre Os 200 anos da Abertura dos Portos (São Paulo: Editora Senac-SP,

2008).

2. O que Portugal nos legou, exatamente?

Uma breve relação do que Portugal implantou na terra

“braziliense” – como diria José Hipólito da Costa, o grande

cronista independente da conjuntura que estamos analisando –,

desde o período colonial até a independência, poderia ser

resumida na seguinte lista:

1. A língua portuguesa, obviamente;

2. Um povo aberto à miscigenação racial;

3. Instituições estatais exacerbadas e muito

centralizadas;

4. Uma diplomacia bastante competente e alerta aos

“negócios” do mundo;

5. Comportamentos rentistas, patrimonialistas e

extrativistas em economia;

6. Um judiciário antiquado, desde a origem, e

provavelmente corrupto, também;

7. Uma religiosidade pervasiva, mas bastante maleável e

integradora, finalmente;

8. Uma introversão nos comportamentos e a desconfiança do

que é estrangeiro.

Não pretendo desenvolver cada um desses pontos de maneira

sistemática, tanto porque alguns deles dispensam maiores

comentários, como o fato da língua portuguesa, por exemplo. A

despeito de não ser ela uma das línguas científicas, de

4

comércio ou de cultura universal, em virtude da baixa

qualificação original de Portugal nessas áreas, graças ao

espírito aventureiro e desbravador dos líderes do pequeno

Estado europeu, ela se espalhou por três ou quatro

continentes, o que hoje permite constituir uma comunidade de

povos lusófonos que pode servir para ampliar os horizontes

culturais e econômicos desse substrato lingüístico. Da mesma

forma, a maleabilidade religiosa e, sobretudo, a racial são

dois traços importantes da nossa nacionalidade, sendo que o

segundo é distintivamente português, embora o primeiro seja

mais controverso, em vista da carolice e do tradicionalismo

religiosos de Portugal. Mas, o confronto com tantos povos e

tradições culturais e religiosas distintas permitiu um

sincretismo religioso bastante rico que, ainda que não

existente na metrópole, passou a se desenvolver nas colônias

desde cedo. Quanto à mistura racial, ela constitui um dos

traços mais importantes da nossa formação étnica e, ainda que

alguns estejam, hoje, tentando substituí-la por uma cultura do

apartheid racial – sob a forma de programas de ação dita

“afirmativa” e de valorização da negritude, que nada mais

constituem do que um programa de construção da separação

racial e, portanto, do racismo –, ela deve ser valorizada pelo

que representa de legado a ser projetado no futuro, na certeza

de que certamente conseguirá superar os proponentes atuais do

racismo e da separação racial.

Não necessito, por outro lado, deter-me em demasia na

competência diplomática, que constitui, sim, um excelente

legado português, uma vez que as boas heranças devem ser

5

mantidas e desenvolvidas. Uma atitude auto-congratulatória

constitui, porém, a mais segura receita de estagnação e

retrocesso, pois que o excesso de confiança nas próprias

virtudes induz a erros de julgamento e a uma predisposição

para a não-mudança.

Pretendo-me deter em alguns aspectos desse legado

português e verificar em que medida fomos capazes de vencer as

dificuldades do momento inicial – feito de construção da nação

praticamente a partir do zero – e desenvolver nossa capacidade

de vencer novos desafios ao longo do tempo, construindo, ou

não, uma nação inclusiva e próspera.

3. O que falava do Brasil um globalizador esclarecido do

século XVIII?

Comecemos por uma citação de uma mente avançada do

Iluminismo, ou seja, um observador contemporâneo do império

colonial ultramarino português:

“O Brasil converter-se-á num dos mais formosos

estabelecimentos do globo (nada para isso lhe falta) quando o

tiverem libertado dessa multidão de impostos, desse cardume de

recebedores que o humilham e oprimem; quando inúmeros

monopólios não mais encadearem sua atividade; quando o preço

das mercadorias que lhe trazem não mais for duplicado pelas

taxas que andam sobrecarregadas; quando os seus produtos não

pagarem mais direitos ou não os pagarem mais avultados que os

dos seus concorrentes; quando as suas comunicações com as

outras possessões nacionais se virem desembaraçadas dos

entraves que as restringem...”

