O TEXTO VISUAL - Repositório Institucional da UFSC
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA
Giseli Day
O TEXTO VISUAL: PROCESSOS DE CRIAÇÃO E FABULAÇÃO
NOS DESENHOS INFANTIS
FLORIANÓPOLIS
2019
Giseli Day
O TEXTO VISUAL: PROCESSOS DE CRIAÇÃO E FABULAÇÃO
NOS DESENHOS INFANTIS
Tese submetida ao Programa de Pós- Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção do título de Doutora em Literatura. Orientador: Prof. Dr. Jair Tadeu da Fonseca
Florianópolis
2019
Giseli Day
O texto visual: processos de criação e fabulação nos desenhos infantis
O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca
examinadora composta pelos seguintes membros:
Profa. Ângela Maria Scalabrin Coutinho, Dra. - Examinadora
Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Prof. Wladimir Antônio da Costa Garcia, Dr. - Examinador
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Profa. Júlia Terra Denis Colaço, Dra. - Examinadora
Secretaria Municipal de Educação- Florianópolis
Profa. Regina Ingrid Bragagnolo, Dra. - Suplente
Núcleo de Desenvolvimento Infantil (NDI – UFSC)
Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de
conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de doutora em
Literatura.
____________________________
Prof. Marcio Markendorf, Dr.
Coordenador do Programa
____________________________
Prof. Jair Tadeu da Fonseca, Dr.
Orientador
Florianópolis
2019
AGRADECIMENTOS
Se nos constituímos através do outro,
agradeço pela presença neste rito de passagem que me singulariza:
Ao Wladimir, minha ad-miração,
por trazer encantamento e potência de vida para meu processo de criação.
À Malu, gerada e nascida em meio ao processo de doutoramento,
por ter me escolhido como sua mãe.
Ao André e à Doris,
pela sustentação.
Ao Cristian e à Natália,
pelas leituras e conversas produtivas ao longo do processo de escrita.
À Iris, Cris, Carlinha, Fran, Naná,
porque sou mais forte quando estamos juntas.
À Juju, May, Renata, Priscila, Érica,
pela presença e incentivo.
À Rosi, Julia, Angela,
pela colaboração na qualificação.
À Juliete, Moema, Raquel,
pela acolhida na etapa final.
Ao NDI,
pelos 11 meses de afastamento concedido.
Ao Reefifi e ao Vipassana,
por assegurarem minha saúde.
“Mas você - eu não posso e nem quero explicar, eu agradeço.” Clarice Lispector
“O trajeto é a minha obra.” Paulo Bruscky
(1978)
“O papel do artista não é criar uma obra, mas criar a criação.” Nicolas Schoffer
(1969)
RESUMO
DAY, Giseli. O texto visual: processos de criação e fabulação nos desenhos infantis. 2019. 256 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Literatura, Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.
A pesquisa é um estudo de fronteira entre Educação Infantil e Literatura que trata o desenho infantil pelas vias da filosofia da diferença de Deleuze e Nietszche e analisa o processo de criação e fabulação infantis. Entende o desenho como um texto visual capaz de gerar ficção e fabulação, linha de desterritorialização que se direciona para a vida e tem no desenvolvimento do próprio processo de desenhar sua potência geradora. Desenhar fabulações por meio das ficções do real seria a produção das diferenças no ato de narrar a própria vida enquanto potência. Pautado em Barthes, toma o texto como campo metodológico e os rastros, conceitos e imagens como dados para compor a análise. A tese questiona o processo de autoria e transgressão na produção dos desenhos e indica a importância dos afetos para o processo de criação, destacando o papel do professor frente aos processos de criação dos infantis. Conceitos como os de representação, simulacro, texto, tempos, arte, imagens e infância são retomados para compor a malha de sentidos que estrutura a pesquisa que encontra na possibilidade de responder questões estéticas no desenho um caminho para potencializar o papel fabulador do ato de desenhar.
Palavras-chave: Desenho infantil. Fabulação. Processo criativo.
ABSTRACT
DAY, Giseli. The visual text: creation processes and fabulation in children’s drawings. 2019. 256 f. Thesis (Doctorate in Literature) – Programa de Pós-Graduação em Literatura, Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.
The research is a frontier study between Earlier Childhood Education and Literature that treats children's drawing through the philosophy of difference of Deleuze and Nietszche and analyzes the process of child's creation and children's fable. It understands drawing as a visual text capable of generate fiction and fabulation, line of deterritorialization that is directed towards life and has in the development of the process itself of design its generating power. To draw fabulation by means of the fictions of the real would be the production of differences in the act of narrating one's life as a power. Guided in Barthes, it takes the text as a methodological field and it's traces, concepts and images as data to compose analysis. The thesis questions the process of authorship and transgression in the production of the drawings and indicates the importance of the affections for the creation process, highlighting the role of the teacher in the processes of creation of the children. Concepts such as representation, simulacrum, text, times, art, images and childhood are revisited to compose the mesh of meanings that structure the research that finds in the possibility of answering aesthetic questions in drawing a way to enhance the drawing act. Keywords: Children's drawing. Fabulation. Creative process.
Lista de Figuras
Figura 1 -René Magritte. "O Império das Luzes". Óleo sobre tela - 146x114cm 1954.
Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelas .................................................. 14
Figura 2- Sala de Jantar de Magritte. Imagem arquivada pela autora em 2016 ............ 16
Figura 3 - Les Promenades d’Euclide, 1955. (O passeio de Euclides). René Magritte
(Belgica, 1898 – 1867). Óleo sobre tela, 162x129. The Minneapolis Institute of Art .... 19
Figura 4 - Desenho infantil e intensidade do traço. Arquivo pessoal, 2014. ................. 21
Figura 5- Desenho infantil, linguagem e expressividade. Acervo pessoal, 2012. .......... 23
Figura 6 - Desenho infantil: Livre? Expressão? Acervo pessoal, 2018. .......................... 25
Figura 7- Desenho não figurativo: texto e caos. Arquivo pessoal, 2013 ........................ 30
Figura 8 – O corpo em massa. Claudia Rogge, 2006. Arquivado a partir do endereço:
https://ctrlbarbara.wordpress.com/tag/corpo/ ............................................................ 33
Figura 9- Claudia Rogge, 2006 arquivado a partir do endereço:
https://ctrlbarbara.wordpress.com/tag/corpo/ ............................................................ 33
Figura 10 Processo de Feltragem com Agulha -
https://br.pinterest.com/pin/437975132497250242 .................................................... 45
Figura 11 - Andy Warhol e Jean-Michel Basquiat, Untitled (Dois Cães), assinados por
ambos os artistas no verso, tinta acrílica e silkscreen na tela, 80 por 106 polegadas 203.2
por 269.2 cm. Executado em 1984. Est. US $ 600 / 800.000 ......................................... 47
Figura 12- Relação entre os desenhos infantis semelhantes e os azulejos que
reproduzem imagens em série – arquivado a partir do endereço:
https://pentagonoblog.wordpress.com/tag/semana-do-folclore/ ............................... 49
Figura 13 - O outro que me constitui. Fonte: https://www.ijep.com.br/ ...................... 54
Figura 14 - Processo de criação e diferenciação de si. Fonte:
https://paulorogeriodamotta.com.br/ ........................................................................... 57
Figura 15 - Salvador Dali (1937). in Tate Modern de Londres. Óleo sobre tela. ............ 60
Figura 16 - JOAN MIRÓ (1922) La Granja. Oléo sobre tela (123,8 X 141, 30). National
Gallery of Art, Washington ............................................................................................. 64
Figura 17 - Marcel Duchamp (1917). A fonte, Milão, Coleção meu ip de Arturo Schwartz
........................................................................................................................................ 67
Figura 18 - WASSILY KANDINSKY(1911). Impression III. Óleo sobre tela (77,5 X 100,0 CM).
MUNIQUE, THE STADTISCHE GALERIA IM LENBACHHAUS ............................................. 72
figura 19 - Joan Miró. O voo da libélula em frente ao sol (1968). oleo sobre tela (173, 9 x
243,8 cm). coleção pessoal paul mellon ......................................................................... 73
Figura 20 - Dom quixote. Pablo Picasso (1955) .............................................................. 73
Figura 21 – O desenhar infantil usando tinta. Acervo pessoal, 2013 ............................ 74
Figura 22 - Vertical Churches, Richard Silver. Fonte: https://zupi.com.br/fotografias-
panoramicas-de-igrejas-por-richard-silver/ ................................................................... 78
Figura 23- Joana Corona (2013) Biblioteca de resquícios. Fonte:
https://joanacorona.wordpress.com/ ............................................................................ 92
Figura 24- Rastros luminosos. Fonte:
https://college.canon.com.br/tutoriais/fotografando-rastros-luminosos-55 ............... 93
Figura 25- Ballet Giselle. Fonte:
http://www.mundobailarinistico.com.br/2013/11/giselle.html ................................. 100
Figura 26 – O ângulo compõe a imagem. Acervo sem identificação. .......................... 103
Figura 27- Imagens retiradas do filme Um cão andaluz (1928), de Dali e Bunuel. Fonte:
http://www.adorocinema.com/................................................................................... 108
Figura 28- Desenho e palavra. Desenho infantil. Acervo pessoal, 2017. ..................... 110
Figura 29Arthur Bispo do Rosário e Obra. Foto: Divulgação/Festival Internacional de
Artes de Tiradentes ...................................................................................................... 127
Figura 30 - Um homem com uma câmera (Documentário). Vertov, 1929. Fonte:
https://comunicacaoeartes20122.wordpress.com/2013/02/19/dziga-vertov/. Fonte do
filme: https://www.youtube.com/watch?v=QZoddf7_GmQ ....................................... 131
Figura 31- impressão de mãos feitas por caçadores-coletores há 9mil anos na "Cova das
mãos", Argentina. Fonte:Sapiens: uma breve história da humanidade. (Yuval Noah
Harari) ........................................................................................................................... 136
Figura 32 – Ecce Homo, de Elias Garcia Martines antes e após restauração feita por
Cecilia Gimenez. ........................................................................................................... 140
Figura 33 – Gustavo Von Ha. Não-Pintura 28 TA, 2016. Óleo sobre tela. 16 x 22 cm . 142
Figura 34 - Processo de apropriação de esquema visual para produção de imagem. . 145
Figura 35 - Jackson Pollock, One (Number 31), 1950 Óleo e esmalte sobre tela não
revestida, 269,5 x 530,8 cm. ......................................................................................... 149
Figura 36 – Jackson Pollock, 1950. Fonte:
https://www.recantodasletras.com.br/poesiassurrealistas/1409831 ........................ 150
Figura 37 - Desenho sobre Gelo - acervo pessoal, 2017 .............................................. 152
Figura 38 - Girafas bebendo água - Revista Pátio Educação Infantil, ago/nov de 2004
...................................................................................................................................... 170
Figura 39 - Girafa bebendo água após mediações – revista Pátio Educação Infantil,
ago/nov de 2004 ........................................................................................................... 171
Figura 40 - Primeiro uso de rolinho para espalhar cola. Acervo pessoal, 2008. .......... 172
Figura 41 - Desenho, figura e fundo. Acervo pessoal, 2017 ......................................... 173
Figura 42 - Follow the colours - Os Gêmeos - Documentário Cidade Cinza ................. 182
Figura 43 - JP II - 2015, Gustavo Von Ha, tinta automotiva sobre lona, cercada de cobre
esmaltado e bando de ferro ......................................................................................... 193
Figura 44 - Descubra ideias sobre Chuva De Benção -
https://br.pinterest.com/pin/641763015624305047/ ................................................ 196
Figura 45 - https://www.soscuriosidades.com/wp-content/uploads/2017/09/nuvens-
cumulonimbus.jpg ........................................................................................................ 196
Figura 46 - Tipos de Nuvens. Fonte: Figura 46 - tipos de nuvens. Fonte:
https://www.soscuriosidades.com/nuvens-tipos-caracteristicas-curiosidades .......... 196
Figura 47 - Pierro Lunaire, Paul Klee (1924) ................................................................. 205
Sumário
Lista de Figuras ............................................................................................................................ 10
Sumário ....................................................................................................................................... 13
Introdução ................................................................................................................................... 14
PARTE 1 – PLANOS, PROJÉTEIS .................................................................................................... 37
1 - A escrita da tese como uma experiência de criação .............................................................. 38
2 - A filosofia da diferença, meu lugar de fala ............................................................................ 41
3- Autoria e representação nos desenhos infantis ..................................................................... 47
4 - Sujeito e individuação ............................................................................................................ 53
5 - O processo de individuação ................................................................................................... 57
6- Cultura, cultivo e arte .............................................................................................................. 62
7 - Método da Pesquisa ............................................................................................................... 78
8 - O trato com o objeto .............................................................................................................. 82
INTERMEZZO ............................................................................................................................... 85
PARTE 2 – TRATATIVAS ................................................................................................................ 90
1 - Rastros .................................................................................................................................... 91
2 - Rastros e Afetos ..................................................................................................................... 97
3 – Vestígios de pesquisa .......................................................................................................... 102
4 - Infância ............................................................................................................................ 111
5 - Imagem................................................................................................................................. 119
6 - O contemporâneo ................................................................................................................ 127
7 – O desenho dos infantis ........................................................................................................ 133
8 – Representação e Simulacro ................................................................................................. 139
9 – Gesto ................................................................................................................................... 148
10 - Texto visual e desenhações infantis ................................................................................... 156
11 – Desenho infantil e problemas estéticos ............................................................................ 168
12 - Professor, transgressão & autoria ...................................................................................... 174
13 – Processo criativo ............................................................................................................... 185
TEXTO, TECIDO SEM FIM ........................................................................................................... 199
Referências ................................................................................................................................ 206
Introdução
Figura 1 -René Magritte. "O Império das Luzes". Óleo sobre tela - 146x114cm 1954. Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelas
Como iniciar uma produção textual por uma imagem? Como torná-la texto,
ouvir o que ela nos diz? Do mesmo modo, como iniciar um texto? Como convidar
o leitor a nos acompanhar numa leitura? Embora tenhamos diversas regras e
receitas capazes de guiar e normatizar os modos de produzir um texto, pergunto
com Barthes: por onde começar?
O início dessa escritura, resultado de um movimento formativo profundo
como é considerado um doutoramento, talvez seja aquele que envolve o leitor,
não exatamente em sua temática e tema, em seu objeto e dados, mas em suas
ambiências e sutilezas, em seus sabores e suores, nas sensações que o cenário
disponibiliza antes que se tenha acesso ao enredo. Foi mobilizada pela questão
de situar o leitor neste nevoeiro que envolve, gela e nubla a paisagem de
escrever uma tese que decidi iniciá-la pelo quadro intitulado “O império das
luzes”, de Magritte.
Nesse sentido, recorro a Barthes que reivindica com a proposta de "saber
com sabor" o prazer do texto. O olhar do Barthes-escritor que renuncia as leituras
sistemáticas, leais às verdades linguísticas, históricas ou sociológicas, e busca
em sua própria produção, um texto desejado e desejante, um texto com gosto,
com o gozo sensual dos signos, toca-me. Toca porque a dor fez parte do meu
processo de escrita, a dura sensação de externalizar e transformar em texto
aquilo que pretendo dizer, que estava tão bem acomodado no interno, sem
classe ou acordos, e que agora precisa ser socializado, expressado e codificado
numa aliança entre esses domínios. Um dentro e fora que sutura limites na
mesma medida em que os rasga.
Embora minha escrita distancie-se largamente daquela dos escritores,
poetas e artistas, talvez ela se aproxime, ainda que timidamente, da dos
sonhadores. Daqueles que são considerados “sujeitos comuns”, com sua “vida
acadêmica também comum”, mas que, de algum modo, procuram sensibilizar(-
se) para a presença de uma subversão do real. Criadora, uma delicada ousadia
que a faz descaber nas normatizações e ampliar potências e universos.
Barthes me instiga a dar sabor à escrita acadêmica, e também a ver com
prazer aquilo que está para além do esperado: o mistério, o imprevisto, o
improviso. Pensar a vida não pela verdade, mas pela experiência do viver. Talvez
esse seja o motivo que tenha me aproximado de artistas como Magritte e seu
quadro que abre essa sessão textual. A proposta do artista é sutil e delicada,
mas, na mesma medida, afrontosa. Encontra em Barthes a escritura como
instigadora da pulsão da curiosidade, e é assim que compreendo a imagem, pois
a considero “o império das luzes” um texto visual, capaz de disponibilizar uma
narrativa pulsante. Uma narrativa própria que não precisa ser descrita ou
traduzida para outra linguagem ao se buscar uma compreensão sobre ela, pois
ela, por si só, diz.
Penso que muito já foi dito sobre as imagens, seus comos e porquês estão
disponibilizados por toda a parte. Convido a senti-las, então. Sentir, aqui, como
um verbo intransitivo, que envolve a capacidade de percepção, consciência,
sensibilização dos sentidos. Sentir a imagem perpassa pela fruição, contudo não
se limita a ela, pois não se resume a contemplar e sorver, tendo em vista que
pressupõe as inferências, as experiências, a subjetividade, a possibilidade de
individuação de cada sujeito que a acessa.
Quando se trata de imagem, literatura e demais linguagens artísticas, as
inferências, muitas vezes, resumem-se a contextualizar o que é visto. Citam-se,
(algumas vezes com certa ostentação intelectual) autores, épocas, situações
sócio-históricas. Descreve-se o plano visual como quem mata uma charada, no
entanto, concordo com Magritte: “desfazer o mistério da imagem produzida por
um artista utilizando-se de descrições ou interpretações é matar não bem a
charada, mas a própria imagem”. Para o artista a pintura deve ser poesia e a
poesia, diria Heidegger, faz apelo ao mistério. Mistério, essência da verdade.
Mistério que sugere experienciar a leitura do texto visual e não apenas de seu
contexto. Embora os elementos que circunstanciam uma imagem sejam
importantes para sua compreensão como fenômeno e objeto, nem sempre dão
conta de estabelecer um diálogo que aponte para as conexões com o mundo, o
real, os olhares, a rede de forças da qual faz parte, a intensidade como toca o
expectador, a relação que o expectador produz, que o artista desejou.
Magritte, “sujeito comum” incomum. Ambíguo até em sua personalidade:
vanguardista e popular. Um dos maiores nomes do surrealismo sem considerar-
se surrealista. Os quadros altamente subversivos para a época foram criados
por um morador de um bairro residencial de classe média que produzia suas
obras em sua pequena sala de jantar.
Pintava objetos do cotidiano, a
maioria disponibilizada em seu próprio
entorno: pente, chapéu, pão, maçã. O que
diferenciava suas produções? Não era
apenas a técnica ou a perspectiva com a
qual os olhava, mas o modo como traduzia
em imagens um real ficcionalizado. “Quero
mudar como vemos as coisas comuns a
nossa volta” dizia. Suas obras nos desafiam
porque não são condicionadas à realidade,
elas a criam.
O movimento estético, artístico e
literário da década de 20 nomeado
surrealismo foi influenciado por teorias psicanalíticas freudianas que enfatizavam
o inconsciente no processo criativo e tinham como objetivo, se podemos assim
afirmar, a desconstrução do pensamento racional, operacional, cartesiano,
lógico. O artista, entretanto, não se considerava encaixado nessa escola porque
Figura 2- Sala de Jantar de Magritte. Imagem arquivada pela autora em 2016
não tomava o inconsciente como chave interpretativa: “eu odeio quando meus
quadros são interpretados em termos do inconsciente ou em termos freudianos”.
Não simpatizava com a psicologia porque, em sua opinião, ela tentava explicar
o mistério, mas assim fazendo, destruía-o. Para o pintor, “o único mistério é o
mundo”.
Sinto que muitas formas de ver e entender o desenho infantil destroem
não apenas seu mistério como objeto produzido por um estrangeiro, um infantil,
mas, principalmente, destroem porque produzem recortes de compreensão que
não permitem tomadas por outros ângulos. Desenhar é desenvolver-se
graficamente. Ponto. Perdem-se estéticas, olhares, entre-lugares. Retira-se a
possibilidade de restaurar os poderes da imaginação por meio do processo
criativo de visualidades. Talvez por isso haja aproximação entre minha
perspectiva de compreender o desenho infantil e as propostas magrittianas que
buscavam romper com a lógica, ir para além do que a psicologia disponibilizava
como conhecimento consolidado e utilizar-se do cotidiano para renovar as
possibilidades de compreensão e criação do real, com suas potências
linguísticas e imaginativas. Acessar a magia presente no real, o mistério. Ver,
desver, rever, criar. Superar a contradição entre sujeito e objeto, principalmente
quando tratamos de uma pesquisa acadêmica é, de certo modo, subversivo e
extra-ordinário. Talvez seja preciso repensar as explicações, representações e
interpretações sobre o mundo. Outros modos de produzir teoria, fazer pesquisa.
Deleuze nos indicou possibilidades importantes nesse sentido; Magritte também.
“O Império das luzes” é um exemplo da sua obra, insólita, que me toca: à
primeira vista o quadro parece simples, talvez até simplista. Assim como o autor,
que poderia passar despercebido se considerarmos sua vida dentro de um
padrão cotidiano esperado. Havia no entanto, o que ser dito, padrões a serem
quebrados, vida para além da norma, para além do realismo artístico. O que
busco no meio acadêmico é isto: vida. Não suas explicações, mas sua presença.
Fica fácil apaixonar-se por Deleuze, Nietzsche, Barthes. Autores da vida.
Quanto ao quadro, como acessá-lo? Primeiro, vendo-o. O que precisa ser
visto? Como devemos ver? Magritte, assim como muitos outros artistas,
responderia: “Como uma criança”. E o que há de tão maravilhoso no olhar
infantil? O que há nesse modo de ser humano que seduz os artistas e autores
envolvidos em processos criativos? Não posso explicar, para não matar a
charada e, com ela, o que encanta nesta reflexão. Posso, todavia, disponibilizar
uma imagem que permite passear com meu olhar por uma possibilidade de
resposta. Trago a imagem, descrita por Magritte, para ser imaginada: aquela em
que o olhar infantil se ilumina na “primeira vez que encontra uma realidade fora
de si mesma. Eu tenho o mesmo estado de inocência que uma criança que acha
que, do berço, consegue pegar um pássaro no céu”. Ah, os artistas! Ah, os
poetas! Mostram-nos a realidade com tanta presença que nos tocam, como
fazem as experiências.
Magritte questionava a diferença entre o real e sua representação, o usual
e um novo significado para os objetos familiares, mas não se considerava
surrealista porque, em sua opinião, pintava um “realismo mágico”. Um realismo
mágico é o que encontro quando me preencho de vida, quando descubro ou crio
o prazer no texto. Ter acesso ao dia e à noite na mesma imagem está, não no
plano do possível, mas no plano do real, mágico, misterioso, e muitas vezes
morto pelo método e conteúdos a serem ensinados, pela verdade acadêmica.
Magritte jogava com suas imagens para traduzir a ideia de que a
linguagem não é confiável, mas escorregadia, traidora, fugidia. Não é possível
confiar no que se vê, nem no que se lê. “C´est non a pipe”. Sem qualquer
arrogância teórica, sua arte indaga a tal “lógica da representação”. O
questionamento linguístico, talvez amparado pelo seu interesse por filosofia,
coaduna a ideia de que “a poesia existe na medida em que há meditação sobre
a linguagem e, a cada passo, reinvenção desta linguagem” (D’ELSA, 1942, p. 14
apud ARBEX, 2007, p. 147).
Murilo Mendes (1980, p. 147-148) nos fala sobre a obra de Magritte:
Figura 3 - Les Promenades d’Euclide, 1955. (O passeio de Euclides). René Magritte (Belgica, 1898 – 1867). Óleo sobre tela, 162x129. The Minneapolis Institute of Art
Tomemos “Les promenades d’Euclide“, uma das telas fundamentais de Magritte, versão aperfeiçoada de uma outra anterior, “La condition humaine“. A cortina pesada alude a um cenário onde algo vai ser “representado”. São estas as dramatis personae: em primeiro plano além da cortina o cavalete e a larga vidraça. O cavalete é posto em grande destaque no conjunto: sujeito e protagonista em função do qual o ambiente — inclusive a paisagem — subsiste; um dos objetos-símbolos capitais do ofício de Magritte pictor. Este o secciona para sobrepor à tela original uma segunda, ao mesmo tempo libertada dele e integrada na parte inferior da vidraça, que corresponde à janela dividindo o espaço nos quadros dos antigos pintores flamengos. Em segundo plano a torre, o arvoredo, o casario, duas minúsculas figuras isolando-se numa avenida deserta; e a linha do horizonte demarcada com rigor. Domina a tela um céu nuvioso. Todos esses elementos reunidos em absoluta consciência criam uma profundidade especial a que o espírito adere: texto de poesia ótica, não-literária. O seccionamento de duas partes do cavalete, a rarefação da segunda tela, a infinitude da perspectiva da alameda, que poderia remontar a Van Eyck ou Memling; a sobriedade da linguagem cromática em suas dominantes marrom, verde, branco e cinza, a justeza do desenho paciente, tudo isso forma uma atmosfera poética onde a mais alta fantasia se submete à planificação. O astro subterrâneo levanta-se, e, para maior segurança do seu itinerário, assume a ordem, a régua
e o compasso, determinando relações de surpresa num contexto lógico de objetos familiares. Ajunte-se a isto, também de acordo com a linha dos antigos flamengos, a notação do silêncio, do respiro, da pausa funcionando como dramatis personae.
O modo com que lidava com palavra e imagem (sem relacioná-las
diretamente) indica uma associação não hierárquica ou resumida a traduzir uma
linguagem para outra. Pensando a partir de Barthes, o significado da imagem
produzida estaria mais próximo da representação psicológica de uma coisa e
não da coisa em si. O artista afirmava que não pintava a mesa, ou a
representação de uma mesa, por exemplo, mas sim a sensação que ela lhe
causava. O tratamento realista que disponibilizava às imagens permitia o uso de
processos de ilusão que contrastavam a representação realista e a atmosfera
irreal contida nos conjuntos produzidos, como vemos no quadro apresentado por
Murilo Mendes. Suas obras são consideradas metáforas apresentadas como
representações realistas através da justaposição de objetos comuns, porém de
um modo impossível de ser encontrado na vida real, como o dia e a noite
presentes concomitantemente em “O Império das Luzes”. Criar a própria
realidade por meio de suas pinturas, ao invés de copiá-la, nos interessa na
medida em que entendemos a arte como resistência simbólica.
Nesse sentido, utilizar uma imagem como texto perpassa a ideia de não
hierarquizá-la frente à palavra. O intuito não é o de utilizar-se de outra linguagem
para expressar o mesmo pensamento, mas acessar a ideia disponibilizada pela
imagem, lendo-a, produzindo inferências, sem retirar-lhe totalmente o mistério.
Assim, não pretendo descrever as imagens apresentadas nesse texto nem
ilustrar o que está escrito e sim beber nas fontes imagéticas para que tenhamos
nossos olhares hidratados por uma maneira não habitual (porém real) de acessar
o mundo. Incomum, no sentido de se opor às normas, às regras, à tradição, não
no sentido de negá-las, mas de buscar outros caminhos de acesso para o
conhecimento e para a vida.
Para pensar as imagens, envolvo-me com os desenhos produzidos
por infantis, por crianças muitas vezes sem fala, por imagens muitas vezes
sem figuração.
Figura 4 - Desenho infantil e intensidade do traço. Arquivo pessoal, 2014.
O desenho infantil produzido em instituições educativas por crianças
pequenas e bem pequenas tem se mostrado como uma proposta recorrente no
processo educativo institucionalizado1 das infâncias. Em muitos
estabelecimentos voltados para a educação infantil, o desenho converte-se em
uma prática pedagógica diária, torna-se central e, até mesmo, obrigatório, no
dia-a-dia dos pequenos. Considerado pelas professoras e demais adultos2 como
um documento capaz de dar visualidade ao processo educativo dos infantis, com
certa constância, mede-se – mesmo que veladamente – o desempenho de
professoras e crianças pelos registros desenhados. Ele desponta quando o
conhecimento historicamente acumulado e disponibilizado para os infantis3
1 Sem ignorar o movimento de desescolarização que tem tomado corpo nos últimos anos, esta tese pretende ter o objeto nas ações pedagógicas que acontecem no interior das instituições educativas que visam a educação coletiva das crianças de 0 a 5 anos. 2 Neste trabalho o termo “adulto” refere-se aos adultos que estão relacionados (in)diretamente à ação educativa da professora, como os responsáveis pela direção e coordenação, demais professoras do estabelecimento de ensino, familiares das crianças que compõe o grupo de regência. O termo “professora” refere-se ao adulto com formação específica para produzir o ato educativo nas instituições para a infância. 3 Tratar as crianças como infantis indica uma compreensão de criança não em si mesma, sem, no entanto, ser descolada de si. Conceituar a criança, mesmo a que está inserida num contexto institucional de educação ou família, como aluno ou filho por exemplo (criança-função/função-criança), enfatiza sua relação com o outro (o professor, os familiares) e lhe torna dependente deste para a compreensão adequada, ou seja, o foco fica dentre os sujeitos, não nos próprios sujeitos. Quando trato apenas como “criança”, posso correr o risco de tomá-la abstratamente e compreendê-la fora de um coletivo temporal, espacial e corporal que contribui para constituir. Por isso, pensar a criança como infantil, coloca esses seres humanos recém-chegados numa perspectiva de inserção que sugere aproximações universais e singulares com seus pares.
precisa ser de algum modo, mensurado, visto que documenta tanto a ação
pedagógica quanto aquilo que a criança alcançou do conteúdo disponibilizado
pela professora. O desenho serve também para isso, mas seria esse o alvo a
ser atingido quando se desenha na infância? Que processos criativos poderiam
se apresentar aí? Que força ativa e intensidade de vida estaria ali disponível para
ser acessado pelos adultos? Que mistério estamos deixando de vislumbrar?
Desenhar tornou-se uma ação deveras naturalizada pela sociedade
ocidental. Parece factual (e natural) que toda criança desenhe. E que o faça nas
instituições educativas. Se toda criança “naturalmente” desenha, porque ensinar
desenho na Educação Infantil? O que precisa ser ensinado/aprendido? Em
última análise, o desenho como lócus expressivo pode ser ensinado? Essas e
tantas outras perguntas poderiam ser realizadas a fim de corroborar na
discussão acerca da importância do desenho na educação infantil e da
necessidade de a professora aprender a ler o texto visual desenhado por
crianças. Além disso, trazem à tona outras questões: que máquina de leitura a-
significante instala-se aí? O que nos força a pensar esse corpo/corpus caótico?
Que relação do desenho dos infantis com a ficção e com a literatura é possível
estabelecermos? Qual forma de narratividade está aquém e além da experiência
do in-fans? Pensa-se a problemática a partir não mais de um olhar que procura
evidenciar o que a criança ainda não faz, ou tece comparativos indicando o que
deve ser considerado uma criança “normal”, e sim a partir das múltiplas
possibilidades humanas.
A educação infantil, oficializada há mais de 20 anos pela Lei de Diretrizes
e Bases da Educação (LDB) como a primeira etapa da educação básica4, tem
sido um dos objetos de estudo da Pedagogia da Infância, área que tem se
consolidado como um campo de conhecimento voltado para o saber sobre, para
e com as crianças, infâncias e suas conjunturas. Alguns termos utilizados nesse
campo, embora muito discutidos, ainda se encontram num terreno de disputa na
educação da infância: ensino/educação, criança/aluno, escola/instituição
educativa. Até os dias atuais afirmativas feitas há quase 20 anos, como as de
Rocha (1999, p. 61-62), incitam reflexão sobre as delimitações desse campo:
4 O documento define como objetivo da educação infantil “o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, 1996).
enquanto a escola se coloca como espaço privilegiado para o domínio dos conhecimentos básicos, as instituições de Educação Infantil se põem, sobretudo com fins de complementariedade à educação da família. Portanto, enquanto a escola tem como sujeito o aluno, e como objeto fundamental o ensino nas diferentes áreas, através da aula; a creche e a pré-escola tem como objeto as relações educativas travadas num espaço de convívio que tem como sujeito a criança de 0 a 6 anos de idade [grifos da autora].
Cada concepção e modo de definir/nomear o conhecimento produzido
sobre a infância e sua educação traz em si e consigo um meio de compreender
e lidar com a expressividade e o desenho infantil. Principalmente nos últimos 30
anos, após a nova constituição brasileira ser promulgada – e com ela, a
educação convertida em direito isonômico – a liberdade de expressão e a
democracia passaram a ser evidenciadas, tanto nos documentos oficiais quanto
em projetos educativos. É possível perceber uma ampliação significativa nas
pesquisas sobre a infância a partir desse período bem como o interesse pelas
expressões singulares das crianças. Os modos de expressividade infantil
passam a assumir o papel de objeto de pesquisa em várias universidades
brasileiras e diferentes linhas teóricas.
Figura 5- Desenho infantil, linguagem e expressividade. Acervo pessoal, 2012.
Os estudos pedagógicos contemporâneos sobre a infância e suas
instituições educativas passam, então, a realçar o desenho como campo
expressivo na medida em que se intensificam também os estudos sobre Reggio
Emilia e as múltiplas linguagens infantis (EDWARDS; GANDINI; FORMAN,
1999)5. Até então, a maior parte do conhecimento adquirido acerca do desenho
advinha da psicologia tradicional e, em menor medida, embora semelhante
importância, dos estudos da arte.
A Escola Nova foi um movimento que influenciou teóricos da educação e
da infância que buscavam alternativas para superar o ensino de desenho
tradicional. O escolanovismo de Rui Barbosa, Dewey, Mario de Andrade, Cizek,
inaugura um modo de olhar: pelo viés da expressividade. O novo ângulo de
compreensão sobre o desenho infantil retirava o foco da técnica fria que educava
apenas o traço, no ensino tradicional, e passava a dar ênfase à expressão:
Ela [a criança] não pode ser submetida a um rígido curso de educação técnica externo. Fiquem os adultos para um lado e não imponham a nenhuma criança suas ideias e métodos exclusivos para marmanjos. À criança deve ser deixada a possibilidade de escolher o material com que exprimir-se. A experiência com o material escolhido deve ser levada até o amadurecimento de acordo com o ritmo próprio de seu desenvolvimento. Nada de acelerar esse processo artificialmente, ou alterá-lo para satisfazer os adultos. E nunca, insistia Cizek, se louvem a destreza, a perícia, em detrimento ou à custa de ideias criadoras. (PEDROSA apud CAMPELLO, 2001, p. 34)
5 Afora os modismos que vieram com tal ênfase, uma das maiores contribuições para
educação infantil, talvez tenha sido a possibilidade de ouvir as crianças no sentido de auscultá-las. Desta forma, abre-se a possibilidade de considerar este outro do homem – o infantil e sua infância – pela sua amplitude expressiva seja pela linguagem oral, gestual ou visual.
Figura 6 - Desenho infantil: Livre? Expressão? Acervo pessoal, 2018.
A ênfase à livre expressão infantil trouxe um espectro de possibilidades
para o trabalho de criação em desenho com os infantis, uma quebra importante
e fundamental para que as crianças pudessem ser valorizadas ainda na infância
(e não em seu vir-a-ser adulto). Em contrapartida, essa nova ordem passou a
influenciar profissionais a compreender que tudo deveria partir (e tão somente)
da criança. O mistério presente na produção visual infantil passou a ter uma
conotação quase mística. A livre expressão tornou-se, na prática pedagógica,
um conceito não só esvaziado, mas distorcido: se a criança tem tudo dentro de
si e precisa apenas de liberdade para externalizar seu eu por meio de um ethos
expressivo, então, o papel do professor seria, apenas, deixar que ela o faça.
Nesse sentido, posturas pedagógicas passaram a limitar recursos
externos: era importante evitar influências advindas de outros âmbitos para que
não “maculassem” a expressão do seu interno. “Cada um olha pra sua folha, não
é pra copiar do amiguinho”, ainda que a cópia pudesse ser ressignificada sob
novo arranjo, modelos, exemplos, sugestões, disponibilizada como uma base
para o processo criativo, as possibilidades a partir da cópia foram destituídas das
mediações possíveis durante o ato desenhativo (ação específica que faz com
que o gesto produza o traço e por meio desse processo utilize de suas
referências individuantes) dos infantis, pois - acreditava-se - retirava da criança
sua “castidade criativa”.
A psicologia do desenvolvimento tradicional também influenciou as
práticas pedagógicas sobre o desenho dos infantis. A consequência para a
pedagogia, ao apropriar-se de tais estudos, foi a tendência ao enquadramento
infantil em fases do desenvolvimento de um lado e, de outro, acreditar que
desenhar é expressar o que há no interior, como se tudo estivesse dentro da
criança, uma criação latente que deve ser externalizada. Dessa primeira
tendência vê-se, ainda hoje, profissionais da educação infantil que concebem o
desenho da criança sob um olhar desenvolvimentista padrão. Olhar este que
rotula as crianças de acordo com uma expectativa de desempenho também
padrão, inclusive em relação à fase ou etapa em que seu grafismo é
“enquadrado”.
Os desenhos também são utilizados como um instrumento ou ainda
recurso para se ensinar um conteúdo, assim como ocorre com as demais
linguagens artísticas na educação. Embora as professoras não tenham formação
para tal, os desenhos aparecem também atrelados a diagnósticos e
representações fidedignas do que as crianças pensam, sentem ou dão conta
cognitivamente. Muitas vezes a preocupação em identificar etapas gráficas no
desenho infantil faz com que as professoras deixem de promover ações
pedagógicas que aprofundariam os processos criativos em uma determinada
etapa gráfica para acelerar o processo de aquisição de nova etapa e,
“finalmente”, desenvolver o grafismo para aquisição da escrita. As crianças
desenham todos os dias, mas desenhar não tem importância a não ser como
caminho para alcançar um outro lugar cognitivo.
Não discuto aqui a possibilidade de conhecermos por meio do desenho
um pouco do seu desenhista ou os caminhos percorridos por seu grafismo, suas
características cognitivas, mas interrogo professoras que tecem
avaliações/diagnósticos das crianças-desenhistas por meio dos seus desenhos
sem que tenham uma formação específica que assessore suas conclusões. As
produções pictóricas das crianças apresentam-se para esses como uma
ferramenta de observação com caráter mais terapêutico que pedagógico,
embora exercidos por profissionais sem formação ou habilitação desse gênero.
Nesse sentido, o questionamento a que me refiro não se relaciona à legitimidade
dos estudos psicológicos acerca do desenvolvimento do desenho infantil, ou
mesmo a utilização dos desenhos como uma ferramenta para compreender o
processo de desenvolvimento dos infantis; mas à forma a qual a Pedagogia
passou a se apropriar de tais conhecimentos ao longo de sua história, tendo
como núcleo de suas ações a intenção psicológica em detrimento da
pedagógica.
A Pedagogia há mais de três séculos tem sido considerada a ciência que
objetiva criar e viabilizar conjuntos (ou agremiações?) de princípios e métodos
educativos. Em seu processo de inventar-se, cada vez mais tem bebido em
outras fontes para determinar objetos e objetivos, interesses e intenções,
potências e limites, relacionados à Educação. Mas, como todo estudo que
relaciona diferentes áreas, é preciso voltar à área de origem para estabelecer as
relações. Esta tese é um desses estudos de fronteira que visam, para além de
trazer vigor à consolidação do campo de conhecimento sobre a infância e seu
universo expressivo dentro da Pedagogia, destacar as potências existentes nos
próprios estudos de fronteira, bem como ampliar o conhecimento sobre os
processos de criação e ficção realizados por crianças pequenas e bem
pequenas, via desenho, nas instituições educativas, inspirando-se nas fontes da
teoria literária.
