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KOM OMBO: O ANTIGO DOMÍNIO DE SOBEK
Por TELO FERREIRA CANHÃO Doutorando da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
No universo concebido pelos antigos Egípcios conviviam a ordem cósmica e a
ordem humana, confrontando-se nele, permanentemente, a dualidade dos opostos.
Bem/mal, ordem/caos, justiça/injustiça, vida/morte, Vale/Deserto, são apenas alguns
dos seus antagonismos mais evidentes. A força reguladora do sistema, maat, a ordem
cósmica e social estabelecida no momento da criação pelo demiurgo, com quem se
identificava o bem, a ordem, a justiça, foi criada no início do Império Antigo com uma
função ideológica estabilizadora, associada à unificação do Alto e do Baixo Egipto.
Devido à importância que assumiu no seu quotidiano, os Egípcios personificaram-na
numa deusa: Maat, «Aquela que guia». Para manter o equilíbrio sempre posto em cau-
sa pelo mal, isefet, os faraós, intermediários entre deuses e homens, assumiram diver-
sas funções religiosas, entre as quais a de mandar construir templos. Por todo o país
foram erigidos enormes templos que, para além de albergarem as divindades, simboli-
zavam o universo representado nos elementos da própria arquitectura, em que cada
uma das partes tinha um significado bem definido, subordinando-se a uma ideia de
carácter simbólico repleta de conceitos cosmológicos: água, luz, estrelas, florestas e,
no lugar mais recôndito e sagrado, no santuário, a escuridão. Aí estava a estátua divina
a quem eram feitas oferendas e rituais diários para persuadirem a essência benéfica da
divindade a permanecer na estátua. Mantidos por colégios de sacerdotes, cada povoa-
ção tinha um ou mais templos, fontes de harmonia universal que, para além de concen-
trarem o poder divino, eram centros económicos, políticos, de saúde ou, até, escolas.
Alguns desses templos, como os de Dendera, Esna, Edfu, Kom Ombo ou Phi-
lae, são considerados exemplos típicos da arquitectura do Antigo Egipto. Contudo,
todos os templos referidos foram construídos já no ocaso da civilização egípcia, quan-
do o trono dos faraós se encontrava irreversivelmente ocupado por estrangeiros: os
Ptolemeus da Macedónia (305-30 a.C.) e os imperadores romanos (30 a.C.-395 d.C.).
Todavia, ao apresentarem-se como herdeiros dos faraós, eles assumiram as suas obri-
gações, construindo e restaurando templos segundo os antigos cânones, pelo que é
possível ver neles a essência de 3000 anos de história. Com pouco mais de 2000 anos,
a maioria destes edifícios encontra-se bastante bem conservada, transmitindo uma
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impressão geral muito próxima da que deviam causar quando foram construídos.
Em 332 a.C., cumprindo a ambição de subjugar os Persas, Alexandre Magno
libertou o Egipto do domínio persa, mas impôs-lhe o das dinastias gregas: a macedóni-
ca (332-305 a.C.) e a ptolemaica (305-30 a.C.). Para facilitar a sua aceitação por parte
dos novos súbditos, recorreu ao oráculo de Siuá que o proclamou «filho de Amon», fez-
se coroar segundo o ritual faraónico e fundou Alexandria, a nova capital onde reinariam
os seus sucessores. Seguindo o mesmo método, os reis gregos retomaram a tradição
e edificaram ou reconstruíram templos majestosos, sendo mais tarde imitados pelos
romanos. Os dominadores estrangeiros privaram os Egípcios da sua autonomia políti-
ca, mas não da sua religião, o que, aliás, proporcionou aos novos senhores uma base
para a sua legitimação. Deste modo os templos mantiveram os seus patrimónios e
sacerdotes, continuando responsáveis por parte da economia do país e organizando
alguns sectores da vida pública através dos seus calendários de festas. Donativos reais
ou privados permitiam a construção de novos santuários e a ampliação dos existentes.
No Alto Egipto, reino do velho deus-falcão Hórus, entre Assuão e Edfu locali-
zou-se a antiga cidade de Nebit ( ), «A cidade de ouro». Designada pelos Gre-
gos por Ombos e hoje conhecida por Kom Ombo, a «Pequena montanha» de Ombo é
um promontório numa curva do Nilo, na maior região agrícola a sul de Edfu, de reco-
nhecida importância no período ptolemaico graças ao desenvolvimento de novas técni-
cas agrícolas. Ao nível da irrigação artificial, por exemplo, foram introduzidos o parafu-
so de Arquimedes e a saquia, uma nora de tracção animal, para trabalharem a par do
chaduf, dispositivo mecânico de elevação de água já utilizado no Egipto desde o Impé-
rio Novo. Ainda hoje os seus campos irrigados incluem a cana-de-açúcar e o trigo. Aqui
estabelecida desde tempos pré-históricos, o seu nome ficou a dever-se ao facto de ter
desempenhado um papel importante nas rotas das caravanas da Núbia e, sobretudo,
nas das minas de ouro que abundam na região. Esta localidade não deve ser confundi-
da com Ombos, situada a norte de Nagada, que em egípcio antigo era Nebet ( ).
