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Humboldt e Heidegger sobre linguagem: expressão do espírito ou
morada do ser?
Humboldt and Heidegger on language: Expression of the spirit or house of Being?
Maurício Fernando Pitta1
Resumo: A partir de considerações feitas na conferência Um caminho para a linguagem (1959),
por Martin Heidegger, sobre a concepção de Wilhelm von Humboldt sobre linguagem, expressa
em On language: the diversity of human language-structure and its influence on the mental
development of mankind (1836), propõe-se no presente estudo explicitar com mais detalhes
pressupostos do entendimento humboldtiano sobre o tema a fim de clarificar as bases da crítica
heideggeriana, também aqui exposta, e tornar mais evidente, por contraste, seu próprio
posicionamento. A linguagem, para Humboldt, possui papel de expressão, enquanto atividade
constante do espírito (energeia); para Heidegger, por outro lado, assume posto de âmbito de
revelação do ente (aletheia), como “morada do ser” que, originariamente, permitiria ao ser
humano a possibilidade de seu próprio discurso. Aprofundando-se a argumentação de ambos os
teóricos, tem-se em vista explorar a contenda teórica, com o objetivo de apontar para algumas
implicações que os panos de fundo ontológico e epistemológico de Humboldt e Heidegger têm,
cada um a seu modo, sobre a noção de linguagem.
Palavras-chave: Expressão do espírito. Linguagem. Morada do ser. Ontologia. Subjetividade.
Abstract: From considerations made by Martin Heidegger at the conference A way to language
(1959) on Wilhelm von Humboldt’s conception of language, expressed in On language: the
diversity of human language-structure and its influence on the mental development of mankind
(1836), one proposes to explicit in more details in the present study assumptions on the
Humboldtian understanding about the topic in order to clarify the ground of the also here
exposed Heideggerian critique, making by contrast more manifest his own understanding. For
Humboldt, language has the role of expression, as constant activity of the spirit (energeia); for
Heidegger, on the other hand, it assumes step as place of beings revelation (aletheia), as “house
of Being”, originally allowing human beings the possibility of its own discourse. Going deeper
in the argumentation of both theorists, one has in mind to explore the theoretical dispute with
the purpose of pointing to some implications the ontological and epistemological backgrounds
of Humboldt and Heidegger have, each in its own way, on the notion of language.
Keywords: Expression of the spirit. House of Being. Language. Ontology. Subjectivity.
***
Introdução
Wilhelm von Humboldt foi um grande nome da tradição intelectual alemã no
século XIX. Sua influência em campos como antropologia, filosofia e linguística na
1 Graduando no curso de Licenciatura em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina - UEL.
Orientador: Prof. Dr. Eder Soares Santos. E-mail para contato: mauriciopitta@hotmail.com.
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História é difícil de ser medida. Possuindo por influência as filosofias idealistas de Kant
e Fichte (MUELLER-VOLLMER, 2011), a concepção de linguagem de Humboldt,
assim como sua epistemologia, se posiciona de maneira singular no interior da tradição
filosófica, além de possuir papel basilar para a linguística saussureana no século XX
(FARACO, 2007, p. 43). É por essa posição de destaque que Martin Heidegger se serve
do linguista, já em Ser e tempo ([1927] 2012, p. 467), como ponto de partida para suas
reflexões sobre linguagem. Em escritos posteriores, como Um caminho para a
linguagem ([1959] 1982) e Língua de tradição e língua técnica ([1962] 1995), o
filósofo retorna a Humboldt para, mais diretamente, dialogar com seus pressupostos,
com o objetivo de superá-los, em vista da crítica à metafísica. É em textos como esses
que nos concentraremos neste artigo.
