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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA - UFSC
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO - CCE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA
TRADUÇÃO
Suyan Magally Ferreira
O ÚLTIMO DIA DE UM CONDENADO, DE VICTOR HUGO:
PARATEXTOS TRADUZIDOS E TRADUÇÃO COMENTADA
DO PREFÁCIO DE 1832
Florianópolis
2017
Suyan Magally Ferreira
O ÚLTIMO DIA DE UM CONDENADO, DE VICTOR HUGO:
PARATEXTOS TRADUZIDOS E TRADUÇÃO COMENTADA
DO PREFÁCIO DE 1832
Dissertação submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Tradução
da Universidade Federal de Santa
Catarina para a obtenção do Grau de
Mestre em Estudos da Tradução.
Orientadora: Profa. Dra. Marie-Hélène
Cathérine Torres.
Florianópolis
2017
SUYAN MAGALLY FERREIRA
O ÚLTIMO DIA DE UM CONDENADO, DE VICTOR HUGO:
PARATEXTOS TRADUZIDOS E TRADUÇÃO COMENTADA
DO PREFÁCIO DE 1832
Essa Dissertação de Mestrado foi julgada e aprovada pela banca
examinadora para a obtenção de “Mestre em Estudos da Tradução” na
sua forma final pelo curso de Pós-graduação em Estudos da Tradução da
Universidade Federal de Santa Catarina – PGET/UFSC
Florianópolis, 28 de junho de 2017.
________________________________________
Profa. Dra. Dirce Waltrick do Amarante
Coordenadora da PGET (UFSC)
________________________________________
Prof. Dra. Marie-Hélène Catherine Torres
Orientadora e Presidente (UFSC)
________________________________________
Profa. Dra. Cláudia Grijó Vilarouca
(UFMA)
________________________________________
Profa. Dra. Andréa Cesco
(UFSC)
________________________________________
Prof. Dr. Gilles Jean Abes
(UFSC)
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente à minha família que me encorajando sempre
nos momentos importantes da minha vida, me deu forças para que eu
chegasse ao término dos meus estudos de mestrado, tornando assim,
possível o caminho do êxito.
Agradeço ao meu colega Anderson da Costa o insentivo para a
realização desse mestrado. Minha gratidão pela ajuda que me prestou a
todo o momento em que precisei de sua brilhante mente.
À minha amiga Marilene Kall que inúmeras vezes me socorreu quando
eu mais precisei. Pacientemente, explicava todas minhas dúvidas e
acalmava minhas aflições, tornando o meu processo de mestranda
menos turbulento. Ao meu amigo Mohamad Ghaleb Birani que sempre
conseguiu me dar uma palavra amiga quando eu mais ansiei. Aos meus
dois amigos, que juntos realizamos trabalhos e partilhamos de muitas
discursões não só em torno da tradução, porém, da vida, agradeço
muitíssimo pelo apoio, pela ajuda e compreensão nos momentos difíceis
e tristes que apenas poucos sabem. Vocês souberam ouvir a Suyan que
já não era tão feliz assim, devido aos muitos percalços que tive que
enfrentar nesses dois anos de mestrado.
À minha orientadora Marie-Hélène Torres por ter aceitado me orientar.
RESUMO
A novela de Victor Hugo O Último Dia de um condenado foi
originalmente publicada em 1829 na França e tornou-se imediatamente
um libelo contra a pena de morte. Contando com três prefácios, sendo
dois deles escritos por Hugo nos quais o autor dialoga com a polêmica
gerada em torno da obra, essa novela que não chega a ser um chef
d’oeuvre do escritor francês, contudo, rica em paratextos, é um dos dois
objetos de estudo da presente dissertação. O outro será a tradução
comentada do terceiro prefácio escrito por Victor Hugo para a obra, o
qual ficou conhecido como Prefácio de 1832. Tanto para a análise dos
paratextos quanto para a tradução comentada, foram abordadas as
reflexões de Gérard Genette concernentes ao paratexto e as de Antoine
Berman sobre o horizonte de tradução. Como texto de partida utilizou-se
Le Dernier Jour d’un condamné suivi de Claude Gueux et de L’Affaire
Tapner, publicado em 2014 pela editora Le Livre de Poche, de Paris.
Quanto às traduções para o português do Brasil de O Último Dia de um
condenado, servimo-nos de quatro, encontradas após algumas pesquisas.
A primeira tradução foi publicada pela Editorial Moderna Paulistana,
com data e tradutor desconhecidos; a segunda tradução data de 1995 e
foi publicada pela editora Newton Compton, contando com tradução de
Annie Paulette Marie Cambè; A terceira tradução saiu em 2002 com a
Editora Estação Liberdade, tendo Joana Canêdo como tradutora; a
última edição foi publicada pela Golden Books em 2005, com tradução
de Sebastião Paz. Sobre as citações em português de O Último Dia de
um condenado para a presente dissertação, escolheu-se a edição de
2002, pois esta se apresenta mais completa em que diz respeito aos
paratextos.
PALAVRAS-CHAVE: Victor Hugo; O Último Dia de um condenado;
paratextos editoriais; tradução.
RESUMÉ
Le récit de Victor Hugo Le Dernier Jour d’un condamné a été
originairement publié en 1829 en France et il est immédiatement devenu
un pladoyer contre la peine de mort. Comptant trois préfaces, dont deux
écrites par Hugo, dans lesquelles l’auteur dialogue avec la polémique
générée autour de l’oeuvre, ce récit qui n’est pas tout à fait un chef
d’oeuvre du romanciste français, pourtant riche en paratextes, est l’un
des deux objets d’étude de la présente dissertation. L’autre en sera la
traduction commentée de la deuxième préface écrite par Victor Hugo, la
« Préface de 1832 ». Tant pour l’analyse des paratextes que pour la
traduction commentée, ont été abordées les réflexions de Gérard Genette
concernant les paratextes et celles de Antoine Berman sur l’horizon de
traduction. Comme texte de départ, on a utilisé Le Dernier Jour d’un condamné suivi de Claude Gueux et de L’Affaire Tapner, publié en 2014
par la maison d’édition Le Livre de Poche, de Paris. Nous nous sommes
servie de quatre traductions en portugais du Brésil de Le Dernier Jour
d’un condamné. La première traduction a été publiée par la maison
d’édition Moderna Paulistana sans date ni mention du traducteur ; la
deuxième traduction de Annie Marie Cambè de 1995 a été publiée par la
maison d’édition Newton Compton ; la troisième traduction de Joana
Canêdo a paru en 2002 à la maison d’édition Estação Liberdade ; la
dernière édition a été publiée par Golden Books en 2005, avec la
traduction de Sebastião Paz. Les citations en portugais de Le Dernier Jour d’un condamné sont faites à partir de l’édition de 2002 car celle-ci
comporte tous les paratextes en étude.
MOTS – CLÉS : Victor Hugo; Le Dernier Jour d’un condamné;
paratextes ;traduction ;commenté.
ABSTRACT
Victor Hugo's novel The Last Day of a Condemned Man was originally
published in 1829 in France and immediately became a libel against the
death penalty. Counting on three prefaces, two of them written by Hugo
in which the author dialogues with the controversy generated around
this work, this novel, that does not become a "chef d'oeuvre" of the
french writer, but rich in paratexts, is one of the two objects of study of
the present dissertation. The other object will be the commented
translation of the third preface written by Victor Hugo for this work,
which became known as the Preface of 1832. For the analysis of the
paratexts as well as for the commented translation, the reflections of
Gérard Genette concerning the paratext and those of Antoine Berman on
the horizon of translation were addressed. As a starting point, Le
Dernier Jour d'un condamné suivi by Claude Gueux et L'Affaire Tapner,
published in 2014 by Le Livre de Poche, Paris, was used. As for the
translations of The Last Day of a Condemned Man to Brazilian
Portuguese, we used four of them, found after some research. The first
translation was published by Editorial Moderna Paulistana, with date
and translator unknown; the second translation dates from 1995 and was
published by the Newton Compton Editora, with the translation of
Annie Paulette Marie Cambè; The third translation came out in 2002 by
Editora Estação Liberdade, with Joana Canêdo as the translator; the last
edition was published by Golden Books in 2005, with translation by
Sebastião Paz. About the Portuguese citations of The Last Day of a
Condemned Man for the present dissertation, the 2002 edition was
chosen, since this one is more complete concerned to the paratexts.
KEYWORDS: Victor Hugo; The Last Day of a Condemned Man;
editorial paratexts; translation.
LISTA DE FIGURAS
Figura 01. Primeira capa de O último dia de um condenado, de Victor
Hugo, 1ª Edição Editorial Moderna Paulistana – s/d----------------------89
Figura 02. Primeira capa de O último dia de um condenado, de Victor
Hugo, 2ª Edição Editora Newton Compton – 1995------------------------92
Figura 03. Primeira capa de O último dia de um condenado, de Victor
Hugo, 3ª Edição Editora Estação Liberdade – 2002-----------------------95
Figura 04. Primeira capa de O último dia de um condenado, de Victor
Hugo, 4ª Edição Editora Golden Books – 2005----------------------------97
Figura 05. Quarta capa de O último dia de um condenado, de Victor
Hugo, 1ª Edição Editorial Moderna Paulistana – s/d---------------------104
Figura 06. Quarta capa de O último dia de um condenado, de Victor
Hugo, 2ª Edição Editora Newton Compton – 1995----------------------106
Figura 07. Quarta capa de O último dia de um condenado, de Victor
Hugo, 3ª Edição Editora Estação Liberdade – 2002--------------------- 108
Figura 08. Quarta capa de O último dia de um condenado, de Victor
Hugo, 4ª Edição Editora Golden Books – 2005--------------------------109
SUMÁRIO
1.0. INTRODUÇÃO----------------------------------------------------------21
CAPÍTULO I: VICTOR HUGO E O ÚLTIMO DIA DE UM
CONDENADO------------------------------------------------------------------24
1.1. A Obra de Victor Hugo no contexto romântico francês---------24
1.2. O Último Dia de um condenado: um libelo contra a pena de
morte ----------------------------------------------------------------------------32
CAPÍTULO II: ANÁLISE DOS ELEMENTOS PARATEXTUAIS EM
O ÚLTIMO DIA DE UM CONDENADO ----------------------------------42
2.1. O paratexto: o limiar do texto literário----------------------------- 42
2.2. O prefácio ----------------------------------------------------------------43
2.3. Os prefácios em O Último Dia de um condenado------------------45
2.4. Os prefácios em O Último Dia de um condenado nas edições
brasileiras ----------------------------------------------------------------------52
2.5. Notas-----------------------------------------------------------------------58
2.5.1. As Notas de rodapé ---------------------------------------------------59
2.5.2. Notas de rodapé – Editora Moderna Paulistana – s/d---------63
2.5.3. Notas de rodapé – Editora Newton Compton – 1995----------67
2.5.4. Notas de rodapé – Editora Estação Liberdade – 2002---------72
2.5.5. Notas de rodapé – Editora Golden Books – 2005---------------77
2.5.6. Nota Final de O Último Dia de um condenado-------------------80
2.6. A Primeira Capa---------------------------------------------------------84
2.6.1. Primeira Capa – 1ª Edição Editorial Moderna Paulistana, s/d-
------------------------------------------------------------------------------------85
2.6.2. Primeira Capa – 2ª Edição Editora Newton Compton, 1995----
------------------------------------------------------------------------------------88
2.6.3. Primeira Capa – 3ª Edição Editora Estação Liberdade, 2002--
------------------------------------------------------------------------------------90
2.6.4. Primeira Capa – 4ª Edição Editora Golden Books, 2005 -----93
2.7. Orelhas---------------------------------------------------------------------95
2.8. A Quarta Capa ----------------------------------------------------------98
2.8.1. Quarta Capa – 1ª Edição Editorial Moderna Paulistana, s/d---
------------------------------------------------------------------------------------99
2.8.2. Quarta Capa – 2ª Edição Editora Newton Compton, 1995 -----
-----------------------------------------------------------------------------------101
2.8.3. Quarta Capa – 3ª Edição Editora Estação Liberdade, 2002 ----
-----------------------------------------------------------------------------------103
2.8.4. Quarta Capa – 4ª Edição Editora Golden Books, 2005------104
CAPÍTULO III: TRADUÇÃO COMENTADA DO PREFÁCIO DE
1832 ----------------------------------------------------------------------------106
3.1. Tradução do Prefácio de 1832 --------------------------------------106
3.2. Comentários sobre a tradução --------------------------------------148
3.2.1. Clarificação -----------------------------------------------------------148
3.2.2. O empobrecimento qualitativo------------------------------------152
3.2.3. O empobrecimento quantitativo----------------------------------153
3.2.4. A homogeneização---------------------------------------------------154
3.2.5. A destruição das locuções-----------------------------------156
CONSIDERAÇÕES FINAIS ---------------------------------------159
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS-----------------------------163
ANEXOS------------------------------------------------------------------167
21
INTRODUÇÃO
A presente dissertação tem por objeto de estudo a obra O Último Dia de um condenado, do escritor francês Victor Hugo. Tal estudo
articula-se sobre dois pontos, o primeiro deles refere-se à análise das
traduções dos paratextos nas quatro traduções publicadas no Brasil. Já o
segundo se configura em uma proposta de tradução para o terceiro
prefácio da obra, conhecido como Prefácio de 1832, escrito pelo próprio
autor. No que se refere aos paratextos a pesquisa se pautará em uma
abordagem descritiva, para a qual utilizarei como suporte teórico a obra
de Gérard Genette (2009). Quanto à tradução comentada do prefácio
encontrei suporte nas teorias de Antoine Berman. Notadamente no que
ele define como as “treze tendências deformadoras da tradução”,
presentes na obra A Tradução da Letra e o Albergue do Longínquo
(2013), e também nas reflexões que fez acerca do que ele estabelece
como “horizonte de tradução”, presente na obra John Donne : pour une critique des traductions (1995). Creio que as concepções de Berman
sobre o que há publicado de um determinado autor — seja fortuna
crítica, outras obras suas, outras traduções — quando uma determinada
tradução vem a público, podem me ser úteis durante a comparação dos
paratextos, sobretudo em razão da proximidade de datas entre a maioria
das edições em estudo.
Publicada originalmente em 1829 na França, a novela O Último
Dia de um condenado é considerado um manifesto contra a pena de
morte por estudiosos da obra de Victor Hugo. Entre eles podemos citar
Robert Badinter, autor do prefácio para Le Dernier jour d’un condamné
(2014), um advogado criminalista e militante histórico da causa da
abolição da pena de morte na França. Na condição de Ministro da
Justiça do governo de François Miterrand enviou ao parlamento o
projeto de lei que aboliu a pena capital naquele país em setembro de
1981. Além de Badinter pode-se citar o nome de Júnia Barreto no seu
artigo Crime e pena capital no século 19 (2010); de Myriam Roman em
Le Dernier Jour d'un condamné : le style contre la rhétorique (2005) ;
de Sonja Hamilton em Fantôme littéraire de Hugo: les lendemains du dernier jour d’un condamné (2001).
Victor Hugo escreveu a novela em apenas três semanas,
conforme atesta a sua esposa na biografia que escreveu sobre ele
(CHARLIER,1915.p. 346), logo após ter visto um carrasco afiando a
guilhotina, a qual seria utilizada em uma execução naquele mesmo dia.
A obra retrata as últimas 24 horas de um condenado à morte, cujo crime
22
por ele cometido, como também a sua identidade, permanecem durante
toda a narrativa desconhecidos do leitor.
Essa característica da obra despertou na época críticas à novela
por parte de alguns contemporâneos de Victor Hugo, segundo atesta
Sonja Hamilton no artigo Fantôme littéraire de Hugo: les lendemains
du Dernier jour d’un condamné :
Alguns artigos são elogiosos, [...] a maioria deles
critica a audácia de um autor [...] Victor Hugo é
fortemente atacado apesar do sucesso comercial
de seu livro. O jornal des Débats do dia 26 de
fevereiro de 1829 qualifica seu romance de “odioso”, “medonho”, “pavoroso” e cheio de
“horrores gratuitos”.1
Por sua vez o editor Charles Gosselin sugeriu ao autor que
completasse a obra com a história do condenado, pois temia que o leitor
não compreendesse a mesma, recebendo, em resposta, via carta, a recusa
do autor2. Nesse sentido, e fazendo uso de monólogo interior, o autor de
Os Miseráveis escreveu uma obra até certo ponto inovadora, pois ao
negar ao leitor uma estrutura de romance ao qual ele estava habituado,
direciona esse leitor para uma reflexão mais conectada com a sua
realidade, pois se discutia na época a abolição da pena de morte.
Em relação à presença de O Último Dia de um condenado no
sistema literário brasileiro, pude apurar quatro traduções. A primeira
delas foi publicada pela Editorial Moderna Paulistana, sem indicação de
data e de tradutor. Possivelmente a sua publicação se deu nos anos 30, a
julgar pelo levantamento feito de outras obras publicadas pela editora, as
quais se situam nessa década. A segunda tradução é de 1995 e foi
publicada pela Editora Newton Compton, com tradução de Annie
Paulette Marie Cambè. A terceira tradução de O Último Dia de um
condenado saiu pela Editora Estação Liberdade em 2002, e conta com
1 Quelques articles sont élogieux, […] les plus nombreux critiquent l’audace
d'un auteur […] Victor Hugo est vivement attaqué malgré le succès commercial
de son livre. Le Journal des Débats du 26 février 1829 qualifie son roman de
"odieux", "effroyable", "terrifiant," et rempli de "gratuites horreurs." Disponível
em: <https://escholarship.org/uc/item/64h4x7sm#page-1> Acesso: 01/10/2014).
A tradução é minha. 2 Disponível em: < http://www.christies.com/lotfinder/books-
manuscripts/victor-hugo-lettre-autographe-signee-vh-adressee-5543843-
details.aspx> Acesso: 01/10/2014.
23
tradução de Joana Canêdo. E, por fim, a editora Golden Books publicou
em 2005, com tradução de Sebastião Paz, a 4ª tradução da novela de
Victor Hugo.
Já em Portugal, até o presente momento, levantei oito traduções.
A mais antiga delas data de 1921, feita por J. Pereira da Silva, editada
pela Literária Universal de Lisboa. As demais, datadas em ordem
crescente são: Editora Portugália, Lisboa: 1968, tradução de Orlando
Neves; Lello & Irmão, Porto: 1969, tradução desconhecida; Editorial
Verbo, Lisboa: 1972, tradução de José de Nel-Castro; Editora
Civilização, Porto: 1976, tradução de Aureliano Sampaio; Editora
Europa-América, Lisboa: 1990, tradução de Cascais Franco; Editora
Quidnovi, Vila do Conde: 2010, tradução de Ana Ribeiro; Editora
Cotovia, Lisboa: 2010, tradutor desconhecido.
O estudo dos paratextos em uma tradução podem revelar como se
insere em uma outra cultura e língua um texto que originalmente surgiu
em determinadas circunstâncias, motivado por um contexto específico.
Assim, no deslocamento temporal, espacial e, sobretudo cultural de um
texto, é possível inferir sobre esse processo de chegada e adaptação na
cultura alvo. Como O Último Dia de um condenado é apresentado ao
sistema literário brasileiro, como ocorre essa recepção, que importância
ela adquire ou não, considerando aí a envergadura do seu autor, tão mais
reconhecido por outras obras que gozam de mais prestígio, são questões
que podem ser esclarecidas via o que deixam transparecer os paratextos
das edições em análise.
24
CAPÍTULO I
VICTOR HUGO E O ÚLTIMO DIA DE UM CONDENADO
1.1. A Obra de Victor Hugo no contexto romântico francês
Entre a Revolução Francesa e meados do século XIX a Europa
foi sacudida por um movimento cultural que revolucionou a filosofia, a
literatura e as artes. Como também foram profundamente afetadas a
concepção de sociedade organizada, justiça e costumes.
O nascedouro do Romantismo pode ser encontrado na
Alemanha, no movimento Sturm und drung com a valorização da poesia
mística, folclórica, selvagem e o primado da emoção sobre a razão.
Algum tempo depois as obras dos poetas George Byron e Percy Shelley
ressoam na Inglaterra as propostas alemãs. Na França o movimento
ganharia força um pouco depois, nos anos de 1820, ao redor da figura de
Victor Hugo.
O período conhecido como Romantismo possui uma estreita
ligação com o que ocorreu no âmbito social. Por mais que o culto do Eu
e suas manifestações emocionais, criativas e de culto à natureza
despontem como o cerne das concepções românticas, é o
questionamento de determinada ordem social, que se acirra a partir do
século XVIII com os filósofos iluministas, que forjará o compromisso
romântico calcado na transformação social e artística, compromisso esse
que percebemos na trajetória artística e também política de Victor Hugo.
Mas o processo que culmina em uma ruptura social, como a
Revolução Francesa, começa pelo menos três séculos antes quando a
burguesia — surgida na Idade Média, nas figuras dos artesãos habitantes
dos burgos, daí o nome, começam a se organizar em cooperativas, as
chamadas guildas — passa a acumular capital durante o mercantilismo.
Ao cabo de três séculos são os burgueses que financiam o Estado, sua
economia e suas guerras. É essa classe social, mal vista pela nobreza, a
engrenagem econômica do sistema absolutista, todavia, ela não detém o
poder político (LOWY e Sayre, 2015, p. 26).
É a crítica contundente a essa situação que filósofos como
Voltaire, Montesquieu, Diderot e D’Alembert na França, John Lock e
Edward Gibbons um pouco antes daqueles, na Inglaterra, irão tecer à
ordem vigente. Esses dois fatores aliados a situações bastante
específicas na França de Louis XVI — como a derrota na guerra dos
sete anos, a desigual estratificação do estado francês, uma forte crise
financeira, a escassez de alimentos, apenas para citar alguns, já que não
25
há espaço para discorrer sobre o assunto, bem mais amplo e complexo
— propiciam um corte radical na história ocidental, que foi a ascensão
da burguesia ao centro político. Esse corte se deu em uma estrutura
milenar de sociedade, se considerarmos o estado absolutista, e não foi
pacífica como bem o sabemos. A chegada ao poder da burguesia
modificou uma estrutura social que se acreditava imutável, já que ela era
resultado da providência divina. Os burgueses trouxeram com eles uma
cultura de caráter mais popular, a qual expressava seus anseios,
concepção de sociedade, ideais de justiça e liberdade. O que a
Revolução Francesa trouxe e implantou foi a ideia de ruptura, a qual se
caracteriza por aniquilar uma estrutura e substituí-la por outra
completamente nova e, portanto, ainda desconhecida. Essa noção de
rompimento e inovação vai permear todo o romantismo, seja do ponto
de vista formal, com o romance, por exemplo, seja do ponto de vista de
conteúdo, quando os valores da nova classe no poder tinham nos heróis
dos romances burgueses os seus porta-vozes, caso de Jean Valjean, por
exemplo.
Vindo da extrema pobreza, o personagem de Os Miseráveis, de
Victor Hugo, é preso e condenado a cinco anos de trabalhos forçados
por roubar um pão, os quais se transformam em dezenove devido às
tentativas de fuga. Fugitivo, execrado pela sociedade, percebe-se vítima
de uma grande injustiça social, já que o seu sofrimento é
desproporcional ao dano que causou com seu delito. A sua ascensão
social, de fugitivo e delinquente a empresário e prefeito de Montreiul-
sur-Mer ocorre em meio a compreensão da sua própria situação de
injustiçado.
Mas a ruptura enquanto valor revolucionário na literatura conta
com uma base teórica, da qual o autor de Os Miseráveis tornou-se um
dos principais expoentes na França pós-napoleônica e à beira das
revoltas de 1830.
Na época da publicação de O Último Dia de um condenado
Victor Hugo já era o principal porta voz do romantismo francês, cujo
prefácio para Cromwell tornara-se um verdadeiro manifesto do
movimento na França. Publicado em dezembro de 1827 em Paris, o
prefácio de Cromwell3 surge na condição de teoria do drama romântico.
Todavia, as ideias abordadas por Victor Hugo nesse texto se mostraram
inovadoras na medida em que propuseram uma ruptura com a concepção
3 Doravante irei me referir a esse prefácio somente como Cromwell.
26
de arte de então. Ruptura essa que pode ser simbolizada na célebre
passagem:
Destruamos a golpes de martelo as teorias, as
poéticas e os sistemas. Derrubemos este velho
gesso que mascara a fachada da arte! Não existem
nem regras, nem modelos! Ou, melhor dizendo,
não existem outras regras além das leis gerais da
Natureza, [...] e das leis particulares que, em cada
uma das obras, resultam das características
inerentes a cada assunto” (HUGO, 2002. p.64).
Assim, ao tomar a natureza como única fonte aceitável da arte e
recusar a imitação via regras e modelos (GOMES, 1992, p. 199), o
prefácio de Cromwell lança o artista ao que seria um dos pilares mais
caros do romantismo, a liberdade de criação.
As teorias, poéticas e sistemas que Hugo clama à destruição
estavam, sobretudo, no teatro francês, que tinha alcançado a mais alta
expressão com Corneille, Molière e Racine. E qualquer modificação na
arte dramática cristalizada por esses três expoentes do teatro francês era
vista como uma afronta no início do século XIX.
O teatro é o campo de batalha escolhido, porém logo se espalha
para a literatura e outras manifestações artísticas. Cromwell é também
importante para se chegar a uma definição do movimento romântico na
França, que até 1825 não tinha uma ideia muito coesa sobre o tema.
Essa desarticulação era mais clara na narrativa, pois até 1820 ainda não
havia regras em relação ao romance, o que levou a narrativa da época
para outros caminhos:
Havia uma repetição de modelos e situações que
não condiziam com a realidade, não contando os
romances de Chateaubriand e Mme. de Stäel.
Afora isso, predominava ainda um modelo que
primava pelo fantástico, o “roman noir”. (ROY,
1976, p. 54)
A partir então da década de 20 a influência do escritor escocês
Walter Scott passa a ser sentida entre os jovens artistas franceses. Scott
é considerado um dos pais do romance histórico, uma vertente que seria
bastante explorada pelo Romantismo. Ivanhoé, que narra a disputa entre
saxões e normandos e a tentativa de destronar Ricardo Coração de Leão,
é considerado o primeiro romance histórico do Romantismo. Em Victor
27
Hugo essa influência aparece claramente em Notre Dame de Paris, que
ultrapassa as descrições da antiga catedral, e ilustra o dia a dia da Paris
medieval, com suas ruelas e personagens como pedintes, ciganos,
ladrões, o rei, a nobreza.
O romance histórico trouxe para a literatura certa verossimilhança
em relação aos estereótipos da época, sobretudo em relação ao chamado
romance sentimental de fins do século XVIII, ainda populares, além do
estereótipo sobrenatural do “roman noir”, cuja influência de Ann
Radcliffe e mesmo Mary Shelley, eram sentidas em obras como como
Le solitaire (1821) de Charles D’Arlincourt e mesmo em Victor Hugo
com Han d’Island (1823). A contribuição de Walter Scott foi trazer a
intriga romanesca para a realidade social, fazendo com que, segundo
Claude Roy (1974, p. 283), o romance se tornasse capaz de manifestar
aspectos dramáticos da existência, como o fazia o teatro.
Ainda no campo dramático, seu drama Hernani, (1830) dividiu
opiniões ao ser encenado em fevereiro de 1830 no teatro da Comédie
Française. A Batalha de Hernani, como ficou conhecido o episódio,
contou com brigas corporais, várias interrupções da peça e protestos de
rua, conforme atesta Théophile Gautier nos capítulos XI e XII de sua
Histoire du Romantisme, nos quais analisa na condição de crítico e,
também, na posição de um dos “combatentes” na famosa “batalha”,
quando se colocou entre os defensores do drama de Hugo. Hernani
marca o declínio do classicismo francês e contribui decisivamente para a
consagração de Hugo como líder do romantismo (ROY, 1974. p. 27).
Portanto, é em meio a esse contexto e polêmica que um ano antes
foi publicado O Último Dia de um condenado, obra que se não chega ser
um “chef d’oeuvre” do grande escritor francês4, aponta os grandes temas
que perpassariam a sua obra, tais como a luta pela liberdade e pela
justiça.
Victor Hugo é um dos expoentes máximos não apenas do
romantismo, mas da literatura ocidental. Contudo, os ideais que se
fizeram alicerces desse movimento encontram em sua obra as melhores
representações. O aspecto revolucionário presente na noção radical de
ruptura, o qual desponta na Revolução Francesa, apresenta-se na obra de
Hugo quando esta faz eco a dois temas centrais de sua teorização
artística, ambos presentes no prefácio a Cromwell, a noção de grotesco e
de sublime.
4 Notre Dame de Paris seria publicado dois anos depois, Os Miseráveis em
1862 e Os Trabalhadores do mar em 1866.
28
Hugo reconhece em Cromwell o grotesco como antítese do
sublime, entretanto, entende que tal antinomia desaparece nos “novos
tempos”, quando ambos tornam-se faces complementares da mesma
moeda. Para Hugo essa condição só é possível em virtude do triunfo de
uma religião espiritualista, no caso o cristianismo, o qual forçou outra
percepção estética.
Nem tudo que rodeia o homem é necessariamente belo, o feio e
o desagradável convivem com o deselegante, o grotesco está por todos
os lados, existe desde os tempos antigos, mas é na Idade Média que ele
passa a ocupar um espaço maior, proporcional ao que ocupava o
sublime. Ao grotesco sempre foi destinado as pragas, a baixeza moral,
as deformidades, os crimes, os vícios. Já ao sublime a harmonia, a
beleza e a pureza. Hugo entende que em virtude do sucesso do
cristianismo, sobretudo o que desponta na Idade Média, o homem de
inícios do século XIX é a resultante do grotesco e do sublime, e isso se
torna possível com a separação entre corpo e alma, cabendo àquele o
que é baixo, condenável moralmente e feio, ao passo que a esse é
reservado o belo e o puro. A ação humana, portanto, condensa esse
paradoxo do grotesco e do sublime e isso faz, na concepção de Hugo,
com que se abra inúmeras possibilidades artísticas.
Tudo na criação não é humanamente belo, o feio
existe ao lado do belo, o disforme perto do
gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal
com o bem, a sombra com a luz." (HUGO, 2002,
p. 26).
Essa concepção perpassará toda a obra de Victor Hugo,
encontrando no Quasímodo de Notre Dame de Paris talvez a mais
evidente personificação. Surdo, corcunda, coxo, abandonado pelos pais
por conta da sua deformidade, o guardião dos sinos de Notre Dame é
por definição grotesco. No entanto, a recusa em matar a cigana
Esmeralda a mando do Monsenhor Claude Frollo, o amor desinteressado
que nutre por ela, a consciência de sua impossibilidade de amar e a
vontade de se tornar animal, de se transformar em pedra como as
gárgulas da fachada de Notre Dame, de renunciar o que há de humano
em si, deixam ver uma essência sublime.
Se em Notre Dame de Paris grotesco e sublime são facilmente
perceptíveis, em outras obras de Hugo nem tanto, embora esse par
antinômico se faça presente e possa ser identificável sem muita
dificuldade. Em Os Miseráveis pode-se ver o grotesco gravitando em
29
torno de personagens como Cosette, cuja pobreza e opções que toma
para sobreviver e garantir o que ela imagina ser uma vida melhor para a
filha Fantine, são ultrajantes. O próprio Jean Valjean é capaz de trair a
confiança do Bispo Myriel que lhe dera guarida ao roubá-lo. Esse
mesmo Jean Valjean, por outro lado, é capaz do nobre gesto de entregar-
se no julgamento de um homem que seria executado em seu lugar.
O grotesco também está presente em O Último Dia de um
condenado. Ele surge nas descrições do interior de Bicêtre com os seus
calabouços escuros, corredores sujos, condenados em condições
subumanas. Também se apresenta nas reflexões do condenado ao
revelarem o horror, desesperança e a indignidade humana. Entretanto,
talvez o melhor espaço para o grotesco na novela esteja na linguagem.
No capítulo XVI o protagonista ouve de sua cela uma jovem
cantando. A letra dessa canção aparece manuscrita ao fim da novela,
com anotações do condenado e traduções de algumas palavras em gíria.
No capítulo XXIII o protagonista conversa com outro condenado e esse
utiliza-se de uma linguagem peculiar, repleta de gírias usadas apenas por
criminosos, linguagem a qual o protagonista desconhecia e que são
traduzidas em notas de rodapé.
A novela é publicada em 1829, o processo de ruptura com o
Classicismo, que primava por uma língua elevada, pelo bon français,
ainda está em andamento, começando, como já mencionado, com
Cromwell em 1927 e concluindo-se três anos depois com A batalha de
Hernani. Ao colocar em uma obra literária uma linguagem que destoa
da linguagem literária, ainda que em uma passagem relativamente curta,
Hugo traz o grotesco para esse campo.
A gíria é definida como “linguagem críptica dos malfeitores, do
meio; linguagem particular de um grupo de pessoas em um meio
fechado” (LE ROBERT, 2011). Assim, há um choque pelo contraste
causado entre a linguagem literária e a linguagem em gíria, presente em
O Último Dia de um condenado. Yvette Parent, na comunicação
L’emploi de l’argot dans Le Dernier Jour d’un condamné, afirma que a
gíria empregada na obra é uma linguagem misteriosa, plena de imagens
nocivas que aludem à morte, sangue e ao horror5. Há uma passagem da
novela que ilustra bem a questão:
É uma língua ancorada na língua geral como uma
espécie de excrescência repulsiva, como uma
5 Disponível em: <http://groupugo.div.jussieu.fr/groupugo/doc/03-02-
08Parent.pdf> Acesso: 15/03/2017
30
verruga. Algumas vezes uma energia singular, um
pitoresco assustador [...] Quando os ouvimos falar
essa língua, tem-se o efeito de algo sujo e
poeirento, de um liame de trapos balançando à sua
frente. (HUGO, 2002, p. 44).
Através do seu narrador Hugo deixa ver o aspecto grotesco
dessa linguagem que choca o protagonista da novela, alguém que não
conhece gírias, especificamente aquelas associadas ao submundo do
crime, sabe latim, se expressa em linguagem culta. É um homem
pertencente a uma realidade que nada tem a ver com aquela,
subterrânea, decadente, desconhecida, perigosa. É nesse aspecto que o
grotesco se faz presente em O Último Dia de um condenado.
Victor Hugo também foi poeta e dos mais profícuos de sua
época. Era capaz de escrever oitenta versos por dia, segundo Gengembre
(2008, p. 115). Entre 1830 e 1840, época que a visão política de Hugo se
modifica, em razão da queda da dinastia Bourbon e da Revolução de
1830, publica os livros de poemas Les feuilles d’automne (1831), Les
chants du crépuscule (1835), Les voix intérieures (1837) e Les rayons et les ombres (1840). Todos os poemas líricos de alta inspiração, “tendo
como temática, lembranças, sonhos, a família, problemas eternos e a
função do poeta, que era um tópico importante na época”, segundo
Fúlvia Moretto6. A década de 40 não verá nenhuma obra poética de
Hugo, que só voltará ao gênero na década seguinte, no exílio, de onde
escreverá poesia política contra Napoleão III. Les Contemplations é de
1856 e é considerada a sua obra prima em poesia. Sua contribuição na
arte poética não se deu no campo da linguagem, já que mantém a rima,
extremamente rica em sua obra, respeita a sintaxe e manteve o verso
alexandrino. A contribuição de Hugo na concepção de Fúlvia Moretto é
de que
[...] ele amplia, alarga a visão poética através de
um vasto e forte vocabulário, torna concreta a
língua clássica, conservou o verso de 12 sílabas,
mas o tornou flexível. Sua metáfora torna-se
inesperada, como se não víssemos logo a analogia
entre a união das duas ideias. (Idem)
6 Disponível em < http://seer.fclar.unesp.br/lettres/article/viewFile/736/602>
Acesso: 12/04/2017.
31
Se Hugo não realizou uma revolução linguística na poesia, foi
ele quem abriu caminho para os simbolistas, que acabariam por fazê-la.
Nesse sentido, a sua metáfora se faz quase sempre inesperada, já que a
analogia entre as duas ideias nem sempre é óbvia (ROY, 1974, p. 307),
algo que seria explorado pelos simbolistas à exaustão. Segundo Roy,
Rimbaud foi o único de sua época que percebeu que as imagens criadas
por Hugo ultrapassaram as formas do romantismo, conforme escreve o
poeta de Charleville a Paul Demeny na sua famosa Carta do vidente:
Os primeiros românticos foram videntes sem dar
muita conta disso: a cultura de suas almas
começou nos acidentes: locomotivas
abandonadas, mas ardentes que ficam algum
tempo nos trilhos. – Lamartine é às vezes vidente,
mas estrangulado pela forma velha. – Hugo,
demasiado teimoso, possui ver nos últimos
volumes: Les misérables são um verdadeiro
poema. Tenho Les châtiments em minhas mãos;
Stella dá um pouco a medida do ver de Hugo.
(RIMBAUD, 2002, p. 115)
Victor Hugo escreveu até dois anos antes da sua morte aos 83
anos de idade com uma proficuidade que impressiona também em razão
dos gêneros que frequentou. São quinze peças de teatro; nove romances;
trinta livros de poesia, contando os póstumos; em torno de vinte ensaios,
além de cartas e um libreto para a ópera La Esmeralda composta por
Louis Bertin. Hugo foi não só testemunha, mas vivenciou todas as
transformações históricas importantes para a França no século em que
viveu. Viu o Primeiro Império de Napoleão I, a Restauração, a
Revolução de 1830, a Monarquia de Julho, a Revolução de 1848, o
Segundo Império de Napoleão III e a Terceira República, de 1870 e
participou politicamente em alguns desses momentos. Literariamente,
Victor Hugo presenciou todas as estéticas do século XIX, do
Classicismo ao Simbolismo que está iniciando quando ele morre, não
chegando a escrever, portanto, nesses moldes. Mas é sem dúvida a
ruptura com o Classicismo, por ele capitaneada, uma das grandes
contribuições que o seu gênio engendra. A sua liderança inquestionável
e carismática coloca a literatura francesa do início do século XIX não
somente em sintonia com o que acontecia na Inglaterra e na Alemanha,
mas deu continuidade à tradição francesa de ser um dos centros nas
letras.
32
O Último Dia de um condenado, a que passo em seguida, é uma
das obras primeiras de Hugo nesse contexto de ruptura com uma
tradição literária e militância política, o que o caracteriza como
indivíduo e escritor. Cromwell é de 1827, três anos depois aconteceria a
Batalha de Hernani, em 1831 é publicado o romance histórico nas
concepções românticas, Notre Dame de Paris. O Último Dia de um condenado é de 1829, pertence, portanto, a esse período de ruptura e
inovação apresentadas por Victor Hugo.
1.2. O Último Dia de um condenado: um libelo contra a pena de
morte
Condenado à morte!
Já se vão cinco semanas que convivo com tal
pensamento, sempre só com ele, sempre
petrificado por sua presença, sempre encurvado
sob seu peso! (HUGO, 2002. p. 31.)
Com este parágrafo o protagonista de O Último Dia de um condenado inicia a narrativa de suas últimas semanas de vida, escrita
nas 24 horas que precedem a sua execução. Sobre esse narrador-
protagonista pouca coisa é revelada ao leitor, apenas que é pai de uma
menina de três anos e, nas palavras do próprio personagem, culpado de
um crime: “Miserável! Que crime cometi e que crime estou fazendo a
sociedade cometer! ” (HUGO, 2002, p. 105). O crime que o condenado
está fazendo a sociedade cometer é a privação de uma criança do seu
pai. Duplamente criminoso, portanto, pois além do crime que o leva à
pena capital há o de deixar uma criança órfã de pai. Considerando o
caráter militante do texto de Hugo, existe a sugestão de que a sociedade
também está cometendo um crime, no caso, de assassinato. Aliás, Hugo
tinha essa concepção no caso da pena de morte. Nome, idade, profissão,
relações pessoais e, sobretudo, o delito praticado pelo protagonista
permanecem desconhecidos do leitor durante toda a história. Algumas
suposições sobre o modo de vida, posição social, nível cultural do
prisioneiro são possíveis de serem feitas a partir das constantes
digressões do personagem, as quais revelam por meio do nível culto da
linguagem, ser ele um frequentador de teatros.
Em meio às lembranças da vida anterior à prisão transparece,
contudo, os medos, tormentos e incertezas do condenado que nutre até
os derradeiros momentos a esperança de obter misericórdia. Assim, em
uma espécie de “diário de sofrimento” (HELLIN, 2010. p. 20) e por
33
meio do monólogo interior7, Victor Hugo procura sensibilizar o leitor
contra a pena de morte ao trazê-lo para dentro da consciência de um
homem que enfrenta uma situação angustiante.
O que quer que eu faça, ele está sempre ali, esse
pensamento infernal [condenado à morte], como
um espectro de chumbo a meu lado, solitário,
ciumento, afastando qualquer distração, face a
face com a minha pessoa miserável [...] Ele se
insinua sob todas as formas em que meu espírito
gostaria de se esconder, mistura-se, como um
refrão horrível, a todas as palavras que me
dirigem, cola-se comigo nas grades hediondas de
meu calabouço; importuna-me quando estou
acordado, espreita meu sono convulsivo e
reaparece em meus sonhos sob a forma de uma
lâmina. (HUGO, 2002. p. 32.)
Essa estratégia narrativa não permite outro ponto de vista que não
aquele do protagonista, encerrando assim o leitor em uma posição
desconfortável, a qual está relacionada com a natureza engajada da obra.
Ao sonegar a informação sobre o crime cometido pelo prisioneiro de
Bicêtre, Hugo desarma o viés justiceiro do leitor que se vê obrigado a
acompanhar o sofrimento do protagonista sem poder criminalizá-lo
diretamente. Por esse artifício o personagem vai ganhando gradualmente
a simpatia e a compaixão de quem acompanha o seu drama, pois o foco
está na dimensão humana do condenado. Dessa maneira, ao compor um
personagem cuja delinquência não aparece, Hugo direciona uma
identificação do protagonista com o leitor, afinal que crime ele
cometeu? Justificaria de fato a pena de morte? A privação da liberdade
não seria suficiente? Não seria degradante e desumano, mesmo para
alguém que comete um crime, tais condições de encarceramento seguido
de morte em praça pública? E se houve um exagero? Um engano? Essas
7 Segundo Massaud Moisés, professor de Literatura Portuguesa na USP, “O
monólogo interior caracteriza-se por transcorrer na mente da personagem, como
se o “eu” se dirigisse a si próprio. Na realidade, continua a ser diálogo, uma vez
que subentende a presença de um interlocutor, real ou virtual, incluído a
personagem, assim desdobrada em duas entidades mentais, que trocam ideias ou
impressões como pessoas diferentes”. (1974, p.145).
34
questões surgem quando se está diante de um personagem a quem não
se aplicam maniqueísmos, caso do protagonista.
A novela O Último Dia de um condenado é talvez a mais
contundente manifestação literária de Victor Hugo em relação à pena de
morte, contra a qual se opôs durante toda a vida. No que se refere à
definição de novela adotarei aqui a designação de dois teóricos dos
gêneros narrativos sobre o assunto, a brasileira Angélica Soares e o
francês Yves Stalloni. Segundo Soares, novela é “a forma narrativa
situada entre o conto e o romance no que se refere à extensão. Sendo
mais reduzida que o romance, possui todos os elementos estruturadores
deste, porém em menor número. O enredo é unilinear, predominando a
ação sobre as análises e as descrições. Privilegiam-se os momentos de
crise, aqueles que impulsionam rapidamente a diegese para o final.