Dada a complexidade das relações pedagógicas que constituem a
educação da infância institucionalizada, percebe-se a necessidade de um saber
que vá para além de áreas fixas e disciplinas estanques. Antes de definir esta
pesquisa como inter ou multidisciplinar, faz-se interessante compreender que,
aqui, os estudos que envolvem diferentes áreas de conhecimento aproximam-se
mais de um ecossistema que, de fato, de uma associação de disciplinas
fechadas em si mesmas em prol de determinado objetivo. Nesse sentido,
perceber um conjunto de características carregadas de energia potencial que
interagem ou se relacionam (sejam elas biológicas, psicológicas, sociais,
históricas, imanentes) influencia a existência de uma espécie ou indivíduo de
modo que essa relação se apresente como um sistema metaestável, aproxima-
se mais do modo como esta tese foi balizada e interposta no diálogo entre áreas.
Por conseguinte, ainda que a psicologia do desenvolvimento seja cardinal
para compreender alguns processos educativos - e dentre eles o processo de
aquisição do grafismo que possibilita a produção de traçados imagéticos - limitar-
se especificamente a um arranjo de conhecimento exclusivo para justificar as
ações pedagógicas relacionadas ao desenhar infantil seria diminuir as potências
e compreensões acerca dos processos de criação que se dão na infância. O
desenho infantil precisa ser necessariamente compreendido pelas vias da
psicologia do desenvolvimento? O que há para ser dito sobre o desenho que não
se resuma ou se limite às suas fases de desenvolvimento gráfico ou pré-requisito
para a aquisição da escrita? A tensão não está em negar tal área ou ficar de fora
desta tradição pois, como afirma Corazza (2009, p. 11-12):
Agora... nós não podemos negar e destruir totalmente essa tradição. Mesmo quando nos opomos a ela, mesmo quando a acusamos por seus efeitos negativos, quando criticamos os seus equívocos, quando dizemos que, dela, nada queremos, nem esperamos, ainda é dela que estamos nos ocupando. Porque este é um jeito – o crítico ou desconstrutor – de também ser filiado àquela tradição. E nós, que somos filhos reais, simbólicos, imaginários, de tantos pais, mestres, guias, autores, crenças, sabemos que é assim que esta coisa da
filiação funciona.
Sob essa perspectiva, busquei, então, explorar outras circunferências e
conexões capazes de produzir a dilatação do conhecimento já estabilizado sobre
o desenho das crianças no sentido de oferecer novas miradas sobre os
mecanismos da imaginação traduzidos em traços pelos infantis. Para tanto, optei
por acessar o campo6 da literatura, via teoria da arte, pela potência e abertura
da linguagem literária: das forças do desenho infantil enquanto texto visual
transbordam sua capacidade de oferecer informações (que podem referir-se, por
exemplo, à etapa gráfica, disponibilidade e variação de materiais utilizados, tipo
de proposta sugerida pela professora, relação entre a imagem produzida e o
conteúdo ministrado etc.) e aufere a condição de espaço (s) caótico disponível
para o processo de criação infantil: o caos7, muitas vezes entendido como
6 Campo no sentido advindo do latim: campu, planície, campina. Tem-se campo como um espaço mais ou menos aplainado, estável e substancial em que se manifestam forças perceptíveis capazes de produzir e cultivar significação. O vocábulo diverge da imagem de campo de conhecimento como uma concepção legítima do saber, em que luta-se pelo conhecimento verdadeiro, um termo de natureza bélica: campo de guerra. 7 Bergson contribui nesse sentido quando indica como caos um arranjo não esperado de uma ordem pré-estabelecida pela inteligência: ao olhar para algo em que não se vê um modo determinado e habitual de arranjar, toma-se como caos. Nietzsche também trata do caos quando indica que ele constitui o fundo da realidade e pode ser considerado como puro
desordem e confusão, aqui é tomado em seu sentido mitológico, o informe e
indefinido vazio primordial, utilizado por Demiurgo para modelar o Universo.
Para Deleuze e Guattari, todo o pensamento é relação com o caos. O pensamento é o resultado de uma operação que se faz ao caos, é a própria composição do caos. Pensar, é dar consistência ao caos. Deleuze e Guattari definem o caos como um virtual que, enquanto velocidade absoluta, é nascimento e esvaziamento de todas as formas possíveis. «Definimos o caos menos pela sua desordem do que pela velocidade infinita com que se dissipa toda a forma que nele se esboça. É um vazio que não é um nada, mas um virtual, contendo todas as partículas possíveis e adquirindo todas as formas possíveis que surgem para de imediato desaparecerem, sem consistência nem referência, sem consequência» O caos não é o nada, mas um virtual na medida em que contém todas as formas possíveis. No entanto, em vez de ser um simples momento de actualização dessas formas, é também o momento da sua dissipação (NAVAIS, 2010, p. 319).
Nesse sentido, o caos não é o nada, mas um virtual na medida em que
contém todas as formas possíveis. Não é uma relação de exclusão e sim de
inclusão. Pensa-se contra o caos, mas também com o caos, uma vez que para
Deleuze, pensar e ser são uma e mesma coisa. Desde o ser vivo à obra de arte,
há uma autoposição do criado. Por isso, recortar o caos, torná-lo consistente, é
conferir-lhe uma realidade própria, uma objetividade e uma autoposição. Ao
partir dessa perspectiva, o desenho infantil tem em si a possibilidade caótica de
ser registro e texto (de onde extraímos informações, tanto do desenho quanto do
contexto em que foi desenhado), mas sem resumir-se em tais características.
encontro de forças. Forças essas que aparentemente nada significam, mas que são os elementos capazes de produzir interpretação sobre aquilo que valoramos.
Figura 7- Desenho não figurativo: texto e caos. Arquivo pessoal, 2013
Pesquisar desenho na literatura é um viés pouco analisado no diálogo
com a educação: o desenho infantil como texto visual (que comunica justamente
o que não pode ser dito) pode ser assim compreendido e enriquecido pela
professora na prática pedagógica com crianças pequenas. Há perspectiva
artística, estética, literária no desenho das crianças pequenas? E das crianças
bem pequenas? As crianças bem pequenas também produzem marcas de
materiais sobre suportes. Essas formas visuais compostas de linhas,
emaranhados, relevos, furos, rasgos e rabiscos aleatórios também dizem mas,
para quem dizem? Elas podem ser consideradas desenhos? Como lidarmos com
estas formas que escapam à lógica da representação que as instituições de
ensino vão, inevitavelmente, tornar hegemônica? No meu caminho de
pesquisadora constatei a necessidade de a professora ir adiante do ensino de
formas gráficas, representação ou mesmo a visualidade do desenho, ainda que
todos esses elementos sejam importantes para comunicar‐se visualmente. Ao
transbordar em suas possibilidades linguísticas, temos o desenho como um
adensado de materialidade capaz de presentificar criações e ficções infantis. Ao
dizer aquilo que não sabe, o desenho aproxima-se da linguagem do inconsciente
e do realismo mágico magrittiano.
Nesse sentido, selecionar e organizar as informações do ecossistema que
relaciona educação infantil e literatura exige delicada afinação, pois, ao mesmo
tempo em que dar corpo à tese se torna uma rica expedição pela oportunidade
de associação dos termos influxos em várias áreas, a mesma escritura pode
tornar-se superficial no sentido de não produzir inferências por quem a acessa,
afinal, expandir fronteiras teóricas exige transitar por caminhos onde conceitos,
teoremas e terminologias não são de domínio comum. A temática dessa
pesquisa entre áreas converge nos processos de criação dos infantis: tanto na
literatura quanto na educação infantil percebemos que as pesquisas acerca
desta problemática são ainda superficiais e difíceis de alcançar efetivamente a
professora que atua na prática efetiva e cotidiana.
É fundamental que os conhecimentos produzidos nas instituições de
educação superior sejam, de fato, acessados por aqueles que poderão repensar
e refazer as ações pedagógicas em seu contexto prático, no “chão de sala”8.
Sabemos que o tempo da pesquisa e o tempo da política nem sempre coincidem
com a consolidação da prática, justamente por isso torna-se imprescindível uma
elaboração teórica que permita inferências e produção de sentido não apenas
para os pesquisadores, teóricos da área, mas também para as professoras, as
responsivas e responsáveis pelas práticas no cotidiano educativo da infância: eis
a delicadeza na escrita desta tese.
Sob essa perspectiva, a interface entre literatura e educação infantil que
proponho exige metodologicamente a recuperação de alguns termos que,
embora não sejam novos, trazem em sua retomada novo arranjo, o que demanda
processo de criação e apropriação. Unir educação infantil e literatura, tendo
como compilação o desenho da criança e não, necessariamente, o livro de
literatura infantil, oferece novos recortes e traçados para ambos domínios. Para
tanto, utilizar-se dos termos educativos já banalizados e recuperá-los no intuito
de repensar os processos criativos das crianças tendo, ainda, a produção textual
8 Essa expressão pode ser entendida como o lócus mais íntimo e direto onde o ato pedagógico na educação infantil acontece, onde o contemporâneo é experienciado, relacionado e tecido nas e pelas ações educativas, um ambiente potencialmente favorável para produção da diferença.
da própria tese, memórias e rastros da autora, como campo metodológico seria,
então, o recorte elencado para realizar a discussão a que se pretende essa
pesquisa.
A Filosofia Ocidental ao longo da história privilegiou determinados modos
de pensar em detrimento de outros e assim, o sócius (processo de individuação
coletiva) foi se constituindo e constituindo nosso estilo de pensamento. A
subordinação da diferença à identidade, presente na lógica aristotélica da
representação, aproxima do conceito de diferença à oposição, contrariedade. A
lógica da representação esquadrinha essência, padrão, norma, modelo,
identidade. O diferente, o que não cabe, as sobras e desvios são excluídos,
higienizados.
Nesse sentido, recorro à Deleuze, conhecido como o filósofo da diferença,
tendo em vista que o autor toma o diferente como simulacro e sustenta a relação
da diferença não com o conceito de identidade, mas de repetição.
Quando determinamos a repetição como diferença sem conceito, acreditamos ser possível concluir pelo caráter apenas extrínseco da diferença na repetição; julgamos, então, que toda "novidade" interna fosse suficiente para nos distanciar da letra e que só fosse conciliável com uma repetição aproximativa, dita por analogia. [...] Talvez o engano da filosofia da diferença, de Aristóteles a Hegel passando por Leibniz, tenha sido o de confundir o conceito da diferença com uma diferença simplesmente conceitual, contentando-se com inscrever a diferença no conceito em geral. Na realidade, enquanto se inscreve a diferença no conceito em geral, não se tem nenhuma Ideia singular da diferença, permanecendo-se apenas no elemento de uma diferença já mediatizada pela representação. (DELEUZE, 2006, p. 34 e 35)
Figura 8 – O corpo em massa. Claudia Rogge, 2006. Arquivado a partir do endereço: https://ctrlbarbara.wordpress.com/tag/corpo/
Figura 9- Claudia Rogge, 2006 arquivado a partir do endereço: https://ctrlbarbara.wordpress.com/tag/corpo/
A autora dessas fotografias, a alemã Claudia Rogge, desenvolve em suas
produções artísticas o conceito de diferença e repetição quando permite que
nossos olhares busquem na visualidade dos corpos fotografados as
similaridades e singularidades humanas. As formas orgânicas enfatizadas na
primeira fotografia dialogam com a repetição estruturada na segunda imagem e
nos incitam a pensar no diferente não mais de modo hierárquico, mas como uma
composição do ser, do sermos. Assim, “subverter a filosofia da representação
significa afirmar os direitos dos simulacros, reconhecendo neles uma potência
positiva, dionísiaca, capaz de destruir as categorias de original e cópia”
(MACHADO, 2010, p. 48).
Ao tomar a filosofia da diferença como base ontológica do desenhar, o
desenho é concebido para além das etapas gráficas, sem o intuito de domar os
simulacros ou enquadrar as possibilidades criativas dos infantis. Esta é ainda,
de certa forma, uma lacuna nos estudos da Educação e, talvez em maior medida,
da Literatura. O campo da literatura e, mais especificamente da teoria literária
lida, em seu consenso, com o desenho infantil como um caminho para alcançar
o grafismo que, por sua vez, levará à escrita. Pouco se estuda o desenho infantil
como uma linguagem expressiva e potente em suas possibilidades criativas
como texto, capaz de oferecer respostas sim, mas também narrativas e
fabulações.
E os desenhos informes das crianças bem pequenas? Poderiam ser
consideradas fabulações abstratas? Certamente muito há a ser investigado
sobre a relação entre expressão infantil e abstração; entre as linguagens da
criança e as ficções. Com o intuito de ampliar a compreensão sobre o desenho
na área da literatura para além de um recurso intermediário à linguagem escrita,
o desenho pode ser considerado como lócus expressivo capaz de gerar ficção
e, por consequência, fabulação, abstração. Ou seja, beber nas fontes da
literatura, com seus truques e tramas, permite enfatizar não apenas o lado
diretivo e técnico do processo de criação via ação pedagógica do professor, mas,
também, a potência criativa que existe no ato ficcional de desenhar, suas
fabulações.
A interlocução com a literatura trabalhada sem seu artefato físico mais
comum – o livro – é ainda tímida, mas também desafiadora. No levantamento
bibliográfico que auxiliou o processo de delimitação/recorte/abertura desta
pesquisa, raros foram os trabalhos que se enquadravam na proposta de pensar
a relação da literatura com a educação infantil para além dos livros. Em sua
maioria, as pesquisas extra-livro tratavam desenhos animados e filmes.
Nenhuma pesquisa utilizava-se dos desenhos produzidos por crianças para
compreender as possibilidades de pensar literatura e infância de modo
concomitante.
Ao considerar a continuidade da pesquisa de mestrado, percebi que, para
pensar o desenho no interior da creche, era fundamental pensar também no
responsável por a-presentar, tornar presente, o trabalho educativo do grupo de
crianças: a professora. Ela pode provocar a ampliação dos horizontes culturais
e imagéticos das crianças. Ao ampliar seus próprios horizontes é capaz de levar
as crianças adiante do ponto onde ela mesma alcançou em seu processo criativo
e formativo. Então, a formação das professoras me interessa na medida em que
pode suscitar deslocamentos e rupturas no desenhar infantil. Cabe lembrar que
a formação não se restringe à acadêmica; enquanto tramado, tecido que se faz,
abrange também a formação pessoal e artístico‐cultural.
Se o ofício do professor é ensinar, o ensino aqui é compreendido (verbo
latino ensignare) literalmente como marcar com um sinal. Essas marcas sócio-
individuantes são acessadas pelas crianças no cotidiano dos mais diferentes
modos. Que ações pedagógicas precisam ser priorizadas para que o cotidiano
educativo dos infantis tenham ações intencionais, planejadas, pensadas no
sentido de priorizar a potência criativa dos infantis em seus atos de expressão
em convívio? Que marcas estamos deixando nos infantis que se afetam por
nossas ações pedagógicas? Que (des)limites oferecemos para que as crianças
compreendam os contornos e bordas existenciais ao invés de apenas serem
controladas? Que espaço para inferências deixamos aos infantis? Que interesse
temos por seus textos visuais no sentido de compreender as intensidades que
afetam seus traços?
A tese aqui escrita, lançada, inventada, buscou uma abertura linguística
despretensiosa, dançante, que pudesse deslizar pelas imagens apresentadas,
experienciando-as com o leitor; que proporcionasse acesso teórico e artístico -
já que a presença da arte como corpus textual, de certo modo comum à área
literária, ainda está sendo alcançada e consolidada nos estudos voltados à
educação infantil.
Para tanto, componho a tese em duas partes divididas por um intermezzo.
Cada parte é associada por diferentes platôs que podem ser interpretados na
sua sequência, mas também admitindo que sejam experimentados em ordem
distintas. A obrigação em realizar uma tese que cumpra pressupostos canônicos
de começo, metade e final, não me impediram de promover experimentações
com os temas dos platôs de forma a serem abordados em continuidade ou num
exercício criativo de troca com os temas propostos.
Na primeira parte, que intitulei de “Planos, Projéteis” abro caminho para
abordagens acerca de temáticas relevantes a esta tese de forma cognoscente
ao que concebo como potência para continuação da obra – quando começo a
abordar os desenhos das crianças. Se, enquanto planos, são organizativos do
trabalho, são também projéteis por “viajarem” e irem longe sem a limitação de
um pragmatismo ou ordenação planificada.
Em tratativas, a segunda parte deste trabalho, busco analisar os vestígios
e rastros como potência de encontro para tratar de arte, de desenhos produzidos
por infantis, processos de criação e fabulação que promovem a criação do real
por meio da imagem produzida nos desenhos.
PARTE 1 – PLANOS, PROJÉTEIS
O Menino Que Carregava Água Na Peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso. O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira. No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor! A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas
peraltagens e algumas pessoas
vão te amar por seus despropósitos.
(Manoel de Barros)
“Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.”
(Clarice Lispector)
1 - A escrita da tese como uma experiência de criação
Escrever uma tese é, em si, uma experiência: transformamo-nos em meio
à escrita, criamos e somos criados. Tal transformação não advém com a
conclusão do exposto, mas (principalmente) no meio, no durante, nas
entrelinhas. É no através, nas idas e vindas, nos (re)cortes, intensões e
intenções, (re)elaborações que perpassam o processo de criação de um texto
que fica claro: criar é movimento. As mudanças de cursos e fluxos nos dão
indicativos de que escrever, dar existência ao texto, procriá-lo, gerá-lo e nascê-
lo é, também, uma produção individuante de “si”, é expressar(-se) por um
discurso que multiplica um si e um seu, disponibiliza compostos e elementos que
recorrem ao real para serem iluminados. Assim, sujeitei-me na busca de uma
escrita viva, que registrasse os elementos com os quais mais interatuei nos anos
de formação como professora e pesquisadora, nas escolhas pessoais e, mais
especificamente, no processo de doutoramento, para o trato do objeto.
A experiência pede tempo. Como afirma Rilke, tudo quanto é velocidade
não será mais do que passado, porque só aquilo que demora nos inicia. Tempo
para pensar, olhar, escutar, sentir e silenciar. Tempo para exercitar cada
molécula do corpo no ato de transformar(-se), de ser tocado, afinal, “a
experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que
se passa, não o que acontece, ou o que toca” como afirma Larrosa, (2002, p.21)
tantas vezes citado quando o interesse está em caracterizar o que seja
experiência num sentido mais de movimento que de evolução. Ainda que não
nos pareçam novidades as afirmativas de Larrosa, elas coadunam no sentido de
enfatizar que escrever é acontecimento: não tem como objetivo representar pela
linguagem escrita aquilo que está dado, não é apreender a realidade ou mesmo
explicá-la cartesianamente, mas parir o que não existe, criar o real a partir do
real, tecer agenciamentos, minorias, devires.
Manoel de Barros, sempre citado por seu olhar romântico quando
pensamos no encantamento das infâncias, nos incita não apenas a admirar, mas
também a questionar: como fazer caber no texto acadêmico uma escrita
maquinada por afetos e encontros, por despropósitos? Como deixar presente os
pontos finais que limitam os vôos dos pássaros? O ponto por onde a obra
escapa? A intenção não é negar a escrita formal, ao contrário, é povoá-la de
pulsão, vibração. Afinal, a escrita menor9 não nega ou imobiliza a maior, mas a
ela resiste. Estão entrelaçadas, envolvidas, labirintadas. Não pretendo escapar
à formatação ou ao intento da escrita dominante, mas talvez ampliar sua
possibilidade de alcance ao fazê-la abrir espaço para as (in)verdades (linguagem
como poder), ficções, e buscar outros movimentos para a constituição do
homem, de si, do conhecer.
Para Deleuze e sua anti-dialética não é possível uma síntese capaz de
unificar o mundo ou a realidade, pois o real é plural e tem como característica a
tendência à dispersão. Nesse sentido, trazer o disperso ao texto, as águas
trazidas nas peneiras, o resto, a sobra, a dobra, os peixes colocados no bolso,
foi uma escolha metodológica encontrada para acessar os restos formativos que
me produziram para a escrita dessa tese e mediaram meu processo criativo,
existencial. Para pensar as narrativas visuais desenhadas por infantis como um
encontro entre o imagético e o literário na Educação Infantil foi preciso
apresentar e definir, ainda que infinitamente, os conceitos e o lugar em
movimento de onde falo, meu ato escritivo10. A escrita afirmadora da vida
modifica a relação conosco, com a língua, com o texto. Por isso, entendê-la como
experiência demanda estar com-ciente de que criar é buscar as rupturas, o
desconhecido, o novo. “Todo criador é, ao mesmo tempo, aquele que tenta o
outro e que experimenta (tenta) em si mesmo e no outro alguma coisa para criar
aquilo que ainda não existe: um conjunto de forças capazes de agir e modificar
aquilo que existe. (KLOSSOWSKI, 2000, p. 149). Criar é o instrumento do
homem para a produção e continuidade de sua existência. Criar é viver.
A organização estrutural do texto permite influência (fluir para dentro) de
categorias e classificações do pensamento, mas sem fixar-se ou submeter-se a
elas ou a qualquer força reativa, representativa, mimética: aqui a categorização
é entendida e apresentada como um processo de geometria infinito. Assim, o
presente capítulo visa elucidar os alicerces desta pesquisa, os aliados teóricos
que guiam as análises e discussões aqui presentes, que encontram na literatura
9 A ideia de escrita menor, parte do conceito de literatura menor, que “não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE; GUATARRI, 1997, p. 25). 10 Assim como o ato desdenhativo, no ato escritivo codifica-se nas possibilidades da linguagem escrita as perspectivas e experiências individuantes.
um modo de entender o desenho em sua abertura para a produção de sentidos
(desenho como lócus expressivo) e, em Barthes e Deleuze os principais
intercessores capazes de apontar não só um discurso, mas também uma atitude
para produção de conhecimento.
Selecionar e (es)colher, textos, olhares, teorias (escrito em minúsculo e
no plural) que compõem o sumo acadêmico deste trabalho convoca não a
renunciar aporias, mas utilizar-se delas para resistir ao autoritarismo dos
discursos teóricos e abrir-se para os que se contrapõem ao senso-comum e ao
não-científico como o lugar do não-verdadeiro, porquanto, acredito, a verdade
está sempre no entrelugar. Teorias e fatos misturam-se, estão juntos: narrar-
teorizar, papel da tese. Por isso, o ato de escrever a tese será retomado em
alguns momentos como possibilidade para pensar o processo de criação.
1 – Conhecimento O conhecimento teórico possuía, pra mim, a aura sagrada: grandes pensadores, gênios da ciência... O conhecimento era a verdade, a meta. No início da graduação, acesso algumas liberdades: Pedagogia Libertária e sua anarquia sedutora, método Freinet... Discursos que faziam os olhos brilharem, que mostravam a possibilidade de extrapolar os padrões educativos, que acolhiam mais que presumiam. Ao longo da trajetória acadêmica, ênfase na possibilidade de uma educação onde coubesse o inusitado, o infinito, a vida. Ao acessar o mercado de trabalho, recém-chegar ao novo papel social que demanda atuar como professora, percebo que, na prática, a liberdade e as escolhas teóricas tornam-se limitadas e limitadoras: precisam ser disciplinadas. Nem tudo cabe, nem tudo é coerente, é preciso selecionar o que se encaixa no método, nos documentos oficiais, no Sistema. Começo a tentar organizar meu pensar em linhas mais lógicas, fixas, um planejamento “bem fechado” para “garantir a intencionalidade”. A liberdade, o incerto, a diferença e a alegria, o improviso, procuram seu espaço no meu ato pedagógico, mas, quando se espera um padrão, esvai-se espaço, potência e vida. O doutorado me permite novas fontes teóricas, olhares ousados, retomada de discussões que outrora me faziam vibrar... A arte se apresenta como caminho de expansão, o planejamento pede movimento, desconstrução. Acessar as fissuras, dobras, entrelinhas e entretantos, traçar novos limites para minha existência: quando cabe a diferença, parece que também eu tenho um lugar. Assim, o conhecimento passa a ser o caminho, não mais o ponto de chegada. (Repositório de Reminiscências, s/d)
2 - A filosofia da diferença, meu lugar de fala
Se há a necessidade de explicitar e definir meu lugar atual de fala, minha
postura perante a vida e teoria produzida pela humanidade, registro o arcabouço
teórico que aqui opero tendo como base a filosofia da diferença sob a ótica de
Gilles Deleuze (1925-1995), filósofo francês que ficou conhecido por um
movimento de desvio e desconstrução, pelas dissolvências e marcas que
emergem das obras artísticas, pela intensidade de sua escrita. Junto a esta base
que fundamenta e organiza meu pensar, trago a possibilidade barthesiana de
entender o texto como um campo metodológico para a pesquisa, um texto de
prazer acadêmico, voltado não apenas para os teóricos, mas, principalmente
para que as professoras que atuam na prática com a educação infantil possam
repensar o que seja o conhecimento, habilidades e atitudes que fazem parte do
ato de ensinar a infância, possam perceber os intercessores culturais com os
quais interagem e que implicam em seus processos decisórios quanto à
educação. Que conhecimento historicamente produzido pela humanidade tem
sido valorizado na educação das infâncias? Que conhecimento para além do
científico tem povoado as ações educativas com os infantis?
O trabalho de Deleuze é comumente vinculado aos movimentos pós-
estruturalistas, categorização que o próprio filósofo questionava, já que o termo
enfatiza o idêntico, justamente a contra-luta do autor, que se implicava em
pensar e expressar o pensamento por diferentes formas, fórmulas, modos: é o
que encontramos ao longo de toda sua obra, desde os primeiros textos
monográficos. O que é pensamento? É possível oferecer ao pensamento novos
meios de expressão? Essas questões impulsionaram o autor a pensar a
diferença não mais como desvio da identidade, mas como potência criadora do
ser. Temas como rizoma, imagem-movimento, virtualidade e atualidade faziam
parte da composição de seu estudo que tomam a experiência como base em sua
ontologia da diferença. Assim como Nietzsche (1844-1900), fez de sua filosofia
uma afirmação da vida, da vontade de viver. Seu modo de pensar, também
demolidor, contribuiu para rever a questão da identidade enquanto categoria
capaz de oprimir o ser humano em detrimento de sua liberdade e potência
criativa, do pensamento como expansão da vida.
Afirmo esta pesquisa sob a perspectiva da filosofia da diferença por
observar na infância, dentre outros elementos, sua característica como um
tempo humano onde as diferenças estão reveladas, anunciadas e, ao mesmo
tempo, onde o processo educativo ocidental concebe como fundamental sua
inserção (ou adaptação?) à sociedade, a que cria, constitui, concebe e delimita
sua experiência existencial. Aparentemente, acomodar-se ao meio social,
concernir, pertencer, ajustar-se, é o esperado no processo de inserção dos
infantis à realidade, via escolarização. No entanto um detalhe, para mim, se
destaca nesse processo: o que acontece com aqueles ou aquilo que aí não
cabem? Com os excessos que nos constituem, mas que extravasam e entornam
dos esperados moldes e padrões? Como adequar a vida e o que dela verte no
processo de formação da infância e na produção do conhecimento sobre a
realidade objetiva? Como fazê-la caber? O que fazer com o que não cabe?
Assim, pronunciada por Nietzsche e autores como Foucault, Derrida,
Lyotard, a diferença, tomada como base ontológica no pensamento deleuziano,
é aqui recuperada para pensar as relações criativas acionadas no ato de
desenhação dos infantis e no processo de criação imagética capaz de
presentificar o novo, o diferente. O conceito de individuação, disposto por Gilbert
Simondon (1924-1989) e recuperado por Gilles Deleuze, disponibiliza um corpo
às reflexões, por se mostrar como caminho ontológico no processo de
diferenciação humana. Ou seja, a relação do pensamento desses autores
contribui para a compreensão desta ontologia e do processo criativo dos infantis
em sua demanda de desenhar(-se), tendo em vista que, se afirmamos a
diferença como ontologia do homem, o processo de hominização exige o ato de
diferenciar-se.
Gilles Deleuze possui uma obra extensa, trata-se de quase trinta livros e
uma série filmada para ser divulgada apenas após sua morte (muitos desses
livros escreveu em parceria com o psicanalista Félix Guatarri). Uma
característica de sua obra está na variação de temas, referências e conceitos
com os quais trabalha, miradas inovadoras que se entrecruzam e produzem,
mais que uma teoria, uma postura de vida. A obra de Deleuze está para a vida.
A vida, tal como é, cabe. Seu trabalho vem desconstruir também o pensamento
freudiano no que se refere à afirmativa de que o desejo seria a eterna falta.
Ontologia do desejo. Filosofia da Imanência, romper de fronteiras do humano.
Pela cientificidade que exige uma tese de doutorado no meio acadêmico,
é importante destacar que a noção de epistemologia também é questionada pelo
autor, que enfatiza a potência criativa do pensamento via não-ciência, ou seja,
por um viés que não é predominantemente científico. A epistemologia, tomada
como um agente de poder filosófico, torna o conhecimento exclusivamente
científico e remove de outros domínios a possibilidade de sua produção. Para o
filósofo, o conhecimento não é considerado fruto exclusivo da ciência ou do
cientista: filosofia e arte também produzem pensamento e, por decorrência,
conhecimento. No entanto, obviamente, produz-se diferentes conhecimentos,
modos de pensar, criar. É imprescindível desvendar as especificidades criativas
encontradas em cada uma dessas ambiências: a filosofia se ocupa em criar
conceitos, enquanto a ciência cria funções e a arte, agregados sensíveis
(DELEUZE; GUATARRI, 1992, p.154) “o que me interessa são as relações entre
as artes, ciência e a filosofia, Não há nenhum privilégio de uma dessas
disciplinas em relação a outra. Cada uma delas é criadora” afirma o autor. Pensar
essas relações na educação infantil, tanto na prática como em sua pré-
organização, ao mesmo tempo em que parece possível e até mesmo óbvio,
mostra-se uma tarefa abstrusa, complexa e, na mesma medida, arriscada.
Arriscada porque exige a desconstrução de bases teóricas e práticas que
serviram de alicerce não apenas para a educação infantil, mas para a educação
como um todo: o que ensinar? Como ensinar? Perguntas que sempre foram
feitas e ainda hoje, felizmente, não temos respostas exatas. Ao depender do
nosso lugar de fala, da base de experiências e teorias que nos constitui, temos,
apenas presumidos, convicções, imagem-ações. As que baseiam a discussão
presente são impulsionadas pela trajetória da pesquisadora, tanto acadêmica
quanto de vida, pelos lugares onde me vi caber, e principalmente em Deleuze,
autor que coube em mim.
Ao percorrer suas obras, têm-se que a postura filosófica que assumia e
que nos inspira no processo de produzir conhecimento acadêmico, poderia ser
estabelecida por meio de três aproximações-movimentos encadeadas e
conexas: o plano de imanência a ser traçado, os sujeitos/personagens
concebidos, e os conceitos criados nessa inter-relação. Esse tripé auxiliou a
organização do pensar a temática aqui apresentada: Educação Infantil e os
infantis que desenham seu processo de criação para além do ato cognitivo. A
possibilidade de experimentar, experienciar a Filosofia, invoca possibilidades
práticas para seu pensar e indicam a legitimidade dos conceitos na medida em
que estes adquirem validade e importância na e pela prática. A filosofia torna os
conceitos não-estáticos.
O conceito tomado pela compreensão deleuzeana, assunto que será
retomado adiante, parte do simples para o múltiplo (não necessariamente para
o complexo). Conceito e seu devir são compreendidos em conexão visceral,
tanto entre seus elementos, quanto entre conceitos de um mesmo “sistema”,
tendo em vista a possibilidade de composição, conexão, arrumação no interior
de uma esfera filosófica. Essas considerações tornam-se importantes para a
presente composição textual, na medida em que se constata que, para fazer
Filosofia, não há reflexão sobre, mas com: assim como a história da Filosofia
não garante o ato filosófico, uma teoria sobre o cinema ou sobre o desenho
infantil por exemplo, não discursaria especificamente sobre o desenho em si,
mas a partir dele. Nosso objetivo ao pensar o desenho nas instituições
educativas para crianças pequenas e bem pequenas não é compreender
especificamente seu processo de aquisição e desenvolvimento gráfico, ainda
que isso se faça importante numa discussão acerca do desenhar. Mas,
principalmente, a partir do desenhar infantil, o que é possível assimilar, abordar
e refletir no intuito de apreender os processos de criação e ficção na infância e
evidenciar a possibilidade de autoria (e diferenciação) dos infantis. A relevância
desses pontos reflexivos não está em enfatizar a Filosofia em detrimento das
não-filosofias, mas em apontar Filosofia, Arte e ciência como modos de pensar,
expressões do pensar. O desenho das crianças não é necessariamente o objeto
da pesquisa, mas torna-se um medium e/ou um constructo para o pensar-criar
artístico dos infantis. Desenhar literatura, pensar a literatura na ação pedagógica
para além do contato com os livros.
Cada vez com maior
intensidade – como o feltro que cria
forma quando a agulha lhe penetra,
atravessa e redispõem – as artes e
narrativas contemporâneas explicitam
a necessidade de desconstrução, de
um não-ter-método derrideano,
desmontagem, decomposição.
Quando se admite a multiplicidade do
conhecimento, a compreensão do
conhecimento pelas vias do
acontecimento, busca-se também
outras maneiras possíveis de lidar com o pensamento e seus constructos, com
as ideias. A quebra metodológica derrideana ainda não cabe em mim, enquanto
pesquisadora, mas mobiliza a repensar a necessidade de submeter (-se, os
infantis, o texto) aos modelos, sistemas, regras de funcionamento que buscam
homogeneizar corpos, superfícies, subjetivações.
Mas o que seria, então, a diferença? Que elemento é este que constitui,
fundamenta e impele (como um projéctil) o olhar da pesquisadora frente ao
objeto de sua pesquisa? Para o dicionário11, é a dessemelhança, a qualidade
que distingue uma coisa de outra. Deleuze (2006) parte dessa ideia geral sobre
diferença e toma para si, em Diferença e Repetição – trabalho complexo devido a
necessidade de leitura prévia de outros pensamentos seus –, a construção de um
conceito de diferença, simples e inicial (tendo o simples não como algo
“simplificado”, mas como “algo que difere por natureza”, o que distingue). A
diferença, para o autor, torna-se um motor - e não uma consequência – e
acarreta numa compreensão de mundo em que as “propriedades imutáveis da
coisa” sejam elas mesmas movediças, estejam configuradas e asseguradas na
eternidade das diferenças.
O manuseio desse conceito participa no intento de quebra dos padrões
ideológicos que promovem ficções de controle na infância para afirmar a
diferença como potência. Ela passa a ser entendida como um elemento
11 Dicio – Dicionário Online de Português -www.dicio.com.br
Figura 10 Processo de Feltragem com Agulha - https://br.pinterest.com/pin/437975132497250242
enriquecedor do humano no processo de hominizar-se e exige novas posturas
educativas. Torna-se um princípio capaz de promover processos de autoria e
autonomia infantis e deixa de ser vista, então, como aquilo que precisa ser
padronizado. O ato de transgressão é tomado sob nova perspectiva: é destacado
como ação criadora, não mais como ação que precisa necessariamente ser
domada pelo professor, num processo coercitivo de contenção dos corpos.
Na prática, essa postura não significa uma apologia à insubmissão. Ao
contrário, significa superar a disciplinarização dos corpos e compreender os
mecanismos que mobilizam as ações transgressoras dos infantis. Que atitudes
as professoras têm tomado frente aos infantis que mostram não caber nas regras
existentes? É possível repensar as regras ou apenas forçar o enquadramento?
Que atitude criadora os infantis “bem-comportados” tem se permitido em seu
cotidiano? Fazer apenas o esperado e sugerido pela professora é o suficiente no
processo educativo? E num processo educativo criativo e emancipador? E no
processo de individuação como ser humaniza? Quando se pensa numa
educação infantil que tenha como foco disponibilizar recursos para o processo
de individuação dos infantis, domar os corpos passa a ser um objetivo
secundário no processo educativo pois muitos outros elementos precisariam ser
priorizados.
3- Autoria e representação nos desenhos infantis
2 - Diferença e os traços infantis A mãe chega na escola para buscar seu filho pequeno, com idade entre 3 e 4 anos. Ele sai da sala e animadamente aponta para a parede externa aonde estão pendurados desenhos de todas as crianças do seu grupo: “Olha mãe. Eu fiz.” “Qual é o seu?” – a mãe pergunta, olhando mais o nome que o traço. A professora, atenta à conversa, convida “Vamos ver onde está seu nome?” Toma a frente em direção aos desenhos, olhar fixo às borda inferiores dos papéis: era ali que estava registrada a autoria. Os traços não diziam tanto quanto o nome. (Repositório de Reminiscências, 2008).
A cena revisitada, reforçada pela semelhança com outras situações
testemunhadas em diferentes anos e instituições, contribui para a constatação
de que, nas instituições educativas, a criança que não produz figuração não
costuma ter atenção específica aos seus traços. No processo pedagógico em
que atualmente estamos inseridos, o nome identifica a imagem. A imagem não
se identifica a si, é subordinada à palavra, e mais, sua produção é subordinada
ao nome do sujeito de autoria. Esse fato não se restringe ao campo da produção
infantil, é uma atitude comum frente aos mais diversificados trabalhos artísticos.
Exemplifico tomando o quadro de Basquiat e Andy Warhol, conhecido
como “Dois Cães”, para tentar aprofundar essa questão: trata de dois animais
dejetando seus excrementos
fisiológicos. Frente à obra, o
interessado apreciador ou o
cuidadoso estudioso da arte
tem uma reação, constrói,
ainda que rapidamente, sua
opinião não só sobre a
qualidade da imagem, mas
também sobre o ato de
contemplar excrementos ou
pagar 800 mil dólares num
registro específico sobre
dejetos de animais. Antes de expor o que pensa sobre a produção observada,
Figura 11 - Andy Warhol e Jean-Michel Basquiat, Untitled (Dois Cães), assinados por ambos os artistas no verso, tinta acrílica e silkscreen na tela, 80 por 106 polegadas
203.2 por 269.2 cm. Executado em 1984. Est. US $ 600 / 800.000
porém, é comum que se pergunte quem a realizou. Se a resposta advém com
um nome de reconhecimento como o de Basquiat, é possível perceber a postura
frente à obra se modificar. Ao invés de observações sobre a estética e o gosto
pessoal, agora promove-se discurso sobre sua relevância histórica e social,
enfatiza-se contexto e conjecturas da produção. A imagem produzida se
secundariza, o autor e sua importância sócio-histórica passam a ser o destaque.
Volto aos desenhos infantis para focalizar a importância de ter seu
desenho registrado com um nome identificável: esta é a garantia da legitimidade,
produto social, da tarefa realizada. Os desenhos sem nome dificilmente são
reconhecidos, tanto pelos autores quanto pelas professoras e perdem, por isso,
seu valor pedagógico, sendo em sua maioria descartados ou utilizados como
rascunho. Não se diferenciam. Não dizem.
