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Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 1 (2014)
ANAMORFOSE – REVISTA DE ESTUDOS MODERNOS • VOL II • Nº I • 2014 • RidEM
Seduzidos pela autodestruição: melancolia, fracasso e a
invenção da imagem do artista moderno1
Renato Menezes Ramos
“Palavras abstratas que se desmancham na boca” e “estado de angústia que
se espalha como ferrugem” são apenas duas entre tantas metáforas precisas
encontradas por Lord Chandos para relatar ao seu amigo Francis Bacon a falência
absoluta de sua criatividade, a secura de sua fonte criadora. Tomado por uma
energia poética que pulsa forte ele, paradoxalmente, anuncia sua renúncia à
escrita, causada pela perda completa da capacidade do pensamento coerente, no
momento mesmo em que descreve preciosamente que seu corpo possuído por um
êxtase devastador provocava-lhe na boca um sabor análogo ao de cogumelos
apodrecidos. Assim ele continua a escrita eloquente:
Tudo desintegrava-se em pedaços; pedaços em mais pedaços e nada
mais conseguia ser abarcado por um conceito. As palavras isoladas
inundavam-me; aglutinavam-se em olhos que me fitavam e para os
quais via-me obrigado também a fitar: turbilhões, são as palavras.
Sentia vertigens ao olhar para elas, girando sem parar e através das
quais só se consegue chegar no vazio2.
A carta imaginária que Lord Philip Chandos, personagem fictício, envia em
resposta a Francis Bacon, figura central do chamado Renascimento inglês, foi
publicada em 1902 por Hofmannsthal em duas partes no jornal Der Tag, que
circulava em Berlim. Ao se referir ao escritor, alguns decênios mais tarde, Otto
Maria Carpeaux foi cirúrgico ao dizer: “O poeta não está morto. Mas seu mundo
morre”3. Chandos, para muitos um alter-ego de Hofmannsthal, não está
1 Agradeço a Vanessa Rocha, a quem dedico o texto, gerado pelas questões por ela suscitadas. 2 Hugo Von Hofmannsthal, Uma carta. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Viso. Caderno de estética aplicada, Nº 8, jan-jun, 2010. Página 7. 3 Otto Maria Carpeaux, A cinza do purgatório: ensaios reunidos (1942-1978). – Rio de Janeiro: UniverCidade: Topbooks, 1999. Vol. 1. Página 142.
SEDUZIDOS PELA AUTODESTRUIÇÃO: MELANCOLIA, FRACASSO E A INVENÇÃO DA IMAGEM DO ARTISTA MODERNO
efetivamente morto, mas é sim cruelmente corroído por uma doença de abrasão
espiritual, que o leva ao silêncio. Este silêncio, por outro lado, parece corresponder
não a uma impossibilidade de falar, mas a uma recusa à verborragia”4, consequente
de instantes de plenitude, que elaboram uma complexa “tautologia mística”.
Hofmannsthal escrevia assim um texto que posteriormente seria tomado
como uma bandeira da modernidade, que se dispunha a pensar doravante a
superposição dialética da matéria ao conteúdo: o texto fala de si próprio e a
camada subjetiva da obra faz o autor se confundir com o personagem. Além do
mais, o jovem envolvido por uma espécie de maravilhamento incandescente
sintetizava o ideal de uma época recuada, mas que avançaria até se cristalizar
como lugar comum para a imagem do artista que se subjuga apenas à suprema
vontade da arte. É, não por acaso, no mesmo ano (1902) que Thomas Mann, já
dono de grande competência descritiva da composição psíquica dos seus
personagens, publica “Os Famintos”. No conto, onde predomina a atmosfera de
solidão sombria, deixa-se escapar: “O que é a mente humana senão o teatro de
ódios? O que é a arte senão desejo de ato criador?”5. Mais tarde, Thomas Mann se
referiria à morte de seu grande amigo Hofmannsthal, como “um naufrágio sem
palavras, um precipício de amargura”6.