(SOARES, 2007. p. 55). Yves Stalloni, por sua vez, define a novela a
partir de uma dimensão formal e outra estética. Assim, formalmente a
novela possui um núcleo narrativo, poucos personagens e opõe-se ao
romance por apresentar uma narrativa mais breve. Esteticamente possui
um único narrador, um único assunto, cultiva a surpresa, possui a
ambição da verdade e a pretensão de propiciar uma lição ou revelar algo
(STALLONI, 2007. p. 113, 114).
Além dessa novela, Hugo escreveu outra, Claude Gueux,
publicada em 1834, na qual denunciava as condições das prisões da
França no século XIX, além da desproporção entre os delitos e as penas
aplicadas, entre elas a pena de morte8. O tema da pena de morte surgira
já há alguns anos em Han d'Islande, um dos seus chamados “romances
de juventude”, publicado em 1823. Nesse romance encontramos além de
um carrasco como personagem, a figura de Ordener, também um
condenado à morte, cujas reflexões sobre a questão já são um vislumbre
do tema que seria caro a Victor Hugo durante toda a sua vida.
A pena de morte como punição passa a figurar como um ato
desproporcional para o autor de Os trabalhadores do mar um pouco
antes de Han d'Islande, conforme atesta Adèle Hugo, esposa do escritor,
em Victor Hugo raconté par un témoin de sa vie, biografia publicada em
18739:
8 Em 19 de março de 1832, na Gazette des tribunaux, Victor Hugo lê o relatório
de um processo sobre um certo Claude Gueux, condenado à morte por
assassinato, que serve de base para a composição da novela homônima. 9 Escrita em Guernesey em 1863, em estreita colaboração com o próprio Victor
Hugo.
35
O Sr. Victor Hugo se encontrava em 1820 na Rua
Louvel indo a caminho da guilhotina. O assassino
do duque de Berry não tinha nada que despertava
simpatia: ele era gordo e forte, tinha um nariz
cartilaginoso sobre os lábios finos e olhos de um
azul vítreo. O autor da ode sobre a Morte do
duque de Berry o detestava de todo seu
ultramonarquismo de criança. Porém, ao ver este
homem que estava vivo e saudável e que iam
matar, ele não pôde deixar de protestar e sentiu a
raiva que tinha pelo assassino se transformar em
piedade pelo sofredor. Ele tinha refletido, tinha
olhado pela primeira vez a pena de morte de
frente, tinha se espantado que a sociedade fizera
ao culpado, e de sangue-frio e sem dificuldade,
precisamente a mesma coisa da qual ela o punia, e
teve a ideia de escrever um livro contra a
guilhotina. (HUGO, 1873.p. 244)10
.
O tom de espetáculo, herdado do Terror — período como ficou
conhecida a fase mais radical da Revolução Francesa entre 1792 e 1794,
quando sob a liderança de Robespierre em torno de 16000 pessoas tidas
como “inimigas da Revolução” foram guilhotinadas (LINTON, 2015)
— insuflado pela imprensa da época, conforme se verá mais a frente ao
tratar-se da gênese de O Último Dia de um condenado, a cobertura dos
jornais do Caso Ulbach, fazia com que a execução pública pela
guilhotina fizesse parte da rotina em Paris. Ademais só no ano de 1829
foram 89 condenações à pena capital, sendo 68 execuções11
. Em tal
10
M. Victor Hugo s’était trouvé, en 1820, sur le passage de Louvel allant à
l’échafaud. L’assassin du duc de Berry n’avait rien qui éveillât la sympathie ; il
était gros et trapu, avait un nez cartilagineux sur des lèvres minces et des yeux
d’un bleu vitreux. L’auteur de l’ode sur la Mort du duc de Berry le haïssait de
tout son ultra-royalisme d’enfant. Et cependant, à voir cet homme qui était
vivant et bien portant et qu’on allait tuer, il n’avait pu s’empêcher de le
plaindre, et il avait senti sa haine pour l’assassin se changer en pitié pour le
patient. Il avait réfléchi, avait pour la première fois regardé la peine de mort en
face, s’était étonné que la société fît au coupable, et de sang-froid et sans
danger, précisément la même chose dont elle le punissait, et avait eu l’idée
d’écrire un livre contre la guillotine. (Tradução minha.) 11
Disponível em: Énap.
<http://www.enap.justice.fr/ressources/index.php?rubrique=115>. Acesso em:
10/02/2016
36
contexto era natural que Hugo frequentemente se deparasse com a
prática punitiva que tanto o indignava. Adèle Hugo prossegue o seu
depoimento contando que em uma tarde de 1825 o escritor encontrou no
caminho para a biblioteca do Louvre o poeta Jules Lefèvre, que na
época estava escrevendo um poema sobre um parricida e que, portanto,
queria assistir à execução, contudo, não desejava ir sozinho, e assim o
toma pelo braço e o conduz à praça da Grève. Um certo Jean Martin que
matara o pai seria decapitado. O horror experimentado por Hugo não se
relaciona apenas com a decapitação em si, mas também com a
preparação para ela, o que reforçou a sua convicção em lutar contra a
pena de morte. Segundo Adèle, as execuções se tornaram uma
festividade, locatários convidavam amigos para as assistirem oferecendo
mesas postas com frutas e vinhos, jovens mulheres vinham às janelas
com copos na mão rindo alto, todos à espera da charrete que conduzia o
condenado (HUGO, 1873.p. 245).
A gênese de O Último Dia de um condenado encontra-se em um
episódio semelhante. Em 1827 o atendente de 20 anos de uma casa de
vinhos, Honoré-François Ulbach matou com várias facadas a jovem
Aimée Millot, pastora de cabras, um ano mais jovem, que o recusara. O
crime passional despertou grande interesse entre os parisienses e contou
com a cobertura da imprensa. O jornal Gazette des Tribunaux foi um
dos que acompanharam detalhadamente o caso, trazendo na edição de
10 de julho de 1827 a notícia sobre o ato de acusação e na de 28 de julho
a estenografia do processo. A cobertura da transferência do preso para a
prisão de Bicêtre — mesma prisão onde se encontra o protagonista da
novela de Hugo — após a apelação foi publicada em 4 de agosto, e no
dia 25 daquele mês a notícia da cassação da mesma. No mês seguinte, o
jornal publicou a matéria sobre a execução, no dia 11, e o trajeto da
charrete em direção ao cemitério de Vaugirard no dia 12 de setembro12
.
A história de Ulbach chocou tanto o público quanto Victor Hugo, que
não apenas a acompanhou pelos jornais, mas esteve presente na
execução.
A história que chegava às páginas da Gazette des Tribunaux não
era apenas a notícia em si. O jornal designara um jornalista que
informava o público por meio de um texto narrativo, no qual o seu juízo
de valor se mesclava com detalhes pitorescos sobre o acusado e as
12
Os exemplares da Gazette des Tribunaux estão disponíveis para download no
site da Énap, École Nationale d’Administration Pénitentiaire. Disponível em:
<http://www.enap.justice.fr/ressources/index.php?rubrique=112> Acesso em:
10/10/01.
37
pessoas que acompanhavam o processo. Ademais, a história por si só
chamava a atenção, já que Ulbach não possuía um histórico de
criminoso. O jovem entregou-se às autoridades uma semana após o
assassinato e o fez por remorso. Dizia-se apaixonado pela moça, a quem
matara quando esta se recusou a casar com ele. (SANSON, 1863. p.
454). Sobre a narrativa do jornalista que cobriu o caso pode-se ler na
Gazette des Tribunaux de 11 de setembro de 1827:
Chegando ao cadafalso, ele se colocou de joelhos,
recitou uma oração e subiu a escada com um
passo seguro. [...] Ulbach, sem dizer uma palavra,
se entregou ao executor e alguns segundos depois,
ele estava na eternidade!13
Adèle Hugo, na biografia sobre o marido, escreve sobre a
indignação do escritor ao ver na tarde da execução de Ulbach o carrasco
afiando a guilhotina, e de que maneira o fazia para que a lâmina se
tornasse mais eficiente:
O Senhor Victor Hugo reviu a guilhotina no dia
em que atravessava por volta das duas horas a
Praça do Hôtel-de-Ville. O carrasco repetia a
representação da noite. O cutelo não estava bom.
Ele engraxou as ranhuras e depois ele tentou
novamente. Desta vez, ele ficou contente. Este
homem que estava prestes a matar um outro, que
fazia isso em pleno dia, em público, conversando
com os curiosos enquanto que um homem
desgraçado, desesperado se debatia em sua prisão,
louco de raiva, onde se deixava ligar com a inércia
e com o entorpecimento do terror, foi para o
Senhor Victor Hugo uma figura hedionda, e a
repetição da coisa lhe pareceu também tão odiosa
quanto a própria coisa. Ele começou no dia
seguinte a escrever O Último Dia de um
13
“Arrivé au pied de l'échafàud , il s'est mis à genoux, a récité mie prière , et a
franchi l'escalier d'un pas assuré [..] Ulbach , sans dire un seul mot, s'est livré à
l'exécuteur, et quelques secondes après, il était dans l'éternité !”. (Tradução
minha).
38
condenado e o terminou em três semanas.
(HUGO, 1873.p. 246-248)14
.
Embora o próprio Victor Hugo no prefácio para a 5ª edição de O
Último Dia de um condenado diga que começou a escrever a novela no
dia seguinte à execução de Ulbach (HUGO, 2002. p. 162), há uma
discrepância de datas, conforme se pode perceber a partir daquelas da
Gazette des Tribunaux. Myriam Roman em seu ensaio Le Dernier jour d’un condamné : le style contre la rhétorique (2005, p. 3) informa que o
autor se enganara de ano, já que Ulbach foi executado em 10 de
setembro de 1827 e a redação de O Último Dia de um condenado fora
iniciada em 14 de outubro de 1828. Segundo Gustave Charlier (1915, p.
346) era costume de Victor Hugo anotar no manuscrito a data que
começava a escrever, como também a data de término.
Em 3 de fevereiro de 1829 é publicada pela editora Gosselin et
Bossange a novela de Victor Hugo, que sai sem o nome do autor,
nenhuma nota explicativa ou alguma menção que pudesse identificar
qualquer autoria. Charles Gosselin, o editor, sugeriu ao autor que ele
completasse a obra com a história do condenado, pois temia que o leitor
não compreendesse a mesma, ao que Hugo recusou, respondendo-lhe
que o tinha tomado por editor e não por colaborador15
. A recepção da
obra foi ruidosa tanto por parte do público, que esgotou rapidamente a
edição, quanto por parte da crítica que, em sua maioria, foi nada
amistosa. Sobre os ataques despertados pela obra escreve Sonja
Hamilton no artigo Fantôme littéraire de Hugo : les lendemains du
dernier jour d’un condamné :
A publicação do O Último Dia de um condenado
desde o mês seguinte suscita numerosas reações.
14
M. Victor Hugo revit la guillotine un jour qu’il traversait, vers deux heures, la
place de l’Hôtel-de-Ville. Le bourreau répétait la représentation du soir ; le
couperet n’allait pas bien ; il graissa les rainures, et puis il essaya encore ; cette
fois il fut content. Cet homme, qui s’apprêtait à en tuer un autre, qui faisait cela
en plein jour, en public, en causant avec les curieux pendant qu’un malheureux
homme désespéré se débattait dans sa prison, fou de rage, où se laissait lier avec
l’inertie et l’hébétement de la terreur, fut pour M. Victor Hugo une figure
hideuse, et la répétition de la chose lui parut aussi odieuse que la chose même. Il
se mit le lendemain même à écrire Le Dernier jour d'un condamné, et l'acheva
en trois semaines. (HUGO, 1873.p. 246-248). (Tradução minha). 15
Disponível em: http://chronologievictorhugo.com/page1829.htm Acesso:
01/10/2014. Todas as cartas de Victor Hugo estão disponíveis nesse site.
39
Alguns artigos são elogiosos, enaltecendo o
objetivo abolicionista da obra e seu sucesso.
Outras análises, as mais numerosas, criticam a
audácia de um autor cuja motivação teria sido
estética e financeira antes de ser social. Victor
Hugo é fortemente atacado apesar do sucesso
comercial de seu livro. O Journal des Débats do
dia 26 de fevereiro de 1829 qualifica seu romance
de “odioso”, “medonho”, “pavoroso” e cheio de
“horrores gratuitos”16
.
Outra crítica feita à obra apareceu no jornal La Quotidienne em
fevereiro de 1829, assinada por Jules Janin. O crítico afirmava ser “uma
agonia de 300 páginas”17
para em seguida perguntar ironicamente se “O Último Dia de um condenado se trata de um exercício literário”
(VALLOIS, 1985, p. 91). Mas talvez uma das críticas mais
contundentes foi a do jornal Globe, que acusou Hugo de plágio. Na
edição de 4 de fevereiro de 1829 o jornal retoma uma história publicada
no mês anterior pelo próprio Globe. Tratava-se de uma matéria,
originalmente publicada em um jornal americano, a qual o Globe havia
reproduzido, sobre Le Journal de Antoine Viterbi, um condenado à
morte que escrevera as suas memórias — publicadas pela Revue Britannique dois anos antes — antes de morrer ao fazer greve de fome
como forma de protesto. Segundo a matéria havia semelhanças entre a
novela de Hugo e as memórias de Viterbi.
Victor Hugo responderia a todas essas críticas em dois
momentos, o primeiro ainda no calor dos acontecimentos, ao inserir já
nas edições de fevereiro de 1829, um irônico sainete como prefácio em
16
La parution du Le Dernier jour d'un condamné dès le mois suivant suscite de
nombreuses réactions. Quelques articles sont élogieux, saluant l’objectif
abolitionniste de l’oeuvre et sa réussite. D'autres comptes-rendus, les plus
nombreux, critiquent l’audace d'un auteur dont la motivation aurait été
esthétique et financière avant d'être sociale. Victor Hugo est vivement attaqué
malgré le succès commercial de son livre. Le Journal des Débats du 26 février
1829 qualifie son roman de "odieux", "effroyable", "terrifiant," et rempli de
"gratuites horreurs." Disponível em: https://escholarship.org/uc/item/64h4x7sm#page-1 Acesso: 01/10/2014.
(Tradução minha). 17
A edição, conforme pude ver digitalizada no site da Gallica, era um livro de
formato pequeno, escrito com letras grandes.
40
resposta às críticas recebidas. Posteriormente, três anos depois, na 5ª
edição da obra, Hugo rebateria as questões em um longo prefácio.
Do ponto de vista das publicações, o mês de fevereiro de 1829 foi
bastante profícuo para O Último Dia de um condenado, contando com
quatro edições em pouco mais de 20 dias. Segundo Guy Rosa (HUGO,
2014. p. 275) o dia 3 de fevereiro é a data de publicação da primeira
edição, mesma data apontada por Myriam Roman (2005, p.1), Claudine
Nédélec18
e Sonja Hamilton (2001, p, 84). Gustave Simon (HUGO,
1910, p.11), por sua vez aponta o dia 7 de fevereiro como sendo a data
da primeira edição. Contudo, a crítica do Globe é do dia 4 daquele mês,
o que torna mais razoável o dia 3 de fevereiro como data da publicação
original. Entretanto, talvez a data apontada por Gustave Simon não
esteja totalmente equivocada. Guy Rosa (HUGO, 2014. p. 275)
estabelece o dia 28 de fevereiro como sendo o dia em que se publicam
as 3ª e 4ª edições de O Último Dia de um condenado, as quais, portanto,
saíram ao mesmo tempo, talvez em razão do sucesso de público das
duas anteriores.
Aliás, são nessas edições que a obra deixa de ser anônima,
figurando na capa o nome de Victor Hugo, além de trazerem o célebre
sainete Uma comédia a propósito de uma tragédia, que passou a ser
conhecido como Prefácio de 1829. Roman, Nédélec e Hamilton
corroboram a afirmação de Rosa, ao passo que Simon se não dá uma
data para a terceira edição — e não menciona uma quarta —, coincide a
informação do prefácio em forma de sainete. Assim, é unânime entre
todos, menções à primeira, terceira e quarta edições, mas não à segunda.
Considerando que a 1ª edição se esgotou rapidamente19
, podendo ter
sido uma tiragem modesta; haja vista a tentativa de intervenção do
editor na obra; a crítica do dia seguinte à publicação no jornal Globe; e a
atmosfera inquieta na época em razão da pena de morte, pode-se
conjecturar que tenha havido um engano por parte de Gustave Simon e
que, na verdade, o que ele apontou como 1ª edição, possa ser a segunda.
A novela de Hugo ainda teria uma quinta edição, surgida em
1832 e contando com um longo prefácio do próprio autor, no qual o
escritor retoma a gênese da obra, as polêmicas da época de sua edição
original, além de se posicionar contra a pena de morte.
18
Disponível em: Les Dossiers du Grihl
http://dossiersgrihl.revues.org/328?lang=fr#bodyftn36 Acesso em: 01/06/2015. 19
Não se sabe o número de exemplares impressos, pelo menos não encontrei
essa informação nas pesquisas feitas. Mesmo a edição original disponível no
site da Gallica não traz a tiragem.
41
É, portanto, em meio a esse contexto e entre Cromwell e Hernani
que veio à luz O Último Dia de um condenado, obra que, se não chega
ser um “chef d’oeuvre” do grande escritor francês20
, aponta os grandes
temas que perpassariam a sua obra inteira, tais como a luta pela
liberdade e pela justiça. Myriam Roman (1999, p. 265) situa O Último
Dia de um condenado como a primeira obra de Hugo a colocar em cena
os “miseráveis” do século XIX, a que se seguiria o Prefácio de 1832 e
Claude Gueux (1834), chegando ao ápice com Les Misérables (1862).
20
Notre Dame de Paris seria publicado dois anos depois, Os Miseráveis em
1862 e Os Trabalhadores do mar em 1866.
42
CAPÍTULO II
ANÁLISE DOS ELEMENTOS PARATEXTUAIS EM O
ÚLTIMO DIA DE UM CONDENADO
2.1. O paratexto: o limiar do texto literário
Toda obra literária não se encerra ao final do texto em si. Ela se
prolonga em outros textos que a circundam, como as orelhas de um
livro, por exemplo, e também em textos que não fazem parte do objeto
livro, como a fortuna crítica de uma obra. Esse texto que se prolonga
pode influenciar na leitura e consequente fruição de uma obra.
Ao final dos anos 60 do século passado o crítico alemão Hans-
Robert Jauss, com a sua Estética da Recepção, desloca o significado do
texto para o leitor. Segundo Jauss
A obra que surge não se apresenta como novidade
absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio
de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços
familiares ou indicações implícitas, predispõe seu
público para recebê-la de uma maneira bastante
definida. Ela desperta a lembrança do já lido,
enseja logo de início expectativas quanto a “meio
e fim”, conduz o leitor a determinada postura
emocional e, com tudo isso, antecipa um
horizonte geral da compreensão vinculado, ao
qual se pode, então – e não antes disso –, colocar
a questão acerca da subjetividade da interpretação
e do gosto dos diversos leitores ou camadas de
leitores. (1994, p. 28)
A recepção de uma obra, a sua compreensão, ou interpretação
talvez seja melhor, vai depender de como o leitor interage com ela, que
outras leituras ele possui, se conhece ou não o autor, que tipo de relação
é construída entre autor, obra e leitor. Esse diálogo estabelecido por
quem lê, e que vai dar um significado à obra naquele momento, também
está sujeito às condições sócio históricas que formularam as diversas
interpretações que a obra recebeu, e assinala que o discurso é o resultado
de um processo de recepção ao mover a pluralidade dessas estruturas de
sentido historicamente mediadas.
Assim, se esses textos todos são determinantes para a leitura de
uma obra, aqueles outros que a gravitam também o podem ser. A capa
de um livro, as inserções de notas, de um prefácio, de um ensaio podem
43
influenciar a recepção da obra pelo leitor. Uma instância paratextual
como o título de uma obra pode fazer toda a diferença. Genette
questiona se o Ulisses de James Joyce tivesse outro título se o leríamos
da mesma forma que o lemos. O título escolhido por Joyce estabelece
não apenas a intertextualidade com o poema épico A Odisseia, de
Homero, mas também um diálogo com toda a tradição literária ocidental
desde a antiguidade. Com esse exemplo, Genette procura demonstrar a
pertinência de um paratexto para a recepção da obra pelo seu leitor. Por
essa razão se faz importante o estudo do entorno de uma obra. Entende-
se por paratexto, portanto, todo o texto que circunda o texto literário, é
todo o texto que de alguma forma mantém relação com o texto
primordial, a partir do qual ele surge e sobre o qual trata.
Em Paratextos Editoriais Gérard Genette (2009, p. 12) chamará
peritexto tudo aquilo que se constitui enquanto texto no livro. Nessa
condição encontramos o título da obra, subtítulo, nome do autor, da
editora, prefácio, dedicatória, epígrafe, notas de rodapé e notas finais,
orelhas do livro, contracapa, enfim, todas as informações periféricas
encontradas no livro. Exteriormente, para além do livro, Genette se
refere a epitexto (idem). Nessa categoria encontramos a peças
publicitárias, artigos sobre a obra publicados em outros meios, resenhas
críticas, entrevistas, citações. Assim, para o crítico francês, o conjunto
composto por peritexto e epitexto formam os paratextos de uma obra.
A obra de Victor Hugo abordada nesse trabalho é rica em
peritextos, já que conta com três prefácios, notas de rodapé, uma nota
final que dialoga com um anexo, além das habituais capa, contracapa e
orelha do livro. Passo agora a instância prefacial, espaço polêmico em O
Último Dia de um condenado.
2.2. O prefácio
Gérard Genette (2009. p.145) dedica o capítulo “A instância
prefacial” ao estudo do prefácio enquanto um dos mais significativos
componentes paratextuais. O crítico francês percorre um longo caminho
a fim de traçar um histórico desse gênero textual, partindo de Homero e
chegando à Rabelais, período que denomina de pré-história do prefácio,
quando estes eram ainda simples e breves. Genette demonstra em seu
estudo que a natureza do prefácio vai se alterando com o passar do
tempo, sendo possível em decorrência disso perceber as modificações
das ideias literárias, já que em muitos prefácios é perceptível a datação
temporal. A exemplo disso pode-se citar a obra inaugural do
44
romantismo no Brasil, Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves de
Magalhães. Seu prefácio introduz os preceitos românticos no país e,
curiosamente, é por ele e não por seus poemas que o autor chega à
posteridade no sistema literário brasileiro. Ademais, foi justamente no
período romântico que os prefácios e demais paratextos sofreram as
modificações mais profundas, como o demonstra Genette no subcapítulo
Pré-História de Paratextos Editoriais (2009. p. 146-152).
A estética romântica fez dos prefácios algo mais do que um
mero introito à obra, ela o modernizou dando-lhe em muitos momentos
a forma de manifesto ou mesmo de definição de um gênero, conforme
atesta o prefácio apresentado por Victor Hugo em seu drama Cromwell, o qual trazia à luz os pilares fundamentais do romantismo. O autor de
Os Miseráveis, aliás, é também um dos responsáveis por fazer do
prefácio um texto engajado. Esse engajamento ocorria no sentido de
“propor” um leitor ideal, seja através de uma pretensa subjetividade
confessional, caso do prefácio de Les Contemplations (1856), seja
através de uma aproximação com o leitor que passa a possuir, via
originalidade do autor, uma suposta liberdade individual, caso do
primeiro prefácio de O Último Dia de um condenado.
No caso de Les Contemplations é informado ao leitor que os
poemas que se seguirão são, com efeito, as impressões de “todas as
lembranças, realidades, fantasmas vagos e fúnebres” (HUGO, 2006. p.
8.) que carrega o autor. Nesse contexto, caso pudesse influenciar a
disposição do espírito dos leitores, diz Hugo, esse autor se limitaria a
dizer que “esse livro deve ser lido como se lêssemos o livro de um
morto (Idem). O que se configura nesse tipo de prefácio é um anúncio da
leitura, a qual direciona o leitor a uma "boa interpretação", ou seja, é
nesse espaço que o autor pode fornecer informações que entende serem
necessárias para a maneira como ele quer que a obra seja lida. Assim,
esse tipo de prefácio orienta ou até “escolhe” o leitor da obra, retendo-o,
como diz Genette, em “um processo tipicamente retórico de persuasão”
(GENETTE, 2009. p. 176). O outro tipo de prefácio abordarei no
capítulo a seguir.
Antes, entretanto, se faz necessário abordar os três tipos de
prefácio definidos por Genette. São eles o prefácio autoral, o prefácio
alógrafo e o prefácio actoral, podendo ser dos tipos autêntico, fictício e
apócrifo.
O prefácio autoral é aquele escrito pelo autor da obra. Se esse
autor for real, caso do citado prefácio para Cromwell, assinado pelo
próprio Victor Hugo, temos um prefácio autoral autêntico. Caso o autor
45
seja fictício e assine o prefácio, teríamos então um prefácio autoral
fictício. Genette dá como exemplo Laurence Templeton, que assina o
prefácio de Ivanhoé, de Walter Scott. Nesse caso, Laurence Templeton
foi um pseudônimo usado por Scott. Já um prefácio falsamente atribuído
a uma pessoa real, também autora da obra, nos daria o prefácio autoral
apócrifo. Genette cita como exemplo o caso de Rimbaud para La Chasse Spirituelle
21.
O prefácio alógrafo é aquele em que uma terceira pessoa prefacia
o livro de outra. Caso o prefaciador seja uma pessoa real o prefácio é
alógrafo autêntico. Essa modalidade é bastante comum, há várias obras
que são prefaciadas por escritores, por exemplo. Genette cita o prefácio
de Jean Paul Sartre para Portrait d’un inconnu, de Nathalie Sarraute. No
caso desse prefácio ser escrito por uma pessoa imaginária, temos então o
prefácio alógrafo fictício. E no caso de termos o prefácio atribuído
falsamente a uma pessoa real temos o prefácio alógrafo apócrifo.
A última modalidade apontada por Genette é o prefácio actoral, feito por um personagem da obra. Esse é um prefácio relativamente
clássico, diz Genette (2009, p. 168). O prefácio de Memórias Póstumas
de Brás Cubas é um exemplo, já que quem “escreve” as memórias é o
próprio Brás Cubas. Em casos como esses, o que se teria é então o
prefácio actoral fictício. Quanto às duas outras categorias, actoral autêntico e actoral apócrifo, Genette admite a “falta de exemplos reais
bem comprovados”, o que é suficiente para “não voltar à categoria dos
prefácios apócrifos”. O Prefácio actoral autêntico se apresentaria em
uma autobiografia, por exemplo.
Ao passar aos prefácios de O Último Dia de um condenado se
buscará além das configurações próprias de cada prefácio, situá-los à luz
das classificações de Genette para a instância prefacial, conforme se
acabou de explicitar.
2.3. Os prefácios em O Último Dia de um condenado
21
Em 1949 o crítico Pascal Pia apresentou na revista Mercure de France o
inédito de Rimbaud La Chasse Spirituelle, muito procurado por pesquisadores.
Paul Verlaine dizia que o texto estava junto com cartas trocadas com Rimbaud e
que teria ficado em poder de sua esposa Mathilde, que as utilizou para obter o
divórcio do marido. Entretanto, André Breton demonstrou em Flagrant délit,
publicado quase que imediatamente no Le Figaro, ser o texto uma fraude. Em
seguida, os comediantes Akakia-Viala e Nicolas Bataille admitiram a autoria do
texto. (BRETON, 1999, p. 790).
46
No prefácio para a primeira edição de O Último Dia de um
condenado percebemos certa liberdade de escolha por parte do leitor no
que se refere à autoria do livro. Contudo, essa liberdade é limitada, já
que é ela é “dada” pelo autor. A suposta liberdade oscila então entre
duas possibilidades apresentadas pelo autor, conforme se pode perceber:
Há duas maneiras de se considerar a existência
desse livro. Ou realmente existiu um maço de
papeis amarelados e desiguais nos quais se
encontravam registrados, um a um, os últimos
pensamentos de um miserável; ou houve um
homem, um sonhador ocupado em observar a
natureza em proveito da arte, um filósofo, um
poeta — quem sabe? —, para quem tal ideia foi a
fantasia que o tomou, ou melhor, deixou-se tomar
por ela, e não pode dela se desembaraçar senão
lançando-a num livro.
Dessas duas explicações, o leitor poderá escolher
aquela que preferir. (HUGO, 2002. p. 159).
Esse brevíssimo prefácio, reproduzido aqui integralmente, foi
publicado na primeira edição da obra em 1829, a qual não trazia o nome
do seu autor. O Prefácio da 1ª edição, como ficou conhecido, não trazia
nenhuma nomeação, nenhuma indicação de tratar-se de um prefácio.
Hugo simplesmente situou o texto imediatamente antes do início da
trama, configurando-o, dessa forma, um prefácio, já que, segundo a
definição de Genette para esse tipo de texto, “[o prefácio] consiste num
discurso a propósito do texto que segue ou que antecede o próprio texto”
(GENETTE, 2009, p. 145). Com a ilusão da realidade, Hugo buscava o
efeito de veracidade tão ao gosto dos romances do século XIX,
estratégia que Goethe já utilizara no romance epistolar Os sofrimentos do jovem Werther (1774). Assim, como O Último Dia de um condenado
foi escrito como um libelo contrário à pena de morte, o prefácio
funciona como corroboração dessa intenção, já que ele propõe ao leitor
um jogo, o qual consiste na confusão entre realidade e ficção. Claudine
Nédélec aborda essa questão ao falar em dois níveis de leitura possíveis
dessa obra de Hugo:
[...] a um primeiro nível de leitura, ele conduz a
tomar o texto ficcional por um texto real, logo
postular como verdadeiras e existentes todas as
referências do texto (lugares, fatos, personagens,
47
“papeis amarelos e desiguais”...) “Efeito do real”.
[...] Uma segunda leitura postula então a
existência de um autor escondido que quer
confundir-nos ou fazer-nos admirar sua habilidade
de jogar com as convenções romanescas...22
.
O objetivo político almejado por Victor Hugo com a novela foi
atingido, caso consideremos o rápido esgotamento da primeira edição e
os muitos debates e críticas que suscitou. E ainda que a maioria delas
fossem negativas, a exemplo da feita pelo Journal des Débats, que
classificou O Último Dia de um condenado como “odioso e pleno de
horrores gratuitos”, conforme nos deixa ver Sonja Hamilton23
, a questão
da pena de morte esteve na ordem do dia naquele mês de fevereiro de
1829 com certo destaque, se pode arriscar em afirmar, em função
também do texto de Victor Hugo. Portanto, o primeiro prefácio é muito
importante considerando a natureza militante da obra, visto que ele
“orienta” o leitor em direção a um “leitor ideal” que, segundo as suas
posições ética e política, deveria ser sensibilizado para a questão
abordada na novela.
No dia 28 de fevereiro de 1829, exatos 25 dias depois da
primeira publicação, a terceira edição de O Último Dia de um
condenado é publicada em Paris. Essa edição, que mantém o prefácio
original, difere da primeira em dois pontos: ela traz o nome do autor e
apresenta um sainete como texto adicional.
Esse curto drama burlesco intitulado “Uma comédia a propósito
de uma tragédia” ficou conhecido como o Prefácio de 1829, e é aceito
pelos estudiosos24
da obra como sendo o segundo prefácio de O Último
22
[...] à un premier niveau de lecture, il conduit à faire prendre le texte
fictionnel pour un texte réel, et donc à postuler comme vrais et existants tous les
référents du texte (lieux, faits, personnages, « papiers jaunes et inégaux »…). «
Effet de réel ». [...] Une seconde lecture postule donc l’existence d’un auteur
caché, qui veut nous faire prendre des vessies pour des lanternes, ou nous faire
admirer son habileté à jouer avec les conventions romanesques… Disponível
em: Les Dossiers Grihl. http://dossiersgrihl.revues.org/328?lang=fr#bodyftn36
<Acesso em: 01/06/2015>. (Tradução minha). 23
Disponível em: <https://escholarship.org/uc/item/64h4x7sm#page-1> Acesso
em: 08/04/2015. 24
Cito aqui Claudine Nédélec, docente na Université d’Artois, Sonja Hamilton
da John Hopkins University, de Baltimore, Júnia Barreto, docente na UnB e
coordenadora do núcleo de estudos Victor Hugo e o século XIX, além de Guy
Rosa, professor emérito da Université Paris Diderot, conhecido pelos ensaios e
48
Dia de um condenado. Escrito em forma de paródia à Escola de
Mulheres, de Molière, o texto responde ironicamente as críticas reais
surgidas do sucesso imediato, mas escandaloso do livro. Hugo coloca
personagens caricatos — Um poeta elegíaco; O cavaleiro; As senhoras;
O senhor gordo; O filósofo; entre outros — todos burgueses,
escandalizados com o livro e tecendo críticas negativas ao mesmo:
A senhora de Blinval
De fato é um livro abominável, um livro que
provoca pesadelos, um livro que deixa doente.
O senhor gordo
[...] Meu deus, que ideia horrível! Esmiuçar,
remexer, analisar [...] todos os sofrimentos físicos,
todas as torturas morais que deve suportar um
homem condenado à morte, no dia de sua
execução! (HUGO, 2002. p. 14, 15).
A fala d’O senhor gordo deixa ver claramente as intenções do
autor ao publicar a novela. O que Hugo esmiúça de fato são as técnicas
empregadas no discurso a fim de sensibilizar o leitor para a sua causa.
Ao mostrar os sofrimentos do condenado, o qual não se sabe quem é e
nem qual crime cometeu, Hugo “humaniza” o suposto criminoso,
chamando a atenção para o que na visão do escritor era uma crueldade.
Aliás, é justamente esse detalhe, fartamente criticado naqueles dias, de
nada ser revelado sobre o protagonista e o seu crime, a razão principal
de o texto funcionar enquanto texto engajado. Victor Hugo não trata
explicitamente dessa questão pertencente ao âmbito do discurso textual,
mas a expõe na fala de um dos personagens, reproduzindo assim uma
das muitas críticas que a obra recebeu:
O poeta
Como poderia interessar? Cometeu um crime e
não sente remorsos. Eu teria feito totalmente o
contrário. Teria contado a história do meu
condenado. Nascido de pais honestos. Uma boa
educação. Amor. Ciúme. Um crime que não é um
crime. E depois remorsos, remorsos, muitos
remorsos. Mas as leis humanas são implacáveis:
ele deve morrer. E então eu teria tratado a minha
organizações de obras de Victor Hugo, sendo também o criador e administrador
do site sobre Victor Hugo da mencionada Universidade.
49
questão da pena de morte. E já não era sem tempo.
(HUGO, 2002. p. 21).
As palavras colocadas ironicamente na boca de um poeta
possuem, portanto, uma conotação que vai além da crítica à hipocrisia
burguesa. Ela aponta para uma discussão literária também, à medida que
um dos ataques feitos pela crítica era de que a obra era mal escrita, já
que nada se sabia sobre o protagonista e o seu crime, pois “não havia um
passado”. Nesse sentido, O Último Dia de um condenado é uma obra
que também se contrapõe a uma determinada tradição, a determinadas
regras do “bem escrever”, do que se entendia por “bom gosto”.
A importância desse segundo prefácio reside, portanto, não só
na discussão literária nele interposta, mas também enquanto um texto
que dialoga, apresenta e repercute a própria obra. Mesmo que não seja
um texto de gênero ensaístico, como também pode ser um prefácio, haja
vista que Hugo utiliza-se do gênero dramático para expor as questões
intrínsecas de um prefácio. Nesse aspecto, o chamado Prefácio de 1829
cumpre com o que Jacques Leenhardt chamou de “tarefas de um
prefácio”. Assim, e fazendo uso das palavras do crítico francês, pode-se
dizer que o segundo prefácio de O Último Dia de um condenado afirma
a novidade do projeto, insere a obra na discussão intelectual e a legitima
através de citações ou ainda descreve os momentos essenciais da
argumentação exposta no texto (LEENHARDT. 2007. p. 145), o que é
feito através da fala dos personagens.
Três anos após a querela envolvendo a recepção da novela, uma
quinta edição de O Último Dia de um condenado é publicada. Nela,
Hugo acrescenta um terceiro prefácio, que ficou conhecido como
Prefácio de 1832. Esse texto inicia com a retomada da primeira edição
ao reproduzir integralmente o breve primeiro prefácio de 1829, o que
serve de ponto de partida para uma análise por parte de Hugo sobre a
recepção da obra e a intenção por trás do anonimato:
[...] na época em que esse livro foi publicado, o
autor não julgou propositado dizer desde o início
todo o seu pensamento. Preferiu esperar que ele
fosse compreendido, e ver se realmente o seria. E
foi. Hoje o autor pode desmascarar a ideia
política, a ideia social, que quis difundir sob essa
inocente e cândida forma literária. [...] ele declara
que O Último Dia de um condenado nada mais é
que a defesa, direta ou indireta, como quiserem,
50
da abolição da pena de morte. (HUGO, 2002. p.
159,160).
Durante trinta páginas o autor de Notre-Dame de Paris
empreenderá uma elevada e não menos digna reflexão acerca da pena de
morte. Hugo faz um histórico de tal prática, sua aplicação na França, a
sua radicalização durante o período do Terror, sua experiência pessoal
como espectador nos “espetáculos” da praça da Grève, onde as
execuções pela guilhotina ocorriam. O escritor francês procurará
mostrar, segundo assim compreendia, o ato selvagem, cruel e insensato
que era a pena de morte, para então defender os valores humanistas, da
civilização e o direito à vida.
Cumpre dizer que a reflexão empreendida por Victor Hugo
sobre a abolição da pena de morte — cuja abolição de fato ocorreu em
1830 com a Revolução de Julho, sendo, contudo, retomada no II
Império —, presente no terceiro prefácio perpassa durante todo o
instante a novela publicada três anos antes. Uma das riquezas desse
texto é justamente a análise que o próprio autor faz do diálogo entre a
obra, o momento histórico e a sociedade francesa da época em que se
debatia essa questão. Aliás, esse foi um debate de 200 anos. Em 1791,
Louis-Michel Lepeletier de Saint-Fargeau, relator do código penal,
apresentou pela primeira vez uma moção de abolição à pena de morte, a
qual foi derrotada em plenário. Somente em 1981 a França veria abolida
de vez a pena de morte, quando o presidente eleito François Miterrand
cumpre uma das promessas de sua campanha. (BADINTER, 2006. p.
12).
Além da lucidez com que Hugo empreende a sua análise, o
Prefácio de 1832 deixa ver algo não menos interessante. O caráter
militante, engajado, em defesa de uma causa, que aparece disfarçado em
ficção na novela — sendo que para que ocorra a sua compreensão como
tal, faz-se necessário um leitor que ultrapasse níveis iniciais de leitura —
surge então desnudo no texto da 5ª edição, com um Hugo retomando
ponto por ponto as suas intenções iniciais explicitamente.
Os três prefácios de O Último Dia de um condenado são
fundamentais para o enriquecimento tanto da leitura quanto do estudo da
obra, a qual mesmo não estando inserida no seleto grupo que
transformaria Victor Hugo em um dos patrimônios da cultura ocidental,
mostra-se ainda assim de inegável valor, não apenas literário, mas
também enquanto manifesto político. A abolição da pena de morte foi
uma questão que acompanhou o Victor Hugo escritor, intelectual,
51
cidadão e político durante toda a sua vida. A restauração da pena em
junho de 1848 impingiu uma derrota política a um grupo de deputados
que tinha nessa questão a figura de Victor Hugo como líder. O Último Dia de um condenado foi ao lado de Claude Gueux um dos principais
textos escritos pelo autor d’Os trabalhadores do mar sobre o tema.
Outros se seguiram, tanto no âmbito literário caso de L’Affaire Tapner25
,
quanto no âmbito político.
Muitos desses textos, como também trechos e o entorno da
polêmica de 1829 sobre a obra, foram evocados no parlamento francês
mais de 100 anos depois, quando da definitiva abolição da pena de
morte naquele país no ano de 1981. Esse fato demonstra a força e
pertinência de um texto que resistiu à datação de época.
Em relação à classificação de Genette para os prefácios, pode-se
dizer que o prefácio à edição original pode ser tanto alógrafo fictício ou
autoral autêntico. Já o segundo e o terceiro prefácios, Prefácio de 1829 e
Prefácio de 1832, respectivamente, são ambos autorais autênticos.
A ambiguidade de gênero do prefácio à primeira edição se dá em
razão do conteúdo ambíguo desse prefácio. Relembremos que são dadas
duas possibilidades de leitura para esse prefácio, considerar a narrativa
como um relato real ou como obra de ficção. Caso o leitor escolha ter
sido o prefácio escrito pelo editor da obra, e creia no relato como
verdadeiro, então temos um prefácio alógrafo autêntico, mesmo que o
autor do prefácio permaneça anônimo. Caso contrário, que o prefácio
tenha sido escrito por um editor fictício, criado pelo autor, estamos
diante de um prefácio alógrafo fictício. A situação não muda a partir da
terceira edição de O Último Dia de um condenado, quando o nome de
25
John Charles Tapner foi condenado à morte por ter em 18 de fevereiro de
1853, assassinado e roubado um habitante de Guernesey. Victor Hugo escreveu
uma carta de protesto ao povo de Guernesey datada de 10 de janeiro de 1854,
em nome do criminoso, na qual afirmava o valor da fraternidade e contra o que
entendia ser uma crueldade. A carta publicada nos jornais La Nation e
L’Homme tão logo a petição enviada para Lord Palmerston, Secretário de
Estado do Interior, permitiu apenas o adiamento de alguns dias ao delinquente
que foi enforcado em condições particularmente atrozes em 10 de fevereiro. No
dia seguinte, Hugo enviou uma carta ao ministro britânico em que ele
denunciou a pena de morte e o horror da execução. A carta dirigida aos
habitantes de Guernesey e a petição a Lord Palmerston, acompanhada de uma
reflexão de Hugo sobre o caso, ficou conhecido como O caso Tapner. É comum
na França os três textos, O Último Dia de um condenado, Claude Gueux e O
caso Tapner serem publicados em um mesmo volume.
52
Victor Hugo aparece na capa. Se o relato for lido como real, cabendo a
Hugo a sua organização, por exemplo, o autor do prefácio ainda
permanece anônimo. Poderia ser o editor de Hugo, configurando assim
um prefácio alógrafo autêntico. Porém se o leitor considerar o relato
como ficção, e sabendo agora a identidade do autor, e o considere como
o autor do prefácio, estamos diante de um prefácio autoral autêntico. E
caso não considere o autor, mas um terceiro, o editor talvez, o autor do
prefácio, mantém-se o prefácio alógrafo autêntico.
No que diz respeito ao Prefácio de 1829, o da terceira edição, a
qual já apresenta o nome de Victor Hugo na condição de autor da
novela, temos então um prefácio autoral autêntico. Da mesma forma o
Prefácio de 1832, da quinta edição, esse assinado por Hugo, inclusive.
Também se trata de um prefácio autoral autêntico.
2.4. Os prefácios em O Último Dia de um condenado nas edições
brasileiras
No Brasil, no qual o debate sobre a volta da pena capital se tenta
vez por outra retomar, a tradução de O Último Dia de um condenado de
Victor Hugo é algo pertinente a ser estudado. A exemplo da França, a
pena de morte no Brasil foi abolida e restaurada diversas vezes na
história do país, fazendo-se ausente desde 1978 quando foi abolida pela
anistia civil-militar, sendo considerada cláusula pétrea a partir da
Constituição 1988. Cabe dizer que também faz parte do estudo da
inserção no sistema literário brasileiro dessa novela de Victor Hugo os
seus prefácios em virtude da sua importância para a obra, em particular
o de 1832, haja vista que também extrapolaram a sua natureza literária.
Como eles integram ou não as quatro traduções da novela de Victor
Hugo no português brasileiro é ao que passo agora a abordar.
