Seduzidos pela autodestruição: melancolia, fracasso e a invenção da imagem do artista moderno

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Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 1 (2014) ANAMORFOSE – REVISTA DE ESTUDOS MODERNOS • VOL II • Nº I • 2014 • RidEM Seduzidos pela autodestruição: melancolia, fracasso e a invenção da imagem do artista moderno 1 Renato Menezes Ramos “Palavras abstratas que se desmancham na boca” e “estado de angústia que se espalha como ferrugem” são apenas duas entre tantas metáforas precisas encontradas por Lord Chandos para relatar ao seu amigo Francis Bacon a falência absoluta de sua criatividade, a secura de sua fonte criadora. Tomado por uma energia poética que pulsa forte ele, paradoxalmente, anuncia sua renúncia à escrita, causada pela perda completa da capacidade do pensamento coerente, no momento mesmo em que descreve preciosamente que seu corpo possuído por um êxtase devastador provocava-lhe na boca um sabor análogo ao de cogumelos apodrecidos. Assim ele continua a escrita eloquente: Tudo desintegrava-se em pedaços; pedaços em mais pedaços e nada mais conseguia ser abarcado por um conceito. As palavras isoladas inundavam-me; aglutinavam-se em olhos que me fitavam e para os quais via-me obrigado também a fitar: turbilhões, são as palavras. Sentia vertigens ao olhar para elas, girando sem parar e através das quais só se consegue chegar no vazio 2 . A carta imaginária que Lord Philip Chandos, personagem fictício, envia em resposta a Francis Bacon, figura central do chamado Renascimento inglês, foi publicada em 1902 por Hofmannsthal em duas partes no jornal Der Tag, que circulava em Berlim. Ao se referir ao escritor, alguns decênios mais tarde, Otto Maria Carpeaux foi cirúrgico ao dizer: “O poeta não está morto. Mas seu mundo morre” 3 . Chandos, para muitos um alter-ego de Hofmannsthal, não está 1 Agradeço a Vanessa Rocha, a quem dedico o texto, gerado pelas questões por ela suscitadas. 2 Hugo Von Hofmannsthal, Uma carta. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Viso. Caderno de estética aplicada, Nº 8, jan-jun, 2010. Página 7. 3 Otto Maria Carpeaux, A cinza do purgatório: ensaios reunidos (1942-1978). – Rio de Janeiro: UniverCidade: Topbooks, 1999. Vol. 1. Página 142.

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Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 1 (2014)

ANAMORFOSE – REVISTA DE ESTUDOS MODERNOS • VOL II • Nº I • 2014 • RidEM

Seduzidos pela autodestruição: melancolia, fracasso e a

invenção da imagem do artista moderno1

Renato Menezes Ramos

“Palavras abstratas que se desmancham na boca” e “estado de angústia que

se espalha como ferrugem” são apenas duas entre tantas metáforas precisas

encontradas por Lord Chandos para relatar ao seu amigo Francis Bacon a falência

absoluta de sua criatividade, a secura de sua fonte criadora. Tomado por uma

energia poética que pulsa forte ele, paradoxalmente, anuncia sua renúncia à

escrita, causada pela perda completa da capacidade do pensamento coerente, no

momento mesmo em que descreve preciosamente que seu corpo possuído por um

êxtase devastador provocava-lhe na boca um sabor análogo ao de cogumelos

apodrecidos. Assim ele continua a escrita eloquente:

Tudo desintegrava-se em pedaços; pedaços em mais pedaços e nada

mais conseguia ser abarcado por um conceito. As palavras isoladas

inundavam-me; aglutinavam-se em olhos que me fitavam e para os

quais via-me obrigado também a fitar: turbilhões, são as palavras.

Sentia vertigens ao olhar para elas, girando sem parar e através das

quais só se consegue chegar no vazio2.