6

O autor desta passagem, absolutamente pertinente para os

nossos dias, é o francês Guillaume-Thomas Raynal, mais

conhecido como Abade Raynal (1713-1796), na Histoire philosophique et

politique des établissements et du commerce des européens dans les deux Indes

(publicada em Amsterdã, a partir de 1770, para o primeiro dos

seis volumes da obra); a tradução deste trecho para o

português foi feita pelo diplomata e historiador Manuel de

Oliveira Lima, no D. João VI no Brasil (3a. ed.; Rio de Janeiro:

Topbooks, 1996, p. 58-59).

Incrível, de fato, a atualidade dos argumentos

transcritos acima, de uma das cabeças mais lúcidas do século

XVIII francês, um pouco obscurecido, é verdade, pelos

enciclopedistas Diderot e D’Alembert, com os quais, porém, ele

pode ser comparado com grande vantagem. Anti-escravista em

plena era do mais intenso tráfico africano (ele vinha de uma

família de mercadores que enriqueceu no comércio de escravos),

pensador iluminista, profundo conhecedor das coisas do mundo,

mesmo sem ter viajado fora da Europa, o abade Raynal poderia

ser descrito, em linguagem moderna, como um “globalizador

esclarecido”, categoria à qual eu mesmo me orgulharia de

pertencer, se existisse entre nós um tal clube filosófico.

Com efeito, a sua provocadora Histoire philosophique et politique

des établissemens & du commerce des européens dans les deux Indes pode ser

classificada como o primeiro “tratado da globalização” dos

tempos modernos. Os franceses, sempre suscetíveis nessas

coisas de anglofonia, talvez preferissem chamá-la de premier

traité de la mondialisation. [Nota: Os leitores interessados em ler na

íntegra esta obra, obviamente na linguagem original de 1770,

7

em francês, podem descarregá-la, da base de dados “Frantext”,

do Institut National de la Langue Française, na coleção Galica

da Bibliothèque Nationale de France, a partir deste link:

http://visualiseur.bnf.fr/Visualiseur?

Destination=Gallica&O=NUMM-89431.]

Raynal começava sua obra proclamando a mudança radical

que tinha sido a passagem do cabo da Boa-Esperança: “uma

revolução começou então no comércio, na potência das nações,

nos costumes, na indústria e no governo dos povos. Foi nesse

momento que os homens dos lugares mais distantes se fizeram

necessários: os produtos dos climas equatoriais são consumidos

nos climas vizinhos do pólo; a indústria do norte é

transportada ao sul; os tecidos do Oriente vestem o Ocidente

e, em todas as partes, os homens intercambiam suas opiniões,

suas leis, seus hábitos, seus remédios, suas enfermidades,

suas virtudes e seus vícios” (Nota: minha tradução, a partir

do arquivo acima citado). Continuava, um pouco mais adiante, o

abade Raynal: “Como essas descobertas influenciaram a situação

dos povos? Por que, enfim, as nações mais florescentes não são

exatamente aquelas com as quais a natureza foi mais pródiga?”

Ele começa, então, a explorar essas questões, partindo do

pressuposto da unificação comercial do mundo sob a hegemonia

do se poderia chamar, hoje em dia, de capitalismo global. Sua

análise é absolutamente atual, podendo-se dizer que seus

argumentos se referem exatamente à globalização contemporânea.

De fato, as nações mais prósperas não são aquelas mais bem

dotadas de recursos naturais – embora esse fator seja

importante, como no caso dos Estados Unidos – e sim aquelas

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que desenvolveram seus recursos humanos. Não fosse assim, o

Japão seria um conjunto de ilhas de desenvolvimento médio, ao

passo que os gigantes do petróleo, como Nigéria, Irã e

Venezuela, seriam países avançadíssimos nos campos social e

tecnológico. Esta advertência inicial serve apenas para

moderar o entusiasmo daqueles que acreditam que o Brasil é um

gigante destinado, pela própria natureza, a ser uma das

grandes potências mundiais, apenas por deter imensos recursos

naturais. Nada é garantido, como já ensinava o abade Raynal em

1770...

Sua leitura nos relembra, também, no que se refere a cada

um dos pontos levantados por Raynal, em 1770, é que

continuamos a ser extorquidos por uma multidão de impostos,

por um cardume de recebedores, nossas mercadorias carregam o

peso de muitas taxas e ainda enfrentam protecionismo duplo,

aqui e lá fora. Duzentos depois da chegada da família real e

da abertura dos portos, o que temos, é exatamente aquilo que

descrevia o Abade Raynal.