Trata-se, aqui, de problematizar a relação entre subjetividade e linguagem a
partir da própria relação semântica que se dá entre a linguagem e o sujeito que a
enuncia. A questão que se põe aqui é a de se a linguagem seria, como para Humboldt,
mero instrumento subjetivo a serviço do indivíduo, passível, portanto, de manipulação e
formalização, ou se não estaria aquele que fala e enuncia, de certa forma, em
correspondência secundária ao todo da linguagem, inserido que está na tradição
linguística que o precede e o envolve como único meio de sentido? Partimos da hipótese
de que, com a distância que Heidegger toma de Humboldt em relação a tal temática,
podemos ver duas soluções distintas à mesma questão. Temos aqui, por objetivo,
apresentar a forma como o pano de fundo ontológico e epistemológico no qual
Humboldt se vê inserido, a saber, a metafísica da subjetividade, influencia na própria
concepção humboldtiana de linguagem; com isso, intenta-se também explorar, de
maneira sucinta, a concepção de linguagem heideggeriana a partir do contraste com a
humboldtiana apresentada.
O percurso argumentativo que pretendemos segue-se por, primeiramente,
apresentar, de maneira breve, os principais pressupostos epistemológicos da concepção
humboldtiana de linguagem, exposta em On language: the diversity of human
language-structure and its influence on the mental development of mankind ([1836]
1988)2 e Sobre pensamento e linguagem ([1795] 2009,pp. 196-198), a fim de evidenciar
a crítica de Heidegger a tal concepção e, por extensão, à própria linguagem no interior
da metafísica para, enfim, trazer à tona de forma sucinta a maneira como a concepção
2Doravante, tratada por “On language”.
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de linguagem heideggeriana ela mesma se apresenta. Acreditamos, com isso, tornar
mais nítida a distância que Heidegger toma de seu interlocutor teórico em conferências
como Um caminho para a linguagem, ao mesmo tempo em que evidenciamos a
influência dos pressupostos ontológicos e epistemológicos humboldtianos em sua
concepção de linguagem.
Humboldt e a linguagem como energeia
É preciso esclarecer, antes de tudo, que Humboldt considera a linguagem, do
ponto de vista de sua natureza, como uma “regra de procedimento e direção, forma
formans, (Form von Form[...])” (MUELLER-VOLLMER, 2011, trad. nossa), isto é,
forma como a própria forma de procedimento na criação linguística, e não enquanto
“algum tipo de configuração material ou entidade objetiva fixa (Form von Materie)”
(ibid.), ou seja, como estruturação de um conjunto material — palavras, regras
gramaticais etc. —, tal como comumente concebido, por exemplo, pelas doutrinas
racionalistas e empiristas modernas, adeptas do “conceito tradicional objetivista de
signo” (ibid.), em que o signo, objeto convencionado alheio à mente, tem por
significado uma dada representação mental, sendo que a linguagem, sob essa
perspectiva, torna-se a totalidade de regras e signos arbitrários para tão somente
designar tais representações. Humboldt, por outro lado, considera a redução da
linguagem a essa matéria constitutiva como fruto de uma análise científica sempre
posterior e não essencial à natureza da linguagem mesma (1988, p. 49). A forma da
linguagem, conceito característico de sua concepção de linguagem e que define a
linguagem mesma, enquanto forma formans, não se confunde, portanto, com qualquer
tipo de conjunto de palavras desvinculadas de seus referenciais e regras gramaticais
convencionais, e isto implica em que ela não seja mera designação de objetos. Esse
esclarecimento faz-se necessário justamente para afastar quaisquer equívocos na
interpretação da concepção humboldtiana que a identifiquem simplesmente com essa
concepção meramente objetivista de linguagem.