A carta imaginária que Lord Philip Chandos, personagem fictício, envia em

resposta a Francis Bacon, figura central do chamado Renascimento inglês, foi

publicada em 1902 por Hofmannsthal em duas partes no jornal Der Tag, que

circulava em Berlim. Ao se referir ao escritor, alguns decênios mais tarde, Otto

Maria Carpeaux foi cirúrgico ao dizer: “O poeta não está morto. Mas seu mundo

morre”3. Chandos, para muitos um alter-ego de Hofmannsthal, não está

1 Agradeço a Vanessa Rocha, a quem dedico o texto, gerado pelas questões por ela suscitadas. 2 Hugo Von Hofmannsthal, Uma carta. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Viso. Caderno de estética aplicada, Nº 8, jan-jun, 2010. Página 7. 3 Otto Maria Carpeaux, A cinza do purgatório: ensaios reunidos (1942-1978). – Rio de Janeiro: UniverCidade: Topbooks, 1999. Vol. 1. Página 142.

SEDUZIDOS PELA AUTODESTRUIÇÃO: MELANCOLIA, FRACASSO E A INVENÇÃO DA IMAGEM DO ARTISTA MODERNO

efetivamente morto, mas é sim cruelmente corroído por uma doença de abrasão

espiritual, que o leva ao silêncio. Este silêncio, por outro lado, parece corresponder

não a uma impossibilidade de falar, mas a uma recusa à verborragia”4, consequente

de instantes de plenitude, que elaboram uma complexa “tautologia mística”.

Hofmannsthal escrevia assim um texto que posteriormente seria tomado

como uma bandeira da modernidade, que se dispunha a pensar doravante a

superposição dialética da matéria ao conteúdo: o texto fala de si próprio e a

camada subjetiva da obra faz o autor se confundir com o personagem. Além do

mais, o jovem envolvido por uma espécie de maravilhamento incandescente

sintetizava o ideal de uma época recuada, mas que avançaria até se cristalizar

como lugar comum para a imagem do artista que se subjuga apenas à suprema

vontade da arte. É, não por acaso, no mesmo ano (1902) que Thomas Mann, já

dono de grande competência descritiva da composição psíquica dos seus

personagens, publica “Os Famintos”. No conto, onde predomina a atmosfera de

solidão sombria, deixa-se escapar: “O que é a mente humana senão o teatro de

ódios? O que é a arte senão desejo de ato criador?”5. Mais tarde, Thomas Mann se

referiria à morte de seu grande amigo Hofmannsthal, como “um naufrágio sem

palavras, um precipício de amargura”6.

É preciso lembrar, contudo, que Hofmannsthal e Mann, apesar de terem em

comum uma espécie de expressionismo congênito, ambos amadurecem quando um

espírito decadentista ainda se encontra na ordem do dia. Apesar de sua origem

francesa, o decadentismo talvez tenha sido a corrente que ganhou o caráter mais

global na segunda metade do século XIX. A imagem do artista possuído por um

estado que oscila da embriaguez à fúria, do arrebatamento à excitação7, e se

encontra em consciência absoluta de derrota para si mesmo pode ser encontrada

em diversas partes do mundo.

A mais célebre imagem é, certamente, a de Van Gogh, pintor holandês, que

trabalha parte significativa de sua vida na França, onde morre suicidando-se,

4 Jacques Le Rider. La “Lettre de Lord Chandos”. Littérature, Nº95, 1994. Récit et rhetorique/ Tynianov. Página, pp. 107-108. 5 Thomas Mann, Os famintos e outras histórias. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 152. 6 Thomas Mann, O escritor e a sua missão: Goethe, Dostoievski, Ibsen e outros. – Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 46. 7 É válido lembrar que a variação brusca dos ânimos é uma das características fundamentais abordadas por Platão em seu Problema XXX, no qual detecta e analisa os comportamentos do melancólico.

