Post on 07-Apr-2023
“SOU BLOGUEIRA DA CAPRICHO”: UM ENSAIO SOBRE
FORMAÇÕES DISCURSIVAS1
“SOU BLOGUEIRA DA CAPRICHO”: AN ESSAY ABOUT
DISCURSIVE FORMATIONS
Issaaf Karhawi2
Resumo: O caso da ―Blogueira da Capricho‖ – assim nomeado pelos públicos
das mídias sociais digitais – foi o propulsor para a construção do presente
problema de pesquisa: quais as condições de produção do discurso que
possibilitam à autora de um blog se intitular como ―blogueira‖? Com base na
teoria de Foucault e com ênfase no método arqueológico, este artigo aponta quais
são os principais fatos discursivos que revelam a eclosão de um novo perfil
profissional na Comunicação - o de blogueira de moda - e como se constitui uma
formação discursiva capaz de acolher e sustentar regularidades e interditos para
os discursos acerca das blogueiras no Brasil.
Palavras-Chave: Blog de moda. Blogueira. Formação discursiva. Foucault.
Abstract: The case of ―Capricho‘s blogger‖ – an event occurred on social media
and named by its users – was the driving force for the construction of the present
research problem: what are the speech production conditions responsible for the
author of a blog to name herself a ―blogger‖? Based on Foucault‘s theory and
mainly on his archaeological method, this article points out the main discursive
facts that reveal the emergence of a new professional profile in Communication
field - the fashion blogger - and also reveals how a discursive formation is
capable of hosting and supporting regularities and speeches interdictions about
bloggers in Brazil.
Keywords: Fashion blog. Blogger. Discursive formation. Foucault.
Introdução
Em 2013, a blogueira de moda Giovanna Ferrarezi, protagonista do caso ―Blogueira da
Capricho‖, foi notícia em jornais e burburinho nas redes sociais digitais ao tentar entrar em
uma festa apenas se apresentando como blogueira. O evento nos fez questionar: o que
legitima a enunciação de Giovanna? Em outras palavras, quais momentos (ou condições de
produção do discurso) possibilitaram à autora de um blog se intitular como blogueira?
1 Trabalho apresentado na Divisão Temática Ibercom Comunicação e Cultura Digital do XIV Congresso
Internacional IBERCOM, na Universidade de São Paulo, São Paulo, de 29 de março a 02 de abril de 2015. 2 Issaaf Karhawi é doutoranda em Ciências da Comunicação na Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA-USP) e mestre pela mesma instituição. É pesquisadora do COM+ (Grupo
de Pesquisa em Comunicação, Jornalismo e Mídias Digitais) e bolsista do CNPq. E-mail: Issaaf@gmail.com
Ao acompanhar os blogs de moda no Brasil, fica evidente a eclosão de um novo perfil
profissional no campo da Comunicação que é instaurado não apenas economicamente, mas
discursivamente. Portanto, o caso da ―Blogueira da Capricho‖ acompanha esse processo e
nos faz questionar como demos sentido a essa nova profissional também a partir da
linguagem.
Assim, com base no método arqueológico de Foucault, este artigo revela o emaranhado de
fatos discursivos que antecedem, explicam e determinam o acontecimento. Em nossa
análise eclodem os fatos discursivos que sustentam o uso do termo blogueira e apontam
que o enunciado de Giovanna não irrompe como um discurso anônimo ou deslocado.
Mesmo que, a priori, o discurso sobre as blogueiras tenha sido apenas dispersão
discursiva, quando Giovanna enuncia ―Sou blogueira da Capricho‖ existe aí o
reconhecimento de uma regularidade que deve ser compreendida.