É preciso lembrar, contudo, que Hofmannsthal e Mann, apesar de terem em
comum uma espécie de expressionismo congênito, ambos amadurecem quando um
espírito decadentista ainda se encontra na ordem do dia. Apesar de sua origem
francesa, o decadentismo talvez tenha sido a corrente que ganhou o caráter mais
global na segunda metade do século XIX. A imagem do artista possuído por um
estado que oscila da embriaguez à fúria, do arrebatamento à excitação7, e se
encontra em consciência absoluta de derrota para si mesmo pode ser encontrada
em diversas partes do mundo.
A mais célebre imagem é, certamente, a de Van Gogh, pintor holandês, que
trabalha parte significativa de sua vida na França, onde morre suicidando-se,
4 Jacques Le Rider. La “Lettre de Lord Chandos”. Littérature, Nº95, 1994. Récit et rhetorique/ Tynianov. Página, pp. 107-108. 5 Thomas Mann, Os famintos e outras histórias. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 152. 6 Thomas Mann, O escritor e a sua missão: Goethe, Dostoievski, Ibsen e outros. – Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 46. 7 É válido lembrar que a variação brusca dos ânimos é uma das características fundamentais abordadas por Platão em seu Problema XXX, no qual detecta e analisa os comportamentos do melancólico.
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tempos depois de ter decepado a orelha. Van Gogh encarna, assim, a imagem eficaz
do artista espreitado pela baixeza humana, de onde vai buscar todo o condimento
de sua obra, como numa espécie de excremento fertilizante. Peter Severin Krøyer,
pintor dinamarquês, passaria parte da sua vida atormentado por uma efusão
incontrolável, crises estas que ocorriam sempre depois de momentos de total
harmonia e pacifismo. Arnold Böcklin, pintor suíço, executaria, em 1872, um
autorretrato envolvido pela própria morte, que o seduz ao som doce do violino ao
pé do ouvido. O artista nos olha já conformado de seu fim inescapável. Manuel
Ocaranza, pintor mexicano, sequer nos olha, pois já é uma natureza morta. Sai de
cena o estudo da incidência da luz na superfície das frutas e dos vasos, para o
próprio pintor ocupar morto a massa densa da composição. Diante de si a garrafa
de tequila substitui o absinto e entre os dedos um cigarro se apaga em contato com
a pele. A taça se reparte em estilhaços tal como sua vida, que se esvai. A
espontaneidade do vidro que se quebra e da natureza que morre é a do artista que
fracassa para si mesmo.
BÖCKLIN, Arnold. Autorretrato com a morte. 1872. Óleo sobre tela. 75 × 61 cm. Alte
Nationalgalerie, Berlin.
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OCARANZA, Manuel. Naturaleza muerta. 1881. Óleo sobre tela. Museo Nacional de Arte,
Cidade do México.
A França, como se poderia imaginar, foi um solo fértil. Rimbaud, o grande
enfant terrible, talvez a figura central da poesia maldita, é o jovem poeta que aos
vinte anos já tinha abandonado a escrita para circular o mundo dedicando-se ao
trabalho braçal e ao tráfico de armas. Jules Blin, em 1880, reafirma a imagem do
artista amaldiçoado. A arte se renova como o seu antidestino do qual não consegue
escapar, mas dentro do qual também não consegue mais subsistir. Arte, miséria,
desespero e loucura são palavras sinônimas, portadoras da mesma potência e que
habitam a mesma realidade. O seu fracasso, que, ao mesmo tempo, resultado da
incompreensão de seu gênio, é o que assegura sua subversão e garante a sua
modernidade. A melancolia torna-se insuficiente diante do arroubo feérico que
tomou o corpo do artista que pisoteia sua própria obra, com um revólver na mão,
pronto para atirar contra si mesmo. A eminência de morte do artista começa a se
aproximar de uma eminência da morte da própria arte.
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BLIN, Jules. Art, misère, désespoir et folie! 1880. Óleo sobre tela. 146 x 115 cm. Musée des
Beaux-Arts de Dijon, Dijon.
