Artífice ou Artista Artesão: Os Ofícios e Treinamento Tradicional Na Pintura Tibetana.

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ARTÍFICE ou ARTISTA ARTESÃO: OS OFÍCIOS E TREINAMENTO TRADICIONAL NA PINTURA TIBETANA. Vinicius de Assis Instituto de Artes UNESP – SP [email protected] RESUMO O seguinte artigo é o relatório do estudo de campo que faz parte do cronograma da dissertação de mestrado, Thangka A Pintura Sagrada Tibetana: Tradição, História e Método. Nele são apresentados o treinamento e os ofícios aprendidos e experimentados num período de sessenta dias (oito semanas) de vivência com o pintor tradicional e artista contemporâneo Karma Sichoe em seu estúdio em Dharamsala Índia, entre março e abril de 2015. PALAVRAS CHAVE: Ofício.Pintura.Processo.Tibete.Tradicional. ABSTRACT The following paper is a report of field research that is part of the master's schedule thesis of Thangka The Sacred Tibetan Painting: Tradition, History and Method. It presents the training and crafts learned and experienced over a period of sixty days (eight weeks) of experience with traditional painter and contemporary artist Karma Sichoe in his studio in Dharamsala, India between March and April 2015. KEY WORDS: Craft. Painting. Process.Tibet.Traditional 1 Prefácio Em 2013 fiz uma viagem com a artista Tiffani Gyatso até a Índia e Nepal para estudar arte budista tibetana, nessa viagem fui apresentado e houve um workshop com pintor tradicional e contemporâneo Karma Sichoe. Após esse período da viagem com Tiffani, eu e meus amigos (Coletivo RAGA 1 ) 1 . O Coletivo RAGA é formado pelos artistas visuais Felipe Ikehara, Rafael de Assis e Vinicius de Assis. Seus integrantes partilham o estudo de referências em arte tradicional de diversos povos com a mistura de suas peculiaridades, paridades estéticas e conceitos.

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ARTÍFICE ou ARTISTA ARTESÃO: OS OFÍCIOS E TREINAMENTOTRADICIONAL NA PINTURA TIBETANA.

Vinicius de AssisInstituto de Artes UNESP – SP

[email protected]

RESUMOO seguinte artigo é o relatório do estudo de campo que faz parte docronograma da dissertação de mestrado, Thangka A Pintura Sagrada Tibetana:Tradição, História e Método. Nele são apresentados o treinamento e osofícios aprendidos e experimentados num período de sessenta dias(oito semanas) de vivência com o pintor tradicional e artistacontemporâneo Karma Sichoe em seu estúdio em Dharamsala Índia, entremarço e abril de 2015.

PALAVRAS CHAVE: Ofício.Pintura.Processo.Tibete.Tradicional.

ABSTRACTThe following paper is a report of field research that is part ofthe master's schedule thesis of Thangka The Sacred Tibetan Painting: Tradition,History and Method. It presents the training and crafts learned andexperienced over a period of sixty days (eight weeks) of experiencewith traditional painter and contemporary artist Karma Sichoe in hisstudio in Dharamsala, India between March and April 2015.

KEY WORDS: Craft. Painting. Process.Tibet.Traditional

1 Prefácio

Em 2013 fiz uma viagem com a artista Tiffani

Gyatso até a Índia e Nepal para estudar arte budista tibetana,

nessa viagem fui apresentado e houve um workshop com pintor

tradicional e contemporâneo Karma Sichoe. Após esse período da

viagem com Tiffani, eu e meus amigos (Coletivo RAGA1)1 . O Coletivo RAGA é formado pelos artistas visuais Felipe Ikehara, Rafael de Assis e Vinicius de Assis. Seus integrantes partilham o estudo de referências em arte tradicional de diversos povos com a mistura de suas peculiaridades, paridades estéticas e conceitos.

conversamos com Karma e decidimos ficar mais trinta dias numa

vivência com ele. Procedimentos artesanais e artísticos foram

explicados e experimentados2

Após essa residência, retornei ao Brasil com a

confiança e certeza de que era sobre a pintura tradicional

tibetana, thangka que desejava me dedicar. E que se houvesse a

disposição de retornar à academia seria com esse interesse em

mente, estudar essa arte tradicional a qual tive o privilégio

de ter acesso, ver pinturas, visitar ateliês, conhecer os

procedimentos, pintores, além de ser uma tradição viva, ainda

existente. Tive esse vislumbre. Isso me deu confiança para

saber que era esse assunto que desejava me engajar (além do

incentivo da rara existência de estudos em português sobre o

assunto). Assim, em 2014 ingresso no mestrado já com a

intenção da pesquisa em pintura tibetana. No momento de compor

o cronograma e programa de estudos, incluo uma viagem para a

Índia como pesquisa de campo, para mais uma vivência com

Karma, desta vez de sessenta dias em 2015. Agora a viagem era

pensada como parte da dissertação de mestrado (capítulo sobre

métodos e procedimentos.) Compreendendo nesse caso que Sichoe

era a minha fonte primária no assunto.