Formações Discursivas: o berço de um tempo
Diferentes fases marcaram a obra de Michel Foucault. Em um primeiro momento, na fase
―arqueológica‖, o filósofo dedicou-se a investigar ―os saberes que embasam a cultura
ocidental, de buscar o método arqueológico para entender a história desses saberes‖
(GREGOLIN, 2006, p. 55, grifos do autor), período no qual se dedicou à história da
medicina, da loucura e de outros campos do saber. Na fase denominada ―genealógica‖,
Foucault sistematiza a noção de micro-física do poder a partir de uma genealogia do poder
(análise articulada dos saberes e dos poderes). Em um terceiro período, considerado da
―ética e estética da existência‖, conduziu estudos sobre a sexualidade na direção da
subjetivação, do governo de si e dos outros (GREGOLIN, 2006). Todas as fases
foucaultianas estão articuladas a uma reflexão sobre os discursos. Isso porque
[...] as coisas não preexistem às práticas discursivas, Foucault entende que estas
constituem e determinam os objetos. É, assim, no interior da reflexão sobre as
transformações históricas do fazer e do dizer na sociedade ocidental que uma teoria
do discurso vai-se delineando e encontra um lugar central na obra de Foucault‖
(GREGOLIN, 2006, p. 53-54).
Em seu livro ―História da Loucura na Idade Clássica‖, Foucault busca – de acordo com as
observações de Gregolin (2006) – apreender o ―grau zero‖ da loucura e compreender como
a nossa sociedade passou a considerar o louco um sujeito marginalizado. Não é a intenção
do filósofo, no entanto, estudar a ideologia da loucura ou o processo cronológico da
―civilização‖ dos tidos como loucos, mas
seu objetivo é [...] analisar as condições de aparição desse discurso, buscando algo
além do fenomenológico – uma ‗estrutura‘ que é da ordem do impensado. Por isso,
ele vai em busca da estruturação dos saberes das epistemes que funcionam como o
solo de possibilidade para os saberes que coexistem em um certo momento
histórico (GREGOLIN, 2006, p. 69).
A partir do método arqueológico é possível compreender as condições de produção de um
discurso e não estudá-lo em sua forma acabada, proferida, circulante. Ainda assim, não se
trata de ―buscar origens‖ ou ―significados secretos‖, mas
analisar o acontecimento discursivo, isto é, tratar os enunciados efetivamente
produzidos, em sua irrupção de acontecimento, a fim de compreender as condições
que possibilitaram a sua emergência em um certo momento histórico. [...] Apesar
de ser uma irrupção brutal, o acontecimento discursivo obedece a uma combinação
de regras, [...], e que determinam as condições de possibilidades de sua aparição.
(GREGOLIN, 2006, p. 77)
Em outras palavras, o método arqueológico de Foucault busca fatos discursivos que
antecedem o acontecimento analisado, explicando-o e determinando-o (GREGOLIN, 2006,
p. 77). Há um grande desafio nesse método: os discursos são marcados pela dispersão. A
arqueologia remete a ―conjuntos de enunciados que eram, na época de sua formulação,
distribuídos, repartidos e caracterizados de modo inteiramente diferente‖ (FOUCAULT,
2014, p. 27). É na análise arqueológica que se torna possível articular o campo do discurso,
constituí-lo, uma vez que, aceitam-se os enunciados como formas de repartição e sistemas
de dispersão (GREGOLIN, 2006).
No campo dos discursos, as unidades certas ou homogêneas devem ser consideradas com
cautela. Na análise arqueológica, não há unidade natural ou universal. Afastar os discursos
dessa concepção permite suspender a noção de formas imediatas de continuidade e
enxergar, com mais clareza, todo um domínio.
Trata-se de um domínio imenso, mas que se pode definir: é constituído pelo
conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham sido falados ou escritos),
em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um. [...]. É uma
população de acontecimentos no espaço do discurso em geral. Aparece, assim, o
projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos como horizonte para a
busca das unidades que aí se formam (FOUCAULT, 2014, p. 32-33, grifos do
autor).
Mesmo nessa irregularidade e dispersão enunciativa, mesmo na ausência de uma unidade
homogênea e imediata há regras para a formação dos discursos:
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade
(uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos,
por convenção, que se trata de uma formação discursiva (FOUCAULT, 2014, p.
47)
Assim, os enunciados não se constituem com base apenas na gramática, em uma função
semântica ou lógica, mas na ―[...] relação que envolve os sujeitos, que passa pela História,
que envolve a própria materialidade do enunciado‖ (GREGOLIN, 2006, p. 90).