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tempos depois de ter decepado a orelha. Van Gogh encarna, assim, a imagem eficaz

do artista espreitado pela baixeza humana, de onde vai buscar todo o condimento

de sua obra, como numa espécie de excremento fertilizante. Peter Severin Krøyer,

pintor dinamarquês, passaria parte da sua vida atormentado por uma efusão

incontrolável, crises estas que ocorriam sempre depois de momentos de total

harmonia e pacifismo. Arnold Böcklin, pintor suíço, executaria, em 1872, um

autorretrato envolvido pela própria morte, que o seduz ao som doce do violino ao

pé do ouvido. O artista nos olha já conformado de seu fim inescapável. Manuel

Ocaranza, pintor mexicano, sequer nos olha, pois já é uma natureza morta. Sai de

cena o estudo da incidência da luz na superfície das frutas e dos vasos, para o

próprio pintor ocupar morto a massa densa da composição. Diante de si a garrafa

de tequila substitui o absinto e entre os dedos um cigarro se apaga em contato com

a pele. A taça se reparte em estilhaços tal como sua vida, que se esvai. A

espontaneidade do vidro que se quebra e da natureza que morre é a do artista que

fracassa para si mesmo.

BÖCKLIN, Arnold. Autorretrato com a morte. 1872. Óleo sobre tela. 75 × 61 cm. Alte

Nationalgalerie, Berlin.

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OCARANZA, Manuel. Naturaleza muerta. 1881. Óleo sobre tela. Museo Nacional de Arte,

Cidade do México.

A França, como se poderia imaginar, foi um solo fértil. Rimbaud, o grande

enfant terrible, talvez a figura central da poesia maldita, é o jovem poeta que aos

vinte anos já tinha abandonado a escrita para circular o mundo dedicando-se ao

trabalho braçal e ao tráfico de armas. Jules Blin, em 1880, reafirma a imagem do

artista amaldiçoado. A arte se renova como o seu antidestino do qual não consegue

escapar, mas dentro do qual também não consegue mais subsistir. Arte, miséria,

desespero e loucura são palavras sinônimas, portadoras da mesma potência e que

habitam a mesma realidade. O seu fracasso, que, ao mesmo tempo, resultado da

incompreensão de seu gênio, é o que assegura sua subversão e garante a sua

modernidade. A melancolia torna-se insuficiente diante do arroubo feérico que

tomou o corpo do artista que pisoteia sua própria obra, com um revólver na mão,

pronto para atirar contra si mesmo. A eminência de morte do artista começa a se

aproximar de uma eminência da morte da própria arte.

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BLIN, Jules. Art, misère, désespoir et folie! 1880. Óleo sobre tela. 146 x 115 cm. Musée des

Beaux-Arts de Dijon, Dijon.

Àquela altura, já havia passado o Salão dos Recusados (1863), onde o

rechaço não significou alheamento, tampouco alienação, pois ser compreendido

era deixar-se moldar pacificamente pela bêtise burguesa. Fracasso, a partir de

então, corresponde ao mais agudo teor de modernidade. O artista afirma a sua

liberdade, proclama a sua insubmissão e a ordem de seu próprio destino, nem que

isso corresponda a sua morte ou a morte de sua arte. A “ingrata pátria que não

merece minha obra” era um grito anunciado, duas décadas antes (1840) por

Daumier. Na gravura, o artista em sua mais violenta exaltação, põe fim a sua obra

atravessando seu pé na superfície da tela, após destruir seu ateliê. Anos depois

(1844-45) seria a vez de Courbet: o belo desesperado nos fita agônico, de olhos

arregalados, camisa rota e agigantada que se acomoda em dobras no corpo e a

cabeleira esvoaçante entrepassada pelos dedos que se movimentam pelo furor de

seu espírito. Talvez ele nos convide a assistir o espetáculo mítico do artista que se

está por criar.