Neste local foi fundado no Império Novo, por Tutmés III, um templo do qual não
restam senão alguns traços, sendo mais de mil anos depois, no tempo dos Ptolemeus,
totalmente reconstruído e integrando no seu espaço sagrado outros edifícios. Quase
tudo o que sobreviveu data desse período, o que atesta uma proeminência não obser-
vada anteriormente. No entanto, parte do recinto fronteiro ao pátio desapareceu devido
à força da erosão do rio. A reconstrução foi iniciada no século II a.C., por Ptolemeu VI
Filometor (180-164; 163-145 a.C.), sendo na sua maior parte terminada no século
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seguinte por Ptolemeu XII Neos Dionisos I (Auleta) (80-58; 55-51 a.C.). No princípio do
período romano, cerca de 30 a.C., o imperador Octávio César Augusto (30 a.C.-14
d.C.) acrescentou o pilone da entrada. Mais tarde, o pátio foi decorado e o corredor
exterior acrescentado.
Templo de Sobek e Haroéris, em Kom Ombo.
Na presença inquestionável deste templo egípcio e independentemente das
motivações políticas e económicas, é bom que se sublinhe o quanto a cultura egípcia
se impôs às civilizações clássicas. Pelo menos na sua própria terra! É que quando este
templo foi restaurado pelos Ptolemeus, já o século de Péricles tinha passado, levando
consigo o génio de Fídias e arquitectos como Ictinos e Calícrates, que conceberam o
Pártenon (448-437 a. C.), Menésicles que planificou os Propileus (437-425 a.C.), ou
Filoctetes, o provável arquitecto do magnífico Erécteion (421-405 a. C.). Já por cá
tinham passado também, Míron, Policleto, Praxíteles, Escopas e muitos outros. Até já
Lisipo deixara de ser o «escultor oficial» de Alexandre Magno, a quem parece ter regis-
tado as feições no seu Apoxiomeno (c. 320 a. C.).
O imponente templo que se ergue no promontório de Kom Ombo é o que resta
de Pa-Sobek, «A casa de Sobek» ou «O Domínio de Sobek», o deus crocodilo aqui
venerado desde tempos pré-dinásticos, senhor incontestado destas terras noutros tem-
pos e que hoje povoa apenas a memória destas paragens. A zona por detrás dos
muros, a este e sul, ainda foi pouco explorada, havendo aí, certamente, vestígios da
antiga cidade. Pelo contrário, a parte virada para oeste e norte foi erodida pelo rio que
arrastou tudo quanto aí haveria.
Ao contrário do templo tradicional egípcio, dedicado a uma só divindade, o
templo de Kom Ombo apresenta-se como um caso invulgar, único no Egipto, pois é
dedicado a dois deuses de igual estatuto: Sobek, o deus crocodilo, deus da fertilidade e
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criador do mundo, e Haroéris, o deus-falcão, deus solar e guerreiro, cujo disco alado
protector contra todos os males é visível sobre as portas de entrada. Haroéris, cujo
nome significa «Hórus o Grande», «Hórus o Antigo» ou «Hórus o Primogénito», era
representado sob a forma mista de um homem com cabeça de falcão e tinha como
principal lugar de culto exactamente Kom Ombo. Associado à cosmogonia heliopolitana
por alguns mitos, era considerado um dos cinco filhos do casal Geb e Nut, irmão dos
casais Osíris e Ísis, Set e Néftis. «Hórus o Antigo» era o deus-rei cujo exercício da rea-
leza era cobiçado por Set, com quem acabou por entrar em conflito. Do duelo que tra-
varam resultou a perda de um olho por parte de «Hórus o Antigo» e dos testículos por
parte de Set. Mais tarde Set acabou por conseguir matar «Hórus o Antigo» que, por
esse motivo, se converteu em Osíris. Filho póstumo de Osíris e Ísis, nasceu então um
novo Hórus que enfrentou novamente Set, para pôr fim à mutilação recíproca e recupe-
rar para si o poder enquanto rei vivo e para Osíris como rei dos mortos.
Por seu lado, Sobek era o «senhor das águas», o deus criador sob o nome de
Sobek-Ré. A partilha do templo com Haroéris é acompanhada por textos que o inte-
gram no sistema cosmogónico de Heliópolis, figurando Ré como Sobek e Chu como
Haroéris. Deste modo a sua personalidade é enriquecida com características solares,
tornando-se Sobek-Ré, um deus universal e criador. Como crocodilo era o demiurgo
solar que saía das águas do Nilo, tal como o Sol saiu do oceano primordial na manhã
da «primeira vez». Daí que se o Sol era o «Senhor de maat» por excelência, por causa
deste sincretismo Sobek acabou por ter o epíteto de «Príncipe de maat». Representado
por um crocodilo, ou por um homem com cabeça de crocodilo, tinha como principais
lugares de culto Medinet el-Faium, a que os Gregos chamaram de Crocodilópolis, e
Kom Ombo. Assumindo desde o início qualidades de deus da fertilidade, os crentes
acreditavam que a cheia anual seria tanto maior quantos mais crocodilos (o seu ba ter-
restre) povoassem as margens do Nilo, tornando mais abundantes as colheitas. Como
senhor das águas, tutelava rios, lagos, pântanos e canais. Em Sais era considerado
filho de Neit e o seu nome significava «Aquele que faz brotar a vegetação das mar-
gens» ou «Aquele que provoca a fertilidade». Esta ligação aos cultos de fertilidade
associavam-no também à morte e aos enterramentos, aproximando-o de Osíris. Por
outro lado, a sua acção como patrono da realeza assimilava-o a Hórus fazendo dele o
deus de vários faraós, como foi o caso dos quatro faraós da XIII dinastia, os Sobekho-
tep, «Sobek está satisfeito», do faraó da XVII dinastia Sobekemsaf, «Sobek é a sua
protecção» ou, assumindo forma feminina, da derradeira rainha da XII dinastia, Sobek-
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neferu Sobekkare, «A beleza de Sobek» ou «A perfeição de Sobek» no nome de
coroação, ou prenome, e «Sobek é o ka de Ré» no nome de nascimento.