De forma bastante simplificada, as formações discursivas são como berços em que os
enunciados se constituem e se estabelecem. A despeito das dispersões, é nesse espaço que
encontram sentido, um lugar. Quando dizemos ―É preciso preparar o terreno‖ para alguma
coisa, é como se nos referíssemos às formações discursivas: a ideia de pavimentar,
providenciar condições de produção de algo. Neste caso; de um discurso, de um saber.
Retomando às palavras de Foucault temos que
[...] uma formação discursiva se define (pelo menos quanto a seus objetos) se se
puder estabelecer um conjunto semelhante; se se puder mostrar como qualquer
objeto do discurso em questão aí encontra seu lugar e sua lei de aparecimento; se se
puder mostrar que ele pode dar origem, simultânea ou sucessivamente, a objetos
que se excluem, sem que ele próprio tenha de se modificar (FOUCAULT, 2014, p.
54)
A partir dessa passagem, compreende-se como determinados saberes, assuntos, discursos,
são possíveis em uma época e não em outra: ―não se pode falar de qualquer coisa em
qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar
atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do
solo, lancem sua primeira claridade‖ (FOUCAULT, 2014, p. 54).
Em seu trabalho arqueológico, Foucault observa momentos distintos em que é permitido
falar sobre a loucura de formas quase opostas. No final da Idade Média, por exemplo, a
loucura era uma inquietação a ser compreendida. Já no Renascimento, a áurea da loucura é
convertida em profana, a dominação do mundo ocidental pelo catolicismo atrela a loucura
ao demoníaco. Mais adiante, com o nascimento da sociedade industrial e o consequente
império da razão e da produtividade, o louco passa a ser aprisionado e encarado como
ocioso ao lado dos doentes (GREGOLIN, 2006).
Esses diferentes períodos da história da loucura revelam diferentes formações discursivas.
Os exemplos nos mostram que não seria possível dizer qualquer coisa em qualquer época.
Outro ponto deve ser considerado; ao ter acesso à arqueologia do saber realizada por
Foucault sobre a Loucura, os discursos parecem despontar de forma cronológica, imediata
e homogênea e não dispersa e irregular como vimos, mas é preciso retomar e estabelecer
uma vigilância epistemológica constante ao desenvolver uma análise arqueológica uma vez
que
o objeto não espera nos limbos a ordem que vai liberá-lo e permitir-lhe que se
encarne em uma visível e loquaz objetividade; ele não preexiste a si mesmo, retido
por algum obstáculo aos primeiros contornos da luz, mas existe sob condições
positivas de um feixe complexo de relações (FOUCAULT, 2014, p. 54-55).
Não há termos, noções ou saberes há espera de um uso. Há, sim, condições de produção,
formações discursivas em constante construção, berços sendo acomodados
confortavelmente no quarto de uma época.
Articulação de um discurso: “sou blogueira”
No final da década de 1990, os weblogs, ou apenas blogs, eram como catálogos da
Internet. Os usuários da rede reuniam em seus sites links e comentários sobre suas
navegações. Em 1997, Jorn Barger cunhou o termo ―logging the web‖ para essa atividade,
algo como ―arquivar a Internet‖ que remetia aos ―[...] diários de navegação, em que os
capitães informam as latitudes e longitudes [...]‖ (TRASEL, 2009: 94).
Até então, os blogs eram de exclusividade daqueles que conheciam a linguagem HTML. É
a partir da quebra da barreira técnica que os blogs se popularizaram entre os usuários da
rede. A difusão da ferramenta deu origem a diferentes práticas, entre elas, a mais popular
ficou conhecida como o diário virtual. Hoje, transcorrida mais de uma década, autores
como Primo (2008), Trasel (2009), Lemos (2002), Amaral, Recuero e Montardo (2009)
questionam a restrita definição que se dá aos blogs. Nas palavras de um dos autores: ―[...] o
uso da interface de blogs para a escrita íntima e sigilosa é apenas um entre tantos processos
interativos possíveis na blogosfera‖ (PRIMO, 2008, p. 122). A aceitação dos blogs como
uma ferramenta da web disponível para múltiplos usos caracteriza o que Trasel (2009)
chama de a ―era de ouro dos blogs‖.