4. Comecemos, justamente, pelos impostos: o que havia em 1808,

o que temos hoje?

O que existia, no momento da chegada da família real?

Esta era a coleção de impostos, taxas e contribuições em vigor

em 1808:

(A) Tributos de incidência local: selos, foros depatentes, taxas do sal;

(B) Tributos de incidência geral: subsídio real sobrecarnes e couros, taxa suntuária sobre lojas e armazéns;taxa sobre engenhos; sisa de 10% sobre os imóveis; meiasisa sobre os escravos urbanos;

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(C) Impostos sobre o comércio exterior, nos dois sentidos(a principal fonte de receita, aliás).

Em 1821, quando D. João VI parte de volta a Portugal, a

estrutura tributária do Reino Unido, compreendia, além de

muitas outras taxas gerais (selos, foros de patentes, direitos

de chancelaria, taxas de correio, sobre sal, sesmarias,

ancoragens etc., ou impostos locais cobrados de particulares),

os seguintes direitos e impostos:

1º) subsídio real ou nacional (carne verde, couros crus oucurtidos, aguardente de cana e lãs grosseiras);

2º) subsídio literário (para custeio dos mestres-escola,percebido sobre cada rês abatida, sobre aguardentedestilada e sobre carne seca);

3º) imposto em benefício do Banco do Brasil (12$800 sobrecada negociante, livreiro, boticário, loja de jóias eartigos de cobre, tabaco);

4º) taxa suntuária (também para o Banco, sobre cadacarruagem de quatro e de duas rodas, navios de trêsmastros, lojas de mercadorias e armazéns, 5% da compra denavios);

5º) taxa sobre engenhos de açúcar e destilações (variávelpor província);

6º) décima predial urbana (casas ou quaisquer imóveis);7º) sisa (imposto de 10% sobre o valor da venda de imóveisurbanos);

8º) meia sisa (imposto de 5% sobre a renda de cada escravoque fosse negro ladino, isto é, que já soubesse umofício);

9º) novos direitos (taxa de 10% sobre os vencimentos dosfuncionários da Fazenda e da Justiça)... et encore...

E agora, em matéria de impostos, taxas e contribuições, o

que temos hoje? Existem, hoje, 76 tributos federais, 12

estaduais, 15 municipais, além de 5 outros “latentes”, isto é,

que podem vir a ser implementados (entre eles o das “grandes

fortunas”), num total de 109 impostos, taxas e contribuições,

10

sem contar pedágios e cobranças por serviços específicos. Este

é o quadro de terror tributário, sem considerar a burocracia

do sistema declaratório, que consome dias e dias e de vários

contabilistas, apenas para cumprir as obrigações e provar ao

Estado que somos honestos e cumpridores dos nossos deveres de

contribuintes (tosquiados). De fato, segundo as informações de

consultorias especializadas, numa lista de 178 países, Brasil

é aquele em que o empresário mais perde tempo nessa atividade:

são 2.600 horas só para pagar impostos. O Brasil é campeão na

quantidade de horas gastas para que uma empresa pague todos os

impostos e tributos. De acordo com análise da

PriceWaterhouseCoopers, com base nos dados reunidos pelo Banco

Mundial, são necessárias 2.600 horas (352 dias) para que uma

empresa cumpra todas as obrigações fiscais, o que deixa o

Brasil em último lugar entre 178 países.

5. E o ambiente de negócios, como ele tem se desenvolvido?

Ao chegar à Bahia, em janeiro de 1808, D. João, príncipe

regente, não apenas decreta a abertura dos portos

(absolutamente necessária), mas também aprovou os estatutos da

primeira companhia de seguros, a “Comércio Marítimo”; mandou

abrir uma fábrica de vidro e uma fábrica de pólvora; autorizou

o governador da Bahia a estabelecer a cultura e a moagem de

trigo; mandou abrir estradas, sim estradas (de fato, pouco

mais que picadas...).

O que surpreende, no modelo ibérico de administração,

preservado em grande medida até os nossos dias, é que tudo

tenha de ser autorizado ou ordenado pelo príncipe, mediante um

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decreto, um alvará régio, um instrumento qualquer da

autoridade política. O que, por outro lado, faz a eficiência

do modelo anglo-saxão de organização social e econômica, é que

tudo o que não estiver expressamente proibido em alguma lei

aprovada por um parlamento ou conselho, está ipso facto

autorizado e aberto à iniciativa privada, exatamente o

contrário do que ocorria no mundo português e ainda ocorre

entre nós.