Para lá da manutenção arquitectónica e decorativa desta dualidade, os câno-
nes construtivo e decorativo foram rigorosamente seguidos. Por exemplo, à medida
que caminhamos para os santuários, actualmente a parte mais destruída do templo, a
altura dos tectos diminui consideravelmente e o chão eleva-se ligeiramente para impe-
dir que a luz alcançasse aquela zona do edifício. De igual modo é visível a sua gran-
diosidade, a horizontalidade das suas linhas e a perfeição das suas formas simples e
geométricas, onde o assentamento das arquitraves mantém o sistema construtivo trilíti-
co, que conta com florestas de imponentes colunas nas suas salas hipóstilas.
Lado norte do Templo de Sobek e Haroéris.
Por tudo isto, o templo é apelidado simultaneamente de «Casa do Crocodilo»,
a parte direita, e de «Castelo do Falcão», a parte esquerda. Orientando-se de este para
oeste (as direcções cardiais locais tinham pequenas variações em relação ao seu real
posicionamento porque eram determinadas segundo o Nilo, que corre de sul para nor-
te, sem terem em conta as curvas do seu leito; isto permitia que qualquer implantação
de um templo pudesse ser feita num ângulo de 90º em relação à margem do rio, fican-
do «correctamente» orientado) apresenta um plano singular: é um templo duplo que
resultou da justaposição de dois templos, construídos segundo dois eixos paralelos
imaginários, que partem de cada uma das portas de entrada e atravessam todo o tem-
plo até aos dois santuários. Numa simetria quase absoluta, o altar do pátio, a parte
central dos pórticos de entrada e a fila central de colunas das duas salas hipóstilas,
marcam a divisão ideal entre os dois templos. O lado esquerdo, a norte, é dedicado a
Haroéris e o lado direito, a sul, a Sobek. Em rigor, o templo é consagrado a duas tría-
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des de divindades: Sobek, Hathor e Khonsu, e Haroéris, Tasenetneferet («A Bela
Irmã»), uma manifestação inferior da deusa Hathor, e Panebtaui («O Senhor das Duas
Terras»). As duas últimas divindades têm nomes artificiais, exprimindo o primeiro a
função de companheira, de esposa divina, que a deusa assumia na tríade, sendo con-
siderada uma divindade protectora da realeza, e o segundo a majestade do jovem deus
e a sua relação com o faraó, legítimo senhor das Duas Terras (o Egipto). Na segunda
tríade, Khonsu, divindade lunar de Karnak, filho de Amon e Mut, denominado «O Erran-
te» ou o «O Navegante» devido ao movimento da Lua na abóbada celeste, passa por
filho de Hathor, a deusa do amor, do prazer erótico e sexual, da alegria, da dança e da
música. Embora sejam dois deuses de estatuto idêntico, a tríade de Sobek assume
maior importância ao ocupar a parte sul do templo, principal ponto cardeal no sistema
de orientação egípcio. No entanto, não havia qualquer delimitação dos dois espaços na
decoração; muitos rituais relacionados com Sobek ou Haroéris decorriam na metade
pertencente ao outro deus, evitando-se, deste modo, uma separação rígida.
Planta do Templo de Sobek e Haroéris.
Tanto quanto os vestígios existentes deixam supor, naquele tempo tinha-se
acesso ao recinto através de um grande pilone situado a sul, do qual só resta o lado
direito onde, entre outras figuras e 52 linhas de hieróglifos, podemos ver o imperador
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Domiciano em veneração à tríade Sobek, Hathor e Khonsu. Também aqueles que se
deslocaram em anos recentes de visita ao templo, pelo menos até 2001, percorriam o
caminho empedrado, paralelo e rebaixado em relação a toda a parte oeste do templo,
subiam alguns degraus e entravam por aí. Hoje acede-se ao santuário através de uma
escadaria moderna frontal ao edifício, depois de ocupar o respectivo lugar na longa fila
da bilheteira. Uma vez no interior do recinto avançamos, deixamos à esquerda o
mammisi e, depois de passarmos o pilone do templo, do qual resta muito pouco,
entramos num pátio onde é visível o que sobrou das dezasseis colunas pintadas da
colunata que o circundava a norte, este e sul. Só restam as bases e os tambores infe-
riores das colunas, mas ainda é possível ver uma parte significativa de baixos-relevos
do imperador Tibério, cujo nome figura nas cartelas que acompanham as imagens,
fazendo oferendas aos deuses. No centro do pátio vêem-se as ruínas do altar onde
eram colocadas as barcas sagradas durante as procissões. Para receber as libações
com que se reverenciavam os dois deuses, apresenta embutidas no pavimento, de
cada lado, pequenas bacias.