Observou-se, no decorrer dos anos, que os blogs assumiam um caráter mais profissional, as
apropriações eram variadas; desde um jornalista que mantinha um blog, à um blog
corporativo ou, atualmente, blogs que se constituem como mídias. O fenômeno de
profissionalização dos blogs tem sido observado pelo Technorati Media. O relatório State
of the Blogosphere (2011) apontou que os blogueiros que se declaram ―profissionais‖
somam 18% na blogosfera, atrás dos 60% que dizem manter o blog por hobby. Do total de
blogueiros profissionais, 13% usam o blog para complementar sua renda e os outros 5%
trabalham em período integral com o blog3. Se inicialmente as blogueiras de moda, como
apontam Rocamora e Bartlett (2009), almejavam apenas demonstrar seu amor pela moda e
compartilhar informações sobre o assunto, hoje, elas definem novos nichos
comunicacionais e de mercado.
A revista Capricho – dedicada ao público adolescente feminino – está no mercado editorial
há mais de 60 anos e tem investido fortemente no conteúdo para a internet. Acompanhando
o fenômeno dos blogs de moda, desde 2013, a revista mantém em seu site um espaço
chamado ―Blog Ring" que reúne blogueiras já conhecidas pelas leitoras da revista que
tratam de assuntos do universo adolescente como moda, comportamento e beleza.
Giovanna Ferrarezi, do blog ―Radioactive Unicorns‖, faz parte do time de blogueiras da
revista Capricho e tem mais de 69 mil fãs em sua página no Facebook e 145 mil seguidores
no Instagram4. Os números revelam a popularidade virtual da blogueira que em julho de
2013 protagonizou o ―escândalo virtual‖ nomeado ―Blogueira da Capricho‖. O ocorrido -
que tomou proporções compatíveis aos nós da web - começou com o post publicado na
página pessoal da blogueira em seu Facebook no dia 27 de julho de 2013:
3 Dados recuperados em 12 de setembro, 2013, de <http://technorati.com/social-media/article/state-of-the-
blogosphere-2011-introduction/>. 4 Dados obtidos pela autora em março de 2015.
Figura 1. Post completo publicado por Giovanna Ferrarezi em sua página no Facebook.
Após o post de Giovanna, as redes sociais foram tomadas por montagens e textos sobre a
blogueira, como os exemplos que seguem:
Assim como Foucault não estava interessado na ideologia da Loucura, também não é esse
o objetivo ao estudar a repercussão do caso ―Blogueira da Capricho‖. Mesmo que apenas
em forma de ensaio ou esboço, faremos uma análise arqueológica em que nos interessa
―[...] o emaranhado de fatos discursivo anteriores a um acontecimento que, ao mesmo
tempo, o explicam e o determinam‖ (GREGOLIN, 2006, p. 77). E ainda, uma ―[...] busca
de elementos que possam ser articulados entre si e que forne[çam] um panorama coerente
das condições de produção de um saber em certa época.‖ (GREGOLIN, 2006, p. 71)
Nada pode ser dito fora de um momento específico. Há vários exemplos em nosso
dia-a-dia que ilustram a noção foucaultiana: a legalização do aborto ou o casamento gay. E
mesmo termos que encaramos apenas como substituições trazidas pelos novos tempos
como o termo ―portador de necessidades especiais‖ em vez de deficiente;
homossexualidade em vez de homossexualismo ou até a ideia de chacota ou brincadeira
infantil substituída pelo conceito de Bullying. Nenhuma dessas noções ―[...] se indica a si
mesma, [mas] só se constrói a partir de um campo complexo de discursos‖ (FOUCAULT,
2014, p. 28), esse campo, como visto, é a formação discursiva.
Ao dizer: Comentei que tinha um blog e que fazia trabalhos em parceria com a
Capricho e perguntei se poderia dar uma olhada na festa antes de todo mundo pagar pra
entrar [...], Giovanna Ferrarezi ampara-se em condições de produção de um discurso que
lhe ―permitem‖ dizer o que ela disse. Para Foucault, ―a descrição de acontecimentos do
discurso coloca uma outra questão bem diferente: como apareceu um determinado
enunciado, e não outro em seu lugar‖ (FOUCAULT, 2014, p. 33).