2 Introdução

Um dos aspectos da arte tradicional é a relação

professor e aluno. Como se dá o aprendizado dos ofícios, do

artesanal, de como produzir as ferramentas, preparar a tinta,

fazer a tela, todo o procedimento para que a pintura aconteça,2 No artigo “ 30 dias em Dharamsala: Residência com um pintor tibetano” 2014

se materialize. Esse criar condições para que a matéria seja

plasmada e o fazer na relação professor aluno é a maneira

tradicional de aprender um ofício. Até mesmo fatos

corriqueiros como comprar pigmentos, limpar pincéis, moer

minérios, preparar colas e costurar são lições importantes que

se aprende observando o professor. Sabendo disso, era

imprescindível que houvesse um estudo de campo. Isso

possibilitaria uma experiência direta com uma fonte, havendo

essa possibilidade com Sichoe.

Busquei as condições in loco para que fosse possível

o acesso ao conhecimento oral, o dia a dia, a conversa, o

observar e a repetição. Aprender vendo Sichoe fazer e

repetindo para que ele pudesse corrigir, era uma experiência

que envolvia uma grande confidência e dedicação mútua, entre o

professor e aluno. “O professor de um lado deve ser paciente e

generoso ao ensinar e transmitir o que sabe e o aluno do

outro, deve ser perseverante e humilde em sua prática” dizia

Sichoe. Dessa maneira, esse sutil aprendizado dos ofícios se

revelou totalmente pertinente como fonte primária para o

capítulo sobre o métodos e procedimentos da thangka.

Sobre o artista: Karma Sichoe (fig.01), 41 anos, é

um pintor tradicional e artista contemporâneo. Órfão e

refugiado, Karma foi criado e educado no TCV (Tibetan

Children’s Village School) em Dharamsala. Ele recebeu seu

treinamento formal em pintura thangka no Centro Tibetano de

Artes e Ofícios em Dharamsala (hoje Instituto Norbulingka) sob

a orientação do renomado mestre pintor Ridzin Paljor, que foi

um dos principais pintores da corte Potala no Tibete e no

exílio continuou trabalhando diretamente para Sua Santidade o

Dalai Lama. Depois de se formar em 1993, Karma tem trabalhado

principalmente como um artista independente em encomendas

particulares, mosteiros, escolas e dedica grande parte de seu

tempo e energia para diversas atividades políticas dentro da

comunidade tibetana no exílio, bem como para o estudo da

diversidade de estilos da pintura Thangka e formas de arte.

Fig 01 Retrato do professor e pintor Karma Sichoe abril 2015Fonte: Arquivo pessoal

3 Estudo de Campo - Proposta de vivência O contato com Karma Sichoe para o estudo de campo

começou em 2014. Através de e-mails expliquei sobre o que pretendia

com a viagem e a ideia de vivência, alugar um espaço para morar

temporariamente e ter aulas. Ao chegar em Dharamsala na data

combinada, acabei alugando o estúdio do Karma e morei lá. Ao longo

dos dias sugeri como a vivência poderia ocorrer ao longo das

semanas, ele deu opiniões e aceitou algumas propostas. Por fim ficou

decidido que durante as semanas seguintes agiríamos em duas frentes:

a do treinamento (desenho, iconometria3 e uso do pincel) e os ofícios

(fazer carvão, nanquim, manufaturar um pincel e produção da tela/

thangka) ou seja, todo o artesanal e procedimento até o início da

pintura. Para legitimar a experiência como fonte do estudo, todos os

processos foram fotografados, filmados, anotados e materiais

manufaturados.