Dentre as quatro traduções da obra para o português do Brasil, a
primeira delas, publicada, pela Editorial Moderna Paulistana é a que
mais difere das outras, a começar pela ausência de data e nome do
tradutor. Entre as quatro, essa edição é a mais antiga delas e integra a
Coleção Biblioteca de Romances Célebres, cuja publicação de algumas
obras data dos anos 30 do século passado. Essa primeira tradução de O
Último Dia de um condenado encontra-se “escondida” na obra Noivado
Trágico de Émile Zola. No que se refere aos prefácios, nenhum deles
consta na tradução, nem mesmo o curto prefácio da edição
originalmente publicada em 1829.
53
É bastante difícil chegar às razões dessa supressão, pois além da
distância temporal, a editora não mais existe, o que dificulta o acesso a
alguma informação oficial. Ademais, o Brasil carece de um banco de
dados que contemple edições antigas a exemplo do Gallica, ligado à
Bibliothèque Nationale de France. Os arquivos da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro são insuficientes em casos como esse. Contudo, é
possível conjecturar algumas coisas. O que parece pertinente supor em
um primeiro momento é que houve por parte da editora um completo
descaso para com a obra. Tal suposição é possível a julgar pela
supressão dos prefácios, além da não informação de que ao romance de
Zola segue-se uma novela de Victor Hugo.
Em relação à ausência dos prefácios, parece ser esse um
procedimento comum nas editoras brasileiras até os anos 60 do século
passado. Um estudo mais aprofundado sobre o tema se faz necessário.
Ainda que não seja esse o foco da presente pesquisa, consultei algumas
obras do próprio Victor Hugo anteriores aos anos 60 e pude averiguar a
inexistência de prefácios. Tal recorte apenas aponta uma tendência, visto
que se trata de um autor bastante conhecido. No caso específico de O
Último Dia de um condenado, os prefácios são importantes para a obra.
O primeiro, aliás, é bastante curto, não ocupando sequer uma página, o
que poderia eliminar a justificativa de tratar-se de uma questão de
espaço. Caso seja de fato essa a edição que introduz a obra no Brasil,
pode-se afirmar que a primeira geração de leitores de O Último Dia de
um condenado em português brasileiro não o leu integralmente,
considerando a particularidade desse primeiro prefácio, pois ele não
apenas anuncia a obra, mas chega a ser parte dela.
O fato da novela de Hugo dividir a edição com outra obra, com
um autor diferente a quem lhe é dado a capa, sem nenhuma informação
de sua existência até a página 207, pode ser suficiente para caracterizar
o descaso. Entretanto, não se pode deixar de considerar que essa poderia
ser a proposta da coleção Biblioteca de Romances Célebres, ou seja,
brindar o leitor com uma obra considerada menor de um autor
consagrado. Todavia, ao consultar outras obras26
da mesma coleção, três
delas para ser mais exato, não se encontrou caso semelhante, o que nos
leva a concluir que apenas na edição de O noivado trágico ocorre essa
situação.
26
O Judeu Errante, de Eugène Sue; Recordações da Casa dos Mortos, de
Fiodor Dostoïeviski; Os Moicanos de Paris, de Alexandre Dumas.
54
A segunda edição aporta a tradução assinada por Annie Paulette
Marie Cambe e foi publicada em 1995 pela editora Newton Compton.
Tem o título traduzido por O Último Dia de um condenado à morte e no
que tange aos prefácios, traz apenas o segundo e o terceiro. O prefácio
original foi suprimido, aparecendo, contudo, inserido no terceiro
prefácio, mas na condição de citação.
Ao optar pela inserção dos prefácios originais a edição da
Newton Compton propicia ao leitor monolíngue de Victor Hugo uma
leitura mais enriquecedora, já que lhe permite o acesso a uma visão mais
ampla sobre a obra, o tema e a sua história, visão essa limitada pela
ausência dos prefácios na edição da Editorial Moderna Paulistana.
Os prefácios dessa edição de 1995 são apresentados em ordem
invertida, aparecendo primeiro o terceiro prefácio, o chamado Prefácio
de 1832 e em seguida o segundo, de 1829, Uma comédia a propósito de uma tragédia. Com essa disposição, de privilégio do prefácio-ensaio de
1832, a edição da Newton Compton não apenas contextualiza o leitor
quanto às polêmicas que envolveram a obra na época de seu lançamento
original, mas também pode induzir o leitor a um determinado ponto de
vista, no caso o do autor, que nele se posiciona contrário à pena de
morte.
Já no que tange ao segundo prefácio na ordem de aparecimento
na edição, é possível pensar em um certo ganho por parte do leitor que
está tendo o primeiro contato com a obra, isso em razão da ordenação
dos prefácios. Caso fosse mantida a ordem cronológica, é possível que o
leitor encontrasse na leitura do Prefácio de 1829 alguma dificuldade, já
que ele não estaria contextualizado sobre as querelas envolvendo a
publicação original de O Último Dia de um condenado. Tal
contextualização é possível, entretanto, a partir das observações feitas
por Hugo no Prefácio de 1832. Nesse cenário, a edição da Newton
Compton exige também um leitor atento, capaz de identificar no
Prefácio de 1829, via metáforas e ironias, as questões abordadas no
Prefácio de 1832, que antecede na edição aquele, conforme
mencionado.
Já em relação à supressão do Prefácio da 1ª edição, é possível
que não houvesse no projeto de tradução para essa segunda edição de O
Último Dia de um condenado no Brasil, muita preocupação com o leitor
mais ingênuo. Ao suprimir o prefácio da edição original a possibilidade
de ter um leitor que hesite entre um relato verdadeiro e a ficção,
praticamente desaparece, ainda que porventura se possa entender que
um leitor nesses moldes é atualmente mais raro.
55
A terceira edição de O Último Dia de um condenado aparece no
mercado editorial brasileiro sete anos depois, em 2002, publicada pela
Editora Estação Liberdade, com tradução de Joana Canêdo.
Diferentemente da Newton Compton a Edição da Estação Liberdade
escolheu apenas um prefácio antes do texto literário, optando pelo
segundo, aquele intitulado Uma comédia a propósito de uma tragédia.
A exemplo de sua predecessora, a Estação Liberdade também suprime o
prefácio original e com ele o jogo ilusão/real destinado ao leitor. Esse
prefácio aparece, portanto, somente na condição de citação quando
reproduzido inteiramente no Prefácio de 1832 — conforme já
mencionado —, e que surge aqui depois da trama, portanto na posição
de posfácio.
Dada a natureza do prefácio original, a qual se configura na
“ilusão do real” e que, devido a isso, pode ser compreendido como parte
integrante da história do condenado, é possível conjecturar que apenas o
leitor mais atento, ou então aquele conhecedor da obra, perceberá pelas
linhas que abrem o Prefácio de 1832 que a citação que segue trata-se de
um prefácio. Além do que, não fica claro nas linhas iniciais desse
prefácio-ensaio que a citação a seguir pertence à primeira edição, pois se
fala em “primeiras edições”:
Na abertura das primeiras edições desta obra,
publicada inicialmente sem nome de autor, havia
as poucas linhas que seguem: [citação do 1º
prefácio]. (HUGO, 2002. p. 159).
Também não fica claro ao leitor de primeira viagem se as “linhas
que seguem” estão presentes apenas na abertura das primeiras edições
da obra e não nas subsequentes. Ainda mais que tal citação não é
encontrada pelo leitor na abertura do exemplar que ele tem em suas
mãos. Como não há nenhuma nota que contextualize e explicite a
condição de primeiro prefácio dessa citação, tal informação se perde
para esse leitor que tem acesso ao O Último Dia de um condenado
apenas pela edição da Estação Liberdade, o mesmo valendo para o da
Newton Compton. A confusão pode agravar-se com as próprias linhas
iniciais do Prefácio de 1832, já que nas primeiras edições em que
constava essa agora citação, não havia nome de autor. Assim, quem a
escreveu? O próprio autor?
Por qual razão a mais cuidadosa, a mais rica em paratextos das
edições de O Último Dia de um condenado publicada no Brasil fez tal
opção parece uma pergunta pertinente. Como a ideia aqui não é
56
estabelecer uma crítica puramente negativa, mas sim procurar entender
as razões que possam explicar certas questões, creio que o aporte teórico
de Antoine Berman pode ser útil.
Em Pour une critique des traductions : John Donne, o teórico
francês refere-se a um “horizonte de tradução”, o qual, segundo ele,
seria o conjunto de parâmetros linguísticos, literários, culturais e
históricos que determinam a prática tradutiva, independentemente da
vontade do tradutor (BERMAN, 1995. p. 79). Esse horizonte de
tradução, no qual estão inseridas outras traduções da obra que um
tradutor está traduzindo, como também outras obras desse autor, parece
ser indissociável do projeto de tradução, o qual, para Berman, existe em
toda tradução. O crítico francês comenta que nem sempre o projeto de
tradução está claro para o tradutor. Entretanto, toda tradução possui um
projeto de tradução que pode ser desvendado à posteriori, pois toda a
tradução serve a alguma coisa, a algum contexto, a algum objetivo,
ainda que inicialmente não esteja claro ao tradutor. Assim, toda a
tradução revela um projeto de tradução (Idem, p. 80, 81). Tal projeto
leva o tradutor a traçar uma meta com a tradução que propõe. Em outras
palavras, qual o resultado final a ser apresentado ao leitor? Qual o lugar
a ser ocupado pela tradução no momento? Qual a sua pertinência para
obra e para o contexto literário e cultural da língua alvo?
Quando a Estação Liberdade publica a sua tradução de O
Último Dia de um condenado há no seu horizonte de tradução duas
outras traduções para o português brasileiro. Uma primeira que, como
diz o próprio Berman acerca da primeira tradução de uma obra,
constitui-se na introdução daquela obra no sistema literário local. Assim,
pode-se sim considerar a obra já conhecida desse sistema e do público,
mesmo estando ela esgotada há bastante tempo, pois ainda assim, ao
menos no caso da Moderna Paulistana, é possível encontrá-la. Nesse
horizonte, também desponta uma segunda edição, mais recente, ainda no
mercado e mais completa, trazendo dois dos três prefácios e
informações pertinentes sobre eles. Daí se pode considerar que houve
um enriquecimento da obra no sistema literário local, sem contar os
epitextos que podem ter surgido. E a considerar o tempo relativamente
curto entre essa segunda edição e aquela apresentada em 2002, um
tempo de sete anos apenas, pode-se levar também em conta que as
informações sobre os prefácios de O Último Dia de um condenado são
de conhecimento do público leitor, ao menos está acessível a ele.
Tendo em mente esse horizonte de tradução à época em que
Joana Canêdo começa o seu trabalho, é possível então inferir um
57
possível projeto de tradução. Projeto tal, como diz Berman (1995, p.
79), no qual se podem vislumbrar, entre outras, duas orientações: Qual o
lugar a ser ocupado pela tradução no sistema literário, considerando que
a obra já está inserida nele? E para qual leitor essa tradução se dirige?
A primeira questão pode ser respondida com as características
da edição da Estação Liberdade. É ela rica em paratextos, mais do que a
da Newton Compton, além de ser esteticamente mais apresentável.
Nesse sentido, principalmente no que se refere aos paratextos, é uma
edição que acrescenta e “encorpa” a obra no contexto local,
configurando assim um “ganho” em relação à sua predecessora. E ainda
no campo da contribuição dessa edição podemos mencionar o fato de ela
propor uma nova tradução, em cujo mérito não entrarei em razão de não
ser essa a proposta desse trabalho.
A segunda questão, para qual leitor se dirige a edição e sua
tradução, parece-me, devido ao que acaba de ser discutido, ser esse
leitor aquele que já detém as informações acerca dos prefácios. Esse
leitor é aquele que possivelmente conhece a obra, que já esteve talvez
em contato com a edição da Newton Compton. É ele, portanto, um leitor
habitual da obra. Evidentemente que o leitor iniciante, aquele que nunca
leu a novela, que nada sabe dela, chegará também a essa edição da
Estação Liberdade. Entretanto, talvez não seja ele o leitor alvo.
Por fim, há à quarta edição da novela de Victor Hugo no Brasil.
Publicada em 2005 pela Golden Books, traz a tradução de Sebastião
Paz. Mais pobre que a sua antecessora no que tange aos paratextos, essa
edição não apresenta o segundo e terceiro prefácios. Curiosamente,
ainda mais se considerarmos o espaço de tempo entre uma e outra, três
anos apenas, a edição da Golden Books vem então “complementar” a da
Estação Liberdade ao publicar apenas o primeiro prefácio, fazendo-o
inclusive de forma a não deixar dúvidas ao designar-lhe um título,
ausente nas edições francesas, ao menos nas primeiras edições. Assim,
na página 09 e em caixa alta o leitor pode ler: PREFÁCIO À
PRIMEIRA EDIÇÃO.
Ao contrário das duas edições anteriores, não há nessa 4ª edição
nenhum paratexto que mencione a gênese da obra ou mesmo as
polêmicas da qual a mesma fez parte quando de sua publicação original.
A Golden Books ao que parece teve por meta não mais que
disponibilizar a obra sem maiores preocupações com uma abordagem
mais densa, conforme constava no seu horizonte de tradução. Talvez
essa opção se dê em razão das duas edições anteriores serem mais
completas no que se refere aos paratextos, sobretudo a da Estação
58
Liberdade, publicada apenas três anos antes. Assim, a ausência dos
outros prefácios, somadas a inexistência de notas explicativas, ou
mesmo algum ensaio de terceiros, proporciona uma atmosfera de leitura
análoga, guardada as devidas proporções, àquela da publicação original,
já que o texto fala por si só. A partir daí se pode inferir que a edição da
Golden Books foca, ao que tudo indica um público que está entrando em
contato com a obra e, possivelmente, com o autor pela primeira vez.
Pode-se pensar nessa possibilidade a partir dos outros paratextos, como
as orelhas e quarta capa que a exemplo de um texto de apresentação do
autor intitulado Razões para ler Victor Hugo, versa sobre o autor e o seu
espaço na Literatura.
Entre as quatro edições de O Último Dia de um condenado no
Brasil constata-se, portanto, que duas delas se pautaram por uma
abordagem que propiciasse um contato mais aprofundado com a obra,
contemplando um leitor que se dispõe a adentrar outros níveis de leitura.
Já as outras duas se apresentam em outro campo, o de não exercer
nenhuma espécie de influência no leitor no que se refere à história da
obra e o seu diálogo com o juízo de valor em relação à pena de morte.
Todavia, há uma diferença entre elas, já que a última edição possui sim
paratextos, ao passo que a primeira não.
2.5. Notas
Gérard Genette define a nota como um enunciado de tamanho
variável, o qual se relaciona com determinado segmento de um texto,
sendo responsável pelos seus aspectos mais pontuais (2009, p. 281,
282). Tal enunciado pode ainda estar disposto seja em frente, seja como
referência a esse segmento. O vocábulo “nota”, surgido, segundo
Robert, em 1636, “remonta à Idade Média, quando o texto, colocado no
meio da página, era normalmente cercado de notas ou, às vezes, até
recheado de esclarecimentos escritos em letras menores” (idem, p. 282).
A nota, portanto, pode ocupar espaços variados em um texto, como
também desempenhar funções diferentes. Dentre elas podemos citar as
notas de rodapé, de fim de capítulo, nota do tradutor, do editor, notas
que desempenham a função de posfácio ou mesmo de prefácio. O
Último Dia de um condenado apresenta além das notas de rodapé
também uma “nota final”, sobre a qual abordarei em um subcapítulo
mais à frente. Entre os variados tipos de notas de rodapé apontadas por
Gérard Genette, tratarei daqueles que aparecem nas edições francesa e
59
brasileiras de O Último Dia de um condenado, as notas alógrafas
autênticas, as actorais fictícias e, por fim, a nota autoral autêntica.
2.5.1. As notas de rodapé
Ao longo do século XVI, surgem o que se denominava notas
marginais, as quais são reduzidas e anexadas a segmentos mais
definidos do texto. Apenas no século XVIII é que a utilização
dominante a remove para o pé de página, o rodapé. Porém, há uma
diversificação em relação às notas de rodapés, sendo estas inseridas
ainda nas margens, entre as linhas, no final de capítulo, entre outras.
Genette (2009, p. 282) observa que as notas podem ser facultativas no
que diz respeito a sua leitura, pois isso dependerá do tipo de leitor, já
que para alguns o termo inserido em nota pode conter uma explicação
que lhe interessa ou não. Aliás, não é incomum, diz Genette (2009, p.
288), que alguns autores autorizem os seus leitores a dispensar tais
recursos, já que as notas provocam, na perspectiva de uma estética
classicizante do discurso, certa digressão no texto, reduzindo assim a
sua almejada linearidade.
O crítico francês estabelece duas instâncias para as notas, em uma
delas se encontra o destinador, aquele que escreve a nota, e na outra o
destinatário, a quem se destina a nota, o qual, quase que
invariavelmente, é o leitor da obra (GENETTE, 2009, p. 288). A nota de
rodapé exerce na maioria dos casos uma função explicativa para termos
utilizados no texto, podendo esclarecer um sentido conotativo, detalhar
fatos evocados, referir-se a obras consultadas e mesmo ampliar a
argumentação.
Gérard Genette chamou de “nota autoral autêntica” aquela que
identificamos como sendo do próprio autor. Essa modalidade de nota
aparece, sobretudo, no Prefácio de 1832, no qual Victor Hugo dialoga
com a crítica de sua obra três anos após a sua publicação original. Em O
Último Dia de um condenado encontramos então três notas autorais
autênticas, todas nesse prefácio, as quais foram reproduzidas nas edições
da Newton Compton (1995) e na da Estação Liberdade (2002), fazendo-
se ausentes das edições da Moderna Paulistana (s/d) e da Golden Books
(2005), que não trazem esse prefácio.
As notas alógrafas autênticas compreendem, segundo Genette, as
notas dos editores, críticos e também dos tradutores. No caso da edição
da Newton Compton as notas críticas ficaram a cargo de Annie Paulette
Maria Cambe, também responsável pela tradução e, naturalmente, pelas
60
notas de tradução. Para o Prefácio de 1832 a tradutora inseriu vinte e
três notas, nenhuma delas de tradução, todas críticas e informativas. Já o
segundo prefácio, nomeado pelo próprio Hugo de Uma comédia a propósito de uma tragédia e mais conhecido como Prefácio de 1829
27,
conta com onze notas de rodapé, todas críticas e informativas, com
exceção das notas 1 e 2, ambas traduções de dois poemas, os quais a
tradutora deixou em francês no corpo do texto. Além dessas, há uma
nota da edição de 1832 dando conta de que o Prefácio de 1829 fora
publicado na terceira edição da obra.
A edição da Estação Liberdade, por sua vez, procura respeitar a
ordem cronológica de publicação dos dois prefácios. Assim, insere logo
na folha que apresenta os personagens do sainete a nota da edição de
1832. Antes, porém, traz uma nota do editor informando que as notas
“assinaladas com asteriscos foram livremente inspiradas em Roger
Borderie (Ed), in: Victor Hugo : Le Dernier Jour d’un condamné. Paris,
Gallimard/Folio, 2000, ou são da tradutora” (HUGO, 2002, p. 8). As
notas da tradutora estão indicadas com as iniciais N.T, ao passo que
naquelas inspiradas em Borderie trazem a respectiva referência
bibliográfica. A exemplo das notas da tradutora da Newton Compton, as
de Joana Canêdo são de natureza crítica e informativa, sendo em número
de sete. Já em relação ao Prefácio de 1832 são dezoito notas da
tradutora e outras três baseadas em Roger Borderie.
O outro tipo de nota de rodapé a ser analisada é chamada por
Genette de nota actoral fictícia. Segundo o crítico francês essa
modalidade de nota aplica-se a personagens narradores, caso da obra de
Victor Hugo em questão. As notas actorais fictícias de O Último Dia de
um condenado são em número de vinte e três e estão distribuídas ao
longo de quatro páginas, durante um diálogo entre o condenado-narrador
e outro condenado com quem aquele dividia a mesma cela. Essas notas
de rodapé esclarecem o leitor sobre certas expressões que se encontram
originalmente em uma linguagem específica, própria dos criminosos.
Como o texto é de autoria do condenado à morte do título, é possível
que essas notas sejam também dele — respeitado aqui o contrato
bilateral de ficção — já que “[...] realmente existiu um maço de papeis
amarelados e desiguais nos quais se encontravam registrados, um a um,
os últimos pensamentos de um miserável [...]” (HUGO, 2002, p. 159).
27
Nessa edição os prefácios estão invertidos. Primeiramente o de 1832 e logo
em seguida o de 1829.
61
Caso o autor da obra não seja o condenado, mas sim “[...] um
homem, um sonhador ocupado em observar a natureza em proveito da
arte, um filósofo, um poeta — quem sabe? —, para quem tal ideia foi a
fantasia que o tomou, [...] e não pode dela se desembaraçar senão
lançando-a num livro” (idem), teríamos então uma nota alógrafa fictícia
ou ainda uma nota autoral autêntica.
Considerando a primeira edição, do início de fevereiro de 1829,
na qual o autor real permaneceu anônimo, tais notas teriam sido
inseridas por esse “sonhador ocupado, filósofo, ou ainda poeta” tomado
pela fantasia que fazia publicar. Nesse caso, parte-se então do
pressuposto de que se trata de uma obra de ficção e, nesse caso, as notas
eram do autor que talvez tenha de fato pesquisado essa linguagem do
mundo do crime, ou então que as tenha inventado. Neste cenário,
estaríamos diante de notas autorais fictícias, já que foram escritas por
um autor que não o autor real do texto, Victor Hugo, sendo exatamente
essa a definição dada por Genette (2009, p. 284) acerca de notas autorais
fictícias.
A partir da terceira edição de O Último Dia de um condenado,
ainda no mês de fevereiro de 1829, o nome de Victor Hugo já aparece
como autor da obra. Caso o leitor queira considerar esse “sonhador
ocupado, filósofo, ou ainda poeta”, como sendo o próprio Hugo,
estaremos, portanto, diante de notas autorais autênticas, mantendo-se o
mesmo raciocínio sobre a produção dessas notas do exemplo anterior.
Devido a essas três possibilidades, ao referir-se a essas notas
tratarei de aponta-las como pertencente ao texto original, texto de
partida, texto fonte.
Em sua edição de 2014 de Le Dernier Jour d’un condamné, a
editora francesa da Le Livre de Poche manteve as notas de rodapé,
indicadas por um asterisco, conforme a versão original de 1829 (HUGO,
2014, p.14). Essas vinte e três notas se encontram distribuídas nas
páginas 110, 111, 112 e 113 da edição francesa. Os vocábulos
pertencentes ao corpo do texto contendo os asteriscos para a
identificação das explicações do texto fonte estão expostos abaixo em
quatro tabelas.
Página 110
EXPRESSÕES NO CORPO
DO TEXTO
ESCLARECIMENTO EM
NOTAS
Charlot Le bourreau
62
Mes louches Mes mains
Une fouillouse Une poche
Je filais une pelure Je volais un manteau
Un marlou Un filou
Un grinche Un voleur
Je forçais une boutanche, je
faussais une tournante
Je forçais une boutique, je
faussais une clef
Marine Aux galères
Une serpillière de ratichon Une soutane d’abbé
Tapiquer Habiter
Página 111
EXPRESSÕES NO CORPO
DO TEXTO
ESCLARECIMENTO EM
NOTAS
Cheval de retour Ramené au bagne
Bonnets verts Les condamnés à perpétuité
Leur coire Leur chef
Faire la grande soulasse sur le
trimar
On assassinait sur les grands
chemins
Página 112
EXPRESSÕES NO CORPO
DO TEXTO
ESCLARECIMENTO EM
NOTAS
Les marchands de lacets Les gendarmes
Fanandels Camarades
Le faucheur Le bourreau
... a épousé la veuve a été pendu
L’abbaye de Mont’-à-Regret La guillotine
Faire le sinvre devant la carline Le poltron devant la mort
Placarde Place de Grève
Vousailles Vous
Página 113
EXPRESSÕES NO CORPO
DO TEXTO
ESCLARECIMENTO EM
NOTAS
Le sanglier Le prêtre
63
Conhecendo então as notas de rodapé de Victor Hugo com tais
esclarecimentos, um cotejo entre a edição francesa e as quatro traduções
brasileiras foi feito com o intuito de identificar se nas edições brasileiras
foram mantidas tais notas de rodapé, se outras foram acrescentadas e/ou
outras suprimidas. A ordem de análise segue cronologicamente as datas
de publicação de O Último Dia de um condenado no Brasil.
2.5.2. Notas de rodapé: Editora Moderna Paulistana
Começando o cotejo sobre as notas de rodapé com a Editora
Moderna Paulistana, foi constatado o seguinte: primeiramente, em
nenhuma das páginas dessa edição foram mencionadas quais eram as
notas de rodapé que constam na edição fonte e quais eram as notas do
tradutor e/ou editor, informações estas esclarecidas por ora apenas pela
edição francesa, conforme anteriormente mencionado.
Na página 45 desta edição brasileira, o tradutor aporta sua
primeira nota de rodapé para o termo francês “un friauche”, (p.109), o
qual foi traduzido por “nivelado” e cuja explicação é “guilhotinando”,
termo este, como podemos constatar na lista dos termos esclarecedores
da edição de partida exposta acima, não foi mencionado. O mesmo
ocorre ainda na página 45 da Moderna Paulistana, com o vocábulo
francês “le taule”, (p.109), cuja tradução é feita por “o nivelador”, para
qual em nota se dá a explicação “carrasco”, explanação essa, também
ausente no texto fonte. O tradutor traz seu terceiro termo esclarecedor
cuja menção do original em francês é inexistente, também na página 45,
na qual traduz por “caixinha das ideias” o termo francês “sorbonne”,
(p.109), mencionando em nota a definição para tal termo: “cabeça”. O
mesmo ocorre com o termo “peigre”, (p. 110), traduzido por
“industrioso” no corpo do texto e explicado em nota como sinônimo de
“ladrão”. É na página 110 da edição francesa Le Livre de Poche que a
edição fonte menciona seu primeiro termo em nota de rodapé. Trata-se
do vocábulo “Charlot”, esta edição define em nota como “Le bourreau”.
“Charlot” é mantido no corpo do texto na edição da Moderna Paulistana,
sendo que o termo “Le bourreau” é traduzido em nota de rodapé por
“carrasco”, (p. 45). O segundo termo definido em nota de rodapé pela
edição de partida para a obra Le Dernier Jour d’un condamné trata-se
dos vocábulos “mes louches”, (p.110), cuja definição o original em
francês traz como “mes mains”. O tradutor por sua vez traduz por “meus
ganchos” e mantém a explicação da edição original em nota de rodapé:
64
“mãos”, suprimindo o pronome possessivo de primeira pessoa do
singular, (p.46).
Na frase “[...] de temps en temps je vidais une fouillouse, je filais
une pelure [...]”, (p.110), a edição francesa esclarece duas expressões:
“fouillouse” e “je filais une pelure” para as quais ela clarifica em nota de
rodapé ser “une poche” e “je volais un manteau”, respectivamente. Já o
tradutor da Editora Paulistana, traduz esta mesma frase da seguinte
maneira: “… de tempos a tempos ensaiava uma algibeira, filava um
peludo”, resumindo em nota de rodapé esta frase de Hugo apenas com o
termo “casaco”. O próximo vocábulo que vem esclarecer o original em
francês em nota de rodapé trata-se de “un marlou”, explicado como “un
filou”, (p.110). Na versão brasileira encontramos a tradução do termo
como “oficial” e, também como o fez a edição francesa explica ser
“gatuno”, (p.46). Já para o termo “grinche”, (p.110), a edição fonte
aporta a definição em nota de “un voleur” para o qual o tradutor traduz
por “industrioso” e o aclara em nota como “ladrão”, (p.46). Para a frase
“Je forçais une boutanche, je faussais une tournante”, a edição fonte em
nota de rodapé esclarece ser “Je forçais une boutique, je faussais une
clef ”. Já Moderna Paulistana traz a frase traduzida da seguinte maneira:
“[...] forçava toupeiras e falsificava langostins”, dando em nota às duas
orações as definições resumidas em apenas duas palavras:
“Lojas/Chaves”. Após essas duas orações explicativas realizadas pela
edição de partida, ela introduz outra nota referente ao termo de Hugo
“dans la petite marine”, ao qual ela define por “aux galères”, (p.110),
termo este traduzido no corpo do texto por “para a navegação” e em
nota de rodapé por “Galés”, (p.46). Desta vez, a edição francesa aclara a
leitura de seu leitor com a explicação em nota de rodapé para o termo
“une serpillière de ratichon” o qual define por “une soutane d’abbé”,
(p.110), sendo que o tradutor também traduz esta nota da editora por
“sotaina de padre” e no texto ele o traduz por “serapilheira de
rapasinho”, (p.46). A edição fonte outra vez conduz o leitor para mais
uma definição em nota, desta vez para o verbo “tapiquer” o qual revela
ser “habiter”, (p.110). O tradutor, por sua vez, transpõe para a língua
portuguesa o verbo francês em questão por “farejar” e traduz a nota da
edição francesa referente ao verbo por “viver”, (p.46).
A edição original dá continuidade à sua elucidação em que diz
respeito aos jargões proferidos pelo personagem delinquente que ancora
o personagem principal de Victor Hugo, desta vez fazendo alusão à
expressão “cheval de retour” a qual é definida em nota por “ramené au
bagne”, (p.111), sendo esta transposta pelo tradutor também em nota por
65
“condenado mais de uma vez” e aquela traduzida por “cavalo de
retorno” no corpo de texto, (p.47). O termo “les bonnets verts” é por sua
vez elucidado como “Les condamnés à perpétuité”, (p.111). O tradutor
transpõe o termo exposto no corpo de texto por “os bonés verdes” e
traduz a nota da edição de partida por “condenados por toda a vida”,
(p.47). “Leur coire” é o próximo vocábulo a ser esclarecido em nota
pelo original em francês. Para este termo, o mesmo define ao leitor que
“leur chef” é seu significado, (p.111). Já o tradutor não escreveu
nenhum jargão em português que pudesse fazer a correspondência de
“leur coire”. Inseriu diretamente “o seu chefe” no texto de chegada,
(p.47), não adicionando assim, nenhuma nota de rodapé. Já no que diz
respeito à oração do autor francês “[...] on faisait la grande soulasse sur
le trimar”, a edição fonte de Les Derniers Jours d’un condamné
acrescenta uma nota referente à definição desta expressão, elucidando
assim seu leitor que “on assassinait sur les grands chemins” é a
expressão correspondente à frase acima citada, (p.111). Para tal
expressão, o tradutor a transpõe em seu texto de chegada “[...] eram
adoradores do sol e da lua.”, definindo-a também em nota como
“salteadores de estrada”, (p.47). Ainda na mesma página do texto de
chegada, o tradutor, ao contrário da edição de partida, novamente não
inseriu nenhum jargão pertencente à linguagem de um delinquente, desta
vez para o termo em francês “les marchands de lacets” para o qual o
original em francês define por “les gendarmes” em sua nota de rodapé,
(p.112). O tradutor mais uma vez serviu-se da definição da editora de
partida em sua nota e a inseriu no seu corpo de texto diretamente, ou
seja, “uns gendarmes” foi a tradução que deu para o termo em francês
“les marchands de lacets”. A edição francesa aclara em nota de rodapé
mais um jargão de Hugo, desta vez “mes fanandels”, cujo significado
afirma ser “camarades”, (p.112). Porém, o tradutor serve-se mais uma
vez da mesma prática de tradução mencionada anteriormente não
utilizando nenhum jargão de língua portuguesa que pudesse fazer
correspondência à “mes fanandels” e traduz no corpo do texto por “os
meus camaradas”, não fazendo nenhum acréscimo em nota de rodapé
para tal termo, já que o mesmo já foi elucidado no próprio texto.
Contudo, ele utiliza no seu texto de chegada a expressão “deram às
gambaias” e a define em nota como “fugiram”, (p.47), sendo que Hugo
em seu texto serve-se da expressão “[...] se sont sauvés” não sendo
aclarado em nota de rodapé, pois esta não se trata de nenhum jargão e
sim, de uma expressão bastante usual na língua francesa, (p.112). Sobre
o termo em francês “le faucheur”, ainda na mesma página, a edição
66
fonte o define como “le bourreau” cujo termo também em nota de
rodapé foi traduzido por “o carrasco” e “le faucheur” por “nivelador” no
texto traduzido para a língua portuguesa, (p.48). Ainda com o mesmo
teor de investigação, averiguou-se que o original em francês não cessa
de colaborar com o enriquecimento de vocabulário de seu leitor sobre o
linguajar de um delinquente de Victor Hugo, aqui, também um
criminoso. Em seu texto, ele utiliza a expressão “[...] a épousé la veuve
[...]” referindo-se ao pai do locutor criminoso para qual a edição de
partida define em nota, “ a été pendu [...]”, (p.112), e na página 48 do
texto de chegada, o termo literal escolhido “[...] casou com a viúva [...]”
foi escolhido pelo tradutor que também insere em nota de rodapé o
esclarecimento de tal expressão, traduzindo assim por “foi enforcado”.
A próxima expressão de Hugo que vem esclarecer ao seu leitor a edição
do original em francês é “l’abbaye de Mont’-à-Regret” cuja definição
em nota ela dá por “la guillotine”, (p.112). O tradutor da Editora
Moderna Paulistana serve-se do mesmo movimento feito na edição fonte
e utiliza “a abadia do Monte da Saudade” em sua tradução, definindo a
expressão em nota de rodapé como “guilhotina”, (p.48). No que
concerne à fala do delinquente aqui já mencionado, “[...] faire le sinvre
devant la carline”, para a qual a edição francesa a define em nota por “le
poltron”, (p.112), a tradução brasileira em nota para esta definição é
novamente o termo “guilhotina”, e “[...] não te faças de seda diante do
baile” para a frase mencionada pelo criminoso. Ainda na página 112,
Hugo emprega a locução “la placarde” e cujo significado é explanado
em nota como “Place de Grève”. Já o tradutor ignora tal jargão e traduz
diretamente em seu texto “praça da Grève”, não inserindo assim
qualquer nota de rodapé para tal termo. “Vousailles” é a próxima
expressão utilizada por Hugo com uma indicação em nota de rodapé.
Para tal palavra, a edição francesa define por “vous”, (p.112), sendo que
o tradutor, em seu corpo de texto, traduziu por “voseicelencia” não
enxertando nenhuma definição em nota de rodapé. Por fim, a edição de
partida implanta sua última nota de rodapé, figurando na página 113.
“Le prêtre” é a definição explanada em nota para o vocábulo de Hugo
“le sanglier”. O tradutor, por sua vez, também insere uma nota com a
definição “padre” para o termo em português o “corvo”, referido em sua
tradução, (p.48). Findadas as notas do texto de partida, o tradutor,
contudo, segue com duas definições relatadas em nota de rodapé. Na
página 56, o tradutor insere em nota a explicação para a expressão em
67
francês “pied-de-roi”, (p.121), que segundo ele quer dizer “medida
franceza de doze polegadas”28
. Na página 57 da edição brasileira,
constatou-se a última nota de rodapé. Victor Hugo menciona a palavra
“Charenton”, (p.123) na frase “Est-ce que vous arrivez de Charenton ?”.
O tradutor traz em nota de rodapé a explicação “Hospital de doidos”
para tal termo.
Chegando ao término do estudo concernente às notas de rodapé
da Editora brasileira Moderna Paulistana, apurou-se que o tradutor
acrescenta sete notas de rodapé referentes a termos os quais a edição
fonte ignora. Ou seja, a editora francesa partida não faz nenhuma
menção a esses vocábulos em nota de rodapé. Das vinte e três
notificações que esta aporta, o tradutor mantém dezoito, sendo três notas
resumidas (incompletas) e suprime cinco dessas notas de rodapé.
2.5.3. Notas de rodapé: Editora Newton Compton (1995)
A próxima edição brasileira a fazer parte desta pesquisa foi a
Editora Newton Compton, tendo Annie Paulette Maria Cambè como
tradutora. As notas inseridas no original em francês aparecem na
tradução da Newton Compton a partir da página 71, sendo todas elas
indicadas como “ (Nota de V. Hugo) ”.
Já na primeira palavra da obra, na página 43, encontramos em
nota o seguinte esclarecimento feito pela tradutora sobre o termo
“Bicêtre”. Para tal termo ela afirma: “Localidade no departamento do
Sena, famosa pelo imponente hospício para idosos e alienados. Bicêtre
entrou na linguagem francesa comum como sinônimo de loucura. É
assim que, de alguém que comete um ato insensato ou extravagante, diz-
se de fugiu de Bicêtre”. Mais à frente, página 47, surge uma segunda
nota explicativa para uma frase no corpo do texto de partida a qual a
editora fonte não esclarece em nota de rodapé, porém a escreve em
itálico. A frase em francês “les hommes sont tous condamnés à mort
avec des sursis indéfinis”, (p.68), levou a tradutora ao seguinte
esclarecimento: “Victor Hugo cita a si próprio, em Han d’Islande.”, e
para esta citação de Hugo faz a tradução “os homens são todos condenados à morte com sursis indefinidos”. Seguindo adiante, Hugo,
na página 70 desta edição francesa, escreve a seguinte frase: “Ils
m’apprennnent à parler argot, à rouscailler bigorne, comme ils disent”.
Para tal oração, a tradutora a transpõe: “Ensinam-me a falar gíria, a
28
Mantida a grafia original da edição da Moderna Paulistana.
68
rouscailler bigorne como dizem”. E mantendo, como podemos observar
os vocábulos em francês e em itálico, esclarece o leitor na página 48
com a seguinte nota de rodapé: “A expressão rouscailler bigorne é
intraduzível por significar justamente “falar gíria”. Na página 54 da
tradução de Cambè, uma nota explica ao leitor o que acontecia aos
parricidas na época, provavelmente em que a obra de Victor Hugo fora
escrita. Assim, para a oração de Hugo na página 80 da Editora Le Livre
de Poche “Tous me montraient le poing, excepté le parricide”, a
tradutora insere uma explicação em nota: “Cortava-se a mão direita dos
parricidas antes da decapitação”.
Para o termo “Conciergerie” do texto de partida na página 92, a
edição brasileira mantém o termo na sua origem no corpo do texto e em
nota explica ser o local uma antiga prisão onde nos tempos do Terror
eram encarcerados os condenados à morte antes de subirem ao
cadafalso, explicação essa ausente no texto fonte, (p.61).
Na página 93 da versão original, o autor francês transcreve a letra
de uma canção cuja voz pertence a uma jovem de quinze anos, presente
naquele instante na prisão onde se encontra o protagonista da obra. Não
há no texto de partida nenhuma nota de rodapé referente tal canção,
porém, Paulette Cambè insere, (p.63), uma nota de rodapé após o
término do canto, que aqui, não será transcrito o texto em francês, pois,
além de não ser relevante, a nota de rodapé da tradutora já é bastante
esclarecedora. As explicações que compõem tal nota relatam:
Não é possível traduzir integralmente a música. É
possível traduzir o sentido geral, dando às
palavras de gíria o significado simbólico. “Na rua
do Mail, me pegaram três tiras marrom, me
pegaram pelas costas, me puseram as algemas e o
espião chegou. No caminho encontro um ladrão
do bairro: “Vá dizer à minha patroa que estou no
fresco”. Minha patroa, enfurecida, me diz: “O que
foi que você aprontou?” Matei um homem e
roubei a grana, o relógio e os cadarços dos
sapatos. Minha patroa parte para Versailles e fez
uma súplica aos pés de sua majestade para me
tirar da cadeia. Ah! Se eu fosse solto, cobriria
minha patroa de presentes, compraria chapéus e
sapatos de Tafetá. Mas o rei se zanga e diz: “Pela
minha coroa, eu o farei dançar uma dança onde
não tem chão. (HUGO, 1997, p. 63).
69
Vale ressaltar que Paulette Cambè não traduziu em seu corpo de
texto a tal canção, deixando-a em língua francesa. A tradutora resumiu
em nota o sentido da mesma, como assim relata a citação acima.
Avançando a comparação, Cambè insere na página 68 uma nota
explicativa para a expressão francesa “garde nationale”, que figura na
página 105 do texto original, a qual é traduzida por “guarda nacional”,
tratando-se de “(...) uma milícia composta de civis, tinha sido extinta em
abril de 1827, seu restabelecimento foi debatido na Câmara no dia 14 de
julho de 1828”.
Na página 71, a tradutora da Newton Compton explana em nota
de rodapé a expressão “un friauche”, (p.109), mencionando em nota “Na
gíria, “condenado à morte”, “assassino”. Nessa mesma página, a
tradutora também coloca em nota o significado da palavra “Le taule”, o
que não faz a edição fonte, (p.109). Ela não traduz o termo “le taule”,
apenas o artigo definido “le”, ficando assim sua tradução “o taule” e
esclarece em nota “O carrasco”. Permanecendo ainda na página 71,
Paulette Cambè insere sua primeira nota de rodapé que reproduz a nota
da editora francesa a qual se refere ao vocábulo “Charlot”. A tradutora
no seu corpo de texto permanece com o nome próprio “Charlot” e o
original francês, ela explana “O carrasco”.
Em relação ao termo de Hugo na página 110 “mes louches”, a
tradutora em seu texto não traduz tal palavra, deixando “as louches” e
explanando em nota de rodapé “As mãos”, (p.71). Em seguida, para o
termo “une fouillouse”, (p. 110), a tradutora não o traduz, deixando
assim sua frase: “[...] esvaziava uma fouillouse” e como a edição de
partida, ela insere a nota explicativa, traduzindo o termo por “Um
bolso”. Ainda na página 110 do texto fonte encontramos o sintagma “je
filais une pelure”, o qual é esclarecido em nota ser “Je volais un
manteau”, Paulette Cambè propõe como tradução “filava uma pele” e
também em nota de rodapé esclarece ao leitor que tal termo significa
“Roubava um casaco”. Para o vocábulo “marlou” (p.110), definido em
nota de rodapé como “Un filou”, a tradutora não traduz a palavra em
questão no corpo de texto, traduzindo apenas o artigo definido - “um
marlou” - e em nota, como a edição fonte o faz, aclara a leitura de seu
leitor inserindo a explicação “Um bandido”, (p.71). O mesmo
procedimento é empregado para “un grinche”, (p.110). Aqui ela também
não o traduz em seu texto, fazendo-o novamente apenas no artigo
definido “um grinche”, (p.71) e introduz uma nota, assim como no
original em francês, para esclarecer tal vocábulo: “Um ladrão”. Em
relação à frase “Je forçais une boutanche, je faussais une tournante”,
70
(p.110), para qual a edição de partida aclara a leitura de seu leitor
inserindo uma nota de rodapé com a explicação “je forçais une boutique,
je faussais une clef”, a tradutora desta segunda edição estudada
novamente opta por deixar em língua francesa duas palavras. Desta vez
“boutanche” e “tournante”, e para cada uma, insere uma nota de rodapé
na qual esses dois termos são traduzidos por “Uma butique” e “Uma
chave”, respectivamente, (p.71). Para os vocábulos “petites marines”,
(p.110), a edição fonte introduz em nota seu significado: “Aux galères”.