Ainda no post em sua página no Facebook, Giovanna continua narrando o ocorrido:
A hostess, que deveria ser a pessoa que recepciona o cliente e o trata da MELHOR
maneira possível pra que no futuro ele retorne, me disse o seguinte: "A Capricho não
acabou? Hahahahaha". A maneira como ela falou foi tão sarcástica e nojenta que senti
vontade de vomitar na cara dela.
Aqui, vemos as marcas de um tempo e as circunstâncias que possibilitaram (de
maneira simplificada) o aparecimento do enunciado em questão e não outro em seu lugar.
Giovanna não diz que trabalha na Capricho ou ainda que é jornalista na revista, pois não há
mais espaço para esse enunciado, não há espaço para ser jornalista em uma revista
impressa que vê suas vendas nas bancas caírem gradualmente5. Mas há, nesse mercado em
constante renovação, a possibilidade de se apresentar como blogueira; articular aquilo que
já é permitido dizer. Foucault explica que
[...] todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e
que este já-dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já
escrito, mas um ―jamais-dito‖, um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa
quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro. Supõe-
se, assim, que tudo que o discurso formula já se encontra articulado nesse meio-
silêncio que lhe é prévio, que continua a correr obstinadamente sob ele, mas que
ele recobre e faz calar. (FOUCAULT, 2014, p. 30)
Antes de prosseguirmos em nossa análise, cabe aqui um espaço para a repercussão
também na mídia tradicional do ocorrido com a blogueira da Capricho:
5 C.f. KARHAWI, I.; SAAD CORRÊA, E. TV Capricho: experimentações no jornalismo online. in: IV
Congresso Internacional de Ciberjornalismo, 2014, Porto.
Figura 2. Matérias sobre o caso da ―Blogueira da Capricho‖.
Há vários pontos levantados pela mídia e pelas redes sociais: caso de carteirada que não
funcionou, arrogância da jovem de 20 anos e mesmo um rancor de nosso tempo (cultura
hater) proferido contra as blogueiras. No entanto, observa-se nas manchetes das matérias o
uso do termo ―blogueira‖. Portanto, há uma legitimação e aceitação do termo. O que
parece ocorrer é uma recusa ao aceitar, vindo da blogueira Giovanna, o status embutido no
termo. Uma ressalva importante: neste artigo, nossa intenção não é questionar a integridade
moral e ética da situação e da posição de Giovanna, mas apontar as relações do enunciado
da blogueira com uma formação discursiva, compreender o que ela enuncia ―[...] na
estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de
fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros
enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui‖.
(FOUCAULT, 2014, p. 34).
Há pouco mais de dois anos tem-se observado na blogosfera de moda um movimento para
a profissionalização. Atentemo-nos: os blogs de moda existem há mais de dez anos, mas
como um espaço para trocas de opiniões, um hobby, um passatempo. Hoje, essas novas
mídias vivem o período de consolidação de seu processo de profissionalização.
Cronologicamente; a) um internauta munido das ferramentas de produção da web cria um
blog; b) o blog recebe atenção na rede, fideliza leitores e o seu autor passa a ter ―reputação
virtual‖; b) o autor do blog ―perde‖ o status de internauta-produtor e passa a ser um
blogueiro; c) o blogueiro também é visto como um especialista temático, especialmente
pelas mídias tradicionais e o mercado que, direta ou indiretamente, alimenta; d) aquele
internauta passa a consolidar um novo perfil profissional.
Nesse processo, há um momento em que, não apenas os leitores, mas as marcas e as mídias
tradicionais passam a trabalhar ao lado das blogueiras. A partir de um investimento
financeiro, uma empresa é capaz de falar diretamente com seus consumidores pela voz da
blogueira que, diferentemente de uma propaganda televisiva impessoal, é ―amiga‖ das
consumidoras da marca. Por sua vez, as mídias tradicionais, especialmente as revistas
direcionadas ao público feminino, aceitam as blogueiras de moda, não como ameaça ao
trabalho do jornalista, mas como aliada do processo de disseminação de informação e
aproximação de suas leitoras.