Partindo dessa divergência, é preciso que levantemos o principal alicerce
epistemológico humboldtiano quanto à relação entre pensamento, linguagem e mundo, a
saber, de que pensamento e reflexão coincidem. Devemos considerar aqui “reflexão”
como oposição feita entre o objeto pensado e o sujeito que o pensa no ato reflexivo —
objeto, aqui, como unidade separada (Einheit) quando posicionada como representação
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e sintetizada na atividade do pensamento, destacada de outras unidades do fluxo amorfo
de imagens ou impressões mentais (id., 2009, p. 196). Esse caráter mental do
pensamento, é essencial mencionar, não pode ser desvinculado da linguagem. Deve
ocorrer aí uma “dupla articulação”— do pensamento, mental, enquanto oposição de
sujeito e objeto, e do meio sensorial, isto é, da linguagem, enquanto ordenamento das
partes na articulação sonora das ideias a fim de discernir e assegurar unidades mentais
em palavras, unidades estruturadas (Einheiten), distintas pela conformação sonora
(ibid.) — para que o conceito tenha sua claridade absoluta (MUELLER-VOLLMER,
2011). Com esse vínculo entre pensamento e linguagem, Humboldt se distancia
novamente do dualismo epistemológico rígido, próprio dos racionalistas modernos, que
separa pensamento e linguagem, considerando pensamento, interior, como anterior à
linguagem, conjunto de signos exteriores ao pensamento. Humboldt, portanto,
distanciando-se também do conceito tradicional de signo linguístico: linguagem não
como um conjunto de signos arbitrários aplicados a objetos, mas como articulação
sonora do pensado, em fluxo, que tem sua significação dependente da tanto do som
quanto da ideia, em síntese pelo ato conjunto de pensamento e linguagem que se dá na
articulação ativa do falar (ibid.).
Linguagem, mais do que designação, é expressão ativa do pensamento como um
todo pelo espírito (Geist) em atividade, e a articulação sonora, como resultante da
atividade espiritual, tem influência no processo de significação tanto quanto a ideia ou o
fluxo de ideias pensado (MUELLER-VOLLMER, 2011).Como Humboldt expressa em
On language, a linguagem não se resume a um produto morto (Werk), έργων (ergon),
conjunto de elementos gramaticais e ortográficos, mas é essencialmente ενέργεια
(energeia), atividade (Tätigkeit) constante e momentânea do pensamento de elevar
ideias à articulação sonora, sintetizando conceitos passíveis de comunicação
(HUMBOLDT, 1988, p. 49). A forma formans mencionada anteriormente se relaciona
ao seu conceito de forma da linguagem como concebida a partir dessa noção de
ενέργεια, definida como “o elemento uniforme e constante nesse labor mental de elevar
o som articulado à expressão de pensamento, quando visto em seu mais completo
potencial de compreensão e sistematicamente apresentado” (ibid., p. 50, trad. nossa). O
que há de constante na natureza humana e que serve de parâmetro para a distinção da
linguagem, portanto, seria para Humboldt a forma, no sentido de procedimento, de
articulação sonora de ideias expressas pelo espírito.
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O caráter de έργων da linguagem tradicionalmente acumulada na relação entre o
falante e sua língua, no entanto, não é por Humboldt esquecido. O ato de criação
lingüística está vinculado à constituição de uma visão de mundo (Weltansicht),
equivalente ao posicionamento de um segundo mundo linguístico entre sujeito e objeto
como síntese do ato (ibid., p. 157). Tal visão de mundo só se dá em sua plenitude na
comunicação humana, como visão de mundo partilhada, depois do crivo da correção
intersubjetiva (ibid. pp. 56-57). De início, a linguagem, criação individual,possui algo
de poético, que em seguida, a fim de ser compreendida, se torna progressivamente
prosaica, menos criativa e mais sistemática, assim como mais coletiva. Quanto mais
prosaica, mais forte se torna a linguagem como έργων, e maior parece ser sua
autonomia com relação ao homem (ibid., p. 149).
Ora, há uma tensão: a linguagem, enquanto ενέργεια, surge como uma constante
reconfiguração da έργων partilhada em que o indivíduo já se encontra (ibid., p. 62).
Erige-se a questão, central neste estudo, se a linguagem seria, afinal, autônoma com
relação ao indivíduo ou se o sujeito teria predominância sobre a linguagem, pois ora a
linguagem é “senhora” do homem, ora sua “serva”. Para Humboldt, a linguagem, no
limite, só tem existência real no ato individual e a cada vez único da fala, do discurso
coeso e vivo (verbundener Rede) (ibid., p. 49), sendo assim sempre fundada na
atividade do espírito e, portanto, na “natureza humana” (ibid., pp. 62-63). Sendo assim,
apesar do peso constante da έργων, a linguagem, no seu sentido mais forte, é sempre
ενέργεια, atividade derivada do espírito humano.