Mais uma vez, a tradutora opta por deixar os termos na língua de origem
“petite marine” e assim como a obra original, Paulette Cambè insere em
nota “As galeras”, (p.72). Partindo para o termo da edição francesa
pertencente também à página 110, “une serpillière de ratichon” para o
qual a mesma em nota explana ser “Une soutane d’abbé”, a tradutora em
seu corpo de texto, traduz “um pano de ratichon” e introduz a nota
“Uma batina de padre”, (p.72). “Tapiquer” é o último vocábulo
pertencente à página 110 da edição Le Livre de Poche indicado por uma
nota de rodapé. A edição de partida o esclarece como “Habiter”. E
repetindo a mesma dinâmica de tradução na qual Cambè não traduz os
termos de língua francesa, “Tapiquer” continua figurando em seu texto
de chegada na grafia original. Em nota a tradutora o explica como
“Morar”, (p.72).
A expressão “cheval de retour” é a próxima a qual Hugo faz uso
em seu texto cuja explicação é inserida: “Ramené au bagne”, (p.111).
Para tais expressões, Paulette Cambè traduz por “cavalo de volta” no
corpo do texto e em nota de rodapé “Reconduzido à prisão”,
respectivamente, (p.72). Hugo, dando continuidade a seus jargões na
página 111, toma uso da expressão “les bonnets verts” para a qual a
edição francesa explica em nota corresponder a “Les condamnés à
perpétuité”. A tradutora transpõe tal termo por “boinas verdes” e
também em nota introduz a explicação “Os condenados à perpetuidade”,
(p.72). Para o termo “Leur coire”, a obra francesa em nota traz o
esclarecimento a seu leitor: “Leur chef”, (p.111). Paulette Cambè
mantém o termo em questão na língua francesa, traduzindo apenas o
pronome possessivo adjetivo “Seu coire” e também em nota de rodapé
esclarece a seu leitor que se trata da expressão “O chefe deles”, (p.72).
A tradutora também mantém a expressão de Victor Hugo “[...] on faisait
la grande soulasse sur le trimar.”, (p.111), da edição francesa, deixando
“[...] faziam la grande soulasse sur le trimar”, inserindo igualmente uma
nota de rodapé com tal explicação: “Assassinavam na estrada”, (p.72).
71
Para o jargão “Les marchands de lacets”, (p.112), a edição
original lança nota e afirma que a expressão “Les gendarmes” é seu
significado ao passo que a tradutora mantém seu estilo de tradução
deixando em seu texto “Os marchands de lacets” e em sua nota de
rodapé “Os gendarmes”, (p.73). “Mes fanandels”, (p.112) é o próximo
jargão explicado em nota para o qual se explana ser “Les camarades” e
assim “meus fanandels” é a tradução que faz Paulette Cambè cuja nota
de rodapé é “Companheiros”, (p.73). No que diz respeito à palavra
francesa “le faucheur”, mais uma nota é inserida pela edição fonte para
dizer que tal termo significa “Le bourreau”, (p.112). A tradução da
Newton Compton traz no texto a expressão na língua de partida, sendo
que em nota de rodapé ela insere o vocábulo “O carrasco”, (p.73). Já
para a expressão francesa “a épousé la veuve”, o significado é explicado
em nota: “a été pendu”, (p.112), Paulette Cambè traduz para o português
“casou com a viúva” e também em nota de rodapé insere a explicação
“Foi enforcado”, (p.73). Por outro lado, a tradutora mantém em língua
francesa a expressão “Mont’-à-Regret” no corpo do texto, cujo
significado ela explana em nota de rodapé ser “A guilhotina”, seguindo
o mesmo esclarecimento do original em francês “La guilhotine”,
(p.112). Partindo para o jargão seguinte, ainda na mesma página, Hugo
escreve “faire le sinvre devant la carline” e em nota a edição francesa
explica ser “Le poltron devant la mort”. Cambè mantém os termos
“sinvre” e “carline” em língua francesa, deixando o seu texto da
seguinte maneira: “fazer o sinvre na frente da carline”, e também em
nota esclarece com tal frase “O medroso na frente da morte”, (p.73).
“Placarde” é o próximo jargão utilizado por Hugo e mencionado ao pé
da página 112, cujo significado a edição fonte afirma ser “Place de
Grève”. A tradutora mantém novamente o termo em francês, desta vez,
“Placarde” e em nota insere “A Praça de Grève”, (p.73). Em relação ao
vocábulo francês “vousailles, (p.112), o qual se declara em nota
significar “Vous”, a tradutora também opta por não traduzi-lo e em nota
explica ser “O senhor”, (p.73).
No que diz respeito ao último vocábulo indicado em nota de
rodapé, “le sanglier”, que quer dizer “Le prêtre”, como explica a edição
original na página 113, Paulette Cambè transpõe tal termo por “O
javali” e também em nota declara ser “O padre”, (p.73). Dando
sequência à comparação, na página 81 da edição brasileira, a tradutora
insere uma nota de rodapé para a frase de Victor Hugo: “J’avais sur moi
le tome second des Voyages de Spallanzani”, (p.127), a qual ela traduziu
72
por “Trazia consigo o segundo volume das Viagens de Spallanzani”,
(p.81). Nesta nota, Paulette Cambè explana:
Victor Hugo se refere a Viaggi nelle due Sicilie e
in alcuni luoghi degli Appenini, de Lazzaro
Spallanzani (1729-1799), famoso naturalista
italiano, um dos fundadores da microbiologia
moderna. (HUGO, 2014, P. 127).
A tradutora de Newton Compton também insere em nota de
rodapé um comentário sobre a sentença que Hugo escreve na página 132
da edição francesa: “Et pour qu’à l’instant même l’horrible échafaud
s’écroulât, pour que tout te fût rendu, vie, liberté, fortune, famille, il
suffirait qu’il écrivît avec cette plume les sept lettres de son nom [...]”, a
qual traspõe da seguinte maneira: “E para que agora mesmo o horrível
cadafalso desabasse, para que tudo te fosse devolvido, vida, liberdade,
fortuna, família, bastaria que ele escrevesse com esta pluma as sete
letras do seu nome [...]”. Para esta nota, a tradutora aclara o seu leitor
com a seguinte afirmação: “Alusão a Carlos X (o nome francês Charles
é formado por sete letras)”, (p.85). Para a continuação da mesma frase
do personagem de Hugo, há outra nota, desta vez para a locução: “[...]
au bas d’un morceau de papier, ou même que son carrosse rencontrâ ta
charrette!”, (p.133), para a qual Paulette Cambè traduz: “[...] em baixo
de um pedaço de papel, ou até que sua carruagem encontrasse com tua
charrette!”, (p.85). E chegando ao término de suas inserções de nota de
rodapé, a tradutora na página 92, para a frase: “Bonjour, monsieur
Samson!”, (p.145), traduzindo por “Bom-dia, senhor Samson!”,
direciona o leitor para a nota com tal explicação: “Ver nota 23 do
Prefácio”, (p.92).
A resulta desta pesquisa em que diz respeito às implantações de
nota de rodapé da Editora Compton Newton se apresenta da seguinte
forma: a tradutora insere treze notas para o aclaramento de seu leitor as
quais a edição francesa não menciona e mantém todas as vinte e três
notas de rodapé explanadas pelo texto de partida, não omitindo nenhuma
dessas informações.
2.5.4. Notas de rodapé: Editora Estação Libertade (2002)
A Editora Estação Liberdade é nosso próximo objeto de
pesquisa, cuja tradutora chama-se Joana Canêdo. Esta edição, como
veremos a seguir, aportará em nota de rodapé todos os termos
73
explanados pela edição francesa em pé de página, porém, de uma
maneira bastante confusa para seu leitor por duas razões. A primeira
dela, a tradutora e/ou editora não faz nenhuma indicação no corpo do
texto nas palavras que serão explicadas em nota de rodapé, levando o
leitor a qualquer dúvida que possa vir a ter, a recorrer seus olhos ao pé
da página para certificar-se que tal palavra se encontra ou não em nota
de rodapé. A segunda razão que torna a leitura confusa é a dinâmica
utilizada concernente aos termos expostos em nota de rodapé. Todos os
vocábulos explanados em pé de página nesta edição brasileira
concernentes aos comentários da edição fonte estão expostos todos em
uma única página, sendo ela de número 96. O que dificulta a leitura,
pois o leitor ao se deparar com um vocábulo, para ele desconhecido, em
uma página posterior, deverá recorrer à página 96 para averiguar se o
termo a ser pesquisado encontra-se ali explanado.
Partindo então à análise, percebe-se que a tradutora na página
56 de sua tradução insere uma nota para explicar quem fora Papavoine,
nome este retirado de um trecho concernente a Le Dernier Jour d’un
condamné da editora Le Livre de Poche: “Sur le mur opposé on lit ce
nom : Papavoine”, (p.78). Canêdo transpõe esta frase por: “Na parede
oposta pode-se ler este nome: “Papavoine”. Na tal nota há a seguinte
informação: “Papavoine, matou a facadas dois meninos de cinco e seis
anos que brincavam junto da mãe no bosque de Vincennes.
Guilhotinado em 25 de março de 1825. (Cf. Roger Borderie, op. cit).”
(p.56). Na mesma página, a tradutora insere outra nota, desta vez para
esclarecer ao leitor quem fora Bories. Tal nome é retirado do seguinte
trecho do texto de Hugo: “Un bonnet de liberté sculpté assez
profondément dans la Pierre, avec Ceci dessous : – Bories. – La
République”. (p.79). A nota de rodapé referente a Bories explica:
“Bories: com vinte e sete anos foi líder do complô de la Rochelle, ver
também nota à p.182. (N.T.).” Na página 81 da edição francesa, Hugo
menciona um lugar chamado Toulon, para o qual na página 60, Canêdo
em nota informa: “A maior prisão de trabalhos forçados na França
ficava na cidade de Toulon, no sul do País. (N.T.)”. No que diz respeito
ao nome “Conciergerie”, citado na página 92 do texto fonte, a tradutora
mantém o nome em francês e em nota acrescenta: “Parte medieval do
atual Palácio de Justiça no centro de Paris. Prisão onde os condenados
ficavam antes de serem levados ao cadafalso da praça da Grève. (N.T.).”
(p.73). Sobre a canção que Victor Hugo menciona no seu corpo de texto,
(p.93), Canêdo em nota escreve: “Ver à p.155 nota de Victor Hugo, bem
74
como a versão francesa da canção (157), acompanhada do fac-símile
com explicação das gírias. (p.156). (N.E.)”.
Em relação às notas originais, temos para o termo “Charlot”,
(p.110) do texto fonte uma inserção em nota de rodapé cuja explanação
é “Le bourreau”. Joana Canêdo mantém “Charlot” e também em nota
escreve: “o carrasco”, (p.96). Na mesma frase que aparece o termo
“Charlot”, Hugo escreve a palavra “cravate”, termo este não explanado
em nota na obra original, porém o qual Canêdo transpõe por “gravata” e
em nota de rodapé, esclarece ao leitor ser “corda”, (p.96). A segunda
nota de rodapé da edição fonte concerne ao vocábulo “mes louches”, o
qual ela define por “mes mains”. A tradutora desta edição brasileira
traduz em seu corpo de texto por “minhas conchas” e também em nota
por “minhas mãos”, (p.96). Para o termo de Hugo “une fouillouse” que é
esclarecido em nota por “Une poche”, (p.110), a tradutora Canêdo
traduz o primeiro por “escarafunchador” e o segundo termo explica ser
“um bolso”. No que diz respeito à frase do autor francês “je filais une
pelure” que é esclarecida pela edição de partida em nota de rodapé como
“Je volais un manteau”, (p.110), a tradutora brasileira a transpõe por
“desfiar uma pele” e também em nota esclarece ao leitor ser “roubar um
casaco”, (p.96). Dando continuidade às notas da página 110 da edição
francesa, para o termo “un marlou” cujo significado é esclarecido em
nota de rodapé como “Un filou”, a tradutora da Estação Liberdade
traduz o primeiro termo por “um cantante” e em nota de rodapé traduz a
nota da edição francesa por “um vigarista” (p. 96). “Un grinche”, é o
próximo vocábulo a ser esclarecido em nota de rodapé da edição de
partida cujo significado se diz ser “Un voleur”, (p.110). A tradutora
traduz em seu corpo de texto o vocábulo “un grinche” por “um gatuno”
e também em nota, conforme a edição fonte, esclarece ao leitor tal
vocábulo: “um ladrão”, (p.96). Para a oração de Victor Hugo “Je forçais
une boutanche, je faussais une tournante”, (p.110), Canêdo propõe
“Esvaziava uma maloca, despregava uma chave” colocando em nota a
explicação “roubava casas, arrombava fechaduras”, (p.96), explicação
essa traduzida da nota de rodapé da obra francesa: “Je forçais une
boutique, je faussais une clef”. A expressão “Numa marina”, (p.96), foi
a tradução feita pela tradutora do termo francês “dans la petite marine”,
cujo significado é escrito em nota “Aux galères”, (p.110), o qual
também aparece em nota de rodapé da edição brasileira como “nas
galés”. Em seguida, Hugo serve-se do jargão “une serpillière de
ratichon” o qual a edição do original esclarece em nota ser “Une soutane
d’abbé”, (p.110). “Um pano de chão de um padreco” foi a tradução dada
75
por Joana Canêdo em seu corpo de texto enquanto “uma batina de
abade” foi a nota traduzida da nota de rodapé do texto de partida”,
(p.96). Para o vocábulo “tapiquer”, a edição fonte explica tal termo em
nota, que significa “habiter”, (p.110). Canêdo transpõe “tapiquer” por
“cabanar” e em relação à nota francesa, ela a traduz por “morar”.
Na página 111 da edição francesa, para o jargão “cheval de
retour”, a edição do original insere uma nota na qual esclarece tal
expressão como sendo “Ramené au bagne”. A tradução da Estação
Liberdade apresenta respectivamente “cavalo de retorno” e “reenviado
às galés” (p.96). Na mesma página, “les bonnets verts” aparece no corpo
do texto e ganha em nota a definição: “Les condamnés à perpétuité”.
Joana Canêdo em sua tradução traduz o primeiro termo por “os boinas
verdes”, (p.96), e o segundo por “os condenados à prisão perpétua”,
(p.97). No que tange à expressão “Leur coire”, (p.111), que segundo a
editora da obra francesa quer dizer “Leur chef”, “A chefia deles” foi a
tradução escolhida pela tradutora em seu corpo de texto e “chefe” em
sua nota de rodapé. Hugo emprega em seu texto mais um termo
correspondente ao jargão de um assassino: “On faisait la grande
soulasse sur le trimar”, (p.111), o qual é inserido em nota de rodapé o
significado “On assassinait sur les grands chemins”. Joana Canêdo
transpõe o jargão por “Despachavam nos trilhos”, (p. 98) e também
insere uma nota de rodapé, como o fez a edição fonte, com a explicação
“assassinavam nas estradas”, (p. 96).
Na página 112 do texto de partida encontramos a expressão “les
marchands de lacets” a qual em nota de rodapé a edição de partida
explica ser “Les gendarmes”. A tradutora transpõe a primeira expressão
por “os mercadores de laços”, (p.98) e em nota de rodapé insere a
tradução da definição da editora francesa: “os policiais”, (p.96). Partindo
para o próximo termo, verificou-se que “les fanandels”, na página 112
da Editora Le Livre de Poche é um jargão que tem como definição,
segundo a edição do original em nota de rodapé, “Camarades”. A
tradução de Canêdo para “fanandels” foi “manos” e “camaradas” a sua
tradução da nota de rodapé. “O Ceifeiro”, (p. 98) foi a transposição que
escolheu Canêdo para o jargão “le faucheur”, (p.112) da edição
francesa, assim como “o carrasco”, (p. 96) foi a sua tradução em pé de
página da explicação francesa “Le bourreau”. Para o termo de Hugo “a
épousé la veuve”, também na mesma página, Canêdo o transpôs por
“desposou a viúva”, igualmente na página 98, cujos esclarecimentos em
nota de rodapé de ambas as partes foram “a été pendu” e “foi enforcado”
respectivamente, (p.96). Já no que diz respeito à expressão francesa
76
“abbaye de Mont’-à-Regret”, (p.112), cuja explicação é dada em nota
afirmando ser “La guilhotine”, a tradutora da Estação Liberdade
traduziu por “Abadia do Monte-a-Contragosto”, (p.98), cuja explicação
em nota inseriu “a guilhotina”, (p.96). “Caragolas face à descarnada”,
(p. 98) foi a tradução feita por Canêdo da expressão francesa “faire le
sinvre devant la carline”, (p.112) e “Covarde face à morte”, (p.96) a
tradução feita da nota de rodapé da edição de partida para a sua
explicação “Le poltron devant la mort”, (p.112). Outra nota de rodapé
inserida pela edição de partida é “Place de Grève” para explicar o jargão
“placarde”, contido em seu corpo de texto. Joana Canêdo em sua nota
insere “a praça da Grève”, (p.96) e em seu corpo de texto escreve “A
praceta”, (p.98) traduzindo respectivamente os dois últimos termos
citados em francês. “Vousailles” é o próximo jargão utilizado por Hugo
em sua obra, o qual é explicado em nota de rodapé como sendo “Vous”,
(p.112). Para Canêdo, “vos’senhorio” foi a tradução escolhida para tal
termo, (p.99) e em nota, (p.96) escreve “o senhor”. “Le sanglier” é o
último jargão de Hugo explicado em nota de rodapé para o qual é
aportada a explicação “Le prêtre”, (p.112). Para a tradutora brasileira, “o
javali” é a palavra que representa este jargão de Hugo e “o padre” foi a
explicação traduzida em nota, (p.96).
Chegando à página 106 da edição brasileira, quando o
personagem principal narra um condenado à morte a caminho da
guilhotina, constatou-se uma nota de rodapé da própria tradutora que
afirma: “Fica claro aqui que Victor Hugo remete-se a sua própria
experiência de ter testemunhado uma decapitação. (N.T.)”.
Na página 133, observou-se igualmente uma nota de rodapé que
se refere a um trecho da obra, (p.133 e 134) que conta o pesadelo
narrado pelo personagem principal, o qual se depara com uma velhinha
assustadora. Nesta nota de rodapé Joana comenta: “Victor Hugo teria
realmente sonhado isso. Numerosos elementos autobiográficos parecem
assim estar inscritos no monólogo do condenado. (Cf. Roger Broderie,
op. cit.)”.
Também na página 150 da edição brasileira, constatou-se outra
nota de rodapé inserida pela tradutora para esclarecer o termo “Saint-
Jacques-la-Boucherie” escrito no corpo do texto. Na nota consta a
tradução: “São-Tiago-da-Carnagem. (N.T.)”. Chegando ao término das
comparações realizadas sobre as notas de rodapés inseridas na tradução
do Le Dernier Jour d’un condamné da Editora Estação Liberdade,
apontou-se o resultado seguinte: A tradutora inseriu nove notas de
77
rodapé não encontradas no texto fonte e traduz todas as vinte e três notas
da edição francesa, não extinguindo nenhuma delas.
2.5.5. Notas de rodapé: Editora Golden Books (2005)
Dando seguimento à comparação entre o Le Dernier Jour d’un condamné e as quatro traduções brasileiras que são os objetos desse
estudo sobre as notas de rodapé, a tradução de Sebastião Paz da Editora
Golden Books é nossa derradeira.
Começando com o termo “Charlot”, (p.110) do texto fonte, para o
qual o original em francês insere uma nota de rodapé com a explanação
“Le bourreau”, Sebastião Paz mantém “Charlot” e também em nota
explica o termo: “o carrasco”, (p.69). Sobre a nota de rodapé da obra
original concernente ao vocábulo “mes louches”, o qual se define por
“Mes mains”, o tradutor desta edição brasileira traduz no corpo de texto
“meus talheres” e também em nota diz ser “minhas mãos”, (p.70). Para
o termo de Hugo “une fouillouse” que é esclarecido em nota por “Une
poche”, (p.110), Paz traduz o primeiro por “um saco” e o segundo termo
explica ser “um bolso”, (p.70). Já no que diz respeito à frase “je filais
une pelure” que em nota é esclarecida como “Je volais un manteau”,
(p.110), o tradutor a transpõe por “filava uma casca” e também em nota
esclarece ao leitor ser “Eu roubava um casaco”, (p.70). A expressão “un
marlou” traz no texto fonte a nota “Un filou”, (p.110). Na tradução
brasileira encontramos para o primeiro termo “oficial” e em nota de
rodapé a opção “Um larápio”. “Un grinche”, é o próximo vocábulo a ser
esclarecido em nota de rodapé pela edição de partida cujo significado se
afirma ser “Un voleur”, (p.110). O tradutor traduz em seu corpo de texto
o vocábulo “un grinche” por “um industrioso” e em nota aporta ao leitor
o significado de tal vocábulo: “Um ladrão”. Para a oração do autor
francês “Je forçais une boutanche, je faussais une tournante”, o tradutor
Paz traduz por “forçava toupeiras e falsificava uma franja” colocando
em nota a explicação “Eu arrombava uma loja, eu falsificava uma
chave”, (p.70), explicação essa traduzida da nota de rodapé da obra
francesa: “Je forçais une boutique, je faussais une clef”. A tradução
“para as navegações”, (p.70), refere-se ao termo francês “dans la petite
marine”, cujo significado a edição do texto original escreve em nota
“Aux galères”, (p.110), o qual também aparece em nota de rodapé da
edição brasileira como “Nas galés”. Em seguida, Hugo serve-se do
jargão “une serpillière de ratichon” o qual é esclarecido em nota ser
“Une soutane d’abbé”. A tradução proposta por Paz no corpo de texto
78
foi “um toldo de padreco”, (p.70 e 71) e “Uma batina de padre” para a
segunda expressão, (p.71) em nota de rodapé. Já para o vocábulo
“tapiquer”, ainda na página 110, que segundo o texto de partida possui o
significado de “habiter”, Sebastião Paz transpõe “tapiquer” por “farejar”
e em relação à nota francesa, ele a traduz por “Morar”.
Na página 111 da edição francesa para o jargão de Hugo “cheval
de retour” é inserido “Ramené au bagne” em nota para esclarecer tal
expressão”. O tradutor da Golden Books traduz respectivamente “cavalo
de retorno” e “reconduzido às galés”, (p.71). Na mesma página, “les
bonnets verts” é o próximo jargão utilizado por Hugo em seu corpo de
texto o qual é esclarecido em nota como “Les condamnés à perpétuité”.
Paz em sua tradução traduz o primeiro termo por “os bonés verdes” e o
segundo por “Os condenados à prisão perpétua”. “Leur coire” encontra
em “Leur chef” a ressignificação do termo apresentada pela edição
francesa. “O coire” foi a tradução escolhida pelo tradutor no corpo de
texto e em nota de rodapé traduz por “O chefe deles”. Hugo insere em
seu corpo de texto mais um termo correspondente ao jargão de um
assassino: “On faisait la grande soulasse sur le trimar”, (p. 111), o qual
se aporta em nota de rodapé seu significado: “On assassinait sur les
grands chemins”. O tradutor brasileiro transpõe o jargão por “Me pus a
matar para viver” e também insere uma nota de rodapé com a explicação
“Assassinava nas estradas reais”, (p.72).
A expressão “les marchands de lacets”, por sua vez, que ressurge
em nota como “Les gendarmes”, (p.112), é traduzida por Sebastião Paz
por “uns guardas” no corpo do texto e em nota de rodapé como “Os
policiais”, (p.72). Partindo para o próximo termo, verificou-se que “les
fanandels”, (p.112) da Editora Le Livre de Poche é um jargão que tem
como definição, segundo a edição francesa em nota de rodapé,
“Camarades”. A tradução de Paz para “fanandels” foi “companheiros” e
“Camaradas”, sua tradução da nota de rodapé. Na página 72,
“nivelador” foi a transposição que escolheu Paz para o jargão “le
faucheur” assim como “O carrasco” foi a sua tradução de nota de rodapé
da explicação da obra em francês para “Le bourreau”. Para o termo “a
épousé la veuve”, (p.112), Paz o transpôs por “casou com a viúva”,
igualmente na página 72, cujos esclarecimentos em nota de rodapé de
ambas as partes foram “a été pendu” e “foi enforcado”, respectivamente.
Já no que diz respeito à expressão francesa “abbaye de Mont’-à-
Regret”, cuja explicação o original em francês faz em nota afirmando
ser “La guilhotine”, o tradutor da Golden Books traduziu por “abadia do
Monte da Saudade”, (p.72 e 73) cuja explicação em nota inseriu “A
79
guilhotina”, (p.73). A tradução “Não se faça de seda diante do baile”,
(p.73) foi a escolhida por Paz para a expressão francesa “faire le sinvre
devant la carline”, (p.112) e “O covarde diante da morte” a tradução
feita da nota explicativa da edição fonte, “Le poltron devant la mort”,
(p.112). Ainda na página 112 da edição francesa, é inserida outra nota
de rodapé: “Place de Grève” para explicar o jargão “placarde”, contido
no corpo de texto. Paz desta vez não menciona nenhuma nota em
relação a esta expressão e em seu corpo de texto escreve “praça da
Grève”. “Vousailles” é o próximo jargão utilizado por Hugo em sua
obra, o qual em nota de rodapé se explica ser “Vous”, (p.112). Para o
tradutor da Golden Books, “Vosmecê” foi a tradução concebida para tal
termo e em nota escreve “Vós”, (p.73). “Le sanglier” é o último jargão
explicado em nota de rodapé pela edição de partida, para o qual se
aporta a explicação “Le prêtre”. Para Paz, “O corvo” é a palavra que
representa este jargão e “O padre” foi a explicação traduzida em nota,
(p.74).
Seguindo a análise na página 78, Sebastião aporta uma nota sobre
a frase de Victor Hugo escrita nas páginas 116 e 117: “La combinaison
de ces dix lettres, leur aspect, leur physionomie est bien faite pour
réveiller une idée [...]”. A nota de rodapé inserida para esta frase traz a
seguinte explicação: “N. do T.: Dez letras: guilhotina”, e Paz faz a
tradução da frase da seguinte forma: “A combinação dessas dez letras, o
seu aspecto, a sua fisionomia é bem própria para despertar a ideia [...]”.
Na página 129, o personagem principal de Hugo revive um
acontecimento de infância: “[...] quand j’entrai dans la cage de pierre et
de charpente où pend le bourdon avec son battant, qui pèse un millier.”
O tradutor da Golden Books traduz a frase por: “[...] quando penetrei na
torre de pedra e madeira, de onde pende o sino, cujo badalo pesa um
milhar”. Em nota de rodapé esclarece ao leitor o termo milhar: “Mil
libras, seja 500 Kg”, (p.93). Enfim, encontramos a última nota do
tradutor na página 115, e desta vez, ele se refere à torre que avista o
condenado, o qual pergunta ao padre sobre a mesma. E o carrasco
responde: “Saint-Jacques-la-Boucherie”. Paz escreve em nota: “N. do
T.: boucherie: açougue, carnificina” e em seu corpo de texto escolhe por
manter o termo em língua francesa que se encontra na página 147 da
edição francesa.
Assim, ao fim do cotejo entre o texto fonte e o texto de chegada
publicado pela editora Golden Books, atesta-se que das vinte e três notas
de rodapé existentes no texto de partida, Paz suprimiu uma, manteve
vinte e duas e acrescentou três outras notas de rodapé.
80
2.5.6. A Nota Final de O Último Dia de um condenado
O texto fonte da editora Le livre de poche traz no capítulo XVI de Le Dernier Jour d’un condamné, conforme a edição original de 1829, a
letra de uma canção ouvida de sua cela pelo condenado à morte. Sobre
essa canção é acrescentada, após o término do relato do prisioneiro, uma
nota final acompanhada da reprodução fac-similar de um manuscrito,
nota esta que reproduzimos a partir da tradução de Joana Canêdo:
Damos aqui para as pessoas curiosas sobre esse
tipo de literatura, a canção em gíria com a
explicação ao lado, feita sobre uma cópia
encontrada nos papeis do condenado, e que este
fac-símile reproduz inteiramente em sua
ortografia e escrita. O significado das palavras
estava escrito com a letra do condenado; há
também na última estrofe dois versos intercalados
que parecem ser de sua escrita; o resto do lamento
está com a letra de outra pessoa. É provável que,
tocado pela canção, mas lembrando-se dela
apenas imperfeitamente, ele tentou consegui-la, e
que uma cópia lhe tenha sido dada por algum
calígrafo da prisão.
A única coisa que esse fac-símile não reproduz é o
aspecto do papel original, amarelado, sórdido e
rasgado nas dobras. (HUGO, 2002, p. 155).
Essa nota faz eco com o prefácio da primeira edição, podendo,
portanto, ser uma nota alógrafa fictícia ou autoral autêntica, conforme a
interpretação da sua autoria pelo leitor caso esse, considerando-se o
pacto bilateral de ficção, siga a mesma orientação de leitura do prefácio.
Nas edições brasileiras de O Último Dia de um condenado essa
nota aparece apenas na edição de 2002, da Estação Liberdade. Na
página seguinte à nota, (p.156) encontramos também a reprodução fac-
similar da canção, escrita à mão em letra corrida, como também na
página subsequente, (p.157) a letra da canção em letra de forma. Essa
reprodução encontra-se em francês, já que a tradutora Joana Canêdo a
traduziu para o português no corpo do texto, no capítulo XVI.
As demais edições além de não trazerem a nota, procedem de
forma diferente em relação à tradução da canção no capítulo XVI. Annie
Paulette, da Newton Compton não traduz, deixando a letra da canção em
francês. Todavia, acrescenta uma nota de rodapé curiosa:
81
Não é possível traduzir integralmente a música. É
possível traduzir o sentido geral, dando às
palavras de gíria significado simbólico: “Na rua
do Mail, me pegaram três tiras marrom, me
pegaram pelas costas, me puseram as algemas e o
espião chegou. No caminho encontro um ladrão
do bairro: [...] (HUGO, 1995, p. 63).
Curiosa porque se pode talvez vislumbrar alguma noção da
concepção de tradução da tradutora, que talvez privilegie mais a
transposição do sentido da língua fonte na língua alvo em uma tradução.
Contudo, não é esse o objeto de análise aqui, portanto, a questão não
será aprofundada, ficando apenas o registro para estudos futuros.
A tradução mais recente da novela de Victor Hugo, publicada
pela Golden Books em 2005, também não traz a nota final e, a exemplo
da tradutora da Newton Compton, a letra da canção do capítulo XVI, (p.
49, 50, 51) permanece em francês no corpo do texto. Não houve
tradução e nem nenhuma menção ao sentido da letra, seja em nota de
rodapé, seja por meio de outro paratexto.
A edição da Moderna Paulistana não apenas suprimiu a nota, mas
também praticamente a canção inteira. A tradução reproduz, em francês,
apenas a primeira estrofe da canção, a qual é composta por mais outras
sete.
O eco ao prefácio à primeira edição não se dá apenas na condição
de prefácio, nota e a letra da canção serem alógrafos fictícios ou mesmo
autorais autênticos. Mas da mesma forma que os papeis do condenado,
encontrados posteriormente à sua execução, o papel em que a canção foi
escrita também se encontra amarelado e sujo, ainda que a reprodução
fac-similar, segundo a nota, não consiga reproduzir esses detalhes.
Aliás, o registro escrito da canção com as anotações das gírias ao lado,
vinha na primeira edição de 1829 separada do texto, em uma folha
quatro vezes maior que o livro, dobrada em quatro partes, conforme
afirma Claudine Nédélec em Marginalité et référence dans Le Dernier jour d’un condamné de Victor Hugo
29 e na averiguação que pude fazer a
partir da primeira edição, digitalizada e disponível para download30
.
Assim, a supressão da nota final, do fac-símile e do prefácio à primeira
edição feito pelas edições brasileiras, prejudica a possibilidade de uma
29
Disponível em < http://dossiersgrihl.revues.org/328?lang=fr#bodyftn36>
acesso: 10/10/2016 30
Cf. Referências Bibliográficas.
82
leitura na qual esses paratextos possam desempenhar o papel de
alógrafos fictícios, possibilidade essa, independentemente de o leitor
passar ou não de um primeiro e mais ingênuo nível de leitura, aventada
pela obra.
A edição da Estação Liberdade traz de fato nota e fac-símile, mas
suprime o prefácio à primeira edição. Com isso a relação entre esses três
paratextos fica afetada. É somente ao final da narrativa, diante da nota
final, que fica explícito para o leitor que “Há duas maneiras de explicar
a existência desse texto” (HUGO, 2005, p. 9), sendo uma delas que de
fato existiu um condenado à morte que registrou seus últimos momentos
na prisão de Bîcetre. Pois é somente com a nota que se faz alusão a um
texto “escrito com a letra do condenado”, um texto, conforme consta no
prefácio, escrito em “um maço de papeis amarelados e desiguais, em
que se encontraram registrados um a um os últimos pensamentos de um
miserável [condenado à morte] (...)”. (idem).
Já a edição da Golden Books se não elimina o jogo de autoria
proposto por Hugo, também tem essa relação afetada na medida em que
suprime a nota final e o fac-símile da canção, evitando assim que esses
dois paratextos localizados ao fim da narrativa ecoem e, portanto,
reforcem a possibilidade do jogo a partir do contrato bilateral entre autor
e leitor.
As duas outras edições brasileiras — Moderna Paulistana (s/d) e
Newton Compton (1995) — ao suprimirem esses paratextos, se não
acenam para uma possibilidade de leitura proposta pelo prefácio à
edição original, deixam, no entanto, que o texto fale por si, cabendo ao
leitor significá-lo.
Embora possa parecer atualmente pouco possível uma leitura que
entenda a obra enquanto um relato real devido aos três paratextos
referidos nesse capítulo, juntamente com a própria narrativa, o não
tolhimento dessa situação acabaria por enriquecer a leitura. Tais
supressões podem impedir uma fruição estética mais completa àquele
leitor que percebe nesse pacto mais um elemento ficcional.
As razões para que se procedesse dessa maneira nas edições
brasileiras de O Último Dia de um condenado são difíceis de precisar. A
possibilidade de ser uma questão econômica parece pouco plausível, já
que não acrescentaria mais do que três ou quatro páginas ao livro, o que
possivelmente elevaria muito pouco o seu custo. Pensar na supressão
desses elementos paratextuais em decorrência de uma opção dos
tradutores, em face da dificuldade em traduzir a canção, não deixa de ser
uma hipótese arriscada. Contudo, devido à desconsideração em traduzir
83
a letra da canção nas edições da Moderna Paulistana, Newton Compton
e Golden Books, aliada à nota de rodapé de Marie Paulette Cambè
dando conta da impossibilidade de tradução integral, a não ser de
sentido, além da posição contrária de Joana Canêdo nessa questão,
quando da sua tradução para a Estação Liberdade, tudo isso, faz com
que se levante, ainda que arriscada, essa hipótese. Não se fará aqui uma
análise da tradução de Canêdo para esse trecho do livro de Victor Hugo,
não é esse o propósito dessa dissertação, porém uma breve comparação
apenas da primeira estrofe talvez sirva para corroborar a suposição.
Le Dernier Jour d’un
condamné
Tradução de Joana Canêdo
C’est dans la rue du Mail
Où j’ai été coltigé (1), maluré
Par trois coquins de railles (2)
lirlonfa malurette,
Sur mes sique’ ont foncé (3),
lirlonfa maluré.
Foi na rua dos Cheiros
Onde fui abrochado,
Malorado,
Por três jovens brejeiros,
Lirlonfa malurete,
Que me ataram o rabo,
Lirlonfa malorado
Os termos em francês numerados correspondem às gírias
traduzidas ao lado da letra da canção no fac-símile pelo condenado.
Como a edição da Estação Liberdade não apresenta tradução do fac-
símile, mas apenas a reprodução do mesmo — apresenta sim a tradução
da canção no corpo do texto, no capítulo XVI — a tradução das gírias é
feita diretamente no corpo do texto. Não é o caso de comentar as opções
da tradutora, mas a sua tradução demonstra ser possível traduzir a
canção, indo de encontro ao argumento da tradutora da Newton
Compton. De fato, não é das tarefas mais tranquilas considerando as
gírias e os vocábulos em francês “maluré”, “lirlonfa malurette” e
“lirlonfa maluré”, os quais na tradução brasileira tem a sua tradução
naturalizada por “Malorado”, “Lirlonfa malurete” e “Lirlonfa
malorado”. As iniciais em maiúscula do texto traduzido sugerem serem
esses vocábulos os nomes dos “três jovens brejeiros”, entretanto as três
expressões se repetem nas sete estrofes restantes, não parecendo tratar-
se dos jovens brejeiros. O que a tradutora brasileira fez, a despeito de
um suposto sentido da canção, foi manter em português a musicalidade
dos versos a partir de elementos sonoros como as rimas externas e
internas, os ecos, as aliterações e as assonâncias. A opção da tradutora,
portanto, não deixa o leitor monolíngue totalmente no vácuo, como
84
acontece com as outras três edições de O Último Dia de um condenado.
Marie Paulette Cambè da Newton Compton, de fato, traduz o “sentido
geral”, mas em prosa e em uma nota de rodapé. O aspecto musical da
peça é fundamental e isso se encontra apenas na edição da Estação
Liberdade, demonstrando também por esse episódio que se trata da
edição mais bem cuidada e completa dessa obra de Victor Hugo já
publicada no Brasil.
Conforme afirmado, a hipótese é arriscada, mas é cabível se
questionarmos a razão das edições da Moderna Paulistana e Golden
Books ignorarem qualquer tentativa de tradução da canção. As
dificuldades encontradas pela tradutora da Estação Liberdade são nítidas
quando cotejamos o texto de partida com o de chegada, e também pela
rendição da tradutora da Newton Compton.
2.6. A Primeira Capa
A capa
31 de um livro é um dos primeiros, quando não o primeiro
contato do leitor com a obra, o que a torna um elemento importante já
que é comumente nela que consta o título da obra e o nome do autor. Ela
serve também como uma espécie de cartão de visitas, cumprindo em
muitos casos a função de seduzir, de capturar a atenção do leitor. Ao
longo da história a capa passou por mudanças, suas dimensões, formato
e tamanho, como também a cor, implicavam uma identificação. Assim,
quando se tratava de um livro considerado sério, uma obra filosófica ou
religiosa, por exemplo, havia uma determinada cor, quando se tratava de
um livro licencioso era outra, conforme indicavam as capas de cor
amarela na França do século XIX (GENETTE, 2009. p. 21,22).
A capa faz parte do que Genette chama de “peritexto editorial”,
uma zona de ação sob responsabilidade, ainda que não exclusiva, da
editora. Segundo o teórico francês, opções que encampam o tamanho da
fonte, disposição dos caracteres no espaçoda capa, como o nome do
autor que caso seja famoso pode vir em destaque, ficam geralmente a
cargo da editora (idem p. 40).
A primeira capa é um espaço no qual podem aparecer várias
informações. Genette elenca vinte delas, ainda que, como diz,
pressupõe-se que nunca todas as possibilidades foram usadas ao mesmo
tempo. Entre elas consta o nome do tradutor, prefaciador, organizador,
31
Gérard Genette utiliza a expressão “primeira capa”, a qual também adotamos
para essa dissertação.
85
epígrafe, retrato do autor, ilustração específica, número de tiragem,
título ou emblema de coleção, apenas para citar algumas. (2009, p. 27-
28). A rigor, é de praxe constar o nome do autor, título e selo do editor
(idem p.27). A primeira capa torna-se um elemento integrante do texto,
constituindo paratexto, na medida em que ela pode de certa maneira
antecipar ou mesmo apontar o que o leitor encontrará no texto
propriamente dito (GENETTE, 2009, p. 30).
A iconografia presente nas edições brasileiras se apresenta
também na contracapa, orelhas e uma reprodução manuscrita presente
apenas na 3ª edição, mas, sobretudo na primeira capa, cuja análise
passarei em seguida.
2.6.1. Primeira Capa - 1ª Edição Editorial Moderna Paulistana – s/d
A primeira capa da Moderna Paulistana é bastante curiosa, já que
não há nenhuma menção à obra de Hugo. No alto, à esquerda, ainda que
em caracteres pequenos, é bem visível o nome de Émile Zola. Mais
abaixo, à direita o título da obra, Noivado Trágico, tradução não menos
curiosa para um romance de 1888, cujo título original em francês é “Le
rêve”. As traduções subsequentes dessa obra no Brasil traduziram o
título como “O sonho”, portanto, mais próximo do sentido em francês.
O desenho da capa, de autoria de Gutierrez, localizada abaixo, à direita,
em caligrafia manuscrita, é bastante sugestivo e simbólico. Entretanto, a
obra de Zola não é o objeto de estudo aqui, mas sim a novela de Victor
Hugo, a qual não há nos peritextos editoriais qualquer menção a O
Último Dia de um condenado.
86
O romance de Zola chega ao fim na página 207, seguem-se duas
páginas em branco, uma primeira folha de rosto com o título da novela
de Hugo, centralizado, e uma segunda folha de rosto, trazendo no alto da
página o nome do autor em caixa alta, centralizado e sublinhado. No
centro da folha o título da obra em letras minúsculas, mas em fonte
maior que o nome do autor. Abaixo do título o selo da editora,
centralizado. Por fim, na parte de baixo da página, em caixa alta e fonte
menor que todos os caracteres anteriores, constam o nome da editora e o
seu endereço. A folha seguinte traz o início da narrativa, aparecendo
mais uma vez o título da obra, dessa vez em negrito e centralizado. A
página seguinte está numerada, mas não segue a numeração anterior,
inicia-se uma nova numeração.
As razões para que a novela de Hugo tenha sido colocada após o
romance de Zola sem informação alguma sobre o fato é difícil de
precisar, principalmente pela distância temporal e o fato da editora não
mais existir, o que dificulta informações sobre a mesma. A edição da
Moderna Paulistana não especifica a data da publicação, embora talvez
seja possível situar a publicação nos anos 30 do século XX em razão da
maioria das publicações dessa editora pertencer a esse período. Durante
a pesquisa não encontrei publicações da editora que não fossem dos
anos 30, o que poderia levar à hipótese de que a Moderna Paulistana
atuou apenas nessa década. Entretanto, há obras sem data, além do que
não se pode afirmar categoricamente o desaparecimento da editora nos
anos subsequentes, ainda que não tenha sido encontrado, reforço,
nenhuma obra publicada pela editora nas décadas seguintes.
Em consulta aos sites Estante Virtual e da Biblioteca Nacional32
foram encontrados 15 títulos publicados pela Editorial Moderna
Paulistana, oito deles sem data de publicação (Os moicanos de Paris, de
Alexandre Dumas; A mulher adúltera, de Perez Escrich; Um drama sangrento, de Xavier de Montepin; História de um crime, O Último Dia
de um condenado e O homem fera, todos de Victor Hugo; Noivado
Trágico, de Émile Zola; O judeu errante, de Eugène Sue; As mentiras convencionais da nossa civilização, de Max Nordau); um publicado em
1930 (O filho infame, de Xavier de Montepin); quatro publicados em
32
Encontrei menos exemplares no mecanismo de busca da Biblioteca Nacional
do que no site da Estante Virtual. Ainda que não se possa ter uma real dimensão
das publicações da Editorial Moderna Paulistana em sua totalidade, sites como
esses se configuram como uma das formas mais eficientes de se obter ao menos
uma mostra das publicações, sobretudo porque o Brasil não conta com um
cadastro de obras antigas e raras.
87
1932 (Os Dois Garotos [5 Volumes], de Pierre Decourcelle; O Mistério
do Bandido, de Sexton Blake; Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche;
Nu ao ar livre, de Arnoldo Piratininga); dois de 1939 (A Noite do Crime,
de Xavier de Montepin e Recordações da casa dos mortos, de Fiódor
Dostoiévski).