Apesar de ocorrer na internet, espaço em que a velocidade é imperativa, esse processo não
foi iniciado e concluído na mesma velocidade dos cliques. Durante o transcurso, as
blogueiras - mesmo as com mais seguidores nas redes sociais e mais contratos com
empresas de beleza - ainda tinham uma ―profissão formal‖ e respondiam tranquilamente a
questões como ―qual o seu trabalho oficial?‖ ou ainda ―o que você faz além do blog?‖.
Hoje, no correr dos anos, as blogueiras não buscam outras profissões para se apoiar, mas se
denominam apenas blogueiras. E não há por trás desse discurso somente a possibilidade
(recente) de se sustentar financeiramente com o blog ou a demissão do emprego formal,
mas a possibilidade de ―falar‖. Quando Foucault (2014, p. 54) afirma que ―[...] não se pode
falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova‖ e que nada
está pronto a espera de um simples ato de fala, Foucault nos aponta que não se trata apenas
de intitular-se como blogueira, mas perceber as condições de produção desse discurso em
determinado período. Esse período, para as blogueiras de moda, é agora.
Nossas reflexões até aqui nos trouxeram à seguinte conclusão (mesmo que ainda
incipiente): Giovanna, a protagonista do caso ―Blogueira da Capricho‖, tinha a permissão
para se intitular blogueira. Não irrompia de sua enunciação um discurso anônimo,
deslocado, desconexo. Mesmo que, a priori, o discurso acerca das blogueiras fosse apenas
dispersão discursiva, quando Giovanna enuncia ―tenho um blog‖, na entrada de uma boate,
há nesse momento o reconhecimento de uma regularidade discursiva, de uma formação.
Foucault corrobora nossa afirmação: a proposta do autor não é desnudar um discurso, mas
acompanhá-lo. O método arqueológico não seria válido se buscássemos o que está atrás de
um discurso, mas aquilo que está nele agora. Nas palavras de Foucault,
[...] não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra
coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente
aquém dele, e sim, pelo contrário mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na
complexidade que lhe é própria. [...] fazer uma história dos objetos discursivos que
não os enterre na profundidade comum de um solo originário, mas que desenvolva
o nexo das regularidades que regem sua dispersão (FOUCAULT, 2014, p. 58).
Avançaremos nossa análise com outro aspecto da teoria de Foucault. Ao mesmo tempo em
que o autor afirma haver uma impossibilidade de falar sobre qualquer coisa em qualquer
tempo, o autor expõe que: ―temos consciência de que não temos o direito de dizer o que
nos apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer circunstância, que quem quer que
seja, finalmente, não pode falar do que quer que seja‖ (FOUCAULT, 1971, p. 2). É nesse
ponto que partimos para outra nuance da formação discursiva em questão: os sistemas de
interditos da linguagem. Parece ser, por meio dessas noções foucaultianas, que poderemos
apontar hipóteses do motivo de a ―Blogueira da Capricho‖ ter causado tanto burburinho
nas redes sociais.
Atravessamentos discursivos: quem enuncia o quê?
É possível, a depender do ponto de vista, definir várias causas para o caso da ―Blogueira da
Capricho‖ ter sido motivo de tantos deboches dos internautas e da imprensa. Podemos
encarar o fato como uma tentativa mal sucedida de ―carteirada‖; um comportamento
equivocado de uma jovem de 20 anos; um erro ao escrever um post em tom de desabafo e
revolta em sua página pessoal no Facebook ou, simplesmente, o equívoco em se declarar
blogueira. Mas onde estaria o equívoco uma vez que as formações discursivas, que fomos
delineando ao longo do trabalho, nos permitiriam justificar a enunciação de Giovanna?