Linguagem em Heidegger a lume de sua crítica a Humboldt
Uma célebre afirmação de Humboldt, citada por Heidegger em Um caminho
para a linguagem (1982, p. 118), pode iniciar esta seção já posicionando Humboldt no
interior da tradição filosófica que Heidegger denomina por “metafísica da
subjetividade”:
Se o sentimento despertar verdadeiramente na alma de que a
linguagem não é apenas um meio de troca para compreensão mútua,
mas um mundo verdadeiro que a mente deve inserir, por seu próprio
labor interno, entre si mesma e os objetos, então estamos no caminho
certo para continuamente descobrir mais e depositar mais na
linguagem. (HUMBOLDT, 1988, p. 157, trad. nossa)
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Na citação acima, ao enunciar a linguagem não como mero instrumento
comunicacional, mas como um instrumento de expressão de uma visão de mundo
subjetiva, própria do espírito que a produz, isto é, como uma visão de mundo que se
interpõe na relação do sujeito com seu mundo, ainda podemos observar o
comprometimento humboldtiano com uma subjetividade que se opõe aos objetos, que se
mostra evidente no uso de categorias como “sujeito” e “objeto”. Como logo se nota,
Humboldt se enquadra perfeitamente, apesar da distância tomada com relação aos
racionalistas e empiristas, na tradição da subjetividade moderna. Tal tradição, no
entanto, segundo Heidegger, se insere no escopo da metafísica como um todo, enquanto
história ocidental do esquecimento da diferença entre ser e ente sobre o qual recai a
crítica de Heidegger (2000, p. 199) — em que o ser, determinação semântico-ontológica
dos entes em geral donde se torna possível dizer que algo é, fica pressuposto como a
presença constante do ente (id., 2012, pp. 4-5). O “sujeito” seria apenas a interiorização
do ser como ente. Portanto, a crítica não se refere apenas à noção de linguagem, locus
do ser enquanto condição do ser dos entes,como expressão do sujeito, mas à própria
noção, como um todo, de linguagem como mero ente (id, 1982, p. 119). “Ao invés de
explicar linguagem em termos de uma coisa ou outra, assim escapando dela”, afirma
Heidegger,“o caminho para a linguagem intenta deixar a linguagem ser experienciada
como linguagem.” (ibid., trad. nossa), ou seja, linguagem, para Heidegger, não deve ser
tratada como um algo — como totalidade de sons ou signos — que, pela expressão ou
designação, se vê afastado do ente (coisa, matéria, pensamento etc.) para apontá-lo, em
sua entidade, como um significado (ibid., p. 115). Linguagem é, antes, “morada do ser”
onde “mora o homem” (id., 2008, p. 326), no sentido de que ela, no limite, não pode ser
resumida a um ente do qual o ser humano pode se afastar para reduzi-lo e analisá-lo
justamente por ser meio do qual ele parte e por ser ela condição sine qua non de que se
possa falar de qualquer ente.
Antes de aprofundarmos na de início tão excêntrica afirmação de que linguagem
é a “casa do ser”, devemos continuar no esclarecimento da crítica de Heidegger à
concepção humboldtiana de linguagem, compreendendo o sentido da constatação do
filósofo de que o conceito de linguagem de Humboldt deriva da concepção de
linguagem como um ente entre outros.