Àquela altura, já havia passado o Salão dos Recusados (1863), onde o
rechaço não significou alheamento, tampouco alienação, pois ser compreendido
era deixar-se moldar pacificamente pela bêtise burguesa. Fracasso, a partir de
então, corresponde ao mais agudo teor de modernidade. O artista afirma a sua
liberdade, proclama a sua insubmissão e a ordem de seu próprio destino, nem que
isso corresponda a sua morte ou a morte de sua arte. A “ingrata pátria que não
merece minha obra” era um grito anunciado, duas décadas antes (1840) por
Daumier. Na gravura, o artista em sua mais violenta exaltação, põe fim a sua obra
atravessando seu pé na superfície da tela, após destruir seu ateliê. Anos depois
(1844-45) seria a vez de Courbet: o belo desesperado nos fita agônico, de olhos
arregalados, camisa rota e agigantada que se acomoda em dobras no corpo e a
cabeleira esvoaçante entrepassada pelos dedos que se movimentam pelo furor de
seu espírito. Talvez ele nos convide a assistir o espetáculo mítico do artista que se
está por criar.
Mas à época de Jules Blin ainda se aguardava pela publicação de “Les Poètes
Maudits” (1884), uma glorificação dos amaldiçoados eleitos por Verlaine: Rimbaud,
Mallarmé e Corbière (entre outros) eram aí colocados lado a lado. E aguardava-se
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também por “L’Oeuvre” (1886), de Zola, obra que se propagou em longas ondas. A
história de Claude, jovem artista atingido pela recusa no Salão de 1863, e que
pouco a pouco sucumbe ao seu próprio universo artístico, é encerrada quando, em
completo desespero, o artista comete suicídio diante de sua grande tela jamais
terminada. O romance levaria Cèzanne, perseguido durante toda a sua vida por
uma persistente dúvida8, e que outrora dissera “Frenhofer c’est moi”9, a romper
relações com seu grande amigo Zola.
A afirmação atribuída ao obsessivo pintor do Mont Saint-Victoire se refere à
novela de Balzac, “Chef d’Oeuvre Inconnu”, escrita em 1831 e publicada no ano
seguinte, que serviu de referência fundamental para Zola décadas mais tarde.
Balzac, ao receber uma encomenda para que um texto seu estampasse as páginas
da revista L’Art, ele concebe essa pequena história, baseada, por sua vez, em um
conto ainda mais curto que Hoffmann, escritor alemão já muito conhecido na
França àquela altura, havia escrito em 1821. A obra de Balzac faria enorme sucesso
contrariamente ao destino de Frenhofer, com quem Cèzanne havia se identificado,
que após dar às chamas ao seu ateliê, comete suicídio.
Poussin, célebre pintor do assim chamado classicismo francês, torna-se o
jovem ambicioso que deseja estudar com Frans Porbus, autor do imponente
retrato de Marie de Médicis. Quando o primeiro vai ao ateliê do pintor flamengo
radicado na França, ele encontra o velho mestre, Frenhofer, artista esse que possui
uma espécie de fórmula mágica para a obra prima, como um mago que conhece
cada propriedade dos ingredientes para sua poção. O velho revela-os, então, que
está executando mais que um retrato feminino, mas a própria mulher. Assim,
Balzac põe à luz um dos principais problemas para a arte desde a Antiguidade, com
Plínio, o Velho, e redivivo no Renascimento, isto é, o da relação natureza - modelo -
imitação. Em dado momento o velho pintor profere: “A minha pintura não é uma
pintura, mas um sentimento, uma paixão”10. Conforme a narrativa, meses antes, no
8 É esse o mote de “La doute de Cèzanne”, célebre texto de Maurice Merleau-Ponty, publicado em 1945. 9 Michel Brix, “Frenhofer et les chef’s-d’oeuvres qui restent inconnus”. In.: Écrire la peinture entre XVIIIe et XIXe siècles. Études réunies et presentées par Pascale Auraix-Jonchièr. – Clermont-Ferrand : Presses Universitée Blaise Pascal, 2003, p. 244. 10 Honoré Balzac, A obra-prima ignorada; seguido de Um episódio durante o terror. – Porto Alegre: L&PM, 2012, p. 28.
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primeiro encontro entre os três, Frenhofer havia tomado pincel e paleta de Porbus
e, expressando um vertiginoso caos alucinatório, ele dispensa sobre a tela de uma
santa aparentemente finalizada, um frenético “Paf! Paf! Paf!” capaz de dar à obra
toda a vivacidade necessária para torná-la realmente uma grande obra. Os jovens
ficam espantados com o mestre que horas antes dizia que “a missão da arte não é
copiar, mas sim expressar a natureza!”11.