Foucault (1971, p. 24) alega que ―[...] as figuras de controlo podem formar-se no interior
de uma formação discursiva‖. Quando Foucault se deteve ao estudo da Loucura, o autor
não apenas delimitou diferentes formações discursivas ao longo dos anos, mas também
identificou interditos e exclusões. Um apontamento importante é feito acerca da palavra do
louco que ―[...] ou não era ouvida, ou então, se o era, era ouvida como uma palavra
verdadeira. Ou caía no nada — rejeitada de imediato logo que proferida; ou adivinhava-se
nela uma razão crédula ou subtil, uma razão mais razoável do que a razão das pessoas
razoáveis‖ (FOUCAULT, 1971, p. 3). Há nesse episódio histórico não apenas um interdito,
mas uma partilha e uma rejeição – como nomeia o próprio autor.
Isso significa dizer que, apesar de uma formação discursiva assegurar o uso do termo
blogueira, ainda assim a tomada da palavra não é desregrada. Nem todos podem enunciar;
há espaços discursivos muito bem delimitados. Quando a hostess do Club Yacht em que
Giovanna tenta entrar na festa questiona: ―mas a Capricho não acabou?‖, vê-se aí uma
partilha e uma rejeição. Talvez a tentativa de Giovanna fosse bem sucedida se a revista a
qual seu blog está vinculado não fosse descreditada. Há ainda um outro não-dito que
aflora: ―quem é a blogueira da Capricho para dar carteirada?‖. Blogueira sim, mas da
Capricho não. Giovanna teria possibilidades discursivas de se declarar blogueira, uma
autoridade virtual permitida de olhar uma festa antes de decidir entrar na boate, mas a
jovem é alçada a instância da não-blogueira. Ser blogueira significa algo além do blogar
profissionalmente, ter muitos seguidores, ter reconhecimento em seu nicho virtual.
Intitular-se blogueira faz parte de uma tomada da palavra que não foi concedida à
Blogueira da Capricho.
Para Foucault, há maneiras de controle dos discursos como ―[...] determinar as condições
do seu emprego, de impor aos indivíduos que os proferem um certo número de regras e de
não permitir, desse modo, que toda a gente tenha acesso a eles‖ (1971, p. 13). Não
está muito claro, ainda, quais são os interditos definidos na formação discursiva que
tentamos esboçar em nosso trabalho. É óbvio, no entanto, que da mesma maneira que
Foucault acompanhou a história da Loucura por anos, não esgotaríamos a problemática
proposta em um estudo de caso. Mas há algumas inferências possíveis de serem feitas.
Foucault explica que um sistema de interdito de linguagem não é fixo, mas passível de
mudanças: ―[...] de forma alguma se trataria de ver como é que esse sistema desapareceu
progressivamente [...]; mas como é que ele se deslocou e rearticulou [...]. Os interditos não
tiveram sempre o lugar que se imagina‖ (FOUCAULT, 1971, p. 22). Em um primeiro
momento, ser ―apenas‖ blogueira de moda não se configurava profissão ou, caso
configurasse, era uma função pouco louvável. Esse período foi marcado por anedotas e
uma tentativa de ignorar a ascensão da nova classe profissional da Web. Para ilustrar nossa
afirmação, transcrevemos aqui um trecho da coluna da jornalista Nina Lemos na revista
TPM, que mostra profissões dos anos 90 e suas correspondentes na contemporaneidade: A
blogueira é a nova dona de butique! Sim, quem tinha pai rico ganhava uma butique. Hoje,
faz um blog. Se for rica de verdade, faz os dois: um blog e uma butique. Um amigo nosso
(quem disse foi ele, não a gente) chama essas profissões de “espera marido”6.
Mas os blogs de moda e suas criadoras foram, com o passar do tempo, ganhando mais
notoriedade na rede e, consequentemente, fora dela. Inaugurou-se, então, um novo discurso
acerca da ascensão dos blogs como pode ser visto na figura 3.
Figura 3. Matérias e campanhas publicitárias repercutindo o trabalho das blogueiras de moda.