Ora, nota-se que Humboldt, por sua vez, como exposto anteriormente, não
concebe a linguagem como mera entidade objetiva unicamente designativa, mas como
procedimento subjetivo de expressão e articulação de um fluxo de pensamento, o que
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não o escusa de utilizar a formulação que, para Heidegger, define um instrumento ou
apetrecho (Zeug), isto é, um tipo específico de ente, para pensar a linguagem. As
categorias metafísicas de matéria (ύλη) e forma (μορφή) das quais uma coisa qualquer é
tida como “[...] matéria enformada” (id., 2007, p. 19), derivam da serventia do
instrumento: tal matéria é conformada de uma determinada maneira a fim de ser
utilizada para determinado fim. Matéria e forma são, portanto, categoriais instrumentais,
próprias da lida com instrumentos em geral. Humboldt, por sua vez, não nega a
categorização de linguagem dentro desse esquema instrumental, como se torna evidente
na afirmação a seguir:
Em um sentido absoluto, não pode haver matéria desenformada
dentro da linguagem, tendo em vista que tudo nela é direcionado para
um fim específico, expressão de pensamento, e esse trabalho começa já
com seu primeiro elemento, o som articulado, que obviamente se torna
articulado precisamente por ser formado. A verdadeira matéria da
linguagem é, por um lado, o som como tal, e por outro lado a
totalidade de impressões sensoriais e atividades mentais espontâneas
que precedem a criação do conceito com a ajuda da linguagem.
(HUMBOLDT, 1988, pp. 51-52, trad. e grifos nossos)
De acordo com a citação, a linguagem para Humboldt, apesar de essencialmente
formal, depende de matéria (sons e impressões) para que não se configure em forma
vazia, assim como para que se torne possível uma síntese conceitual entre som e ideia.
Para ele, a linguagem é um instrumento que serve para expressão do pensamento —
portanto, um ente instrumental que expressa outro ente, a saber, o pensado no
pensamento. A concepção humboldtiana de linguagem, que se reduz ao sentido ôntico
da linguagem, situa-se, assim, no interior da tradição metafísica conforme
compreendida por Heidegger.
Portanto, mesmo no reconhecimento de uma relativa autonomia da linguagem
como έργων e com a consideração da linguagem para além de seu mero ser instrumental
como meio de comunicação, tomando-a como visão de mundo do espírito, Humboldt
ainda se mantém no horizonte da metafísica quando pensa a linguagem essencialmente
como atividade do espírito, subjulgada às formas gerais da sensibilidade, como
instrumento para o propósito de expressão do sujeito (ibid., p. 79). Por essa insistência
sobre um pano de fundo ontológico que pressupõe o esquecimento do ser em favor dos
entes e que, por consequência, termina por tratar a linguagem como um tipo de ente
entre outros, Humboldt abre, para Heidegger, espaço para a transformação da linguagem
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em técnica, no seu esvaziamento em mero instrumento informacional de significação
unívoca e planificadora, subjugada à eficiência infindável da Gestell (id., 1995, pp. 36-
38), modo de ser da contemporaneidade em que os entes, como um todo, são
concebidos como fundos de reserva sempre a serviço de exploração (cf. 2001, pp. 11-
38).
***
Após as considerações sobre a concepção de linguagem humboldtiana, podemos
nos voltar para o próprio conceito de linguagem, em sua acepção mais autêntica, em
Heidegger. Para explicitarmos a concepção heideggeriana de linguagem, em contraste
com a noção metafísica de linguagem como expressão, voltemos a Aristóteles — para
Heidegger, um dos primeiros pensadores da tradição filosófica por ser um dos primeiros
a construir um sistema filosófico sobre o esquecimento do ser ao interpretar a acepção
principal de ser como substância, aquilo que subjaz e permanece no ente. Já no filósofo
estagirita, que abre Da interpretação ([40 a.C.] 2010) explicitando o caráter designador
da linguagem, compreendida como totalidade de sons vocálicos, a linguagem parece
exibir os caracteres metafísicos de acordo com a compreensão de Heidegger. “As
palavras faladas”, segundo Aristóteles,
são símbolos das afeições da alma, e as palavras escritas símbolos das
palavras faladas. E como a escrita não é igual em toda a parte, também
as palavras faladas não são as mesmas em toda a parte, ainda que as
afeições da alma de que as palavras são signos primeiros, sejam
idênticas, tal como são idênticas as coisas de que as afeições referidas
são imagens. (ARISTÓTELES, 2010, p. 81)
O que se parece se suceder acima é uma corrente de designação:entes, alma, som
e, por último, palavra escrita. O som e a escrita, correspondendo aos elementos da
linguagem, funcionam como instrumentos para designar, por intermédio da alma, a
coisa. Para Heidegger, porém, isso não passa de interpretação apressada, baseada na má
exegese da opus aristotélica pela tradição latina. Para o filósofo alemão, deve-se
ressaltar muito mais o caráter revelador do ente que a linguagem possuiria do que a
interpretação de seus escritos pela tradição demonstra (HEIDEGGER, 1982, p. 115).