A entrada dupla do Templo de Sobek e Haroéris.
Todas as portas estão protegidas contra os males pela referida representação
da união do deus celeste Hórus com o deus-Sol Ré: o disco solar alado de Haroéris
onde se evidencia um duplo uraeus. A frente do templo é um invulgar portal duplo,
vendo-se de cada lado das duas entradas, uma para o templo de Haroéris e outra para
o de Sobek, a imagem de Ptolemeu XII Neos Dionisos I purificado por Hórus, Tot e
Haroéris, à esquerda, e por Hórus, Tot e Sobek, à direita. Sobre este portal, na primeira
das duas linhas de hieróglifos, do lado direito, distingue-se claramente uma cartela com
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o nome deste faraó: ptulemis ankh-djet meri-ptah-eset, «Ptolemeu, que viva eterna-
mente o amado de Ptah e Ísis». Aliás, como seria de esperar, cartelas com os nomes
de Ptolemeu ou de Cleópatra é o que mais se vê neste templo.
Entra-se na sala hipóstila exterior, a mais imponente, através de um pórtico
duplo. É a primeira sala hipóstila para quem entra no templo, mas como os templos
eram construídos do interior para o exterior é a última em relação à sua construção.
Tem quinze colunas fasciculadas de capitéis lotiformes, papiriformes e palmiformes,
dispostas em filas de cinco, sendo a primeira fila embutida na parede que separa a sala
do pátio, uma característica comum aos outros templos egípcios do período greco-
romano. Todos os fustes apresentam sob os capitéis uma banda de «símbolos da
vida» (ankh) e, tal como nas paredes da sala, baixos-relevos de faraós fazendo oferen-
das a divindades. Destacam-se, ainda, relevos com cenas de coroação do faraó que,
em cada lado da sala, está acompanhado da correspondente divindade. Todos os
faraós são Ptolemeus e incluem Cleópatra VI. Nesta sala, uma figura de Haroéris apre-
senta um buraco no lugar do olho, o que faz crer que deverá ter sido aplicada uma
incrustação, técnica antiga de adorno de relevos, que lhes conferia mais vivacidade e
dava opulência especial à divindade.
Acede-se à sala hipóstila interior, a segunda sala hipóstila para quem entra, por
uma passagem dupla semelhante à anterior. É mais pequena do que a primeira, tendo
apenas duas filas de cinco colunas cada, mais pequenas e colocadas de modo a que
as duas colunas centrais se afastem um pouco mais das restantes de ambos os lados,
dividindo o espaço exactamente ao meio e dando a ideia de que as portas dão passa-
gem para lugares diferenciados. Tanto a arquitectura como a decoração são idênticas à
sala precedente, apresentando o mesmo tipo de cenas e motivos ornamentais. Mudam,
no entanto, as personagens representadas, uma vez que aqui surgem Ptolemeu VIII
Evérgeta II (170-163; 145-116 a.C.) e sua esposa Cleópatra II, e Ptolemeu XII Neos
Dionisos I, ausentes na sala anterior.
A esta sala, em vez de duas, seguem-se três antecâmaras transversais, as
duas últimas exactamente iguais em tamanho e a primeira ligeiramente maior. Manda-
das construir por Ptolemeu VI Filometor, perpetuam a sua imagem nos baixos-relevos
que as ornamentam, na companhia de relevos de outros Ptolemeus. A primeira é a
«sala da fundação», onde aparece o faraó a assentar a primeira pedra do templo, ten-
do a seu lado Sechat, «A secretária», «A bibliotecária celeste» ou «A senhora da casa
dos arquitectos», esposa de Tot e, por isso, seu duplo, sendo deusa da escrita, da
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aritmética, da arquitectura, da medição do tempo e dos escribas, fundamental nas
cerimónias de fundação. Na realidade, desde épocas remotas que a construção de
qualquer templo no Egipto não se iniciava sem se proceder a uma cerimónia de funda-
ção, que os textos e a iconografia permitem desdobrar em dez ritos diferentes mas
complementares. Em teoria os ritos eram conduzidos pelo próprio faraó assistido por
várias divindades, e incluíam a determinação do local de construção, a sua purificação,
a criação de um depósito ritual de fundação (um poço) onde eram colocados diversos
objectos, até à purificação do templo após a sua construção e sua apresentação aos
deuses. O primeiro rito, que se designava por pedj-ches, «o esticar da corda», servia
para traçar e fixar o local onde o templo seria construído: o faraó colocava-se diante da
deusa Sechat, ambos segurando uma estaca à sua frente, à volta das quais se enrola-
va uma corda em forma de cartela. O rito envolvia a cuidadosa orientação do templo
através de observações astronómicas e medições, e consequente demarcação do
local. Depois de determinado o local exacto da sua implantação através da consulta do
movimento do Sol e/ou Sírio, e dos pontos cardeais numa orientação este-oeste, des-
prezando as curvas do Nilo conforme já salientámos, eram colocadas quatro estacas a
marcar os quatro vértices do templo, delimitado por uma corda que se prendia à volta
das varas. Particularmente importante, este rito acabou por designar toda a cerimónia.
Num relevo desta sala, por exemplo, Ptolemeu VIII Evérgeta II desempenha diante de
Haroéris e Tasenetneferet o que pode ser um dos ritos da parte final da cerimónia de
fundação: a purificação do templo com natrão, após a conclusão da sua edificação.