3 É um exigente sistema de medição (Tibetano: tsomo) destinado a garantir que toda a composição seja desenhada em proporção adequada. Tais cálculos, medidas e formas tem uma razão de ser. Cada deidade possui medidas geométricas exatas, estudadas e descritas em antigos textos. Essas medidas são baseadas por exemplo, na astrologia, no corpo humano, na natureza e em outros cálculos secretos.

Fig 02. Estúdio de Karma Sichoe, Gamru Village, Dharamsala, HimachalPradesh India 2015

Fonte: Arquivo pessoal

4 TreinamentoO artista poderia ser um mestre realizado, treinado nostextos e nas linhagens orais de sua tradição, sua visãoaperfeiçoada por meio da realização meditativa, sua mãorefinada pela prática de uma longa aprendizagem [...]frequentemente, o artista era uma pessoa leiga, treinadaem regras e estilos de representação, que haviatrabalhado por muitos anos sob a supervisão direta de umartista mestre. (TULKU, 2002, p. 23)

Sendo uma arte tradicional, a pintura budista

tibetana é um ofício que exige um intenso treinamento. Este

costuma levar anos, onde o desenho será refinado por

exaustivas repetições, cânones e proporções sagradas

assimiladas, a habilidade da pintura esmerada e os ofícios

transmitidos, como a preparação das tintas e a tela em rolo.

No Tibete 4o treinamento começava desde a infância, isso de

acordo com Karma era o que favorecia as condições para a

existência dos mestres. Estes eram assim considerados não

somente como artistas de grande técnica, mas como pintores que

além da habilidade pictórica, possuíam o conhecimento dos

textos sagrados (sutras e tantras) visualização meditativa e

domínio na simbologia tradicional e sagrada.

Atualmente o treinamento formal leva de três a

seis anos5. Nos primeiros anos o aluno pratica somente o

desenho. O primeiro ano de treinamento começa com a repetição

4 Antes da invasão chinesa em 1959 (POWERS 2007 p. 200)5 É a média de acordo com as escolas visitadas entre março e abril de 2015: Tsering Art School no Shechen Monastery (Kathmandu – Nepal) Norbukingka Institute (Dharamsala - Índia) e o ITTA, Institute of Tibetan Thangka Art (Dharamsala – Índia)

laboriosa de elementos da natureza, como folhas, flores,

rochas, nuvens, água e o fogo, além de animais, objetos

ritualísticos e mobiliários. É no treino desses elementos

básicos que já reside o traço, a fluidez, composição e

harmonia que serão exigidas posteriormente nas composições e

desenhos mais complexos. A sutileza das formas, a

interdependência das curvas6 e percepção do espaço negativo nas

figuras já é trabalhada desde o início. Somente nos anos

posteriores são introduzidas as iconometrias, (medidas e

proporções sagradas das deidades) produção da tela em rolo e

técnicas de pintura. Existe a exigência da maestria sobre cada

etapa do processo, essa é uma das garantias de que a obra de

arte, objeto ou utensílio7 estará feito de maneira adequada

para o seu uso, seu propósito. A transmissão não treina

somente a habilidade manual do artista, mas também sua mente,

já que sua conduta será imprescindível para a manufatura da

arte sagrada.

4.1 Treino conciso

Com as poucas semanas, Karma recomendou o foco no

treino da cabeça, mãos e corpo do buda, pontos vitais na

composição. Sugeri a repetição de dez vezes para cada e Karma

concordou e pediu que fosse feito o delineamento em nanquim em6 “As curvas devem ser interdependentes, onde linhas e camadas de níveis se repetem, sendo posteriormente sombreadas e realçadas suas características tridimensionais. (ASSIS. 2004. P. 9)7 Utensílio aqui deve ser compreendido como possuindo duas finalidades: o seu uso prático como objeto humano e seu uso intelectual como potencialidade simbólica, como lembrete da doutrina sagrada. Uma ligação entre a vida cotidiana (uso prático) e a única coisa necessária (o simbólico, sagrado e transcendente).

todos os desenhos, junto com o treino dos exercícios para

pincel. Isso durou três semanas.

4.2 Cabeça do Buda

Inicialmente estabeleci a meta inicial de desenhar

a cabeça do buda dez vezes, o que Karma concordou. Houve o

treino de compor várias vezes a grade canônica, desenhar e me

acostumar com as formas a serem apreendidas, como o formato do

rosto, orelhas, linhas, curvas que por vezes são demarcadas

pelas linhas das medidas, outras vezes não (fig. 03). Outro

ponto a observar são os espaços negativos criados que cooperam

e permitem (se compreendidos adequadamente) para o equilíbrio

e harmonia simétrica da perfeita serenidade meditativa da

iluminação.