Para Heidegger, o que deveria ser contemplado, em uma tradução fiel de Aristóteles,
são termos como συμβόλα (symbola) e σημεία (semeia), comumente traduzidos pelos
termos designativos “símbolo” e “signo”, mas, pelo filósofo alemão, tomados em seus
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sentidos mais originários como “aquilo que atém um ao outro” e “aquilo que revela”
(id., 1982, trad. nossa), respectivamente, eliminando-se assim o caráter ôntico e
designativo da linguagem próprio da metafísica das sentenças aristotélicas, como fica
evidente pela adaptação da tradução heideggeriana a seguir:
[...] o que [ocorre] na construção de sons vocálicos é uma revelação
do que se dá na alma, em forma de paixões, e o que é escrito é uma
revelação dos sons vocálicos. E assim como a escrita não é igual em
toda a parte, também os sons vocálicos não o são, ainda que as
paixões da alma de que esses [sons e escrita] são revelações sejam, em
primeiro lugar, idênticas, tal como o são as matérias de que as paixões
referidas são semelhanças. (ARISTÓTELES apud ibid., p. 114, trad. e
adaptação nossa)
Na tradução de Heidegger, a linguagem não possui o distanciamento
característico do ente revelado que é tão característico da significação designativa.
Segundo o filósofo alemão, a interpretação tradicional, que pensa a linguagem como um
ente a partir do sentido metafísico de ser como ente,levaria a linguagem ao caráter
designativo de expressão criticado, em que a palavra, como signo, se encontra
desvinculada do objeto representado, no sentido de “uma relação convencional entre um
signo e sua significação” (ibid., p. 115, trad. nossa). A linguagem, então, se torna
instrumento para designação de objetos que, na modernidade, é concebida dentro do
esquema epistemológico sujeito-objeto como instrumento, tornando-se assim um dentre
os vários tipos de atividade humana disposta para o uso. Essa concepção de linguagem
como instrumento de expressão abre precedentes para sua transformação em uma
concepção técnica de linguagem como informação (id., 1995, p. 33) e, por fim, na total
perda da essência da linguagem como o “mostrar e fazer aparecer o presente e o
ausente, a realidade no sentido mais lato” (ibid., p. 37), ou seja, como condição de ser
de todo e qualquer ente. Essa transformação é concomitante à perda da essência do
homem, que se vê como mais um recurso entre outros na homogeneização da técnica
moderna (ibid., p. 38).
A leitura heideggeriana de Aristóteles já traz à tona algo de essencial da
concepção de linguagem de Heidegger: “o ser essencial da linguagem é
dizercomomostrar (Sage als Zeige)” (1982, p. 123), ou seja, o dizer da linguagem é
essencialmente a revelação mesma do ente como ente. A linguagem, longe de ser um
ente instrumental manipulado a propósito de algo, como a expressão do espírito, é um
âmbito de revelação do ente, e por isso tem muito do que, para o filósofo, se concebia
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por “verdade” (Wahrheit), ἀλήθεια (alétheia), na Grécia antiga, implicando na noção de
“desvelamento”.
Faz-se necessário, aqui, que desloquemos da discussão sobre a linguagem para a
discussão sobre a verdade porque os dois conceitos estão mutuamente implicados. A
linguagem, em Heidegger, como a tradução da passagem aristotélica demonstra, aparece
como locus da verdade, no sentido de ser propriamente meio de revelação dos entes.