Calendário de festas de Kom Ombo (segundo vestíbulo transversal).
Os baixos-relevos da segunda antecâmara e os textos que os acompanham
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indiciam-na como «sala de oferendas». Nesta sala conservou-se um interessante
calendário das festas que aqui ocorriam anualmente em datas fixas. Na figura, na colu-
na em que o guia aponta, podemos ver os dias do mês em que tinham lugar, corres-
pondendo os arcos às dezenas, os traços às unidades e os hieróglifos de forma circular
à palavra «dia». No exemplo apontado, que se lê da direita para a esquerda, temos dia
onze: um círculo seguido de um arco e de um traço. Na coluna imediatamente à direita,
ao nível de cada dia, encontram-se os nomes das festas correspondentes. Intercalados
nas colunas dos dias aparecem as indicações dos meses. Por exemplo, na primeira
coluna à direita, na décima linha legível a contar de cima para baixo, igualmente lida da
direita para a esquerda, encontramos que se lê abed 3 akhet e significa «tercei-
ro mês de akhet», a época da cheia que se dividia em quatro meses, tal como as
outras duas estações do ano: peret – a descida das águas, altura das sementeiras; e
chemu – a seca, aproveitada para a ceifa. Noutras colunas há outras informações
sobre as celebrações, podendo em calendários deste género haver mesmo indicações
sobre o tipo e as quantidades das oferendas, o que não é aqui o caso.
Concessão dos anos de reinado por Khonsu a Ptolemeu VI Filometor (terceiro vestíbulo transversal).
Na terceira, que dá acesso aos santuários de Haroéris e Sobek, repetem-se
imagens vistas noutros compartimentos com outros reis. Numa delas, Ptolemeu VI
Filometor com um comprido manto cerimonial e sandálias de festa, acompanhado da
esposa Cleópatra II, assiste à concessão dos seus anos de reinado que Khonsu, a
divindade lunar representada como um deus com cabeça de falcão sobre a qual está
representado o disco solar sobre um crescente lunar, grava na nervura central de uma
folha de palmeira, tutelado por Haroéris e Sobek. No cimo dessa planta-ceptro encon-
tra-se o hieróglifo tjenetjat usado para designar a festa de regeneração do poder real, a
«festa-sed» ou heb-sed, e na base o hieróglifo com forma de girino, o hefen, que repre-
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senta o número 100.000, simbolizando grande quantidade. Deste vestíbulo partem
umas escadas que conduzem à cobertura do piso térreo, onde se celebrada a cerimó-
nia de «união» com o disco solar que, diariamente, regenerava as estátuas dos deu-
ses.
Ao contrário do resto do templo onde os espaços dedicados a Haroéris e
Sobek se fundiam, os santuários gémeos são totalmente independentes um do outro,
tendo uma parede a dividi-los. Em cada um é ainda possível ver os pedestais onde
eram colocadas as barcas sagradas dos deuses e pouco mais. Fragmentos da decora-
ção, que aparenta ter sido excelente, mostram-nos Haroéris, que dominava os céus,
com restos de cor azul, e Sobek, senhor do mundo aquático, com a pele verde. Sobre a
entrada do santuário de Haroéris é possível ver-se uma longa dedicatória que mencio-
na o nome de uma Cleópatra. Por baixo dos santuários existe um quarto secreto, cer-
tamente para os sacerdotes, dissimuladamente, ouvirem as petições dos crentes e pro-
ferir oráculos em nome das divindades. Este subterrâneo não é caso único, pois em
grande parte do interior do templo existem passagens secretas e várias criptas.
Neste templo há ainda outros elementos duais. É circundado por dois muros de
pedra que, com a parede exterior das salas mais recatadas do templo, formam dois
corredores envolventes. Um deambulatório interior sai da sala hipóstila exterior, circun-
da toda a parte interna do templo e apresenta na parede do fundo sete pequenas
câmaras. De seis destas minúsculas salas desconhece-se a utilidade, mas na do meio
existe uma escada ascendente que permite o acesso a um terraço de onde é possível
ver todo o templo. Certamente também seria lugar de ritos ou de observações astro-
nómicas. Este corredor é circundado por outro cujo muro exterior envolve o próprio
pátio. Alguns dos relevos do corredor interior e destas salas estão inacabados, forne-
cendo valiosas informações sobre os métodos e as técnicas de trabalho dos artífices
deste período.
Na parede externa do corredor exterior, ao fundo, surge a representação de
uma série de instrumentos que se têm assumido como sendo instrumentos de cirurgia
egípcios do período greco-romano. Mesmo que alguns tenham sido usados na prática
do culto, instrumentos como escápulas, escalpelos, tesouras ou fórceps, parecem que-
rer confirmar, sobretudo, o nível atingido pelos Egípcios no domínio da medicina, em
particular da cirurgia. Tanto mais que um dos epítetos de Haroéris era «Aquele que
cura», sabendo-se que os peregrinos procuravam a sua ajuda para tratarem das
enfermidades. Depositados em museus, sobreviveram diversos exemplares de instru-
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mentos cirúrgicos de cobre ou bronze, alguns evidenciando pequenas gravuras mági-
cas ou divindades protectoras. Não havendo qualquer registo iconográfico inequívoco
de instrumentos cirúrgicos atribuídos ao período faraónico, este documento é único no
Egipto antigo. Há, no entanto, que fazer uma leitura destas representações, já que as
opiniões se têm dividido não só sobre se são ou não instrumentos cirúrgicos, mas indo
mais longe e surgindo mesmo uma corrente de opinião que defende que elas reprodu-
zem instrumentos cirúrgicos romanos e não egípcios.