A indiferença tem dois aspectos: o abismo indiferenciado, o nada negro, o animal indeterminado em que tudo é dissolvido, mas também o nada branco, a superfície tornada calma em que flutuam determinações não-ligadas, como membros esparsos, cabeças sem pescoço, braços sem ombro, olhos sem fronte. (DELEUZE, 2006, p. 36).
Diante das imagens informes, as chamadas garatujas, poderíamos toma-
las como textos visuais a serem lidos? Para Deleuze é possível “considerar uma
matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados,
interpretados. Não existe aprendiz que não seja egiptólogo de alguma coisa”
(DELEUZE, 2003, p. 4). Haveria possibilidade de decifrar mais sobre as crianças
que desenham sem figuração tomando seu desenho como potência textual?
Presenciei posturas12 em que a professora buscava reutilizar a produção
garatujal, (in)autoral dos infantis, ou parte delas, no intuito de valorá-las: os
traços-sem-nome, rabiscados no papel, serviriam agora para enriquecer
visualmente (por meio de colagem e composições) os desenhos nomeados.
Também ornamentavam materiais e objetos pertencentes à sala, entre outras
possibilidades. Seria esta postura um nada negro ou branco? Se tomarmos como
12 Essa postura frente às imagens-sem-nome também é encontrada no presente texto que dá
corpo à tese. As imagens utilizadas nos meios acadêmicos precisam, necessariamente, estar referenciadas em um local específico e oficial, pré-textual, que lista as figuras utilizadas. No entanto, ao considerar uma imagem com relevância para a discussão, seja como ilustração seja como texto, seja como texto que ilustra, não as ignoro por faltar-lhe referências, ainda mais num momento social em que as tecnologias e diferentes mídias disponibilizam excessiva e imediata produção e disseminação imagética. A imagem como base para a criação.
um nada branco, temos uma potência estética presente nos rabiscos sem nome,
constata-se certo valor à intensidade produzida. Essa ação seria o suficiente
para valorar o traço-sem-autoria? Talvez não, mas, é admissível que seja
tomada como um impulso que oferece determinado valor visual maior que autoral
nos processos de produção de imagens por infantis.
Sobre as produções infantis expostas, há o hábito na educação infantil
que os desenhos realizados sejam expostos nas paredes institucionais. Sem
perder o ponto desta discussão, destaco que sempre os observei com certa
atenção: que produções eram expostas? Que contextualizações se destacavam
na exposição? Que produções infantis saltavam ou sumiam aos olhos do
contemplador? Comecei a perceber uma relação importante frente ao traço
autoral das crianças: as propostas em que as mediações das professoras não
apenas sugeriam, mas guiavam o traço por meio de indicações e
direcionamentos, alcançavam mais o resultado considerado esperado para a
proposta e menos um traço autoral, criador. Inicialmente, avaliei essa situação
como uma questão de objetivos da proposta: “não é possível identificar o
desenho da criança pela sua visualidade porque o objetivo era representar a
situação x, a forma y, o resultado z” - pensava. Depois a ideia de que o traço
tende ao irreconhecível quando a ação pedagógica não intenta a valorização da
individuação dos infantis (e sim um resultado específico), se fez presente.
O conceito de desenho azulejo, desenvolvido na dissertação defendida
em 2008, ainda se mostra atual quando observamos os desenhos infantis
expostos nas instituições educativas. Algumas propostas se tornam tão diretivas
que o resultado da produção sugere um produto industrial, como indicam as
imagens que seguem:
Figura 12- Relação entre os desenhos infantis semelhantes e os azulejos que reproduzem imagens em série - fonte https://pentagonoblog.wordpress.com/tag/semana-do-folclore/
Frente às produções infantis tão semelhantes entre si e, tendo a
compreensão ontológica da diferença que nos constitui enquanto humanos,
pergunta-se: como é possível respostas tão idênticas às questões apresentadas
no planejamento da professora?
Tais produções das crianças pareciam azulejos! Apesar de os desenhos estarem colados na parede na altura das crianças (o que tem seu mérito), não é isso que se destaca. O que vemos é que estão um ao lado do outro e são “exatamente” iguais. Como aquelas faixas de azulejos usadas para dividir horizontalmente as paredes. Parece que todas as crianças foram orientadas a fazerem exatamente a mesma coisa, com os mesmos materiais e do mesmo
jeito! Desse modo, nada pôde definir melhor o desenho‐efeito que costumamos observar em muitas Instituições de Educação Infantil, se não a palavra “azulejo”, que denuncia seu caráter
preponderantemente decorativo e voltado ao adulto. (DAY, 2008, p.
152).
Não é difícil concluir que os desenhos azulejos revelam uma qualidade
estética pautada na semelhança/padronização das respostas infantis e
objetivam alcançar um resultado adultizado (ainda que possa estar amparado
por um planejamento que considere de algum modo as opiniões e interesses
infantis), visto que não possibilita a experiência de fazer com que as crianças
decidam, reflitam, ousem, busquem respostas e usem de seu papel ativo, autor
e autônomo no planejamento e realização de suas produções.
Nas paredes geralmente são disponibilizados vários desenhos sobre
determinada temática. Tão parecidos entre si que dificilmente conseguimos
identificar seu autor pelo resultado da imagem: os desenhos azulejos
materializam as propostas pedagógicas e ações onde atingir o mesmo resultado
como modo de demonstrar aprendizagem são mais importantes que a qualidade
estética, a autoria, o ato de criação. Mobiliza-me internamente constatar que os
traços não diziam tanto quanto o nome. Para que desenhar? O que esperar do
desenho de um infantil? O que a linha cujo traço ainda não foi domado pela
representação poderia oferecer à professora no sentido de acessar o infantil que
a desenha?
É fácil associarmos, algumas vezes até de modo irresponsável, esta
questão ao indicativo de que as crianças bem pequenas não produzem formas
reconhecíveis pelos adultos, ou seja, não “representam” elementos, devido à
imaturidade de suas condições psíquicas, sob o respaldo dos pesquisadores de
teorias psicológicas de desenvolvimento que afirmam que o objetivo do traçado
infantil é alcançar a representação da realidade, com por exemplo Luquet, com
suas fases de desenvolvimento intituladas realismo fortuito e realismo
fracassado. Antes de assumir qualquer posicionamento perante a importância
da representação no desenho da criança, acredito que, primeiramente, é
importante questionar a própria ideia de representação, atualmente baseada na
compreensão aristotélica clássica.
A representação sob a ótica aristotélica nivela a diferença à sombra da
identidade, esta sim considerada importante, o que oferece como consequência
a ideia de que atingir determinada etapa gráfica (e, se possível, até mesmo
antecipá-la) seria o objetivo maior a ser alcançado, observado, admirado no traço
infantil. Representar não seria tão importante quanto atingir o grau de
desenvolvimento que capacita o infantil a representar. Assim, para a teoria da
representação, percebe-se que as contrariedades residiriam na forma, ou seja,
na produção de diferenças especificas, mas não especificamente no ser, aquele
que, como meta gráfica, representa. Esse conceito, para além da representação
no traço, sob a ótica da filosofia deleuzeana, leva à compreensão de que as
diferenças, tanto na visualidade do desenho infantil quanto no ser, seriam
apenas especificações de uma essência que precisa manter-se, por fazer parte
da identidade (gráfica do) humano. O ser permaneceria o mesmo e a ênfase
estaria em um ser da contemplação passiva, reprodutor nas etapas do
desenvolvimento humano, não um ser da criação. No entanto, é porque as
diferenças são que o ser não é.
Eis o princípio de uma confusão danosa para toda a filosofia da diferença: confunde-se o estabelecimento de um conceito próprio de diferença com a inscrição da diferença no conceito em geral, confunde-se a determinação do conceito de diferença com a inscrição da diferença na identidade de um conceito indeterminado. (DELEUZE 2006, p. 23).
O conceito recorre a uma ideia bastante divergente, de uma essência com
diferenças, pois ao repensar a ideia de que o ser tem uma essência – um gênero,
para Aristóteles -, percebe-se que a “unidade e a identidade não acidental dos
seres” tem a necessidade de igualar individualidades: não cabem diferenças em
si, apenas o que é passível de ser padronizado, dominado (pelos signos). Ou
seja, o traço valorizado na educação infantil é aquele que atinge o objetivo da
proposta, não aquele que registra um ato infantil de criação. Não se permite
agitação, balanço, tumulto naquilo que é fixo, está dado real ou virtualmente. No
entanto o ser é, também, aquilo que escapa o ser, como afirmou Nancy.
Assim, ser não é sinônimo para possuir essência, visto que “ter essência”
não define nem revela a natureza do homem: para Deleuze ele não possui
essência, mas uma condição, uma natureza passível de ser individuada. Plural.
Ficcionalizante. Ser é diferenciar-se enquanto ser. Nesse sentido e para essa
discussão, a mimesis e a representação tornam-se menos importantes na
composição teórica e estética sobre as imagens quando a ênfase está em
salientar a potência nas diferenças, nas autorias, nos sujeitos. Há o que ser lido
nas garatujas infantis ou será preciso sempre a presença de algo que represente,
de um nome que identifique e legitime uma imagem, um nomeável? As
diferenças eclodem, constituem, vibram, escapam dos sujeitos e importam
modos de viver. Diferença como afirmação da vida.
4 - Sujeito e individuação
Quando partimos dessas considerações temos que o sujeito, esse eu
transeunte, não é tomado como oposição ao objeto, nem como sinônimo da
substância que comporta seus atributos, mas como aquele de quem tudo o mais
se afirma (e que não é ele próprio afirmado de nada). Sujeito e predicado
possuem-se, o eu que pratica uma ação é, também, afetado. Mas porque
afirmamos “os sujeitos” e não “os indivíduos”? Indivíduo é um termo que possui
a si, dota-se de identidade e não de singularidades, aceita-se como unidade
indivisível, descaracteriza-se em sua essência ao ser dividido: não pode ser
afetado sem deixar de ser. Indivíduo talvez possa ser uma ilusão retórica, mas o
sujeito, que não pode afirmar-se a si, está para o devir, assim como o
contemporâneo para as hesitâncias. O sujeito que tem corpo – e por isso pode
transgredir - vive na univocidade do ser e não em sua indivisibilidade.
Dançar nesta pesquisa em meio a conceitos e (des)caminhos impulsiona
a pensar que sujeito é o infantil que desenha nas instituições educativas, muito
mais para perceber suas potências (e, a partir delas traçar gestos e ações
pedagógicas que ampliem as possibilidades criativas humanas) que delimitar
suas ausências (a criança que “ainda desenha garatujas”, que fracassa na
representação imagética, o in-fans sem fala). Inspirada por tais atitudes
filosóficas, busquei colisões, choques afirmativos capazes de vibrar e
produzirem efeito, efeito de real, sobre, com e a partir (d)as subjetividades
(dando ênfase à questão da vontade) que se encontram nas instituições onde as
ações educativas se configuram. Os sujeitos infantis, suas subjetividades, nos
implicam enquanto pesquisadores por indicarem as infâncias como um efeito
contemporâneo de infância, bem como sua capacidade de movimentar-se
aionicamente, viver em máxima potência: viver o presente (infância como lugar
da diferença pura, do outro do homem, do inumano). Heráclito de Éfeso dizia
que o tempo é uma criança brincando; o poder real é o de um menino (fragmento
32). Infantis como sujeitos da infância.
Uma das colisões possíveis é conferida pela compreensão de que os
sujeitos das instituições educativas são um ser-estar sujeitados à. Para viver
inseridos socialmente nos sujeitamos às leis, ordens, mecanismos e poderes
simbólicos. Para viver as infâncias institucionalizadas os infantis precisam,
também, se sujeitarem: há ordem, regras, combinados, moldes e modelos. Essa
compreensão do termo indica a dependência do sujeito e explicita suas
fragilidades – tanto aquelas que expressam a finitude (AGAMBEN, 2006) quanto
as que indicam a necessidade da relação com o outro para a constituição da
existência – mas talvez indique, no caminho do possível, uma certa auto-nomia
da vontade. Auto-gestão, auto-gerir, auto-gerar.
Figura 13 - O outro que me constitui. Fonte: https://www.ijep.com.br/
Entender o homem como um ser social, que se constitui enquanto gênero
humano em sociedade (elemento chave para a função sujeito desde Freud)
institui a importância do outro no processo de hominização e individuação, o que
não significa aceitar a sociedade e sim resistir criticamente às suas formas
perversas enquanto modo de manifestação presente. Nesse sentido é possível
compreender que sem um mínimo de leitura crítica da coletividade não há
possibilidade de existência social. É necessário certo contágio ao que
culturalmente está disponibilizado naquela realidade sociocultural, assim como
o pharmakon trabalhado por Derrida, como remédio que são necessários à
cultura, sem perder de vista a sua origem como veneno.
No entanto, no âmbito educativo confunde-se inserir-se ao meio social
com adaptar-se a ele, o que faz com que a disciplinarização dos corpos e modos
de pensar se tornem um foco educativo ainda mais importante que a transmissão
dos conteúdos. Aprender a lidar com a ordem é importante, mas seria esse o
objetivo da prática educativa nas infâncias? Pode ser considerado um agente em
certo sentido, mas não o objetivo pedagógico que impulsiona o ato educativo.
Que projeto de homem e sociedade estamos reforçando e reproduzindo ao exigir
o sujeitamento às regras em detrimento da possibilidade de discuti-las e ampliá-
las? Essa discussão não pretende impor nova ordem social, nem resgatar
características das sociedades pautadas na Anarquia, ou mesmo discutir as
organizações e estruturas, mas demarcar o interesse por uma Auto-nomia dos
sujeitos. Mas que autonomia dispomos? E que autonomia buscamos?
Quando Kant (1724-1804) trata da autonomia como a capacidade de se
autodeterminar, autorregular segundo uma legislação previamente estabelecida
pela sociedade, talvez a ênfase não recaia sobre a ideia de que a autonomia é
uma postura social capaz não apenas de ter lei, mas também de ser aquele que
faz a lei (desconsidera-se paixão ou erotismo nesse momento). Nietzsche
estrutura muito do seu modo de pensar em oposição à Kant. Para ele, a noção
kantiana de autonomia indicava a escravização do sujeito pela sua pequena
razão. Essa crítica pode ser encontrada da seguinte maneira, no Anticristo:
A “virtude”, o “dever”, o “bem em si”, a bondade fundamentada na impessoalidade ou na noção de validade universal – são todas quimeras, e nelas apenas encontra-se a expressão da decadência, o ultimo colapso vital, o espírito chinês de Konigsberg. Exatamente o contrário é exigido pelas mais profundas leis da autopreservação e do crescimento: que cada homem crie sua própria virtude, seu próprio imperativo categórico. Uma nação se reduz a ruínas quando confunde seu dever com o conceito universal de dever. Nada conduz a um desastre mais cabal e pungente que todo dever “impessoal”, todo sacrifício ao Moloch (NIETZSCHE, 2014, XI).
Autonomia para além de autorregular-se seria então, não apenas permitir-
se submeter-se à regra, mas também fazê-la. Ser norma e desvio em
coexistência, ser diferença. Diferença que se faz por meio de suas individuações.
Diferença que pode ser registrada por meio da autoria imagética no desenhar
infantil. Há possibilidade de disponibilizar aos infantis um processo educativo de
maior autonomia para seus processos de criação? Autonomia que considera,
para além do olhar kantiano, a ação de ser e fazer regra concomitantemente? O
que uma professora ensina quando propõe a realização de um desenho? Seu
foco está no resultado dos trabalhos? Na experiência vivida? Na fixação de
conteúdos de outras áreas?
A retomada conceitual aqui brevemente apresentada pretende oferecer
uma perspectiva de um olhar o desenho que não seja baseado no discurso do
desenho pela crítica à produção, ou, muito menos, a constatação de suas etapas
gráficas. Mas que parta de um gesto afirmativo, inicie, como o dionísios de
Nietzsche, dizendo um sim aos sujeitos-infantis, ao seu texto desenhado, seu
ato criador e, muitas vezes, de resistência. Traduzir para outras áreas a
possibilidade de dialogar com as infâncias, principalmente apresentar os bebês,
esses seres pré-individuantes, à teoria literária realizada no meio acadêmico, na
medida em que aponta a potencialidade do trabalho literário com os pequenos
e, particularmente, com os bem pequenos (com idade até três anos), dizendo-
lhes um sim, denota a pouquíssima produção na área sobre tal temática.
5 - O processo de individuação
Para avigorar seu pensamento e aprofundar a compreensão sobre o
processo de constituição do ser, individuar-se, por meio das diferenças, Gilles
Deleuze via em Simondon um filósofo apto a reencontrar problemáticas clássicas
de maneira a renová-las a partir de uma ontologia contrária a unicidade. Retomo
o processo de individuação13 apresentado por Simondon e apropriado por
Deleuze como um caminho para compreender a importância do processo criativo
das crianças por meio de seu ato gráfico de desenhar textos visuais e produzir
ficção e fabulação.
Figura 14 - Processo de criação e diferenciação de si. Fonte: https://paulorogeriodamotta.com.br/
13 Não apenas Gilbert Simondon, mas também teóricos como Carl Jung, Friedrich Nietzsche, Schopenhauer e Bergson também se interessaram pelo processo de individuação enquanto constituidor do humano. O interesse pelo trabalho de Simondon se dá pelo fato de que sua preocupação estava não no início ou finalização deste processo, mas na relação do sujeito com o meio.
Embora Simondon seja um filósofo pouco familiar nos estudos sobre a
infância, sua tese, estudada por autores como Deleuze e Baudrillard, oferece
importantes operadores da biofísica que permitiram desenhar o processo de
individuação dos sujeitos. Para ele, a individuação não estaria apenas
relacionada à compreensão psicológica deste processo que o define como o
desenvolvimento do eu a partir de um inconsciente indiferenciado, mas identifica
em sua tese que a teoria clássica entende o indivíduo como um ser que já está
dado. Para ele há um processo - é essa a primeira característica da individuação
– para que algo se torne “distinto e independente”. Para autores como Guattari
e Rolnik (1986, p. 33):
O modo pelo qual os individuos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o individuo se submete a subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o individuo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização.
Cabe aqui retomar a compreensão da relação entre homem e natureza,
tendo em vista que até agora destacamos a importância da hominização por
meio de um processo de inter-ação social. Deleuze, Espinosa e Simondon
encontram-se na compreensão da natureza como um elemento não oposto ao
homem, ao contrário, constituidor deste: para Espinosa, mesma substancia
constituidora. Para Simondon, em sua tese publicada em 1995, um sistema
supersaturado. Entender essa relação não oposta entre homem e natureza
talvez seja um ponto chave para o processo de individuação e sua relação com
a capacidade criativa dos infantis em seu ato de desenhar. Quando nos
afastamos dos universos estáveis e estáticos, compostos de essências e formas
fixas é possível perceber que, para além das substâncias, essências,
mimetismos, formas figurativas inteligíveis, representações visuais e outros
artifícios abstratos, é possível embasar a compreensão daquilo que é natural no
fluxo da constituição constante de estilísticas diversas, de operações mínimas e
rizomas sem fim, pautando-se nas relações, no entre. Deleuze toma tais
monismos no sentido de compreendê-los de modo oposto aos dualismos
clássicos. Nesse sentido, se há processos de individuação na natureza e, sendo
a natureza não o contrário do homem, mas a primeira fase de sua constituição
enquanto ser, então o homem têm, ele mesmo, processos que sugerem em si o
modelo externo: os processos individuantes encontrados na natureza se
repetem no psiquismo humano e na constituição de seu sócius, como podemos
observar na tese de Simondon (1995, p .23 apud Cabral, 2016, p. 14), ao afirmar
que
Poder-se-ia chamar natureza a esta realidade pré-individual que o indivíduo leva consigo, tratando de encontrar na palavra natureza o significado que lhe davam os filósofos pré-socráticos: a natureza é realidade do possível que, sob as espécies do apeíron (indeterminado), faz surgir toda forma individuada; a Natureza não é o contrário do homem, mas a primeira fase do ser.
Para haver individuação é preciso mais que substância, matéria, forma. É
preciso considerar um sistema tenso, em que a sua saturação tenciona a relação
individuo-meio de modo que, desta tensão pulse o devir. Busco na relação entre
o interno e o externo, entre eu e o mundo, uma possibilidade de estabilizar, ainda
que parcial e provisoriamente, a saturação advinda de impressões, fragmentos,
traços, castrações, traumas e demais processos experienciados ao longo da
minha constituição enquanto sujeito. Ou seja, da elasticidade e tônus existente
na membrana de troca entre o indivíduo e suas relações com o que lhe é externo,
equilibra-se a força tensionada que permite uma conservação das forças ali
existentes sob uma determinada composição, a qual chamamos sujeitos
individuantes. O equilíbrio interno que se dá ao longo do processo de mudança
que ocorre reiteradamente pelas trocas realizadas entre as energias do sujeito e
de seu coletivo, como um sistema bivetorial, organiza um estado de mudanças
latentes das coisas (metaestabilização).
Figura 15 - Salvador Dali (1937). in Tate Modern de Londres. Óleo sobre tela.
Bachelard (2002) contribui para pensarmos o processo de individuação
quando trata do mito de Narciso. Para o autor, Narciso olha para si e, ao ver-se,
projeta na própria imagem aquilo que é e não aquilo que de si idealiza. Apaixona-
se pela imagem produzida de si e por si, tendo em vista que o olhar que ad-mira
também produz, seleciona, direciona, imagina. Sua imagem plasma a si mesmo,
cria na mesma medida em que revela. “Só ali ele sente que é naturalmente duplo;
estende os braços, mergulha as mãos na direção de sua própria imagem, fala a
sua própria voz” (p. 25).
Os bebês poderiam, aqui, serem considerados como seres pré-
individuantes, que ainda não falam a sua própria voz, porém são dotados de
especificidades que os constituem como seres únicos. Singulares, mas não
individuais, nunca no sentido de etapista, mas rizomático. Nas palavras de
Deleuze (2010, p. 118)
Singular sem ser individual, eis o estado do ser pré-individual (...) Mundo imbricado de singularidades discretas, tanto mais imbricado quanto mais estas não estejam ainda se comunicando ou não estejam tomadas numa individualidade: é este o primeiro momento do ser.
Tendo então, a natureza como realidade possível, primeira fase do ser,
podemos compreender que, para Simondon reiterado por Deleuze, o ser pré-
individual poderia ser considerado um ser sem fases. Tendo fase como um
movimento de evolução do humano, o último processo de individuação do ser
não seria necessariamente a superação do primeiro, ou a negação de sua
negação, mas um novo momento no acontecimento do ser. As fases teriam sua
importância em si mesmas e não em sua característica linear que direciona o
sujeito para a etapa seguinte. O objetivo de cada fase de desenvolvimento deixa
de ser atingir a próxima fase e passa a ser a possibilidade de extrair-lhe toda a
potencialidade. Viver com profundidade cada etapa que constitui o ser,
utilizando-se daquilo que a fase oferece em si, como acontecimento não
hierárquico ou linear, mas enquanto potencialidade criativa do próprio ser. Eis
porque o desenvolvimento de uma etapa gráfica em favor de alcançar a próxima
etapa é coadjuvante e não central quando buscamos considerar os sujeitos em
seu processo de individuação e singularização.
Nesse sentido, trabalhar com a dimensão da imagem e da criação dos
infantis pode se tornar uma grande contribuição na medida em que se pretende
enfatizar e questionar o conflito imanente entre uma instancia pré-
representacional e a lógica da representação, predominante no processo
educativo encontrado nas instituições de Educação Infantil.
6- Cultura, cultivo e arte
Para tratar do processo criativo, me parece ser relevante ancorar
quaisquer análises do mesmo dentro de um modelo dual composto por sujeito e
o meio – considerando ambos como importantes. Tal iniciativa é de crucial,
acredito, pois parece ser comum que utilizemos o contexto como única
justificativa para explicar os fenômenos – como em muitas tradições explicativas.
Isso leva a uma ilusão cultural, ilusão de que tudo é justificado pela cultura e, por
isso, ela passa a ter super-poderes, tornando-se uma má-cultura, uma cultura
que domina ao invés de nutrir, tratar. Nietzsche, em Genealogia da Moral (1999),
questiona essa compreensão de cultural explicando que ela pode ser nociva e
opressora ao invés de servir de potência para a libertação do homem.
Desde que o ser humano passou a acessar a memória temos uma
humanidade produzindo grupos, convívio social, que garantem um compartilhar
de repertórios. A cultura poderia ser compreendida como a narrativa em comum
sobre os acontecimentos humanos. Para Nietzsche a cultura em que estamos
inseridos seria, na verdade, uma contracultura, ou melhor, uma contra natureza,
pois seu grande objetivo não está em harmonizar o ser humano e a natureza
mas, ao contrário, relaciona-se com o controle dos sujeitos e corpos, aquilo que
está humanamente colocado: nosso processo civilizatório induz à moral e às
regras, mais que à ética.
A estrutura social ocidental pauta-se principalmente em forças reativas
que limitam as potências humanas, que buscam domar e dominar as pulsões e
demais tendências ativas do humano, para que haja sempre o controle social.
As regras socioculturais se apresentam como modulações de controle: controla-
se intensidades, paixões, pulsões. Controla-se tudo o que pode gerar o novo e
desestabilizar as certezas, borrar os limites.
Muito mais que auxiliar no processo de compreender seus limites e
produzir películas de troca que dão forma ao movimento (a função não
repressora do limite), a cultura estaria relacionada ao processo de castração das
pulsões, sujeitando e submetendo os sujeitos ao complexo de informações e
discursos que compõem as crenças, artes, costumes, hábitos de certo grupo
humano. Quando se produz educação com base ontológica nas diferenças, tem-
se que a cultura seria uma realidade a qual deveríamos resistir – se não negar –
ao invés de buscar o inserimento. Só assim seria possível a “autonomia” que nos
capacita a seguirmos a máxima nietzschiana “torna-te quem tu és” (2001, p.270).
Para operar com uma compreensão que visa ampliar potências de vida e
gerar intensidades tomaremos, como indica Nietzsche, a cultura em seu sentido
mais primitivo, relacionado à agricultura: cultura como cultivo. O cultivo de uma
terra para produção (de si, pela individuação; do outro, pela mediação), de
sentidos, que me afetam e me deixam afetar, que me constituem enquanto
humano, cultivar-me para que me torne aquilo que sou, não aquilo que é aceito
dentro de uma normatização proposta e produzida em meu contexto cultural e
social.
Para Nietzsche, experiências e cultivo seriam a possibilidade de ampliar
aquilo que foi vivenciado para transcender o eu, não no sentido de uma evolução,
mas de uma individuação. A cultura estaria, então, numa oposição não simétrica
à ética, por isso o cultivo seria o ponto máximo de ligação entre a ética e a
estética, dando movimento e continuidade à esta existencial e vibrátil relação,
para além da moralização14 dos desejos.
14 A moral e a ética possuem diferenças importantes que Nietzsche auxilia a esclarecer em quando aponta a moral como prescritiva e dependente do contexto em que foi cunhada. A moral viria antes para estabelecer um caminho, pathos, social e coletivo. Já a ética estaria baseada em alianças sociais e coletivas que apontassem para um consenso, habitus, um posteriori produzido por meio de um arranjo com o outro. A moralidade estreita, a ética permite a presença da liberdade, da criação e da expansão do ser humano, de sua consciência cósmica.
Figura 16 - JOAN MIRÓ (1922) La Granja. Oléo sobre tela (123,8 X 141, 30). National Gallery of Art, Washington
Essa terra de cultivo, no entanto, deve ser por nós lavrada, adubada,
regada, nutrida, sulcada. Ao invés de submetermo-nos às terras sobrevindas de
um contexto social em que produzimos nossa existência – e, por consequência,
nossas diferenças – precisamos encontrar um modo e um meio de zelar e nutrir
nossa terra: sermos jardim e jardineiros ao mesmo tempo.
Jardineiro e jardim – de dias úmidos e turvos, da solidão, de palavras sem amor que escutamos, nascem conclusões à maneira de cogumelos: surgem numa manhã, não sabemos de onde, e olham para nós, cinzentos e ranzinzas. Ai do pensador que não é o jardineiro, mas apenas o solo de suas plantas (NIETZSCHE, 2002, p. 382)
Compreender a cultura como cultivo permite a transcendência do humano
aos padrões e modelos culturais disponibilizados na realidade de sua existência,
possibilidade de utilizar-se de uma economia de desejos do sujeito, não mais no
sentido de limitar o pulsional, mas de utilizá-lo como potência criativa. Cultivar
para que a terra nutra minhas intensidades e meu ser individuante, com pulsões
e paixões que frutificam e dão alimento, dão vida. Assim, tomo a arte como um
produto cultural capaz de caracterizar e resumir um modo de ser humano
específico.
Entretanto, deve-se considerar seu potencial em operar com os sentidos, em produzir sensação, de um modo a estimular a sensibilidade por meio da experiência que pode surgir na interação com a obra. Trata-se de pensar no estranhamento, no desenvolvimento de novas configurações imaginativas. (DELAVALD, 2012, p. 1-2).
A mediação que a arte produz pode ser resgatada junto à Simondon como
a membrana capaz de produzir trocas de energias, forças, potências, entre o
dentro e o fora. Uma película permeável que dá limite ao interno e externo, mas
permite e produz trocas entre o que é especifico do sujeito e o que está presente
no sócius, porque contém em si o conjunto de características humanas mais
complexas, abstratas, de alta elaboração, que servem de instrumento para a
compreensão, apropriação e acesso ao acontecimento, seus efeitos e
sensações. Ao mesmo tempo, a arte toca, afeta, implica para além de
compreensões elaboradas do conhecimento, promove sensações, sentidos,
sensibilidades, refinamento. Ou seja, a linguagem artística exige alta elaboração
daquilo que consideramos humano e tem em si a possibilidade de aumentar o
domínio do homem sobre o mundo.
Mas, apesar de fazer parte desse processo de cultivo social, seu tempo
não é histórico, é um entre-tempo, um devir do acontecimento que, para Deleuze
e Guatarri, tem como consequência a auto-posição da obra (de si e em si) e está,
não no campo do virtual, nem do atual, mas do possível. Um possível estético,
artístico, que só existe em um plano de composição. Os autores deixam claro
que este possível estético não é uma atualização de uma série de
acontecimentos, tendo em vista que se constitui como uma realidade à parte –
porque excede o todo vivido -, mas é sua incorporação em uma obra de arte.
Assim, a possibilidade estética/artística não se resume à possibilidade
física de sua confecção e existência, porque ela existe por si,
independentemente do modo utilizado para sua materialização (contexto que
não é uma camisa de forças). O autor de uma produção artística se utiliza daquilo
que está presente em seu processo de cultura, em seu tempo e espaço, no
entanto a isso transcende, como se estivesse em “uma zona de indeterminação,
de indiscernibilidade, como se as coisas, animais e pessoas (...) tivessem
atingido em cada caso esse ponto conduzindo ao infinito que precede
imediatamente a sua diferenciação natural”.
Ou seja, os afetos artísticos podem ser considerados não a passagem de
um estado vivido para um outro, não uma superação, mas o devir não humano
do homem, a transcendência, o possível que conduz a sensação pelo seu plano
de composição, um (des)enquadramento que abre e dá vasão para o infinito. Na
arte, sensação e infinito se igualam. Mistério. Assim, dentro do plano de
imanência onde se dão os acontecimentos, a arte se apresenta como uma
composição sensível que recorta as sensações do caos dando-lhe uma
inteligibilidade, torna-se um possível de lidar e, assim, permite que o ser humano
suporte, consiga compreender/interpretar/viver as próprias sensações. Arte e
seu percorrer as sombras, fendas e intensidades. Assim, quando se considera
que a sensação no plano de composição da arte se dá como recorte do caos de
sensações, tem-se um movimento finito e específico, realizado numa sensação
que está num plano de composição com movimento infinito. Não só a
coexistência, mas também a complementariedade dessas forças (finito e infinito)
sustentam o pensar a arte neste duplo movimento: arte é infinito que se
materializa numa finitude. “Temos a arte para não morrer da verdade”, disse
Nietzsche.
Os limites imprecisos do termo arte fazem com que muitas divergências e
contradições apareçam quando se tem o intuito de traçar uma definição única e
definitiva, a Arte – no singular e com A maiúsculo – como afirma Coli (1999).
Este conceito fabricado no Ocidente entende as artes como certas
manifestações da atividade humana pelas quais somos afetados, sensivelmente.
No entanto, distintas manifestações humanas nos afetam e muitas não são
consideradas arte. Seria preciso uma demarcação mais pontual, um termo que
pudesse dar conta das abrangências, distâncias, direções, tempos, formas e
processos expressivos específicos da arte. Mesmo sem um vocábulo distintivo
que dê conta dessas características, a cultura disponibiliza e busca instrumentos
específicos que possam contribuir no sentido de decidir quais objetos podem ou
não ser considerados artísticos.
Um desses instrumentos, sem dúvida, é o discurso. É ele quem reconhece
a competência e autoridade frente a um objeto artístico porque é proferido por
diferentes indivíduos que legitimam aquilo que pode ser considerado arte: o
crítico de arte, o historiador, o perito, o conservador de museu, o curador de
galerias. Mas um conceito tão complexo pode ser definido por pessoas que
assumem determinada posição profissional? Que passam a ter nas mãos o
poder de decisão para afirmar que objetos e obras podem ou não serem
tachados, carimbados como arte? Se cada sujeito é um emaranhado complexo
de múltiplas relações, quando se vai à obra de arte, não se chega sozinho, mas
com um conjunto de contra palavras adquirido em suas experiências. Há uma
trajetória humana herdada, sociocultural, e há também seu caminho pessoal de
experiências que o empoderaram frente ao discurso artístico. Mesmo assim,
essas características não garantem uma excelência nessa definição. Delimitar o
que seja ou não arte para um momento cultural é sempre um terreno incerto,
tanto que muitos artistas, hoje altamente conceituados, foram desvalorizados em
seu momento cultural, deixando sua fortuna artística como herança para as
gerações vindouras, já que a sua própria geração não era capaz de abarcar seu
processo de materialização das sensações por meio das obras produzidas.
Figura 17 - Marcel Duchamp (1917). A fonte, Milão, Coleção meu ip de Arturo Schwartz
Alguns artistas - como Duchamp e sua obra “A fonte” - já em 1917 faziam
importantes questionamentos à institucionalização da arte. Seu questionamento,
no entanto, abriu possibilidades que o autor talvez não vislumbrasse com tanta
clareza, justamente pelo fato de a arte sempre abrir espaço para o desvio. Em
Duchamp, o desvio se deu pelo fato de sua ousada intenção de negação ser
recuperada e legitimada pelas instituições competentes: aquilo que vem
desconstruir passa a ser constructo artístico.
A partir dessa quebra estética dos padrões, a arte abandonaria cada vez
mais seus ideais aristotélicos de esmero, representação, mimese, controle e
passaria a acolher o inusitado, o ousado, aquilo que se ergue quando o choque
tectônico dos encontros acontece. As extremidades da arte se alargariam na
medida em que a cultura que a acolhe aceita outras possibilidades de
composição capazes de permitir a conservação do acontecimento em uma obra
que nos toca explicitamente por dar materialidade palpável aos nossos
processos sensíveis.
Assim, definir uma obra como sendo ou não artística não sucede pela
avaliação do artista, nem mesmo sua produção, já que a arte é mais que seu
produto, suporte, material, mais que a própria ação artística. Se tomarmos o
pensamento nietzschiano poderemos ter essa demarcação sendo realizada pelo
tipo de força que se manifesta por meio do artista. A arte poderia ser
compreendida, assim, como toda manifestação humana tomada por uma força
ativa capaz de exigir uma reorganização das forças do mundo. E, se ela assim
exige, ela o reelabora, produzindo não apenas nova força, mas também um novo
no mundo. O conceito de arte, então, estaria diretamente relacionado ao meio
cultural em que se insere e encerraria em si a potência de atuar como mediador
entre o sujeito, suas singularidades e o humano, suas repetições por meio da
relação entre as forças que mobiliza. Talvez por isso Nietzsche não resuma a
arte à obra e afirme que a própria vida deve tornar-se arte.
Para que o ser humano consiga lidar com essas intensidades, as forças
artísticas exigem uma alta elaboração nos processos de abstração humanos,
num movimento de acomodar em si as potências do sentir materializadas em um
produto específico. Produto este que exige ao mesmo tempo que propicia nova
organização interna, psíquica, individuante, potência que se elabora
internamente ao acessar a sensação gerada pelo acontecimento. Arte, como
expressão do humano, é a materialização das relações e experiências sociais
por meio dos sentimentos, vivenciadas como um eterno sem eternidade. A arte
que arremessa a obra para mundo, arte projétil.
Para Deleuze e Guatarri (1992) a arte teria em si a capacidade de
conservação do acontecimento no sentido de transformá-lo em uma obra capaz
de produzir sensação e novo acesso ao acontecimento. Mas toda obra que
produz sensação é arte? Com o propósito de preencher essa lacuna, buscou-se
regras que definissem os objetos artísticos, os estilos, escolas e movimentos. No
entanto, uma das características principais da obra, como disse, é a evasão, a
curva, o ato de escapar às classificações, aos moldes que se querem lógicos,
completos e definitivos. Não há um conceito único capaz de delimitar o campo
da arte e suas obras com precisão, pois ela, assim como a literatura e como o
contemporâneo, opera sobre a vida, sobre falhas, fendas e excessos. A arte é
sempre presença que revela, mas nem sempre é efetividade do enunciável, ela
não fala para seu tempo, ela está para além da cultura.
Então, a noção ocidental construída a respeito do que seja arte, do seu
poder de transmutação, de operar sobre camadas de saberes permite que sua
compreensão e vivência varie conforme as experiências, relações sociais,
formação, tempo, lugar, afetos e perceptos. A arte, nesse contexto, seria oposta
ao pensamento platônico que deseja do artista a verdade, a representação da
realidade por diferentes vias. Tanto Nietzsche quanto Deleuze entram em
consenso com Platão no sentido de compreender que o artista se distancia da
realidade, no entanto, para os dois primeiros, esse afastamento seria uma
condição do humano, enquanto para Platão seria uma falha, um fracasso em
relação ao realístico.
O distanciamento oportunizado pela arte leva a um outro real, o
ficcionalizado pelo processo artístico. Entender tal arte e apropriar-se dela faz-
nos encontrar modos de se aproximar desses processos artísticos e com isso
encontrar possibilidade de ser afetado através do encontro com as artes
disponíveis. Um caminho no campo do possível seria então, acessar autores e
obras capazes de iniciar nossa sensibilização para essa linguagem tão arredia
e, na mesma medida, intensa. Sem a ingenuidade de achar que as obras
marcantes não foram também culturalmente selecionadas15. O fato é que, tanto
para definirmos o que seja arte quanto para dela nos apropriarmos é preciso que
haja um encontro, um aprender a acessá-la. Coli (1999) sugere uma porta de
entrada quando cita a noção de frequentação, possibilidade encontrada para
tornar viável e significativo um encontro com a arte e nossa sensibilização.