De fato, a julgar pelo PAC, o Programa de Aceleração do

Crescimento, continuamos cingidos pela autoridade política,

circunscritos ao que ela possa determinar, autorizar,

permitir, se dignar a nos deixar trabalhar. A mania que temos

de tornar toda e qualquer atividade dependente das boas graças

da administração é propriamente irracional, sobretudo quando

sabemos que o processo burocrático de autorizações e

permissões está eivado de descaminhos corruptores.

Em outra vertente, mas no mesmo terreno, pode-se examinar

como evoluiu o “ambiente de negócios”. Ao chegar ao Rio de

Janeiro, em março de 1808, D. João, por alvará de 1º de

abril, revogou o alvará de D. Maria I, de 1785, que tinha

proibido todas as indústrias de tecidos no Brasil, exceto as

de pano grosso, para os sacos e escravos. Vinhos, azeites,

tecidos e todos os demais produtos úteis tinham, até então, de

ser comprados de Portugal, a despeito do fato de possuir a

colônia plenas condições de fabricá-los quase todos. Agora, os

principais problemas que se colocam aos candidatos a

empreendedores é o número absurdo de requisitos legais,

exigências burocráticas e autorizações variadas para quem

12

decide iniciar um negócio. Basta consultar o Doing Business anual

do Banco Mundial para constatar que o Brasil continua a

figurar nos últimos lugares do ambiente de negócios.

No plano da indústria, o que ocorria, duzentos anos

atrás? Entre 1810 e 1811, novas medidas buscaram estimular a

indústria local: isenção de direitos sobre fios e tecidos de

algodão, seda ou lã, fabricados no Brasil; foram criados

arsenais e fundições, no Rio de Janeiro, uma indústria de

lapidação de diamantes e um laboratório químico. Eram empresas

estatais, com a eficiência que se conhece nesse tipo de

empreendimento. E o que temos hoje, como pregação industrial?

O presidente de um dos principais órgãos de planejamento

estatal, o IPEA, acredita que novamente enfrentamos a mesma

“dependência” da grande empresa agro-exportadora à base de

cana-de-açúcar, como existia no século XVI. E o que ele propõe

para reduzir a suposta “nova dependência”? Segundo ele, “o

Brasil precisa constituir uma empresa pública de agroenergia”

e operar uma “centralização do comércio da energia renovável

no país” (Márcio Pochmann, presidente do IPEA: “Antídoto ao

novo dependentismo”, Valor Econômico, 01.11.2007). Trata-se,

certamente, da receita mais segura para inviabilizar

completamente uma indústria pujante do etanol e do biodiesel

no Brasil, só se justificando como uma forma de cobrar um

“pedágio” dos verdadeiros criadores de riqueza no Brasil, que

são os empreendedores privados.

6. Como evoluímos em termos de respeito aos direitos de

propriedade e ao patrimônio?

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Como ensinam os economistas da escola institucionalista

(Douglass North e outros), o respeito aos direitos de

propriedade e aos contratos – duas das mais importantes

instituições da vida econômica – estão entre os elementos mais

relevantes do progresso econômico. Nesse terreno, o legado da

instalação da família real no Brasil não é dos mais

edificantes.

Quando a comitiva que acompanhava o príncipe regente

chegou ao Rio de Janeiro, um grave problema habitacional

colocou-se: onde acomodar tantos nobres? Criou-se, então, um

sistema das “aposentadorias”: as casas mais apresentáveis e

espaçosas eram requisitadas em nome do Príncipe, e os locais

escolhidos eram logo pintados com as iniciais “PR”, de

Príncipe Regente. Mas, o povo carioca logo as interpretou à

sua maneira, dizendo que representavam, na verdade, um “Ponha-

se na Rua”. Hipólito da Costa escreveu em seu Correio Braziliense

que o sistema das aposentadorias era um “regulamento

medieval”, um “ataque direto ao sagrado direito de

propriedade”, que “poderia tornar o novo governo no Brasil

odioso para o seu povo”. Nem tão medieval assim, uma vez que

ele continua existindo em nossos dias.