Fig 03. Iconometria cabeça do Buda. Nanquim 2015Fonte: Arquivo pessoal

4.3 Exercícios para pincel

O delineamento ou contorno do pincel é uma das

maneiras de acabamento da thangka. Seguido do desenho e

pintura, o contorno é uma parte importante que exige muitos

anos de prática. Lapidar o delineamento preciso e afiado, o

domínio sobre pressão do pincel e a alternância entre a linha

fina e grossa em pontos certeiros pode corroborar

consideravelmente para a sensação de leveza, graciosidade e

equilíbrio na pintura. Para evocar e simbolizar a beatitude e

graça dos estados sublimes da mente, o artista deve estar

concentrado e inspirado. Com Karma aprendi que o completo

domínio do pincel não está na execução rápida e fluida da

linha (como pensava), mas sim em exibir o controle lentamente.

Assim, os exercícios eram o treino de três formas básicas: o

quadrado, o círculo e o triângulo. Repetidas vezes de maneira

concêntrica e contínua, num só movimento e lentamente. Esses

primordiais e simples exercícios ajudam no controle da pressão

do pincel, a quantidade de tinta, na maestria do pincel em

diversas direções8, na percepção do espaço negativo e no

trabalho da paciência e domínio sobre a ansiedade e raiva.9 Os8 Da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo, de baixo para cima e as diagonais.9 “(...) sobre motivação e a intenção do artista que se dedica ao tradicional e ao sagrado. Para esse artista, devem ser claras as intenções ao pretender seguir os rigorosos e complexos cânones da tradição tibetana. Pois o incentivo inspirador reside no respeito, confiança e admiração com oconhecimento que será retratado, no caso o Dharma, a doutrina do Buda.

exercícios eram executados com atenção especial a respiração,

o traço deve fluir junto com o fôlego, não se deve prender a

respiração, esta sempre deve ser contínua, calma e lenta.

4.4 Mãos e corpo do Buda

A posição das mãos é um aspecto muito importante

e seu significado distinto na simbologia tibetana deriva da

ciência dos mudras10. A posição exata das mãos faz referência

direta a ensinamentos do Buda, práticas de meditação e a sutis

significados que só podem ser assimilados através de uma

iniciação por um mestre qualificado e prática meditativa. O

corpo do buda possui sua importância fundamental como símbolo

e arquétipo. É protótipo e alicerce do estado iluminado, o que

se repetirá em deidades, bodhisattvas e mestres. Assim, seu

treino e compreensão é imprescindível (fig.04). O treino

básico começa com a assimilação das medidas (cânone) e desenho

do corpo nu do buda para noção do volume e proporção adequada

para a pintura ( fig.05) Posteriormente adiciona-se a

indumentária e objetos sobre o corpo.

(ASSIS. 2014. P. 03)10 Gestos das mãos, (Sânscrito. Mudrā) literalmente “selo”. Herança hindu presente no budismo. No Vajrayana é utilizado junto com mantras em rituais e nas pinturas como iconografia de ensinamentos, práticas de meditação, deidades e estados da mente.

Fig 04. Iconometria mãos e exercícios de traço. Nanquim 2015Fonte: Arquivo pessoal

Fig. 05 Iconometria, corpo do Buda, de pé e sentado. Nanquim 2015Fonte: Arquivo pessoal

5 Ofícios

Artista que não seja bom artesão, não que não possa serartista: simplesmente, ele não é artista bom. E desdeque vá se tornando verdadeiramente artista, é porqueconcomitantemente está se tornando artesão. (ANDRADE.1938. p. 33)

A relação com as ferramentas e matéria prima num contexto

tradicional é inevitável ao artesão. Muitas vezes antes mesmo

de começar a pintura, o artista deve ter o conhecimento de

separar os materiais que usará no preparo da composição e

garantir que cada etapa saia da maneira adequada, não

prejudicando assim o resultado final. No âmbito tradicional,

não há diferenciação entre “artes” e “ofícios” sendo ambos uma

unidade inseparável na cultura e sociedade11. Assim, a tradição

tibetana de pintura inclui nos afazeres do pintor, a extração

de pigmentos, feitura de tintas, fabricação de pincéis e

preparação da tela. Muitos pintores com ajudantes delegam com

o tempo essas funções mais trabalhosas à assistentes, uma

maneira de transmitir o conhecimento. Karma prefere ele mesmo

fazer cada etapa, dizia que assim conseguia garantir a

qualidade necessária em todos os estágios. Após explicar e

mostrar o proceder, Sichoe pedia que fizesse o mesmo, fosse

cortando galhos para o carvão, ajudando a alimentar a

fogueira, costurando a tela ou repetindo desenhos.