Frenhofer encarnava, a partir de então, a figura essencial do artista
romântico, que abdica do modelo plástico clássico em favor do que a imaginação
lhe fantasia. Poussin e Porbus, ao virem sua tão misteriosa obra, ficam perplexos
diante de uma “muralha de pintura”, no meio da qual apenas a imagem de um pé os
hipnotiza. Na verdade, ambos não haviam entendido que arte e expressão
individual eram universos organicamente conectados, assegurando, assim, a
aurora do fracasso do velho, um gênio incompreendido por instaurar uma
novidade, que soou um ruído fatal.
A ideia lançada por Balzac permaneceria vívida ainda no século seguinte e
atingiria gravemente Kafka, em “O artista da fome”, escrito em 1922. O artista cuja
obra é não fazer outra coisa senão jejuar evoca também a figura o escrivão
Bartleby, personagem de Meleville, a quem, diz-se, foi o mais justo predecessor do
expressionista tcheco. É preciso lembrar que Meleville era a monumentalidade
atroz de seu Moby Dick, mas era também o edifício em ruínas de seu Bartleby, que
ao ser cobrado por seu chefe no escritório de advocacia em Wall Street onde
trabalhava, ele repete invariavelmente: “Preferia não fazê-lo”12. A novela escrita
em 1853, arranca de Agamben mais de um século depois, o seguinte comentário:
O biombo alto e verde, que isola o seu escritório, traça o perímetro
de um laboratório no qual a potência, três decênios antes de
Nietzsche, e num sentido completamente diferente, prepara o
experimento no qual, desligando-se do princípio da razão, se
11 Idem, p. 11. 12 Na novela, Bartleby, um funcionário misterioso, vai deixando pouco a pouco de executar sua função sem abandonar, no entanto, o local de trabalho, o que coloca seu chefe em um dilema que perdura parte significativa da narrativa.
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emancipa tanto do ser como do não-ser e cria a sua própria
ontologia13.
Bartleby, tempos depois de Agambem, moveria o espanhol Enrique Vila-
Matas a escrever o seu premiado livro “Bartleby e companhia”14. Nele, um sujeito
tomado por uma “pulsão negativa”, circulando o “labirinto do Não”, escreve um
conjunto de notas para um texto jamais finalizado. Vila-Matas, nesse livro, elenca
os escritores acometidos pela falência absoluta do ato de criar. Além da presença
de Walser, Musil e Valéry, a figura de Rimbaud, Kafka e, evidentemente,
Hofmannsthal, não passariam turvamente diante de seus olhos.
Um dos aspectos frequentemente evocado no livro de Vila-Matas é o
discurso sobre si mesmo, metaforizado dos modos mais diversos. Em efeito, a ideia
de “espelho narrativo” perpassa de Van Gog a Ocaranza, de Frenhofer a Bartleby.
Além disso, não se pode esquecer que, quando Lord Chandos escreve para Francis
Bacon, ele relata que a misteriosa doença que atacara sua alma, o fizera
interromper sua obra em execução, cujo nome seria “Nosce te ipsum”, ou seja,
“Conhece-te a ti mesmo”.
A concepção segundo a qual é preciso subjetivar as questões da existência
em um movimento reflexivo, isto é, em direção a si próprio, marcaria
profundamente desde a expressão do anjo imóvel, de face soturna e que apoia sua
cabeça sobre uma das mãos até um dos mais célebres ensaios de Michel de
Montaigne, intitulado “Que philosopher c’est apprendre à mourir”. Montaigne, fonte
fresca que matou a sede de Bacon, a quem imaginariamente Chandos envia “A
Carta”, recorria ao lema de Cícero para defender a função essencialmente
autoeducativa da filosofia, no sentido de que sua razão adviria da inadequada
surpresa diante da morte. Era preciso, pois, acostumar-se com o fim certo da vida,
e o único método para isso, era filosofar, pensar sobre si mesmo.
O vértice do movimento potente de voltar-se a si próprio seria encontrado
na célebre sentença hamletiana de Shakespeare. O jovem que segura atordoado
uma caveira para contemplar o desastre de um mundo sem deus, iria se converter,
13 Giorgio Agamben, Bartleby e a escrita da potência. – Lisboa: Editora Assírio & Alvim, 2007, p. 32. 14 Enrique Vila-Matas, Bartleby e companhia. – São Paulo: Cosac Naify, 2004.