Para o autor a profundidade na relação com a arte está vinculada ao
encontro com objetos artísticos capazes de despertar sensibilidade. Não é mero
contato, mas sim encontro: é preciso que se afete, é preciso estar implicado, ter
acesso ao outro em mim. Nesse sentido é fundamental o aproximar-se da obra,
esse é o primeiro passo para promover o encontro, mas por si só a aproximação
não é suficiente. Não basta olhar, é preciso humanizar o olhar para ver, ou
melhor, para mirar – admirar – pois a mira já deseja, ter uma mira de desejo.
A aproximação de autores e obras marcantes é um caminho, mas exige
implicação. Ou seja, o acesso não garante apropriar-se da obra, é preciso
mediações que mobilizem a experiência de ter acesso, é preciso acessar a
sensação mediadora que produz acontecimento. Mediar, ser o médium
agregador, não se resume a transmitir um discurso informativo qualquer sobre
um aparato aglutinador de sensações, mas permite que sejam permutados com
o sujeito fruidor os movimentos que a arte suscita. É fácil concluir que frequentar
não é uma ação que ocorre naturalmente e ao acaso, ao contrário, convoca um
esforço em observar detalhadamente, descrever, dissociar, associar, relacionar,
problematizar, sentir, inferir, produzir abstrações que só o humano é capaz.
“Frequentar uma obra é, antes de tudo, um ato de interesse” (COLI, 1999, p.
123).
A ênfase, então é posta no fato de que frequentar não se resume a ir
fisicamente até museus e galerias, embora também se trate disso.
Independentemente de a frequentação ocorrer por meio de histórias contadas,
15 A seleção das artes e artistas que ficaram famosos também é uma ação cultural. O gosto nunca é natural, mas sempre mediado pelo gosto geral que a cultura previamente selecionou antes de nosso acesso e produção do nosso gosto individual. Assim, nada na arte é espontâneo, é sempre produto de uma elaboração humana. Até aquilo que parece livre, como o gostar, é determinado pelos instrumentos disponibilizados culturalmente. Quando limitamos os repertórios infantis para aquilo que eles gostam acabamos desconsiderando que o gosto é aprendido e “que ninguém gosta daquilo que não conhece” (GOMBRICH, 1999). O prazer cultural é aprendido, gostar deste ou daquele espetáculo é aprendido, assim como gostar ou não da própria arte. Desse modo, o gosto seria sempre mediado (ou mediatizado) pelo gosto geral, aceito pela nossa cultura.
conceitos explicados, atividades realizadas, produções estéticas visitadas ou
executadas é preciso, antes de tudo, estar implicado. É possível afirmar que é
esse processo de implicação que permitiria uma alta elaboração cultural frente
aos produtos culturais acessados. Nesse sentido, quanto mais cedo os infantis
frequentarem e se implicarem os espaços em que as artes estão disponíveis,
mais possibilidades de ampliação e complexificação de repertório e de processo
criativo são possíveis. Os infantis, assim, ampliam suas possibilidades de devir,
num movimento de criação de sua própria existência, superando as limitações
culturais pelo processo de individuação e autoria, como poderia se agradar
Nietzsche.
Daqui para frente, apenas um pensamento impessoal, inconsciente e involuntário, que pensa o infantil como paradoxo, acontecimento, devir. Um pensamento que, por não mais pensar a diversidade como referida ao mesmo, substitui a unidade abstrata “criança” pela multiplicidade completa “infantil”; que se abstém de usar o termo “criança”, para não se misturar indevidamente com outros pensamentos e ficar livre para buscar, além das próprias crianças, as intensidades do seu devir. Devir, também ele, não mais chamado “devir-criança”, e sim “devir-infantil”, como o movimento incessante de um pensamento que reconstrói a própria imanência. (CORAZZA 2005, p. 45-46)
Nesse sentido, tanto o processo criativo dos infantis quanto dos artistas
trabalham com operações técnicas e procedimentos mentais capazes de
produzir criação e conhecimento, já que partem da característica humana de
ficcionalizar o real. As sensações e emoções que desejam ser acessadas são
passíveis de serem expressadas por ambos os sujeitos por meio de linguagens
artísticas como desenho, pintura, escultura, colagem, instalação ou quaisquer
outras técnicas que tenham efeito linguístico no contemporâneo. Haveria, então,
uma característica diferenciadora entre o devir-infantil e o devir-artista? Muitos
são os trabalhos artísticos com os quais podemos relacionar as produções
infantis, muitos são os artistas que buscam em suas obras a essência de um
devir-infantil.
Figura 18 - WASSILY KANDINSKY(1911). Impression III. Óleo sobre tela (77,5 X 100,0 CM).
MUNIQUE, THE STADTISCHE GALERIA IM LENBACHHAUS
figura 19 - Joan Miró. O voo da libélula em frente ao sol (1968). oleo sobre tela (173, 9 x 243,8 cm). coleção pessoal paul mellon
Figura 20 - Dom quixote. Pablo Picasso (1955)
Se pensarmos no desenho como médium para que a ideia seja atualizada
e corporificada no campo do real, então temos que os infantis vivenciam
questões que lhes permitem processar e elaborar as experiências sensoriais,
emotivas e transformá-las em fabulação via traços e formas. Temos nos afastado
do propósito de explicar o processo criativo de desenhar na infância pelas vias
do acesso gráfico à etapas de desenvolvimento porque, dentro da filosofia da
diferença, explicar a arte na infância pelos mecanismos próprios da faixa etária,
nos conduz à nada, já que não permite acessar a natureza infantil que trabalha
no campo da ação plasmadora da ideia no mundo.
Figura 21 – O desenhar infantil usando tinta. Acervo pessoal, 2013
Também não se trata de compreender a arte infantil em si, pois, do mesmo
modo que uma cultura das infâncias dissociada da cultura humana – organizada
e reforçada pelo mundo adulto – não é possível, também uma arte das infâncias
tomaria como ênfase aquilo que é uma característica secundarizável. A arte na
infância não é a base, mas a possibilidade de ampliação e refinamento da
compreensão e ação humanos.
Cabe ainda afirmar que desenhar não pode ser considerado meramente
um jogo das infâncias, onde a linguagem do desenho é banalizada pela ênfase
no fazer. Nessa compreensão, a expressão visual gerada por seus traços e
formas tende a ser menos importante que seu processo de execução. Ainda que
o processo seja muito mais rico experiencialmente do que o possível de ser
acessado por meio de seu produto, o produto faz parte do processo expressivo,
não o limita nem o resume, mas o participa. Então, não é possível traduzir uma
linguagem por outra, nem transpor para o desenho as leis que regem as
produções simbólicas realizadas pela ação de brincar na infância. Jogos
protagonizados oferecem um modo de produzir ideias por meio de uma
linguagem específica que o desenho não é capaz de acessar devido à
diferenciação de sua capacidade de corporificação, e vice-versa.
Tem-se buscado na relação com o ensino dos infantis, diferentes modos
de lidar com as obras artísticas sem trazer apenas seu enquadramento em
modelos que se destinam a dar conta do sistema e suas regras fixas de
funcionamento, pois sua mais central característica está na própria abertura para
a produção de sensações e sentidos. A linguagem artística é capaz de registrar
a humanização do mundo, materializando num objeto (sempre complexo,
mesmo quando simples) experiências e relações humanas.
Nesse sentido, como o trabalho dos artistas, a expressão gráfica
encontrada nas infâncias envolve as imagens mentais construídas no processo
de re-acessar as experiências que lhe afetaram anteriormente e produzir uma
potência de futuro capaz de oferecer novo acesso às figurações, sensações,
interesses, intenções, gostos, tensões, fascinações. Ou seja, é um processo de
alta elaboração, que exige tentativas, pesquisa, encontro daquilo que não é
explicável de nenhuma outra forma a não ser por meio daquela organização
visual gerada na ação gestual de registrar seus traços em uma materialidade
específica e, tanto mais expressivas quanto maior o domínio da técnica utilizada
para cristalizar a ideia no plano do real.
A ação pedagógica deve atuar no sentido de introduzir nas produções
infantis um comportamento de busca. Como posso expressar minha ideia? Que
material sugere melhor a ideia que pretendo materializar? No entanto, há
compreensões educativas que sustentam a ausência de regras para o ato
criativo, a investigação artística parece estar deslocada. Tal investigação faz
parte de uma postura que toma a diferença como uma expressividade para seus
processos individuantes. A investigação, neste sentido, não toma as vezes de
técnica fixa ou imutável, caricatura investigativa evitada não só por infantis, mas
pelos próprios artistas. A investigação artística a qual nos referimos faz parte de
um processo que oferece uma condição expressiva a se desenvolver por meio
das forças de potência produzidas em seu traço pessoal. Inventar e realizar são
ações que estão para além da razão. Essas ações irão revelar os mistérios
advindos das ideias atualizadas tanto por artistas quanto por infantis, são estas
posturas que garantem o acesso às profundezas misteriosas do ato criador.
Os agregados sensíveis produzem expressões específicas que poderão
ser desenvolvidas por meio do trabalho investigativo. Os infantis produzem
ideias complexas e variadas e, quando dispõe dos guias e estímulos
necessários, podem atuar como artistas. A criança-artista não seria resultado de
uma criatividade sobre-humana e permanentemente disponível como uma
característica de sua infantilidade, mas conduzida por meio de um contexto onde
os bons encontros são disponibilizados. Um infantil pode ser considerado artista
pelo tipo de problema que aborda e não pelo produto de suas ações, qualidade
de seus resultados. Um elemento importante a ser estacado é o fato de que o
artista, em seu processo investigativo, busca necessariamente intervir no real. A
intencionalidade infantil está mais intimamente relacionada ao seu processo
expressivo singular e talvez seja essa a maior diferenciação entre o devir-infantil
e o devir-artista, independe do resultado visual de suas produções. Assim, por
exigir processos mentais extremamente complexos em sua produção (a criação
perpassa por relacionar linguagens e esquemas linguísticos individuais e
coletivos, conhecimento sistematizado, sensibilização, afeto, emoções etc.)
proporciona sempre uma organização complexa dos elementos disponíveis por
meio de um elemento que organiza em si forma e conteúdo.
A arte tem uma relação permanente com o real, não apenas o real
presente, mas passado, futuro, virtual, ficcional, de maneira concomitante.
Assim, ela se apresenta como um caminho de apropriação do real que já sofreu
elaboração, aumenta a relação entre o homem e o mundo, e seu processo de
apropriação e ficcionalização deste. Ou seja, um elemento de humanização do
mundo (pelas experiências e relações humanas) materializado em um artefato
específico que, por sua vez, também humaniza e reelabora o real,
complexificando-o e humanizando-o, levando-o ao infinito.
Então, disponibilizar aos infantis não só produções artísticas, mas as
mediações necessárias para que possam acessá-las, compreendê-las, utilizar-
se de suas diferentes linguagens, ampliar suas possibilidades de esquemas
linguísticos, seria um caminho possível para fazer com que a professora
disponibilizasse não apenas as informações que tradicionalmente precisam ser
transmitidas, mas, também, indicasse potencialidades criativas por meio de
desafios, hipóteses, forças, intensidades, mistérios, bons e maus encontros no
campo de alta elaboração que a arte suscita a fim de ampliar as potencialidades
humanas como um todo.
Quando se trata de autoria, pensa-se nessa como um processo individual,
mas cabe lembrar que um elemento ou produção artística nunca é fruto de um
único sujeito pois, compreendendo a arte como objeto individual e coletivo, sabe-
se que sua elaboração se dá em relação ao que está culturalmente
disponibilizado, embora, como já dissemos, a isso não se limite. Elemento
construído pelos diferentes olhares humanos que permitem a socialização dos
afetos e emoções humanas, tendo em vista que a arte, enquanto um agregado
sensível, suscita emoções estéticas e, por dar carne aos sentimentos humanos,
materializam o social e o cultural em nós.
7 - Método da Pesquisa As fotografias de Richard Silver
nos convidam a buscar novos
olhares para aquilo que sempre
ad-miramos e que, muitas vezes
consideramos não trazer novas
implicações. As igrejas são
ambiências comumente visitadas
e fotografadas quando buscamos
acessar a arte, estética, cultura da
região que a abriga.
É comum, pela experiência
anteriormente vivenciada, por nós
ou por outrem, termos uma
expectativa do que encontrar
nessas fotografias: altar, imagens,
santos, devotos, tetos e vitrais. Por
mais que as igrejas se diferenciem
esteticamente umas das outras,
há um conjunto de imagens
comuns nesses registros. Em sua
série fotográfica intitulada Vertical
Churches, o artista registra todos
esses elementos, no entanto,
expressa seu modo singular de
perceber artisticamente as igrejas.
Fotografias como a apresentada
nos convidam a olhar a mesma
ambiência e mesmos elementos,
mas sob novos prismas,
vitalizando potências e
percepções, dando ênfase a
Figura 22 - Vertical Churches, Richard Silver. Fonte: https://zupi.com.br/fotografias-panoramicas-de-igrejas-por-richard-silver/
ângulos pouco significativos, mas que permitem envolver novas dimensões do
real.
As panorâmicas produzidas pelo artista a partir de um ângulo perfeito
entre a entrada da igreja e o altar garantem um registro diferenciado, ousado,
que põe o foco no que sempre vemos, mas de um modo completamente distinto,
peculiar, particular. Do mesmo modo, apresentar neste capitulo o método de
pesquisa utilizado, expor o caminho previamente planejado e sistematizado
(embora sempre em movimento) que suscitou o desenvolvimento dessa tese,
precisa ser envolvido de certo cuidado. A metodologia tradicional afirma um
itinerário possível de verificação e reprodução. Acessa um percurso para que se
alcance como e porque tais escolhas foram realizadas, que fatos poderiam vir a
ser encontrados e que decisões teórico-práticas foram tomadas para que as
conclusões encontrassem determinado grau de veracidade e universalidade.
Pensar no caminho metodológico, como método de pesquisa é desatrelar a ideia
de prescrições e formalismos científicos, da explicitação dos procedimentos já
consolidados, de certa forma, canonizados dentro daquilo que consideramos
ciência.
Para além de apontar um caminho que busca e necessariamente encontra
a Verdade, o utilizado compreende sua própria característica imanente e em
deslocação contínua, tendo em vista que pesquisar é acontecimento. Na
contramão das regras fixas que definem uma verdade e revelam o legítimo e
fundamentado saber, há palavras que gritam e gemem, há palavras que
gaguejam e hesitam. Há palavras que confundem e simplesmente não
respondem a problemática que circunda o objeto. Há experiências, histórias,
ficções, discursos subterrâneos, ecos que a academia não foi ou é capaz de
captar. São as não-implicações, os temas não tematizados, as ideias e fatos
menores, o método subversivo.
Métodos e posturas teóricas desconsideradas no meio acadêmico (o
movimento de desescolarização, por exemplo, ou as pedagogias alternativas
consideradas desatualizadas – porém sobreviventes – não são considerados
como pontos de interesse de pesquisa de geral aceitação no âmbito da
universidade). Assuntos, movimentos, vivências, propostas que não são aptos a
entrarem numa discussão teórica, num fazer ciência, num fazer pesquisa.
Negações, assuntos de sub-importância. É preciso limpar as ideias e encadeá-
las no texto, botar foco naquilo que está atualmente em voga e, para isso, retira-
se o excesso, o que não deve ser discutido porque aparenta irrelevância
cientifica. Negações. Enformações. Destaca-se o cânone, o hegemônico, as
maiorias e padrões, aquilo que pode ser nomeado, o nome que lhe confere
legitimidade. Veiga-Neto (2002) indicava que o paradigma da ciência moderna
encontra-se calcado na razão, na consciência, no sujeito soberano, no progresso
e na totalidade do mundo.
O tempo para de existir, então, como um modo de intensidade e congela-
se nas verdades científicas. A verdade engessa o mundo e ele está sempre em
movimento, somos energia em trânsito num mundo caótico de energias que se
entredevoram. Embora a fenomenologia tenha auxiliado na quebra desses
padrões, disponibilizando caminhos para pesquisas qualitativas, o discurso
cartesiano ainda é o que dá corpo e define o que cabe nas pesquisas científicas.
Nesse sentido, calam-se discursos menores, reverberam como verdades as
interpretações à luz desta ou daquela teoria. A postura considerada científica é,
ainda hoje, aquela que cala os sujeitos infans, que fala pelos infantis, aqueles
sujeitos de quem se fala, mas que eles próprios não dizem.
Um dos intuitos desta pesquisa é preencher de sentido os termos já
naturalizados e esvaziados das pesquisas voltadas à educação e aos infantis.
Embora nos pareça que estamos diante do fim de um ciclo de hegemonia de
certa ordem científica, onde se vislumbram diferentes possibilidades de
pesquisa, ainda hoje é preciso reiterar e reforçar aberturas e campos tangíveis,
pois o que ainda qualifica uma pesquisa e a diferencia das demais, é sua
possibilidade de definir e explicar a realidade de modo assertivo e, muitas vezes,
definitivo.
Percebe-se a possibilidade e necessidade de um questionamento
continuo das ações realizadas nos processos tanto de pesquisa quanto de
educação e a necessidade de abrir espaço para um caminho metodológico onde
seja possível não mais alcançar a universalidade, a verdade, apreender a
realidade tal como ela é. Essa abertura para o incerto como resposta, para o
movimento como caminho e para as incertezas como possibilidade é o que
promove a potência de lidar com diferentes ferramentas no trato com o real e
com as relações que circundam os objetos de pesquisa. Nesse sentido, tomamos
a produção da própria tese como caminho metodológico, tendo em Barthes o
interlocutor capaz de possibilitar essa ação teórica, tendo em vista sua
compreensão sobre o que seja texto, quando afirma que:
“Cada método é uma linguagem, e a realidade responde na língua em
que foi perguntada”. Então, é possível tomar o texto e sua produção como campo
metodológico capaz de direcionar o itinerário que irá gerar a inter-relação com o
objeto. Nesse sentido, toma-se o ato de pesquisa como ato criativo e produtor
de conhecimento científico. Ir à campo se materializa na ida ao encontro da
produção textual, discursiva, escritiva desta tese enquanto processo criativo,
conceitual, individuante e produtor de conhecimento, tendo a compreensão de
que a concepção da vida e do mundo perpassa o processo de criação do
humano.
8 - O trato com o objeto
Objeto, palavra rígida com a qual lidamos num processo de pesquisa.
Palavra que, ao invés de impulsionar o nosso desejo de conhecer, criando em
nós uma potência, uma vontade, não raro imobiliza nosso pensar porque não se
refere ao movimento desejante do pesquisador, mas principalmente ao que cabe
no meio acadêmico. Para além das relações com os afetos e o desejo, o que
resta do objeto? Talvez sua necessidade de apresentar não só relevância, mas
também exata delimitação, dando-lhe um corpo preso aos protocolos normativos
que definem o que seja ou não uma pesquisa, o que seja ou não relevante para
o conhecimento construído pela humanidade.
Quando o termo objeto é utilizado como aquilo que se contrapõe ao
sujeito, vamos de encontro às ideias de Deleuze, visto que denota um
enquadramento coercitivo de representação. Identificar o objeto, dar-lhe
identidade, caminha a passos largos para a negligência das diferenças puras (e
rebeldes) no ato de pensar conceitualmente, filosofar, pesquisar. Para esta
pesquisa, no entanto, o termo recebe uma nuance diferenciada. Embora exista
a decisão de manter a palavra que o conceitua no sentido de identificar qual o
foco de pesquisa e com o que estamos lidando, seus atributos o aproximam de
um dispositivo, ou seja, o objeto é compreendido como um elemento do real que
impulsiona o pensar da pesquisa e não se define em si, mas abrange as forças
que também estão presentes e tornam-lhe outra coisa que não aquilo que era.
Desemaranhar as linhas de um dispositivo é, em cada caso, traçar um mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas, é o que Foucault chama de ‘trabalho de terreno’. É preciso instalarmo-nos sobre as próprias linhas, que não se contentam apenas em compor um dispositivo, mas atravessam-no, arrastam-no, de norte a sul, de leste a oeste ou em diagonal. (DELEUZE, 1990, p.155)
Para Foucault, ainda,
O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles.” (FOUCAULT, 1979, p. 246).
Desta forma, ao tomarmos a palavra objeto no sentido de um dispositivo,
retiramos de suas características a pretensão representacional e universal e
indicamos não mais uma essência que caracteriza e determina a coisa, mas
impulsiona e explicita um circuito de conexões (in)visíveis que compõem e
servem de instrumento para lidar com a realidade. “Toda criação é singular e o
conceito, como criação propriamente filosófica, é sempre uma singularidade. O
principio da filosofia é que os Universais não explicam nada, eles próprios de
vem ser explicados” (1992, p.13), afirmam Deleuze e Guatarri.
Nesta perspectiva, a realidade não é retratada, representada, apreendida
no ato de conhecer o objeto, mas captadas em suas nuances, sombras,
(des)limites, quando sintonizamos em determinada faixa teóricas que nos
permitem acessar o real. Real e realidade, possuem, então, sentidos específicos.
A realidade está relacionada com aquilo que não se pode apreender, embora
tenha em si um ar de objetividade:
A história (o discurso histórico: historia rerum gestarum) é, na verdade, o modelo dessas narrativas que admitem preencher os interstícios de suas funções com notações estruturalmente supérfluas, e é lógico que o realismo literário tenha sido, com algumas décadas de diferença, contemporâneo do reinado da “história objetiva” (BARTHES, 2004, p. 40).
No entanto,
A realidade, apreendida pelo viés da imanência e da exterioridade, é, sobretudo, uma reunião de linhas subjetivas e sociais, de natureza e de cultura. Essa não separação é possível porque, nessa perspectiva, tudo é atravessado por segmentaridades molares e desterritorializações moleculares, por planos, superfícies sobrepostas, que deslizam o tempo todo, processualmente. Os fluxos da vida são ora mutantes e conectivos, ora codificados e reterritorializados, não pertencendo a um indivíduo ou a determinado grupo social (ROMAGNOLI, 2009, p.171)
O real está no plano do vivido, mundo no qual texto, leitor e escritor se
encontram. Não pode ser representado porque ao ser vivenciado, imaginado,
ficcionalizado, fabulado, torna-se novo real:
Desde os tempos antigos até as tentativas de vanguarda, a literatura se afaina na representação de alguma coisa. O quê? Direi brutalmente: o real. O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura. Que o real não seja representável – mas somente demonstrável – pode ser dito de vários modos: quer o definamos, como Lacan, como o impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao discurso, quer se verifique em termos topológicos, que não se pode
fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem). Ora, é precisamente a essa impossibilidade topológica que a literatura não quer, nunca quer render-se. Que não haja paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz, numa faina incessante, a literatura (BARTHES, 2004a, p. 22-23).
Nesse sentido, a metodologia, tomada como método de uma pesquisa,
proporciona um acesso específico, um modo determinado de tratar o objeto e
oferece uma oportunidade distinta de transitar por caminhos profundos. Por meio
dele não deslumbramos com propriedade para onde estamos nos deslocando -
mesmo que previamente tenhamos planejado e estruturado este caminho – bem
como não se inspeciona uma resposta, mas se organiza um modo de
pensamento que irá corroborar no sentido de enfrentamento do problema
apresentado em relação à vida. Eis porque torna-se importante nesse processo
de pesquisa retomar a imanência dos conceitos. Seu formato e organização
validam a composição dos elementos que, dentro de determinado arranjo que
lhe regulam e regulamentam, oferecem um específico e pontual ângulo de
percepção sobre aquilo que encontramos tanto nos dados levantados na
pesquisa quanto nos estudos relacionados com essa temática, em geral. Cada
pesquisador tem seu plano de imanência a partir do qual lida e experimenta os
problemas científicos, a partir do qual organiza, promove e arranja os elementos
dentro de uma composição que lhe permite o enfrentamento de tais problemas.
Nesse modo de lidar com o conhecimento, os problemas acabam tomando maior
importância que suas soluções, tendo em vista que servem como propulsores do
pensar.
INTERMEZZO
Embora Deleuze e Guatarri tenham disponibilizado, de certo modo, um
caminho metodológico por meio daquilo que se intitulou método cartográfico, nos
inspiramos nele, mas não nos apropriamos necessariamente dele para trilhar
nosso itinerário, pois nem sempre o modo se adapta aos modelos e métodos. A
cartografia apresenta-se como possibilidade de organizar a investigação no
sentido de inserir não só as verdades, não só as condições objetivas do trato
com o objeto, mas também sua complexidade, sua zona de indeterminação, a
composição de forças que se dispõe frente ao objeto. Eis nossa aproximação.
Como qualquer possibilidade de método ou metodologia, a cartografia é
portadora de certa concepção de mundo e de subjetividade, nela cabem os
saberes que não advém do meio científico e favorece, como afirma Romagnoli
(2009, p. 169-170),
A revisão de concepções hegemônicas e dicotômicas. Nessa proposta, o papel do pesquisador é central, uma vez que a produção de conhecimento se dá a partir das percepções, sensações e afetos vividos no encontro com seu campo, seu estudo, que não é neutro, nem isento de interferências e, tampouco, é centrado nos significados atribuídos por ele”.
No entanto, como a mesma autora aponta (ROMAGNOLI,2009, p. 172), a
cartografia, como a vida, contém riscos. Entre eles, empregá-la
como um modelo, um padrão a ser seguido, usado em obediência à nossa formação dentro do paradigma moderno, fórmula que se afasta sinistramente do que esta propõe: a ousadia de rastrear a heterogeneidade, a complexidade. Nesse sentido, operaria para a reprodução e não para a criação, estancando a circulação da vida, operando cortes e recortes no processo de pesquisa, organizando de forma fascista o objeto de estudo e desqualificando de maneira
transcendente outras formas de pesquisar.
Outro risco na utilização desse método está na produção de trabalhos sem
fundamentação teórica, encadeamento de ideias que dificultam a compreensão
e mesmo um conjunto de saberes que não dialogam entre si. Pesquisa de tipo
algum. Pesquisa sem imagem do que é pesquisa. Deleuze contribui para essa
reflexão quando nos oferece a possibilidade de substituição de uma imagem do
pensamento por um pensamento sem imagem. Vem à tona a questão da
desterritorialização nos métodos de pesquisa. O que está fixo em seu território
não tem possibilidade de movimento, de dança. Desterritorizar é abrir mão do
caminho seguro, metodológico, capaz de forjar um pensamento sem imagem.
Ainda que sejamos a favor deste movimento nas pesquisas em educação
e em literatura, na lida com infantis, percebo que este caminho é tomado em
muitas pesquisas como “uma espécie de tecnologia de reconsideração das
significações dominantes” (Guattari, 1988, p. 175) dos nossos modos lógico-
lineares de fazer pesquisa. Toma-se o método como mais uma “metodologia”
que compõe as possibilidades de procedimentos metodológicos. A cartografia
desaloja certezas e permite deslocamento do estatuto de pensamento no ato de
pesquisar, desde que não utilizada com a fixidez metodológica domante e
dominante.
Nesse sentido, inspiro-me nas ideias deleuzeanas para repensar os
métodos de pesquisa, questiono o fixo no objeto, e permito que meu texto seja
permeado pela vontade de viver, por durações e intensidades que se mobilizam
em favor da vida. Permito que minha criação faça parte do método que utilizo,
método este que varia “com cada autor” e “faz parte da obra” (Deleuze; Guattari,
1997b). Ao escrever sou sugestionada, de certo modo, pelo cinema de poesia,
em que o verdadeiro protagonista é o estilo e onde o uso particular da linguagem
visual do cinema, tomado como arte, cine-olho, permite utilizar-se de frases e
autores para produzir visualidades, imagens, sem necessariamente referenciá-
las. Como uma conversa de saberes comuns onde as citações estão
subentendidas, convocá-las informalmente está para o estilo, formador do
discurso. Um ritmo visual que dá corpo, na mesma medida, robusto e
intencionalmente vago, para a produção estética. Fluidez.
Então, retomo a postura filosófica de Deleuze, que organizava e produzia
aproximações e inter-relações entre o plano de imanência a ser traçado, os
sujeitos e os conceitos criados. Mapeio o território que pretendo acessar sem
deixar de considerar as múltiplas possibilidades de desvio e tangências, de
derivar por experiências rizomáticas e não previstas, de me deixar impulsionar
por outros campos, do sensível, das ações, dos modos de pensar. Nesse
sentido, organizo um guia, aberto, que permite a presença de forças e vontades,
considerando três pontos centrais para pensar os dados que busco para realizar
o presente estudo:
Inspiração visual - esse panorama e os rastros e imagens espalhadas pelo
texto dão visualidade (dados visuais) às problematizações. Imagem-texto. Os
panoramas, os rastros e imagens sobre o desenho infantil abordados em
discussões acadêmicas pertinentes no Brasil na última década, e enfatiza aquilo
que se tornou fundamental no processo de acessar o ângulo especifico de
percepção teórica, ao qual se pretende destacar nessa busca por compreender,
apreender e encantar-se com o objeto. Juntamente, as memórias das
experiências vividas pela pesquisadora ao longo do seu processo formativo,
tendo em vista que a ficcionalidade que a pesquisa interpela permitem uma
abertura para uma narrativa de memória, que tem como alicerce a ideia de que
a concepção individual que o narrador-pesquisador possui a respeito das
experiências que viveu ou testemunhou disponibilizam material, corpo e
concretude suficientes para revestir o fato com o recorte que apresenta sua visão
singular e individual perante os mesmos. As experiências apresentadas por um
pesquisador estão para a vida. Não são autorretratos, mas impulsionam a
criação de um rosto anti-forma disforme-informe, que evidencia formas de
retratar o visto sem higienizá-lo ou esterilizá-lo em dados oficiais, sem desfazer-
se de suas dobras infinitas, que se borram e se transformam. Memórias narradas
como invenção da vida.
Ao pensar a arquitetura da pesquisa, arcabouço teórico, recorte e
intenções, evidenciou-se que os rastros do processo formativo influenciam
ativamente minhas escolhas, bem como a experiência, continuamente
ressignificada, das vivências pessoais e culturais, do ato de ser professora e
conduzir o cotidiano diretamente com as crianças, nas relações educativas, no
afetar dos corpos.
O procedimento adotado nesta pesquisa, no entanto, intenta revisitar os
restos pessoais não para ilustrar, mas para produzir texto, compondo essa malha
de sentidos e afetos. Os rastros, na tese, são apresentados ora por narrativas
ora por imagens, que geraram marcas em meu processo formativo, capazes de
tornarem-se impressões em minha existência, marcarem-me na constituição do
meu “eu” professora e pesquisadora.
A retomada dos conceitos naturalizados que são utilizados atualmente na
área cuja temática se apresenta e se questiona, para que se revitalize as
compreensões sobre o objeto no sentido de enfatizar o terreno movediço onde
se assentam os conceitos, dinâmica necessária aos encontros nômades, às
escritas nômades, concebidas com certo ritmo, música, dança (conforme uma
didática musical). A compreensão de que os conceitos se condensam pelo lugar
que ocupam não só na história, mas principalmente no plano de imanência, e se
caracterizam pelas condições que marcam um momento (apreensão do tempo
que dá carne à experiência) pela sua endo e exo-consistência, tendo como seu
diferenciador a compreensão de que conceito é acontecimento e não essência.
Esses dois grupos de elementos citados constituem os dados que dão
corpo à pesquisa e que serão analisados, impulsionados, dançados à luz da
filosofia da diferença, com foco no processo de criação dos infantis. Promover
um diálogo entre áreas capaz de pensar sobre o desenho como um lócus
expressivo para o processo de criação e ficção dos infantis seria então, o fio
condutor, o direcionamento do projéctil teórico aqui lançado. Aonde esse
lançamento chega? Qual sua abrangência, alcance, potência? O que posso
quando relaciono outras áreas para o diálogo com a educação dos infantis? São
respostas que não pretendo necessariamente acessar, pois o processo e o
movimento existente nessa ação é capaz de mobilizar a ação de aprender,
imaginar, produzir conhecimento.
Uma das coisas mais fascinantes e mais difíceis de fazer na pesquisa em educação talvez seja, mesmo, multiplicar as formas de conexão, de linguagens, de abordagens. Subtrair, de um conjunto dado, a unidade que o totaliza, aquilo que vem territorializando as forças que movimentam seu campo de investigação e a própria pesquisa em educação. Pôr em xeque o fora e o dentro de um território, desmarcar as relações de propriedade e apropriação de um objeto de estudo com o qual podemos fazer este ou aquele tipo de pesquisa (OLIVEIRA & PARAÍSO, 2012, p. 163)
Nesse sentido, outras questões, objetivos, linhas desalinhadas, se
apresentam como fundamentais para impelir a pesquisa que realizo, linhas que
conduzem aceitando o sinuoso, o terreno acidentado do real, o desvio. Dentre
elas, ressalto como possibilidade:
1) Investigar a viabilidade de tomar a diferença como potência ontológica do
ser e seu processo de individuação como um modo de guiar o a ação
pedagógica do professor no ato de educar os infantis;
2) Averiguar a contingência de tomar a escrita da tese e a possibilidade de
diálogo com diferentes imagens (visuais, literárias, de experiências
vividas) como um caminhar metodológico possível;
3) Revisitar conceitos e experiências que permitam aprofundar os sentidos
advindos de concepções naturalizadas nas pesquisas sobre infância e
literatura no que se refere ao conceito de infância, texto, desenho e
criação;
4) Obter os dados que permitam visualizar um quadro de pesquisas
brasileiras sobre o desenho infantil nos últimos dez anos e observar os
espaços ausentes que as pesquisas oferecem para o desenho infantil;
5) Discutir a relevância do desenho infantil para além de suas bases
psicológicas, no cotidiano educativo e na teoria literária, tomando pela
ação de conhecer o processo de criação, a possibilidade de ficção pelo
infantil e o papel do professor frente a esse processo como fio condutor.
PARTE 2 – TRATATIVAS
O que então se discutia (...) era a inadequação e o deslocamento das grandes teorias e o gato de toda tentativa de ordenação ser vista hoje com desconfiança. Em termos algo distintos, Carlo
Ginzburg já expressara esse dilema – “assumir um estatuto rigoroso para chegar a resultados pobres
ou manter a inquietação teórica e mergulhar no imprevisível”. Por conta disso, muitas vezes a
solução adotada pela maior parte dos estudiosos é a submissão passiva a um ‘ismo’ qualquer, a um
sistema ordenado (e legitimado) de explicação do real. (QUEIROZ apud GUIMARÃES, 1996, p.7)
Segundo a mitologia grega Tântalo era o rei da Frígia, também denominada Lídia. (...) Conta o
mito que certa vez, na intenção de desafiar a onisciência dos deuses, Tântalo resolveu roubar
um pouco dos seus manjares divinos, visto que ele era sempre convidado a partilhar a mesa com os
deuses, já que era tão querido por eles. Alimentou-se do néctar e da ambrosia roubados e julgou-se uma divindade, desta maneira convidou
os desses para banquetar. Tântalo decidiu fazer uma oferenda nada
tradicional. Para isso ele esquartejou o seu filho Pélops e o serviu no banquete.
(...) Irados os deuses decidiram lançar Tântalo ao Tártaro. Mergulharam-no até o pescoço e deram a
ele o castigo eterno de não poder alimentar-se nem matar a sua sede, mesmo rodeada de muita
água e vegetação. (...) O Suplício de Tântalo se refere a aflição
sofrida por aquele que deseja algo que parece estar ao seu alcance, porém inalcançável.
(www.mitologiagrega.net)
Tratar possui três significados interessantes e complementares. Um é o modo como trata do
objeto, o acabamento que dou à ele. O outro é a ideia de tratar no sentido de nutrir, alimentar -
fortifico o meu objeto de alguma forma. E o terceiro, trata de concessão, de “fazer um trato”, eu dou de mim e recebo do outro, dou de mim e
recebo do objeto.
1 - Rastros
Há o desejo que esta tese contribua para pensar o cotidiano
institucionalizado como construto para as potências infantis, para o devir-criança,
devir-infância e seus processos de criação. Optei por um caminho teórico-
metodológico que pudesse relacionar também, as forças que geraram e nutriram
meus afetos, que causaram impressões, como sulcos rasgados no corpo pelas
experiências. Essas marcas tornam-se dispositivos capazes de permitir a
ampliação do imaginário, das forças e potência de vida. O que me afeta e gera
em mim uma demanda de desejo capaz de me mobilizar frente ao processo
educativo dos infantis? Frente a esta pesquisa e produção escrita da tese?
Para Espinosa, afeto está para além do que o senso comum toma como
sinônimo de carinho: é o que nos afeta, causa em nós uma demanda, resulta
das nossas interações, tendo como efeito uma marca.
Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua
potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada,
e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecçães. Explicação. Assim,
quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas
afecções, por afeto compreendo, então, uma ação; em caso
contrário, uma paixão. (SPINOZA, 2009, 98)
Nesse sentido, a interação com pessoas, ambientes e objetos gera marcas,
efeitos, impressões que constituem um “eu” em processo de individuação (os afetos
são, ao mesmo tempo, sentimento e marca que acompanham e constituem o
“eu”). Cabe ressaltar a diferença entre afeto e afecção, tendo em vista que afeto
é grau de intensidade e afecção poderia ser compreendida como a passagem
de um estado a outro, devir, porquanto, vir-a-ser. Ao sentir fome sou tocado por
um afeto, mas, a partir do momento que passo a comer, meus afetos se
modificam, transmutam-se em passagens contínuas em meu corpo e se tornam
afecções. Espinosa permite uma redescoberta do corpo quando o relaciona
como materialidade capaz de afetar-se. Nesse sentido, os infantis têm
conquistado seu corpo por meio do seu próprio corpo e seus traços, pelo
movimento dele. Para Barthes o desenho é uma extensão do corpo: a ação
sensual dos dedos com o papel. Ação que deixa traço porque deixa rastro.
Figura 23- Joana Corona (2013) Biblioteca de resquícios. Fonte: https://joanacorona.wordpress.com/
Os rastros se constituem (e se originam) também por outros rastros,
outros corpos que são entrecruzados, entrecortados. Meus rastros indicavam
sua importância para a escrita, pois as experiências por mim vivenciadas, ao
longo da trajetória acadêmica e das escolhas pessoais, geraram afetos, marcas,
desenhos, que direcionaram os caminhos como pesquisadora na busca desta
lacuna específica de conhecimento acerca dos desenhos realizados por infantis.
Emergia a necessidade de deixar transparecer os vestígios pessoais, desejos e
escolhas, que me afetaram e, por isso, levaram a pensar o desenho infantil em
uma área pouco acessada para este fim: a literatura.
Figura 24- Rastros luminosos. Fonte: https://college.canon.com.br/tutoriais/fotografando-rastros-luminosos-55
Mas, para pensar esse rastro e transformá-lo em dado de pesquisa, como
presença-ausente que é, é preciso desobrigar-se dos sistemas conceituais
baseados nas dicotomias, ou isto ou aquilo. Não pertence ao sistema metafisico,
teológico ou teleológico o conceito de rastro porque ele é, primeiramente
movimento: um movimento tanto da diferença quanto da differance16. O rastro,
ao mesmo tempo que anuncia, difere. Ao mesmo tempo que é presença, é
ausência. Ao mesmo tempo que indica a impossibilidade de origem também
aponta a impossibilidade de fechamento: rastro é sempre devir, rastro é pura
differance.