5.1 Carvão11 “(...) não somente objetos que se diriam ser para um “propósito religioso", mas também objetos que suprem as necessidades mais humildes da vida cotidiana, são capazes de se tornar ligações entre a vida e "a única coisa necessária" (...) todos os utilitários ordinários convergem e assim vão ao encontro de sua meta final. Por isso, cada obra de arte aparece, para a mente tibetana, como cumprindo esta dupla utilidade, ao mesmo tempo prático e intelectual”. (PALLIS 1967 p. 02)

Frequentemente utilizado para esboçar pinturas em

paredes e fazer estudos. A madeira recomendada e escolhida por

Karma foi o salgueiro indiano (indian willow) que cresce aos

bosques nas montanhas e vales do Kangra Valley. Sichoe

escolheu galhos jovens, frescos e maciços. Estes foram

descascados, cortados no tamanho desejado, organizados em

feixes, amarrados, embrulhados em papel alumínio e enterrados

nas cinzas de uma fogueira por três horas. (fig.06) Além do

uso para desenhar e esboçar, utilizamos alguns para produção

de pigmento. Pela trituração e decantação obtém-se a cor preta

utilizada para fazer nanquim.

Fig. 06 Karma Sichoe inspecionando os carvões recém feitos.Fonte: Arquivo pessoal

5.2 Nanquim

O carvão foi triturado e decantado, num processo

de moagem a seco, com acréscimo de água e levado ao fogo três

vezes, sempre repetindo o processo todo. Assim obtém-se um pó

muito fino, que se torna uma pasta com o acréscimo de água.

Cola animal é derretida em banho maria e misturada ao pigmento

(fig. 07) A tinta está pronta e pode ser utilizada, se secar é

só acrescentar água. Um tablete foi feito utilizando uma fôrma

de papel alumínio, forrada com papel manteiga para formar uma

peça de nanquim.

Fig.07 Adição de cola animal no carvão triturado e decantado.Fonte: Arquivo pessoal

5.3 Pincel

Dos ofícios este é cada vez mais raro. Com a

industrialização existe a hegemonia dos pincéis chineses.

Karma só havia executado essa técnica algumas vezes e

relembrou o processo mais uma vez comigo. Coletamos pêlo de

bode, mas podem ser de outro tipo, como animais selvagens

(gato, mamíferos peludos). As partes recomendadas para coleta

são os vãos dos dedos (patas) barriga e orelhas. Os pêlos

devem ser retos e não podem estar quebrados. Após a coleta dá-

se forma aos cabelos para o pincel, esse processo pode ser

feito de duas maneiras: seleciona-se os pêlos e utilizando uma

fôrma, (feita de massa de pão ou cerâmica) dá-se o formato e o

pincel é amarrado. Ou seleciona e modela-se o formato do

pincel com os dedos molhados na palma da mão. Para o cabo um

bambu é cortado, e modelado ao formato desejado para

empunhadura. Após o pincel amarrado e colado, este é encaixado

no bambu com cola animal.

Fig 08. Pêlos de bode cortados, selecionados e amarrados.

Fonte: Arquivo pessoal

5.4 Thangka

Seleciona-se um bom pedaço de tecido, de acordo

com Karma: “nem muito fino nem muito grosso” de preferência

algodão ou linho cru. Depois de cortar e atentar ao sentido da

trama, costura-se a tela nas bordas com varetas, estas serão

responsáveis pelo esticamento do tecido e abertura da trama. A

tela com as varetas é costurada no chassi de madeira, esticada

e ajustada para receber a goma que dará a porosidade e

flexibilidade ideais para a pintura com pigmento mineral. A

base é preparada (goma) com pigmento mineral, cal natural,

água e cola animal. Após a mistura nas proporções adequadas,

aplica-se a goma em ambos lados da tela alternadamente pelo

menos seis vezes. Um lado é aplicado de cada vez e é utilizado

um copo de vidro ou pedra lisa para polimento. Cada vez que é

terminada a aplicação da goma, o lado é polido e o tecido

esticado, de maneira alternada. Ao final das camadas a tela

deve ser capaz de conseguir bloquear os raios solares, sem

furos, com a aplicação da goma da maneira mais uniforme

possível sobre o tecido (fig.09).