Mas à época de Jules Blin ainda se aguardava pela publicação de “Les Poètes

Maudits” (1884), uma glorificação dos amaldiçoados eleitos por Verlaine: Rimbaud,

Mallarmé e Corbière (entre outros) eram aí colocados lado a lado. E aguardava-se

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também por “L’Oeuvre” (1886), de Zola, obra que se propagou em longas ondas. A

história de Claude, jovem artista atingido pela recusa no Salão de 1863, e que

pouco a pouco sucumbe ao seu próprio universo artístico, é encerrada quando, em

completo desespero, o artista comete suicídio diante de sua grande tela jamais

terminada. O romance levaria Cèzanne, perseguido durante toda a sua vida por

uma persistente dúvida8, e que outrora dissera “Frenhofer c’est moi”9, a romper

relações com seu grande amigo Zola.

A afirmação atribuída ao obsessivo pintor do Mont Saint-Victoire se refere à

novela de Balzac, “Chef d’Oeuvre Inconnu”, escrita em 1831 e publicada no ano

seguinte, que serviu de referência fundamental para Zola décadas mais tarde.

Balzac, ao receber uma encomenda para que um texto seu estampasse as páginas

da revista L’Art, ele concebe essa pequena história, baseada, por sua vez, em um

conto ainda mais curto que Hoffmann, escritor alemão já muito conhecido na

França àquela altura, havia escrito em 1821. A obra de Balzac faria enorme sucesso

contrariamente ao destino de Frenhofer, com quem Cèzanne havia se identificado,

que após dar às chamas ao seu ateliê, comete suicídio.

Poussin, célebre pintor do assim chamado classicismo francês, torna-se o

jovem ambicioso que deseja estudar com Frans Porbus, autor do imponente

retrato de Marie de Médicis. Quando o primeiro vai ao ateliê do pintor flamengo

radicado na França, ele encontra o velho mestre, Frenhofer, artista esse que possui

uma espécie de fórmula mágica para a obra prima, como um mago que conhece

cada propriedade dos ingredientes para sua poção. O velho revela-os, então, que

está executando mais que um retrato feminino, mas a própria mulher. Assim,

Balzac põe à luz um dos principais problemas para a arte desde a Antiguidade, com

Plínio, o Velho, e redivivo no Renascimento, isto é, o da relação natureza - modelo -

imitação. Em dado momento o velho pintor profere: “A minha pintura não é uma

pintura, mas um sentimento, uma paixão”10. Conforme a narrativa, meses antes, no

8 É esse o mote de “La doute de Cèzanne”, célebre texto de Maurice Merleau-Ponty, publicado em 1945. 9 Michel Brix, “Frenhofer et les chef’s-d’oeuvres qui restent inconnus”. In.: Écrire la peinture entre XVIIIe et XIXe siècles. Études réunies et presentées par Pascale Auraix-Jonchièr. – Clermont-Ferrand : Presses Universitée Blaise Pascal, 2003, p. 244. 10 Honoré Balzac, A obra-prima ignorada; seguido de Um episódio durante o terror. – Porto Alegre: L&PM, 2012, p. 28.

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primeiro encontro entre os três, Frenhofer havia tomado pincel e paleta de Porbus

e, expressando um vertiginoso caos alucinatório, ele dispensa sobre a tela de uma

santa aparentemente finalizada, um frenético “Paf! Paf! Paf!” capaz de dar à obra

toda a vivacidade necessária para torná-la realmente uma grande obra. Os jovens

ficam espantados com o mestre que horas antes dizia que “a missão da arte não é

copiar, mas sim expressar a natureza!”11.

Frenhofer encarnava, a partir de então, a figura essencial do artista

romântico, que abdica do modelo plástico clássico em favor do que a imaginação

lhe fantasia. Poussin e Porbus, ao virem sua tão misteriosa obra, ficam perplexos

diante de uma “muralha de pintura”, no meio da qual apenas a imagem de um pé os

hipnotiza. Na verdade, ambos não haviam entendido que arte e expressão

individual eram universos organicamente conectados, assegurando, assim, a

aurora do fracasso do velho, um gênio incompreendido por instaurar uma

novidade, que soou um ruído fatal.