Nesse sentido, em Sobre a essência da verdade (id., [1943] 2000), Heidegger
afirma que a noção clássica de verdade como adæquatio — conformidade entre ente e
intelecto ou proposição — pressupõe já a própria aparição do ente, contemplada na
noção grega de ἀλήθεια (id., 2007, p. 41). Segundo o filósofo, “a essência da verdade é
em si mesma o combate originário em que se conquista o meio aberto, no qual o ente
advém e a partir do qual se retira” (ibid., p. 44). Dessa forma, de acordo com Heidegger,
ἀλήθεια, para o homem grego, indica a dinâmica de aparição e obscurecimento do real,
desempenhando o papel, na filosofia heideggeriana, de abertura originária do ser em que
todas as outras aberturas e velamentos do ente na totalidade ocorrem de início (id.,
2000, p. 161).
A dinâmica da linguagem coincide com a dinâmica da verdade enquanto
desvelamento. A linguagem, como “o que primeiro traz ao aberto o ente enquanto ente”
(id., 2007, p. 59), se dá como a própria abertura do ente, e não como um ente designador
de outro ente. Na exegese heideggeriana do poema “A palavra”, de Stefan George, ao
interpretar o último verso, “nenhuma coisa seja onde a palavra faltar (Kein ding sei wo
das wort gebricht)” (GEORGE apud id., 2003, p. 124), Heidegger relaciona a própria
condição de ser do ente com a possibilidade de doação desse ser pela palavra. Os dois,
ente e palavra, se dão em simultâneo. Assim, a linguagem “dá ser” aos entes, que só
podem ser, isto é, só se mostram como entes, no espaço de abertura da verdade, pela
articulação que se dá na linguagem. É só, portanto, através da linguagem que o homem
tem seu mundo, enquanto abertura mesma do ente na totalidade (id., 1982, p. 82). Não
há, pois, anterioridade da coisa, desprovida de ser, e nem autonomia total e
convencional da palavra, como mero signo formal que pudesse ser utilizado tal qual
uma “etiqueta” sobre entes ou pensamentos. Só a palavra permite ao ente ser.
Isso justificaria a famosa afirmação heideggeriana, já citada anteriormente, de
que “a linguagem é a morada do ser” (id., 2008, p. 326), pois, enquanto âmbito de
revelação do ente, é ela que primeiro nomeia e abriga o ser dos entes, trazendo sua
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presença à tona. Também por isso se vê logo justificada a afirmação de Heidegger de
que “a linguagem fala solitariamente” (id., 1982, p. 134), e que é a partir dessa fala que
o homem pode dizer algo, pois ela é condição originária para que a fala singular de cada
ser humano possa se dar. A linguagem não é, para o homem, instrumento de uso, mas
sim, espaço em que o ente humano vive sempre, de onde ganha seu próprio ser e de
onde o seu mundo lhe faz sentido. Ele habita na linguagem e fala apenas na medida em
que escuta o dizer da linguagem e com ele dialoga (id., 1982, p. 134). Longe de ser a
linguagem mero ente a serviço do homem, como se coloca para Humboldt, é o homem,
pois, que, habitando a linguagem, ganha sua condição de humano, na medida em que
fala e é, isto é, tem o seu ser, a partir da morada em que habita. Por isso, apesar de seu
respeito pela pesquisa humboldtiana, Heidegger nunca poderia, partindo de seus
pressupostos, afinar-se com uma concepção de linguagem que a reconhece como “um
tipo e forma de visão de mundo trabalhada na subjetividade humana” (id., 1982, p. 119),
isto é, que a reduz ao seu mero caráter ôntico e instrumental, desconsiderando a
experiência própria da linguagem como linguagem.