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pela primeira vez na história, em um herói puramente intelectual15. “To be or not to
be” sintetiza e legitima o problema da presença do homem na desordem do mundo.
Hamlet, esse envoltório de um mundo em decadência, ao fim e ao cabo pergunta-
se: ser joguete da aleatoriedade dos acontecimentos ou ser dono do próprio
destino? Se é muito mais fácil atravessar uma chaga contra o peito e por fim a
todos os problemas impostos pela existência, por que não efetivamente fazê-lo?
Shakespeare e sua elevada dimensão subjetiva atingiria gravemente,
tempos mais tarde, Füssli, artista suíço radicado em solo britânico. Tal como
grande parte dos artistas de seu tempo, Füssli vai a Roma, onde fica
aproximadamente de 1769 até 1778, observando diretamente os resquícios
materiais antigos e copiando-os intensivamente para desenvolver as “normas do
bom gosto”. Lá, em lugar de admirar Rafael, dono da compreensão absoluta da
resolução plástica do Renascimento, ele admira Michelangelo, o melancólico
Heráclito da Escola de Atenas16, que foi incapaz de concluir as estátuas da Capela
Médicis e de levar adiante seu projeto monumental para a Tumba de Júlio II, que
deixou por terminar diversas outras esculturas e, antes de morrer, incendiou
grande parte de sua papelada. Era apenas Michelangelo, o furioso pintor da
assombrosa abóbada da Capela Sistina, que entenderia o estado de resignação no
qual se encontrava Füssli em Roma.
“O artista desesperado diante da grandiosidade das ruínas antigas” exibe o
artista sentado com a cabeça apoiada sobre a mão, atitude evocativa à longa
tradição iconográfica da melancolia, enquanto pousa a outra mão sobre o
monumental pé marmóreo, fragmento do colosso do Imperador Constantino I, que
ainda hoje pode ser visto no Musei Capitolini, em Roma. Füssli parece ter sido
inteiramente assimilado por Lord Chandos: há uma grandiosidade espiritualmente
esmagadora que impede o trabalho do artista, que, por sua parte, compreende a
sua proporção diminuta. Contudo, esse gigantismo ciclópico é acompanhado da
inescapável crueldade do tempo que tudo devora.
15 René Tupin, Le mythe de Hamlet a l’époque romantique. The French Review. Vol. 27. N° 1 (Oct. de 1953), p. 20. 16 Um dos frescos realizados por Rafael na Stanzze della Segnatura, datado de 1509, de execução contemporânea à Capela Sistina. O artista apresenta um paralelismo sincrético entre o antigo e o moderno, onde cada filósofo da antiguidade apresenta a fisionomia de um artista de seu tempo. Diversos estudiosos confirmam a figura de Michelangelo, o único com roupas do século XVI, ser associado a Heráclito, aquele que chora diante da bestialidade humana e do estado transitório das coisas.
SEDUZIDOS PELA AUTODESTRUIÇÃO: MELANCOLIA, FRACASSO E A INVENÇÃO DA IMAGEM DO ARTISTA MODERNO
FÜSSLI, John Heinrich. O artista desesperado diante da grandiosidade das Ruinas antigas.
1778-1780. Sanguínea e sépia. 42x27. Kusthaus, Grafische Sammlung, Zurich
Füssli subverte, portanto, a ideia segundo a qual a falência completa do
processo criativo como geradora de uma pulsão autodestrutiva ganharia espaço
somente a partir do decadentismo fim-de-siècle. É ainda no século XVIII que se
inicia o movimento de fabricação da imagem do gênio incompreendido, que
corresponderia, imediatamente, ao sofrimento do artista fadado ao fracasso e
espreitado pela baixeza humana.