A escrita foi tecida sobre bons e maus encontros (Espinosa), restos
formativos, gestos, que fizeram pulsar a importância dos afetos no processo
criativo e dos rastros que nos constituem. Que rastro as ações pedagógicas das
16 Différance, termo criado por Jacques Derrida, (com ‘a’ no lugar de ‘e’) é um neologismo extraído da palavra francesa différence. O termo traz a diferença a seu lugar devido na linguagem, à radicalidade de seu sentido. A différance deve significar diferencialidade anterior a toda diferença constituída, determinada. Derrida usa pela primeira vez o termo différance no seu texto de 1963 Cogito et histoire de la folie. Ou seja, a differance trata de toda determinação de conteúdo, do movimento puro que produz a diferença, sua condição.
professoras deixam no desenho dos (e nos) infantis? Que rastros encontro em
minha vida pessoal que não são meras ilustrações biográficas?
As características desses rastros pessoais não se limitam a um cunho
meramente biográfico porque são alteritárias, não tratam de um registro pessoal,
apenas, mas de uma possibilidade de compreender o afetar-se humano, sua
afetividade, como uma expressão particular da potência global da natureza - já
que, para Espinosa, as relações que compõem o homem não se distinguem das
leis da natureza, ao contrário, formam um único plano de imanência.
A arte esteve pouco presente em minha trajetória acadêmica. Uma única disciplina (Metodologia e ensino de Artes) foi oferecida nos 4 anos de Pedagogia cursados em Florianópolis (UFSC). A professora buscava oportunizar algumas experiências práticas para as alunas e, entre essas propostas, uma foi a pintura em papel kraft e guache de uma árvore. Era um trabalho simples, realizado em grupo, tentei firmar minhas ideias: a árvore teria um único galho, vertical, nele, uma fruta azul. Os 6 grupos apresentaram suas árvores, todas diferentes, umas tecnicamente bem executadas, outras com suas heranças estereotipadas. O fato foi que a árvore do meu grupo se destacou. Não pela beleza, técnica ou pela expressividade. Mas porque era algo novo, diferente do esperado. Passei a buscar o inesperado em qualquer atividade artística que precisava realizar. Inclusive depois, já como professora infantil, o não-óbvio acabava guiando meu planejamento. O que me parecia isso? Não foi o diferente que chamou atenção (se a diferença é do humano, é esperado que os trabalhos sejam diferentes), mas o novo. O inesperado. Aquilo que chamamos de criativo. – Repositório de Reminiscências, 2003
A ênfase ao novo, ao diferente, vivenciada por mim no processo de
desenhar uma árvore avigorou uma característica pessoal que, pelas
impressões causadas com a experiência vivida, reforçaram orgânica, formal e
plasticamente as impressões em mim causadas. A experiência teve como efeito
um conhecimento potencial sobre o processo criativo: a busca por aquilo que
constitui o novo, o incriado, o que ainda-não-existente. Nesse sentido, entende-
se que o conhecimento, enquanto resultado de uma ação racional, nunca é
independente à experiência afetiva. Para Espinosa em seu geométrico texto
sobre a ética, não há como fazer distinção entre razão e afeto porque não há
oposição entre eles (apenas entre atividade e passividade). Corpo e mente não
se distinguem porque são produzidos pela mesma substância, necessitam-se.
“A mente humana não conhece o próprio corpo humano e não sabe que ele
existe senão por meio das ideias das afecções pelas quais o corpo é afetado”
(Prop. 19, p.113).
Larrosa corrobora essa reflexão ao alegar que “a informação não é
experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é
quase o contrário da experiência, quase um antiexperiência” (2002, p.21). Ideia
reforçada por Deleuze quando propõe a imagem do sujeito que aprende a nadar:
por mais que tenha a informação advinda do professor referente às técnicas e
métodos, o aprendizado só acontece quando o corpo se encontra com a água e
o sujeito passa a experienciar seu corpo no ato de habitar esse outro elemento
que é o meio aquático, e o modo como seu corpo se relaciona com ele, é afetado.
Não basta dizer que existem múltiplas maneiras de produzir visualmente uma
árvore ou qualquer elemento visual. É preciso lidar com a produção de tal
visualidade, perceber que potências existem em seu corpo e como ele é afetado
no ato de produzir uma imagem.
A relação entre corpo e mente me leva à Marc Quinn e sua série de
esculturas intituladas Self.
A partir de 4,5 litros do seu
próprio sangue congelado
o artista visual inglês
esculpiu seu busto. A
quantidade de sangue
que temos no corpo é
exatamente 4,5 litros, o
que obrigou o artista a
coletar pequenas
quantidades ao longo de 5
meses para alcançar o
montante necessário na
realização da obra. A
escultura, até hoje
mantida em um cubo
transparente e
refrigerado, possui como
intuito registrar a passagem
do tempo e a própria
fragilidade humana. Permite
Figura 5 Marc Quinn, "Self" ("Auto"), de 1991.
Fonte: http://www.pristina.org/arte/esculturas-de-sangue-marc-quinn/#.W86MPWhKjIU
também uma abertura para pensar o quanto ainda se enfatiza os processos
mentais na cultura ocidental. Toda a energia vital representada pelo sangue
estaria concentrada no suporte para o cérebro: a cabeça, enquanto o restante
do corpo é descartado, ignorado, domado, desconsiderado, retirado do processo
educativo. Sua seiva roubada. O ensino tradicional17, valorizador dos processos
racionais e cartesianos, suprime aquilo que gera afecção aos corpos. O sentir e
o deixar-se afetar são considerados elementos que corrompem e distorcem
qualitativamente a cientificidade educativa, por isso, mais uma vez, a
necessidade de domar os corpos e concentrar o sangue nos processos
psicológicos. Saber, nesse sentido, seria o oposto de sentir. Experienciar no
corpo o conhecimento caberia apenas como ilustração das informações
transmitidas, essas sim, com importância intelectual e científica.
17 Embora a discussão acerca das limitações educativas do ensino tradicional já tenham sido feitas e academicamente seu método seja considerado “superado”, reforço essa discussão porque permanece atrelado a ele, ainda hoje, um status do “ensino forte” e rigoroso. As grandes escolas ou aquelas voltadas para a classe alta se pautam nessa modalidade de ensino, bem como algumas instituições que utilizam seus métodos sob nova roupagem. Esse fato se dá, inclusive, na educação infantil, onde apostilas e exercícios de repetição embasam as ações pedagógicas e reforçam seus alicerces no sentido de instituir o ensino diretivo como potencializador da educação e as informações e transmissão de conhecimento como o caminho para uma educação que oferece “resultados”.
2 - Rastros e Afetos
Concordo com Espinoza e Deleuze por indicarem que, como os afetos
não são necessariamente sinônimos para as paixões, eles não são negativos ao
pensamento e produção de conhecimento. Os afetos e seus rastros adentram o
corpo da tese trazendo exterioridade, desfazendo o dentro e o fora tornando a
prática dos afetos uma possibilidade de relacionar experiências, teoria e objeto.
A importância do rastro está em sua potência como passagem do âmbito objetivo
para o âmbito (inter)subjetivo da experiência pelas conexões não-lineares, mas
proliferantes, degustantes, as quais chamamos de afetos.
Os rastros da pesquisadora afirmam a condição associativa entre o si-
mesmo, o que é seu, as experiências humanas e sua abstração: uma
combinação entre “rastros” teóricos infra-estruturais para o conhecimento e
restos vividos, um subjetivo aparentemente des-necessário neste cenário, mas
que torna-se indispensável à articulação e ao fortalecimento das infra-estruturas.
Deleuze e Guattari (2004) indicam uma possibilidade para compreender a
importância dos rastros quando apontam para escritas biográficas que relatam
apenas um vivido:
Muitas pessoas pensam que se pode fazer um romance com suas percepções e suas afecções, suas lembranças ou seus arquivos, suas viagens e seus fantasmas, seus filhos e seus pais, os personagens interessantes que pôde encontrar e, sobretudo, o personagem interessante que é forçosamente ele mesmo (quem não o é?), enfim suas opiniões para soldar o todo (p.221).
Mas para que um registro meramente privado-biográfico (Bakhtin, 2003)
torne-se uma obra, é preciso ir para além do plano pessoal e compreender esse
conjunto de condições articuladas com o externo metaestável, como um
dispositivo gerador de potências individuantes. Sendo um dispositivo, também
é uma linha de fuga. Escapa às linhas anteriores, escapa-lhes. O si-mesmo não é nem um saber nem um poder. É um processo de individuação que diz respeito a grupos ou pessoas, que escapa tanto às forças estabelecidas como aos saberes constituídos: uma espécie de mais-valia” (DELEUZE, 1990, p. 158).
Ou seja, os rastros que apresento no texto não falam apenas de mim, mas
de um processo de individuação vivido em um coletivo, um sócius, capaz de dar
indicativos sobre os processos de criação e individuação humana,
consequentemente, dos infantis. No entanto é preciso compreender que os
rastros que compõe uma obra que trata da subjetividade não são feitos de
percepções e afecções, e sim de perceptos e afectos. Para fazer essa
diferenciação, Deleuze fala a respeito da Arte, clarificando que
O objetivo da arte, com os meios do material, é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro. Extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensações. (idem, p. 217)
Isto é, apontam para a passagem do pessoal ao impessoal, de um
apagamento das origens. Os rastros não são de cunho individual ou biográfico
porque não trazem uma experiência específica de um alguém (a vida de alguém
nunca interessa), mas de ninguém, isto é, da vida impessoal e comum a todas
as vidas privadas. Captura-se não o pássaro, mas seu vôo. Decorre daí o
interesse em marcar o texto com meus restos sem deixar a fraqueza constitutiva
do discurso biográfico resumir as experiências citadas. De que modo voam os
pássaros? Que pontos finalizam seus vôos?
Quando a pulsão individuante não encontra uma estabilidade possível em
sua saturação, ela precisa, de algum modo ser descarregada. No entanto, nem
todo estímulo acessado em nossas experiências ressoam de um modo que sua
intensidade seja compreendida. Quando uma experiência nos toca sem que
tenhamos a possibilidade de compreendê-la por meio da linguagem, então a
chamamos de impressão, um projeto de imagem que não teve possibilidade de
se consolidar enquanto materialidade discursiva.
Nesse sentido, os rastros podem se tornar mapas de estratégias
discursivas que me permitem acessar impressões e, de certo modo, lidar com
meus significantes, produzidos não sem relação com o sócius do qual me sinto
parte. Traço e rastro podem ser confundidos. Sem entendê-los como um
dualismo, enfatizo que os rastros indicam uma abertura para a exterioridade,
para o outro, para as múltiplas possibilidades de olhar, desejar, conhecer.
O traço pode ser o elemento central ao desenho, mas ele só sobrevive
porque há uma impressão, uma marcação que permite tal materialização. Os
desenhos vividos - traços - em meu processo formativo, artístico e cultural,
sugeriram os caminhos desta tese. As experiências e afetos guiaram o tricotar
deste emaranhado de linhas que constitui a vida, e a individuação dos sujeitos.
Dar existência, gerar, originar um texto, um discurso, é expor meus afetos,
trajetória, vestígios, lugar de fala. É expressar-se por um singular e individuante
modo de olhar e de fazer ver.
Os rastros nem sempre são bem-vindos, costumam mesmo ser apagados,
porque suas sobras e dobras, tornam-se um excesso que não se acomoda à
formalidade, à forma acadêmica, ao formalismo. É preciso neutralizar, higienizar
esses vestígios como uma reminiscência de peles ou pêlos que não possuem
função num corpo. Como foi dito anteriormente, a infância, o cotidiano e o
desenho dos infantis indicaram meus caminhos como pesquisadora, no entanto,
experiências pessoais também se fizeram fundantes nas minhas escolhas e
processo formativo.
A memória mais remota dos meus caminhos pela arte:
Chego satisfeita da vídeo-locadora abraçada à fita que minha mãe havia deixado eu escolher sozinha. Na capa uma cena de ballet. O que motivou a escolha? Deixei afetar-me pelo nome da apresentação: Giselle. Com 4 anos assisti a apresentação deste Ballet na sala de casa: uma história contada com o corpo sobre alguém que possuía aquilo que eu conhecia de mais individuante naquele momento: meu nome.
Quando iniciei o doutorado, recebi como lembrança de uma amiga, o folder da apresentação de ballet assistida em uma de suas viagens: Giselle.
Revisitei lugares do passado e percebi o quanto esta experiência artística havia me tocado profundamente, tatuado meu corpo e rasgado meu caminho, deixando como herança seus des-pedaços de potência. O ballet que inspirou meu nome foi experienciado com encantamento pela primeira vez na infância, esquecido nas entrelinhas da memória, reencontrado pelo folder ilustrado e novamente acessado: Agora, a própria filha de 3 anos, demonstra interesse em assistir o Ballet que tem o nome da mamãe. Assisto Giselle na sala, ao lado da filha. Encantadas. – Repositório de Reminiscencias, 2016.
Figura 25- Ballet Giselle. Fonte: http://www.mundobailarinistico.com.br/2013/11/giselle.html
Mãe e doutoranda, encontro em Blanchot inspiração para perceber que o
encantamento também está em encantar-se com o encantamento do outro. A
arte em suas múltiplas possibilidades linguísticas, viabiliza o jogo de fascinação.
Não há indivíduo que não esteja/seja constantemente uma relação com a alteridade, não há mente que não seja/esteja em constante relação com os outros. Muito pelo contrário, a capacidade simultânea de afetar e ser afetado está neste encontro constante entre interno e externo, e nele e por ele é construída a ampliação desta rede complexa produzindo novas complexidades, mais e mais relações, no mesmo indivíduo, isto é, quanto mais múltiplas e variadas forem as relações intra e extra-corporais, mais maneiras variadas este corpo terá ao seu dispor para dispor-se e com isso a manter sua proporção de movimento-repouso dos mais variados modos. Eis porque Espinosa não associa diretamente o afetar à atividade, nem associa diretamente a passividade ao ser afetado, pois um corpo/mente amplia suas relações internas e externas justamente por ser afetado e afetar, e disto decorre que pode ser tanto mais apto a ampliar sua potência que, por sua vez, determinaria o poder de ser causa completa ou não parcial de seus efeitos, isto é, ser ativo ou passivo. (ITOKAZU, 2008, pp. 91-92)
Operar com (e além) do rastro, utilizar-se dos vestígios das forças ativas
e reativas que guiam nosso processo de criar, rebentar um texto, um desenho,
um sentido. Desenhar a tese: mais do que pensar naquilo que se considera ideal
para uma pesquisa (geralmente baseadas em questões histórico-metafísicas de
identidade e pertencimento), têm-se que a relação entre afetos, pessoas, forças,
teorias, teoremas, fórmulas se fortalecem pelas inter-relações, como nós
reforçados com a des-limitação das manipulações e solicitações possíveis por
parte daquele que acessa o rastro.
Devido às linhas de visibilidade, de enunciação, de força que possuem os
rastros, vistos serem dispositivos para acessar o processo de criação, é
importante salientar que eles não são universais, tendo em vista que o universal
é, aqui, o que deve ser explicado e não a base que fundamenta as explicações.
Para Deleuze, ao explicar um dispositivo,
o Uno, o Todo, o Verdadeiro, o objeto, o sujeito, não são universais, mas processos singulares, de unificação, de totalização, de verificação, de objetivação, de subjetivação, processos imanentes a um dado dispositivo. E cada dispositivo é uma multiplicidade na qual esses processos operam em devir, distintos dos que operam em outro dispositivo” (1990, p. 159).
Os rastros podem, assim, suscitar sua própria banalização caso não se
considere o fato de que as relações vivenciadas são movimentos para a
produção da diferença. Este é, pela base teórica selecionada, o rastro que
persigo no processo educativo com os infantis: rastros como potências capazes
de deter a novidade, a criatividade, o inventado. Ao mesmo tempo em que
indicam as marcas do novo, possuem força criativa para se redobrarem ou
mesmo se fissurarem, em proveito de outra vivência, experiência, outro rastro.
Vestígios de rastros.
3 – Vestígios de pesquisa
O cenário onde atuam as pesquisas brasileiras sobre o desenho infantil,
educação e literatura foi organizado de modo a dar visibilidade às características
e relações priorizadas pelos pesquisadores no período de 2006 a 2016,
continuidade do levantamento realizado na dissertação de mestrado (DAY,
2008), que datava os trabalhos entre 1995 e 2005. A catalogação destes
trabalhos foi elaborada a partir da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertações (BDTD) “que integra os sistemas de informação de teses e
dissertações existentes nas instituições de ensino e pesquisa do Brasil, e
também estimula o registro e a publicação de teses e dissertações em meio
eletrônico.” através do acesso ao banco de dados, onde foi possível encontrar
os títulos com um conjunto de informações gerais da produção e seus
respectivos resumos. Embora os resumos não sejam suficientes para discutir os
dados apresentados numa pesquisa, eles são considerados centrais por se
constituírem de um recorte feito pelo próprio autor que oferecem indicativos
importantes inclusive a respeito do que está fora do recorte desejado.
Ao se configurar essa etapa da tese como uma pesquisa de inspiração
bibliográfica, sem pretensões exaustivas, tendo em vista que seu objetivo não é
detalhar ou apreender uma realidade, mas apresentar uma vista panorâmica
como quem disponibiliza um viés do plano de imanência que acomoda o tema,
“é importante pontuar que ela está sempre situada e realizada sob determinadas
perspectivas” (REIS, 2008, p. 52). Por isso, busca-se, ao atravessá-la, perceber
modos, constituições, forças e intensidades, que comporão as relações e
problemática do objeto. Para além do bem e do mal, a escolha por disponibilizar
um quadro-imagem das pesquisas realizadas, embora passe pelo âmbito do
quantitativo, a ele não se limita, visto que a proposta não é fornecer os dados
estatísticos para a constatação de hipóteses.
A presente tese não se organiza exatamente por hipóteses, mas possui
ideias-guia para seu processo de produção do conhecimento pautadas nos
objetivos anteriormente citados. Os dados obtidos com o levantamento das teses
e dissertações brasileiras que se inserem na temática trouxeram ao texto um
corpo visual para pensar as ausências, o não pesquisado. Pensar a pesquisa
como ato criador, gerado na e pela experiência e a importância do processo de
criação na infância como ato de ficção capaz de produzir individuação nos
infantis é reverberar a ideia de que devir algo é diferenciar-se. A potência de
criação observada na ação ficcional de desenhar na infância une educação
infantil e literatura no sentido de pensar o processo criativo na infância pelas vias
do texto desenhado por infantis. De que mundo nos apropriamos via
ficcionalização do real? Que abstrações são feitas, pautadas nos processos
desenhativos infantis?
Nesse sentido, como encontrar as pesquisas disponíveis para propiciar
uma visada inicial do tema nos trabalhos brasileiros realizados na última década
se a pesquisa surge justamente pela falta constatada de trabalhos com esta
temática? Como manter-se coerente com uma proposta de método que permite
enfatizar os processos de subjetivação e, ao mesmo tempo, garantir certa
cientificidade objetiva? Esse problema me mobilizou no sentido de tentar garantir
uma fluidez de texto e conteúdo, sem
desprezar a ideia de demonstrar um
panorama das pesquisas realizadas,
no sentido de disponibilizar uma
imagem da realidade brasileira que se
apresentou nesse processo formativo.
Busquei dar início à pesquisa com
palavras chave como “desenho
infantil”, “educação infantil” e
“literatura”, por entender essa ação
como acontecimento capaz de dar
visualidade ao espectro de interesse
na configuração dos elementos
disponíveis para este diálogo entre-áreas.
O termo “desenho infantil” é bastante abrangente e disparador de
assuntos completamente diversos à abertura desejada para essa pesquisa: 5891
trabalhos se apresentaram diante dessa palavra-chave, mesmo com o recorte
temporal preconizado. Obter quase 6 mil pesquisas brasileiras realizadas em dez
anos nos traz alguns indicativos, o mais importante deles é perceber a
abrangência e abertura de possibilidades disponíveis ao pensar e utilizar-se dos
Figura 26 – O ângulo compõe a imagem. Acervo sem identificação.
desenhos produzidos por infantis. A ênfase estaria em entrecruzar desenho
infantil e literatura, embora essa relação não houvesse despontado na pesquisa
inicial. Como diminuir a quantidade de material para que houvesse um corpus
possível de ser analisado? O crivo que decomporia o montante de material
encontrado e permitiria selecionar quais materiais estariam descaracterizados
perante o recorte-abertura ao qual pretendia constituir como ângulo de
visibilidade da problemática aqui levantada foi apartar do levantamento as
pesquisas que:
- Não fossem realizados em ambientes institucionalizados de educação
infantil, sendo elas públicas ou privadas;
- Referendassem outra faixa etária que não àquela atendida na educação
infantil.
O arcabouço de trabalhos foi reduzido a vinte e cinco pesquisas. O
movimento de redução de trabalhos para um número potencialmente
investigável disponibilizou uma imagem capaz de mapear o interesse pela
temática nas seguintes áreas:
Grande área de
Pesquisa Quantidade de trabalhos Porcentagem
Psicologia 3 12
Artes 6 24
Educação 14 56
Letras – literatura 0 0
Letras – linguística 2 8
Total 25 100
Fonte: BDTT
Fonte: BDTT.
Esse panorama registrou as principais áreas de conhecimento que
possuem no desenho dos infantis um foco de interesse teórico, empírico, prático.
Dado expectável principalmente pela situação posta no capítulo introdutório,
onde anuncio que a constituição da discussão sobre o desenho na educação se
firma entre as áreas da psicologia e da arte. No levantamento anterior, realizado
no mestrado sobre as pesquisas disponibilizadas entre os anos 1995 e 2005, foi
possível observar a seguinte paisagem:
0
10
20
30
40
50
60
Psicologia Artes Educação Letras –linguística
Letras –literatura
Po
rce
nta
gem
Grandes áreas de pesquisa
áreas que pesquisam desenho infantil
Porcentagem
Nesse sentido, embora as mesmas áreas se destaquem no trato com o
desenho produzido na infância, um dado emerge com intensidade: a área da
literatura não se apresentou como uma área de interesse pelo desenho dos
infantis em momento algum, a despeito de algumas matrizes teóricas que
informam estudos avançados em Literatura terem abordado, num âmbito
mais vasto, com paixão a infância, formalizando uma espécie de Filosofia da
Infância (Deleuze, Agamben, Blanchot, René Schérer e outros). Aquele
silêncio nos impulsiona a questionar: o que há no desenho produzido por
crianças pequenas e bem pequenas que (não) interessa aos estudos
literários? Como relação visual entre as duas imagens apresentadas, temos
um espaço branco marcado como ausência:
0
5
10
15
20
25
30
35
40
45
total de trabalhos emdesenho infantil por áreas
total de trabalhos
Ao tomar as imagens apresentadas como texto, podemos compreender
que as tabelas visualmente indicam que a importância dada pela área da
literatura para o desenho dos infantis salta aos olhos como ausência, um espaço
vasto e vago, sem cor e, especificamente para esse recorte, central. Felizmente,
na mesma medida em que se mostra como ausência, se compreende um espaço
de potência. A produção de imagens parece não se organizar por meio de uma
comparação entre o que há abundante e disponibilizado entre as áreas, mas
justamente da aproximação entre realidades afastadas, rimas poéticas,
potenciais.
A descontextualização e poética produzem rimas imagéticas possíveis de
serem exploradas em suas produções de sentido. “A mente ama o
desconhecido. Adora imagens cujo significado é desconhecido”, afirma Magritte.
O mistério que a realidade evoca é o que afeta e induz o homem à necessidade
de produzir significação para sua existência. Percebo nesse levantamento a
possibilidade de produzir rimas visuais entre desenho infantil e literatura no
sentido de criar aproximações que considerem as características visuais de
campos de conhecimento ainda não conectados pelo ponto aqui apresentado
como pesquisa.
Um exemplo de rima visual pode ser observada no clássico Um cão
Andaluz (1928), produzido por Dali e Buñuel: os renomados surrealistas utilizam-
se de imagens descontextualizadas e distantes para produzir uma aproximação
capaz de traçar relações.
Toma-se o olhar da
personagem em destaque e a
lua. Na medida em que a lua é
perpassada pelas nuvens,
cortada visualmente por elas, a
personagem tem seus olhos
perpassados pela navalha. A
rima visual aproxima propostas
desconectadas e sem relação
para produzir um significante
capaz de atingir novas e
inusitadas possibilidades de
produção de sentidos pela
imagem. Do mesmo modo, as
imagens propostas pelas
tabelas de pesquisas
encontradas ilustram possibi-
lidades de conexões e rimas
imagéticas ainda não
exploradas. Como utilizar-se
desse afastamento entre-áreas
e tomá-lo como potência
teórica capaz de produzir um
movimento que permite novos
modos de ver desenho,
literatura, ficção, e sujeitos
infantis em seus processos de
criação no sentido de afirmar
potências e restaurar poderes imaginativos? Superar dicotomias e contradições
entre objeto e sujeito?
Ao longo dos quase 14 anos em que o desenho passou a ter destaque
nos meus estudos sobre a infância, percebo uma tímida, embora presente, busca
por parte dos teóricos brasileiros em disponibilizar recursos e mediações que
afirmem mais que um juízo de valor quanto à beleza da produção infantil ou
Figura 27- Imagens retiradas do filme Um cão andaluz (1928), de Dali e Bunuel. Fonte: http://www.adorocinema.com/
mesmo à identificação do que represente os traços infantis. Ao tomar nas mãos
o desenho realizado pelo infantil, as professoras têm perguntado menos “o que
você desenhou?” e feito mais solicitações como “me conte a história desse
desenho?”. Assim, amplia-se a possibilidade de compreender o processo de
desenhar muito mais que enfatizar seu resultado como a constatação da
qualidade de representação de um objeto.
IMAGEM DE UM DESENHO COM HISTORIA. A criança procura entre os materiais disponibilizados pela professora uma canetinha hidrográfica de cor amarela. Registra no alto e à esquerda traços que identifico prontamente como um sol. Troca a canetinha por uma de cor azul e produz traços paralelos no meio a folha. Abaixo dos riscos azuis, novo traço semelhante ao sol, mas agora utilizando outras duas cores: laranja e verde. Enquanto desenha narra em voz alta, aparentemente para si mesma, momentos de sua produção: “essa chuva vai encharcar...” (...) “dai acabou”, “assim...”, fala enquanto retoma a cor amarela e pinta sobre os traçados azuis, como se tentasse encobri-los. A professora pede para a menina lhe contar a história do seu desenho, ela prontamente aponta para este ou aquele traço enquanto anuncia: começou a chover e encharcou a florzinha que tinha pétalas amarelas, essa daqui. Mas depois a chuva acabou (afirma enquanto repete com o dedo o movimento realizado para pintar os traços que indicam a chuva). A menina vem até mim, mostrar sua produção. Como já havia acessado informações ao observar o diálogo com a professora, resolvo questionar “o que você desenhou?”, prontamente ela me responde: um sol, uma chuva e uma flor.- Repositório de Reminiscências, 2015
Ao realizar observações em sala, como professora, tenho presente este
registro que ilustra uma discussão a respeito da imagem e palavra destaco que
nem a imagem nem a narração dariam conta de registrar por completo a
realidade presente no momento em que o infantil criava seus traços e desenhos.
No entanto, descrever e definir o desenho por palavras, como fiz na
citação acima, disse ainda menos que sua imagem, visto que apenas identificou
o que o infantil considerou como um traço palpável de ser referendado. Muito
mais poderia mobilizar-nos, enquanto leitores, se a imagem produzida pelo
infantil estivesse aqui disponibilizada. Tornei ausente sua imagem justamente
para evidenciar que falar sobre o desenho não é suficiente, há a necessidade de
disponibilizar desenhos e não apenas falar sobre eles.
Figura 28- Desenho e palavra. Desenho infantil. Acervo pessoal, 2017.
Este aspecto pode ser tomado como um indicativo da possibilidade de
destacar características narrativas no texto visual produzido pelos infantis. Sua
maior intenção na área de estudos sobre a infância está em apreender mais
elementos de uma produção em movimento. Para os estudos literários, esse
elemento pode se destacar como dispositivo narrativo – estrutura – no processo
criativo dos infantis. A palavra desenho tem relação com desígnio, então é
possível que vejamos desenho como uma situação privilegiada capaz de
materializar e dar visualidade às ideias e pensamentos. Embora o desenho seja
desinvestido de ciência, ele acaba se sobressaindo nas pesquisas em diferentes
áreas justamente pelo fato de que ele documenta visualmente as imagens
internas, as criações imagéticas, os processos individuantes, etc. – ainda que
seja por um testemunho ausente. Então, apesar do desenho não ter a
cientificidade exigida pelas pesquisas, ele é utilizado pela sua potência visual
que materializa um rastro imagético dando à ideia uma concretude física.
4 - Infância
Desde que a Educação Infantil tornou-se parte do ensino formal (e
posteriormente, do obrigatório) muito se tem falado sobre as crianças e infâncias.
Pesquisadores têm feito com maior ênfase o movimento de compreender,
delimitar este campo educativo e definir os sujeitos que nele se relacionam:
quem é a criança? O aluno? O professor? Qual o papel deste campo teórico
específico para crianças pequenas? Inicio este subitem do capítulo arejando o
conceito de infância para alcançar a compreensão do que seja uma “educação
infantil”.
O termo Infância18 é compreendido como aquele que designa uma etapa
inicial da vida humana, no entanto, esse termo indica não apenas a sua idade
cronológica, mas também e principalmente, uma condição da experiência
humana (KOHAN, 2004). Ou seja, os infantis, sujeitos da infância, seriam, a partir
do in-fans, seres incompletos, como se a incompletude fosse uma característica
específica do ser infantil e não do ser humano. O termo infância trataria de definir
e nomear aqueles que não adquiriram “o meio de expressão próprio de sua
espécie: a linguagem articulada”. (GAGNEBIN 1997, p.87). Ao tratar da origem
da palavra infância, Pagni afirma que ela “consiste no silêncio que precede a
emissão das palavras e a enunciação do discurso, designando uma condição da
linguagem, e do pensamento...” (PAGNI 2012, 40). Novamente os bebês, pré-
individuantes, pré-falantes, estariam inseridos num terreno construído por
ausências: suas expressões, balbucios, olhares e toques mais uma vez
desconsiderados nesse processo figurativo e representacional das linguagens.
Kohan (2004, p.8) amplia a compreensão sobre o termo quando indica por
meio de suas variadas pesquisas que envolvem filosofia, educação e infância
que a falta de discurso ou a delimitação etária e/ou geracional não elucidam a
particularidade mais específica que compreende sua natureza:
o próprio da criança é ser não apenas uma etapa, uma fase numerável ou quantificável da vida humana, mas um reinado marcado por outra relação – intensiva – com o movimento. No reino infantil, que é o tempo, não há sucessão nem consecutividade, mas intensidade da duração.
18 A palavra infância provém do verbo latino fari que significa falar. Infans (in=negação +
fan=falante) em sua origem etimológica significaria, então, aquele que ainda não fala
Nesse sentido, infância seria uma experiência intensiva em pleno
movimento, prenhe de sentidos, que solicita e estabelece outra compreensão
temporal. Deleuze busca na mitologia grega auxílio para definir o conceito de
tempo, o qual chama de aiônico. Este tempo não cronológico, diverge da ideia
de enumerar um movimento segundo o antes e o depois, pois trata de
intensidades e não de continuidades.
Como sabemos, o tempo foi representado mitologicamente pelos gregos
por três diferentes personalidades: Cronos, Kairós e Aión. Gilles Deleuze, em
sua obra a Lógica dos Sentidos (2007), faz na verdade, a distinção entre dois
regimes de tempo: Cronos e Aión, afirmando basicamente que Cronos é o tempo
presente vivo, o tempo que comporta a ação dos corpos e suas misturas, o
estado da coisa, o lugar dos elementos do real. Aión, por sua vez, seria um tempo
sensível e qualitativo, onde um passado e futuro ilimitados poderiam se
estabelecer tendo em vista que o tempo aniônico seria o tempo dos
acontecimentos não orgânicos, expresso por conjecturas, ficções e fabulações,
um tempo sentido e narrado.
O único tempo dos corpos e estados de coisas é o presente. Pois o presente vivo é a extensão temporal que acompanha o ato, que exprime e mede a ação do agente, a paixão do paciente. Mas na medida da unidade dos corpos entre si, na medida da unidade do princípio ativo e do princípio passivo, um presente cósmico envolve o universo inteiro: só os corpos existem no espaço e só o presente no tempo. [Quanto aos incorporais, eles] não são presentes vivos, mas infinitivos: Aion ilimitado, devir que se divide ao infinito em passado e em futuro, sempre se esquivando do presente. De tal forma que o tempo deve ser apreendido duas vezes, de duas maneiras complementares, exclusivas uma da outra: inteiro como presente vivo nos corpos que agem e padecem, mas inteiro também como instância infinitamente divisível em passado-futuro, nos efeitos incorporais que resultam dos corpos, de suas ações e de suas paixões. Só o presente existe no tempo e reúne, absorve o passado e o futuro, mas só o passado e o futuro insistem no tempo e dividem ao infinito cada presente. Não três dimensões sucessivas, mas duas leituras simultâneas do tempo. (DELEUZE, 2007, p. 5-6)
Porém, como o autor organiza sua compreensão sobre o tempo e sua
passagem a partir de três dimensões temporais, retomaremos as três mitologias
gregas para indicarem as possibilidades temporais, destacando-lhes
características específicas onde o tempo kairônico também ganha espaço na
discussão. Essa atitude tem como intuito enfatizar a relação entre o tempo
aiônico e as possibilidades de fabulação infantis.
Assim, a relação entre os três tempos mitológicos precisa ser
compreendida não enquanto nova definição conceitual, mas no ensejo de dar
destaque a determinadas características relacionais, pois que, embora
propomos aqui uma relação entre passado e Cronos, para Deleuze, o passado
não é uma verdade cronológica tendo em vista que pode ser ressignificado
dentro da linguagem (e, por isso, estaria no campo aiônico daquilo que é sentido
e produzido pelos sujeitos). Porém, para que se compreenda sua diferença em
relação ao presente, é preciso traçar um mecanismo de passagem e, apenas
neste sentido, aqui resolvemos relacionar o passado à Cronos, ou seja,
enfatizando sua existência como a ação crono-lógica (não crônica), que permite
constatar a passagem do tempo presente. Destaca-se assim que não
consideramos o passado como um crônico tendo a organicidade do presente,
mas relacionamos passado e Cronos porque o passado só se manifesta a partir
de um mecanismo que permita a percepção de sua passagem.
Antes de explicitar nosso passado relacionado à uma passagem crôno-
lógica não-crônica, é preciso definir o que seja o presente, pois é a partir dele
que o passado se estabelece. O presente, para Deleuze, se constitui como um
ciclo orgânico, periódico, que se repete passando sempre pelos mesmos pontos,
é o tempo do hábito, do regulado, da consistência, da existência. Sua duração
se dá no sentido da conservação crônica. Esse tempo é aquele onde a repetição
existe e a variação física é possível. A variação orgânica do presente consente
modificações, alterações, transformações específicas nos sujeitos: essa
organização temporal permite que cresçamos, fiquemos doentes, apaixonados,
tenhamos hábitos e rotinas, porque é uma variação temporal que comporta a
ação, a atuação. Assim, a durabilidade instituída do presente, se mantém no
presente, ela não se torna passado, mas passa de um presente a outro: para
enfatizar o sempre presente do presente, o tomamos como um tempo kairônico,
em que estamos no momento certo, no agora, no eterno presente.
Para que se compreenda a passagem temporal desse presente seria
necessário, então, uma medida de tempo, um mecanismo de explicação do
tempo que passa, um tempo cronológico. Assim, para que os hábitos presentes
encontrem um intervalo cuja condição lhe permita uma passagem para outros
hábitos (que também seriam hábitos que se dão no presente), haveria uma
necessidade que vários presentes existissem, ou seja, uma coexistência de
camadas de presente, um campo de duplicação, multiplicação do presente, um
modo temporal que só é possível de ser compreendido em sua relação com sua
passagem, uma curvatura capaz de dobrar o presente de modo a se tornar outra
coisa: tornar-se passado.
“Se, como já apontamos acima, com o conceito de fabulação, Deleuze promove um encontro entre a arte e a vida, ele o faz em sintonia com Foucault, com este Foucault que descobre na subjetivação um meio de dobrar a linha do fora dando ensejo a um modo de existência estético, portanto, a temporalidade própria deste conceito é o tempo da dobra”. (PIMENTEL, 2010, p. 13)
O passado, assim, antecederia o presente, mas, na mesma medida,
também conservaria em si as dimensões do presente, pois, para que haja ao
mesmo tempo passado e presente, em um mesmo corpo (o corpo que passa
mas que aqui continua, transformado e transformando-se), é preciso que o
passado seja um passado virtual capaz de abrir espaço para a coexistência
dessas duas dimensões. Como explicar a convivência, a coexistência, de dois
modos temporais num mesmo momento? Para Deleuze essa coexistência se
daria por meio de uma camada composta a partir da dobra da linha do Fora (de
Blanchot), uma dobra do tempo que forma um espaço onde os instantes do
presente passam. Mais se consideramos o presente kairônico, sempre agora,
então ele não permite em si sua passagem, pois, ao passar, perde o poder de
ação e se torna uma outra coisa, perde sua característica do sempre agora, sua
kaironicidade.
“Portanto, essas heterogêneas dimensões temporais que coexistem
no passado virtual, e que o hábito contrai e atualiza uma de cada vez, são a condição da passagem e da variação do presente. Elas não são lembranças que aí estão conservadas, mas dimensões temporais que ao serem atualizadas ganham extensão tornando-se imagens. A dimensão do passado não é, portanto, um reservatório de imagens, mas coexistência de dimensões temporais, coexistência profunda que a imagem atual não nos deixa entrever, mas que é a condição de sua existência”. (PIMENTEL, 2010, p. 110)
Nesse sentido, a imagem produzida no e do atual passa, não porque está
relacionada com o passado, mas porque precisa abrir um espaço para que outra
imagem venha, em um entrevir. O presente não sucede de um passado, mas
convoca sua própria substituição por um porvir, um devir. Ou seja, para Deleuze,
aquilo que força o presente a passar não é o passado, mas o futuro. Cronos,
nesta relação, permitiria que a passagem do tempo fosse compreendida, mas
não é exatamente pela sua existência que o tempo passa, mas porque algo novo
precisa chegar: Cronos deseja se manter no trono e devora seus filhos, não
porque existem, não porque tentaram tirar seu trono, mas porque Cronos teme
um futuro que ainda não existe, por ele produzido por meio das suas
possibilidades de sentido, e que pode vir a existir. Futuro este onde seus filhos
poderiam (pretérito do futuro) tentar retirar seu trono. Ou seja, não é o que
aconteceu no presente que faz Cronos agir, mas o que poderá acontecer no
futuro.
Assim, como o futuro ainda não existe, ele não pode ser vivido se não no
limite do possível, do vivível: como uma ameaça ao presente e à característica
atual do sujeito que o afirma. O sujeito do futuro é sempre um outro, apesar do
mesmo. Um outro que surge e toma meu lugar. Então, se o papel do passado se
relaciona com conservar aquilo que vai se constituir e se constituindo como
presente, o futuro, ao contrário, tem o papel de devorá-lo, de absorver o presente
para que tenha ele mesmo o seu espaço temporal.