Já compactamos com a noção foucaultiana de que uma formação discursiva não existe
apenas quando é enunciada, mas existe nas relações que dão base à enunciação. ―Essas
relações são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de
comportamentos, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos de
caracterização‖ (FOUCAULT, 2014, p. 55). É por esse motivo que uma manchete mais
6 ―A blogueira é a nova dona de butique‖. Revista TPM (05/04/2013). Recuperado em 13 de março, 2015, de
<http://revistatpm.uol.com.br/revista/130/badulaque/a-blogueira-e-a-nova-dona-de-butique.html>.
favorável aos blogs de moda não articula no tempo e no espaço um discurso, mas o coloca
no campo da exterioridade: ―As coisas murmuram já um sentido que a nossa linguagem
apenas tem de erguer; e a linguagem, desde o seu projecto mais rudimentar, fala-nos de um
ser do qual ela seria a nervura‖ (FOUCAULT, 1971, p. 17).
Mas é justamente a formalização de um discurso, o status da blogueira para-além do
virtual, que desloca os interditos. Se inicialmente ―Eu sou blogueira‖ era uma interdição,
na atualidade, criam-se formas de rejeição e de exclusão. Fazer parte de uma formação
discursiva, tomar um discurso para si, não se restringe apenas à existência ou inexistência
do mesmo, mas ao poder ou não de usá-lo.
Outro exemplo pode ilustrar o ponto que levantamos: em novembro de 2013, o site da
VejaSP divulgou a matéria intitulada ―Blogueiras de moda defendem criação de
sindicato‖7. A intenção das blogueiras em criar um sindicato demonstra o jogo de saber e
poder sobre o qual fala Foucault. Quando Thássia Naves, entrevistada na matéria e cujo
blog tem cinco milhões de visitas mensais, defende que ―[nós, as blogueiras de moda]
precisamos de regras‖, há aí a construção formal de um sistema de exclusão. Ainda,
estipular regras e deveres no âmbito da lei determina sistemas de exclusão também no
âmbito dos discursos. E desvela-se, nessa formação discursiva, marcas do poder, do
interdito, da segregação, do desejo de fazer calar um discurso. O caso da ―Blogueira da
Capricho‖ é sintoma desse movimento de realocação dos interditos na formação discursiva
dos blogs de moda: é preciso ter o direito de fala que, aparentemente, a nossa blogueira em
questão não detinha.
Algumas conclusões
Antes de nossas conclusões teóricas, um ponto precisa ser retomado e frisado: nossa
análise não se preocupou com o caráter ético ou, minimamente, com os bons modos (ou
qual for a categoria em que se encaixe os atos de ―carteirada‖ ou, mais cotidianamente,
―furar filas‖). Desprendidos de qualquer juízo de valor para com a blogueira Giovanna,
nosso trabalho almejou apenas pontuar momentos discursivos importantes para que o caso
da ―Blogueira da Capricho‖ tomasse as proporções que testemunhamos.
7 Recuperado em 13 de março, 2015, de <http://vejasp.abril.com.br/blogs/terraco-
paulistano/2013/11/blogueiras-de-moda-defendem-criacao-de-sindicato/>.
Nosso trabalho permitiu observar sutilezas: uma nova profissão, uma nova palavra não se
limitam ao seu uso, mas às milhares de relações (nunca completamente nomináveis) que a
criam, sustentam, invadem, dispersam, regulam. Mesmo que não tenhamos consciência das
formações discursivas e dos usos que fazemos dos discursos que circulam em nosso tempo,
somos fruto desse berço invisível.
Parece-nos que desvelar formações discursivas se faz necessário uma vez que aceitar a
blogueira de moda como um novo perfil profissional da Comunicação não se restringe ao
fato de os blogs terem alcançado o patamar de mídias rentáveis, mas de uma legitimação
social e discursiva da prática. Mesmo que não haja consciência das formações discursivas e
dos usos que fazemos dos discursos circulantes em nosso tempo, somos fruto desse berço
invisível. A mesma situação se dá com as blogueiras de moda, suas leitoras e seu mercado
de atuação. Não se trata apenas de uma profissão em acelerada consolidação, mas em
processos de articulações discursivas constantes.
Giovanna Ferrarezi, a blogueira da Capricho, é filha de seu tempo, de seus discursos, de
sua profissão. E filha - não podemos ignorar! - dos nós da internet: esse ser tão invisível
quanto as formações discursivas que o sustentam e com um poder de incluir e excluir tão
veloz quanto os links que construímos com nossos cliques.
REFERÊNCIAS
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