Uma hipótese, a qual não se pode deixar de levantar é a de erro
de impressão. Aventa-se tal possibilidade a partir da interrupção da
paginação ao fim do romance de Zola e reinício da numeração, passando
a contar a partir da página 6, na novela de Victor Hugo. O habitual
talvez fosse que O Último Dia de um condenado continuasse a partir do
número de página em que termina Noivado Trágico33
. Além disso, as
duas folhas de rosto presentes na obra de Hugo são correspondentes
àquelas da obra de Zola, dando a impressão de que ao livro de Hugo
faltara apenas a capa. Cumpre dizer ainda que pude verificar outros dois
exemplares dessa edição, todos se apresentaram da mesma forma.
A averiguação de outras obras da coleção permitiu que fosse
verificado se tal qual o romance de Zola, obras de outros autores
também se fazem presentes ao final daquela anunciada na capa, o que
não se confirmou.
Até onde pude averiguar em minha pesquisa, é essa a primeira
edição de O Último Dia de um condenado no Brasil, logo é a introdução
da obra no sistema literário brasileiro. E ainda que não seja considerada
uma das suas principais obras, ela pertence a um autor consagrado e
bastante traduzido no Brasil desde o século XIX, seria de se esperar, por
parte de uma editora, um cuidado maior para uma primeira edição. A
menos que a proposta fosse essa, a introdução de textos mais curtos,
consideradas obras menores de autores consagrados, “escondidos” em
33
Pesquisei algumas edições de outros autores e também de Victor Hugo,
publicadas no Brasil e na França, a fim de confirmar essa questão da numeração
das páginas. Assim, mantém a numeração de páginas em ordem crescente até o
seu final a edição de Victor Hugo da Livre de Poche, que traz além de O Último
Dia de um condenado também as obras Claude Gueux e L’Affaire Tapner; a
edição da Gallimard para os contos Un coeur simple e L’Affaire Lemoine de
Flaubert e Proust, respectivamente; La Duchesse de Langeais - Suivi de
Ferragus et de La Fille aux yeux d'or, de Balzac, publicado pela Hatier. No
Brasil se pode citar “Os gênios” seguido de “Exemplos”, de Victor Hugo,
publicado pela editora Sistema Solar; Três Romances, publicado pela L&PM e
que traz Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro,
de Machado de Assis; Macário, Noite na Taverna e Poemas Malditos, de
Álvares de Azevedo, publicado pela Francisco Alves.
88
meio a um romance de outro autor. Entretanto, se a proposta fosse de
fato introduzir esses textos, talvez fosse mais pertinente abrir outra
coleção com esse propósito, embora a possibilidade de uma “surpresa”
também pudesse ser atraente.
2.6.2. Primeira Capa - 2ª Edição Editora Newton Compton – 1995
A Editora Newton Compton traz a primeira capa em brochura,
com letras nas cores verde e preto sobre um fundo na cor creme. O
nome do autor aparece em destaque, em caixa alta, no alto da página,
centralizado. No canto superior esquerdo consta o número de páginas e
no superior direito o preço do exemplar. O destaque dado ao autor
indica, segundo Genette (2009, p.40) a importância do mesmo no
cenário literário. Por sua vez as informações nos dois cantos superiores
demonstram duas preocupações: que a obra não é densa do ponto de
vista das páginas, o que se tratando de Victor Hugo não é bastante
comum, vide as obras que lhe trouxeram fama e reconhecimento34
; e que
o preço popular coloca um autor dessa envergadura ao alcance de um
público mais amplo. O título da novela aparece centralizado na página,
abaixo à esquerda, está creditada a autoria da tradução. O canto inferior
esquerdo apresenta uma citação do texto e a sua direita uma ilustração
de um homem sendo conduzido coercitivamente por dois guardas. Por
34
Os Miseráveis (Martin Claret, 2014, 1511 p.); Os Trabalhadores do Mar
(Cosac Naify, 2013, 704 p.); O Corcunda de Notre Dame (Zahar, 2013, 624 p.).
89
fim, há a informação de tratar-se do texto integral e a coleção da editora
a qual pertence a obra.
A ilustração escolhida para a capa de O Último Dia de um condenado à morte da Newton Compton reproduz um quadro do pintor
italiano Aligi Sassu, Fucilazione nelle asturie35
, o qual representa muito
bem a obra de Victor Hugo. O leitor que não conhece o quadro percebe
imediatamente tratar-se de um prisioneiro levado por dois guardas,
sendo possível a inferência de que será fuzilado. A informação visual
faz então eco ao título da obra, localizado logo acima, e também espelha
a citação à esquerda da gravura “Por que não? Os homens... são todos
condenados à morte sem apelação”. Já para o leitor que conhece o pintor
italiano a ilustração afina-se com a obra por sem
elhanças históricas. Tal qual Victor Hugo, Aligi Sassu também
fez de sua arte uma maneira de posicionar-se politicamente. Antifascista
convicto, logo que explodiu a Guerra Civil na Espanha colocou-se
contra Franco e mostrou-se simpático aos revolucionários espanhóis. Foi
preso em 1937 na Itália, acusado pelo regime fascista de Mussolini de
subversão da ordem e do Estado, sendo sentenciado a dez anos de
prisão, dos quais cumpriu pouco mais de um ano, sendo perdoado pelo
rei da Itália Vitor Emanuel II. 36
O quadro que ilustra a edição da Newton Compton é de 1935, um
ano antes da deflagração da Guerra Civil da Espanha, e teve por
inspiração a Revolução das Astúrias, prenúncio da guerra civil, ocorrida
na região homônima da Espanha em novembro de 1934. Sassu estava na
França e se manteve informado sobre o assunto via a imprensa francesa,
que acompanhava de perto e com muito interesse os acontecimentos no
país vizinho.
Os dois soldados que conduzem o prisioneiro, pintados em tons
de verde escuro e preto, parecem se misturar com essas cores ao fundo,
as quais contrastam com a iluminação que incide sobre os seus rostos e
mãos. As armas em diagonal formam um “v” que emoldura a figura
central do condenado, em tons pastel e marrom terra, e servem para
chamar a atenção visual para o prisioneiro que, algemado, é levado à
execução. As pinceladas fortes, os tons escuros, avermelhados em
alguns pontos, sobretudo sobre o condenado, aludem ao sangue que
pode simbolizar a vida que em breve cessará. A postura curvada, o torso
35
Conferir Anexo I. 36
Disponível em: A.A.A. Amici Dell’ Arte Di Aligi Sassu <
http://www.amicialigisassu.it/index.htm> Acesso em: 20/03/2016.
90
nu, os pés descalços e a cabeça baixa também podem sugerir a
degradação física e psicológica de um prisioneiro a caminho da
execução.
A primeira capa da edição de 1995 de O Último Dia de um
condenado à morte traz uma questão de tradução, trata-se da
clarificação do título, ao qual é acrescentada a expressão à morte,
ausente no texto fonte como também nas três outras edições da obra no
Brasil. A opção da tradutora enfatiza ou deixa explícita de que
condenação se trata, embora os outros elementos da primeira capa, como
se verá a seguir, sugerem essa interpretação.
A capa da edição da Newton Compton parece cumprir duas
funções. Uma no âmbito de apresentação da própria obra, com o fim de
chamar a atenção do leitor, o que é comum no mercado editorial, quando
buscou elementos que espelhassem o título, tal qual a gravura e a citação
sobre a pena de morte. A outra diz respeito a informações que visam
marcar a importância da edição, que mesmo a preço módico e em papel
de qualidade inferior, trata-se de uma edição integral e de um texto de
um autor canônico. Além disso, ao trazer na capa o nome da tradutora, a
editora revela certa preocupação, sinalizando o cuidado que teve com a
questão, sugerindo que se trata de uma edição séria, apesar da qualidade
do material.
Comparada com a edição anterior da novela de Hugo, a da
Newton Compton repara a negligência com que a obra foi apresentada
ao leitor brasileiro décadas antes.
2.6.3. Primeira Capa - 3ª Edição Editora Estação Liberdade – 2002
91
Entre as quatro primeiras-capas a da Estação Liberdade é a mais
sóbria delas, o que é imediatamente perceptível devido à neutralidade da
cor cinza, escolhida como cor de fundo. A edição da Estação Liberdade
aponta para uma concepção de apresentação que privilegia a parcimônia,
direcionada talvez a um leitor mais sofisticado, ou mesmo já conhecedor
da obra37
. Comparada com a capa da edição anterior, da Newton
Compton, essa 3ª edição de O Último Dia de um condenado no Brasil é
mais limpa, figurando não mais que cinco itens na capa, caso
consideremos o manuscrito que a decora.
O nome do autor está em destaque, ocupando mais da metade
da lateral esquerda, sob um fundo cinza ligeiramente mais escuro que o
restante da capa, revelando assim certa estratégia editorial apontada por
Genette (2009, p.40), na qual o destaque dado ao nome do autor via
caracteres maiores ou mesmo diferentes dos demais demonstra ser o
autor bastante conhecido, que é o caso, ou ainda fazer parecer que o
autor assim o é. O selo da editora aparece na mesma lateral do nome do
autor e não está relacionado a nenhuma coleção específica da editora,
parece ser tão somente o logotipo da mesma. A gravura localizada na
parte superior direita é do próprio Victor Hugo. Ecce38
, pintura em
guache, encontra-se atualmente no museu do Louvre, e mostra um
homem enforcado sob o cadafalso. A técnica pictórica do chiaroescuro
envolve o corpo do enforcado em sombras, ao passo que a luz, advinda
do canto superior à esquerda da gravura incide diretamente na cabeça do
enforcado, pendida para baixo, marcando a ignomínia do ato.
A técnica do chiaroescuro surge no renascimento italiano, mas
é no barroco que ela adquire tons mais dramáticos, intensificando-se em
uma vertente que ficou conhecida como tenebrismo e que perdurou
irregularmente até o romantismo. Já se disse que as pinturas de Victor
Hugo são de orientação mais realista, contudo a dramaticidade do
tenebrismo serve em Ecce a fim de provocar certa comoção que se
coaduna ao ideal engajado da obra.
37
Hipótese essa que parece pertinente em razão da escolha e ordem de
apresentação dos prefácios, sem contar demais paratextos, como notas de
rodapé, uma nota final, inserida na edição original de 1829, acompanhada da
reprodução fac-símile de uma canção supostamente manuscrita pelo condenado.
Tais paratextos serão também analisados na presente dissertação. 38
Conferir anexo II.
92
Ecce é um dos três desenhos39
que têm por tema o enforcado,
feitos por Hugo no ano de 1854, durante o seu exílio em Jersey. A
gravura surge em decorrência da condenação à morte de John Charles
Tapner na ilha vizinha de Guernesey. Hugo tomou partido no caso por
meio de cartas abertas à população da ilha e ao ministro do interior da
Inglaterra, Lorde Palmerston. Essas cartas seriam depois reunidas no
L’Affaire Tapner, que ao lado de O Último Dia de um condenado,
Claude Gueux e as demais aquarelas fazem parte da incansável
militância de Hugo contra a pena de morte. Daí que a opção da aquarela
para ilustrar a capa da novela por parte da Estação Liberdade mostra-se
coerente com a proposta da editora para esse paratexto e, também, em
total sintonia com a obra e o autor, já que o desenho é do próprio Hugo.
A relação com a “condenação” anunciada no título é imediata, pois é de
conhecimento geral que o enforcamento é uma forma de execução
largamente utilizada na história humana, ainda o sendo em algumas
cortes mundo afora.
A opção editorial para a primeira capa da edição de 2002
privilegia a trama, portanto. Qualquer outra informação paratextual é
negada ao leitor nesse momento. Assim, a gravura também se faz texto,
permite a existência de um texto na mente do leitor, na medida em que
dialoga diretamente com o título da obra. Nesse sentido, a trama que se
desenvolve no interior do livro inicia-se já na capa, o leitor apenas não
sabe qual o argumento para uma condenação à morte, nem se de fato a
execução ocorrerá e tampouco quem é o condenado. Para isso, será
necessário ler o texto.
A capa da 3ª edição nesse aspecto possui também um viés
publicitário, com a vantagem de se ter o produto em mãos. O conjunto
obtido pela Estação Liberdade na capa do seu Último Dia de um
condenado dialoga com o conteúdo da obra, o qual se torna a sua
publicidade, porém não uma publicidade agressiva e fútil. As ilações
que a capa demanda por parte do leitor deixam ver, ao lado dos demais
paratextos, que a edição de 2002 se dirige, conforme mencionado
anteriormente, a um leitor possivelmente mais sofisticado ou ainda
conhecedor da obra. Esse direcionamento, entretanto, ocorre em razão
do horizonte editorial no momento em que surge essa 3ª edição pela
Estação Liberdade, horizonte esse que contava já com duas edições.
39
Ecce e Ecce Lex, variação sobre o enforcado se encontram no museu do
Louvre em Paris. Já Justitia está na Hauteville House, atualmente Museu Victor
Hugo em Guernesey.
93
Assim, pode-se constatar que a edição de 2002 se contrapõe no que
concerne à primeira capa às anteriores, sobretudo a de 1995, mais
poluída visualmente.
2.6.4. Primeira Capa - 4ª Edição Editora Golden Books – 2005
Chama imediatamente a atenção na capa da edição da Golden
Books o nome do autor, o qual ocupa praticamente toda a página no
sentido horizontal, e pelo menos 1/3 dela no vertical. O destaque dado
pela editora ao nome de Victor Hugo configura-se não apenas no espaço
a ele reservado, mas também nas diferenças presentes nos seus
caracteres em relação aos outros. O nome do autor aparece em caixa
alta, três vezes maior do que o título e pelo menos cinco vezes maior
que o texto de chamada. Sobre o fundo vermelho, os caracteres da
autoria da novela aparecem em amarelo ouro, tendo cada letra um
contorno bem marcado em preto. A combinação do vermelho, amarelo e
preto por si só chama a atenção em razão dos contrastes cromáticos. O
amarelo dos caracteres da autoria difere ainda daqueles do texto de
chamada — sobre o qual falarei mais adiante —. Estes são foscos, ao
passo que no da autoria encontramos um amarelo ouro que brilha ao
longo das letras. Todas essas combinações deixam ver que a primeira
capa da Golden Books dá primazia ao autor sobre a obra. Talvez em
razão de O Último Dia de um condenado não ser um dos carros chefes
de Victor Hugo, que nesse contexto tem envergadura maior que a sua
novela.
Logo abaixo do nome do autor, em letras menores, em caixa
baixa e na cor branca, aparece o título da obra, comprimido, se
94
considerarmos a disposição na página dos caracteres com nome do
autor, no canto esquerdo da capa. A cor branca entra incontinenti em
contraste com os caracteres em amarelo e o fundo vermelho. Em
caracteres amarelos também encontramos logo abaixo do título um
pequeno texto de chamada, que não faz parte da obra, mas procura
fornecer um vislumbre daquilo que o leitor encontrará quando a ler. É
essa uma estratégia que visa provocar certa curiosidade no leitor, é uma
estratégia de sedução, que deve instigar no leitor o desejo de ler o livro.
Por fim temos o selo da editora, centralizado, ao pé da página,
em tamanho bastante pequeno, com quase nenhum destaque, a não ser
pelas cores dos caracteres em amarelo ouro tal qual o nome do autor. A
discrição do selo da editora é praxe no mercado editorial, geralmente de
todos os caracteres presentes em uma capa é o que menos chama a
atenção.
Entre todas as capas das edições em estudo de O Último Dia de
um condenado no Brasil, a da Golden Books é a mais chamativa. As
duas edições anteriores, restritas em um espaço de dez anos, são mais
sóbrias. A razão disso pode estar no público alvo, possivelmente jovem,
em formação, estudantil. O projeto gráfico da primeira capa aponta para
isso. A combinação apelativa de cores que a fazem saltar aos olhos,
somada a uma personificação da personagem do título por meio de um
desenho que mostra a metade do rosto de um homem em tons de cinza,
difuso, sem contornos, e que termina por dar uma face ao condenado são
elementos que permitem tal hipótese. Ademais, juntam-se a esse projeto
de capa a ausência de paratextos importantes, presentes nas duas edições
de 1995 e 2002. Os dois prefácios, o sainete e o de 1832 estão entre eles,
além de notas de rodapé explicativas. A edição da Golden Books conta
ainda com paratextos que corroboram com essa possibilidade. Há, por
exemplo, um breve prefácio intitulado Razões para ler Victor Hugo que
claramente dirige-se a um público que pouco conhece o autor. Nessa
mesma linha vão as orelhas e a 4ª capa. Há ainda o tamanho da letra, de
tamanho maior que o habitual, a fim talvez de facilitar a leitura de um
público ainda em formação literária.
Dado que se pode considerar que dez anos é um curto espaço de
tempo para que uma obra conte com três edições diferentes, inclusive do
ponto de vista das traduções, e que as edições de 1995 e 2002
propiciaram ao leitor o acesso a uma publicação mais completa, não
corroborando com uma leitura um pouco mais ingênua, pode-se então
conjecturar que a edição da Golden Books surge para preencher essa
lacuna. Parece não ser muito comum outra edição mais completa de uma
95
obra, contando também com nova tradução, surgir no mercado apenas
três anos depois de haver surgido uma com tais características. A menos
que o projeto tanto editorial quanto de tradução da edição anterior fosse
um desastre, o que não é o caso. Talvez o projeto da Golden Books já
estivesse em andamento na época da publicação da Estação Liberdade,
contudo, parece pouco provável em razão do tempo que separa uma
edição da outra. O mais provável, a julgar pelas questões aqui
apontadas, é que a Golden Books privilegiasse então um leitor não
contemplado pelas duas edições anteriores.
2.7. Orelhas
Dentre o peritexto editorial, aquele espaço que fica geralmente
sob a responsabilidade do editor, as orelhas de uma obra compõem o
que Genette (2009, p. 21) chama de peritexto mais exterior. Informações
sobre o autor, sinopse da obra, a coleção editorial à qual a obra pertence,
são frequentemente encontradas nas orelhas dos livros. A orelha pode
também trazer outras informações como trechos de críticas e
depoimentos de outros escritores sobre a obra, elas fazem parte da
apresentação do livro ao leitor. A comparação entre as edições em
estudo, quais delas possuem orelhas, quais não possuem, que paratextos
se fazem presentes, como são apresentados, quais possíveis finalidades,
é ao que passo nesse momento.
Entre as edições brasileiras aqui estudadas apresentam orelhas
somente as duas últimas, a da Estação Liberdade (2002) e a da Golden
Books (2005). A edição de 2002 traz logo no início da orelha da
primeira capa, ocupando um terço do espaço, a reprodução de um
conhecido desenho retratando Victor Hugo já idoso, com sua longa
barba, uma imagem icônica do escritor. Desenhado por Jules Bastien-
Lepage, o desenho original encontra-se no Museu Victor Hugo, em
Paris, referência esta informada ao pé da reprodução. Em seguida inicia-
se um texto, não assinado, que se prolonga pela orelha da quarta capa. O
texto versa sobre “o lugar excepcional na história da literatura ocidental,
dominando todo o século XIX”, ocupado por Victor Hugo, devido,
sobretudo, ao “gênio e diversidade da sua obra”. Em seguida, são citadas
algumas obras importantes do autor para quase que imediatamente tratar
da obra que o leitor tem em mãos. O texto procura articular realidade e
ficção, já que há certo destaque para o papel de homem público que foi
Victor Hugo, defensor das causas sociais e, entre elas, a militância até os
seus últimos dias contra a pena de morte, e a narrativa propriamente
96
dita. O texto prossegue abordando a repercussão da obra na época do
seu lançamento, a polêmica instaurada, o seu caráter engajado, ao
mesmo tempo em que enaltece técnicas narrativas presentes na novela,
“bastante avançadas para a época de sua publicação original”. A citação
de trechos mais passionais do Prefácio de 1832 associada à narrativa de
O Último Dia de um condenado reforçam a fusão do Victor Hugo artista
e homem de valores elevados. Por fim, a orelha traz informações sobre
os prefácios de 1829, o sainete, e o prefácio de 1832, informando que
neste último há a resposta de Hugo às críticas recebidas na época, e
também a defesa da abolição da pena de morte. A orelha termina com a
afirmação de que o autor é um porta-voz da condição humana e dos seus
direitos, como atestam os textos que o leitor tem em mãos. Uma última
informação, separada do texto, umas duas linhas abaixo, dá conta da
existência no final da edição de uma cronologia da vida e obra de Victor
Hugo.
A edição da Golden Books, por sua vez, apresenta também uma
orelha na primeira capa e outra na quarta capa. A orelha de capa
apresenta a obra mencionando a primeira edição sem a identificação da
autoria e, em seguida, apresenta certa preocupação com a leitura ao
afirmar que a obra “foi escrita com simplicidade”, mas evolui para uma
narrativa “envolvente, questionadora e emocionante”. Esse texto — que
a exemplo do que acontece com a edição da Estação Liberdade também
não traz autoria — procura corroborar tais afirmações a partir da citação
de um trecho da obra, que serve para reafirmar o aspecto emocional da
narrativa, para a qual a apresentação procura chamar a atenção.
Os dois últimos parágrafos dessa primeira orelha são dedicados
a explanar um pouco a concepção de Hugo em relação à pena de morte,
discorrendo brevemente sobre a discussão suscitada pela novela e o
talento do escritor que “com rara sensibilidade e lucidez faz uma crítica
eloquente aos sistemas social e penal da época”.
A orelha da quarta capa traça uma breve biografia de Victor
Hugo, mencionando o seu talento precoce quando aos dezessete anos
venceu um importante prémio de poesia e a sua estreia como romancista
aos 21 anos com Han d’Island. Procura-se também contextualizar
Victor Hugo não somente como o principal autor do Romantismo na
França, mas também como um dos escritores centrais do século XIX,
cuja influência irradiou pelos demais países ocidentais.
A função das orelhas é, juntamente com a capa e em alguns
casos também a contracapa, apresentar o livro e também seduzir o leitor
97
em relação ao produto a ser consumido. Nesse aspecto, as orelhas
podem oferecer informações que levarão o leitor ao texto do autor.
A partir das orelhas é também possível vislumbrar o projeto
editorial para uma obra e doravante especular sobre a qual público ela se
dirige. Da mesma forma que toda tradução possui um projeto que acaba
atingindo o público de maneiras específicas (Berman), o produto livro
também passa pelo mesmo processo, ressalte-se a diferença de que um
projeto de tradução pode tanto ser algo consciente por parte do tradutor,
quanto também inconsciente. Ao passo que um projeto editorial tem um
objetivo específico, levando em conta mais o mercado, encampa
técnicas publicitárias e, portanto, ocorre de maneira racional, para
atingir determinados fins.
As orelhas da edição da Estação Liberdade procuram apresentar
não apenas a narrativa que o leitor em potencial tem em mãos, e que na
maioria dos casos é a razão pela qual ele consome uma obra, mas deixa
ver também algo mais. O espaço dado aos dois prefácios, inclusive com
citações, sobretudo o de 1832, demonstra ao leitor que ele está diante de
uma edição mais completa, que lhe permitirá ter uma noção do debate
no momento em que a obra foi publicada, enriquecendo assim a sua
leitura. A julgar pela orelha dessa edição é possível conjecturar que o
projeto editorial para O Último Dia de um condenado da Estação
Liberdade, está focado mais no autor do que na obra que esse paratexto
apresenta ao leitor. Ao deparar-se com a orelha da primeira capa, o leitor
encontra não só um retrato do autor, mas os dois vocábulos que iniciam
o texto é justamente o nome do escritor. A sua trajetória literária, a sua
importância enquanto escritor, defensor de causas sociais, com ênfase na
luta pela abolição da pena de morte aparecem antes não de uma sinopse
da novela, a qual não se faz presente em nenhum elemento paratextual
do livro, mas sim da única menção à obra nesse texto. Ao invés de um
breve resumo, de uma citação da novela, temos o enaltecimento do
escritor via seu compromisso social, do qual a narrativa é mais um
elemento. Há uma citação em seguida, porém não da obra, e sim do
Prefácio de 1832, no qual Victor Hugo, não apenas o escritor, mas
também o ativista manifesta-se em um ato político, portanto, sobre o
tema. A orelha da quarta capa segue a mesma disposição.
O Último Dia de um condenado não é, como já mencionado,
um chef d’oeuvre do escritor francês, outras obras já bem conhecidas do
público brasileiro detêm esse status. É por esse aspecto que se pode
julgar Victor Hugo maior do que a novela em questão. É possível ver no
enfoque dado pela editora ao prestígio literário de Victor Hugo,
98
acrescido do realce sobre o Hugo engajado em questões sociais, uma
maneira de abonar essa obra menor — quando comparada a outras obras
suas — do autor. Pode-se ver nessa escolha um projeto editorial, o qual
procura o privilégio do autor sobre a obra como uma estratégia de
sedução do leitor. Estratégia essa que pode se justificar exatamente pela
importância e popularidade de Victor Hugo.
Em relação à edição da Golden Books percebe-se uma
estratégia de apresentação que destaca mais a obra, se comparada à
edição da Estação Liberdade. O foco é O Último Dia de um condenado.
O nome de Victor Hugo aparece somente no final do primeiro parágrafo,
a citação que aparece em seguida é da própria obra e não de um texto
crítico como o Prefácio de 1832, aliás, ausente desta edição, como
também está o Prefácio de 1829. As menções a Victor Hugo na orelha
da capa contemplam o seu papel de escritor, ainda que sensível a
questões sociais, contudo repousando mais sobre o seu gênio criativo. A
orelha da contracapa, por sua vez, trata sim apenas de Victor Hugo, mas
aborda, conforme já mencionado, a sua trajetória enquanto escritor e a
sua importância para a literatura ocidental. As orelhas da edição de 2005
deixam ver, portanto, que a editora evidenciou mais o texto do que o
autor. Assim, pode-se aventar que uma das facetas do projeto editorial
para O Último Dia de um condenado da Golden Books é priorizar o
texto e a sua capacidade de sustentar-se por si próprio. Naturalmente,
esse é um dos aspectos desse projeto, o qual se completa juntamente
com os outros paratextos, como a quarta capa, cuja análise passo a fazer
no capítulo que se inicia.
2.8. A Quarta Capa
A quarta capa, ou contracapa, faz parte do que Genette chama
de peritexto editorial, juntamente com as orelhas, folhas de rosto e
eventuais anexos. Esta é uma instância de responsabilidade direta e
principal do editor, mas não exclusivamente (2009, p. 21), e cumpre
geralmente a função de apresentar a obra ao leitor. Quando ocorre o
primeiro contato físico do leitor com a obra que talvez venha a adquirir,
é a partir do peritexto que ele tem uma primeira ideia do que tem em
mãos. Excetuando-se, naturalmente, quando há conhecimento prévio da
obra ou mesmo quando esse primeiro contato ocorre virtualmente,
através de sites de livrarias, editoras ou mesmo mecanismos de busca na
internet.
99
É por meio de uma rápida leitura da contracapa e demais
peritextos que o leitor tem a possibilidade de definir as suas expectativas
em relação ao texto. Claramente tal contato também possui como
objetivo aproximar o leitor do universo da obra, mas, além disso, há um
viés de propaganda, a partir do qual se procura seduzir o leitor para que
adquira o livro. Nesse aspecto, o peritexto talvez seja a mais direta peça
de marketing em relação ao produto, pois ele está fisicamente ligado a
esse produto, faz também parte dele. O leitor pode, inclusive, manusear
e mesmo ler o objeto da propaganda, antes de comprá-lo. Há uma
espécie de “garantia in loco” envolvida nesse processo.
É nesse sentido que Genette (idem, p. 28) afirma que a quarta
capa é outro lugar estratégico. O autor de Paratextos Editoriais expõe
uma lista do que é comum aparecer em uma contracapa, como nome do
autor e título da obra; nota biográfica e/ou bibliográfica; um release;
citações da imprensa; menções a outras obras publicadas pelo mesmo
editor ou mesma coleção; um manifesto da coleção; número de ISBN
entre outros. Alguns desses itens aparecem nas contracapas das edições
de O Último Dia de um condenado publicadas no Brasil, que é ao que
passo doravante.
2.8.1. Quarta Capa - Editora Moderna Paulistana
A quarta capa da editora Moderna Paulistana traz uma faixa
vertical que divide a contracapa em duas partes. Do lado esquerdo, em
destaque, consta o nome da coleção “Bibliotheca de Romances
Célebres”, à qual pertence a obra. Ainda desse lado, embaixo, o preço
100
dos volumes. Ao lado direito há um texto apresentando a coleção, cujo
projeto era o de levar ao público brasileiro obras e autores consagrados
em âmbito mundial, “cuidadosamente traduzidos para o nosso idioma”,
obras tais que continham entre 300 e 500 páginas, com capas artísticas e
ilustradas. O texto apresenta a coleção como bem cuidada e talvez até
luxuosa para os padrões da época. Em seguida listam-se alguns
volumes publicados e outros ainda inéditos.
A contracapa da Moderna Paulistana enquanto paratexto dialoga
não diretamente com o texto de Hugo, ou de Émile Zola nesse caso, mas
sim com o cânone literário no qual estão inseridos os dois autores
franceses. Os nomes que estão ao lado deles nesta coleção são todos
nomes consagrados da literatura ocidental. Fazer parte do panteão é por
si só suficiente para garantir a qualidade da obra e justificar a sua
aquisição pelo público. Pode-se conjecturar, portanto, que a contracapa
dessa 1ª edição — ainda que tudo indique ter sido essa edição acidental
— de O Último Dia de um condenado no Brasil tenha como função
seduzir o leitor. Isso se inicia já pelo nome da coleção, o que sugere um
tom elevado, afinal, são romances ilustres, famosos, aprovados,
portanto, por público e crítica. E todos fazendo parte de um mesmo
conjunto, todos agrupados em uma “Bibliotheca” de grandes escritores.
Além disso, há o preço dos livros, 6$000 réis para capa em brochura e
8$000 réis para capa dura40
. Ainda que seja difícil atualizar o valor real
do livro na atual moeda do Brasil41
, se pode supor que o preço era
acessível, já que não seria uma estratégia de venda muito inteligente
deixar visível ao público um valor que tornasse a aquisição difícil.
Por fim, o texto de apresentação da coleção que, conforme já
mencionado, procura via cânone convencer o leitor de que o mesmo tem
em mãos uma obra literária importante, justificando a aquisição do
produto. A lista de volumes publicados mostra a realidade da coleção,
assim como a dos próximos a se publicar mostra a disposição da editora
em dar continuidade à coleção.
40
Embora não seja possível visualizar essa informação devido à capa estar
danificada, foi possível corroborá-la ao examinar outras obras da coleção. 41
Segundo o site Moedas do Brasil 1 real hoje seria o equivalente a
2.750.000.000.000.000.000 réis. Há que se considerar que a inflação acumulada
entre os anos 30 do século passado até o momento presente foi de 12.000%.
Disponível em: < http://www.moedasdobrasil.com.br/moedas/reformas.asp>.
Acesso em: 01/05/2017.
101
2.8.2. Quarta Capa - Editora Newton Compton
A quarta capa da Newton Compton está praticamente inteira
tomada por textos, três para ser mais específico. O primeiro deles indica
que a obra pertence à coleção “Clássicos Econômicos Newton”. Em um
breve texto de cinco linhas a coleção é apresentada enfatizando-se a
proposta de propiciar ao leitor, por um preço bastante módico, “grande
literatura”.
O texto seguinte dá uma breve ideia da trama da obra,
privilegiando os aspectos psicológico e emocional do protagonista
diante da morte iminente. O foco passa então a ser a relação de Victor
Hugo com a pena de morte e a sua luta pelos inalienáveis direitos do
homem. Um Hugo militante pelos direitos humanos que faz da sua veia
artística uma arma de combate, na qual O Último Dia de um condenado
é um exemplo, é a perspectiva que se oferece ao leitor nesse texto que
apresenta a obra subordinada ao autor, cujo destaque é maior. Em
seguida, em não mais que seis linhas, traçam-se brevemente a trajetória
de Victor Hugo, sua iniciação literária, os vários gêneros os quais
escreveu, a sua importância para a literatura romântica francesa, além de
data de nascimento e morte.
Por fim a editora procura estabelecer, separado do texto principal,
no interior de um quadro vermelho, um contato mais direto com o leitor
parabenizando-o por adquirir “um clássico Newton Compton”. Reforça
a questão econômica e anuncia o lançamento de dois mil outros
clássicos Newton Compton, a serem lançados semanalmente e
divididos, além da coleção “Clássicos Newton Compton da Literatura”
— somente nesse momento a coleção é assim denominada —, nas
102
coleções “Clássicos Newton Compton da Ficção” e “Clássicos Newton
Compton do Suspense”. Essa brevíssima missiva traz ainda a
informação de que O Último Dia de um condenado é a obra inaugural da
coleção. Finda-se o texto com o slogan da coleção: “Newton Compton:
toda semana um Clássico para você”.
A quarta capa da segunda edição no Brasil da novela de Victor
Hugo procura seduzir o leitor sob dois aspectos, primeiramente pelo
fator econômico e depois pela legitimação da obra via coleção.
Ademais, esse parece ser um diálogo subjacente que é mantido pela
editora com o leitor, visando obviamente a venda do seu produto. Inserir
uma obra em uma coleção composta por obras e autores canônicos
parece também uma estratégia de sedução e venda. A obra em questão
não é das mais conhecidas de Victor Hugo, mas o autor dispensa muitas
apresentações, seu nome, suas obras e mesmo o seu rosto são
conhecidos do público leitor. O tema da obra, a pena de morte, é algo
que desperta a atenção, a companhia de obras de autores como Edgar
Allan Poe e Oscar Wilde — informação da contracapa — apenas
reforçam a estatura de Hugo. Assim, diante de uma obra menor, se
comparada às outras do mesmo autor, essa talvez seja uma estratégia
que funcione. Por que ler essa obra quase desconhecida? Porque é
Victor Hugo, porque o tema é instigante, atual, e porque se a obra não
merecesse a leitura ela não estaria ao lado de Poe e Wilde, esse parece
ser o discurso implícito da editora. Um estudo mais aprofundado sobre
coleções se faria necessário a fim de ampliar o assunto, entretanto, no
caso específico de O Último Dia de um condenado, em razão da estatura
do seu autor, do espaço ocupado por essa obra na sua bibliografia,
parece ser esse um apontamento possível. Além do que, essa submissão
de O Último Dia de um condenado ao seu autor, que se revela maior, é
algo que aparece nos peritextos das quatro traduções, seja na contracapa,
caso das duas primeiras e última edição, seja nas orelhas das duas
últimas edições.
103
2.8.3. Quarta Capa - Editora Estação Liberdade
A quarta capa da Estação Liberdade é a mais sóbria dentre as três
outras edições. Encontramos em preto, na parte de cima, em destaque
uma citação da novela de Hugo:
Condenado à morte!
Já se vão cinco dias que convivo com tal
pensamento, sempre só com ele, sempre
petrificado por sua presença, sempre encurvado
sob o seu peso! (HUGO, 2002).
Por todo o restante da quarta capa, em tom cinza, há um trecho
da obra, em baixo relevo e manuscrito, como a citação. No centro, à
esquerda, aparece em destaque o nome da tradutora. Por fim o logotipo
da editora, em cor preta, ao pé da página, também do lado esquerdo, e
no lado direito o ISBN e código de barras do livro.
Não há muito que explanar sobre a contracapa da Estação
Liberdade, apenas que o foco é a obra, diferentemente das outras
contracapas. Em relação a uma estratégia de marketing a opção da
editora recai sobre outro peritexto, no caso as orelhas, conforme
demonstrado em capítulo específico.
104
2.8.4. Quarta Capa - Golden Books
A última edição de O Último Dia de um condenado no Brasil é
a única a trazer o prefácio à primeira edição da obra, o qual é
apresentado nessa condição antes do início da narrativa e na contracapa
da edição. Sobre o mesmo tom vermelho da capa, com o nome do autor
em destaque, como também o título da obra, além do desenho de um
rosto masculino ao fundo, a quarta capa da edição da Golden Books
reproduz o mesmo conceito gráfico apresentado na primeira capa. Após
a reprodução integral do prefácio tem-se início um curto texto
articulando a obra e a militância pelos direitos humanos do autor.
Enaltece-se o Hugo que em sua obra “valorizou a vida humana” tendo
por norte a liberdade e a justiça, expressa em seus personagens. Por fim,
ao pé da página, centralizado, encontra-se o ISBN e código de barras.
A contracapa da edição de 2005 segue a mesma orientação já
apontada nas orelhas, quando é dado um destaque maior ao autor do que
à obra. A novela ganha corpo aos olhos do possível leitor na medida em
que está atrelada à magnitude do autor. Nesse sentido, então, a quarta
capa integra o projeto editorial da Golden Books no que diz respeito à
apresentação da obra. Entretanto, há algo nessa contracapa que a
diferencia das outras até aqui estudadas.
Além de ser a única entre as quatro edições brasileiras que
reproduz o prefácio à primeira edição, esse prefácio, que aqui adquire
outra função, funcionando também como um elemento de propaganda,
vem assinado pelo autor. Isso estabelece de imediato uma relação com o
prefácio à primeira edição presente antes do início do texto, pois este
105
não traz nenhuma autoria, ao passo que o da contracapa traz como autor
Victor Hugo.
Um dos pontos que destacam a edição da Golden Books em
comparação com as outras edições congêneres é justamente a existência
do “Primeiro Prefácio”. Com a sua inserção a editora permite que o jogo
da autoria proposto por Hugo em 1829 ocorra, descontadas obviamente
as diferenças entre o leitor atual e o da época. Leitor atual,
evidentemente, que não apenas está separado por quase dois séculos,
mas também por uma língua e cultura diferentes do texto de partida.
Contudo, ainda que não fosse possível encontrar leitores que vissem
veracidade no jogo, e isso é discutível, a inclusão desse prefácio ao
menos permite esse vislumbre ao leitor, dá ele a oportunidade de mesmo
por um breve momento considerar esse pacto, o que pode fazer da
leitura de O Último Dia de um condenado uma experiência mais rica.
O prefácio à primeira edição não vem assinado justamente porque
ele propõe esse jogo de autoria tão comum no século XIX — Goethe já
o tinha feito em Os sofrimentos do jovem Werther em 1774, Edgar Allan
Poe o fez em alguns dos seus contos — daí que dar-lhe autoria, como
ocorre na quarta capa da Golden Books, depõe contra a proposta do
prefácio, considerando que o primeiro contato do leitor geralmente é
com os peritextos ao invés do texto. Possivelmente essa situação passou
ao largo do editor, a quem Genette, (p. 21) atribui na maioria dos casos a
responsabilidade pelos peritextos. O procedimento de dar autoria ao
prefácio na quarta capa vem ao encontro daquilo que se percebeu na
análise dos peritextos, comum nas três últimas edições pelo menos.
Trata-se da estratégia de sedução por parte das editoras em relação ao
leitor, a qual passa por uma identificação da obra para com o autor e, por
conseguinte, do autor para com o público, já que os valores humanos
universais defendidos por aquele comumente se coadunam com o do
leitor. A autoria do prefácio dada pela edição a Victor Hugo, que não
dispusera dela inicialmente, se dá justamente pela envergadura do autor
em relação a essa obra, a qual, aliás, é de grande qualidade literária, isso
é ponto pacífico, apenas é menos conhecida do que outras obras suas.
Daí a necessidade publicitária de atrelar obra ao autor.
106
CAPÍTULO III
TRADUÇÃO COMENTADA DO PREFÁCIO DE 1832
3.1. Tradução do Prefácio de 1832
Préface de 1832
Il n'y avait en tête des
premières éditions de cet
ouvrage, publié d'abord sans
nom d'auteur, que les quelques
lignes qu'on va lire :
« Il y a deux manières de
se rendre compte de l'existence
de ce livre. Ou il y a eu, en effet,
une liasse de papiers jaunes et
inégaux sur lesquels on a trouvé,
enregistrées une à une, les
dernières pensées d'un
misérable ; ou il s'est rencontré
un homme, un rêveur occupé à
observer la nature au profit de
l'art, un philosophe, un poète,
que sais-je ? dont cette idée a été
la fantaisie, qui l'a prise ou
plutôt s'est laissé prendre par
elle, et n'a pu s'en débarrasser
qu'en la jetant dans un livre.
« De ces deux
explications, le lecteur choisira
celle qu'il voudra. »
Comme on le voit, à
l'époque où ce livre fut publié,
l'auteur ne jugea pas à propos de
dire dès lors toute sa pensée. Il
aima mieux attendre qu'elle fût
comprise et voir si elle le serait.
Elle l'a été. L'auteur aujourd'hui
peut démasquer l'idée politique,
l'idée sociale, qu'il avait voulu
Prefácio de 1832
Havia no topo das
primeiras edições desta obra
publicada primeiramente sem
nome do autor, apenas as
poucas linhas que se vai ler:
“Há duas maneiras de
dar-se conta da existência deste
livro. Ou, houve de fato, um
maço de papeis amarelos e
desiguais sobre os quais se
encontrou registrados um a um,
os últimos pensamentos de um
miserável, ou existiu um
homem, um sonhador ocupado
em observar a natureza em
proveito da arte, um filósofo,
um poeta, sabe-se lá, cuja ideia
foi a fantasia, quem a tomou, ou
melhor, se deixou tomar por ela
e da qual só pôde se livrar
lançando-a em um livro.
“Dessas duas
explicações, o leitor escolherá o
que ele quiser.”
Como se vê, na época
em que este livro fora
publicado, o autor não julgara
oportuno de dizer de imediato
todo seu pensamento. Ele
preferira esperar que ele fosse
compreendido e ver se ele o
seria. Ele o foi. O autor hoje
pode desmascarar a ideia
107
populariser sous cette innocente
et candide forme littéraire. Il
déclare donc, ou plutôt il avoue
hautement que Le Dernier Jour d'un condamné n'est autre chose
qu'un plaidoyer, direct ou
indirect, comme on voudra, pour
l'abolition de la peine de mort.
Ce qu'il a eu dessein de faire, ce
qu'il voudrait que la postérité vît
dans son oeuvre, si jamais elle
s'occupe de si peu, ce n'est pas la
défense spéciale, et toujours
facile, et toujours transitoire, de
tel ou tel criminel choisi, de tel
ou tel accusé d'élection ; c'est la
plaidoirie générale et
permanente pour tous les
accusés présents et à venir ; c'est
le grand point de droit de
l'humanité allégué et plaidé à
toute voix devant la société, qui
est la grande cour de cassation ;
c'est cette suprême fin de non-
recevoir, abhorrescere a
sanguine, construite à tout
jamais en avant de tous les
procès criminels ; c'est la
sombre et fatale question qui
palpite obscurément au fond de
toutes les causes capitales sous
les triples épaisseurs de pathos
dont l'enveloppe la rhétorique
sanglante des gens du roi ; c'est
la question de vie et de mort,
dis-je, déshabillée, dénudée,
dépouillée des entortillages
sonores du parquet, brutalement
mise au jour, et posée où il faut
qu'on la voie, où il faut qu'elle
política, a ideia social que ele
quis popularizar sob esta
inocente e cândida forma
literária. Ele declara então, ou
melhor, ele confessa altamente
que O Último Dia de um condenado não é outra coisa
além de um apelo, direto ou
indireto, como queiram, para a
abolição da pena de morte. O
que ele teve a intenção de fazer,
o que ele gostaria que a
posteridade visse em sua obra,
se por um acaso ela se ocupar
de tão pouco, não é a defesa
especial, e sempre fácil, e
sempre transitória, de tal ou tal
criminoso escolhido, de tal ou
tal acusado eleito. É a alegação
geral e permanente para todos
os acusados presentes e os por
vir. É a grande questão de
direito da humanidade alegada e
defendida em voz alta diante da
sociedade que é a alta corte de
cassação. É esta suprema
inadmissibilidade, abhorrescere
a sanguin, construída para
sempre diante de todos os
processos criminais. É a
sombria e fatal questão que
palpita obscuramente no fundo
de todas as causas capitais sob
as triplas espessuras de pathos a
qual encobre a retórica
sangrenta dos homens do rei. É
a questão de vida e de morte,
digo, despida, desnuda,
desvestida das enrolações
sonoras do ministério público,
108
soit, où elle est réellement, dans
son vrai milieu, dans son milieu
horrible, non au tribunal, mais à
l'échafaud, non chez le juge,
mais chez le bourreau.