Kairós, como momento certo, seria o tempo do planejamento, aquele que
está entre o cronos e o aion, fazendo uma ponte. A rotina pensada pelo adulto
como um possível presente, um tempo-espaço onde os fazeres da educação
podem ser organizados. Passagem do tempo esta, diretamente relacionada ao
afetar-se por sua passagem (o prazer que agiliza os tempos, o desprazer que
arrasta os tempos). Kairós como o tempo de pensar a rotina educativa permite o
movimento, o flexível, o incerto, o improviso. O improviso como um acidente
favorável, capaz de permitir o novo, o mistério, a vida. Kairós como um
movimento que abraça o tempo aiônico, devir-infantil.
A infância teria como característica essa ionicidade de futuro, que lhe
permite um devir. É possível perceber que o interesse por definir e caracterizar
a infância (ou as infâncias) passa a ser frequente em diferentes áreas do
conhecimento (filosofia, sociologia, antropologia, medicina etc). No campo da
educação também encontramos uma abordagem distintas sobre a compreensão
do que seja a infância. Entre elas, percebemos modos que buscam definir e, ao
mesmo tempo, diferenciar aquilo que dela não faz parte, por atrelar-se a outro
momento do desenvolvimento humano. Corazza (2004) contribui para
pensarmos sobre a infância e sua educação ao questionar as definições
abstratas e hierárquicas sobre a infância nos seguintes termos:
deixar de tomar a infância como ilusão... Não é perigoso para a educação dos infantis? O mundo da Educação não ruiria? O que faríamos nós sem essa ilusão? Como educaríamos, sem desfigurar quimericamente o mundo infantil e desprestigiar o valor de sua vida? Como suportar não ter mais a satisfação narcísica, baseada no orgulho dos ganhos obtidos, com que essa ilusão nos brinda? Podemos prescindir do embotamento anestesiante da ilusão e, mesmo assim, continuar educando a infância? Parece que chegou o tempo de des-iludir radicalmente essa ilusão e ir em direção à arte. Parece que já temos, como comunidade de educadores, uma longa tradição e ferramentas conceituais (Corazza, 2002c) que nos possibilitam produzir artisticamente a infância, artistar a infância, criar uma arte-da-infância, que jamais seja irrefutável como a ilusão e cuja única satisfação seja intensificar as forças criadoras do nosso educar.
Para além dos extremismos educacionais - em que se coloca de um lado,
o tradicional papel educativo centralizado no professor e em sua autoridade
(inclusive teórica) e de outro, esvazia-se o papel do professor na relação de
ensino-aprendizagem e considerar-se a criança como construtora de seus
próprios conhecimentos, de forma natural (espontaneísta) – pensar a respeito
das crianças e infâncias visa aqui a delinear uma compreensão sobre a
pluralidade das crianças em sua condição humana19 e do modo como vivem suas
infâncias, principalmente no que se refere ao contexto educativo. Isso implica
perceber que a criança, embora tenha particularidades em relação ao adulto
advindas do processo temporal (e, por tanto histórico, social, cultural) em que se
encontram, não deveriam ser caracterizadas por suas ausências, mas sim por
suas especificidades20.
A criança pode ser vista como um ser humano com múltiplas
potencialidades (estéticas, afetivas, lúdicas, expressivas, cognitivas, relacionais)
assim como o adulto o é. No entanto, embora pareça que essa compreensão
seja óbvia, ela tem se dado recentemente:
Desprovida da palavra, incapaz da paragem certa, hesitante quanto aos objetos do seu interesse, inapta no cálculo dos seus benefícios, insensível à razão comum, a criança é eminentemente humana, pois
19 Cabe lembrar que toda a diferenciação entre crianças e adultos refere-se à característica da criança como um ser humano de pouca idade (e, por tanto, com menor tempo para aquisição/vivência de experiências) e a compreensão histórica, cultural e social que os adultos produzem sobre elas. Não há, aqui, uma diferenciação entre adultos e crianças no que se refere à generalidade da Humanidade de ambos e sim no que se refere à compreensão historicamente produzida a respeito destas. 20 Embora as pesquisas relacionadas ao campo educativo apontem para uma compreensão de desenho como diagnóstico psicológico da criança, a ação de enfatizar o desenhista e não apenas o desenvolvimento do grafismo é uma conquista, pois indica a busca por trazer visibilidade para os sujeitos-crianças que vivenciam as infâncias.
sua aflição anuncia e promete os possíveis. O seu atraso inicial sobre a humanidade, que a torna refém da comunidade adulta, é igualmente o que manifesta a esta última a falta de humanidade de que sofre e o que a chama a tornar-se mais humana. [...] Esta é a dívida que temos para com a infância e que não é saldada. Mas basta não a esquecer para resistir e, talvez, para não ser injusto. Esta é a tarefa da escrita, do pensamento, da literatura, das artes, aventurar-se a prestar testemunho”. (LYOTARD, 2000, p. 11-15)
Sendo assim, ajusta-se à ausência de fala, de vez e voz, que a infância
traz consigo a experiência que a caracteriza. Experiência carregada de
sensibilidade, memória, impressão, imaginação. Experiência que pode ser
traduzida em diferentes linguagens. O termo infância é considerado, então,
[...] como experiência, como acontecimento, como ruptura da história, como revolução, como resistência e como criação. É a infância que interrompe a história, que se encontra num devir minoritário, numa linha de fuga, num detalhe; a infância que resiste aos movimentos concêntricos, arborizados, totalizantes: “a criança artista”, “o aluno nota
dez”, “o menino violento”. É a infância como intensidade, um situar‐se intensivo no mundo; um sair sempre do "eu" lugar e se situar em outros
lugares, desconhecidos, inusitados, inesperados. (KOHAN, 2007, 94‐5)
Mas como considerar o conceito de experiência21 no trato com a infância?
O termo é citado, nesta relação, por Kohan, e atravessa a obra de Walter
Benjamin e de Giorgio Agamben. Em grande parte dessas obras, aparece
atrelado ao processo de “perda” ou declínio no qual a modernidade está inscrita
e aponta, contudo, desesperadamente para a sua necessidade, já que sem ela
a existência assinala uma não-vida. O filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin
contribui para a apreensão do significado do termo experiência quando difere
com a expressão “vivência”, o ato do evento.
Para pensar as relações educativas na infância de modo a considerar o
infans para além de suas ausências, é possível, baseado neste autor, destacar
o termo vivência em sua relação com o ato, ou seja, o que é vivido pela criança
no mundo ético, são as situações (reais ou imaginárias) que se apresentam em
seu dia-a-dia, as experiências simples e cotidianas, como alimentar-se,
21 Por algum tempo nas práticas pedagógicas, principalmente aquelas relacionadas à arte, o termo experiência foi sinônimo de experimentação, e direcionada sua compreensão à ideia de tentativa e erro. Diferentemente do que outrora se entendia como experiência em educação, parto da ideia de que a experiência possui intencionalidade e transcende o mero ensaio de uma ação.
caminhar, relacionar-se, desenhar. Já o termo “experiência” estaria, para o autor,
ligado ao evento e ao mundo estético, refere-se a uma vivência verdadeiramente
significativa que toca e, por ter tocado, transforma. Seria uma vivência capaz de
ir para além do que é disponibilizado naquela ação: é quando, no simples ato de
escovar os dentes, de desenhar... algo de inexplicável acontece que permite à
criança acessar elementos geradores de transformação, algo se modifica,
produzindo o novo em si mesmo. Nesse sentido, nem todas as vivências
adquirem o caráter de experiências, mas todas as experiências são vivências
transformadoras e mobilizadoras das potências de vida. As instituições de ensino
para crianças pequenas promovem vivências pedagógicas capazes de produzir
experiências, sejam elas positivas ou não, adequadas ou não ao projeto
educativo considerado apropriado para a hominização dos recém-chegados à
realidade objetiva.
É plausível concluir que as vivências pedagógicas institucionais que são
voltadas para a infância, teriam como centralidade, não apenas o oferecimento
do acesso ao conhecimento disponibilizado historicamente pela humanidade por
meio de sua transmissão a partir de um adulto, o professor, mas também a
capacidade de intensificar a experiência de infância vivida ao acessarem tais
conhecimentos. Afetar. Disponibilizar situações pedagógicas capazes de gerar
experiências positivas e transformadoras no campo das potências humanas
estaria, como aponta Kohan, necessariamente atreladas à possibilidade de
repensar aionicamente os tempos disponibilizados para os infantis. Ou seja,
além de um tempo cronológico, que caracteriza a infância como o início de um
tempo linear capaz de afinar as ações daquela que chega ao sócius já existente
e precisa dele se apropriar, haveria também, e principalmente, a necessidade de
oferecer um tempo de intensidades, no sentido de produzir, avivar e impulsionar
experiências educativas capazes de transpor as vivências pedagógicas e
garantir sua superação por meio de transformações existenciais nos infantis.
Rotina: o ponto de convergência de Cronos, Kairós e Aion.
5 - Imagem Os olhos tocam aquilo que percebem,
e implicam o sujeito no mundo. David Le Breton, Paixões ordinárias
Denise, neta de Portinari e inspiração para muitas de suas obras, foi
retratada com seu gato aos 9 meses de idade. O quadro de 1960 chama atenção
pela intensidade expressiva do olhar registrado pelo artista. Os olhos da menina
se destacam na obra e me afetam, sinto-me tocada, porque experimento-o como
um olhar infantil. Não de modo infantilizado como sugerem as rasas discussões
sobre a infância, mas sua presença infantil, que transborda por meio do seu
modo de ver. O olhar de Denise presentifica o infantil em mim. Tenho, ainda, a
sensação de curvar meu olhar para alcançar o seu: quase uma reverência. A
presença de Denise por meio de seu olhar traduz uma força que é difícil transpor
em palavra, a palavra face ao indizível. Eu não tenho certeza se ela me olha nos
olhos, mas sei que me vê.
Para relacionar Educação Infantil e literatura partindo do desenho dos
infantis necessariamente perpasso o campo do visível, por isso, busquei nas (e
por meio das) imagens das crianças um caminho que revelasse um campo de
possíveis, para além daquilo que já está dado sobre a infância, na relação com
os desenhos literários. Era preciso buscar conceitos onde a ideia de desenho
pudesse não apenas se inserir mas, principalmente, alargar-se.
Pensar as imagens seria importante não apenas pela presença visual,
mas também por sua ausência. As imagens, “conjunto daquilo que aparece”
(DELEUZE, 1985, p. 70), aqui qualificadas menos como representação e mais
como um elemento visual com múltiplas possibilidades de tempo, sentido e
presença, são compostas por dobras e esconderijos, esferas de incidência,
fendas, rupturas, probabilidades, plausibilidades, desvios, linhas de fuga,
constituídas e constituidoras de “invisibilidades profundas e da impossibilidade
de fazer com que algo se torne efetivamente presente” (FOUCAULT, 2001, p.
209).
Figura 1 - Denise com Gato, Candido Portinari, 1960 Pintura a óleo/tela, 36 .7 X 26.7 cm, R io de Jane i ro , RJ.
A epígrafe de Breton incita a pensar nos modos que se dá a implicação
daquele que acessa a imagem e sua aura, e como as múltiplas imagens dentro
da imagens nos afetam porque a imagem, para além do que se vê e de seu
contexto, enfatiza aquele que olha, sua implicação, o como nos inserimos na
imagem, “como deslizar para dentro dela, já que cada imagem desliza agora
sobre outras imagens, já que o fundo da imagem é sempre já uma imagem”.
(Deleuze, 1992, p. 92).
É característica da imagem “esconder algo” em si, é o que lhe oferece
infinitude e persuasão pelas múltiplas possibilidades de sentidos e significados
que proporciona, imagens dentro da imagem, já que diz visualmente o que não
é significado em palavras. A aura da imagem é o que nos incita a olhar e ser
olhado e impele à produção de sentidos que conversam com nossas
contrapalavras. Autores como Benjamin e Didi-Huberman trabalharam com o
conceito de aura, mas enfatizando, ainda que em diferentes medidas, seu caráter
divino, raro, único. Benjamin, em seu famoso texto A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica, afirma a decadência aurática da obra e a tendência ao
seu desaparecimento (pela superexposição). Para ele a aura apresenta-se como
“uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição
única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja” (Benjamin, 1998. p.
170). A aura ilumina a obra com uma luz que preenche espaços e tempos
capazes de distanciar a obra daquele que a acessa: jamais conseguiremos nos
apropriar de todas as dobras e fissuras de uma imagem. No entanto, com a
possibilidade de multiplicação de imagens (sua massificação) pela reprodução
mecânica das obras, a aura tende ao desaparecimento. Cada vez mais se vê
obras cujo objetivo de criação é a sua reprodução. Assim, a autenticidade perde
o sentido essencial na arte e abre espaço ao fim da veneração que cultua aquilo
que é singular e raro: a reprodução ilimitada e mecânica das obras retira o valor
de culto e distanciamento, pois sua ênfase está na exposição.
Baseado em Benjamin, Didi-Huberman (2004) retoma a discussão sobre
a aura num sentido menos divino, metafísico, teleológico, sagrado, luz inversa
que o ato de aproximar-se de uma obra acessando sua aura oferece-nos, como
um identificador do afastamento e da não presença, uma imagem da memória,
um rastro. Olhar implicadamente para obra, (ad)mirá-la, retirar sua imobilidade
para dar pulsação. Esta aura, que afere o espaço entre o que vemos e o que nos
olha, é, nas palavras de Didi-Huberman,
como um espaçamento tramado do olhante e do olhado, do olhante pelo olhado [...]. Próximo e distante ao mesmo tempo, mas distante em sua varredura ou de ir e vir incessante, uma forma de heurística no qual as distâncias – as distâncias contraditórias – se experimentam umas às outras, dialeticamente. O próprio objeto tornando-se, nessa operação, o índice de uma perda que ele sustenta, que ele opera visualmente: apresentando-se, aproximando-se, mas produzindo essa aproximação como o momento experimentado ‘único’ e totalmente ‘estranho’ de um soberano distanciamento, de uma soberana estranheza ou de uma extravagância. (DIDI–HUBERMAN, 2004. P. 147).
Este conceito me serve na medida em que entendo a aura da obra como
um alo luminoso composto de radiações singulares que circundam e
interpenetram a obra, aquilo que nos toca, nos afeta, nos implica, deixa-nos em
contato com os elementos visuais percebidos, relacionados, vivenciados,
experimentados de modo único e sem possibilidade da apropriação de tudo
(incluindo lacunas e vazios) que a obra disponibiliza em si. É potência na
distância, ou melhor: a distância como potência articuladora. Neste sentido, o
que chamo aura das imagens pode ser entendido como um campo magnético,
gravitacional, que imanta e atrai para si aquilo que o acessa, que penetra em seu
campo de possibilidades e nos permite a implicação frente à obra. Quando
acesso a aura de uma imagem, necessariamente a faço por meio de um olhar
desejante, o qual introduz outra
SOBERANIA DO DESEJO. Na sua ipseidade, o desejo não é sujeito, Estado ou objeto. É puro devir e processo. Só existe em relação, emerge da falta, para se afirmar como movimento pulsional, de ruptura subjetiva. Talvez fosse preciso fazer uma história do desejo soberano: de suas interdições, de sua força revolucionária (GARCIA, 2006, p.162).
Deleuze/Guattari,
procuram liberar o desejo do aprisionamento edípico, denunciado como relação triangular e familiar vinculada ao capitalismo, legitimando a nossa culpabilidade pela lei, pelo significante, pela carência e pela castração. O desejo emerge, então, como excesso em relação aos limites impostos pelo sujeito, objeto e prazer, daí o seu caráter trans-individual, ambientado em um plano de consistência no qual o sujeito possa ser projetado. Tal plano é ascético: é desde o vazio que os fluxos de intensidade são possíveis” (GARCIA, 2004, p.163).
Ou seja, tomando tais problematizações, o desenho infantil deveria ser
considerando como toda a demanda, uma demanda de desejo. Nesse sentido,
o olhar daquele que percebe, converge no olhar do infantil: ad-mira, mira além,
a mira deseja um desejo, tem como mira o que deseja. O modo de ver a infância
indica um caminho perceptivo feito pelo meu olhar desejante. Este caminho, de
onde me aproprio de conceitos e experiências, me constitui como pesquisadora
em meus modos de ver e pensar a infância, a teoria literária, o desenho infantil.
Conforme o Blanchot em O Espaço Literário (1987, p.24),
Que a nossa infância nos fascine, isso acontece porque a infância é o momento da fascinação, ela própria está fascinada, e essa idade de ouro parece banhada numa luz esplêndida ... reflexo puro, raio que
ainda não é mais que brilho de uma imagem.
A imagem é formada a partir das relações e mediações sociais
experienciadas ao longo da vida. Está diretamente direcionada com o mundo
vivido, o real e só é definida pelos repertórios que acessamos. Imagem é texto
visual porque comunica e constrói significados. O infantil constrói suas
representações de mundo a partir de seus contextos culturais, o que engloba a
educação, os valores e crenças, o acesso a diferentes textos e envolvem
discursos estrategicamente elaborados para moldá-los.
Compreende-se geralmente a Infância como um lugar socialmente
construído, como tempo de direitos, como categoria geracional produtora de
cultura, ainda que essa cultura seja menosprezada ou soterrada por culturas
molares. Inúmeros discursos foram construídos com base nos mais diversos
campos de conhecimento que estudam as infâncias. No entanto, a maioria dos
trabalhos encontrados sobre essa temática partem da mesma compreensão
histórica: o “surgimento” do sentimento da infância na modernidade, pautados
principalmente em Phillipe Aries (1981). A tese de Aries, pautada nas obras que
retratavam a infância naturaliza o momento de seu surgimento, o que se instala
na história como uma verdade naturalizada, comum, genérica. Para Kohan
(2004), tomar a infância como uma invenção factualmente moderna é uma
postura delicada pois, quando algo se torna natural ou evidente, deixa de ser
pensado. Nesse sentido, a questão que fica, é: que infâncias são forjadas
partindo desta compreensão?
A construção histórica e social do conceito de infância não é neutra ou
linear: percebe-se tensões, intenções, mecanismos de poder. Partindo de
Foucault (2014), podemos entender que as ordens discursivas que produzem as
infâncias transportam para dentro do conceito controle, regulação, normatização.
São discursos implícitos que organizam a experiência da infância, mas que, por
sua vez, possuem fendas por onde transitam o inapreensível, o ficcional, o agir
infantil que oxigena, por meio de suas ações coletivas, a própria experiência da
infância.
Destacar modos de ver a(s) infância(s), permitiria, aqui, destacar os
efeitos por ela produzidos e discutir o desenho enquanto lócus expressivo e sua
potência literária, capaz de produzir sentidos devido a sua dimensão verbo-visual
advinda dos infantis. Talvez seja importante ressaltar que a intenção não é a de
refutar olhares sobre infância em favor de outras formas de olhar, visto que,
reitero, negar o tradicional em favor do novo não apontaria para aquilo que
realmente desejamos explorar: suas fissuras e dobras, relações e incertezas.
Assim, quando utilizamos algumas ideia-força de Deleuze para dialogar com os
dados dessa pesquisa não estamos na busca pela “melhor” definição sobre o
que seja a infância (superação do velho pelo novo). Ao contrário, para o autor,
fechar um conceito ideologicamente, enquanto uma ficção de controle, seria
acabar com a sua potência criativa. Por isso, a proposta que elejo para pensar a
infância passa pelas imagens oferecidas por conceitos de infância e seus efeitos,
e não por uma história unidimensional da infância, que tenta confinar a infância
ao seu contexto.
Para não se limitar ao clichê de que todo homem é produto de seu tempo
ou que todo fenômeno é produzido historicamente, os modos de pensar a
infância reverberam no tempo e espaço como elementos irredutíveis e
insubstituíveis por palavra. Como se apresentam o novo-velho e o velho-novo
discursos sobre a infância? As imagens sugerem os limites, mas não se limitam
a eles. Nesse sentido, amparada pela proposta de Ceccim e Palombini (2009),
não pretendo discorrer linearmente sobre a construção social da Infância ou
catalogar os fatos históricos que influenciaram em seu “surgimento”. Mas pensar
algumas imagens da infância. Imagens da infância, do infante ou infantil. Os
autores, que possuem como objeto de pesquisa o cuidado em saúde, balizam
que:
Uma imagem é uma definição de contornos ou uma territorialização, forjada pela contenção ou estase por um circuito de conexões que faz emergir figuras da realidade (nó e conexão no tecido das subjetivações). Podemos pensar a Imagem como representação e opor real e irreal, onde a noção de imaginário surge para incorporar o campo de transição entre realidade e irrealidade. Podemos, entretanto, pensar a imagem como configuração e, em lugar de opor o real ao irreal, captar o movimento de constituição das figuras da realidade, compreendendo a existência de uma virtualidade compondo-se com o real (no sentido de Foucault, conforme esclarece Deleuze, 1995, p 129). Neste caso, o real é entendido como atual (o visível das formas e o invisível das sensações), não uma fixação, mas um platô, uma metaestabilização.22 (2009, p. 302)
22 A ideia de metaestabilização, de Simondon, está disseminada no corpo da tese.
Infância(s) entendida(s) para além da sua compreensão meramente
cronológica, traz em si, segundo uma perspectiva topológica clássica, diferentes
formas de ser vista. Cada visão traz, a seu modo (de modulação e não
modelação...), contribuições que pesquisadores de diferentes áreas buscam
cartografar para pensar esse espaço/tempo/sujeitos, vale dizer, sujeitos
constituídos por tempos e espaços.
Muitas infâncias são encontradas sob o termo infância, algumas opostas,
mas não contrárias. Tratam-se de oposições não polares que constituem as
diferentes infâncias, como a da guerra, a religiosa, a ciberinfancia, a dos
bonecos, da rua, dentre tantas outras (DORNELLES, 2010). Imagens que
auxiliam a perceber os discursos que perfazem o corpus conceitual do termo.
Transborda aqui essa condição teórica paradoxal das oposições
assimétricas nos interessa na medida em que possibilita pensar quem são os
infantis, sujeitos pré-larvares, informes, individuantes, in-fantes (sem palavra),
mas em um processo dinâmico de singularização. Nem universal, nem particular.
Estas categorias se contaminam em favor de um processo de singularização que
me torna único, apesar de coletivo: cada vez sou mais universal e particular,
sugere o poeta. Os infantis, possíveis produtores de desenhos literários23,
autores de suas produções simbólicas, nos incitam a pensar: o que há de
particular em ser infantil? Que singularidades há nos infantis, que se destacam
de outros modos de ser humano ou de outros tempos, geracionais ou
cronológicos?
Ao se questionar sobre o que é a criança e, ao mesmo tempo, sobre a maneira adequada de educá-la e instruí-la, o adulto começa a situar-se, por sua vez, em relação a esse ser recém-chegado, idêntico a ele mesmo e, contudo, tão diferente, seu outro promissor, que ele deixou de ser (SCHERER, 2009. p. 20)
23 O termo “desenho literário” visa enfatizar no trabalho criativo/criador da criança o expressar-se por palavras-desenho. Esses rastros visuais compõem o texto visual infantil e, como os textos literários, podem ser lidos e interpretados de diferentes modos. Cabe lembrar que toda representação é a representação do fracasso na medida em que a realidade é impossível de ser assimilada pelo desenho, e particularmente pelos infantis, assim como a realidade não pode ser plenamente representada pela escrita. Logo, o desenho literário enquanto expressão de um fracasso não se opõe aqui a um desenho não literário, sendo o literário tomado como o ficcional (o não todo poético).
A aproximação com o universo infantil descobre a infância naquilo que o
adulto deixou de ser; enfatiza a alteridade da infância e o quanto ela nos escapa.
A infância, nas palavras de Kohan, como um tempo de inícios.
Nesse sentido, compreender o infantil como ser composto por várias
linhas que dão forma ao tecido existencial fornece a base substancial para a
fabricação da expressão do sujeito infantil via desenho literário. É possível
reconhecer que indivíduos estamos envolvendo (ou abafando) quando
buscamos situar os infantis sob categorias sociais e suas instituições
educativas? Há infância sem criança? Essas e outras perguntas buscam traduzir
as preocupações práticas e teóricas a respeito deste “campo” (termo de natureza
bélica). É importante, no entanto, ter a clareza de que a infância carrega em sua
imagem a produção de seus efeitos, e são deles que nos apropriamos e não da
infância, em si. Não podemos voltar à infância senão pela memória, pelos
resíduos de sua ausência, pelos rastros deixados na experiência de acessá-la.
Infância é um conceito que abarca em si, o incerto, a fuga, o não palpável: ela é
definida pelo seu inacabamento.
As linhas de fuga são suas atividades inúteis, jogar os dados no templo
(como no relato sobre Heráclito) ou jogar a bola para cima e para baixo, tal como
no conto “A árvore”, de Juan Carlos Onetti. “Essas utopias errantes devem saber
não só escapar da reprodução (...) mas também tirar partido de sua pequena
dimensão para implementar sua capacidade de invenção” (Schérer, 2016, p. 37),
resistindo à dominação pedagógica. Por isso as delimitações do que seja esta
ou aquela infância são potentemente frágeis e, por isso mesmo, solicitam
produção teórica.
6 - O contemporâneo
Efeito, palavra que acolhe o espectro visual das imagens que a
“pulsionam”. Alguns efeitos e seus arranjos impregnam o Contemporâneo (aquilo
que não coincide consigo mesmo) de tal modo que mantêm a sua imanência em
vibração. Ao acessar o processo histórico que organizou o contemporâneo de
modo a implicar em perdas e heterocronias, percebe-se que o fixo e datado se
fragiliza, a rigidez reativa retira a potência de ser. O processo civilizatório
ocidental trouxe enquadramento, fôrma, rigidez, no entanto o contemporâneo
exige outras posturas, visto que configura-se como abertura, fratura, dobra e
fissura. Ele demanda uma leitura que não resuma nem aprisione o que se vive a
um tempo que deseja tornar-se determinado e fixo. A dúvida faz parte do
conhecer, assim como faz a indecisão, o indeterminado, o incerto (assinala-se
que o sistema de certezas é repertório do século XIX). Como viver o
contemporâneo sem apreendê-lo? Como pensar o contemporâneo sem tirar sua
característica de abertura no tempo, sem ater-se àquilo que “irá ficar”, que
poderá afixar-se como futuro? A não adequação do nosso tempo consigo próprio
permite que das suas fissuras transbordem seiva criativa. Esse hiato temporal
com seu toque de caos - o caos, essa ordem por decifrar, como diria Saramago
- acolhe múltiplas potências e o inusitado.
Figura 29Arthur Bispo do Rosário e Obra. Foto: Divulgação/Festival Internacional de Artes de Tiradentes
Um dos artistas que teve possibilidade de socializar suas potências nesta
fratura do tempo foi o louco e obscuro Bispo do Rosário. Artista para quem,
curiosamente, a questão da Arte/das artes nunca se colocou (sua produção era
chamada por ele de “obrigações”, não de arte). A obra deste artista enfatizava o
interesse pessoal em recriar o mundo para o dia do juízo final, era este seu afeto
e seu afetar. Em uma fase aberta para o desvio e o múltiplo, aquele que não
caberia nos padrões foi justamente um dos que se tornou um artista
representativo do seu próprio tempo. “Os balineses, que carecem de uma
palavra que designe arte, dizem : nós fazemos tudo da melhor maneira possível”
(GUIMARÃES, 1996, p.17).
No entanto, ser contemporâneo não significa coincidir com seu tempo, ao
contrário, significa não ter tempo, ser anacrônico, um deslocamento em relação
ao seu tempo. O determinado existe, mas há a necessidade de mostrar o que
não pode ser apreendido e, se o contemporâneo é sempre perda, então nada
temos a não ser seus efeitos. Ao que o artista sujeita-se para tornar-se sujeito?
Ao que os infantis se sujeitam? Como esses sujeitos vivenciam o contemporâneo
que constituem suas existências?
Para que se possa ser compreendida a ficção produzida pelos infantis por
meio de seus textos visuais não mais com um olhar adultocêntrico é preciso
retomar uma dimensão central para pensar a linguagem artística no contexto
educativo oferecido para os infantis: a criação. As pesquisas atuais demonstram
que se tem até olhado para as visualidades produzidas pelos pequenos e seus
processos criativos, mas de maneira ainda superficial, inicial e, muitas vezes,
trivializada. Criação, infância, conceitos... Termos que parecem estar bem
compreendidos, dados, subentendidos. Mas, justamente por sua banalização,
dizem sem nada revelar. Há, ainda, a forte presença de produções acadêmicas
que compreendem a importância do desenho como um método lúdico e
espontâneo capaz de preencher o cotidiano infantil e gerar deleite aos infantis,
por exemplo. O lúdico, esvaziado em seu sentido e tomado como sinônimo de
prazer, justificaria a presença tanto do brincar, quanto do desenhar na infância
institucionalizada: as produções simbólicas das crianças são encurtadas em
dimensões que não abrangem o fazer múltiplo e rizomático que a condição de
ser criança suscita.
A produção de imagens desenhadas pelos infantis precisa (tanto no
sentido de necessidade quanto de precisão) um campo de sentidos que articule
os elementos que conformam esse objeto de estudo como um entre-lugar para
o ato de criação contido no encontro entre o imagético e o literário. Embora esteja
presente no cotidiano infantil, a temática, bastante complexa para a área da
infância, é pouco estudada pelos profissionais do chão da sala, seja porque sua
complexidade exija elementos que ainda não são de domínio desses
profissionais, seja pela importância constatada em outras áreas de
conhecimento mais consideradas pela escolarização atual, ou ainda, pela
ausência de formação especifica na área ou pela falta de um debate que supere
a constatação da crítica sobre o produto.
Nesse sentido, mais importante que tratar de uma periodização acerca
das modificações sobre o conceito de infância, numa tentativa de demarcação
histórica, queremos pensar os efeitos da infância, suas reverberações nos
desenhos, porque a infância na sua explosão expressiva é sempre irredutível.
Ela existe pelos seus efeitos. Por conseguinte, talvez a infância possa parecer-
se como um meio (hiato criador) propiciatório da potência de criação humana,
essa fina, quase imperceptível membrana onde as energias são trocadas. Sobre
seus efeitos, podemos lançar questões que fomentam antigos dilemas na
educação: Que educação, que expressão artística, que modo de ser humano e
de ser criança cabem nessas infâncias?
Essa força de infância, traduzida do olhar de Denise, é uma variante a
ser contemplada pelas pesquisas que consideram a(s) infância(s) como objeto,
não apenas como categoria, mas como elemento de pulsão. Pesquisar o
universo da infância, neste século, é considerar olhares e vozes, é acessar
sutilezas e rastros deixados pelos infantis, que permitem ir ao encontro de seus
sujeitos, materializados em imprevisibilidades e produções simbólicas. É
possível presumir, a partir desta afirmação, a importância dada às pesquisas na
área da infância para compreender o con/texto – texto entre textos e não lócus
castrador - do objeto que im/pulsiona a temática da presente pesquisa. Ao utilizar
como registro documental excertos em que vertem elaborações infantis dos mais
diversos gêneros - fotografias que registram toques e olhares; descrição de
brincadeiras, ações e transgressões; registros de falas; desenhos, pinturas e
outras produções simbólicas – as pesquisas contribuem para compreender de
forma não idealizada, os diferentes modos de olhar/ver/reparar/admirar e
expressar o real que acessam as crianças que compõem as infâncias
pesquisadas.
Nesse sentido, pesquisar o “desenho literário” das crianças é engrossar o
caldo das pesquisas que buscam dar visibilidade ao que há de arte no ser
infante. Caminho, numa expressão derridiana, no “terreno vago do implícito”, por
entre os sentidos e significados construídos subjetivamente na interação de seus
desenhistas, a troca energética da criança que compõe esta infância consigo,
com o outro e com o mundo, por meio de seu corpo. Desenhar perpassa a
corporalidade infantil na mesma medida em que atua imageticamente em seu
campo criativo e na apropriação desses sentidos por parte dos indivíduos que
elaboram conhecimento sobre esta ação infantil – sejam estes teóricos,
professores, ou demais adultos e crianças que têm acesso à citada produção
simbólica.
Figura 30 - Um homem com uma câmera (Documentário). Vertov, 1929. Fonte: https://comunicacaoeartes20122.wordpress.com/2013/02/19/dziga-vertov/. Fonte do filme:
https://www.youtube.com/watch?v=QZoddf7_GmQ
O cine-olho, ou cine-verdade, também nos incita a pensar nossos olhares
e produções teóricas sobre as infâncias. A experiência disponibilizada por Vertov
no documentário “Um homem com uma câmera”, por exemplo, expõe um
cotidiano russo em que o autor intercala os mais variados acontecimentos:
esporte, árvores, trânsito, músicos, banho, morte. Seu modo de produzir cinema
não desejava uma narrativa linear ou uma universalidade. Vertov não apresenta
pessoas abstratas ou aspectos generalizantes do cotidiano russo ao qual se
propõe a registrar, mas singularidades que compõem o real e, na mesma
medida, produzem ficção deste real. Cinema de autoria, rima imagética que nos
incita a pensar sobre as infâncias que pesquisamos: infâncias no contexto do
real?
Seu estilo de produzir cinema por meio de montagens visuais traz
presença ao documentário: imagens pulsam o respirar da cidade na década de
20. Colagens rápidas com diferentes imagens e cortes bruscos, sobreposições,
a câmera como sujeito no documentário, o ajustar do foco, o captar das imagens.
Movimento. Pulsar e pulsão. Os diferentes modos de se aproximar do real, uma
interpretação pautada em seu olhar pessoal, seu modo de captar e relacionar
trechos filmados. Pesquisas sobre as infâncias que explicitam muito mais os
lugares de onde falamos do que o próprio tema a ser pesquisado. Cientificidade
e subjetividade como rimas visuais.
Volto à Denise, que tem no olhar mais que uma natureza corrompida que,
porque resiste, precisa ser moralizada, disciplinada. Denise é mais que uma
criança abstrata, decomposta (ou dissecada?) em etapas evolucionistas de
desenvolvimento que buscam um padrão de normalidade/patologia (problema a
ser ampliado mais adiante). Sua individuação, para além da infância que sugere,
indica a potência interna do devir infantil, singularizado em seu olhar vibrante e
afrontoso, vivo. Olhar de infância é olhar vivo, num sentido deleuzeano, onde
vida é o que excede no vivo, é o que se dá como abertura temporal para criar.
Assim, vida é criação e o olhar vivo é canal por onde vaza o vivo.
7 – O desenho dos infantis
Embora a tese dê ênfase à visualidade do desenho, a ideia do desenho
é, de fato, muito maior que sua visualidade, o que pode ser compreendido se
considerarmos o campo epistemológico do desenho e da visualidade, assim
como acontece com o campo da arte e da estética: ainda que seja possível
colocar tais campos em paralelo é preciso compreender que um deles abrange
o outro e a ele não se resume. Estão implicados. Nesse sentido, dar ênfase ao
âmbito do visual no desenho realizado pelas crianças pequenas e bem pequenas
nas instituições infantis permite ao professor vislumbrar possibilidades de pensar
pedagogicamente o desenho como uma forma de pensamento. Mais que
aquisições gráficas, o desenho torna-se um materializador da imaginação e do
desejo, de algum modo, significar. É capaz de acionar, relacionar e confrontar o
interior e exterior dos sujeitos (CRISTÓVÃO, 2015, p. 22). Que contribuições
essa máquina (as)significante pode disponibilizar para pensar os processos
pedagógicos que visam favorecer os infantis?
o fato é que, em uma reflexão simplista, o desenho, por meio do traço, é um contentor de significados mesmo tendo um significado por si só. Em uma abstração, o traço do desenho, limitador de significado e portador do mesmo, pode ser associado às linhas de um texto. Isto institucionaliza o fato de que nossa sociedade atual, consumista, ocidental, cientificista, necessita dos traços, das linhas, para se fazer entender e para propagar seus conhecimentos. (TRINCHÃO, 2015, p. 10).
O desenho é entendido como um mecanismo de contenção de significante
e o faz por meio dos traços. A tese destaca a visualidade do desenho no sentido
de demonstrar que a ação gráfica que realiza o desenho é um modo não só de
comunicação, mas de sensibilização e conhecimento, apreensão, conexão e
relação com o real acessado, baseado em diferentes estratégias de
comunicação e criação humanas.
A função do desenho seria, assim, traduzir por meio de volumes,
distâncias, planos, traços, manchas, texturas e cores o que o sujeito desenhista,
de algum modo, experiencia daquilo que deseja designar via desenho. Nessa
perspectiva, ele não criaria a partir do novo, ainda que o resultado seja inédito e
completamente diferente de tudo que se tenha feito até então, e sim, buscaria
solucionar problemas estéticos com base numa escolha entre os esquemas mais
apropriados dentre aqueles que o autor já conhece. Dessarte, por meio de
construção e desconstrução, poderia, então, alcançar novos esquemas, capaz
de ampliar seu repertório de possibilidades gráficas e visuais que registram seu
ato criativo.
Nessa trama é possível compreender que “O desenho, ou melhor, a ação
do registro sobre uma superfície, é a materialização do imaterial. O desenho é
utilizado como um instrumento que permite transpor o imaginário do espaço das
ideias para um suporte visível onde se concretiza” (TRINCHÃO, 2015, p. 19).
Mas nem sempre esse imaginário que se transporta para o plano material é
intencional. No caso dos bebês, que intensificam o traço pelo gesto e não
necessariamente pela forma, podemos perceber que o campo imaginário não
está necessariamente acoplado à proposta de figuração. Mesmo assim, espaço
e matéria, enquanto conceito, agrupam-se como conjunto para que haja
visualidade em seu traçar, no ato de produzir um desenho. Desenho,
independente da intenção, representação ou mesmo abstração, é formado pela
materialidade presente na relação entre traços, espaços e matérias. Seres pré-
individuantes como os bebês também tem a potencialidade de acessá-los e
produzi-los.
Sob essa ótica, compreender o desenhar como um agente materializador
que age por meio da fixação de pontos e linhas sobre o papel nos induz a pensar
o que os professores de Educação Infantil esperam que seja, ali, materializado.
Desenhar limita-se a exprimir através de papel e lápis uma ideia? Com a intenção
de garantir um recorte/abertura especifico para esta discussão, a análise sobre
os desenhos dará ênfase àqueles registrados sobre o papel e produzidos no
cotidiano da educação infantil. Isso significa desconsiderar que há desenhos
possíveis em diversos outros suportes e materiais, como a organização espacial
de brinquedos, deslocamento do corpo no espaço e os mais diferentes atos em
que os infantis grafam/produzem no intuito de gerar uma ideia visual.
O infantil que desenha, o faz, de fato para comunicar sua ideia? Desenhar
sobre o papel seria representar, relacionar traço e realidade? Caracterizar-se-ia
pela intencionalidade de seu gesto produtor de traços? Usar apenas elementos
possíveis de serem decodificados pelos seus espectadores (crianças e adultos)
daria os limites para a conceituação do desenho?