A ideia lançada por Balzac permaneceria vívida ainda no século seguinte e

atingiria gravemente Kafka, em “O artista da fome”, escrito em 1922. O artista cuja

obra é não fazer outra coisa senão jejuar evoca também a figura o escrivão

Bartleby, personagem de Meleville, a quem, diz-se, foi o mais justo predecessor do

expressionista tcheco. É preciso lembrar que Meleville era a monumentalidade

atroz de seu Moby Dick, mas era também o edifício em ruínas de seu Bartleby, que

ao ser cobrado por seu chefe no escritório de advocacia em Wall Street onde

trabalhava, ele repete invariavelmente: “Preferia não fazê-lo”12. A novela escrita

em 1853, arranca de Agamben mais de um século depois, o seguinte comentário:

O biombo alto e verde, que isola o seu escritório, traça o perímetro

de um laboratório no qual a potência, três decênios antes de

Nietzsche, e num sentido completamente diferente, prepara o

experimento no qual, desligando-se do princípio da razão, se

11 Idem, p. 11. 12 Na novela, Bartleby, um funcionário misterioso, vai deixando pouco a pouco de executar sua função sem abandonar, no entanto, o local de trabalho, o que coloca seu chefe em um dilema que perdura parte significativa da narrativa.

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emancipa tanto do ser como do não-ser e cria a sua própria

ontologia13.

Bartleby, tempos depois de Agambem, moveria o espanhol Enrique Vila-

Matas a escrever o seu premiado livro “Bartleby e companhia”14. Nele, um sujeito

tomado por uma “pulsão negativa”, circulando o “labirinto do Não”, escreve um

conjunto de notas para um texto jamais finalizado. Vila-Matas, nesse livro, elenca

os escritores acometidos pela falência absoluta do ato de criar. Além da presença

de Walser, Musil e Valéry, a figura de Rimbaud, Kafka e, evidentemente,

Hofmannsthal, não passariam turvamente diante de seus olhos.

Um dos aspectos frequentemente evocado no livro de Vila-Matas é o

discurso sobre si mesmo, metaforizado dos modos mais diversos. Em efeito, a ideia

de “espelho narrativo” perpassa de Van Gog a Ocaranza, de Frenhofer a Bartleby.

Além disso, não se pode esquecer que, quando Lord Chandos escreve para Francis

Bacon, ele relata que a misteriosa doença que atacara sua alma, o fizera

interromper sua obra em execução, cujo nome seria “Nosce te ipsum”, ou seja,

“Conhece-te a ti mesmo”.

A concepção segundo a qual é preciso subjetivar as questões da existência

em um movimento reflexivo, isto é, em direção a si próprio, marcaria

profundamente desde a expressão do anjo imóvel, de face soturna e que apoia sua

cabeça sobre uma das mãos até um dos mais célebres ensaios de Michel de

Montaigne, intitulado “Que philosopher c’est apprendre à mourir”. Montaigne, fonte

fresca que matou a sede de Bacon, a quem imaginariamente Chandos envia “A

Carta”, recorria ao lema de Cícero para defender a função essencialmente

autoeducativa da filosofia, no sentido de que sua razão adviria da inadequada

surpresa diante da morte. Era preciso, pois, acostumar-se com o fim certo da vida,

e o único método para isso, era filosofar, pensar sobre si mesmo.

O vértice do movimento potente de voltar-se a si próprio seria encontrado

na célebre sentença hamletiana de Shakespeare. O jovem que segura atordoado

uma caveira para contemplar o desastre de um mundo sem deus, iria se converter,

13 Giorgio Agamben, Bartleby e a escrita da potência. – Lisboa: Editora Assírio & Alvim, 2007, p. 32. 14 Enrique Vila-Matas, Bartleby e companhia. – São Paulo: Cosac Naify, 2004.

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pela primeira vez na história, em um herói puramente intelectual15. “To be or not to

be” sintetiza e legitima o problema da presença do homem na desordem do mundo.