Voilà ce qu'il a voulu
faire. Si l'avenir lui décernait un
jour la gloire de l'avoir fait, ce
qu'il n'ose espérer, il ne voudrait
pas d'autre couronne.
Il le déclare donc, et il le
répète, il occupe, au nom de tous
les accusés possibles, innocents
ou coupables, devant toutes les
cours, tous les prétoires, tous les
jurys, toutes les justices. Ce livre
est adressé à quiconque juge. Et
pour que le plaidoyer soit aussi
vaste que la cause, il a dû, et
c'est pour cela que Le Dernier
Jour d'un condamné est ainsi
fait, élaguer de toutes parts dans
son sujet le contingent,
l'accident, le particulier, le
spécial, le relatif, le modifiable,
l'épisode, l'anecdote,
l'événement, le nom propre, et se
borner (si c'est là se borner) à
plaider la cause d'un condamné
quelconque, exécuté un jour
quelconque, pour un crime
quelconque. Heureux si, sans
autre outil que sa pensée, il a
fouillé assez avant pour faire
saigner un coeur sous l'œs
triplex du magistrat ! heureux
s'il a rendu pitoyables ceux qui
brutalmente trazida à luz e
colocada onde é preciso que a
vejam, onde é preciso que ela
esteja, onde ela está realmente,
no seu verdadeiro meio, no seu
meio horrível, não no tribunal,
mas no cadafalso, não junto ao
juiz, mas junto ao carrasco.
Eis o que ele quis fazer.
Se o futuro lhe reconhecer um
dia a glória de tê-lo feito, o que
ele não ousa esperar, ele não
gostaria de uma outra coroa.
Ele o declara então, e
ele o repete, ele ocupa em nome
de todos os acusados possíveis,
inocentes ou culpados, diante de
todas as cortes, de todos os
pretórios, de todos os júris, de
todas as justiças. Este livro é
endereçado a qualquer juiz. E
para que o apelo seja tão vasto
quanto à causa, ele teve, e é por
isso que O Último Dia de um condenado é assim feito,
suprimir de todas as partes no
seu objeto o contingente, o
acidente, o particular, o
especial, o relativo, o
modificável, o episódio, a
anedota, o acontecimento, o
nome próprio, e se limitar (se
isto é se limitar) a defender a
causa de um condenado
qualquer, executado em um dia
qualquer, por um crime
qualquer. Feliz quando, sem
outra ferramenta além de seu
pensamento, ele vasculhou
muito antes para fazer sangrar
109
se croient justes ! heureux si, à
force de creuser dans le juge, il a
réussi quelquefois à y retrouver
un homme !
Il y a trois ans, quand ce
livre parut, quelques personnes
imaginèrent que cela valait la
peine d'en contester l'idée à
l'auteur. Les uns supposèrent un
livre anglais, les autres un livre
américain. Singulière manie de
chercher à mille lieues les
origines des choses, et de faire
couler des sources du Nil le
ruisseau qui lave votre rue !
Hélas ! il n'y a en ceci ni livre
anglais, ni livre américain, ni
livre chinois. L'auteur a pris
l'idée du Dernier Jour d'un condamné, non dans un livre, il
n'a pas l'habitude d'aller
chercher ses idées si loin, mais
là où vous pouviez tous la
prendre, où vous l'aviez prise
peut-être (car qui n'a fait ou rêvé
dans son esprit Le Dernier Jour
d'un condamné ?), tout
bonnement sur la place
publique, sur la place de Grève.
C'est là qu'un jour en passant il a
ramassé cette idée fatale, gisante
dans une mare de sang sous les
rouges moignons de la
guillotine.
Depuis, chaque fois qu'au
gré des funèbres jeudis de la
cour de cassation, il arrivait un
um coração sob a oes triplex do
magistrado! Feliz quando ele
tornou piedosos os que se
acham justos! Feliz quando, de
tanto cavoucar o juiz, ele
conseguiu às vezes encontrar ali
um homem!
Há três anos, quando
este livro apareceu, algumas
pessoas imaginaram que valia a
pena contestar a ideia ao autor.
Uns supuseram um livro inglês,
outros um livro americano.
Singular mania de procurar a
mil milhas as origens das coisas
e fazer escorrer das fontes do
Nilo o riacho que lava sua rua!
Ora! Não há nisto nem livro
inglês, nem livro americano,
nem livro chinês. O autor
tomou a ideia do O Último Dia
de um condenando, não em um
livro - ele não tem o hábito de ir
buscar suas ideias tão longe -
mas aqui onde vocês pudessem
todos tomá-la, onde vocês a
tomaram talvez (pois quem não
fez ou sonhou em seu espírito O
Último Dia de um condenado?),
simplesmente na praça pública,
na praça de Grève. Foi aí que
um dia ao passar, ele apanhou
esta ideia fatal, estirada em uma
poça de sangue sob as
vermelhas toras da guilhotina.
Desde então, cada vez
que ao capricho das fúnebres
quintas-feiras da corte de
110
de ces jours où le cri d'un arrêt
de mort se fait dans Paris,
chaque fois que l'auteur
entendait passer sous ses
fenêtres ces hurlements enroués
qui ameutent des spectateurs
pour la Grève, chaque fois, la
douloureuse idée lui revenait,
s'emparait de lui, lui emplissait
la tête de gendarmes, de
bourreaux et de foule, lui
expliquait heure par heure les
dernières souffrances du
misérable agonisant, - en ce
moment on le confesse, en ce
moment on lui coupe les
cheveux, en ce moment on lui
lie les mains, - le sommait, lui
pauvre poète, de dire tout cela à
la société, qui fait ses affaires
pendant que cette chose
monstrueuse s'accomplit, le
pressait, le poussait, le secouait,
lui arrachait ses vers de l'esprit,
s'il était en train d'en faire, et les
tuait à peine ébauchés, barrait
tous ses travaux, se mettait en
travers de tout, l'investissait,
l'obsédait, l'assiégeait. C'était un
supplice, un supplice qui
commençait avec le jour, et qui
durait, comme celui du
misérable qu'on torturait au
même moment, jusqu'à quatre
heures. Alors seulement, une
fois le ponens caput
expiravit crié par la voix sinistre
de l'horloge, l'auteur respirait et
retrouvait quelque liberté
d'esprit. Un jour enfin, c'était, à
cassação acontecia um desses
dias em que o grito de uma
sentença de morte se dá em
Paris, cada vez que o autor
escutava passar sob suas janelas
estes berros roucos que
arrastam espectadores para a
Grève, cada vez, a dolorosa
ideia lhe revinha, se apoderava
dele, lhe enchia a cabeça de
gendarmes, de carrascos e de
multidão, lhe explicava hora por
hora os últimos sofrimentos do
miserável agonizando – neste
momento confessam-no, neste
momento lhe cortam os cabelos,
neste momento lhe amarram as
mãos – o obrigam, ele, pobre
poeta, a dizer tudo isto à
sociedade, que faz seus afazeres
enquanto que esta coisa
monstruosa se cumpre, o
apressava, o empurrava, o
sacudia, lhe arrancava seus
versos do espírito, se ele os
estivesse fazendo, e os matava,
a pouco esboçados, barrava
todos seus trabalhos, se
atravessava em tudo, o investia,
o obsedia, o cingia. Era um
suplício, um suplício que
começava com o dia, e que
durava como o do miserável
que torturavam no mesmo
momento, até às quatro horas.
Então somente, uma vez o
ponens caput expivit gritado
pela voz sinistra do relógio, o
autor respirava e reencontrava
alguma liberdade de espírito.
111
ce qu'il croit, le lendemain de
l'exécution d'Ulbach, il se mit à
écrire ce livre. Depuis lors il a
été soulagé. Quand un de ces
crimes publics, qu'on nomme
exécutions judiciaires, a été
commis, sa conscience lui a dit
qu'il n'en était plus solidaire ; et
il n'a plus senti à son front cette
goutte de sang qui rejaillit de la
Grève sur la tête de tous les
membres de la communauté
sociale.
Toutefois, cela ne suffit
pas. Se laver les mains est bien,
empêcher le sang de couler
serait mieux.
Aussi ne connaîtrait-il pas
de but plus élevé, plus saint, plus
auguste que celui-là : concourir
à l'abolition de la peine de mort.
Aussi est-ce du fond du coeur
qu'il adhère aux voeux et aux
efforts des hommes généreux de
toutes les nations qui travaillent
depuis plusieurs années à jeter
bas l'arbre patibulaire, le seul
arbre que les révolutions ne
déracinent pas. C'est avec joie
qu'il vient à son tour, lui chétif,
donner son coup de cognée, et
élargir de son mieux l'entaille
que Beccaria a faite, il y a
soixante-six ans, au vieux gibet
dressé depuis tant de siècles sur
la chrétienté.
Um dia enfim, era, se ele não se
engana, o dia seguinte da
execução de Ulbach, ele se pôs
a escrever este livro. Desde
então, ele ficou aliviado.
Quando um desses crimes
públicos que nomeiam
execuções judiciárias foi
cometido, sua consciência lhe
disse que ele não era mais
solidário com isso, e ele não
mais sentiu em sua fronte esta
gota de sangue que jorra da
Grève sobre a cabeça de todos
os membros da comunidade
social.
Todavia, isto não bastara.
Lavar as mãos é bom, impedir o
sangue de escorrer seria melhor.
Também ele não
conheceria propósito mais
elevado, mais santo, mais
augusto que aquele: contribuir
com a abolição da pena de
morte. Também é do fundo do
coração que ele adere aos votos
e aos esforços dos homens
generosos de todas as nações
que trabalham há vários anos
colocando abaixo a árvore
patibular, a única árvore que as
revoluções não desenraizam. É
com alegria que ele vem por sua
vez, ele, franzino, dar seu golpe
de machado e alargar, dando o
seu melhor, o talho que
Beccaria fez há sessenta e seis
anos, na velha forca erguida há
tantos séculos sobre a
112
Nous venons de dire que
l'échafaud est le seul édifice que
les révolutions ne démolissent
pas. Il est rare, en effet, que les
révolutions soient sobres de sang
humain, et, venues qu'elles sont
pour émonder, pour ébrancher,
pour étêter la société, la peine de
mort est une des serpes dont
elles se dessaisissent le plus
malaisément.
Nous l’avoueront
cependant, si jamais révolution
nous parut digne et capable
d'abolir la peine de mort, c'est la
révolution de Juillet. Il semble,
en effet, qu'il appartenait au
mouvement populaire le plus
clément des temps modernes de
raturer la pénalité barbare de
Louis XI, de Richelieu et de
Robespierre, et d'inscrire au
front de la loi l'inviolabilité de la
vie humaine. 1830 méritait de
briser le couperet de 93.
Nous l'avons espéré un
moment. En août 1830, il y avait
tant de générosité et de pitié
dans l'air, un tel esprit de
douceur et de civilisation flottait
dans les masses, on se sentait le
coeur si bien épanoui par
l'approche d'un bel avenir, qu'il
nous sembla que la peine de
mort était abolie de droit,
d'emblée, d'un consentement
tacite et unanime, comme le
reste des choses mauvaises qui
nous avaient gênés. Le peuple
cristandade.
Acabamos de dizer que
o cadafalso é o único edifício
que as revoluções não
demolem. É raro, de fato, que as
revoluções estejam sóbrias de
sangue humano, e visto que elas
vieram para mondar, para
podar, para talhar a sociedade, a
pena de morte é um dos podões
os quais se extirpam com mais
dificuldade.
Nós o confessaremos,
contudo, se por acaso revolução
nos parecera digna e capaz de
abolir a pena de morte, é a
revolução de Julho. Parece, de
fato, que pertencia ao
movimento popular o mais
clemente dos tempos modernos
de rasurar a penalidade bárbara
de Luis XI, de Richelieu e de
Robespierre, e de inscrever
diante da lei a inviolabilidade
da vida humana. 1830 merecia
quebrar o cutelo de 93.
Nós o esperamos um
momento. Em agosto de 1830,
havia tanta generosidade e
piedade no ar, um certo espírito
de doçura e de civilização
flutuava nas massas, sentia-se o
coração tão radiante pela
aproximação de um lindo
futuro, que nos parecera que a
pena de morte estava abolida de
direito, de imediato, de um
consentimento tácito e unânime
como o resto das coisas ruins
que nos tinham incomodado. O
113
venait de faire un feu de joie des
guenilles de l'ancien régime.
Celle-là était la guenille
sanglante. Nous la crûmes dans
le tas. Nous la crûmes brûlée
comme les autres. Et pendant
quelques semaines, confiant et
crédule, nous eûmes foi pour
l'avenir à l'inviolabilité de la vie
comme à l'inviolabilité de la
liberté.
Et en effet deux mois
s'étaient à peine écoulés qu'une
tentative fut faite pour résoudre
en réalité légale l'utopie sublime
de César Bonesana.
Malheureusement, cette
tentative fut gauche, maladroite,
presque hypocrite, et faite dans
un autre intérêt que l'intérêt
général.
Au mois d'octobre 1830,
on se le rappelle, quelques jours
après avoir écarté par l'ordre du
jour la proposition d'ensevelir
Napoléon sous la colonne, la
Chambre tout entière se mit à
pleurer et à bramer. La
question de la peine de mort fut
mise sur le tapis, nous allons
dire quelques lignes plus bas à
quelle occasion ; et alors il
sembla que toutes ces entrailles
de législateurs étaient prises
d'une subite et merveilleuse
miséricorde. Ce fut à qui
parlerait, à qui gémirait, à qui
lèverait les mains au ciel. La
peine de mort, grand Dieu !
povo tinha acabado de fazer
uma fogueira dos farrapos do
antigo regime. Aquele era o
farrapo sangrento. Nós
acreditáramos estar no entulho.
Nós acreditáramos estar
queimado como os outros. E
durante algumas semanas,
confiante e crédulo, nós
tivéramos fé pelo futuro à
inviolabilidade da vida como à
inviolabilidade da liberdade.
E de fato, dois meses
mal tinham passado e uma
tentativa fora feita para resolver
com realidade legal a utopia
sublime de César Bonesana.
Infelizmente, esta
tentativa fora desastrosa,
desajeitada, quase hipócrita e
feita com outro interesse do
interesse geral.
No mês de outubro de
1830, lembramos disso, alguns
dias depois de ter afastado pela
ordem do dia a proposta de
enterrar Napoleão sob a coluna,
a Câmara inteira se pôs a chorar
e a esbravejar. A questão da
pena de morte fora trazida à
tona. Vamos dizer algumas
linhas mais abaixo em qual
ocasião, e então parecera que
todas essas entranhas de
legisladores foram pegas de
uma súbita e maravilhosa
misericórdia. Fora os que mais
falariam, os que mais
gemeriam, os que mais
levantariam as mãos pro céu. A
114
quelle horreur ! Tel vieux
procureur général, blanchi dans
la robe rouge, qui avait mangé
toute sa vie le pain trempé de
sang des réquisitoires, se
composa tout à coup un air
piteux et attesta les dieux qu'il
était indigné de la guillotine.
Pendant deux jours la tribune ne
désemplit pas de harangueurs en
pleureuses. Ce fut une
lamentation, une myriologie, un
concert de psaumes lugubres,
un Super flumina Babylonis,
un Stabat mater dolorosa, une
grande symphonie en ut, avec
choeurs, exécutée par tout cet
orchestre d'orateurs qui garnit
les premiers bancs de la
Chambre, et rend de si beaux
sons dans les grands jours. Tel
vint avec sa basse, tel avec son
fausset. Rien n'y manqua. La
chose fut on ne peut plus
pathétique et pitoyable. La
séance de nuit surtout fut tendre,
paterne et déchirante comme un
cinquième acte de Lachaussée.
Le bon public, qui n'y
comprenait rien, avait les larmes
aux yeux.42
pena de morte, grande Deus!
Que horror! O tal velho
procurador geral, inocentado
em sua toga vermelha, que tinha
comido durante toda sua vida o
pão banhado de sangue dos
requisitórios, compusera
repentinamente um ar desolado
e atestara os deuses que ele
estava indignado com a
guilhotina. Durante dois dias, a
tribuna não se esvaziara de
oradores feitos choronas. Fora
uma lamentação, uma
myriologie, um concerto de
salmos lúgubres, um Super
flumina Babylonis, um Stabat mater dolorosa, uma grande
sinfonia de ut, com corais,
executada por toda essa
orquestra de oradores que
guarnece os primeiros bancos
da Câmara e emite tão belos
sons nos grandes dias. Um viera
com seu baixo, um com seu
falsete. Nada faltara ali. A coisa
fora totalmente patética e
lastimável. A sessão da noite
particularmente fora branda,
paterna e arrasadora como um
quinto ato de Lachaussée. O
42 Nous ne prétendons pas envelopper dans le même dédain tout ce qui a été dit
à cette occasion à la Chambre. Il s'est bien prononcé ça et là quelques belles et
dignes paroles. Nous avons applaudi, comme tout le monde, au discours grave
et simple de M. de Lafayette et, dans une autre nuance, à la remarquable
improvisation de M. Villemain.
115
De quoi s'agissait-il
donc ? d'abolir la peine de
mort ?
Oui et non.
Voici le fait :
Quatre hommes du
monde, quatre hommes comme
il faut, de ces hommes qu'on a
pu rencontrer dans un salon, et
avec qui peut-être on a échangé
quelques paroles polies ; quatre
de ces hommes, dis-je, avaient
tenté, dans les hautes régions
politiques, un de ces coups
hardis que Bacon
appelle crimes, et que Machiavel
appelle entreprises.
Or, crime ou entreprise, la loi,
brutale pour tous, punit cela de
mort. Et les quatre malheureux
étaient là, prisonniers, captifs de
la loi, gardés par trois cents
cocardes tricolores sous les
belles ogives de Vincennes. Que
faire et comment faire ? Vous
comprenez qu'il est impossible
d'envoyer à la Grève, dans une
charrette, ignoblement liés avec
de grosses cordes, dos à dos
avec ce fonctionnaire qu'il ne
virtuoso público, que não
compreendia nada, tinha
lágrimas aos olhos41
.
Do que se tratava então?
Abolir a pena de morte?
Sim e não.
Eis o fato:
Quatro homens do
mundo, quatro homens como se
deve ser, desses homens que se
pôde encontrar em um salão e
com quem talvez se trocou
algumas palavras polidas.
Quatro desses homens, digo,
tinham tentado, nas altas
regiões políticas, um desses
golpes ousados que Bacon
chama de crimes, e que
Machiavel chama de negócios.
Ora, crime ou negócio, a lei,
brutal para todos, pune isto de
morte. E os quatro infelizes
estavam ali, prisioneiros,
cativos da lei, retidos por
trezentos emblemas tricolores
sob as belas ogivas de
Vincennes. O que fazer e como
fazer? Vocês compreendem que
é impossível enviar à Grève, em
uma carroça, ignobilmente
amarrados com grossas cordas,
costa com costa com este
42 Nós não pretendemos envolver no mesmo desdenho tudo o que foi dito nesta
ocasião na Câmara. Pronunciaram aqui e ali algumas belas e dignas palavras.
Nós aplaudimos, como todo, o discurso grave e simples do Sr. de Lafayette e,
em uma outra nuance, a notável improvisação do Sr. Villemain.
116
faut pas seulement nommer,
quatre hommes comme vous et
moi , quatre hommes du monde ?
Encore s'il y avait une guillotine
en acajou !
Hé ! il n'y a qu'à abolir la
peine de mort !
Et là-dessus, la Chambre
se met en besogne.
Remarquez, messieurs,
qu'hier encore vous traitiez cette
abolition d'utopie, de théorie, de
rêve, de folie, de poésie.
Remarquez que ce n'est pas la
première fois qu'on cherche à
appeler votre attention sur la
charrette, sur les grosses cordes
et sur l'horrible machine
écarlate, et qu'il est étrange que
ce hideux attirail vous saute
ainsi aux yeux tout à coup.
Bah ! c'est bien de cela
qu'il s'agit ! Ce n'est pas à cause
de vous, peuple, que nous
abolissons la peine de mort,
mais à cause de nous, députés
qui pouvons être ministres. Nous
ne voulons pas que la mécanique
de Guillotin morde les hautes
classes. Nous la brisons. Tant
mieux si cela arrange tout le
monde, mais nous n'avons songé
qu'à nous. Ucalégon brûle.
Éteignons le feu. Vite,
supprimons le bourreau, biffons
le code.
Et c'est ainsi qu'un alliage
d'égoïsme altère et dénature les
funcionário que não se deve,
nem sequer nomear, quatro
homens como você e eu, quatro
homens do mundo? Pelo menos
se tivesse uma guilhotina de
mogno!
Ei! Tem apenas que
abolir a pena de morte!
E nisso, a Câmara põe
mãos às obras!
Notem senhores, que
ainda ontem vocês tratavam
esta abolição de utopia, de
teoria, de sonho, de loucura, de
poesia. Notem que não é a
primeira vez que se procura
chamar a sua atenção sobre a
carroça, sobre as grossas cordas
e sobre a horrível máquina
escarlate e que é estranho que
esta hedionda parafernália lhe
salte aos olhos assim de
repente.
Ué! É bem disso que se
trata! Não é por causa de vocês,
povo, que abolimos a pena de
morte, mas por nossa causa,
deputados que podemos ser
ministros. Não queremos que a
mecânica de Guillotin morda as
altas classes. Nós a quebramos.
Tanto melhor se isto convém a
todo mundo, mas pensamos
apenas em nós. Ucalégon
queima. Apaguemos o fogo.
Rápido, suprimamos o carrasco,
destruamos o código.
E é assim que uma
mistura de egoísmo altera e
117
plus belles combinaisons
sociales. C'est la veine noire
dans le marbre blanc ; elle
circule partout, et apparaît à tout
moment à l'improviste sous le
ciseau. Votre statue est à refaire.
Certes, il n'est pas besoin
que nous le déclarions ici, nous
ne sommes pas de ceux qui
réclamaient les têtes des quatre
ministres. Une fois ces
infortunés arrêtés, la colère
indignée que nous avait inspirée
leur attentat s'est changée, chez
nous comme chez tout le monde,
en une profonde pitié. Nous
avons songé aux préjugés
d'éducation de quelques-uns
d'entre eux, au cerveau peu
développé de leur chef, relaps
fanatique et obstiné des
conspirations de 1804, blanchi
avant l'âge sous l'ombre humide
des prisons d'État, aux nécessités
fatales de leur position
commune, à l'impossibilité
d'enrayer sur cette pente rapide
où la monarchie s'était lancée
elle-même à toute bride le 8 août
1829, à l'influence trop peu
calculée par nous jusqu'alors de
la personne royale, surtout à la
dignité que l'un d'entre eux
répandait comme un manteau de
pourpre sur leur malheur. Nous
sommes de ceux qui leur
souhaitaient bien sincèrement la
vie sauve, et qui étaient prêts à
se dévouer pour cela. Si jamais,
desnatura as mais belas
combinações sociais. É a veia
negra no mármore branco. Ela
circula por toda parte e aparece
a todo o momento de improviso
sob o cinzel. Sua estátua está
para ser refeita.
Certamente, não é
preciso que nós o declaremos
aqui. Nós não somos desses que
reclamavam as cabeças dos
quatro ministros. Uma vez esses
infortunados presos, a cólera
indignada que nos tinha
inspirado seu atentado se
transformou em nós como em
todo mundo, em uma profunda
piedade. Nós pensamos nos
preconceitos de educação de
alguns dentre eles, no cérebro
pouco desenvolvido de seu
chefe, relapso fanático e
obstinado das conspirações de
1804, embranquecido antes da
idade sob a sombra úmida das
prisões de Estado, nas
necessidades fatais da sua
posição comum, na
impossibilidade de brecar nesta
rampa inclinada na qual a
monarquia tinha se lançado ela
mesma a toda velocidade no dia
08 de agosto de 1829, com a
influência muito pouco
calculada por nós até então da
pessoa Real, sobretudo, na
dignidade que um dentre eles
derramava como um manto de
púrpura sobre sua desgraça. Nós
somos desses que lhes
118
par impossible, leur échafaud
eût été dressé un jour en Grève,
nous ne doutons pas, et si c'est
une illusion nous voulons la
conserver, nous ne doutons pas
qu'il n'y eût eu une émeute pour
le renverser, et celui qui écrit ces
lignes eût été de cette sainte
émeute. Car, il faut bien le dire
aussi, dans les crises sociales, de
tous les échafauds, l'échafaud
politique est le plus abominable,
le plus funeste, le plus
vénéneux, le plus nécessaire à
extirper. Cette espèce de
guillotine-là prend racine dans le
pavé, et en peu de temps
repousse de bouture sur tous les
points du sol.
En temps de révolution,
prenez garde à la première tête
qui tombe. Elle met le peuple en
appétit.
Nous étions donc
personnellement d'accord avec
ceux qui voulaient épargner les
quatre ministres, et d'accord de
toutes manières, par les raisons
sentimentales comme par les
raisons politiques. Seulement,
nous eussions mieux aimé que la
Chambre choisît une autre
occasion pour proposer
l'abolition de la peine de mort.
Si on l'avait proposée,
cette souhaitable abolition, non à
propos de quatre ministres
desejavam muito sinceramente
a vida salva e que estavam
prontos a se dedicarem por isto.
Se por um acaso, por milagre,
seu cadafalso fora sido erguido
um dia na Grève, não
duvidamos, e se for uma ilusão,
nós queremos conservá-la, não
duvidamos que tivesse tido um
motim para derrubá-lo, e este
que escreve estas linhas tivesse
sido deste santo motim. Pois, é
preciso dizê-lo também, nas
crises sociais, de todos os
cadafalsos, o cadafalso político
é o mais abominável, o mais
funesto, o mais venenoso, o
mais necessário a extirpar. Esta
espécie de guilhotina enraíza-se
no chão e em pouco tempo cria
muda sobre todas as partes do
solo.
Em tempo de revolução,
tenha cuidado com a primeira
cabeça que cai. Ela deixa o
povo com apetite.
Nós estávamos então,
pessoalmente de acordo com os
que queriam poupar os quatro
ministros, e de acordo de todas
as maneiras, pelas razões
sentimentais como pelas razões
políticas. Apenas, nós teríamos
preferido que a Câmara
escolhesse outra ocasião para
propor a abolição da pena de
morte.
Se a tivessem proposto,
esta desejável abolição, não a
respeito de quatro ministros
119
tombés des Tuileries à
Vincennes, mais à propos du
premier voleur de grands
chemins venu, à propos d'un de
ces misérables que vous
regardez à peine quand ils
passent près de vous dans la rue,
auxquels vous ne parlez pas,
dont vous évitez instinctivement
le coudoiement poudreux ;
malheureux dont l'enfance
déguenillée a couru pieds nus
dans la boue des carrefours,
grelottant l'hiver au rebord des
quais, se chauffant au soupirail
des cuisines de M. Véfour chez
qui vous dînez, déterrant çà et là
une croûte de pain dans un tas
d'ordures et l'essuyant avant de
la manger, grattant tout le jour le
ruisseau avec un clou pour y
trouver un liard, n'ayant d'autre
amusement que le spectacle
gratis de la fête du roi et les
exécutions en Grève, cet autre
spectacle gratis ; pauvres
diables, que la faim pousse au
vol, et le vol au reste ; enfants
déshérités d'une société marâtre,
que la maison de force prend à
douze ans, le bagne à dix-huit,
l'échafaud à quarante ;
infortunés qu'avec une école et
un atelier vous auriez pu rendre
bons, moraux, utiles, et dont
vous ne savez que faire, les
versant, comme un fardeau
inutile, tantôt dans la rouge
fourmilière de Toulon, tantôt
dans le muet enclos de Clamart,
despencados das Tulherias para
Vincennes, mas a respeito do
primeiro ladrão de estrada pego,
a respeito de um desses
miseráveis que vocês mal
olham quando eles passam
perto de vocês na rua, aos quais
vocês não falam, os quais vocês
evitam instintivamente o
contato poeirento. Desgraçado
cuja infância esfarrapada correu
com os pés descalços na lama
das encruzilhadas,
encarangando no inverno à
beira dos cais, se aquecendo no
respiradouro das cozinhas do
Sr. Véfour onde vocês jantam,
desenterrando aqui e ali uma
crosta de pão em um amontoado
de lixo e o limpando antes de
comê-lo, escavando todo dia o
riacho com um prego para
encontrar ali um ceitil, tendo
apenas como diversão o
espetáculo gratuito da festa do
rei e as execuções na Grève,
este outro espetáculo gratuito.
Pobres diabos, o qual a fome
empurra ao roubo, e o roubo ao
resto. Crianças deserdadas de
uma sociedade madrasta, que a
Instituição de correção pega aos
doze anos, o trabalho forçado
aos dezoito, o cadafalso aos
quarenta. Infortunados que com
uma escola e um atelier vocês
poderiam tê-los tornado bons,
morais, úteis, com os quais
vocês não sabem o que fazer,
jogando-os, como um fardo
120
leur retranchant la vie après leur
avoir volé la liberté ; si c'eût été
à propos d'un de ces hommes
que vous eussiez proposé
d'abolir la peine de mort, oh !
alors, votre séance eût été
vraiment digne, grande, sainte,
majestueuse, vénérable. Depuis
les augustes pères de Trente,
invitant les hérétiques au concile
au nom des entrailles de Dieu,
per viscera Dei, parce qu'on
espère leur conversion, quoniam
sancta synodus sperat hoereticorum conversionem,
jamais assemblée d'hommes
n'aurait présenté au monde
spectacle plus sublime, plus
illustre et plus miséricordieux. Il
a toujours appartenu à ceux qui
sont vraiment forts et vraiment
grands d'avoir souci du faible et
du petit. Un conseil de
brahmanes serait beau prenant
en main la cause du paria. Et ici,
la cause du paria, c'était la cause
du peuple. En abolissant la peine
de mort, à cause de lui et sans
attendre que vous fussiez
intéressés dans la question, vous
faisiez plus qu'une oeuvre
politique, vous faisiez une
oeuvre sociale.
Tandis que vous n'avez
pas même fait une oeuvre
politique en essayant de l'abolir,
inútil, ora no vermelho
formigueiro de Toulon, ora no
mudo âmbito de Clamart, lhes
arrancando a vida depois de ter-
lhes roubado a liberdade. Se
tivesse sido a respeito de um
desses homens para aos quais
vocês tivessem proposto abolir
a pena de morte, oh! Então, sua
sessão teria sido realmente
digna, grande, santa, majestosa,
venerável. Desde os augustos
pais de Trente convidando os
hereges ao conselho no nome
das entranhas de Deus, per
víscera Dei, porque se espera
sua conversão, quoniam sancta synodus sperat hoereticorum
conversionem, nenhuma
assembleia de homens teria
apresentado ao mundo
espetáculo mais sublime, mais
ilustre e mais misericordioso.
Sempre pertenceu aos que são
realmente fortes e realmente
grandes a preocupação com o
fraco e com o pequeno. Um
conselho de brâmanes seria
bonito assumindo a causa do
pária. E aqui, a causa do pária
era a causa do povo. Abolindo a
pena de morte, por causa dele e
sem esperar que vocês fossem
interessados pela questão, vocês
iam fazer mais do que uma obra
política, vocês iam fazer uma
obra social.
Enquanto que vocês nem
fizeram uma obra política
tentando aboli-la, não para
121
non pour l'abolir, mais pour
sauver quatre malheureux
ministres pris la main dans le sac
des coups d'État !
Qu'est-il arrivé ? c'est
que, comme vous n'étiez pas
sincères, on a été défiant. Quand
le peuple a vu qu'on voulait lui
donner le change, il s'est fâché
contre toute la question en
masse, et, chose remarquable ! il
a pris fait et cause pour cette
peine de mort dont il supporte
pourtant tout le poids. C'est
votre maladresse qui l'a amené
là. En abordant la question de
biais et sans franchise, vous
l'avez compromise pour
longtemps. Vous jouiez une
comédie. On l'a sifflée.
Cette farce pourtant,
quelques esprits avaient eu la
bonté de la prendre au sérieux.
Immédiatement après la fameuse
séance, ordre avait été donné
aux procureurs généraux, par un
garde des sceaux honnête
homme, de suspendre
indéfiniment toutes exécutions
capitales. C'était en apparence
un grand pas. Les adversaires de
la peine de mort respirèrent.
Mais leur illusion fut de courte
durée.
Le procès des ministres
fut mené à fin. Je ne sais quel
arrêt fut rendu. Les quatre vies
furent épargnées. Ham fut choisi
comme juste milieu entre la
mort et la liberté. Ces divers
aboli-la, mas para salvar quatro
infelizes ministros pegos com a
boca na botija nos golpes de
Estado!
O que aconteceu? É que
como vocês não eram sinceros,
desconfiou-se. Quando o povo
viu que queriam lhe dar o golpe,
ele zangou-se contra toda a
questão em massa, e que coisa
extraordinária! Ele tomou
partido por esta pena de morte
da qual ele suporta, contudo,
todo o peso. É a sua falta de
jeito que o levou a isso.
Abordando a questão de traves
e sem franqueza, vocês a
compreenderam por muito
tempo. Vocês encenavam uma
comédia. Vaiaram-na.
Esta farsa, contudo,
alguns espíritos tinham tido a
bondade de levá-la a sério.
Imediatamente depois da
famosa sessão, ordem tinha sido
dada aos procuradores gerais,
por um guarda dos selos,
homem honesto, de suspender
indefinidamente todas as
execuções capitais. Era
aparentemente um grande
passo. Os adversários da pena
de morte respiraram. Mas sua
ilusão fora de curta duração.
O processo dos ministros
fora levado ao fim. Não sei qual
sentença fora dada. As quatro
vidas foram poupadas. Ham
fora escolhida como meio termo
entre a morte e a liberdade.
122
arrangements une fois faits,
toute peur s'évanouit dans
l'esprit des hommes d'état
dirigeants, et, avec la peur,
l'humanité s'en alla. Il ne fut plus
question d'abolir le supplice
capital ; et une fois qu'on n'eut
plus besoin d'elle, l'utopie
redevint utopie, la théorie,
théorie, la poésie, poésie.
Il y avait pourtant
toujours dans les prisons
quelques malheureux
condamnés vulgaires qui se
promenaient dans les préaux
depuis cinq ou six mois,
respirant l'air, tranquilles
désormais, sûrs de vivre, prenant
leur sursis pour leur grâce. Mais
attendez.
Le bourreau, à vrai dire,
avait eu grand'peur. Le jour où il
avait entendu les faiseurs de lois
parler humanité, philanthropie,
progrès, il s'était cru perdu. Il
s'était caché, le misérable, il
s'était blotti sous sa guillotine,
mal à l'aise au soleil de juillet
comme un oiseau de nuit en
plein jour, tâchant de se faire
oublier, se bouchant les oreilles
et n'osant souffler. On ne le
voyait plus depuis six mois. Il ne
donnait plus signe de vie. Peu à
peu cependant il s'était rassuré
dans ses ténèbres. Il avait écouté
du côté des Chambres et n'avait
pas entendu prononcer son nom.
Plus de ces grands mots sonores
Estes diversos arranjos, uma
vez feitos, todo medo
desaparecera no espírito dos
homens de estado dirigentes, e
com o medo, a humanidade fora
embora. Não fora mais
concebível abolir o suplício
capital, e uma vez que não mais
se precisou dela, a utopia
retornara-se utopia, a teoria,
teoria, a poesia, poesia.
Havia, contudo, ainda nas
prisões, alguns infelizes
condenados vulgares que
passeavam nos pátios por cinco
ou seis meses, respirando o ar,
tranquilos doravante, certos de
viverem, tomando sua pena
suspensa por sua graça. Mas
esperem.
O carrasco, para falar a
verdade, tinha tido mui medo. O
dia em que ele tinha ouvido os
fazedores de leis falarem
humanidade, filantropia,
progresso, ele se viu perdido. Ele
tinha se escondido, o miserável,
ele tinha se encolhido sob a
guilhotina, desconfortável sob o
sol de julho como um pássaro da
noite em pleno dia, se
encarregando de se fazer
esquecer, tapando as orelhas e
não ousando respirar. Não o
viam mais havia seis meses. Ele
não dava mais sinal de vida.
Pouco a pouco, contudo, ele
tinha se tranquilizado em suas
tênebras. Ele tinha escutado por
123
dont il avait eu si grande
frayeur. Plus de commentaires
déclamatoires du Traité des
délits et des peines. On
s'occupait de toute autre chose,
de quelque grave intérêt social,
d'un chemin vicinal, d'une
subvention pour l'Opéra-
Comique, ou d'une saignée de
cent mille francs sur un budget
apoplectique de quinze cents
millions. Personne ne songeait
plus à lui, coupe-tête. Ce que
voyant, l'homme se tranquillise,
il met sa tête hors de son trou, et
regarde de tous côtés ; il fait un
pas, puis deux, comme je ne sais
plus quelle souris de La
Fontaine, puis il se hasarde à
sortir tout à fait de dessous son
échafaudage, puis il saute
dessus, le raccommode, le
restaure, le fourbit, le caresse, le
fait jouer, le fait reluire, se remet
à suifer la vieille mécanique
rouillée que l'oisiveté
détraquait ; tout à coup il se
retourne, saisit au hasard par les
cheveux dans la première prison
venue un de ces infortunés qui
comptaient sur la vie, le tire à
lui, le dépouille, l'attache, le
boucle, et voilà les exécutions
qui recommencent.
Tout cela est affreux,
mais c'est de l'histoire.
parte das Câmaras e não tinha
ouvido pronunciar seu nome.
Nada mais daquelas grandes
palavras sonoras das quais ele
tinha tido tão grande pavor.
Nada mais daqueles comentários
declamatórios do Tratado dos
delitos e das penas. Estavam
cuidando de outras coisas, de
algum interesse social grave, de
um caminho vicinal, de uma
subvenção para a Ópera-Cômica,
ou de uma sangria de cem mil
francos em um orçamento
apoplético de mil e quinhentos
milhões. Ninguém pensava mais
nele, cortador de cabeça. Ao ver
isto, o homem se tranquiliza. Ele
coloca sua cabeça fora de seu
buraco e olha de todos os lados.
Ele dá um passo, depois dois,
como eu não sei mais qual rato
de La Fontaine, depois, ele se
arrisca a sair inteiramente de
debaixo do seu cadafalso, depois
ele salta para cima, o remenda, o
restaura, o pule, o acaricia, o faz
funcionar, o faz reluzir, se repõe
a engraxar a velha mecânica
enferrujada que a ociosidade
estragava. De repente ele se vira,
cata ao acaso pelos cabelos, na
primeira prisão trazida, um
desses infortunados que
contavam com a vida, o puxa até
ele, o despe, o amarra, o afivela
e eis as execuções que
recomeçam.
Tudo isso é pavoroso, mas
é história.
124
Oui, il y a eu un sursis de
six mois accordé à de
malheureux captifs, dont on a
gratuitement aggravé la peine de
cette façon en les faisant
reprendre à la vie ; puis, sans
raison, sans nécessité, sans trop
savoir pourquoi, pour le plaisir,
on a un beau matin révoqué le
sursis, et l'on a remis froidement
toutes ces créatures humaines en
coupe réglée. Eh ! mon Dieu ! je
vous le demande, qu'est-ce que
cela nous faisait à tous que ces
hommes vécussent ? Est-ce qu'il
n'y a pas en France assez d'air à
respirer pour tout le monde ?
Pour qu'un jour un
misérable commis de la
chancellerie, à qui cela était
égal, se soit levé de sa chaise en
disant : — Allons ! personne ne
songe plus à l'abolition de la
peine de mort. Il est temps de se
remettre à guillotiner ! — il faut
qu'il se soit passé dans le coeur
de cet homme-là quelque chose
de bien monstrueux.
Du reste, disons-le,
jamais les exécutions n'ont été
accompagnées de circonstances
plus atroces que depuis cette
révocation du sursis de juillet,
jamais l'anecdote de la Grève n'a
été plus révoltante et n'a mieux
prouvé l'exécration de la peine
de mort. Ce redoublement
d'horreur est le juste châtiment
des hommes qui ont remis le
Sim, houve uma pena
suspensa de seis meses acordada
a infelizes cativos aos quais
agravaram gratuitamente a pena
desta maneira, os fazendo
retomar à vida, depois, sem
razão, sem necessidade, sem
muito saber por que, por prazer,
revocaram em uma linda manhã
a pena suspensa e recolocaram
friamente todas essas criaturas
humanas ao abate. Ei! Meu
Deus! Eu lhos pergunto o que
isso nos faria, a todos, que estes
homens vivessem? Será que não
tem na França ar suficiente a
respirar para todo mundo?
Para que um dia um
miserável comissário da
chancelaria, a quem isto era
indiferente, tenha se levantado
de sua cadeira dizendo: —
Vamos! Ninguém pensa mais na
abolição da pena de morte. Está
na hora de recomeçar a
guilhotinar! — É preciso que
tenha passado no coração
daquele homem alguma coisa de
muito monstruoso.
De resto, digamo-lo,
jamais as execuções foram
acompanhadas de circunstâncias
mais atrozes desde esta
revocação da suspensão da pena
de julho, jamais a anedota da
Grève foi mais revoltante e
provou melhor a execração da
pena de morte. Esta repetição de
horror é o justo castigo dos
homens que recolocaram o
125
code du sang en vigueur. Qu'ils
soient punis par leur oeuvre.
C'est bien fait.
Il faut citer ici deux ou
trois exemples de ce que
certaines exécutions ont eu
d'épouvantable et d'impie. Il faut
donner mal aux nerfs aux
femmes des procureurs du roi.
Une femme, c'est quelquefois
une conscience.
Dans le midi, vers la fin
du mois de septembre dernier,
nous n'avons pas bien présents à
l'esprit le lieu, le jour, ni le nom
du condamné, mais nous les
retrouverons si l'on conteste le
fait, et nous croyons que c'est à
Pamiers ; vers la fin de
septembre donc, on vient trouver
un homme dans sa prison, où il
jouait tranquillement aux cartes ;
on lui signifie qu'il faut mourir
dans deux heures, ce qui le fait
trembler de tous ses membres,
car, depuis six mois qu'on
l'oubliait, il ne comptait plus sur
la mort ; on le rase, on le tond,
on le garrotte, on le confesse ;
puis on le brouette entre quatre
gendarmes, et à travers la foule,
au lieu de l'exécution. Jusqu'ici
rien que de simple. C'est comme
cela que cela se fait. Arrivé à
l'échafaud, le bourreau le prend
au prêtre, l'emporte, le ficelle sur
la bascule, l'enfourne, je me sers
ici du mot d'argot, puis il lâche
le couperet. Le lourd triangle de
fer se détache avec peine, tombe
código do sangue em vigor. Que
eles sejam punidos por suas
obras. Bem feito.
É preciso citar aqui dois
ou três exemplos do que certas
execuções tiveram de medonho e
de ímpio. É preciso dar nos
nervos das mulheres dos
procuradores do rei. Uma mulher
é, algumas vezes, uma
consciência.
No sul, por volta do fim
do mês do último setembro, não
temos muito presentes à mente o
lugar, o dia, nem o nome do
condenado, mas os
reencontraremos se contestarem
o fato, e acreditamos que foi em
Pamiers. Por volta, então, do fim
de setembro, vieram encontrar
um homem em sua prisão onde
ele jogava tranquilamente cartas.