João, Maria e os Periquitos. No último ano para concluir a formação em pedagogia, estava fazendo o estágio em Educação Infantil numa instituição pública de Florianópolis. A ênfase nas observações que eu realizava no estágio já estavam direcionadas para o desenho e o cotidiano nas instituições educativas para os infantis. Em uma dessas observações eu registrava a ação pedagógica da professora de contar a história clássica de João e Maria para, então, pedir que as crianças de 6 anos registrassem alguma parte da história por meio de um desenho. Uma das meninas do grupo que eu observava estava bastante interessada em seu próprio desenho, gesticulava e narrava seus traços. Sorria, parava, observava sua produção. Aproximei-me para poder compreender melhor a ação desenhativa infantil e constatei que o tema do desenho não possuía qualquer relação com a história contada. Ela estava produzindo com diversas cores um periquito que conversava com uma periquita. Ambos estavam em um galho e, enquanto ela trocava as cores dos lápis, citava a conversa que imaginava entre os dois. A menina foi uma das últimas a concluir a produção. Enquanto colocava alguns detalhes e traços pontuais, ouvia, ao longe, a professora reforçar a importância de desenhar a parte que mais gostou da história. A professora, então, passou a andar entre as crianças e fazer perguntas sobre seus desenhos. Ao menino que havia feito carros da HotWeels (uma marca de brinquedos) a professora retomou os combinados com seriedade. Ao chegar ao lado da menina que dava vida ao casal de periquitos, perguntou “E você, o que desenhou?”. A menina prontamente respondeu; “João e Maria” e continuou a traçar detalhes em seus periquitos enquanto a professora se afastava elogiando seu desenho. – Repositório de Reminiscências, 2004
Esse registro nos induz a pensar como as professoras se relacionam com
as produções infantis. Os objetivos de quem direciona a proposta seriam os
mesmos de quem desenha? O que, de fato, as professoras esperam encontrar
nas produções infantis? O que os infantis encontram em suas próprias
produções? Que relação literária há entre a proposta e seu resultado? Que tipo
de texto é produzido na ação de desenhar e que sentidos e significados são
extraídos desse texto? É possível afirmar que os infantis ficcionalizam a
realidade em seu ato de desenhar?
É interessante percebermos que para o adulto que observa a produção
de desenhos infantis, a ação desenhativa aparenta características de uma
atividade fácil e instintiva. “Toda criança desenha” ou “é natural da criança
desenhar”, são frases tão naturalizadas que sugerem não haver necessidade de
questioná-las. Leda Guimarães (1996) também produz tais inferências quando
reflete do ponto de vista histórico sobre o desenho em sua tese intitulada
“Desenho Desígnio e Desejo”. Embora não tenha caráter arqueológico, sua
pesquisa indica que “(...) até onde temos notícia, nossos antepassados deixaram
marcas, vestígios, em forma de traços esquemáticos, figurativos e naturalistas,
comprovando essa estranha mania, esse impulso que o ser humano tem de
configurar visualmente o mundo” (p.15).
Mesmo que não tenhamos intenção de enfatizar as questões históricas ou
evolucionistas nessa discussão, trazemos o trabalho da autora e a imagem
encontrada na Cova das mãos tanto para demonstrar a necessidade de
significação por meio da imagem quanto para reforçar que “embora haja um
razoável consenso acerca das etapas de aquisição do desenho, há divergência
sobre sua natureza: ora são apresentadas como um processo natural, ora como
um processo cultural”. (GUIMARÃES, 1996, p.11). Percebemos que a maior
Figura 31- impressão de mãos feitas por caçadores-coletores há 9mil anos na "Cova das mãos", Argentina. Fonte:Sapiens: uma breve história da humanidade. (Yuval Noah Harari)
parte das produções sobre desenho que embasam teoricamente as pesquisas
brasileiras sobre o tema limita-se a reiterar os estudos que consideram ora os
elementos naturais, ora os culturais, para pensar o desenho dos infantis e
secundariza o que, de fato, justifica a presença do desenho cotidianamente
nestas instituições e suas potencialidades na sociedade ocidental, dominada
pela imagem.
Deixar marcas é um movimento humano encontrado nas mais diferentes
culturas, tempos, civilizações. A marca ou sinal gráfico permite tornar algo visível
e essas experimentações, projeções, criações podem ser consideradas as ações
propulsoras para o ato de desenhar e, posteriormente, de produzir arte. Não nos
interessa, para a presente discussão, compreender de onde surge o impulso de
desenhar ou de que modo ele se desenvolve nos processos psicológicos
superiores presentes nos seres humanos. Mas, ao considerar que os motivos
que induzem os homens a grafar se modificam – desenhar já possuiu funções
mágicas, ritualísticas, decorativas, artísticas – o ponto fundamental que induz a
discussão presente nesta pesquisa nos permite pensar em indicativos que
possam auxiliar a responder sobre as funções do desenhar na infância no
sentido de nos fazer entender: o que as crianças deixam visível por meio de seus
traços para que os adultos acessem e desvendem quando elas desenham nas
instituições educativas direcionadas à pequena infância?
O desenho do casal de periquitos permite que pensemos sobre a
possibilidade de criar leituras interativas com os discursos infantis no sentido de
apoiar a compreensão crítica de imagens e de estruturas comunicativas. Assim,
pensar não apenas em uma literacia visual, mas também em uma literatura que
permeia e perpassa esse processo de produzir a existência da infância pelos
próprios infantis por meio de sua ação desenhativa. Processo não raro capturado
em interpretações adultivas limitadoras, como os etapismos, as formas e
desenhos prontos, as escolarizações avaliativas.
A ação infantil apresentada ao desenhar periquitos pode ser considerada
uma fuga do objetivo da proposta e é também, em algum momento, uma fuga.
Além da evasão ao obrigatório que escolariza, porém, percebe-se nesse ato, o
possível. O possível que estaria previsto já no etapismo e circundado num
interpretativismo que decompõem os atos dos infantis, inclusive suas atividades
artísticas. “Foi o que ela deu conta de fazer com aqueles recursos, aquela faixa
etária e aquele arcabouço de experiências”, poderiam dizer. Como se o desenho
permitisse ilustrar a Realidade acessada pela criança, como se a compreensão
de mundo apresentada pela criança fosse a mesma acessada pelo ato
interpretatório do adulto.
Tais características investigativas da ciência educacional, procuram -
mais do que na pesquisa acadêmica artística – uma aproximação com a
realidade, um desejo de expressão e fala da realidade que parece passar ao
largo de uma possibilidade, potência e caráter ficcionalizador no desenho dos
infantis. Ainda que se considere o caráter humano pautado no simbólico, a busca
pela significação do simbólico no traço infantil desconsidera, em grande medida,
suas potências alegóricas. Cabe lembrar que as interpretações do ser-adulto
sobre as produções infantis são também criações sobre o real, na mesma
medida que o são os desenhares nas infâncias. Nesse sentido, o aspecto
pedagógico, o aspecto histórico e o aspecto cultural parecem enfatizar a
apreensão da realidade e sua representação, o ajustamento do traço infantil ao
que se considera verdadeiro, de tal modo a anular as possibilidades do
simulacro.
8 – Representação e Simulacro
Deleuze (1974, p. 262) em seu texto “Platão e o Simulacro”, oferece pistas
para entender os textos visuais desenhado pelos infantis quando diferencia o
original, a cópia e a cópia da cópia (simulacro):
Partiríamos de uma primeira determinação do motivo platônico: distinguir a essência e a aparência, o inteligível e o sensível, a ideia e a imagem, o original e a cópia, o modelo e o simulacro. [...] os simulacros são como os falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, um desvio essenciais.
O simulacro condensa em si a discussão entre realidade, cópia e
representação, seria uma cópia que representa elementos que nunca existiram
ou que não possuem similares na realidade. Nesse sentido, a cópia buscaria
semelhanças com o modelo. O simulacro, no entanto, permite a existência de
uma imagem sem semelhança. Ele não esconde a verdade, “é a verdade que
esconde que não existe. O simulacro é verdadeiro”, como afirmou Baudrillard
(1988).
O desenho das crianças pequenas aproxima-se, assim, de um simulacro,
pois permite o desvio, o talvez, a ausência de gabarito. Não é possível fazer uma
imitação estrita da natureza, como indicaria Platão, visto que, ao transpor para
um suporte bidimensional algo que possui em si profundidade, dando-lhe
volume, já não pode ser considerado uma imitação mas uma expressão
(MERLEAU-PONTY, 1984). Para além da representação, desenhar implica em
exprimir mais a percepção à visão. Percepção esta advinda da experiência
perceptiva, assim como pensamento, sem estar, porém, “alicerçada em
sensações, mas em unidades de sentido” (MULLER, 2001, p. 61).
O simulacro implica grandes dimensões, profundidades e distâncias que o observador não pode dominar [...] há no simulacro um devir-louco, um devir ilimitado, como o do Febo em que “o mais e o mesmo vão sempre à frente”, um devir sempre outro, um devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual. (DELEUZE, 1974, p. 264)
Frente ao simulacro, a professora se torna um sujeito de potência capaz
de promover discursos e recursos que ampliem as possibilidades estéticas das
produções infantis. No entanto, é possível encontrar intervenções que
enformam, ou seja, colocam a produção infantil em fôrmas, padrões,
estereótipos, aparências pré-determinadas. A experiência perceptiva restrita da
professora consagra estereótipos aceitos socialmente e reproduzidos
indiscriminadamente porque se dirigem à representação, lógica dominante.
A lógica do simulacro, no entanto indica que, quando uma representação
fracassa, torna-se outra coisa, ou seja, um novo. O fracasso representativo diz
do que não existe, diz o indizível, produz o infinito vislumbrado nas coisas finitas.
Figura 32 – Ecce Homo, de Elias Garcia Martines antes e após restauração feita por Cecilia Gimenez.
Um simulacro trazido para o texto quase como uma sátira, é a restauração
de um quadro histórico do século XIX feita sem autorização por uma espanhola.
Sua pintura, embora desejasse qualificar o quadro alterado pelo tempo, distorceu
completamente a importante obra de Elias Garcia Martines, desfigurando a
imagem inicial. O resultado chamou tanta atenção do público que o santuário de
Borja, na Espanha, passou a receber inúmeros turistas que desejavam conhecer
pessoalmente a nova obra produzida. Ficção produzida a partir do real sem
representá-lo. A palavra que representa é ainda mais limitada que a imagem,
impossível traduzir um signo pelo outro, porque o fracasso em dizê-la
plenamente produz um dizer parcial. A crítica aqui feita à representação está em
sua intensão de substituir um termo por outro, um signo por outro, tendo em vista
que tudo tem uma imagem, mas essa imagem não precisa necessariamente
estar de acordo com a realidade, visto que ela pode ser tomada como um
simulacro.
A busca pela representação denuncia a tentativa de domar o simulacro
produzido e evitar transgressões ao padrão visual esperado pelos adultos no
desenho dos infantis. Mesmo quando a criança busca certa semelhança com o
real, ainda assim ela inventa formas e produz novas imagens, num processo de
criação que comporta a ficção, a fabulação, tendo em vista que em seu desenho,
o infantil não representa não representa necessariamente um real externo, mas,
ao desenhar, inscreve um real válido em si próprio, capaz de produzir discurso,
narrativa, interpretação, “afirmação do simulacro; firmação do elemento na rede
do similar” (FOULCAULT, 2014, p. 23). O simulacro se torna, então, uma
produção simbólica capaz de interpretar e produzir o mundo.
“Representar, embora tenha vários sentidos, aqui é compreendido como
a materialização imediata de algo externo que foi apreendido pelos sentidos,
percebido pela visão, interpretado pelo cérebro” (SOUZA FILHO, 2015, p. 51). A
imagem é formada a partir das relações e mediações sociais experienciadas ao
longo da vida. Está diretamente direcionada com o mundo vivido, o real e só é
definida pelos repertórios que acessamos. Pode ser considerada uma “unidade
de manifestação autossuficiente, como um todo de significação” (p. 53).
Gustavo Von Ha utiliza-se da pintura gestual para questionar a questão
da originalidade e autoria das produções. Sua obra aponta para o original como
algo impossível se levarmos em consideração que para criar fazemos sempre
referência a outros autores, escolas e movimentos, seja no âmbito científico,
filosófico ou artístico. Deleuze (1987) corrobora ao afirmar que no ato de criação
ninguém cria no vazio, ninguém cria do nada.
Figura 33 – Gustavo Von Ha. Não-Pintura 28 TA, 2016. Óleo sobre tela. 16 x 22 cm
O artista se apropria de pinturas como as de Pollock e Klein mas, ao invés
de recriar suas obras - fazer aquilo que chamávamos “releitura” - ele produz
imagens possíveis. Suas inferências a partir das referências, produção de
simulacros que não intencionam representar a realidade ou copiar a obra. Cabe
lembrar que os simulacros produzidos não são aleatórios ou espontâneos, como
uma mera apropriação visual. Há estudos e assimilação de procedimentos,
materiais, performances. Re-elaboração e re-tecido. Algumas obras são
produzidas pelo gesto da raspagem de telas copiadas de Volpi ou Hércules
Barsotti, por exemplo, mas o artista o faz como uma citação, constituindo um
estilo.
Seu gesto não é direcionado para o construir, mas para o desfazer. Desfaz
formas e contornos. Acumula pinceladas de tinta em excesso até que a imagem
inicial fique submersa numa consistência material quase tridimensional. Produz
simulacro e ficção, paródia encenada pelas próprias obras de artistas outros.
Von Ha caminha pelas beiras de um falsificador, no entanto, sua imitação e
simulação tem a ação transgressora e criadora do seu gesto. Suas obras
questionam a noção de autoria e originalidade quando partem de outras matrizes
e reforçam a ausência da aura na obra e na imagem apresentada como resultado
estético produzido.
A cópia nas instituições educativas ainda hoje é um ponto de discussão,
considerada um caminho questionável no ato de criação infantil. A criança copia
quando olha, observa, busca fazer igual. Porém, quando copia, ressignifica e se
apropria, realiza acréscimos e modificações: simulacro. Ainda é possível
observarmos o desejo por parte das professoras – e, em algumas teorias24 mais
que outras – de que os infantis expressem aquilo que internamente têm
formulado. Talvez esse modo de compreender as produções simbólicas dos
infantis secundarize a concepção de que o ser humano se constitui e se individua
na relação mediada com o outro. A criança, assim, deseja o desejo do outro. A
prática social de desenhar é culturalmente ensinada/aprendida, ou seja,
O desenho da criança, desde cedo, sofre influência da cultura por intermédio de materiais e suportes com que faz seus trabalhos, de imagens e atos de produção artística que observa em TV, computador, gibis, rótulos, estampas, objetos de arte, vídeos, cinema, fotografias e trabalhos artísticos de outras crianças (IAVELBERG, 2013, P. 83).
A criança imita para apreender, assimilar e tomar para si. Sua imitação
não é neutra, mas ativa e ressignificada. Por ter acesso a formas desenhadas, a
criança tende a desenhar e tende a desenhar de modo semelhante àquele
encontrado em seu meio, no sentido de inserir-se, assemelhar-se, identificar-se
com os sujeitos com os quais interage ou acessa. Mais uma preocupação como
professora: que fontes de imagens disponibilizamos aos infantis no cotidiano
educativo? A ideia de Fonte de Imagens foi desenvolvida por Wilson e Wilson
(1997) e indica o papel da imitação na ação de aprender a desenhar. Os autores
concluem que
as crianças mais bem-dotadas e produtivas em arte desenham primeiramente a partir de imagens derivadas das medias populares e de ilustrações – este empréstimo e o trabalho em cima de imagens preexistentes em alguns casos começou antes dos seis anos (p. 59).
Ou seja, as crianças cujas fontes visuais partiam de fontes pré-existentes
e, por meio da imitação, eram acessadas e ressignificadas apresentavam mais
24 A pedagogia Waldorf, por exemplo, pautada no amplo trabalho produzido por Rudolf Steiner, defende que disponibilizar imagens e modelos dificulta a criação de uma imagem interna da criança, que vai se moldando na medida em que a criança acessa elementos do real e, a partir dele, cria seu próprio modo de dar visualidade ao que está sendo narrado.
habilidade na construção de suas ideias visuais. Ou seja, a cópia dá corpo à
potência do simulacro. A questão posta é condição de superação de um
esquema único “congelado” de cópia, para a produção de desenhos com
informações necessárias sobre os mesmos, em uma reinterpretação de imagem
– que é inerente ao processo criativo. Isso não significa deixar que as crianças
copiem modelos com habilidade, mas, justamente, perceber que tipo de imagens
estão disponibilizadas como modelo nas instituições para que, a partir delas,
possam realizar suas próprias criações.
Duas crianças estavam sentadas à mesa colorindo um desenho entregue pela professora. No centro havia um pote com lápis de cor para compartilharem. Uma das crianças convida a outra para “fazer igual”, “primeiro que nem eu, outro dia eu faço que nem você”. A criança que toma a frente do processo criativo escolhe o preto para contornar todo o desenho. A outra criança expressa reprovação em sua fisionomia e tenta sugerir “fica mais bonito se contornar colorido. Se vai pintar de vermelho a blusa, então contorna de vermelho”. A outra responde que prefere “assim, preto” e que “outro dia a gente faz do seu jeito” enquanto continua contornar com um único lápis. A outra, visivelmente contrariada, segue a sugestão da amiga. O desenho não é concluído, mas as partes pintadas estão muito semelhantes, com as mesmas cores e tentativa de produzir a mesma intensidade de cor por meia da força do lápis contra o papel. (Repositório de Reminiscências, s/d)
A imitação observada reforça as fontes de modelo externo, as interações,
mas, principalmente que o desenho semelhante integra e traz pertencimento ao
grupo em que se inserem. A interação entre as crianças, inter-agir, permite que
as crianças se apropriem de modos de desenhar que já estão em processo de
bidimensionalidade, facilitando o processo de internalização de modelos
imagéticos.
A cópia também pode servir como um obstáculo no processo criativo
quando a criança a ela se limita. O modelo copiado não contribui para a
ampliação dos olhares e dos esquemas visuais pela criança.
Estava observando uma criança desenhar o contorno de um gato. A menina pegou uma folha em branco e passou a traçar a silhueta mas, ao chegar nos pés seu gesto destoou daquele esperado por ela e não produziu o traço da maneira como ela gostaria. Fez uma cara de decepção, levantou-se e pegou outra folha branca. Esse movimento de tentar reproduzir um modelo e não produzir o traço da maneira adequada repetiu-se por 8 vezes. Por fim a professora pediu que ela parasse de pegar folhas em branco e reutilizasse as folhas que já estavam sobre a mesa. A menina desiste do desenho, deixa os lápis e folhas sobre a mesa e passa a buscar bonecas e outras amigas para interagir. Vou até a mesa e observo os desenhos: as folhas estão muito semelhantes, destoando pouco do formato ou tamanho, num contorno preciso da silhueta
estereotipada de um gato até a altura das patas e o traço ausente a partir das patas. (Reminiscências...)
O desenho estereotipado seria, na verdade, a negação do processo de
criação no ato de desenhar, impondo um padrão adulto e culturalmente aceito
que impede o infantil de colocar de si em sua produção visual. A menina
nitidamente estava se acomodando internamente um modelo pré-existente.
Precisou repetir e copiar muitas vezes e, ainda assim, não se deu por satisfeita
com o resultado, abandonando-o. A partir dessa acomodação talvez fosse
possível iniciar uma ressignificação a partir do modelo, gerando autoria, o que
não foi possível observar devido a sua interrupção. Cabe aqui, ainda, uma
relação com o eterno retorno de Nietszche, não como um movimento que busca
voltar ao idêntico, representar a realidade, ou fazer sempre do mesmo modo, um
mais do mesmo como finalidade, mas compreendido como a volta de uma
espiral, de onde se espreita aquilo que jamais se alcança ou se resolve.
Figura 34 - Processo de apropriação de esquema visual para produção de imagem. Acervo pessoal, 2018
A cópia da cópia, o simulacro, neste caso pode ser entendido não como
uma imitação que deseja representar o real, mesmo que parta de (ou chegue a)
uma realidade, mas uma produção que, embora possa mover-se por um exemplo
ou padrão, não deseja remeter-se a nenhum modelo original. Uma construção
virtual, uma imitação da imitação. A falsa semelhança, característica do
simulacro, permitiria a presença de uma dessemelhança, desvio, perversão,
ausência de mimesis e representação.
Não domar o simulacro é negar tanto o original quanto a cópia num jogo
de máscaras que Barthes chama de effet de réel, ilusão referencial que põe em
relação o referente e o significante sem necessariamente um significado,
alternativas visuais capazes ou não de registrar as impressões perceptivas que
seu modo especifico de ver necessita. Para Platão, o real estaria no plano das
ideias, um real inatingível pelas aberturas sensoriais presentes no homem.
Porém, pensar o simulacro por meio da filosofia da diferença é permitir a
existência dos simulacros em sua potência criativa.
O infantil não desenha para copiar o real ou representá-lo, mas para
produzir uma composição eficaz por meio da interação entre elementos artísticos
como a cor, forma, linha, espaço. Imagem é texto visual porque comunica e
constrói significados, esconde narrativas, pressupões diálogos, grita sensações.
Assim, o infantil constrói suas representações de mundo a partir de seus
contextos culturais e experiências vividas, o que engloba a educação, os valores
e crenças, o acesso a diferentes textos e discursos estrategicamente elaborados
para moldá-los. Desenhar passa pelo processo de produzir imagens, ou seja,
produzir traços que dão forma a algum discurso. Assim, desenhar não busca
disponibilizar uma imagem semelhante à realidade, mas materializar o discurso
acessado no real.
Se tomarmos os esquemas visuais observados em cada fase da História
da arte podemos perceber que, embora a natureza seja a mesma, o modo como
um artista renascentista, modernista ou contemporâneo, por exemplo,
traduziram visualmente a mesma temática, atingiram resultados completamente
diferentes, estilos linguístico-visuais específicos (relacionados ao meio socio
cultural sim, mas para além dele, tendo em vista aquilo que já foi dito por
Deleuze, que um artista produz para um povo que ainda não existe, mas com
base no que tem disponível em seu momento existencial). Assim, o que
justificaria o encontro de respostas tão diferenciadas para imitar mimeticamente
a mesma natureza? O que teria se modificado no trato com o objeto visual? É
possível concluirmos, assim como Gombrich, que o homem buscou novos
modos perceptivos de acessar a natureza, novos interesses e especificidades
foram sendo destacados na relação com aquilo que desejava captar, os estilos
foram sendo glorificados não por sua potência de imitação, mas por sua
recepção naquele espaço sociocultural, entre o público disponível e o estilo
encontrado pelo artista, por meio da experiência perceptiva Na medida em que
humaniza seus sentidos, também complexifica suas experiências e produz sua
existência.
Assim, o processo de criação de uma imagem, perpassando ou não por
modelos e cópias, não significaria domar o simulacro por ela produzido em busca
de um resultado social e previamente esperado, mas utilizá-lo como parte de um
processo criativo maior, de forma a valorar a experiência criadora. O ato
desenhativo dos infantis abriria espaço, então, para ficcionalizar, ou seja,
expressar um modo de ler o mundo que, em si, produz uma realidade específica.
9 – Gesto
Tendo como característica deixar marcas, cicatrizes, sulcos em seu
suporte, o desenho materializa um gesto. Por meio do desenho é possível
revisitar os gestos, vê-los, explorá-los, percebê-los, (re)conhecê-los. O desenho
mantém viva a ação do seu autor, tendo em vista que a sua materialidade contém
o gesto em seu traço. Compreender que o desenho parte do gesto é um
destaque importante que não deixa o gesto se perder ou mesmo ser silenciado
- é força e potência. O traço desenhado torna-se o rastro de um gesto, numa
nomeação da desconstrução, traço de traço, retraço. Traçovestígio de um ato.
Ler o texto visual dos infantis alheio ao gesto por eles produzido é limitar sua
compreensão a uma superfície que não contém a intensidade autoral nele
registrada.
Para Le Breton (2009, p. 09),
Na perspectiva da dimensão simbólica, da capacidade própria ao homem de fixar vínculo social pela criação de sentidos e valores, a unidade da condição humana implica diferenças tanto coletivas quanto individuais. De um lado ela gera a diversidade cultural; do outro, ela acarreta a singularidade das maneiras pelas quais os indivíduos delas se apropriam. As percepções sensoriais, ou a experiência, e a expressão das emoções parecem emanar da intimidade mais secreta do sujeito; entretanto, elas também são social e culturalmente modeladas. Os gestos que sustentam a relação com o mundo e que colorem a presença não provém nem de uma pura e simples fisiologia, nem unicamente da psicologia: ambas se incrustam a um simbolismo corporal que lhes confere sentido, nutrindo-se, ainda, da cultura afetiva que o sujeito vive à sua maneira.
O gesto, palavra que etimologicamente se relaciona a fazer ou carregar,
está para o movimento simbólico do homem na mesma medida em que
constatamos que é pela mediação com o outro que o sujeito estrutura e organiza
os significados existentes no plano do real. O outro, não como uma oposição
objetal do eu, mas como um outro eu, com profunda e inconsciente interioridade
que o individua.
Assim, quando se compreende que o corpo, como instrumento
constituidor do eu, não tem como característica vital a força reativa, passiva,
inativa, entende-se que ele é instrumento sensibilizado pelas intenções dos
sujeitos que se constituem na relação com o outro e com o mundo. O corpo guia
os gestos, movimentos, ações sem que haja um planejamento ou reflexão
previamente estabelecidos. Muitas vezes a imagem é consequência de um
movimento/acontecimento e não o pré-texto para que o gesto aconteça. Essa
situação é muito presente nas produções em arte realizadas por crianças bem
pequenas, por exemplo, quando a figuração não faz parte dos interesses
gestuais realizados.
De acordo Le Breton (2009, p. 54),
O significado de um gesto ou de uma postura deduz-se do contexto preciso da interação. Mesmo nessas circunstâncias, a decifração amiúde se verifica, incomoda, pois as manifestações corporais jamais são transparentes. A palavra tampouco o é (também ela pode decorrer de uma manobra, de um lapso, de uma exposição indiferente ou sincera), pois que as palavras remetem à história individual, a suas intenções nessa relação ou a sua conexão com o inconsciente. (...) Um mesmo gesto ou uma mesma mimica, intrinsicamente polissêmicos, traduzem diferentes significados, ou melhor, diferentes indicações de sentido, de acordo com as diversas sociedades humanas.
Nesse sentido, o gesto infantil torna-se uma linha de fuga, um lugar sem
lugar de uma errância de sentido. Indeterminado e indefinido. Particularmente,
o gesto infantil registrado pelo traço no papel, se torna um movimento significante
sem uma resposta ou resultado específico, mas, indica uma significação de
acordo com a convenção daquele grupo social. Que tipo de convenção sobre os
gestos dos bebês as professoras têm ajustado no âmbito da educação
institucionalizada para as infâncias, que se permitam ir para além das etapas de
desenvolvimento do grafismo?
Figura 35 - Jackson Pollock, One (Number 31), 1950 Óleo e esmalte sobre tela não revestida, 269,5 x 530,8 cm.
A pintura gestual
esteve presente nos
movimentos artísticos e
talvez tenha ficado
conhecida com os
trabalhos de Pollock e
outros artistas que
enfatizavam as poéticas
abstrato-expressivas e
disponibilizavam a
visualidade não-
geométrica e não-
figurativa (presentes
principalmente no
expressionismo abstrato
do segundo pós-guerra).
Figura 36 – Jackson Pollock, 1950. Fonte: https://www.recantodasletras.com.br/poesiassurrealistas/1409831
Os trabalhos do artista provocam nossos sentidos e nos afetam pela cor,
gesto e intensidade presentes e, equitativamente, desestabilizam as verdades
artísticas até então constituídas. Esse modo de produzir arte também é
relacionado à escrita automática surrealista, acesso direto ao inconsciente e põe
em xeque a representação, a forma, a significação e abre espaço para que se
discuta a incomunicabilidade visual do trabalho artístico. Harold Rosemberg
matemático que pensava as formas geométricas, afirmava que essas obras não
resultavam em uma imagem, mas em um acontecimento.
Em um grupo de crianças, foi constatado uma postura perfeccionista no que se refere aos desenhos produzidos. Crianças estagnavam frente à folha e diziam “não conseguir” realizar um desenho tendo em vista a alta expectativa do resultado. Desejavam que seus desenhos se assemelhassem aos produzidos pelos adultos, quando não pelos modelos presentes em diferentes mídias. Para desconstruir o produto
e enfatizar o processo gestual de traçar foi planejada a seguinte atividade: a professora apresentou ao grupo uma placa de água congelada e explicou que a proposta era desenhar sobre aquele suporte. O gelo tem como característica a impermanência e a impossibilidade de resultados fixos previamente planejados. Ao iniciar a pintura, o movimento dançante da tinta chamou a atenção. As formas se borram e produzem sensações abstratas e livre das limitações figurativas. Tendo o gelo como um material inusitado, as crianças sentiram-se mobilizadas a explorar a potencialidade do novo material. O resultado deixa de ser o foco e dá espaço para a experiência criadora. Mãos testam o novo, investigam formas, movimento, consistências. Como continuidade no sentido de ampliar os repertórios e a potência da atividade proposta, a professora registrou por meio de fotos a experiência visual e sensória vivida pelos infantis. As imagens foram posteriormente socializadas com os pequenos e serviram como um disparador para novas experiências, observação de detalhes que num primeiro momento não foram averiguados, puderam ser retomados e vivenciados no plano imagético. (Repositório de Reminiscências, 2017)
Figura 37 - Desenho sobre Gelo - acervo pessoal, 2017
O gesto de traçar é parte fundamental do processo de criar a visualidade
textual, mas o produto, o resultado do gesto, também é uma das etapas do
processo. Nesse sentido, é fundamental valorá-lo adequadamente: não se
desconsidera o resultado, nem tão pouco se considera apenas ele. Pensar o
produto no sentido de superar o desenho azulejo, caminha no sentido de produzir
oportunidade de inferências visuais, espaços que possam ser enriquecidos por
meio das diferentes mediações. Enriquecer e nutrir a produção simbólica dos
infantis é saber onde se quer mexer para ampliar a potência do traço.
Trata-se de pensar os devires da arte pelas vias do gesto, o traço e suas
múltiplas manifestações. A autoria no ensino, tanto nas produções simbólicas
dos infantis quanto no ato performático do professor induz a substituição do
papel de professar pelo de ensinar (marcar com um sinal). A atuação desse
professor, implicada em discursos e contornada por palavras, textos e
visualidades, faz com que a ação pedagógica potencialize uma atitude artística
frente à vida, uma preparação performática do ato de ensinar, uma arte de si,
uma construção de si por meio de questionamentos e respostas estéticas,
expressivas, gestuais e poéticas.
Nesse sentido, as imagens portadoras de gestos sobrevivem em des-
tempos, nas palavras de Didi-Hubermann, como um espectro de gestos
produzidos em complexas estratificações temporais e destaca-se numa
dimensão de performance: o gesto como movimento afirmativo, potência de
registro, que revela a ação expressiva do artista sobre a tela e reforça sua
individuação no sentido de continuidade daquilo que se foi (ser). “Embora o gesto
possa ser exemplar sem visar a efeitos tão ruidosamente espetaculares, ele é
indissociável de uma intenção de parecer ou mostrar, por onde já se introduz,
ainda que discretamente, a ideia de espetáculo” (Jean Galard). No entanto, por
mais que se destaque o papel de atuação pelas vias do gesto, também permite
um questionamento acerca da aura e mitificação da obra, bem como sua relação
com a representação e a realidade. O gesto é irrepetivel, mas o resultado
registrado no papel pode ser multiplicado, repetido, ressignificado.
A linha informe produzida pelo gesto, sendo uma manifestação plástica
do desenho, perde, de certo modo, seu caráter de fronteira, que delimita e
encerra em si a característica de ligar pensamento, olhar e gesto. Ela passa a
desenhar-se, força ativa que provoca trocas e tensões, lida com o vazio e o caos
e encena não mais os limites do desenho, mas a potencialidade do gesto
produzido pelo corpo. As linhas resistem.
Embora “o gesto poético faz a realidade não ser totalizável por ser sempre
da ordem das escolhas ou dos consentimentos para agir. Gesto que se revela
no toque, naquilo que captura meu corpo, me toca, me afeta” (POLHMAN;
RICHTER, 2008, p.916), ele comporta vibrações do acaso, acidentes positivos,
ações de um pensamento não verbal que existe e resiste fora dos signos
linguageiros.
Se o poético envolve o gesto, a expressividade singular dos traços, um
estilo, um modo de tensionar as forças ativas e reativas via subjetividades
(individuais ou coletivas), então, criar um texto visual, produzir formas é um modo
de configurar alegorias e ficcionalizar mundos possíveis tendo o corpo e tudo o
que o corpo pode, seus modos de se pôr no espaço, de exprimir(-se), inter-agir
com outros corpos, materiais, matérias, sua potência de ser, um
ato lúdico de investigar e decifrar o mundo. Ato que se elabora através de ritmos, gestos e procedimentos que independem da palavra para acontecer. No instante de figurar – plasmar traços, manchas e volumes – os pensamentos não precisam ser verbalizados, nem sequer pensados. Basta o corpo agir. (POLHMAN; RICHTER, 2008, p. 915).
Na produção dos infantis é importante que se destaque também a matéria,
os traços ou pinceladas, a quantidade e intensidade no uso das tintas e cores e
não apenas distinguir uma imagem ou figura (o desenho legendado). Essa
aproximação valoriza o processo mais do que sua finalização. Cabe lembrar que
o resultado dos seus gestos, o desenho que os registrou, também faz parte do
processo e é, na mesma medida, fundamental: a ilusão do gesto, o gesto
ficcionalizado. Embora as crianças bem pequenas possam apresentar um
desenho produzido pelo gesto, muitas vezes, espontâneo, impensado, não
intencional, ainda assim corroboram à observação e análise acerca da matéria
que presentifica o gesto, o mundo, os corpos. O resultado da produção dos
infantis, ou seja, o registro concreto, com cor, forma, dimensão, textura e
visualidade, apresenta potência, mas não explicita a totalidade do processo ou
mesmo a capacidade de afecção do que permanece invisível, impalpável,
desconhecido, perdido nos vincos da folha e nas rachaduras que abrigam o
traço. Desenho como coreografia do gesto, movimento de passagem registrado
pelo traço, liberdade do infantil que se apropria do próprio corpo, autonomia e
liberdade. Para Barthes, é preciso que nós “concedamos a liberdade de traçar”.
Para Kandinsky (apud ARGAN, 1998) “o signo não preexiste como uma
letra do alfabeto; é algo que nasce do impulso profundo do artista e, portanto, é
inseparável do gesto que o traça”.
A professora apresenta um material para desenhar e pintar que não era comum na rotina daquelas crianças que beiravam os seis anos. “Para testar o giz pastel vamos fazer o desenho que quisermos, mas antes de começarmos, vamos pensar naquilo que querem desenhar para, só então, iniciar seus desenhos”. Nos meus primeiros anos como professora era comum pedir que as crianças pensassem antes de dar início ao traçado. Talvez para garantir (ou delimitar?) a intensão do gesto e auxiliar no processo de organização visual de suas produções. Uma das primeiras ações como pesquisadora, foi observar como se dava meu próprio ato desenhativo. Passei a reproduzir as ações que indicava às crianças. Um dos indicativos que permitiram que eu desalojasse minhas certezas frente ao processo de desenhar foi, justamente, planejar o desenho. Quando registrei o traço imaginado, meu gesto alcançou um resultado diferente. A falha na representação conduziu meu desenho para outros rumos e o processo de criar afastou-se das imagens mentalmente pré-concebidas. Embora o resultado dos meus gestos, rastros e traços tenham se afastado do meu objetivo inicial, o resultado produzido validou esteticamente meu processo de criação. (Laboratório de Reminiscências, 2014)
Os acidentes favoráveis, para Jean Dubuffet, ampliam a potência dos
traços inicialmente imaginados e multiplicam os caminhos gestuais e sensíveis
das linhas. Os acidentes favoráveis fazem parte do processo criativo como um
elemento de potência, força ativa. O texto visual produzido pelo traço é “descrito
como um corpo marcado de afetos” (Merzeau, 2009, p. 127). Embora tenha
relação com o real, o traço ficcionaliza o gesto e dá corpo às linhas. A linha
insubmissa às formas pré-estabelecidas institui itinerários improváveis,
extravasa limites e adquire qualidades fora do âmbito do possível. O desenho é,
por definição, uma produção imprevisível mesmo quando previamente
planejado. Um “fato aberto como a poesia, de uma veemência lírica muito mais
livre e aberta” definia Mario de Andrade, ao compará-lo com a pintura.
É justamente por seguir uma lógica de indeterminação, liberdade e
abertura, por não se limitar ao que é possível, que o desenho ainda é muito
desprezado por certa parcela da comunidade cientifica. Fato este que foi
possível constatar no panorama de pesquisas realizado na Parte 2, quando se
observa que, embora o desenho seja definido e conceituado como uma
linguagem artística, a área da arte não é o campo que mais pesquisa sobre uma
linguagem que lhe é própria. Por que outros campos lhe dão mais importância?
O que há no desenho que têm interessado campos outros sem relação direta
com a produção artística? É possível discutir desenho no âmbito da literatura?
10 - Texto visual e desenhações infantis
Para compreender o que seja texto é preciso registrar que, assim como a
literatura, este é um conceito em movimento (Bergson). Além disso, aceitar que
as imagens podem constituir-se como um texto é afirmar primeiramente que as
imagens se organizam num constructo visual capaz de ser lido. O desenho de
imagens não é entendido aqui como uma ilustração, mas uma construção
textual, um espaço polissêmico onde se entrecruzam sentidos que produzem
imagens (BARTHES, 2004). O texto enquanto malha de sentidos indica o fabricar
e o fabricado, o tecer e a tecido.
As teorias linguísticas e literárias têm, cada vez mais, aberto e
dessacralizado o papel do texto e, mais especificamente, do texto literário. Com
Barthes e Derrida, ampliou-se sobremaneira a capacidade de compreensão e
apreensão daquilo que pode ser considerado texto. Nesse sentido, um texto tem
e é constituído também por seus interlocutores e contextos e pode ser
apresentado sob diferentes materialidades, seja verbal, gestual, sonora,
imagética ou outras formas que são utilizadas para a comunicação humana. Para
pensar o desenho infantil como texto visual, literário, ficcionalizante, capaz de
ser e produzir ficção, abstração e fabulação, é preciso compreender que a
definição do que seja e da importância do texto está diretamente relacionada à
definição do que seja literatura. Faz-se imprescindível retomar o que seja a
literatura e o objeto literário para, então, traçar sua relação com o desenho infantil
e as produções simbólicas realizadas nas creches e pré-escolas.
Pode-se dizer que a pergunta que define o que seja a literatura ou o que
constitui um fenômeno literário é uma pergunta tipicamente filosófica e força-nos
a delimitar o objeto para, a partir dele e dentro do possível, configurá-lo e
conceituá-lo. Ou seja, antes de mais nada, é preciso estabelecer os princípios
básicos e epistemológicos daquilo que alguns teóricos intitulam ciência da
literatura, tendo em vista que a própria cientificidade da literatura é
historicamente questionada e debatida.