Hamlet, esse envoltório de um mundo em decadência, ao fim e ao cabo pergunta-

se: ser joguete da aleatoriedade dos acontecimentos ou ser dono do próprio

destino? Se é muito mais fácil atravessar uma chaga contra o peito e por fim a

todos os problemas impostos pela existência, por que não efetivamente fazê-lo?

Shakespeare e sua elevada dimensão subjetiva atingiria gravemente,

tempos mais tarde, Füssli, artista suíço radicado em solo britânico. Tal como

grande parte dos artistas de seu tempo, Füssli vai a Roma, onde fica

aproximadamente de 1769 até 1778, observando diretamente os resquícios

materiais antigos e copiando-os intensivamente para desenvolver as “normas do

bom gosto”. Lá, em lugar de admirar Rafael, dono da compreensão absoluta da

resolução plástica do Renascimento, ele admira Michelangelo, o melancólico

Heráclito da Escola de Atenas16, que foi incapaz de concluir as estátuas da Capela

Médicis e de levar adiante seu projeto monumental para a Tumba de Júlio II, que

deixou por terminar diversas outras esculturas e, antes de morrer, incendiou

grande parte de sua papelada. Era apenas Michelangelo, o furioso pintor da

assombrosa abóbada da Capela Sistina, que entenderia o estado de resignação no

qual se encontrava Füssli em Roma.

“O artista desesperado diante da grandiosidade das ruínas antigas” exibe o

artista sentado com a cabeça apoiada sobre a mão, atitude evocativa à longa

tradição iconográfica da melancolia, enquanto pousa a outra mão sobre o

monumental pé marmóreo, fragmento do colosso do Imperador Constantino I, que

ainda hoje pode ser visto no Musei Capitolini, em Roma. Füssli parece ter sido

inteiramente assimilado por Lord Chandos: há uma grandiosidade espiritualmente

esmagadora que impede o trabalho do artista, que, por sua parte, compreende a

sua proporção diminuta. Contudo, esse gigantismo ciclópico é acompanhado da

inescapável crueldade do tempo que tudo devora.

15 René Tupin, Le mythe de Hamlet a l’époque romantique. The French Review. Vol. 27. N° 1 (Oct. de 1953), p. 20. 16 Um dos frescos realizados por Rafael na Stanzze della Segnatura, datado de 1509, de execução contemporânea à Capela Sistina. O artista apresenta um paralelismo sincrético entre o antigo e o moderno, onde cada filósofo da antiguidade apresenta a fisionomia de um artista de seu tempo. Diversos estudiosos confirmam a figura de Michelangelo, o único com roupas do século XVI, ser associado a Heráclito, aquele que chora diante da bestialidade humana e do estado transitório das coisas.

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FÜSSLI, John Heinrich. O artista desesperado diante da grandiosidade das Ruinas antigas.

1778-1780. Sanguínea e sépia. 42x27. Kusthaus, Grafische Sammlung, Zurich

Füssli subverte, portanto, a ideia segundo a qual a falência completa do

processo criativo como geradora de uma pulsão autodestrutiva ganharia espaço

somente a partir do decadentismo fim-de-siècle. É ainda no século XVIII que se

inicia o movimento de fabricação da imagem do gênio incompreendido, que

corresponderia, imediatamente, ao sofrimento do artista fadado ao fracasso e

espreitado pela baixeza humana.

Thomas Chatterton, em 1770, dá cabo de sua própria vida saboreando

mortalmente uma dose de arsênio com apenas dezessete anos, depois de concluir

precocemente que jamais seria reconhecido por seu trabalho. Décadas mais tarde

ele era louvado por Keats como o “filho da tristeza”17, enquanto George Sand

meditaria que as “lágrimas humanas parecem uma grandiosidade diante do fluxo

do oceano”18. Pouco tempo depois de sua morte, Chatterton seria reconhecido

como um dos maiores gênios da poesia de seu tempo. Ele ativaria assim a

17 Keats também dedica a Chatterton a sua primeira grande obra “Endymion”, de 1818. 18 Após ter visto a peça “Chatterton”, escrita por Alfred de Vigny em 1835, George Sand dita esse soneto a Alfred Musset, que havia a acompanhado no Théatre-Français.