O que temos hoje, em matéria de desapropriações forçadas,

é um fenômeno diferente, mas não menos preocupante em termos

de legalidade e respeito aos direitos de propriedade: são

contingentes organizados (em número relativamente

desconhecido) de “sem-terra” e de “sem-teto” profissionais

que, alimentados por cestas básicas fornecidas pelo próprio

Estado e arregimentados de forma quase militar por

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organizações igualmente sustentadas pelo dinheiro estatal, se

dedicam a invadir propriedades rurais e urbanas em nome da

“justiça social”. Eles o fazem invocando “direitos”, que

sempre são os seus direitos particulares, não os direitos da

coletividade. De fato, a Constituição brasileira de 1988

contém 76 vezes a palavra “direito”, muito poucas vezes a

palavra “obrigação”, raríssimas vezes a palavra produtividade

e quase nenhuma o conceito de eficiência.

Mas, talvez esses ataques ao direito da propriedade, e

aos cofres públicos – pois é deles que sairão os recursos para

garantir tantos direitos a terras e moradias – não sejam os

mais lesivos ao erário público. Passados duzentos anos de

desapropriações estatais para acomodar os poderosos do

momento, o que temos hoje em matéria de “acomodação” dos

nobres servidores do Estado? A transcrição de uma matéria da

Folha de São Paulo, de 22.10.2007, nos informa que: “Judiciário

vai gastar R$ 1,2 bi para construir três tribunais”.

Subtítulos esclarecedores: “Procuradoria investiga suspeita de

desperdício de dinheiro e superfaturamento”; “Presidente do

Tribunal Regional Federal de Brasília terá um gabinete 4 vezes

maior que o de Lula”.

Vale a pena transcrever alguns pontos da matéria: “O

Judiciário vai gastar R$ 1,2 bilhão na construção de três

suntuosas sedes de tribunais com suspeitas de desperdício de

dinheiro público, direcionamento de licitações e

superfaturamento. Os custos estimados pelos tribunais poderão

aumentar até o final das obras. O Tribunal Regional Federal da

1ª Região, em Brasília, decide nesta semana quem tocará uma

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obra de R$ 489,8 milhões com área total de construção maior do

que a do Superior Tribunal de Justiça. Nas novas instalações,

o presidente do tribunal e seus assessores ocuparão um

gabinete quatro vezes maior do que o do presidente Luiz Inácio

Lula da Silva. O Ministério Público Federal pediu a suspensão

das obras e a anulação da licitação para a construção da nova

sede do Tribunal Superior Eleitoral, estimada em R$ 336,7

milhões.”

7. Como evoluímos em matéria de empregos públicos?

A fuga da família real não se restringiu, como se sabe, a

meia dúzia de ministros e algumas dezenas de funcionários do

Estado. Foram alguns milhares de “dependentes” do Estado que

precisavam ser agraciados com os favores da corte. Apenas a

título de comparação mencione-se que em 1800, ao transferir a

capital da Filadélfia para Washington, o presidente John Adams

trouxe consigo cerca de 1.000 funcionários governamentais. Com

D. João, vieram entre 10 e 15 mil funcionários portugueses,

segundo as crônicas históricas.

Era preciso dar emprego para toda essa gente. Na verdade,

muitos deles não trabalhavam, consoante seu estatuto de

“nobres” (aos quais não se permitia o exercício de alguma

atividade “manual”. Em Portugal, para sermos precisos, não

eram muitos os nobres, mas o coração generoso de D. João se

encarregaria de criar muitos mais, ao aqui chegar, pela

prática de enobrecer aqueles que tinham cedido suas casas,

contribuído financeiramente para a manutenção da corte,

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participado na constituição do Banco do Brasil e outros

favores mais.

Como esclarece um historiador: “Os indivíduos

enobrecidos, agraciados com hábitos ou comendas, entendiam não

lhes quadrar mais comerciar, sim viver das suas rendas, ou

melhor ainda, dos empregos do Estado. Avolumar-se-ia desta

forma o número dos funcionários públicos, com o rancor dos

burocratas do reino, que tinham acompanhado a família real ou

chegavam seduzidos por essas colocações em que as fraudes

multiplicavam os ganhos lícitos, muito pouco remunerados”

(Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, p. 57). E não eram poucos, os

candidatos a um emprego público: além da família real, 276

fidalgos e dignitários régios recebiam verba anual de custeio

e representação, paga em moedas de ouro e prata, retiradas do

erário real; havia ainda 2000 funcionário reais, 700 padres,

500 advogados, 200 praticantes da medicina, entre 4 e 5 mil

militares, todos vivendo em torno da Coroa. Um dos padres

recebia 250 mil réis (14 mil reais de hoje), só para confessar

a rainha (Fonte: Luiz Felipe Alencastro, “Vida privada e ordem

privada no império” in História da Vida Privada no Brasil, vol. 2, p.