Embora haja um enquadramento e um trabalho tipicamente egípcios, com os
instrumentos lado a lado sobre uma mesa de oferendas, representados através de
características bandas sobrepostas, registe-se que não há qualquer referência a eles
nos textos circundantes. Aí figuram apenas algumas receitas com os respectivos ingre-
dientes e doses requeridas. E de facto, a maioria dos instrumentos podem ser inequi-
vocamente identificados com instrumentos cirúrgicos romanos encontrados em diver-
sos locais arqueológicos romanos ou representados em túmulos romanos. Expostos
numa área do templo edificada pelos romanos na segunda metade do século II (Anto-
nino Pio, 138-161), incluem uma balança, que na medicina ptolemaica poderia permitir
estabelecer dosagens rigorosas ignoradas em épocas mais recuadas, mas é exacta-
mente a pedra de toque que faz pender o fiel para o lado dos Romanos: os Egípcios
manipulavam as suas drogas segundo o volume e não segundo o peso.
Única representação de instrumentos cirúrgicos no Egipto (deambulatório exterior).
De acordo com a data da parede, é possível identificar com grande grau de
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probabilidade como instrumentos cirúrgicos romanos de então: A1 – escápula pene-
trante bifurcada; A8 – serra para osso; B2 – frasco para clister; B3 e 4 – escápulas; B5,
6 e 7 – sondas; B8 – crânioclasto; C1 e 2 – fórceps para extrair dentes ou fragmentos
de osso; C3, 4 e 7 – frascos para clisteres; C8 – balança; D1 e 2 – ventosas; D3 – Cai-
xa para instrumentos cirúrgicos; D4 – tesoura grande; D5 e 6 – ligaduras ou caixas de
ligaduras; D7 – esponja; D8 e 9 – sondas duplas; D10 e 11 – escalpelos. Com identifi-
cação menos segura: A2 – fórceps para dentes ou para ossos, ou fórceps de mola; A3
– serra ou faca para osso; A4 – sonda; A5 – sonda bifurcada; A6 – cateter; A7 e 9 –
cautérios; A10 e 11 – espéculos trivalves; A12 e 13 – cateteres uretrais para homens
adultos; B9 – fórceps para dentes, para ossos ou para a úvula; B12 – faca; B13 e 14 –
bacias ou almofarizes. A parte deteriorada do relevo não permite uma identificação,
ainda que hipotética, de C9, nem do que estaria à sua direita. Há ainda: B1 – pipeta
para aspirar líquidos; B10 – lancenta (?); B11 – paleta.
D10 e D11 são particularmente característicos entre os diversos escalpelos
romanos, combinando uma pequena lâmina numa ponta com outra na extremidade
oposta em forma de folha dissecadora. Também D3 parece ser uma típica caixa tubular
que os Romanos faziam de uma liga de cobre para guardar instrumentos cirúrgicos ou
medicamentos. Contudo, ao lado da balança, encontra-se em duplicado, C5 e C6, um
dos mais poderosos amuletos da antiguidade egípcia, que protegia não só contra as
doenças, mas também contra a «má sorte» e o «mau-olhado»: o olho de Hórus, o
udjat. É que, independentemente de serem instrumentos cirúrgicos egípcios ou roma-
nos, o tratamento médico e as técnicas cirúrgicas utilizadas no Egipto antigo não se
podiam dissociar da magia e da religião. O aparente rigor científico da medicina egípcia
era acompanhado pelos respectivos esconjuros mágicos ou solicitações à intervenção
divina. Apesar da utilização de muitas plantas medicinais e de intervenções cirúrgicas
onde a par de eventuais cirurgias ósseas e dentárias, provavelmente recorrendo mes-
mo a amputações e à utilização de próteses (devido à escassez de exemplos iconográ-
ficos ou descritivos, há quem defenda que os Egípcios não realizavam amputações
cirúrgicas, recorrendo a próteses apenas em situações de amputações acidentais ou
mesmo só de reconstituição do corpo mumificado para enfrentar a sua viagem na
Duat), incluíam, por exemplo, trepanações e davam valor terapêutico à magia e à reli-
gião. Embora numa altura em que a clarividência divina suplantava totalmente os
humanos, antes do triunfo do racionalismo, os próprios Gregos tiveram essa percep-
ção!