Anunciam-lhe que ele deve
morrer em duas horas, o que o
faz tremer de todos seus
membros, pois, havia seis meses
que o esqueciam, ele não
contava mais com a morte. O
barbeiam, o tosam, o amarram,
escutam sua confissão, depois o
carregam em um carrinho de
mão entre quatro gendarmes, e
através da multidão, para o lugar
da execução. Até aqui apenas o
corriqueiro. É desta maneira que
isto é feito. Chegando ao
cadafalso, o carrasco o leva ao
padre, o traz, o afivela sobre a
báscula, o enforna, eu me sirvo
aqui de uma gíria, depois ele
126
en cahotant dans ses rainures, et,
voici l'horrible qui commence,
entaille l'homme sans le tuer.
L'homme pousse un cri affreux.
Le bourreau, déconcerté, relève
le couperet et le laisse retomber.
Le couperet mord le cou du
patient une seconde fois, mais ne
le tranche pas. Le patient hurle,
la foule aussi. Le bourreau
rehisse encore le couperet,
espérant mieux du troisième
coup. Point. Le troisième coup
fait jaillir un troisième ruisseau
de sang de la nuque du
condamné, mais ne fait pas
tomber la tête. Abrégeons. Le
couteau remonta et retomba cinq
fois, cinq fois il entama le
condamné, cinq fois le
condamné hurla sous le coup et
secoua sa tête vivante en criant
grâce ! Le peuple indigné prit
des pierres et se mit dans sa
justice à lapider le misérable
bourreau. Le bourreau s'enfuit
sous la guillotine et s'y tapit
derrière les chevaux des
gendarmes. Mais vous n'êtes pas
au bout. Le supplicié, se voyant
seul sur l'échafaud, s'était
redressé sur la planche, et là,
debout, effroyable, ruisselant de
sang, soutenant sa tête à demi
coupée qui pendait sur son
épaule, il demandait avec de
faibles cris qu'on vînt le
détacher. La foule, pleine de
pitié, était sur le point de forcer
les gendarmes et de venir à
larga o cutelo. O pesado
triângulo de ferro se desamarra
com dificuldade, cai sacudindo
em suas ranhuras, e eis o horror
que começa, entalha o homem
sem matá-lo. O homem solta um
grito pavoroso. O carrasco,
desconcertado, relevanta o cutelo
e o deixa recair. O cutelo morde
o pescoço do paciente uma
segunda vez, mas não o decepa.
O paciente berra, a multidão
também. O carrasco reergue
novamente o cutelo esperando
melhor do terceiro golpe. Pausa.
O terceiro golpe faz jorrar um
terceiro rio de sangue da nuca do
condenado, mas não faz cair a
cabeça. Abreviemos. O facão
resubira e recaíra cinco vezes,
cinco vezes ele estraçalhara o
condenado, cinco vezes o
condenado berrara sob o golpe e
sacudira sua cabeça viva
gritando graça! O povo
indignado pegara pedras e se
pusera com sua justiça a lapidar
o miserável carrasco. O carrasco
fugira sob a guilhotina e ali se
encolhera atrás dos cavalos dos
gendarmes. Mas vocês não
sabem o final. O suplicado se
vendo sozinho sobre o cadafalso,
tinha se endireitado sobre a
tábua, e ali, em pé, horrível,
escorrendo sangue, segurando
sua cabeça semicortada que caía
sobre seu ombro, ele pedia com
fracos gritos que viessem o
desamarrar. A multidão, cheia de
127
l'aide du malheureux qui avait
subi cinq fois son arrêt de mort.
C'est en ce moment-là qu'un
valet du bourreau, jeune homme
de vingt ans, monte sur
l'échafaud, dit au patient de se
tourner pour qu'il le délie, et,
profitant de la posture du
mourant qui se livrait à lui sans
défiance, saute sur son dos et se
met à lui couper péniblement ce
qui lui restait de cou avec je ne
sais quel couteau de boucher.
Cela s'est fait. Cela s'est vu. Oui.
Aux termes de la loi, un
juge a dû assister à cette
exécution. D'un signe il pouvait
tout arrêter. Que faisait-il donc
au fond de sa voiture, cet
homme, pendant qu'on
massacrait un homme ? Que
faisait ce punisseur d'assassins,
pendant qu'on assassinait en
plein jour, sous ses yeux, sous le
souffle de ses chevaux, sous la
vitre de sa portière ?
Et le juge n'a pas été mis
en jugement ! et le bourreau n'a
pas été mis en jugement ! Et
aucun tribunal ne s'est enquis de
cette monstrueuse extermination
de toutes les lois sur la personne
sacrée d'une créature de Dieu !
Au dix-septième siècle, à
l'époque de barbarie du code
criminel, sous Richelieu, sous
piedade, estava a ponto de forçar
os gendarmes e de vir ajudar o
infeliz que tinha sofrido cinco
vezes sua sentença de morte. Foi
naquele momento que um
vassalo do carrasco, homem
jovem de vinte anos, sobe sobre
o cadafalso, diz ao paciente de se
virar para que ele o desate, e
aproveitando da postura do
moribundo que se entregava a
ele sem desconfiança, salta sobre
suas costas e se põe a lhe cortar
terrivelmente o que lhe restava
de pescoço com sei lá qual facão
de açougueiro. Isso aconteceu.
Isso se viu. Sim.
Nos termos da lei, um juiz
teve que assistir a esta execução.
Com um sinal, ele podia parar
tudo. O que ele fazia então
dentro de sua viatura, este
homem, enquanto que
massacravam um homem? O que
fazia este punidor de assassinos
enquanto que assassinavam em
pleno dia, sob seus olhos, sob a
respiração de seus cavalos, sob o
vidro de sua porta?
E o juiz não foi levado a
julgamento! E o carrasco não
foi levado a julgamento! E
nenhum tribunal inquiriu esta
monstruosa exterminação de
todas as leis sobre a pessoa
sagrada de uma criatura de
Deus!
No século dezessete, na
época de barbárie do código
criminal, sob Richelieu, sob
128
Christophe Fouquet, quand M.
de Chalais fut mis à mort devant
le Bouffay de Nantes par un
soldat maladroit qui, au lieu d'un
coup d'épée, lui donna trente-
quatre coups43
d'une doloire de
tonnelier, du moins cela parut-il
irrégulier au parlement de Paris .
Il y eut enquête et procès,
et si Richelieu ne fut pas puni, si
Christophe Fouquet ne fut pas
puni, le soldat le fut. Injustice
sans doute, mais au fond de
laquelle il y avait de la justice.
Ici, rien. La chose a eu
lieu après juillet, dans un temps
de douces moeurs et de progrès,
un an après la célèbre
lamentation de la Chambre sur
la peine de mort. Eh bien ! le fait
a passé absolument inaperçu.
Les journaux de Paris l'ont
publié comme une anecdote.
Personne n'a été inquiété. On a
su seulement que la guillotine
avait été disloquée exprès par
quelqu'un qui voulait nuire à l'exécuteur des hautes oeuvres.
C'était un valet du bourreau,
chassé par son maître, qui, pour
Christophe Fouquet, quando o
Sr. de Chalais, fora levado à
morte diante do Bouffay de
Nantes por um soldado
desajeitado que, no lugar de um
golpe de espada, lhe dera trinta
e quatro golpes42
com um
machado de tanoeiro. Pelo
menos isto pareceu irregular ao
Parlamento de Paris.
Houvera investigação e
processo, e se Richelieu não
fora punido, se Christophe
Fouquet não fora punido, o
soldado o fora. Injustiça sem
dúvida, mas dentro da qual
havia justiça.
Aqui, nada. A coisa
aconteceu depois de julho, em
um tempo de doces costumes e
de progresso, um ano depois da
célebre lamentação da Câmara
sobre a pena de morte. Pois
bem! O fato passou
absolutamente desapercebido.
Os jornais de Paris o publicaram
como uma anedota. Ninguém
ficou preocupado. Soube-se
somente que a guilhotina tinha
sido deslocada de propósito por
alguém que queria destruir o
executor das grandes obras. Era
um vassalo do carrasco, expulso
43
La Porte dit vingt-deux, mais Aubery dit trente-quatre. M. de Chalais cria
jusqu'au vingtième. 43
A Porta diz vinte e dois. Aubery diz trinta e quatro. O Sr. de Chalais critara
até o vigésimo.
129
se venger, lui avait fait cette
malice.
Ce n'était qu'une
espièglerie. Continuons.
A Dijon, il y a trois mois,
on a mené au supplice une
femme. (Une femme !) Cette
fois encore, le couteau du
docteur Guillotin a mal fait son
service. La tête n'a pas été tout à
fait coupée. Alors les valets de
l'exécuteur se sont attelés aux
pieds de la femme, et à travers
les hurlements de la
malheureuse, et à force de
tiraillements et de soubresauts,
ils lui ont séparé la tête du corps
par arrachement.
Paris, nous revenons au
temps des exécutions secrètes.
Comme on n'ose plus décapiter
en Grève depuis juillet, comme
on a peur, comme on est lâche,
voici ce qu'on fait. On a pris
dernièrement à Bicêtre un
homme, un condamné à mort, un
nommé Désandrieux, je crois ;
on l'a mis dans une espèce de
panier traîné sur deux roues, clos
de toutes parts, cadenassé et
verrouillé ; puis, un gendarme en
tête, un gendarme en queue, à
petit bruit et sans foule, on a été
déposer le paquet à la barrière
déserte de Saint-Jacques.
Arrivés là, il était huit heures du
matin, à peine jour, il y avait une
guillotine toute fraîche dressée
et pour public quelque douzaine
pelo seu senhor, que para se
vingar lhe tinha feito esta
malícia.
Era apenas uma
travessura. Continuemos.
Em Dijon, faz três meses,
levaram ao suplício uma
mulher. (Uma mulher!) Desta
vez também, o facão do doutor
Guillotin fez mal seu serviço. A
cabeça não foi totalmente
cortada. Então os vassalos do
executor se juntaram aos pés da
mulher e, entre os berros da
infeliz e de tantos puxões e
sacudidas, eles lhe separaram a
cabeça do corpo por
arrancamento.
Paris, nós voltamos no
tempo das execuções secretas.
Como não se ousa mais
decapitar na Grève desde julho,
como se tem medo, como se é
covarde, eis o que fazem.
Pegaram recentemente em
Bicêtre um homem, um
condenado à morte nomeado
Désandrieux, eu acho.
Colocaram-no em uma espécie
de cesto arrastado sobre duas
rodas, trancado por todos os
lados, encadeado e trancafiado.
Depois, um gendarme na frente,
um gendarme atrás, sem barulho
e sem multidão, foram depositar
o pacote na barreira deserta de
Saint-Jacques. Chegando lá,
eram oito horas da manhã, mal
tinha amanhecido, havia uma
130
de petits garçons groupés sur les
tas de pierres voisins autour de
la machine inattendue ; vite, on
a tiré l'homme du panier, et, sans
lui donner le temps de respirer,
furtivement, sournoisement,
honteusement, on lui a escamoté
sa tête. Cela s'appelle un acte
public et solennel de haute
justice. Infâme dérision !
Comment donc les gens
du roi comprennent-ils le mot
civilisation ? Où en sommes-
nous ? La justice ravalée aux
stratagèmes et aux supercheries !
la loi aux expédients !
monstrueux !
C'est donc une chose bien
redoutable qu'un condamné à
mort, pour que la société le
prenne en traître de cette façon !
Soyons juste pourtant,
l'exécution n'a pas été tout à fait
secrète. Le matin on a crié et
vendu comme de coutume l'arrêt
de mort dans les carrefours de
Paris. Il paraît qu'il y a des gens
qui vivent de cette vente. Vous
entendez ? du crime d'un
infortuné, de son châtiment, de
ses tortures, de son agonie, on
fait une denrée, un papier qu'on
vend un sou. Concevez-vous
rien de plus hideux que ce sou,
vertdegrisé dans le sang ? Qui
est-ce donc qui le ramasse ?
guilhotina fresquinha erguida e
quanto ao público, uma dúzia de
garotinhos agrupados sobre uns
montes de pedras vizinhas em
volta da máquina inesperada.
Rapidamente, tiraram o homem
do cesto, sem lhe dar o tempo
de respirar, furtivamente,
maldosamente,
vergonhosamente, lhe
escamotearam sua cabeça. Isso
se chama um ato público e
solene do Supremo Tribunal de
Justiça. Infame zombaria!
Como então os homens
do rei compreendem a palavra
civilização? Onde estamos? A
justiça reengolida nos
estratagemas e nas trapaças! A
lei nos expedientes!
Monstruoso!
É então uma coisa muito
temível, um condenado à morte,
para que a sociedade o apunhale
pelas costas desta maneira!
Sejamos justos, portanto.
A execução não foi totalmente
secreta. Pela manhã, gritou-se e
vendeu-se como de costume a
sentença de morte nos
cruzamentos de Paris. Parece
que há pessoas que vivem desta
venda. Vocês estão escutando?
Do crime de um infortunado, do
seu castigo, das suas torturas, da
sua agonia, faz-se uma
mercadoria, um papel que se
vende a um tostão. Vocês
concebem algo mais hediondo
que este tostão, verde
131
Voilà assez de faits. En
voilà trop. Est-ce que tout cela
n'est pas horrible ? Qu'avez-vous
à alléguer pour la peine de
mort ?
Nous faisons cette
question sérieusement : nous la
faisons pour qu'on y réponde ;
nous la faisons aux
criminalistes, et non aux lettrés
bavards. Nous savons qu'il y a
des gens qui prennent
l'excellence de la peine de mort
pour texte à paradoxe comme
tout autre thème. Il y en d'autres
qui n'aiment la peine de mort
que parce qu'ils haïssent tel ou
tel qui l'attaque. C'est pour eux
une question quasi littéraire, une
question de personnes, une
question de noms propres. Ceux-
là sont les envieux, qui ne font
pas plus faute aux bons
jurisconsultes qu'aux grands
artistes. Les Joseph Grippa ne
manquent pas plus aux
Filangieri que les Torregiani aux
Michel-Ange et les Scudéry aux
Corneille.
Ce n'est pas à eux que
nous nous adressons, mais aux
hommes de loi proprement dits,
aux dialecticiens, aux
raisonneurs, à ceux qui aiment la
peine de mort pour la peine de
mort, pour sa beauté, pour sa
bonté, pour sa grâce.
Voyons, qu'ils donnent
acinzentado no sangue? Quem é
então que o junta?
Eis aqui, fatos
suficientes. Eis aqui, muitos!
Será que tudo isso não é
horrível? O que vocês têm a
alegar sobre a pena de morte?
Nós fazemos esta
pergunta seriamente. Nós a
fazemos para que respondam a
isso: nós a fazemos aos
criminalistas, e não aos letrados
tagarelas. Sabemos que há
pessoas que tomam a excelência
da pena de morte como texto
paradoxal como qualquer outro
tema. Há outras que gostam da
pena de morte apenas porque
detestam este ou aquele que a
ataca. É para eles uma questão
quase literária, uma questão de
pessoas, uma questão de nomes
próprios. Estes aí são os
invejosos, que não cometem
mais erros com os bons
jurisconsultos do que com os
grandes artistas. Os Joseph
Grippa não fazem mais falta aos
Filangieri do que os Torregiani
aos Michel-Ange e os Scudéry
aos Corneille.
Não é a eles a quem nos
dirigimos, mas aos homens da
lei propriamente ditos, aos
dialéticos, aos argumentadores,
aos que amam a pena de morte
pela pena de morte, por sua
beleza, por sua bondade, por sua
graça.
Vejamos como eles se
132
leurs raisons.
Ceux qui jugent et qui
condamnent disent la peine de
mort nécessaire. D'abord, - parce
qu'il importe de retrancher de la
communauté sociale un membre
qui lui a déjà nui et qui pourrait
lui nuire encore. - S'il ne
s'agissait que de cela, la prison
perpétuelle suffirait. À quoi bon
la mort ? Vous objectez qu'on
peut s'échapper d'une prison ?
faites mieux votre ronde. Si vous
ne croyez pas à la solidité des
barreaux de fer, comment osez-
vous avoir des ménageries ?
Pas de bourreau où le
geôlier suffit.
Mais, reprend-on, - il faut
que la société se venge, que la
société punisse. - Ni l'un, ni
l'autre. Se venger est de
l'individu, punir est de Dieu.
La société est entre deux.
Le châtiment est au-dessus
d'elle, la vengeance au-dessous.
Rien de si grand et de si petit ne
lui sied. Elle ne doit pas « punir
pour se venger » ; elle doit
corriger pour améliorer.
Transformez de cette façon la
formule des criminalistes, nous
la comprenons et nous y
adhérons.
Reste la troisième et
dernière raison, la théorie de
l'exemple. — Il faut faire des
exemples ! il faut épouvanter par
le spectacle du sort réservé aux
criminels ceux qui seraient
dão razão.
Os que julgam e que
condenam dizem necessária a
pena de morte. Primeiramente, -
porque é importante arrancar da
comunidade social um membro
que já o prejudicou e que
poderia prejudicá-lo de novo. –
Se se tratasse apenas disso, a
prisão perpétua bastaria. Para
quê a morte? Vocês objetam
que se pode escapar de uma
prisão? Façam melhor sua
ronda. Se vocês não acreditam
na solidez das barras de ferro,
como ousam vocês ter gaiolas?
Nada de carrasco onde o
carcereiro basta.
Mas, vamos retomar, - é
preciso que a sociedade se
vingue, que a sociedade puna. –
Nem um, nem outro. Se vingar
é do indivíduo, punir é de Deus.
A sociedade está entre os
dois. O castigo está acima dela,
a vingança abaixo. Nada de tão
grande e de tão pequeno lhe
convém. Ela não deve “punir
para se vingar”; ela deve
corrigir para melhorar.
Transformem desta maneira a
fórmula dos criminalistas, nós a
compreendemos e nós aderimos
a isso.
Falta a terceira e a última
razão, a teoria do exemplo. — É
preciso mostrar exemplos! É
preciso aterrorizar com o
espetáculo do destino reservado
aos criminosos os que seriam
133
tentés de les imiter ! — Voilà
bien à peu près textuellement la
phrase éternelle dont tous les
réquisitoires des cinq cents
parquets de France ne sont que
des variations plus ou moins
sonores. Eh bien ! nous nions
d'abord qu'il y ait exemple. Nous
nions que le spectacle des
supplices produise l'effet qu'on
en attend. Loin d'édifier le
peuple, il le démoralise, et ruine
en lui toute sensibilité, partant
toute vertu. Les preuves
abondent, et encombreraient
notre raisonnement si nous
voulions en citer. Nous
signalerons pourtant un fait entre
mille, parce qu'il est le plus
récent. Au moment où nous
écrivons, il n'a que dix jours de
date. Il est du 5 mars, dernier
jour du carnaval. A Saint-Pol,
immédiatement après l'exécution
d'un incendiaire nommé Louis
Camus, une troupe de masques
est venue danser autour de
l'échafaud encore fumant. Faites
donc des exemples ! le mardi
gras vous rit au nez.
Que si, malgré
l'expérience, vous tenez à votre
théorie routinière de l'exemple,
alors rendez-nous le seizième
siècle, soyez vraiment
formidables, rendez-nous la
variété des supplices, rendez-
nous Farinacci, rendez-nous les
tentados a imitá-los! — Eis aqui
quase textualmente a frase
eterna a qual todos os
requisitórios dos quinhentos
tribunais da França são apenas
variações mais ou menos
sonoras. Pois bem! Negamos
primeiramente que tenha um
exemplo. Negamos que o
espetáculo das súplicas produza
o efeito que se espera disso.
Longe de edificar o povo, ele o
desmoraliza e arruína nele toda
sensibilidade, indo embora toda
virtude. As provas abundam e
congestionariam nosso
raciocínio se nós quiséssemos
citá-las. Assinalaremos,
contudo, um fato entre mil
porque ele é o mais recente. No
momento em que escrevemos,
faz apenas dez dias. Ele é do dia
5 de março, último dia de
carnaval. Em Saint-Pol,
imediatamente depois da
execução de um incendiário
nomeado Louis Camus, uma
tropa de máscaras veio dançar
envolta do cadafalso ainda
fumegante. Mostrem então
exemplos! A terça-feira gorda ri
no seu nariz.
E se, apesar da
experiência, vocês se afeiçoem
à sua teoria rotineira do
exemplo, então, devolvam-nos o
século dezesseis. Sejam
realmente formidáveis.
Devolvam-nos a variedade dos
suplícios, devolvam-nos
134
tourmenteurs-jurés, rendez-nous
le gibet, la roue, le bûcher,
l'estrapade, l'essorillement,
l'écartèlement, la fosse à enfouir
vif, la cuve à bouillir vif ;
rendez-nous, dans tous les
carrefours de Paris, comme une
boutique de plus ouverte parmi
les autres, le hideux étal du
bourreau, sans cesse garni de
chair fraîche. Rendez-nous
Montfaucon, ses seize piliers de
pierre, ses brutes assises, ses
caves à ossements, ses poutres,
ses crocs, ses chaînes, ses
brochettes de squelettes, son
éminence de plâtre tachetée de
corbeaux, ses potences
succursales, et l'odeur du
cadavre que par le vent du nord-
est il répand à larges bouffées
sur tout le faubourg du Temple.
Rendez-nous dans sa
permanence et dans sa puissance
ce gigantesque appentis du
bourreau de Paris. A la bonne
heure ! Voilà de l'exemple en
grand. Voilà de la peine de mort
bien comprise. Voilà un système
de supplices qui a quelque
proportion. Voilà qui est
horrible, mais qui est terrible.
Ou bien faites comme en
Angleterre. En Angleterre, pays
de commerce, on prend un
contrebandier sur la côte de
Douvres, on le pend pour
l'exemple, pour l'exemple on le
Farinacci, devolvam-nos os
executores de alta justiça,
devolvam-nos a forca, a roda, a
fogueira, a estrapada, a
ressecção da orelha, o esticador,
a cova de enterrar vivos, o
tanque de ferver vivos.
Devolvam-nos, em todas as
encruzilhadas de Paris, como
uma butique mais aberta entre
as outras, a hedionda tenda do
carrasco, sempre garnida de
carne fresca. Devolvam-nos
Montfaucon, seus dezesseis
pilares de pedra, suas brutas
bases, suas covas de ossos, suas
vigas, seus ganchos, suas
correntes, seus espetos de
esqueletos, sua eminência de
gesso salpicada de corvos, suas
potências sucursais e o odor do
cadáver que pelo vento do
nordeste se espalha em largas
baforadas em todo subúrbio do
Templo. Devolvam-nos, na sua
permanência e no seu poder este
gigantesco alpendre do carrasco
de Paris. Na hora certa! Eis aqui
exemplo em demasia. Eis aqui
pena de morte bem
compreendida. Eis um sistema
de suplícios que tem alguma
proporção. Eis o que é horrível,
mas que é incrível.
Ou então façam como na
Inglaterra. Na Inglaterra, país de
comércio, se pega um
contrabandista na costa de
Douvres, enforcam-no como
exemplo. Como exemplo,
135
laisse accroché au gibet ; mais,
comme les intempéries de l'air
pourraient détériorer le cadavre,
on l'enveloppe soigneusement
d'une toile enduite de goudron,
afin d'avoir à le renouveler
moins souvent. Ô terre
d'économie ! goudronner les
pendus !
Cela pourtant a encore
quelque logique. C'est la façon
la plus humaine de comprendre
la théorie de l'exemple.
Mais vous, est-ce bien
sérieusement que vous croyez
faire un exemple quand vous
égorgillez misérablement un
pauvre homme dans le recoin le
plus désert des boulevards
extérieurs ? En Grève, en plein
jour, passe encore ; mais à la
barrière Saint-Jacques ! mais à
huit heures du matin ! Qui est-ce
qui passe là ? Qui est-ce qui va
là ? Qui est-ce qui sait que vous
tuez un homme là ? Qui est-ce
qui se doute que vous faites un
exemple là ? Un exemple pour
qui ? Pour les arbres du
boulevard, apparemment.
Ne voyez-vous donc pas
que vos exécutions publiques se
font en tapinois ? Ne voyez-vous
donc pas que vous vous cachez ?
Que vous avez peur et honte de
votre oeuvre ? Que vous
balbutiez ridiculement
votre discite justitiam moniti ?
Qu'au fond vous êtes ébranlés,
deixam-no pendurado na forca.
Mas como as intempéries do ar
poderiam deteriorar o cadáver,
envolvem-no cuidadosamente
em um tecido revestido de
alcatrão a fim de ter que renová-
lo com menos frequência. Ó
terra de economia! Alcatroar os
enforcados!
Isto, contudo, tem ainda
alguma lógica. É a maneira
mais humana de compreender a
teoria do exemplo.
Mas vocês, é realmente
sério que vocês acreditam
mostrar exemplo quando vocês
cortam miseravelmente o
pescoço de um pobre homem no
recanto mais deserto dos
bulevares exteriores? Em
Grève, em pleno dia, ainda vai.
Mas na barreira Saint-Jacques!
Mas às oito horas da manhã!
Quem passa lá? Quem vai lá?
Quem é que sabe que vocês
estão matando um homem lá?
Quem imagina que vocês estão
mostrando um exemplo lá? Um
exemplo para quem? Para as
árvores do bulevar,
aparentemente.
Vocês então não veem
que suas execuções públicas são
feitas clandestinamente? Vocês
então não veem que vocês se
escondem? Que vocês têm
medo e vergonha de sua obra?
Que vocês balbuciam
ridiculamente sua discite
justitiam moniti? Que no fundo
136
interdits, inquiets, peu certains
d'avoir raison, gagnés par le
doute général, coupant des têtes
par routine et sans trop savoir ce
que vous faites ? Ne sentez-vous
pas au fond du coeur que vous
avez tout au moins perdu le
sentiment moral et social de la
mission de sang que vos
prédécesseurs, les vieux
parlementaires, accomplissaient
avec une conscience si
tranquille ? La nuit, ne
retournez-vous pas plus souvent
qu'eux la tête sur votre oreiller ?
D'autres avant vous ont ordonné
des exécutions capitales, mais ils
s'estimaient dans le droit, dans le
juste, dans le bien. Jouvenel des
Ursins se croyait un juge ; Élie
de Thorrette se croyait un juge ;
Laubardemont, La Reynie et
Laffemas eux-mêmes se
croyaient des juges ; vous, dans
votre for intérieur, vous n'êtes
pas bien sûrs de ne pas être des
assassins !
Vous quittez la Grève
pour la barrière Saint-Jacques, la
foule pour la solitude, le jour
pour le crépuscule. Vous ne
faites plus fermement ce que
vous faites. Vous vous cachez,
vous dis-je !
Toutes les raisons pour la
peine de mort, les voilà donc
démolies. Voilà tous les
syllogismes de parquets mis à
vocês estão destabilizados,
ilegais, inquietos, pouco certos
de ter razão, ganhos pela dúvida
geral, cortando cabeças por
rotina e sem muito saber o que
estão fazendo? Vocês não
sentem no fundo do coração que
vocês no mínimo perderam o
sentimento moral e social da
missão de sangue que seus
antecessores, os velhos
parlamentares realizavam com
uma consciência tão tranquila?
À noite, vocês não viram com
mais frequência do que eles a
cabeça sobre seu travesseiro?
Outros antes de vocês
ordenaram execuções capitais,
mas eles se estimavam estar no
direito, na certeza, no bem.
Jouvenel des Ursins acreditava
ser um juiz; Élie de Thorrette
acreditava ser um juiz;
Laubardemont, La Reynie e
Laffemas, eles mesmos
acreditavam ser juízes. Vocês,
em seu foro interno, não estão
bem certos de não serem
assassinos!
Vocês deixam a Grève
pela barreira Saint-Jacques, a
multidão pela isolação, o dia
pelo crepúsculo. Vocês não
fazem mais firmemente o que
vocês fazem. Vocês se
escondem, eu lhes digo!
Todas as razões para a
pena de morte, ei-las assim
demolidas. Eis aqui todos os
silogismos de tribunais
137
néant. Tous ces copeaux de
réquisitoires, les voilà balayés et
réduits en cendres. Le moindre
attouchement de la logique
dissout tous les mauvais
raisonnements.
Que les gens du roi ne
viennent donc plus nous
demander des têtes, à nous jurés,
à nous hommes, en nous
adjurant d'une voix caressante
au nom de la société à protéger,
de la vindicte publique à assurer,
des exemples à faire.
Rhétorique, ampoule, et néant
que tout cela ! un coup d'épingle
dans ces hyperboles, et vous les
désenflez. Au fond de ce
doucereux verbiage, vous ne
trouvez que dureté de coeur,
cruauté, barbarie, envie de
prouver son zèle, nécessité de
gagner ses honoraires. Taisez-
vous, mandarins ! Sous la patte
de velours du juge on sent les
ongles du bourreau.
Il est difficile de songer
de sang-froid à ce que c'est
qu'un procureur royal criminel.
C'est un homme qui gagne sa vie
à envoyer les autres à l'échafaud.
C'est le pourvoyeur titulaire des
places de Grève. Du reste, c'est
un monsieur qui a des
prétentions au style et aux
lettres, qui est beau parleur ou
croit l'être, qui récite au besoin
un vers latin ou deux avant de
conclure à la mort, qui cherche à
faire de l'effet, qui intéresse son
fulminado. Todos esses
estilhaços de requisitórios, ei-
los varridos e reduzidos em
cinzas. O mínimo toque da
lógica dissolve todos os maus
raciocínios.
Que os homens do rei
não venham mais então nos
pedir cabeças, a nós jurados, a
nós homens, nos adjurando com
uma voz afetuosa em nome da
sociedade a proteger, da
vindicta pública a assegurar,
exemplos a mostrar. Retórico,
pedante e vazio tudo isto! Uma
alfinetada nessas hipérboles, e
vocês as esvaziam. No fundo
deste doce palavreado, vocês só
encontram dureza de coração,
crueldade, barbárie, vontade de
provar seu zelo, necessidade de
ganhar seus honorários. Calem-
se, sabichões! Sob a pata de
veludo do juiz, sentimos as
unhas do carrasco.
É difícil de pensar de
sangue-frio o que é um
procurador criminalista do Rei.
É um homem que ganha sua
vida enviando os outros ao
cadafalso. É o provedor titular
das praças da Grève. De resto, é
um senhor que tem pretensões
ao estilo e às letras, que é
palrador ou acredita sê-lo, que
recita, se preciso, um verso
latim ou dois antes de induzir à
morte, que procura causar
efeito, que cultiva seu amor
138
amour-propre, ô misère ! là où
d'autres ont leur vie engagée, qui
a ses modèles à lui, ses types
désespérants à atteindre, ses
classiques, son Bellart, son
Marchangy, comme tel poète a
Racine et tel autre Boileau. Dans
le débat, il tire du côté de la
guillotine, c'est son rôle, c'est
son état. Son réquisitoire, c'est
son oeuvre littéraire, il le fleurit
de métaphores, il le parfume de
citations, il faut que cela soit
beau à l'audience, que cela
plaise aux dames. Il a son
bagage de lieux communs
encore très neufs pour la
province, ses élégances
d'élocution, ses recherches, ses
raffinements d'écrivain. Il hait le
mot propre presque autant que
nos poètes tragiques de l'école
de Delille. N'ayez pas peur qu'il
appelle les choses par leur nom.
Fi donc ! Il a pour toute idée
dont la nudité vous révolterait
des déguisements complets
d'épithètes et d'adjectifs. Il rend
M. Samson présentable. Il gaze
le couperet. Il estompe la
bascule. Il entortille le panier
rouge dans une périphrase. On
ne sait plus ce que c'est. C'est
douceâtre et décent. Vous le
représentez-vous, la nuit, dans
son cabinet, élaborant à loisir et
de son mieux cette harangue qui
fera dresser un échafaud dans
six semaines ? Le voyez-vous
suant sang et eau pour emboîter
próprio, ó miséria! Aqui onde
outros têm sua vida engajada,
ele tem seus próprios modelos,
seus ideais desesperadores a
alcançar, seus clássicos, seu
Bellart, seu Marchancy, como
um poeta tem Racine e outro
Boileau. No debate, ele puxa
para o lado da guilhotina, é seu
papel, é seu estado. Seu
requisitório é sua obra literária,
ele o floresce com metáforas,
ele o perfuma com citações. É
preciso que isto fique bonito na
audiência, que isto agrade às
senhoras. Ele tem sua bagagem
de lugares comuns ainda bem
novos para a província, suas
elegâncias de elocução, suas
pesquisas, seus refinamentos de
escritor. Ele odeia a palavra
própria quase tanto quanto
nossos poetas trágicos da escola
de Delille. Não tenham medo
que ele chame as coisas pelo
seu nome. Nossa! Ele tem para
cada ideia cuja nudez os
revoltaria dos disfarces
completos de epítetos e
adjetivos. Ele torna o Sr.
Samson apresentável. Ele
suaviza o cutelo. Ele atenua a
báscula. Ele enrola o cesto
vermelho em uma perifrase.
Não se sabe mais o que é. É
adocicado e decente. Vocês o
imaginam à noite em seu
escritório, elaborando a seu bel-
prazer e dando o seu melhor,
este discurso que fará erguer um
139
la tête d'un accusé dans le plus
fatal article du code ? Le voyez-
vous scier avec une loi mal faite
le cou d'un misérable ?
Remarquez-vous comme il fait
infuser dans un gâchis de tropes
et de synecdoches deux ou trois
textes vénéneux pour en
exprimer et en extraire à grand-
peine la mort d'un homme ?
N'est-il pas vrai que, tandis qu'il
écrit, sous sa table, dans l'ombre,
il a probablement le bourreau
accroupi à ses pieds, et qu'il
arrête de temps en temps sa
plume pour lui dire, comme le
maître à son chien : — Paix là !
paix là ! tu vas avoir ton os !
Du reste, dans la vie
privée, cet homme du roi peut
être un honnête homme, bon
père, bon fils, bon mari, bon
ami, comme disent toutes les
épitaphes du Père-Lachaise.
Espérons que le jour est
prochain où la loi abolira ces
fonctions funèbres. L'air seul de
notre civilisation doit dans un
temps donné user la peine de
mort.
On est parfois tenté de
croire que les défenseurs de la
peine de mort n'ont pas bien
réfléchi à ce que c'est. Mais
cadafalso em seis semanas?
Vocês o veem suando sangue e
água para encaixar a cabeça de
um acusado no mais fatal artigo
do código? Vocês o veem serrar
com uma lei mal feita o pescoço
de um miserável? Vocês
reparam como ele faz infundir
em um desperdício de
expressões e de sinédoques dois
ou três textos venenosos para
exprimir e extrair disso com
mui dificuldade a morte de um
homem? Não é verdade que
enquanto ele escreve, sob sua
mesa, no escuro, ele tem
provavelmente com o carrasco
acocorado a seus pés, e que ele
para de tempos em tempos sua
pena para lhe dizer, como o
dono ao seu cachorro: — Calma
lá! Calma lá! Tu vais ganhar teu
osso!
De resto, na vida privada,
este homem do rei pode ser um
homem honesto, bom pai, bom
filho, bom marido, bom amigo,
como dizem todos os epitáfios
do Père-Lachaise.
Esperemos que esteja
próximo o dia em que a lei
abolirá estas funções fúnebres.
O único tema de nossa
civilização deve em um dado
momento destruir a pena de
morte.
Somos às vezes tentados
a acreditar que os defensores da
pena de morte não refletiram
bem o que é isto. Mas pesem
140
pesez donc un peu à la balance
de quelque crime que ce soit ce
droit exorbitant que la société
s'arroge d'ôter ce qu'elle n'a pas
donné, cette peine, la plus
irréparable des peines
irréparables !
De deux choses l'une :
Ou l'homme que vous
frappez est sans famille, sans
parents, sans adhérents dans ce
monde. Et dans ce cas, il n'a
reçu ni éducation, ni instruction,
ni soins pour son esprit, ni soins
pour son coeur ; et alors de quel
droit tuez-vous ce misérable
orphelin ? Vous le punissez de
ce que son enfance a rampé sur
le sol sans tige et sans tuteur !
Vous lui imputez à forfait
l'isolement où vous l'avez
laissé ! De son malheur vous
faites son crime ! Personne ne
lui a appris à savoir ce qu'il
faisait. Cet homme ignore. Sa
faute est à sa destinée, non à lui.
Vous frappez un innocent.
Ou cet homme a une
famille ; et alors croyez-vous
que le coup dont vous l'égorgez
ne blesse que lui seul ? que son
père, que sa mère, que ses
enfants, n'en saigneront pas ?
Non. En le tuant, vous décapitez
toute sa famille. Et ici encore
vous frappez des innocents.
então um pouco na balança de
qualquer crime que seja este
direito exorbitante que a
sociedade se arroga de tirar o
que ela não deu, esta pena, a
mais irreparável das penas
irreparáveis!
De duas coisas, uma:
Ou o homem que vocês
abatem é sem família, sem pais,
sem aderentes neste mundo. E
neste caso, ele não recebeu nem
educação, nem instrução, nem
cuidados para seu espírito, nem
cuidados para seu coração. E
então, com qual direito vocês
matam este miserável órfão?
Vocês o punem com aquilo que
sua infância rastejou sobre o
solo sem caule nem estaca!
Vocês lhe imputam por tabela o
isolamento onde vocês o
deixaram! De sua desgraça
vocês fazem seu crime!
Ninguém lhe ensinou a
compreender o que ele fazia.
Este homem ignora. Seu erro é
do seu destino, não dele. Vocês
abatem um inocente.
Ou este homem tem uma
família. Então vocês acreditam
que o golpe com o qual vocês
lhe cortam o pescoço só
machuca a ele apenas? Que seu
pai, que sua mãe, que seus
filhos não sangrarão por isso?
Não. Matando-o, vocês
decapitam toda sua família. E
aqui mais uma vez vocês
abatem inocentes.
141
Gauche et aveugle
pénalité, qui, de quelque côté
qu'elle se tourne, frappe
l'innocent !
Cet homme, ce coupable
qui a une famille, séquestrez-le.
Dans sa prison, il pourra
travailler encore pour les siens.
Mais comment les fera-t-il vivre
du fond de son tombeau ? Et
songez-vous sans frissonner à ce
que deviendront ces petits
garçons, ces petites filles,
auxquelles vous ôtez leur père,
c'est-à-dire leur pain ? Est-ce
que vous comptez sur cette
famille pour approvisionner
dans quinze ans, eux le bagne,
elles le musico ? Oh ! les
pauvres innocents !
Aux colonies, quand un
arrêt de mort tue un esclave, il y
a mille francs d'indemnité pour
le propriétaire de l'homme.
Quoi ! vous dédommagez le
maître, et vous n'indemnisez pas
la famille ! Ici aussi ne prenez-
vous pas un homme à ceux qui
le possèdent ? N'est-il pas, à un
titre bien autrement sacré que
l'esclave vis-à-vis du maître, la
propriété de son père, le bien
desa femme, la chose de ses
enfants ?
Nous avons déjà
convaincu votre loi d'assassinat.
La voici convaincue de vol.
Autre chose encore.
L'âme de cet homme, y songez-
Infeliz e cega penalidade
que, de qualquer lado que ela
gire, abate um inocente!
Este homem, este
culpado que tem uma família,
sequestrem-no. Em sua prisão,
ele poderá trabalhar ainda pelos
seus. Mas como ele os fará
viver do fundo de seu túmulo?
E vocês pensam sem se arrepiar
no que tornarão estes
garotinhos, estas garotinhas das
quais vocês tiram o pai, ou seja,
seu pão? Será que vocês contam
com esta família para abastecer
em quinze anos, eles o trabalho
forçado, elas o café de baixo
nível? Oh! Pobres inocentes!
Nas colônias, quando
uma sentença de morte mata um
escravo, há mil francos de
indenização para o proprietário
do homem. O quê! Vocês
recompensam o dono e vocês
não indenizam a família! Aqui
também vocês não tomam um
homem daqueles que o
possuem? Não é ele, a um título
bem mais sagrado do que o
escravo face ao dono, a
propriedade de seu pai, o bem
de sua mulher, o pertence dos
seus filhos?
Nós já demonstramos sua
lei de assassinato. Ei-la
demonstrada de roubo.
Outra coisa ainda. A
alma deste homem, vocês
142
vous ? Savez-vous dans quel état
elle se trouve ? Osez-vous bien
l'expédier si lestement ?
Autrefois du moins, quelque foi
circulait dans le peuple ; au
moment suprême, le souffle
religieux qui était dans l'air
pouvait amollir le plus endurci ;
un patient était en même temps
un pénitent ; la religion lui
ouvrait un monde au moment où
la société lui en fermait un
autre ; toute âme avait
conscience de Dieu ; l'échafaud
n'était qu'une frontière du ciel.
Mais quelle espérance mettez-
vous sur l'échafaud maintenant
que la grosse foule ne croit
plus ? maintenant que toutes les
religions sont attaquées du dry-
rot, comme ces vieux vaisseaux
qui pourrissent dans nos ports, et
qui jadis peut-être ont découvert
des mondes ? maintenant que les
petits enfants se moquent de
Dieu ? De quel droit lancez-vous
dans quelque chose dont vous
doutez vous-mêmes les âmes
obscures de vos condamnés, ces
âmes telles que Voltaire et M.
Pigault-Lebrun les ont faites ?
Vous les livrez à votre aumônier
de prison, excellent vieillard
sans doute ; mais croit-il et fait-
il croire ? Ne grossoie-t-il pas
comme une corvée son oeuvre
sublime ? Est-ce que vous le
prenez pour un prêtre, ce
bonhomme qui coudoie le
bourreau dans la charrette ? Un
pensam nisso? Vocês sabem em
qual estado ela se encontra?
Vocês ousam expedi-la tão
rapidamente? Outrora pelo
menos, alguma fé circulava no
povo. No momento supremo, o
sopro religioso que estava no ar
podia amolecer o mais
empedernido. Um paciente era
ao mesmo tempo um penitente.
A religião lhe abria um mundo
no momento em que a
sociedade lhe fechava outro.
Toda alma tinha consciência de
Deus. O cadafalso era somente
uma fronteira do céu. Mas qual
esperança vocês colocam sobre
o cadafalso agora que a grande
multidão não acredita mais?
Agora que todas as religiões são
atacadas com o dry-rot, como
esses velhos navios que
apodrecem em nossos portos e
que outrora talvez se descobriu
mundos? Agora que as
criancinhas debocham de Deus?
Com qual direito vocês lançam
em alguma coisa, da qual vocês
mesmos duvidam, as almas
obscuras de seus condenados,
estas almas tais como Voltaire e
o Sr. Pigault-Lebrun as fizeram?
Vocês os entregam a seu
capelão prisional, excelente
velhote sem dúvida. Mas ele crê
e ele faz crer? Ele não
subscreve como uma tarefa sua
obra sublime? Será que vocês o
tomam por um padre, este bom
homem que encosta no carrasco
143
écrivain plein d'âme et de talent
l'a dit avant nous : C'est une
horrible chose de conserver le
bourreau après avoir ôté le confesseur !
Ce ne sont là, sans doute,
que des « raisons
sentimentales », comme disent
quelques dédaigneux qui ne
prennent leur logique que dans
leur tête. A nos yeux, ce sont les
meilleures. Nous préférons
souvent les raisons du sentiment
aux raisons de la raison.
D'ailleurs les deux séries se
tiennent toujours, ne l'oublions
pas. Le Traité des délits est
greffé sur l'Esprit des lois.
Montesquieu a engendré
Beccaria.
La raison est pour nous,
le sentiment est pour nous,
l'expérience est aussi pour nous.
Dans les états modèles, où la
peine de mort est abolie, la
masse des crimes capitaux suit
d'année en année une baisse
progressive. Pesez ceci.