12).

Hoje, o que temos, exatamente, em matéria de sanguessugas

do Estado? As prebendas estatais, deve-se reconhecer, se

democratizaram: o número de funcionários públicos tem

experimentado uma curva ascendente no atual governo, que criou

ou recriou dezenas de estatais (a última sendo um TV estatal),

expandiu cargos de confiança devidamente aparelhados pelo

partido no poder, e se esforça para convencer a população que

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para melhorar o serviço público é preciso contratar mais

gente.

8. Como foi o nosso desenvolvimento econômico comparado com

outros países?

Como se situava o Brasil no confronto econômico com

outros países? Éramos pobres, mas os demais países não eram

muito mais ricos do que nós. No início do século XIX, a

divergência econômica entre os países ainda não tinha

alcançado os patamares que ela ostentaria um século depois.

Segundo os dados comparativos coletados em bases homogêneas

pelo economista-historiador Angus Madison, a distância entre o

Brasil e países como México ou Japão não era significativa,

assim como era relativamente pequeno o diferencial de renda em

relação à maior parte dos países, com exceção dos Estados

Unidos e da Grã-Bretanha, então a economia mais avançada em

termos de renda em função do seu pioneirismo na revolução

industrial, sendo o país americano o seu êmulo direto nesse

processo. A tabela seguinte dá uma idéia dos valores em

dólares constantes (atualizados para 1990, segundo os cálculos

de Angus Madison) e sua proporção em relação ao Brasil:

PIB per capita e comparações entre os países, 1820Países PIB per capita Brasil = 100Brasil 670 100México 759 113Japão 669 99França 1.230 183

Estados Unidos 1.257 232Grã-Bretanha 1.707 254

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Como foi a nossa evolução desde então? A mesma tabela

pode ser construída com valores mais atuais:

PIB per capita e comparações entre os países, 1998Países PIB per capita Brasil = 100Brasil 5.459 100México 6.655 122Japão 20.084 368França 19.558 358

Estados Unidos 27.831 500Grã-Bretanha 18.714 342

A distância só fez aumentar, evidenciando o nosso baixo

dinamismo econômico no longo período decorrido desde então.

Aqui, os mesmos resultados em visão diacrônica:

Evolução histórica do PIB per capita, 1820-1998 (1820

= 100)Países 1900 1998Brasil 105 814México 152 876Japão 161 3.002França 233 1.590

Estados Unidos 318 2.174Grã-Bretanha 261 1.096

Muito desse baixo dinamismo econômico pode ser explicado

por nossa pequena abertura internacional. Uma comparação de

nosso coeficiente de abertura externa revela a reduzida

participação do comércio exterior na formação do PIB, quando é

pelas transações externas que se realizam as incorporações de

capitais e tecnologias modernizadoras. No período recente, em

particular, nosso crescimento tem sido pífio em relação à

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média mundial e, sobretudo, em relação aos emergentes

dinâmicos da Ásia oriental. Considere-se, por exemplo, o PIB

per capita da Coréia do Sul que, em 1960, representava 50% do

valor do PIB per capita do Brasil. Atualmente, o país asiático

nos superou por uma razão de três. Na média, o crescimento dos

países emergentes nos últimos dez anos tem sido três vezes

superior ao do Brasil, que cresce mais ou menos a metade do

PIB mundial. Nesse ritmo, nossa renda per capita vai dobrar

apenas em três gerações (75 anos), ao passo que a da China

dobra a cada 17 anos.

9. E o que a nossa Constituição tem a ver com tudo isso?

Bem, aqui já não estamos falando de nenhum legado

português, e sim de problemas e deficiências “made in Brazil”.

O fato é que, desde a promulgação da Constituição de 1988, a

carga fiscal promovida pelo Estado predador aumentou

inapelavelmente a cada ano, passando de um quarto do PIB a

mais de um terço (e crescendo continuamente). Em comparação

mundial, nos situamos atualmente no nível dos países da OCDE –

que dispõem de uma renda per capita seis vezes superior à

nossa –, o que representa cerca de dez pontos percentuais

acima da média dos paises emergente e vinte pontos acima dos

mais dinâmicos.