Thomas Chatterton, em 1770, dá cabo de sua própria vida saboreando
mortalmente uma dose de arsênio com apenas dezessete anos, depois de concluir
precocemente que jamais seria reconhecido por seu trabalho. Décadas mais tarde
ele era louvado por Keats como o “filho da tristeza”17, enquanto George Sand
meditaria que as “lágrimas humanas parecem uma grandiosidade diante do fluxo
do oceano”18. Pouco tempo depois de sua morte, Chatterton seria reconhecido
como um dos maiores gênios da poesia de seu tempo. Ele ativaria assim a
17 Keats também dedica a Chatterton a sua primeira grande obra “Endymion”, de 1818. 18 Após ter visto a peça “Chatterton”, escrita por Alfred de Vigny em 1835, George Sand dita esse soneto a Alfred Musset, que havia a acompanhado no Théatre-Français.
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maquinaria romântica que, em longa duração, passaria a compreender que
renunciar inconformado a todo tipo de expressão, ceder à sedução da
autodestruição e sucumbir ao fracasso significa compor a fórmula do artista
moderno.
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Resumo
A noção de uma falência absoluta
do processo criativo, geradora de
uma pulsão autodestrutiva por
parte do artista, muito embora seja
recorrentemente associada ao
decadentismo fin-de-siècle, é uma
característica detectável já em
meados do século XVIII. T.
Chatterton (1752-1770), jovem
poeta suicida, cuja imagem tornar-
se-ia célebre no século XIX,
anunciava a essência do artista
gênio, incompreendido, de
inclinação melancólica e sucumbido
pelo fracasso. A ideia do suicídio do
artista estaria, por outro lado,
diretamente conectada a uma
reflexão intensiva sobre si mesmo,
e sobre a sua própria morte, como
ensaiava Montaigne, parafraseando
Cícero, em “Philosopher, c’est
apprendre à mourir”. O movimento
potente de voltar-se a si próprio,
cujo vértice se encontra na célebre
sentença shakespeariana de
Hamlet, fundaria a imagem do
sujeito moderno e atingiria
gravemente, tempos mais tarde, J.
H. Füssli (1741-1825), artista suíço,
autor de importantes autorretratos
nos quais se apresenta em estado
de total resignação.
Résumé
La notion d’une absolue faillite du
processus de création, géneratrice
d’une pulsion auto-destructive de la
part de l’artiste, bien que
courrament associée au
décadentisme fin-de-siècle, est une
caracteristique détectable à la
moitié du XVIIIe siècle. T. Chatterton
(1752-1770), jeune poète suicidaire,
dont l’image deviendrait célèbre au
XIXe siècle, annonce la notion de
l’artiste génie, incompris,
mélancolique et succombé par
l’échec. L’idée du suicide de l’artiste
était, d’un autre coté, directement
conectée à la reflexion sur soi même,
et sur sa propre mort, comme disait
Montaigne, dans sa paraphrase à
Cicéron : «Philosopher, c’est
apprendre à mourir». Le mouvement
de revenir à soi-même, dont le
modèle est la célébre sentence de
Shakespeare dans Hamlet, fonderait
l’image du sujet moderne et
toucherait, quelque temps plus tard,
J. H. Füssli (1741-1825), artiste
suisse, auteur d’importants
autoportraits dans lesquels il se
présente en état de complète
résignation.
L’objectif de ce travail est de penser
de quel façon la mélancolie, en tant
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O objetivo desse trabalho é pensar
de que modo a melancolia, como
estado de espírito, canalizou uma
fórmula de artista moderno, fadado
ao fracasso e que sucumbe diante
da reflexão intensiva sobre a sua
própria existência no mundo. Para
isso, é fundamental compreender
esse tema de maneira trans-
histórica e interdisciplinar.
Palavras-chave: Melancolia,
Fracasso, Suicídio, Artistas, Século
XVIII.
qu’état d’esprit, a pu donner forme à
l’image de l’artiste moderne, destiné
au échec et qui succombe face à la
réflexion sur sa propre existence
dans le monde. Dans ce but, nous
abordons le thème dans une
perspective trans-historique et
interdisciplinaire.
Mots-clés: Mélancolie, Échec, Suicide,
Artistes, XVIIIe siècle.
Sobre o autor
Renato Menezes Ramos é Mestrando em História (História da Arte) pela
Unicamp, bolsista Fapesp. Graduado em História da Arte pela Uerj. Desenvolveu
período de aprofundamento de estudos na Universidade de Coimbra, Portugal.
Submetido em 24/01/2014
Aceito em 26/03/2014