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maquinaria romântica que, em longa duração, passaria a compreender que

renunciar inconformado a todo tipo de expressão, ceder à sedução da

autodestruição e sucumbir ao fracasso significa compor a fórmula do artista

moderno.

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Resumo

A noção de uma falência absoluta

do processo criativo, geradora de

uma pulsão autodestrutiva por

parte do artista, muito embora seja

recorrentemente associada ao

decadentismo fin-de-siècle, é uma

característica detectável já em

meados do século XVIII. T.

Chatterton (1752-1770), jovem

poeta suicida, cuja imagem tornar-

se-ia célebre no século XIX,

anunciava a essência do artista

gênio, incompreendido, de

inclinação melancólica e sucumbido

pelo fracasso. A ideia do suicídio do

artista estaria, por outro lado,

diretamente conectada a uma

reflexão intensiva sobre si mesmo,

e sobre a sua própria morte, como

ensaiava Montaigne, parafraseando

Cícero, em “Philosopher, c’est

apprendre à mourir”. O movimento

potente de voltar-se a si próprio,

cujo vértice se encontra na célebre

sentença shakespeariana de

Hamlet, fundaria a imagem do

sujeito moderno e atingiria

gravemente, tempos mais tarde, J.

H. Füssli (1741-1825), artista suíço,

autor de importantes autorretratos

nos quais se apresenta em estado

de total resignação.

Résumé

La notion d’une absolue faillite du

processus de création, géneratrice

d’une pulsion auto-destructive de la

part de l’artiste, bien que

courrament associée au

décadentisme fin-de-siècle, est une

caracteristique détectable à la

moitié du XVIIIe siècle. T. Chatterton

(1752-1770), jeune poète suicidaire,

dont l’image deviendrait célèbre au

XIXe siècle, annonce la notion de

l’artiste génie, incompris,

mélancolique et succombé par

l’échec. L’idée du suicide de l’artiste

était, d’un autre coté, directement

conectée à la reflexion sur soi même,

et sur sa propre mort, comme disait

Montaigne, dans sa paraphrase à

Cicéron : «Philosopher, c’est

apprendre à mourir». Le mouvement

de revenir à soi-même, dont le

modèle est la célébre sentence de

Shakespeare dans Hamlet, fonderait

l’image du sujet moderne et

toucherait, quelque temps plus tard,

J. H. Füssli (1741-1825), artiste

suisse, auteur d’importants

autoportraits dans lesquels il se

présente en état de complète

résignation.

L’objectif de ce travail est de penser

de quel façon la mélancolie, en tant

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O objetivo desse trabalho é pensar

de que modo a melancolia, como

estado de espírito, canalizou uma

fórmula de artista moderno, fadado

ao fracasso e que sucumbe diante

da reflexão intensiva sobre a sua

própria existência no mundo. Para

isso, é fundamental compreender

esse tema de maneira trans-

histórica e interdisciplinar.

Palavras-chave: Melancolia,

Fracasso, Suicídio, Artistas, Século

XVIII.

qu’état d’esprit, a pu donner forme à

l’image de l’artiste moderne, destiné

au échec et qui succombe face à la

réflexion sur sa propre existence

dans le monde. Dans ce but, nous

abordons le thème dans une

perspective trans-historique et

interdisciplinaire.

Mots-clés: Mélancolie, Échec, Suicide,

Artistes, XVIIIe siècle.

Sobre o autor

Renato Menezes Ramos é Mestrando em História (História da Arte) pela

Unicamp, bolsista Fapesp. Graduado em História da Arte pela Uerj. Desenvolveu

período de aprofundamento de estudos na Universidade de Coimbra, Portugal.

Submetido em 24/01/2014

Aceito em 26/03/2014