A lista de problemas brasileiros é muito extensa, mas ela

poderia ser resumida da seguinte forma:

1. Constituição detalhista, intrusiva, concedendo muitos“direitos” e demandando muito poucas obrigações;

2. Estado extenso, também intrusivo, perdulário, gastador,“burrocrático” e gigantesco;

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3. Regulação microeconômica hostil aos negócios e aotrabalho, dando pouco espaço às relações autoreguladas ediretamente contratuais;

4. Monopólios em excesso, cartéis e restrições de mercado,pouca competição e muitas barreiras a novos ofertantes debens e serviços;

5. Reduzida abertura externa, seja para comércio,investimentos ou fluxos de capitais, criando ineficiências,altos custos e preços, ausência de competição e deinovação;

6. Sistemas legal e judicial atrasados, permitindo manobrasprocessuais que atrasam a solução das disputas e aumentamcustos de transação.

Uma agenda das reformas absolutamente necessárias para

sustentar um processo sustentado de crescimento econômico, não

detalhada no presente ensaio por razões de espaço,

compreenderia ações nos seguintes campos: político,

tributário, educacional, previdenciário, trabalhista e no da

governança pública. A reforma política, deveria começar pela

Constituição (operando uma limpeza em regra); ela continuaria

pela redução das legislaturas nos três níveis (a representação

parlamentar é excessiva, com enormes gastos, injustificáveis);

passaria pela reforma eleitoral ( com a introdução do sistema

distrital misto) e atingiria a estrutura partidária

(diminuindo o “mercado” político que hoje impera no

Congresso).

A tributária choca-se com o problema da federação, mas

deveria ser uma reforma completa, macro e micro; ela começaria

por uma simplificação tributária geral e caminharia no sentido

da redução progressiva dos tributos; teria continuidade na

abertura econômica, com redução dos impostos alfandegários, e

passaria também pela liberalização do comércio e dos

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investimentos estrangeiros; concederia, por fim, incentivos à

inovação (reforço da propriedade intelectual).

A reforma educacional deveria concentrar-se no ensino

básico, prevendo capacitação de professores, a introdução de

um regime meritocrático de avaliação e de remuneração. Em

qualquer hipótese, se deveria conceder prioridade absoluta de

recursos para os dois primeiros ciclos de ensino, concedendo-

se a tão solicitada autonomia universitária, igualmente em

termos de orçamentos. No plano da seguridade social, impõe-se,

antes de mais nada corrigir o festival de privilégios ainda

existentes, ou seja, reduzir os benefícios abusivos do setor

público; depois, seria necessário ampliar os prazos e as

idades mínimas, modular as contribuições em função de uma

relação estrita entre pagamentos e benefícios, com garantias

mínimas, suprimir os regimes especiais e diminuir os

desincentivos derivados dos direitos garantidos.

Quanto à reforma trabalhista (e sindical), o ideal seria

a flexibilização da legislação (mais contratualismo e

negociações diretas entre as partes), a eliminação da Justiça

do Trabalho (por ser, na verdade, uma instância estimuladora

de conflitos, substituindo-se a ela o regime arbitral) e

operar de vez a extinção da Contribuição Sindical, que cria

sindicatos de papel. Finalmente, quanto à governança pública,

o que se pretende seria uma redução radical do governo (que

seria mantido sob dieta estrita), a retomada das

privatizações, o reforço das agências reguladoras e o fim da

estabilidade do funcionalismo público.

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Existe alguma chance de sucesso num programa desse tipo?

Duvidoso. O Brasil está provavelmente condenado ao baixo

crescimento, à preservação de uma estrutura social iníqua e ao

baixo dinamismo nos processos de inovação e modernização. Esse

tipo de desempenho não é inédito em termos históricos: antes

de nós, a Grã-Bretanha e a Argentina constituíram as duas

evidências mais remarcáveis de uma longa decadência e de

empobrecimento contínuo. Talvez o Brasil seguirá o mesmo

caminho pelos próximos 20 anos ou mais. Não é certo, mas é

provável que isso ocorra, em vista da nossa incapacidade de

empreender as reformas que são necessárias para corrigir as

deficiências atuais do nosso sistema (que, repita-se, não têm

mais nada a ver com o legado português). A responsabilidade

está com cada um de nós…

Brasília, 16 de dezembro de 2007.

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