Fig. 09. Aplicação de goma e preparação da tela.Fonte: Arquivo pessoal

Após a tela ficar pronta, fiz alguns estudos para uma

composição do Buda Shakyamuni. Sua iconografia, oferendas e

paisagem foram planejadas e decididas. De maneira intencional

detalhes foram escolhidos e visualizados. O projeto foi

redesenhado desta vez na tela engomada e delineado com o

nanquim (fig. 10).

Fig 10. Chassi e tela pronta com projeto de pintura feito com nanquimartesanal

Fonte: Arquivo pessoal6 Considerações

O estudo de campo foi de suma relevância. Foi através da ida as

regiões onde se encontra e faz o meu objeto de estudo (thangka), que

a imersão no assunto pode ocorrer e assim vislumbrar sua

complexidade. Simplificar a linha de pensamento da pesquisa foi

decorrência disso, pontualmente ajudou na síntese e criação da

estrutura do estudo, cronograma e em parte na seleção da

bibliografia. Compreender a importância de estar atento aos detalhes

durante a viagem e ser observador. Executar o registro (seja foto,

anotação ou desenho) considerando tudo isso como matéria prima

fértil para a escrita e discurso.

Basicamente a pesquisa de campo foi permeada com três tipos de

ações: a prática com o treinamento e ofícios, a leitura das

referências com tradução, fichamento, escrita e, anotações de todas

as impressões consideradas pertinentes. Sinto que agora com essa

experiência será mais acessível e eficiente a minha aproximação com

a teoria presente na bibliografia selecionada. Além do peso

colaborativo do estudo de campo como fonte primária para a

dissertação (sobre uma tradição oral e discipular ainda em

atividade) houve também o lampejo de como o processo e relação de

ofício com a matéria no contexto tradicional é notório e se faz

presente nos dias atuais, como questionamento, reconhecimento e

talvez até resgate de processos primordiais e simples, mas que

revelam uma sabedoria perene.

“ (...) quem quer que haja aceito essa idéia de ordem,

da forma da arte, não julgará absurdo que o passado deva

ser modificado pelo presente tanto quanto o presente

esteja orientado pelo passado. E o artista que disso

está ciente terá consciência de grandes dificuldades e

responsabilidades.” (ELIOT. 1989. p. 40)

REFERÊNCIAS

ANDRADE ,Mário - O artista e o artesão In. O Baile das Quatro Artes. São Paulo /Brasília. Ed. Martins, 1975

ASSIS, Vinicius. 30 dias em Dharamsala: Residência com um Pintor Tibetano. In: Encontro Internacional de Pesquisadores em Arte Oriental - Oriente-se: Ampliando Fronteiras, 2014, São Paulo. Anais doEncontro Internacional de Pesquisadores em Arte Oriental São Paulo UNIFESP, 2014. P. 620 até 637.

BURCKHARDT, Titus. A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente. São Paulo/SP: Attar Editorial, 2004.

ELIOT, T.S. Tradição e Talento Individual In. Ensaios. São Paulo/SP: Art Editora, 1989

PALLIS, Marco. Introduction to Tibetan Art. In Journal of Studies in Comparative Religion Inglaterra: World Wisdom.1967. Disponível em: <http:// http://www.studiesincomparativereligion.com/public/articles/Introduction_to_Tibetan_Art-by_Marco_Pallis.aspx >. Acesso em: 08 ago 2015.

POWERS, John. Introduction to Tibetan Buddhism. Ithaca, New York: Snow Lion Publications. 2007

TULKU, Tarthang. A Arte Iluminada. Uma Perspectiva sobre a Arte Sagrada do Tibete. São Paulo/SP: Editora Dharma, 2002.

Vinicius de Assis

Bacharel em Artes Visuais e mestrando pelo Instituto de Artes(UNESP/SP) com o Prof. Omar Khouri como orientador na linha depesquisa Análises Teóricas, Históricas e Culturais da Arte. Com focona Thangka (pintura tibetana). Pesquisa em pintura e artestradicionais.Tem interesse por procedimentos artesanais artísticos,tendo passagem prática pela restauração de pinturas, feitura devitrais, pintura de murais e procedimentos artesanais de pintura.