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Quando na Odisseia (IV, 231) é referido que «lá [no Egipto] cada homem é
médico, seus conhecimentos superam os dos outros homens, porque são todos da
raça de Peéon», mesmo no contexto do «mundo» do século VIII a. C. a tónica da frase
é no sentido de que cada um que é médico é-o porque tem potencialidades para o ser,
e a chave da questão é que eles são-no «porque são todos da raça de Peéon», deus
curandeiro independente grego, também designado por Péon ou Péan, que curava os
enfermos com plantas medicinais, como fez com Hades quando ele se feriu. Na época
clássica esta divindade viria a ser assimilada a Apolo, tornando-se o seu epíteto ritual,
acabando por ser suplantada por Asclépio. E quando Heródoto no século V a. C. diz:
«A medicina está repartida desta maneira no Egipto: cada médico trata apenas de uma
doença. Tudo está cheio de médicos; uns são médicos dos olhos, outros da cabeça,
dos dentes, da região abdominal, das doenças de localização incerta» (II, 84), trata-se
de outra afirmação que não retrata inteiramente ao que então se passava. Na realida-
de, os médicos estavam organizados em três categorias: os que praticavam uma tera-
pêutica medicamentosa aliando o conhecimento dos livros ao empirismo da sua activi-
dade (sunu); os sacerdotes puros (uebu) de Sekhmet, que em nome da deusa-leoa,
que por um lado era destruidora e mortífera, e por outro senhora da doença e da cura,
sendo considerada deusa da medicina e patrona dos médicos e dos veterinários, prati-
cavam uma medicina de carácter religioso mais do tipo psicológico; e os curandeiros ou
mágicos (sau) que curavam os doentes através da magia.
Normalmente os sunu eram nobres, exercendo o ofício hereditariamente e
estando organizados hierarquicamente. Além de passarem os conhecimentos aos des-
cendentes, complementavam-nos nas Casas da Vida, instituições de aprendizagem
para escribas particularmente dotados, onde entre outras matérias aprendiam medici-
na, matemática e geometria através de papiros antigos. Sais, Bubastis, Heliópolis e
Abidos eram as cidades onde existiam as Casas da Vida mais conceituadas. O facto de
grande parte dos médicos serem sacerdotes, ostentando os títulos nos seus túmulos,
nunca isolados e com diversas associações entre si, bem como o facto de muitos
nobres incluírem entre os seus títulos o de uma especialidade médica, provocaram a
observação de Heródoto: médico dos olhos, médico dentista, médico do estômago,
médico dos intestinos, médico do ânus…Em todo o caso, a ideia de que pelo facto de
praticarem a mumificação tinham bons conhecimentos de anatomia e fisiologia, não é
de todo correcta, pois esses conhecimentos não eram tão profundos quanto antes se
pensava. Podem ter tido amplos conhecimentos médicos para a sua época e para as
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doenças com que tinham que lidar (bilharzíase, antracose, tracoma e outras doenças
dos olhos, acondroplastia, arteriosclerose, artrite, poliomielite, varíola, cárie, tumores
diversos…), como atestam alguns textos médicos e respectivos receituários, mas pela
escassez dos seus conhecimentos de anatomia e fisiologia e pela simplicidade dos ins-
trumentos que tinham à sua disposição, a cirurgia parece não ter passado o nível do
elementar.
De qualquer modo, antes da invasão persa em 525 a. C., antes, portanto, da
XXVII dinastia aqueménida iniciada por Cambises I, não há muitos exemplos da forma
e do conteúdo da medicina egípcia. Foi também nesta altura que Heródoto visitou o
Egipto. Mais precisamente cerca de 450 a. C., quando nesta matéria se observava já
uma complexa interacção entre Egípcios, Persas e Gregos, que já então tinham concei-
tuadas escolas de medicina (Crotona, Cirene e Cnido), entre as quais floresceu, em
Cós, a escola médica do grande médico Hipócrates, cerca de 430 até 330 a. C. Antes
ainda, tinham-se intensificado os contactos culturais, pois tinham sido autorizados a
estabelecerem-se na cidade de Naucratis, no Delta (5º nomo), durante a XXVI dinastia
(664-525 a. C.), período que coincide com o nascimento da ciência médica grega e da
filosofia natural, mercenários e comerciantes gregos.
Se no Império Novo Ramsés II mandara um médico egípcio tratar de um rei
hitita (para consolidar a sua aliança com os Hititas Ramsés II casou com duas prince-
sas hititas, filhas de Hattusili III), nem sempre os médicos egípcios tinham sucesso e
em épocas posteriores terão sido mesmo suplantados pela medicina de outras culturas,
como se percebe pela história que Heródoto conta acerca de Dário I (III, 129-132). Em
certa altura, este rei aqueménida que governou o Egipto entre 521 e 486 a. C., ao sal-
tar do cavalo durante uma caçada nas redondezas de Susa, terá feito uma luxação
num pé e os seus médicos egípcios, «considerados os melhores no âmbito da medici-
na», falharam ao tentar aliviar-lhe a dor e curá-lo, agravando a lesão de tanto torcer e
forçar o pé. Ao oitavo dia de sofrimento recorreu então a um médico cativo grego,
Demócedes de Crotona, que não só o terá curado, «usando remédios gregos e apli-
cando tratamentos suaves depois das vigorosas terapêuticas já infligidas», como o dis-
suadiu de empalar os seus médicos egípcios. Provavelmente este é mais um elemento
para perceber que agarrada às suas tradições milenares, a cultura faraónica permane-
ceu irredutível, e quando a pressão de tradições e culturas externas ao Egipto se tor-
nou insuportável, o Egipto faraónico simplesmente acabou, permitindo que se cons-
truísse em seu lugar um presente totalmente diferenciado do seu passado.