Considerações finais
Por fim, retomemos as principais diferenças entre as concepções de linguagem
dos dois teóricos aqui apresentados: para Humboldt, linguagem, enquanto forma, é
ενέργεια, atividade do espírito de articulação sonora com o intuito de servir como
instrumento de expressão humana e de constituição de uma visão de mundo; para
Heidegger, linguagem é morada do ser, nomeadora inaugural dos entes justamente por,
no papel de âmbito de aparição, trazê-los à tona enquanto os entes que eles mesmos são.
Para o primeiro, linguagem está submetida às estruturas da sensibilidade do sujeito; para
o segundo, o homem sempre se encontra no caminho da linguagem, e é a partir dela que
ele pode ter relação com o ser dos entes e, pela capacidade de fala, como resposta e
diálogo com a linguagem, se torna humano (ibid., p. 112).
A relação se inverte: no caso do linguista, linguagem é instrumento, e por isso,
pode ser estudada e comparada — daí o intuito humboldtiano de busca pela construção
de uma linguagem ideal que, baseada nas formas mais gerais da sensibilidade, servisse
de ponto comparativo para o estudo linguístico (MUELLER-VOLLMER, 2011); para o
filósofo, por outro lado, linguagem, em sua dimensão originária, ontológica, enquanto
meio em que o homem está inserido e que norteia originariamente sua relação com o
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ser, vinculada à noção de ἀλήθεια, não pode ser analisada com categorias ônticas —
instrumento, objeto, coisa etc. —, pois ela não é ente, mas sim, corresponde à própria
abertura do ente na totalidade, possibilidade de ser de qualquer ente, sendo espaço em
meio ao qual o homem, enquanto ente que é, também se vê inserido. Não é possível, se
pressupormos a linguagem a partir do que Heidegger propõe, reduzir a linguagem a sua
dimensão instrumental, isto é, tratá-la meramente como um ente devido ao fato de não
podemos nos distanciar e sair de seus limites para analisá-la “de fora”, como se fosse
meramente um ente entre outros. Só podemos experienciá-la, em sua dimensão
originariamente hermenêutica, já em nossa própria inserção, não analisá-la com a
exterioridade da qual se analisa um objeto. É essa dimensão originária que serve, antes,
de fundamento para que se possa até mesmo se conjecturar a fala como um instrumento
de comunicação e expressão. Nota-se, aqui, que Heidegger não descarta em absoluto
essa dimensão ôntica da linguagem, mas que essa dimensão não resume o todo da
linguagem e não atinge o essencial, que está justamente na própria experiência da
linguagem ela mesma.
Concluímos que o pano de fundo ontológico dos dois filósofos permite com que
suas concepções de linguagem sejam tão divergentes. Apesar da discordância, o próprio
Heidegger não renega as contribuições de Humboldt para teorias concernentes à
linguagem. Humboldt procura distanciar a linguagem de concepções meramente
instrumentalistas de linguagem — e Heidegger reconhece também isso (id., 1995, pp.
32-33) —, mas, mesmo resistindo em reduzir a linguagem a um conjunto de elementos
gramaticais mortos, meramente designadores convencionais de objetos, a sua dívida
para com a metafísica da subjetividade, que enquadra todos os entes no esquema teórico
sujeito-objeto, parece arrastar Humboldt para uma posição que opõe o sujeito falante de
sua linguagem, submetendo-a, como objeto instrumental passível de análise e
comparação, ao espírito. A postura de Heidegger, que leva em conta os pressupostos
ontológicos recônditos na história da tradição filosófica, se mostra mais cuidadosa,
trazendo a linguagem em seu sentido mais fundamental e preservando nela o que nela
não pode ser explorado, dado a posição do homem com relação a ela. Evita-se, assim,
de se impelir estudos sistemáticos sobre o tema, desviando-se da experiência original da
linguagem e caindo em contrassensos que tornam o ambiente teórico propício à
“tentação” de transformar a linguagem em instrumento de informação e cálculo
unívoco, de funções puramente técnicas.
Humboldt e Heidegger sobre linguagem: expressão do espírito ou morada do ser?
Vol. 7, nº 1, 2014.
www.marilia.unesp.br/filogenese 120
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