Nous ne demandons
cependant pas pour le moment
une brusque et complète
abolition de la peine de mort,
comme celle où s'était si
étourdiment engagée la
Chambre des députés. Nous
désirons, au contraire, tous les
essais, toutes les précautions,
tous les tâtonnements de la
prudence. D'ailleurs, nous ne
voulons pas seulement
na carroça? Um escritor cheio
de alma e de talento o disse
antes de nós: É uma coisa
horrível conservar o carrasco depois de ter tirado o confessor!
São, sem dúvida,
apenas razões “sentimentais”,
como dizem alguns
desdenhosos que consideram
sua lógica apenas em sua
cabeça. Aos nossos olhos, são
as melhores. Nós preferimos
geralmente as razões do
sentimento às razões da razão.
Aliás, as duas séries ainda estão
ligadas, não o esqueçamos. O
Tratado dos delitos está
enxertado no Espírito das leis.
Montesquieu engendrou
Beccaria.
A razão é para nós, o
sentimento é para nós, a
experiência é também para nós.
Nos estados modelos onde a
pena de morte está abolida, a
massa dos crimes capitais segue
de ano em ano uma baixa
progressiva. Pesem isto.
Não pedimos, contudo,
por enquanto, uma brusca e
completa abolição da pena de
morte, como a que se tinha tão
impensadamente engajado a
Câmara dos deputados.
Desejamos, ao contrário, todos
os ensaios, todas as precauções,
todas as tentativas da prudência.
Aliás, não queremos apenas a
abolição da pena de morte,
queremos um remanejamento
144
l'abolition de la peine de mort,
nous voulons un remaniement
complet de la pénalité sous
toutes ses formes, du haut en
bas, depuis le verrou jusqu'au
couperet, et le temps est un des
ingrédients qui doivent entrer
dans une pareille oeuvre pour
qu'elle soit bien faite. Nous
comptons développer ailleurs,
sur cette matière, le système
d'idées que nous croyons
applicable. Mais,
indépendamment des abolitions
partielles pour le cas de fausse
monnaie, d'incendie, de vols
qualifiés, etc., nous demandons
que dès à présent, dans toutes les
affaires capitales, le président
soit tenu de poser au jury cette
question : L'accusé a-t-il agi par
passion ou par intérêt ? et que,
dans le cas où le jury
répondrait : L'accusé a agi par passion, il n'y ait pas
condamnation à mort. Ceci nous
épargnerait du moins quelques
exécutions révoltantes. Ulbach
et Debacker seraient sauvés. On
ne guillotinerait plus Othello.
Au reste, qu'on ne s'y
trompe pas, cette question de la
peine de mort mûrit tous les
jours. Avant peu, la société
entière la résoudra comme nous.
Que les criminalistes les
plus entêtés y fassent attention,
depuis un siècle la peine de mort
va s'amoindrissant. Elle se fait
presque douce. Signe de
completo da penalidade sob
todas suas formas, de cima para
baixo, desde a fechadura até o
cutelo, e o tempo é um dos
ingredientes que deve entrar em
uma obra igual a essa para que
ela seja bem-feita. Nós
contamos desenvolver alhures,
sobre esta matéria, o sistema de
ideias que acreditamos ser
aplicáveis. Mas
independentemente das
abolições parciais para o caso
de moeda falsa, de incêndio, de
roubos qualificados, etc, nós
pedimos que desde agora, em
todos os casos capitais, o
presidente seja obrigado a
perguntar ao júri esta pergunta:
O acusado agiu por paixão ou
por interesse? E que, no caso
em que o júri respondesse: O acusado agiu por paixão, não
tivesse condenação à morte. Isto
nos pouparia pelo menos de
algumas execuções revoltantes.
Ulbach e Debacker estariam
salvos. Não guilhotinariam mais
Othello.
O resto, que não se
enganem, esta questão da pena
de morte amadurece todos os
dias. Qualquer dia, a sociedade
inteira a resolverá como nós.
Que os criminalistas
mais obstinados tomem cuidado
com isso. Há um século a pena
de morte vai diminuindo. Ela se
mostra quase doce. Sinal de
145
décrépitude. Signe de faiblesse.
Signe de mort prochaine. La
torture a disparu. La roue a
disparu. La potence a disparu.
Chose étrange ! la guillotine
elle-même est un progrès.
M. Guillotin était un
philanthrope.
Oui, l'horrible Thémis
dentue et vorace de Farinace et
du Vouglans, de Delancre et
d'Isaac Loisel, de d'Oppède et de
Machault, dépérit. Elle maigrit.
Elle se meurt.
Voilà déjà la Grève qui
n'en veut plus. La Grève se
réhabilite. La vieille buveuse de
sang s'est bien conduite en
juillet. Elle veut mener
désormais meilleure vie et rester
digne de sa dernière belle action.
Elle qui s'était prostituée depuis
trois siècles à tous les échafauds,
la pudeur la prend. Elle a honte
de son ancien métier. Elle veut
perdre son vilain nom. Elle
répudie le bourreau. Elle lave
son pavé.
A l'heure qu'il est, la
peine de mort est déjà hors de
Paris. Or, disons-le bien ici,
sortir de Paris c'est sortir de la
civilisation.
Tous les symptômes sont
pour nous. Il semble aussi
qu'elle se rebute et qu'elle
rechigne, cette hideuse machine,
ou plutôt ce monstre fait de bois
decrepitude. Sinal de fraqueza.
Sinal de morte futura. A tortura
desapareceu. A roda
desapareceu. O cavalete
desapareceu. Coisa estranha! A
guilhotina, ela mesma, é um
progresso.
Sr. Guilhotin era um
filantropo.
Sim, a horrível Thémis
cheia de dentes e voraz de
Farinace e do Vouglans, de
Delancre e de Isaac Loisel, de
d’Oppède e de Machauld, está
definhando. Emagrecendo. Ela
está morrendo.
Eis a Grève que já não
quer mais isso. A Grève se
reabilita. A velha bebedora de
sangue se comportou bem em
julho. Ela quer levar doravante
uma vida melhor e continuar
digna de sua última bela ação.
Ela que se prostituiu por três
séculos em todos os cadafalsos,
o pudor a toma. Ela tem
vergonha de seu antigo métier.
Ela quer perder seu nome vilão.
Ela repudia o carrasco. Ela lava
sua rua.
A esta hora, a pena de
morte já está fora de Paris. Ora,
digamo-lo aqui: sair de Paris é
sair da civilização.
Todos os sintomas são
para nós. Parece também que
ela rejeita e que ela rosna esta
hedionda máquina, ou melhor,
este monstro feito de madeira e
146
et de fer qui est à Guillotin ce
que Galatée est à Pygmalion.
Vues d'un certain côté, les
effroyables exécutions que nous
avons détaillées plus haut sont
d'excellents signes. La guillotine
hésite. Elle en est à manquer son
coup. Tout le vieil échafaudage
de la peine de mort se détraque.
L'infâme machine partira
de France, nous y comptons, et,
s'il plaît à Dieu, elle partira en
boitant, car nous tâcherons de lui
porter de rudes coups.
Qu'elle aille demander
l'hospitalité ailleurs, à quelque
peuple barbare, non à la
Turquie, qui se civilise, non aux
sauvages, qui ne voudraient pas
d'elle44
; mais qu'elle descende
quelques échelons encore de
l'échelle de la civilisation,
qu'elle aille en Espagne ou en
Russie.
L'édifice social du passé
reposait sur trois colonnes, le
prêtre, le roi, le bourreau. Il y a
déjà longtemps qu'une voix a
dit : Les dieux s'en vont ! Dernièrement une autre
voix s'est élevée et a crié : Les rois s'en vont ! Il est temps
maintenant qu'une troisième
voix s'élève et dise : Le bourreau s'en va !
de ferro que está para Guillotin
assim como Galatée está para
Pygmalion. Vistas de um certo
lado, as terríveis execuções que
nós detalhamos mais acima são
excelentes sinais. A guilhotina
hesita. Ela está perdendo seu
golpe. Todo velho cadafalso da
pena de morte está se
degradando.
A infame máquina partirá
da França, nós contamos com
isso, e, se Deus quiser, ela
partirá mancando, pois nós nos
encarregaremos de lhe dar rudes
chutes.
Que ela vá pedir
hospitalidade alhures, a algum
povo bárbaro, não na Turquia
que se civiliza, não aos
selvagens que não queriam
saber dela43
. Mas que ela desça
alguns degraus ainda da escala
da civilização, que ela vá para
Espanha ou para Rússia.
O edifício social do
passado assentava sobre três
colunas: o padre, o rei, o
carrasco. Já faz tempo que uma
voz disse: Os deuses estão indo embora! Ultimamente outra voz
elevou-se e gritou: Os reis estão indo embora! Agora é tempo
que uma terceira voz se eleva e
diga: O carrasco está indo embora!
44
Le « parlement » d'Otahiti vient d'abolir la peine de mort. 44
O “parlamento” de Otahiti acaba de abolir a pena de morte.
147
Ainsi l'ancienne société
sera tombée pierre à pierre ;
ainsi la providence aura
complété l'écroulement du
passé.
A ceux qui ont regretté
les dieux, on a pu dire : Dieu
reste. A ceux qui regrettent les
rois, on peut dire : La patrie
reste. A ceux qui regretteraient
le bourreau, on n'a rien à dire.
Et l'ordre ne disparaîtra
pas avec le bourreau ; ne le
croyez point. La voûte de la
société future ne croulera pas
pour n'avoir point cette clef
hideuse. La civilisation n'est
autre chose qu'une série de
transformations successives. A
quoi donc allez-vous assister ? à
la transformation de la pénalité.
La douce loi du Christ pénétrera
enfin le code et rayonnera à
travers. On regardera le crime
comme une maladie, et cette
maladie aura ses médecins qui
remplaceront vos juges, ses
hôpitaux qui remplaceront vos
bagnes. La liberté et la santé se
ressembleront. On versera le
baume et l'huile où l'on
appliquait le fer et le feu. On
traitera par la charité ce mal
qu'on traitait par la colère. Ce
sera simple et sublime. La croix
substituée au gibet. Voilà tout.
15 mars 1832.
Assim, a antiga
sociedade será tombada pedra
por pedra. Assim, a providência
terá completado o
desmoronamento do passado.
Aos que lamentaram
pelos deuses, pudemos dizer:
Deus fica. Aos que lamentam
pelos reis, podemos dizer: A
pátria fica. Aos que lamentarem
pelo carrasco, não temos nada a
dizer.
E a ordem não
desaparecerá com o carrasco,
não o acreditem. O arco da
sociedade futura não ruirá por
não ter esta clave hedionda. A
civilização não é nada além que
uma série de transformações
sucessivas. O que então vocês
vão assistir? À transformação
da penalidade. A lei branda do
Cristo penetrará enfim o código
e radiará completamente.
Olharão o crime como uma
doença, e esta doença terá seus
médicos que substituirão seus
juízes, seus hospitais que
substituirão seus trabalhos
forçados. A liberdade e a saúde
se assemelharão. Derramarão o
bálsamo e o óleo onde se
aplicavam o ferro e o fogo.
Tratarão por caridade este mal
que tratavam por cólera. Será
simples e sublime. A cruz
substituída pela forca. Isto é
tudo.
15 de março de 1832.
148
3.2. Comentários sobre a tradução
Em A tradução e a letra Berman se propõe examinar o sistema
de deformação dos textos que operam nas traduções da prosa literária,
caracterizada por uma disformidade. Entretanto, o crítico francês
entende que o "mal escrito" é também sua riqueza, pois é conseqüência
de seu plurilinguismo (2013, p. 49, 50 e 51). A deformação do texto
ocorre quando a preocupação com a “bela forma” e com o “sentido” de
um texto prevalecem sobre uma maneira de traduzir que faz sentir no
texto de chegada o que Berman chamou de albergue do longínquo. Essa
tradução que abriga na língua de chegada o estrangeiro, opõe-se à
tradução etnocêntrica, criticada por Berman por anular o que é diverso,
o que advém de outra cultura e que pode somar-se àquela de chegada,
em algo que deve ser adaptado à cultura e língua local. Tal adaptação
encontra na “boa escrita” da língua de chegada a sua morada. Berman
apresenta uma lista com treze itens do que ele chama de tendências
deformadoras de uma tradução, as quais deforman o texto em nome de
uma tradução etnocêntrica. Dessas treze tendências discorrerei sobre
cinco delas, quando dos comentários da tradução do Prefácio de 1832,
por serem as que aparecem com mais profusão. Tratarei, portanto, da
clarificação, do empobrecimento qualitativo, do empobrecimento quantitativo, da homogeinização e da destruição das locuções. A
marcação com o número da página na coluna da esquerda corresponde
às páginas da edição francesa da editora Le Livre de Poche.
3.2.1. Clarificação
Para o teórico francês Antoine Berman (2012, p. 70), na
clarificação o tradutor tende a definir algo em que no original se
movimenta sem problema no indefinido. O que no texto de partida está
oculto, oprimido, o tradutor clarifica, explicita. Ele afirma também que a
passagem da polissemia à monossemia é uma forma de clarificação.
Observemos abaixo os dois quadros com suas respectivas traduções.
Página 15
[...] ou il s'est rencontré un
homme, un rêveur occupé à
observer la nature au profit de l'art,
[...] ou existiu um homem, um
sonhador ocupado em observar a
natureza em proveito da arte, um
149
un philosophe, un poète, que sais-
je ?
filósofo, um poeta, sabe-se lá?
Tanto na língua francesa como na língua portuguesa, o verbo “se
rencontrer” e “se encontrar” podem significar entre outras definições o
vocábulo “existir”. Para Berman a tendência à clarificação deve ser
evitada por ela ser um agente de deformação do texto. Todavia, a
tradução também deve evitar que exista ambiguidade onde no texto
fonte não havia. Nesse caso, preferi não traduzir o termo “il s’est
rencontré un homme” por “encontrou-se um homem” mesmo tendo a
percepção que esta tradução ficaria mais próxima do texto original em
relação à sua construção. Porém, creio que este verbo em questão tanto
em francês como em português não carrega em si o mesmo peso de
significância. Na língua francesa, “il s’est rencontré un homme” não
deixaria o leitor da língua fonte com dúvida em sua interpretação do
termo. Este leitor não pensaria provavelmente que alguém encontrou um
homem, e sim, que este homem existiu. Já na língua portuguesa, se o
verbo “se encontrar” fosse o termo escolhido para tal trecho, o leitor da
língua alvo imaginaria provavelmente que alguém encontrou este
homem, e não que ele existiu. Pode-se então inferir que o leitor do texto
de chegada, através do contexto de tal trecho, poderia, sim, interpretar o
vocábulo “encontrou-se um homem” por “existiu um homem”. Porém,
os leitores do texto de partida não titubeariam com tal expressão, pois “il
s’est rencontré un homme” na língua francesa não quer dizer outra coisa
além de “existiu um homem”, por isso minha escolha de tirar a
polissemia à leitura do leitor de chegada, pois o mesmo fenômeno não
se faz presente no texto de partida.
Página 38
[...] et alors de quel droit tuez-
vous ce misérable orphelin ? Vous
le punissez de ce que son enfance
a rampé sur le sol sans tige et sans
tuteur !
[...] e então, com qual direito
vocês matam este miserável
órfão? Vocês o punem com aquilo
que sua infância rastejou sobre o
solo sem caule e sem estaca!
Neste trecho do Prefácio de 1832, Victor Hugo narra a infância
difícil de um condenado qualquer, que adulto, não pode ser nada além
do que um delinquente ou criminoso. Hugo utiliza dois termos
150
polissêmicos “tige” e “tuteur” para uma frase que tanto caberia um
significado como outro. O primeiro vocábulo, “tige”, significa em
francês a parte superior de um sapato, protegendo assim, a parte de cima
dos pés. Contudo, a palavra “tige” contém também a definição de caule
de uma flor, de uma planta. Já o vocábulo “tuteur”, tanto quer dizer
“tutor” como na língua portuguesa, ou seja, alguém que tem a tutela de
uma pessoa, como a conotação de “estaca”, ou seja, uma peça de
madeira, ou ferro que cravamos no solo para servir de suporte para algo,
na sua maioria das vezes, para plantas. Podemos imaginar que Victor
Hugo faz com essa metáfora uma defesa do criminoso, o qual desde sua
tenra infância não possuía sapatos para a proteção de seus pés e nenhum
tutor para protegê-lo dos perigos das ruas, terminando por tornar-se um
criminoso. Porém, mesmo consciente da perda da palavra “tuteur”, em
português, “tutor”, que caberia também perfeitamente neste contexto,
minha escolha de tradução direcionou-se para outra esfera, a da
interpretação de “caule” e “estaca”. Vejamos que Hugo utiliza a palavra
“sol”, em português “solo” - Vous le punissez de ce que son enfance a
rampé sur le sol sans tige et sans tuteur - o que me fez optar por essa
interpretação, ou seja, uma criança que cresceu em um chão, em um solo
sem nenhuma proteção, sem nenhum apoio nem cuidado, sem nenhum
esteio, ou seja, sem caule e sem estaca.
Página 31
Nous faisons cette question
sérieusement : nous la faisons
pour qu'on y réponde ; nous la
faisons aux criminalistes, et non
aux lettrés bavards.
Nós a fazemos para que
respondam a isso: nós a fazemos
aos criminalistas, e não aos
letrados tagarelas.
Este trecho do Prefácio de 1832 de Victor Hugo diz respeito a
uma pergunta que ele lança aos homens da lei sobre o que se tem a
alegar contra a pena de morte. O termo “bavard”, aqui sublinhado,
significa em língua francesa a palavra em português “tagarela” ou
“fofoqueiro”. Porém, em francês, na condição de gíria, este mesmo
termo designa “advogado”. Neste momento, tive muita hesitação por
qual termo optar, pois tanto um quanto outro caberia perfeitamente no
contexto da frase acima explanada. A princípio, eu interpretei este
151
trecho como uma distinção da parte de Victor Hugo entre um advogado
cuja especialização não ultrapassa, por exemplo, o âmbito do direito
tributário, entre outros, cujo discurso é acompanhado de hipérboles,
cheios de giros (Victor Hugo menciona em seu prefácio os discursos
retóricos proferidos pelos membros do tribunal, sendo estes cheios de
hipérboles, porém, vazios, sem algum fundamento), de um advogado
criminalista, cujo discurso deve conter o máximo de provas possível
para o convencimento à pena de morte. Porém, não conhecendo a
intenção do autor, preferi permanecer na esfera da conotação de
“tagarela” para o termo francês “bavard”, pois o vocábulo letrado me
levou a um campo mais abrangente de interpretação. Um letrado pode
ser qualquer indivíduo que possua cultura. Considerei aqui “letrados
tagarelas” para o qual Victor Hugo referiu-se a um erudito (letrado) cuja
bonita fala não expressa nada além de um enunciado sem nenhuma
prova, justificativa. Ou seja, um letrado de qualquer área, não
necessariamente alguém representante da lei, mas podendo ele ser um
jornalista, escritor, um homem que fala de algo do qual não possui
conhecimento de causa e que carrega em seu discurso apenas parolices.
Página 18
[...] lui expliquait heure par heure
les dernières souffrances du
misérable agonisant, - en ce
moment on le confesse, en ce
moment on lui coupe les cheveux,
en ce moment on lui lie les mains
[...]
[...] lhe explicava hora por hora os
últimos sofrimentos do miserável
agonizando – neste momento
confessam-no, neste momento lhe
cortam os cabelos, neste momento
lhe amarram as mãos [...]
Em A princípio, para o termo em francês “on le confesse” a
tradução escolhida para o português fora “tomam sua confissão”. Porém,
estando de acordo com Antoine Berman, quando este diz que ao traduzir
os verbos por substantivos, o tradutor acaba por racionalizar sua
tradução, optei pela tradução “confessam-no” por duas razões.
Primeiramente, se eu não o fizesse, talvez eu estivesse colaborando com
o leitor da língua alvo a não enriquecer seu vocabulário, ou o ajudando a
resumir sua interpretação, pois, “tomam sua confissão” teria uma
mensagem direta levando esse leitor à compreensão absoluta que
alguém escuta outro alguém (geralmente um padre que escuta seus fiéis,
152
ou aqui, um condenado). Porém, na língua portuguesa assim como na
francesa, “confessar” e “confesser”, respectivamente significa tanto
“confessar algo a alguém” quanto “escutar a confissão de uma pessoa”.
Assim, optei pela tradução que mais se aproximava da língua de partida,
mesmo que a opção escolhida não seja muito utilizada na língua de
chegada, ainda que seja totalmente compreensível.
3.2.2. O empobrecimento qualitativo
De acordo com Berman, o empobrecimento qualitativo se
relaciona a substituição dos termos, modos de dizer, expressões,
presentes no original por modos de dizer e expressões que não têm nem
sua riqueza sonora, nem sua riqueza significante no texto alvo. (2012,
p.75). Notemos o seguinte quadro:
Página 30
[...] on l'a mis dans une espèce de
panier traîné sur deux roues, clos
de toutes parts, cadenassé et
verrouillé ; puis, un gendarme en
tête, un gendarme en queue, à
petit bruit et sans foule, on a été
déposer le paquet à la barrière
déserte de Saint-Jacques.
[...] colocaram-no em uma espécie
de cesto arrastado sobre duas
rodas, trancado por todos os lados,
encadeado e trancafiado; depois,
um gendarme na frente, um
gendarme atrás, sem barulho e
sem multidão, foram depositar o
pacote na barreira deserta de
Saint-Jacques.
Neste trecho, Victor Hugo narra dois gendarmes levando às
escondidas um condenando à morte para um lugar deserto onde o
matarão, sendo que o condenado encontra-se dentro de uma espécie de
cesto, e um gendarme o segura na frente e outro atrás. Na língua
francesa, os termos “en tête” e “en queue”, em português “cabeça” e
“cauda, rabo” são vocábulos cuja usualidade é bastante comum, dando a
conotação de “na frente” e “atrás” respectivamente, entre outras
definições. Já na língua portuguesa, essas duas palavras, “cabeça” e
“cauda”, não tem este mesmo sentido. Eu cogitei em fazer minha
tradução da seguinte maneira: “um gendarme na cabeça e outro na
traseira”, para poder manter os vocábulos “en tête” e “en queue” na
tentativa de manter as duas partes do corpo. Não o fiz, pois, a língua
153
portuguesa não carrega em si esta conotação de ser simplesmente “na
frente e atrás”. O homem se encontra dentro de um cesto, ou seja, se eu
traduzisse “um gendarme na cabeça e outro na traseira” o leitor do texto
alvo atento ao detalhe do texto em que se refere ao cesto, poderia ficar
confuso, pois, como o homem pode estar sendo segurado na cabeça e na
traseira se ele se encontra trancafiado dentro de um cesto? Ou seja, na
língua portuguesa, definitivamente, estes dois vocábulos não dariam a
conotação de que há dois gendarmes carregando um cesto sendo que um
está na frente do outro, e sim, que um estaria carregando um homem
pela cabeça e outro gendarme pela traseira. Sem dúvida, houve uma
perda na tradução, já que em francês também existem os termos
“devant” e “arrière”, em português “frente” e “atrás”, o que em
português ficaria exatamente como o traduzi, porém, preferi a tradução
que se encontra dentro do quadro para que o leitor do texto de chegada
não tivesse uma ideia errada da cena narrada.
3.2.3. O empobrecimento quantitativo
Para Antoine Berman (2012, p.76), o empobrecimento
quantitativo remete a um desperdício lexical. Ele afirma que se o autor
do texto fonte citar, por exemplo, um significado com três significantes
diferentes, e o tradutor não respeite esta multiplicidade em sua tradução,
haverá um desperdício, pois haverá menos significantes na tradução que
no original. Para Berman, esta conduta da parte do tradutor é atentar
contra o tecido lexical da obra, a abundância. Vejamos os quadros
abaixo:
Página 33
[...] rendez-nous les
tourmenteurs-jurés, rendez-nous
le gibet, la roue, le bûcher [...]
[...] devolvam-nos os
executores de alta justiça,
devolvam-nos a forca, a roda, a
fogueira, [...]
Página 20
Le peuple venait de faire un feu
O povo tinha acabado de fazer
154
de joie des guenilles de l'ancien
régime.
uma fogueira dos farrapos do
antigo regime.
Victor Hugo escreve nesse prefácio dois termos diferentes aos
quais dei a mesma tradução. Trata-se dos vocábulos “bûcher” e “feu de
joie” sendo a palavra “fogueira” a tradução para esses dois termos. Em
francês, “bûcher”, neste contexto da obra de Hugo era um amontoado de
madeira onde se ateava fogo e jogavam as pessoas condenadas ao
suplício das chamas, ou seja, “bûcher” trata-se de uma fogueira que tem
uma conotação de morte. Já o vocábulo francês “feu de joie” que
fazendo a tradução literal ficaria “fogo de alegria”, é uma fogueira
própria para festejar algo, para celebrar eventos de alegria de um povo.
Acontece que na língua portuguesa não há esta distinção de
significantes. Entende-se “fogueira” tanto para antigas execuções para a
pena de morte quanto para a realização de momentos festivos. Traduzir
“feu de joie” por “fogueira de alegria ou da alegria” fica sim mais
próximo da língua fonte, porém, não optei por essa tradução por não
existir na língua portuguesa, pois a partir do contexto, o leitor alvo
saberá sem dúvida de qual fogueira se trata, ou a fogueira da morte ou
da festividade.
3.2.4. A homogeneização
Para Berman (2012, p.77), quando o tradutor unifica o tecido do
texto original, substituindo verbos ativos por verbos com substantivos,
ele recai sobre a tendência deformadora da homogeneização. Porém,
nenhuma palavra de uma língua é exatamente igual a uma palavra de
outra como, já o demonstrou Humboldt (2001, p. 91), nem sempre é
possível acolher o estrangeiro sem deixar o texto incompreensível.
Assim, nesse caso, optei por homogeneizar os três verbos franceses,
adicionando, sim, um substantivo para cada um para que o leitor alvo
não se deparasse com algo bizarro em sua leitura.
Página 34
Mais vous, est-ce bien
sérieusement que vous croyez
faire un exemple quand vous
Mas vocês, é realmente sério que
vocês acreditam mostrar exemplo
quando vocês cortam
155
égorgillez misérablement un
pauvre homme dans le recoin le
plus désert des boulevards
extérieurs ?
miseravelmente o pescoço de um
pobre homem no recanto mais
deserto dos bulevares exteriores?
“Gorge” em francês, entre outras definições, quer dizer
“garganta, pescoço”. Na língua francesa, o verbo “égorgiller” quer dizer
“cortar o pescoço, a garganta”. Eu poderia ter traduzido, para manter o
verbo ativo sem a utilização de um substantivo, como pensa Berman,
por “pescocear” ou “gargantear”. Porém, os dois verbos em questão,
apesar de existirem na língua portuguesa, não tem o mesmo valor de
significado da língua francesa. “Pescocear” quer dizer, dar cachação em
alguém, ou seja, dar um murro, um tapa e não cortar o pescoço de uma
pessoa. Tive uma hesitação aqui, pois se tratando de pena de morte,
através do contexto, o leitor poderia compreender que “pescocear” é
arrancar o pescoço de alguém. Contudo, minha reflexão foi dentro do
âmbito da existência e da normalidade da língua francesa e portuguesa.
Em francês, “gorgiller” é um verbo existente e comum que leva
imediatamente o leitor ou o interlocutor à definição de “cortar o pescoço
de alguém”. Já na língua portuguesa, “pescocear” não leva o leitor do
texto alvo à mesma compreensão imediata, devendo este fazer um
esforço de interpretação e permear o campo da dúvida. Desta maneira,
“cortam miseravelmente o pescoço” foi a tradução contemplada neste
trecho do prefácio de Hugo.
Página 33
[...] rendez-nous les tourmenteurs-
jurés, rendez-nous le gibet, la roue,
le bûcher, l'estrapade,
l'essorillement, l'écartèlement, la
fosse à enfouir vif, la cuve à
bouillir vif ;
[...] devolvam-nos os executores
de alta justiça, devolvam-nos a
forca, a roda, a fogueira, a
estrapada, a ressecção da orelha,
o esticador, a cova de enterrar
vivos, o tanque de ferver vivos.
“Oreille” em francês significa em língua portuguesa “orelha”.
Temos no quadro acima o vocábulo “essorillement” que em sua
definição que dizer cortar a orelha de alguém ou de um animal. Não
encontrei em dicionários da língua portuguesa um substantivo que
156
represente esta ação. Entretanto, no campo da medicina utiliza-se a
expressão “ressecção da orelha”45
para o caso. Logo, não hesitei em
tentar manter o substantivo em francês em sua particularidade,
acrescentando ao substantivo português “ressecção” o complemento
nominal “orelha”, pois, na língua francesa “essorillement” quer dizer
apenas a ressecção da orelha, enquanto que em português, ressecção
pode ser a excisão de qualquer outra parte do corpo.
Página 41
Oui, l'horrible Thémis dentue et
vorace de Farinace et du
Vouglans, de Delancre et d'Isaac
Loisel, de d'Oppède et de
Machault, dépérit.
Sim, a horrível Thémis cheia de
dentes e voraz de Farinace e do
Vouglans, de Delancre e de Isaac
Loisel, de d’Oppède e de
Machault, está definhando.
A mesma dinâmica de tradução acontece para o termo em francês
“dentue” para o qual acrescentei o substantivo “dentes”. Na língua
francesa, “dentue” por si só significa algo ou alguém com dentes. Já em
português, o termo que mais se aproxima de “dentue” é “dentada”, que
tem como definição uma compressão feita com os dentes ou a marca que
esta ação pode causar sobre a pele ou algum outro lugar. Ao ignorar tal
definição para o termo na língua portuguesa, e traduzindo assim
“dentue” por “dentada” para manter o adjetivo sem complemento
nominal, o leitor alvo teria que fazer um esforço para tal interpretação,
algo que não acontece com leitor de partida. Mesmo causando um
alongamento do termo, acredito ser necessário para a interpretação do
leitor de língua portuguesa.
3.2.5. A destruição das locuções
Para o teórico Antoine Berman (2012, p. 83), uma prosa abunda
em imagens, modos de dizer, locuções, provérbios, etc, que concernem
ao vernacular, sendo que a maioria deles transmite um sentido ou uma
experiência que se encontra em locuções, de outras línguas. Berman
45
Disponível em: <https://www.infopedia.pt/dicionarios/termos-
medicos/ressec%C3%A7%C3%A3o%20> Acesso: 03/12/2017
157
(2012, p. 84), afirma que substituir um idiotismo pelo seu equivalente é
um etnocentrismo que, repetido a grande escala, levaria a uma
absurdidade. Para o teórico francês, servir-se da equivalência é atentar
contra a “falância” da obra, pois segundo Berman, as equivalências de
uma locução ou de um provérbio não os substituem. Segundo Berman,
traduzir não é buscar equivalências entre a língua de partida e a de
chegada, pois desejar substitui tais termos, locuções, provérbios é
ignorar que existe em nós uma consciência de provérbio, por exemplo.
Analisemos o quadro a seguir:
Página 33
A Saint-Pol, immédiatement après
l'exécution d'un incendiaire
nommé Louis Camus, une troupe
de masques est venue danser
autour de l'échafaud encore
fumant. Faites donc des
exemples ! le mardi gras vous rit
au nez.
Em Saint-Pol, imediatamente
depois da execução de um
incendiário nomeado Louis
Camus, uma tropa de máscaras
veio dançar envolta do cadafalso
ainda fumegante. Mostrem então
exemplos! A terça-feira gorda ri
no seu nariz.
A expressão francesa “rire au nez de quelqu’un”, traduzindo
literalmente “rir no nariz de alguém”, tem como definição alguém que
ri, que debocha de uma pessoa. Temos uma expressão em língua
portuguesa que designa a mesma ação, porém, substituímos o “nariz”
por “cara”, ou seja, “rir na cara de alguém”. Neste caso, estando no
mesmo âmbito de concordância que Antoine Berman quando este diz
que carregamos em nós uma consciência de provérbios, expressões e
outros aspectos linguísticos, acredito que o leitor do texto traduzido
entenderia perfeitamente que nesta frase há uma conotação de deboche,
de escárnio, mesmo que “ri no seu nariz” não seja de uso habitual na
língua portuguesa. Assim, “A terça-feira gorda ri no seu nariz” foi
minha opção de tradução para que nela pudesse entrar o estrangeiro,
evitando neste caso o etnocentrismo o qual Berman acredita ser uma
falta de ética da parte do tradutor.
158
Página 23
Nous avons songé aux préjugés
d'éducation de quelques-uns
d'entre eux, au cerveau peu
développé de leur chef, relaps
fanatique et obstiné des
conspirations de 1804, blanchi
avant l'âge [...]
Nós pensamos nos preconceitos de
educação de alguns dentre eles, no
cérebro pouco desenvolvido de seu
chefe, relapso fanático e obstinado
das conspirações de 1804,
embranquecido antes da idade [...]
A mesma dinâmica de tradução foi escolhida para o quadro
acima concernente ao vocábulo “blanchi”. Em língua francesa este
termo é bastante polissêmico, ao contrário da língua portuguesa. O
verbo “blanchir”, que fazendo sua tradução literal para o português
ficaria “embranquecer”, tem além desta conotação na língua francesa,
outras tais como: inocentar, justificar, desculpar, etc. Na frase “Cet
homme, blanchi avant l’âge”, significa que este homem envelheceu
antes da idade. Na língua portuguesa a mesma conotação é demonstrada
pelo verbo “envelhecer”, ou seja, em português se diz “Este homem,
envelhecido antes da idade”. Na língua francesa a mesma expressão é
utilizada com o verbo “vieillir”, em português “envelhecer”. Eis a razão
pela qual escolhi o adjetivo “embranquecido”. Assim, para que o termo
“blanchi” da língua francesa não se perdesse em uma única definição, eu
optei por esse adjetivo mesmo que não o usemos em língua portuguesa
em tal contexto. Acredito que o leitor alvo não teria dificuldade de
compreender que há um homem que está com cabelos brancos antes da
idade, ou seja, sofreu um envelhecimento. Aqui, creio ter tornado
polissêmico o verbo “embranquecido”, assim como o faz Victor Hugo
em seu prefácio.
159
Considerações Finais
No primeiro capítulo da presente dissertação procurei
contextualizar o autor e a obra no romantismo francês, além de procurar
demonstrar as implicações políticas de O Último Dia de um condenado,
a qual não é uma das principais obras de Victor Hugo, conforme
mencionado algumas vezes nessa dissertação. Contudo, tal obra se situa
em um período bastante importante literariamente, não apenas para o
próprio Hugo, mas também para a literatura francesa do início do século
XIX, para a qual o aparecimento dessa novela ocorre em um momento
em que paradigmas literários estão sendo modificados. A obra não é
central nesse aspecto, mas o seu autor sim, já que era Victor Hugo quem
estava na liderança do então jovem romantismo francês.
No que se refere ao escritor francês, a novela tendo por
protagonista o condenado de Bicêtre, situa-se exatamente entre dois
textos fundamentais de Hugo. O prefácio para Cromwell e Notre Dame de Paris. Até Cromwell (1827) Hugo tinha publicado as poesias de Odes
et Balades (1826) e os romances Bug-Jargal (1818) e Han d’Islande
(1823), este último um roman noir. O prefácio a Cromwell marca no
campo teórico uma virada nas concepções estéticas do autor, as quais
apareceriam com mais propriedade em Notre Dame de Paris (1831).
Entre um texto e outro, exatamente dois anos após Cromwell e dois anos
antes do romance que trazia Quasímodo por protagonista, é que se situa
O Último Dia de um condenado (1829). A novela contém elementos
apontados em Cromwell no que se refere às regras e modelos que devem
ser os do autor, o que se pode ver em pontos como a ausência de autoria,
a não revelação sobre a vida pregressa do personagem e o tempo
predominantemente psicológico, questões essas apontadas pela crítica da
época e satirizadas por Hugo no Prefácio de 1829. Outros elementos
apontados naquele prefácio a Cromwell, como a presença do grotesco e
do sublime, encontrariam realização superior em Notre Dame de Paris.
A partir do segundo capítulo passo à análise dos paratextos nas
edições brasileiras, os quais apresentam duas situações a meu ver, uma
delas referente aos prefácios e a outra aos demais paratextos analisados.
A presença ou não dos prefácios nas edições brasileiras
apontam especificamente para a maneira como a obra vai ser lida.
Edições como a da Moderna Paulistana e da Golden Books, que
suprimem os prefácios de 1829 e, sobretudo, o de 1832, propiciam ao
público uma leitura sem muita interferência do autor, considerando aqui
a natureza do Prefácio de 1832. Este prefácio atrela a leitura da novela,
160
em certa medida, à conjuntura da época em que a obra foi escrita, o que
evidentemente, não impossibilita uma interpretação da mesma aos olhos
da atualidade.
Por outro lado, as edições da Newton Compton e da Estação
Liberdade, que publicaram esses dois prefácios, trazem para a leitura
atual a concepção do autor sobre o texto. Sabe-se que obter a visão de
um autor sobre o seu texto é algo bastante questionado pela teoria
literária, desde os formalistas russos passando pela “morte do autor” de
Barthes. Não obstante, Victor Hugo deixa muito claro em um texto
ensaístico, portanto sem as ambiguidades e dobras interpretativas de um
texto literário, a gênese da obra, as razões que o levaram a escrevê-la e
quais intenções humanitárias e políticas ele tinha ao fazê-lo.
Naturalmente, há a opção do leitor de não ler os prefácios, e
mesmo para aquele que os lê não significa que a sua leitura fique
“contaminada” pela visão do autor, que influiria assim decisivamente na
interpretação da obra. Até mesmo porque há uma questão temporal aí.
Porém, e creio ser esse o ponto, a presença dos prefácios enriquece a
obra, permite ao leitor um contato com uma conjuntura do passado na
qual se poderá identificar ecos no presente.
Ainda sobre os prefácios há a supressão do prefácio à primeira
edição por todas as editoras brasileiras a exceção da Golden Books.
Conforme discutido no decorrer desta dissertação, a supressão desse
prefácio afeta o jogo sobre a veracidade da obra proposto pelo autor.
Determinada instância do pacto bilateral de ficção estabelecido entre
autor e leitor fica prejudicado. Assim, teoricamente a edição da Golden
Books seria a única entre as editoras brasileiras a manter a possibilidade
de escolha do leitor proposta nesse prefácio. Entretanto, a reprodução
integral do mesmo na contracapa e, dessa vez, contando com a
assinatura do autor, acaba por prejudicar a proposição contida no
prefácio.
O mesmo ocorre em relação à nota final, excluída pelas
editoras, exceto pela Estação Liberdade. Como essa nota faz eco
justamente a esse primeiro prefácio, o prejuízo em relação ao jogo
proposto também ocorre. Mesmo na edição que manteve a nota final, o
prejuízo se dá em razão justamente da exclusão do prefácio.
Em relação aos demais paratextos analisados o que me pareceu
claro, comum nas edições brasileiras, afora a da Moderna Paulistana, foi
a preocupação em promover uma obra não tão conhecida de um autor
consagrado, um dos expoentes do cânone ocidental, como é o caso de
Victor Hugo. O escritor francês é daqueles autores que mesmo quem
161
nunca leu alguma obra sua, conhece ainda que de nome suas obras
principais. Pareceu-me nítido então, principalmente nas contracapas e
orelhas, a preocupação com a envergadura de Victor Hugo, nesse caso,
muito maior que a obra, quando comparada com outras de sua autoria e
que, devido a isso, se fez necessário vincular a obra ao autor. Assim, o
nome do autor e a importância dele no cenário literário fizeram disso um
agente de divulgação da obra durante o primeiro contato do leitor com
ela, que se dá justamente via contracapa e orelhas.
Por fim, no último capítulo apresento uma proposta de tradução
para o Prefácio de 1832, além de alguns comentários sobre a prática
dessa tradução. Como suporte teórico para esses comentários utilizei as
treze tendências deformadoras de Antoine Berman, presentes no seu
livro A tradução e a letra ou albergue do longínquo. Não trabalhei com
todas elas, pois algumas convergem ou derivam de outras, conforme o
próprio Berman afirma (2013, p. 67), além de algumas não se fazerem
presentes na obra. Assim, os comentários sobre a tradução incidiram
sobre a clarificação, o empobrecimento qualitativo, o empobrecimento
quantitativo, a homogeneização, a destruição das locuções.
Uma das preocupações de Berman ao estabelecer as suas
reflexões é com a tradução etnocêntrica, a qual pode ser identificável
através das treze tendências. Durante o exercício da tradução do
Prefácio de 1832 essa era uma questão que sempre se fez presente para
mim. Naturalizar ou não nesse ou naquele ponto. Entretanto, por mais
que se tenha procurado evitar, em alguns pontos não foi possível manter
as diretrizes apontadas pelo teórico francês. Isso se deu em razão, na
maioria das vezes, da diferença semântica entre um ou outro termo da
língua alvo em relação à língua fonte. Manter uma tradução literalizante
em alguns casos poderia deixar a passagem ininteligível. Por outro lado,
sempre quando possível, procurei abrigar no português o estrangeiro,
permitindo o estranho, ou o não habitual na língua de chegada. Caso da
expressão em francês “rit au nez” que traduzi por “ri no seu nariz”,
quando no português do Brasil utilizamos a expressão “ri na sua cara”.
Entretanto, por mais que o leitor ache estranho, é perfeitamente possível
que sem muito esforço, ele perceba as duas expressões em português —
“ri no seu nariz” e “ri na sua cara” — interligadas por similaridades
semânticas e pertinência pragmática, além de conservarem estruturas
sintáticas bastante próximas. Assim, com essa prática, o que se procura
fazer com que o leitor venha, via estranhamento, sentir a tradução e com
isso, perceber que se trata de uma obra estrangeira.
162
A tradução apresentada nessa dissertação não tem maiores
ambições que não aquelas do âmbito de uma pesquisa acadêmica. O
intuito aqui foi procurar colocar em prática o que foi lido e discutido
durante o percurso acadêmico nesses últimos dois anos, seja em sala de
aula, seja em eventos científicos, seja durante o trabalho de pesquisa e
redação do presente trabalho.
Do ponto de vista dos paratextos, Gérard Genette propiciou-me
outro olhar no que tange possíveis leituras de um texto literário,
demonstrando que o texto não se encerra no ponto final do último
capítulo, tampouco inicia no primeiro parágrafo da trama. Mas ele
começa antes, na primeira e quarta capa, nas orelhas, prolonga-se nas
notas de rodapé e mesmo em outros textos que não estão no entorno do
livro, os epitextos. Essas “franjas”, como definiu Genette, se mostram
fundamentais para a recepção de uma obra e para a interpretação e
leitura que uma época fez dela, tal qual a nossa também o faz.
No que concerne à tradução, a contribuição de Antoine Berman
não se deu apenas no processo tradutório. Mas também no que diz
respeito aos paratextos. A sua reflexão sobre o horizonte de tradução foi
de grande valia no momento de análise dos paratextos, já que esse
horizonte permitiu refletir um pouco sobre o projeto de tradução das
editoras para O Último Dia de um condenado. Quanto à prática
tradutiva, não há como, após ler o teórico francês, estabelecer qualquer
ato relacionado à tradução, seja ele prático ou reflexivo, de maneira
ingênua, entendo a tradução como transposição de equivalentes
semânticos entre duas línguas. A concepção de Berman de tradução
como troca cultural, na qual a língua e cultura alvo saem enriquecidas
após o albergue do longínquo pareceu-me a sua grande contribuição, ao
menos para mim esse foi um norte durante todo o processo de tradução.
163
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