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Fazem ainda parte do santuário, que é rodeado por um muro de tijolo que no
lado este, no sentido sul/norte, se vai aproximando do muro exterior do templo, e do
qual se perdeu toda a parte oeste e partes a norte e sul, uma capela do nascimento,
uma capela de Hathor e um nilómetro em bom estado de conservação. A primeira,
excessivamente encostada à esquina do lado esquerdo do pilone do templo, dando a
entender que na altura da sua construção o espaço já não seria muito, foi edificada por
Ptolemeu VIII Evérgeta II e em grande parte engolida pelo Nilo. Era um pequeno tem-
plo consagrado à festa do nascimento de um deus-filho que incorporava os traços do
faraó, conferindo um carácter divino à pessoa do rei, neste caso, ao nascimento de
Panebtaui. A capela do nascimento, ou mammisi, nome atribuído por Champollion a
partir do copta ao que os egípcios chamavam de meskhenet ( ), é também uma
construção típica do período greco-romano. Só então estas capelas foram integradas
junto aos pilones dos templos, para que a deusa venerada no templo, no caso vertente
Tasenetneferet, desse à luz. Este nascimento era aí celebrado todos os anos, refor-
çando o carácter divino do faraó.
Múmia de um crocodilo sagrado (capela de Hathor).
A capela de Hathor situa-se à direita do templo, na parte sul do pátio, junto à
entrada do recinto. Está razoavelmente conservada, tendo o seu perímetro completo
mas a decoração externa inacabada: os relevos existentes pouco mais nos permitem
saber para além de que foi dedicada à deusa. Domiciano mandou-a construir com a
dádiva de uma matrona romana, sendo hoje utilizada para armazenar múmias de cro-
codilos sagrados provenientes das escavações de uma necrópole vizinha.
Os poços a norte do templo parecem ser um nilómetro, que está muito bem
conservado e é bastante complexo. Devido à localização do recinto num planalto é bas-
tante profundo, sendo constituído por dois poços de alvenaria, lado a lado, independen-
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tes pelo menos acima da linha de água; um tem vários metros de diâmetro e uma
pequena escadaria que desce até um varandim, na altura, provavelmente, um simples
patamar, e o outro tem menos de dois metros de diâmetro. Deveriam ter várias fun-
ções: medir a altura das águas do Nilo, uma vez que em Kom Ombo se celebrava
anualmente a inundação, para além da riqueza do templo depender da produção das
terras que possuía, e ser necessário o controlo do nível das águas para prever as
colheitas e calcular os recursos disponíveis; ter água pura dentro da zona sagrada, dis-
tinta da água poluída do mundo exterior, cujo sistema de pensamento religioso podia
compreender como originária das águas primordiais; e ser a residência de Sobek vivo,
isto é, de um crocodilo sagrado. Em todo o caso, não há vestígios de qualquer escala
graduada e as escadas, cuja contagem dos degraus podia ajudar a determinar a altura
da água, parecem estar bem aquém de qualquer nível máximo que as cheias pudes-
sem atingir, parecendo mais darem acesso a um ponto de observação. Registemos
que este é apenas um dos vários tipos de nilómetros existentes! Se a forma que aqui
sobreviveu é o poço, a forma mais usual era a de uma galeria com uma série de
degraus que desciam até ao Nilo, como a de Elefantina. Já os de Tânis e de Medinet
Habu (Ramesseum) conjugam um poço com uma galeria que desce em direcção àque-
le. Mas em Dendera, era o próprio lago sagrado do templo que tinha essas funções,
sendo o nível das águas medido através dos degraus das escadas existentes nos seus
cantos.
Grande bloco calcário existente entre o templo e o nilómetro.
No grande espaço do recinto onde se encontra o nilómetro, encostados aos
restos do muro externo do deambulatório exterior, junto das colunas da parte norte do
pátio do templo, encontram-se colocados no chão, fora de qualquer outro contexto que
não seja pertencerem a este santuário, dois enormes paralelepípedos rectangulares da
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mesma pedra calcária de todas as construções envolventes. Os interessantes relevos
que apresentam são praticamente iguais; a principal diferença é as cartelas do relevo
do bloco da esquerda estarem em branco. Haroéris e Sobek, com o disco solar e a
serpente uraeus sobre a cabeça, com um ankh nas mãos, sentados de frente um para
o outro sobre o determinativo de rios, lagos, canais, asseguram protecção, prosperida-
de e longa vida diante das cartelas de Ptolemeu III Evérgeta I (no bloco da direita),
assentes em dois signos de ouro (numa leitura economicista significa prosperidade e
numa leitura religiosa a «carne dos deuses», substância divina e imperecível, metáfora
de vida eterna). Segurando o ceptro uas (autoridade e voz de comando) e o anel mági-
co chen (a sua forma sem princípio nem fim evoca o conceito de eternidade e o seu
aspecto solar evoca Ré dando, portanto, protecção), dois Ré-Horakhti, o «Hórus dos
dois horizontes» que sendo quem controlava o Egipto tinha grandes laços com a reale-
za, cada um sobre um signo de ouro, potenciam essa protecção, prosperidade e eter-
nidade. O ceptro nekhakha que aparece emergindo sob as suas asas, como é frequen-
te em divindades zoomórficas aladas, acrescenta a justiça, uma vez que a sua forma
semelhante a um mangual (invocação agrícola), a um flabelo (invocando poder) ou a
um flagelo (invocando a execução de castigos), tem sido interpretada como símbolo do
poder judicial.
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