Para tanto, primeiramente revisitamos algumas das principais cartografias
dos estudos literários da segunda metade do século XX, com ênfase naqueles
mais presentes no universo acadêmico brasileiro, como Kayser, Wellek e
Warren, Aguiar e Silva, Eagleton, Culler e Compagnon. Estes foram autores e
obras que, em diferentes momentos e modos, serviram como orientação para os
estudos brasileiros da área que tomariam para si o papel de compreender e
definir a literatura, o objeto literário, a crítica e a teoria literária. Embora cada um
dos autores citados posicione-se de um modo, é fato que todos reconhecem a
complexidade de pensar a teoria literária no sentido de compreender o que seja
literatura e seu objeto.
Cabe lembrar que a filosofia se torna fundamental como arcabouço teórico
na medida em que disponibiliza certa “garantia instrumental” para que se
investigue o “objeto” da literatura: não apenas a obra, ou o autor, ou o leitor, mas
o fato literário – que engloba todos esses outros elementos, em alguma medida.
Assim como outros campos do saber e talvez de modo mais explícito, a literatura
vem, ao longo de sua história, questionando a si mesmo e a sua cientificidade.
Do que trata a literatura? Do mundo ou de si mesma? Há cientificidade ou
achismos consensuais em considerá-la teoria? Isso porque em alguma medida,
embora não de modo fixo, via-se a relação entre literatura e ciência, relação esta
necessária no processo de legitimar um campo de conhecimento.
Uma frase de Derrida ficou bastante conhecida sobre sua visão do que
seja literatura. O autor a trata como uma instituição histórica mas, na mesma
medida, de ficção, que tende a extrapolar a própria instituição e que tem, em
suas palavras, “o poder de dizer tudo, de desvencilhar-se das regras, de desloca-
las e, desse modo, instituir, inventar e também suspeitar da diferença tradicional
entre natureza e instituição, natureza e lei convencional, natureza e história”,
“esta estranha instituição que nos permite dizer tudo”. A literatura, que não se
resume às Belas Letras ou à poesia, dá licença para que o autor fale sem que
haja censura e, ao mesmo tempo, permite que não haja finalidade ou função ao
que é dito, no sentido de submeter-se a um único significado, programa ou
método regulador. Para ele “a liberdade de dizer tudo é uma arma política muito
poderosa, mas uma arma que pode imediatamente deixar-se neutralizar como
uma ficção”. Isso não elimina a estranheza de uma instituição capaz de criar
regras que contradizem as regras que a fundaram.
A literatura, assim como qualquer fenômeno histórico que não se prende
ao contexto, sempre está em movimento e em busca de abertura. Significar é a
essência da língua, mas o que define a capacidade especial que a língua literária
tem? Ela realmente a tem? Para autores como Barthes e Derrida, a realidade só
pode ser feita pela linguagem. Não há nesse sentindo, pureza no mundo já que
ele sempre é permeado pela linguagem. A realidade nos estudos literários
contribui para sair da lógica binária onde se fecham os literatos: ao invés de falar
do mundo ou da literatura tem-se que a literatura fala da literatura e do mundo.
Afinal, se o ser humano desenvolveu a linguagem foi para tratar de coisas que
não são da ordem da linguagem. A literatura que usa a linguagem no âmbito
estético faz, por meio da obra, uma relação entre autor, leitor, realidade.
Autores como Barthes, Foucault, Bakhtin, Adorno, Derrida e Deleuze
contribuíram para a passagem da perspectiva simbólica e totalizante da
compreensão literária para uma perspectiva alegórica onde cabe o fragmentário.
Esse olhar alegórico coloca em cheque a visão tradicional de organização
racional do mundo, herdeira do iluminismo do século XVIII. O alegórico e
fragmentário quebram a visão dominante, unilateral, canônica, hierarquizada
encontrada no âmbito da crítica literária. As alegorias se multiplicam em
diferentes correntes críticas ou, como diria Deleuze, de maneira proliferante e
rizomática. A teoria literária é levada a uma riqueza e diversificação - mas
também, a uma crise e desorientação, como indicam os estudos de Todorov e
Ludmer.
Assim, a literatura se produziu a partir do desvio, característica e efeito do
contemporâneo. O conceito de literatura inicialmente ligado à instrução, erudição
e Belas Artes deu espaço para pensar a obra literária e a literatura como
atividade não só estética, mas ficcionalizante e capaz de produzir o mundo, de
caminhar ao encontro da vida. Os mundos erguidos textualmente pela força das
realizações fabulatórias produzidas pela literatura não se prendem às regras
estabelecidas para a existência humana porque agenciam novas configurações
do real, ao qual não oferecem oposição, mas possibilidades. A literatura está
para a vida, coloca o ficcional em movimento pela força da realidade.
A resistência ao marxismo, sem dúvida, passa pela questão da totalidade.
É importante tomar o pensamento de Barthes, não como o outro extremo
totalitário, mas como ponto de potencializar o relativo no literário. A morte do
autor pode indicar que o conceito de autor foi substituído pelo de leitor, leitor ao
extremo, leitor com uma leitura que substitui o critério de interpretação. No
entanto, Barthes contribui para que a literatura perca sua aura e adquira uma
flexibilidade que leva à descentralização do literário: a noção de texto iniciada
com Barthes permite que tudo vire texto, desde roupas até ciclovias, tudo pode
ser fonte para produção de signos. Nada mais pode ser tomado como óbvio e
inquestionável. As obras literárias perdem sua natureza aurática e canônica25.
Como um texto escrito, as imagens podem ser consideradas obras
literárias porque comportam significações que são concebidas a partir da
interação texto (imagem) /leitor/contexto. Nesse sentido, são constituídas pelo
intuito do autor, pela estrutura e pelo seu conteúdo, logo, o procedimento de
leitura ocorre através da interação do leitor com seus conhecimentos prévios que
lhe permitem interpretar e produzir inferências. Em outras palavras, semelhante
ao texto escrito, o significado do texto visual só é efetivo quando o leitor com o
seu contexto e suas intenções ativa “esquemas” através das pistas fornecidas
pela imagem, atribuindo sentidos à produção do autor.
Se o texto é um todo significativo e articulado, seja ele verbal ou não-
verbal e se consideramos que as imagens produzem sentido porque expressam
a partir dos diversos usos da cor, estruturas e composições, fatores que
determinam a exploração dos sentidos, do mesmo modo que a linguagem verbal,
que se expressa pela escolha dos gêneros, das classes de palavras e estruturas
semânticas.
Dessa forma, as imagens apresentam características fundamentais,
assim como os gêneros escritos: tema, composição e estilo e a relação entre
esses dois grandes campos, indicando o funcionamento, direção, organização
do texto para desencadear na produção de sentidos. Assim, em maior ou menor
intensidade, o sentido adquirido pela composição das unidades de sentido
disponibilizadas pelo autor dependeria da competência do leitor em acessar seus
esquemas e produzir as inferências necessárias por meio da relação entre o que
é lido e o conhecimento prévio sobre os elementos que fabricam a imagem
textual.
A depender do conhecimento prévio do leitor a leitura de imagens causa
um sentimento de limitação, ao passo que este tipo de leitura necessita de
conhecimentos prévios adquiridos através de leituras anteriores, isto é, de uma
“bagagem de leituras”. É o caso da leitura de quadros de pintores famosos, por
25 Cabe lembrar que o cânone não eleva alguns autores e sim destrói os demais, numa espécie de terra arrasada.
exemplo. Eles seguem estilos e técnicas rebuscadas, semelhante aos textos
poéticos que necessitam de certo conhecimento para ser compreendidos. Esse
conhecimento se constrói através do hábito de leitura, como ocorre com os
poemas que denotam múltiplos sentidos, acarretando múltiplas interpretações.
Então os textos visuais se organizam por meio de uma relação entre os
planos expressivos que dão não apenas os sentidos, mas os agregados
sensíveis que produzirão afetos e imagens. Tendo uma compreensão para além
do emissor-receptor, que se limita à transmissão de conteúdo, busco uma
articulação entre o ver e o visto por meio dos enunciados e discursos. O ver e o
visto se organizam num sistema que estrutura e dá forma ao texto, relacionando
o plano de expressão (onde há o enquadramento e o estilo) e o de conteúdo
(onde o tema é desterritorializado do campo abstrato e passa a ter forma quando
ganha espaço e tempo).
Nesta relação entre os planos encontra-se a sugestão produzida pelo
autor para a produção dos sentidos. O literário estaria não apenas no plano
estético, como um espaço de suspensão, espaço poético, mas também na
possibilidade de fabulação encontrada na dobra da ficção produzida pelas
imagens organizadas como texto. Para compreender a ideia de fabulação e ato
ficcional recorro mais uma vez à ideia de tempo, chave central para compreender
o mecanismo filosófico de Deleuze que, por sua vez, o produziu por meio da
relação com a teoria produzida por Bergson.
A partir da teoria da diferença foi possível pensar as tratativas sobre texto,
desenho, processo de criação e fabulação com ênfase no pensamento de Gilles
Deleuze, não só porque o filósofo conceitua os termos, mas porque, a partir dele,
é possível estabelecer algumas relações. A fabulação26, pensada primeiramente
como um instrumento que promove certa experiência de cinema e literatura, a
esses não se limita, pois, como todo conceito em movimento, traz em si a
potência de ultrapassar seu objeto no sentido de acessar a vida.
A vida se constitui de energias em corpos viventes, o que Nietzsche
chama de vontade de potência e Espinosa de potência de agir. Qual demanda
de desejo possui uma vontade de potência a não ser mais vontade de potência?
O que deseja a vida se não mais vida? “A vida interessa”, como diria Nietzsche,
26 O conceito foi utilizado no livro de Deleuze dedicado a Bergson (Bergsonismo), bem como Imagem-Tempo, O que a Filosofia e Crítica e clínica.
ou, “o objetivo da vida é tornar-se maior do que se é, chamar vida como
expansão, possibilidade, relação com a grandiosidade”, como diria a filósofa e
poetiza Viviane Mosé.
Viver é um processo instável baseado no movimento, na impermanência.
A vida nesse sentido é uma excitação, um borbulhar de afetos. As forças excitam
a vida num processo metabólico de contração e expansão. Esse movimento,
também chamado de pulsação, afeta o entorno em seu movimento pulsante.
Quando ganha uma forma expressiva, é capaz de mobilizar-se para o além. A
vida nos lança num movimento de intensidades difíceis de suportar, por isso é
preciso construir uma forma que não me imobilize, que permita a expansão, a
pulsação, e que garanta que eu não me dissipe no contato com as pulsações e
excitações existentes no real pelo movimento de viver, produzir vida. Esse limite,
a membrana que constitui os corpos, que expande e contrai, permite o meu
expressar, afetar e ser afetado pelo mundo, pelas forças ativas e reativas que
pulsam e me fazem pulsar. A vida, como um exagero de intensidades. A arte,
como resposta à vida.
Assim, ao retomarmos a arquitetura do contemporâneo que se dá por
meio da dobra, do entre, é possível compreender que a fabulação é uma
operação de vida sobre a dobra da ficção, através da qual a ficção re-encontra
a vida, em sua potência criadora (Pimentel, 2010). A dobra indicaria, nesse
sentido, uma eliminação dos limites fixos entre ficção e realidade, arte e vida,
porque, ao dobrar, é possível que se crie uma zona de troca entre aquilo que
antes estava dentro e o que estava fora, e é nessa intersecção que a fabulação
encontra seu espaço de atuação.
A experiência da dobra nos incita, assim como faz Pimentel, a retomar o
conceito de Blanchot que alude à linha do Fora. A linha do Fora não está
necessariamente fora, mas, por meio dela o dentro se constitui. Dobrar a linha,
abrir espaço por uma fissura, permite que um entre-lugar se estabeleça, um novo
espaço capaz de permitir nova habitação, um lugar para o estrangeiro, espaço e
tempo dos hóspedes, do “hóspede do hóspede”. Ao dobrar a linha abre-se a
possibilidade do fora entrar e do dentro sair, desestabilizando os limites que
constituem este espaço. A dobra da linha que cria a membrana capaz de, tanto
delimitar o dentro e o fora, quanto, ser, ela mesma uma zona de troca. Essa
fissura nos limites do Fora cria também, uma fissura nos limites do espaço, um
entre-tempo num entre-lugar.
Mas, para entender o processo de fabulação deleuzeano, é preciso
retomar as noções de tempo, discussão iniciada ao explicar a diferenciação entre
os tempos de cronos, kairós e aión. Sendo a fabulação uma narrativa no tempo,
este é constituidor da narrativa. Então, retomando a relação do agora presente,
sua passagem para um outro que lhe constitui como passado e sua potência de
ser que violenta o presente para que se estabeleça um futuro, é importante
pontuar que a ruptura temporal para Deleuze, não aconteceria entre um passado
e um futuro, como consensualmente poderíamos supor, mas entre o presente
orgânico e suas demandas temporais existentes no espaço da dobra, no tempo
aiônico.
Nesse sentido, o acontecimento, aquele ponto de ruptura entre o que é e
o que não é, não tem lugar no tempo, não é um ato (a “interminável
instantaneidade do acontecimento” como diria Deleuze), mas um encontro sem
duração, num entre-tempo, onde nada se passa, não há ação, mas ao mesmo
tempo, um encontro que, apenas por existir, força e condiciona uma passagem.
O tempo não é revelado pelo ato, mas pelo que acontece ao corpo (reunião
disjuntiva entre orgânico e inorgânico) naquele momento.
Diante dessas dimensões temporais, o que seria, ou melhor, que função
teria, o que poderia, a fábula? Para Deleuze,
“Fabulação: o que se opõe à ficção, não é o real, não é a verdade que é sempre a dos dominantes ou dos colonizadores, é a função fabuladora dos pobres, na medida em que dá ao falso a potência que faz deste uma memória, uma lenda, um monstro.” (DELEUZE, 1990)
Se o passado não é uma verdade fixa pautada na realidade, visto que,
apesar de cronológico, é movido por algo que não existe, então, tanto passado
quanto futuro são narrativas que partem do real, mas produzem um outro.
“Segundo Aion, somente o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo. Em lugar de um presente que absorve o passado e o futuro, um futuro e um passado que dividem a cada instante o presente, que o subdividem ao infinito em passado e futuro, nos dois sentidos ao mesmo tempo” (DELEUZE, 2007, p. 169).
Aión é o tempo dos heróis, o tempo de Hércules, é o lugar dos
acontecimentos incorporais e, se Aión está vinculado diretamente à criação do
sentido, então é o tempo que torna a linguagem possível. Um tempo brincante,
criançante, ficcionalizante. Esta compreensão temporal tem como meio os
efeitos de superfície ou dos acontecimentos, pois é a linha do Fora entre as
coisas orgânicas e as proposições criadas no sentido dos sentidos, na
humanização dos sentidos. O tempo aiônico é o lugar na dobra onde se
desenvolvem os incorporais, a fronteira entre as proposições e os elementos
reais que promovem os sentidos e, assim, a própria linguagem, que é produzida
por unidades de sentido as quais chamamos de signo.
Para que os signos possam ser interpretados, essas unidades de sentido
tornam-se signos numa relação de aprendizado entre os sujeitos que delas se
utilizam, ou seja, aprender não é imitar num processo de apropriação, mas se
relacionar com os signos que decifram os elementos do real. Por isso, se a
narrativa se volta para o passado, ela o faz tendo em vista o aprendizado futuro.
A memória, dentro desta perspectiva, não narra uma verdade, mas nos
apresenta os signos que o narrador interpretou para redescobrir o tempo. Narrar
é, então, decifrar os signos do tempo. Memória como repositório, laboratório
ficcionalizante de reminiscências.
A decifração do real só acontece quando uma relação entre os signos é
estabelecida e permite inferências. Escrever é decifrar, produzir relações que só
se dão no interior do texto, seja ele visual, literário ou de quaisquer outro estilo e
gênero. “é a obra de arte que produz em si mesma e sobre si mesma seus
próprios efeitos, e dele se sacia, deles se nutre: ela se alimenta das verdades
que engendra” (DELEUZE, 2003, p. 153).
A interpretação dos signos que produzem os sentidos do real não é uma
verdade relativa, ou mesmo pessoal, mas produzida e, com isso, confundida com
sua própria produção. A memória de um vivido é uma interpretação que teria
sentido não de modo individual, apenas para aquele sujeito que acessou a
memória, mas ela se torna um instrumento de aprendizado que permite a
experimentação, e com ela a possibilidade de redescobrir o tempo. Não para
revivê-lo em si, mas para interpretá-lo e, com isso, acessar seus sentidos.
Uma obra de arte que produz narrativas se confunde com as próprias
relações por ela estabelecidas. Essa narração artística tem uma característica
estética que promove uma experimentação artística, literária, um efeito literário.
Os signos mundanos, amorosos e sensíveis (desenvolvidos por Deleuze em
“Proust e os Signos”) são interpretados pelo signo da arte, signo esse que se
confunde com sua própria interpretação. Essa complexidade da arte nos revela
o tempo em seu estado puro, pois não distancia signo e sentido: “é exatamente
essa unidade do signo e do sentido, tal qual é revelada na obra de arte”, afirma.
Todos os signos que encontramos na vida são materiais, mas seu sentido
é imaterial. Com Proust, Deleuze conclui que o signo da arte, um signo material,
inseparável do seu desdobramento, despersonaliza a experiência do tempo
tornando-a acessível pelos instantes que se tornam o efeito de uma máquina
literária. Seu tempo se confunde com o funcionar da máquina, não remete a nada
exterior a si. Então, a imagem produzida se confunde com o seu engendrar, com
seu processo de criação, ficcionalização. Não há separação entre a imagem e a
sua produção. O que diferencia a imagem imaterial da imagem orgânica é que
esta é produzida com elementos externos, como os sinais emitidos por alguém
ou a coincidência sensível entre duas imagens, e imagem imaterial, pelo próprio
sentido tornado signo. Esse procedimento literário põe em contato passado e
futuro, produzindo-os. Um signo artístico nos violenta, força uma interpretação,
nos tira da relação útil com o objeto e, com isso, não apenas humaniza nossos
sentidos, mas nos coloca em movimento de devir.
O signo produz uma criação necessária, mas não como uma necessidade
orgânica, que vai do sujeito ao objeto, mas inverte essa relação direta e faz com
que o objeto produzido nos convoque, produza em nós um futuro. Assim, para
Deleuze, Proust inaugura uma nova imagem do pensamento quando deixa de
considerá-lo um exercício da vontade para torná-lo “aventura do involuntário”
Pois mais o que um pertencimento ao plano do sensível, os signos mundanos, amorosos e involuntários revelam referências de grau do menos ao mais involuntário, pois o salto qualitativo, a diferença de natureza só é alcançada pelo signo da arte (PIMENTEL, 2010, p. 121).
Para quebrar as conexões orgânicas de corpo e mundo, é preciso criar
uma máquina feita de palavras, frases, parágrafos, que quebre a relação direta
entre corpo e linguagem: um corpo sem órgãos. O futuro convoca, exige a
potência do corpo, de um corpo desejante que se abra ao fora e se deixe afetar
(afeto, desejo e fora), por isso Deleuze (2003) afirma que, na Recherche, há
menos um narrador que uma máquina e menos um herói que agenciamentos.
Não é a faculdade de lembrar que nos atravessa. Se não há narrador ou se o
narrador não é um sujeito, é porque não tem órgãos. Não porque intui a memória,
mas por fazer dela um signo material capaz de ser interpretado pelo signo
imaterial da arte, um signo maquínico que desfaz as relações orgânicas quando
transforma outros signos em peças dessa máquina e engendra a memória como
uma máquina que produzir lembranças. Memória que ficcionaliza.
A partir da ideia de imagem e movimento do cinema, Deleuze conclui que
o cinema ficcionaliza diretamente sobre o real, fato que permitiu à máquina
tornar-se arte, uma maquinaria de reinventar o mundo. O cinema “faz do próprio
mundo um irreal ou uma narrativa: com o cinema, é o mundo que se torna sua
própria imagem, e não uma imagem que se torna mundo” (DELEUZE, 2018, p.
77). Sua potência é falsificar o real (simulacro).
A composição visual do cinema, sua montagem, produz um todo orgânico,
um princípio organizador, formador de unidade (que permite, por exemplo, a
Buñuel nos fazer experimentar a imagem-pulsão e Hitchchock fazer da imagem-
movimento um tecido de relações, onde há percepção, afecção e ação que lhe
tornam uma imagem-mental) e impede o presente orgânico de se repetir já que,
em sua organização, há intencionalmente uma fissura no circuito. Esse intervalo
é a quebra da relação orgânica corpo-mundo. Por meio dessa “falha” é possível
um novo regime de imagens: a imagem-tempo. Assim têm-se que as imagens-
movimento e imagens-tempo se compõem por meio da descrição, narração e
narrativa (a descrição do objeto, narração do sistema sensório-motor e narrativa
da relação sujeito-objeto).
A narração se dá entre a narração verídica e a falsificante. A primeira
aspira desvendar uma situação por meio do esquema sensório-motor. Na
segunda o esquema não modifica porque o corpo não é aí o centro de ação, o
destaque está para a produção e humanização dos sentidos: não há real a ser
desvendado, mas destaque para as puras audições e visões. A narração verídica
cede lugar, então, à potência do falso e corporifica uma narração falsificante.
Enquanto a imagem-movimento parte da realidade para construir
imagens, a imagem-tempo parte da realidade que a linguagem (no caso, a
linguagem do cinema) produz do mundo como um irreal. Logo, para Deleuze, o
que se opõe ao virtual (ao passado em coexistência com o presente) não é o
real, mas o atual. Um mecanismo sensório-motor que evoca o passado e o
atualiza pela relação de semelhança com a imagem-atual, descontrai o passado
virtual e se torna um movimento de eterna repetição de descontração/contração:
esse é o ritmo do presente.
A verdade do tempo não está no hábito, nem na inteligência e muito menos na memória, mas no futuro e na relação que este entretém com o passado, permitindo-nos assim experimentar o passado em si, coexistência heterogênea das dimensões do tempo (PIMENTEL, 2010, p. 129).
Sob essa ótica apreender o passado suscitaria parar de lembrar e passar
a criar lembranças. A arte fabrica lembranças no futuro e esta potência artística
do falso, máquina de fabricação de mundo, é posta em funcionamento na fissura
da linguagem. A narrativa desvenda a situação, seja real ou fictícia. É a imagem-
atual que confere para a imagem-lembrança um caráter verídico que não tem
como objetivo eliminar a ficção, mas libertá-la do modelo de verdade dando-lhe
função fabuladora.
Portanto, o que é rompido aqui é mais do que modelo verídico interno à narrativa ficcional, é o modelo que faz da ficção uma verdade superior e por isso apartada da vida. Encontrar a função fabuladora é reencontrar o elo entre a vida e a ficção. É fazer ver a realidade da ficção, é fazer ver que sua potência falsificadora é antes de tudo uma potência criadora de mundos, de mundos habitáveis e vivíveis. Portanto o que é afirmado não é verdade da ficção, mas a sua realidade falsificadora”. (PIMENTEL, 2010, p. 134)
Assim, a fabulação dá ao falso a potência de fazê-lo memória, forja uma
memória e substitui as imagens-lembrança reais por falsas: imagens-fábula, que
interferem diretamente em nossa ação sobre o mundo. A fabulação rompe nossa
relação verídica com a vida quando se insere no sistema produtor de imagens.
Se a memória é unidade do passado, a fabulação é unidade de futuro, para
criação de novas e potentes imagens aiônicas, sem as quais o presente não
passa. É potência do falso porque força a passar, força a dizer que o eu é um
outro, é uma memória do futuro. Assim, para Deleuze, a fabulação torna-se um
processo de criação do futuro, um devir.
O caráter potente da fabulação está no devir, não como uma forma, mas
como uma zona de vizinhança que atravessa as formas do vivido. Fabular não
se confunde com as diferentes formas de ficcionalizar (mito, lenda, fábula) e sim
com as obras de ficção e os objetos de arte. Fabular é produzir uma linha de
desterritorialização que se direciona para a vida, é pura potência. Nesse sentido,
o desenho infantil apresenta a função fabuladora quando o leitor desse texto
visual é capaz de captar nele o movimento ficcionalizante. Para isso, é preciso
que o leitor ponha-se também a ficcionalizar. O desenho nas instituições
educativas para os infantis, onde a professora tem a potência de leitora dos
textos visuais produzidos pelos infantis, se torna uma zona de troca, uma
máquina capaz de atuar sobre o real e promover um encontro do real com a
ficção e da ficção com a ficção.
Mas se a fabulação é uma memória de futuro, então sua produção não se
dá previamente, mas a posteriori. A fabulação está na fissura, não
necessariamente na coexistência. A diferenciação entre kairós e aión nos parece
importante para delimitar não sua coexistência com o presente, mas sua
característica de produção dos sentidos a partir do seu espaço na dobra, na
fissura. Assim, rompe, violenta presente e passado (por isso a arte, máquina de
fabulação, está para um povo do porvir, nunca do presente). Esta operação
fabuladora só pode ocorrer, então, quando não estamos mais atuando em um
tempo cronológico, mas em um tempo de intensidades.
Se a fabulação acaricia tanto o tempo cronológico quanto o tempo crônico,
sua direção aiônica exige um tempo enquanto força e potência, num eterno
retorno da diferença (tempo como série). Fabular é, então, articular enunciado e
visível em uma intersecção, num intervalo irracional que potencializa a diferença.
É produzir diferenças no ato de narrar a própria vida enquanto potência do vir a
ser, onde se é aquilo que se foi e também o que será. Fabulação como imagem
entre arte e vida.
11 – Desenho infantil e problemas estéticos
Um caminho observado ao longo de minha experiência como professora
de educação infantil é o de ampliar a potencialidade dos textos visuais por meio
de desafios estéticos que mobilizem seus processos fabuladores. Para que haja
criação ou pensamento é preciso, primeiramente, haver uma necessidade.
Como crianças que não sabem previamente a resposta, porque os problemas que se colocam interrompem seus hábitos de pensar e de ser, ensaiam pensar diferentemente desses hábitos ao aceitar o desafio daqueles, mesmo que isso implique na mudança do que são em si ou para si mesmos e para os outros. Nesse movimento em que, concomitantemente, o educador se emancipa e é cumplice da infância parece residir a sua própria experiência formativa, que é em si mesma autodidata, pois, embora nela seja imprescindível a presença do outro, é pelo encontro com a experiência do outro que aprende sobre si mesmo. (PAGNI 2010, p. 118)
A necessidade tem como base uma inadaptação, uma resistência ao que
está disponibilizado no campo do real. Se a vida não desafia o sujeito, este entra
em um equilíbrio sintomático e desliga-se da sua força mobilizadora: o desejo.
Se o sujeito não vivencia a demanda de desejo, não há a ação de colocar-se em
movimento. Nesse sentido, produzir ações pedagógicas que apontem para uma
questão que precise ser solucionada gera nos infantis uma necessidade de criar.
A professora organiza o grupo para dar início a uma proposta que será direcionada por ela à todas as crianças, ao mesmo tempo. Ela pede que sentem às mesas a sua escolha e desenhem animais. A proposta estava relacionada a um conteúdo apresentado anteriormente, cujo objetivo era diferenciar os reinos animal, vegetal e mineral. As crianças realizam suas produções num tempo médio de 20 minutos. A professora recolhe os desenhos e passa a preparar o momento do lanche. (...) Tendo o mesmo objetivo da proposta realizada em dia anterior, a professora pede que as crianças recortem das revistas previamente organizadas nas mesas com cola, tesoura e papel, imagem de animais que encontrarem nas revistas. As crianças realizam a proposta não sem antes envolverem-se com as mais diferentes imagens encontradas naquele recurso disponibilizado: viam heróis, piscinas, carros, bicicletas. A professora recolhe as produções na medida em que as crianças vão concluindo suas colagens (...) A professora pede que as crianças representem animais à sua escolha, utilizando-se de pedaços de argila. As crianças se envolvem com o material e muitas deixam de produzir animais para confeccionarem bolos e docinhos. Enquanto preparam os doces, interagem entre si, dando tarefas para que uma festa de aniversário seja organizada com o material. (Repositório de Reminiscências, s/d)
As diferentes atividades propostas pela professora giravam em torno de
um mesmo tema e variavam apenas os materiais disponibilizados. Embora este
possa ser um caminho importante, constata-se que as ações pedagógicas não
produziram intervenções capazes de promover o desenvolvimento das
linguagens artísticas apresentadas. Ao contrário, o foco estava na fixação do
conteúdo anteriormente exposto. Independente das linguagens disponibilizadas,
constata-se que qualquer resposta caberia nessa proposta desde que não se
fugisse do tema. Não havia uma força ativa, um desafio para o plano expressivo,
apenas uma justaposição de propostas que giravam em torno de um único tema.
A mediação da professora no ato criativo foi limitada pela própria proposta: se
não há questão para resolver, investigação a ser feita, objetivo específico a ser
alcançado, não há mediação a ser realizada para ampliar o processo de criar.
Sem desafio, qualquer resposta está adequada, não há critério especifico para
analisar os resultados obtidos por cada infantil.
A proposta de desenho não exigia a resolução de questões visuais, assim
como as demais linguagens utilizadas. Quando não há mediação que resultem
em mudanças no modo de produzir suas visualidades, não há como ampliar as
potências do plano expressivo para além das habilidades já adquiridas. As
mediações realizadas no exemplo citado guiavam apenas o cognitivo das
crianças, isso quando não se limitavam a juízos de valor sobre o que o adulto
considera bonito ou adequado. Há representação, registro, objetivo, porém a
composição estética é rasa.
Ouvi em uma palestra27 um exemplo que traduz meu questionamento
perante a justaposição de propostas que não visam promover o desenvolvimento
do desenho enquanto processo fabulador: a coordenadora de uma instituição
educativa para infantis discorria sobre uma turma de crianças ativa e apressada,
em geral, sem interesse em expressar-se pelo desenho, tanto que, independente
do que a professora sugeria para as produções, muitas crianças produziam “um
rabisco qualquer” para terminar logo e poder brincar, esta sim ação realizada
com interesse, concentração e intensidade.
Ao fazer o planejamento das atividades, as profissionais refletiram sobre
esse fato e buscaram alternativas que pudessem gerar a necessidade de
expressar-se visualmente por meio de um desenho. O que poderia ser feito? A
27 Esse exemplo também pode ser encontrado no artigo “o desenho bem nutrido”, de Eloiza S. Correa, publicado na Revista Pátio Educação Infantil, ago/nov de 2004
professora pediu que fosse desenhado o que mais gostaram em um passeio
realizado. Quando concluíram seus desenhos, pediu que apresentassem para o
grupo as produções. O destaque foi dado para a girafa que, no passeio estava
bebendo água.
No dia seguinte foi pedido ao grupo um desenho em específico: “vamos
desenhar uma girafa bebendo água”. Como de costume as crianças se
apressaram para desenhar e concluir logo a proposta. Ao final, foi pedido que
novamente socializassem suas imagens. A maioria das crianças desenhou uma
silhueta com 4 patas e pescoço longo que aparentava ser derivado de um
modelo padrão usado para diversos animais, variando pequenas características.
O resultado, porém, apontava para uma diferença entre o que as crianças
falavam sobre o desenho e o que, de fato, era observável. Essa disparidade
disponibilizou um espaço para mediações especificas. Estava instituído aí um
desafio estético. Algumas crianças não haviam sequer colocado água em seus
desenhos, porém a simples presença de um pote ainda não indicava o ato de
beber água. Algumas crianças colocaram o bebedouro sem contato com a girafa,
outras colocaram o pote de água flutuando próximo à boca do animal.
Figura 38 - Girafas bebendo água - Revista Pátio Educação Infantil, ago/nov de 2004
Criou-se a necessidade de expressar-se de modo específico, pois alguns
resultados não solucionavam a questão estética de traduzir por meio de
visualidades uma girafa bebendo água: bebedouros voando, bocas fechadas,
pescoços esticados até o chão, patas retas. Era preciso criar um conjunto de
ações e investigações que pudessem dar consistência ao desenho, resolver a
questão estética apresentada e intensificar a textualidade do desenho produzido.
As crianças produziram esboços pautados em pesquisas realizadas em
casa e na instituição, acessaram vídeos, fotos e outras visualidades relacionadas
ao tema, buscaram recursos, tomaram decisões, fizeram escolhas e estudos
gráficos para que pudessem experienciar e registrar a ação indicada. O resultado
foi a presença visual de girafas que dobravam suas pernas, curvavam o pescoço,
colocavam a língua para fora, tocavam a água desenhada no interior do pote.
Figura 39 - Girafa bebendo água após mediações – revista Pátio Educação Infantil, ago/nov de 2004
Essas escritas visuais não ofereciam uma resposta qualquer, mas
traduziam a intencionalidade de resolver questões específicas. O texto visual
produzido também demonstrava a autoria e expressão. Um texto literário
apresenta e ensina sobre uma poética, outro tipo de pensamento e até mesmo
novas estéticas, com outros e provisórios elementos visuais. Ter no texto visual
uma alegoria que figura o pensamento, em especial, que pensa mais com
imagens do que com palavras, produz pelo traço um “lugar aberto a todos os
possíveis: lugar onde se cristalizam outros lugares, pontos tópicos de
cruzamentos de sentidos” (POHLMAN; RICHTER, 2008, p. 916).
Criar é, ainda, um processo gradativo que implica experienciar livremente
o material para compreender como ele se comporta e manipular o mesmo
material diversas vezes para, então propor uma criação específica. Em um grupo
de crianças de dois e três anos disponibilizou-se rolinhos ao invés de pincel, para
espalhar cola e tinta no papel. O infantil que, pela primeira vez, usava aquele
material, testou o modo como o rolo de comportava no papel, mas também na
mesa e no chão:
Figura 40 - Primeiro uso de rolinho para espalhar cola. Acervo pessoal, 2008.
Nota-se a importância de diversificar os materiais para encontrar aquele
que melhor se adequa ao movimento e repetir seu uso para que adquira a
habilidade de dominá-lo. É preciso experienciar livremente, mas não se limitar à
livre expressão, para que não se perca a oportunidade de produzir nexos visuais.
Os nexos não são apenas visuais, mas entre-áreas, para que os infantis
desenvolvam uma postura não só que resolva questões estéticas, mas também
e principalmente que produza indagações artísticas. O modo como cada criança
se apropria de sua potência textual e a materializa na ação criativa de resolver
as questões estéticas colocadas numa composição visual, enriquece seu
processo de autoria e dá ênfase à sua singularidade, enquanto o sujeito capaz
de desenvolver-se por meio de um processo criativo produzido num plano visual
expressivo. Diferença enquanto constituição do humano.
Outro exemplo que remete à resolução de uma questão estética capaz de
nutrir a linguagem visual e literária produzida relacionava-se à característica de
desenhar um padrão de paisagem composto por uma faixa azul na parte superior
da folha que indicava o céu e uma faixa verde no espaço inferior que indicava o
chão. Como ampliar o modelo representacional utilizado pelos infantis? Como
mexer no estilo do texto visual apresentado? A ação pedagógica de planejar
intencionalmente propostas que produzam inferências visuais sem limitar-se a
um resultado esperado visa ampliação da potência linguística e não a
substituição de um modelo por outro.
A professora confeccionou um quadrado vazado de cartolina que se
assemelhava à moldura de um quadro. A moldura foi colocada à frente da
professora e foi questionado o que as crianças enxergavam dentro da moldura.
Observações especificas foram feitas, tanto pela professora quanto pelas
crianças, no sentido de tornar consciente para as crianças que a pessoa não fica
num vazio entre o céu e o chão. Atrás da professora havia uma paisagem, uma
materialidade. A partir dessas observações foi possível pesquisar e
compreender o conceito de perspectiva e de horizonte. E retomar suas
produções no sentido de realizar testes para utilização dos novos conceitos. O
resultado não trouxe a sensação de tridimensionalidade que a perspectiva
poderia apresentar, porém a intensão da proposta estava em disponibilizar mais
possibilidades de modelos visuais que pudessem promover simulacros (e não
trazer uma ideia de representação que buscasse assemelhar-se à realidade).
Figura 41 - Desenho, figura e fundo. Acervo pessoal, 2017
12 - Professor, transgressão & autoria
Para aprofundar a ideia de autoria no processo criativo dos infantis
perpasso o papel do professor e o conceito de transgressão. Este é um conceito
que sugere o desrespeito a limites pré-estabelecidos no sentido de exceder,
ultrapassar as normas existentes. Mas, se desejamos repensar a ideia de
transgressão para que nossas ações educativas não se limitem à disciplina e
perceba o que há por trás dessas ações infantis, precisamos compreender que
normas estamos robustecendo com nossas atitudes educativas.
Viviane Mosé utiliza o termo deslimite para identificar as regras sociais
pré-estabelecidas que não se justificam como uma necessidade para a produção
da própria vida. Em nossa composição social as regras e limites passaram a ser
a finalidade e não o meio, por isso a necessidade de obter mecanismos de
controle e deslimites. Como os limites e deslimites perpassam o cotidiano
educativo? Como se manifestam nas produções infantis? Que relação há com o
processo de fabulação e criação produzidos nas instituições educativas?
A relação entre vontade, consciência e sujeito, elementos que constituem
a subjetividade segundo Nietszche (2000), encontram espaço nesse lugar
privilegiado de relações, inter-ações, afetos, vontades e liberdade. Dentro do
espaço social cabem a intensidade das vontades, não como unidade, mas como
forças que tocam, tomam e caracterizam a vida.
Ao encontro da noção de individuação e de encontro com o processo de
individualidade, o autor vê na relação com o outro, para além da doação de
sentido, uma possibilidade de imanência, uma reorganização estrutural de outra
ordem (e não sem ordem). O papel do outro, nesse processo social, adquire
centralidade e, ao mesmo tempo, uma delicada “distância” que Scherer intitula
proximidade. A proximidade, na filosofia do anarquismo proposta pelo autor,
seria uma relação entre singularidades sem passar necessariamente por uma
mediação entre elas, sem idealidade. Ao mesmo tempo, intimamente implicada
e metaestável. “Sua significação, para além do direcionamento de sentidos,
estaria na própria relação com o próximo, o um-por-outro”. (LEVINAS, 1998, p.
158-159).
Viver é existir numa delimitação de tempo e espaço que nos permite
organizar o corpus caótico que nos constitui: um caos de afetos, vontades,
forças, potências que precisam se organizar para se materializarem no mundo,
adquirindo significado. É preciso um arranjo que dê forma e contorno para
nossos excessos, paixões (pathos), intensidades. A dificuldade em lidar com os
desejos e afetos que nos constitui faz com que a sociedade busque mantê-los
sob controle, busque subjugá-los, eliminá-los.
Deleuze (1988), junto a Foucault, nos induz a refletir sobre o dispositivo
de disciplina e controle que gerou efeitos sobre a cultura e a sociedade,
consequentemente sobre a educação e o ensino, sendo compreendido como
uma forma de poder e dominação. Seus modos de operar perpassam ações
hierárquicas e meritocráticas cujos objetivos são normatizar e homogeneizar
(para isso, é preciso punir e excluir). Nessa perspectiva a subjetividade precisa
submeter-se às regras pré-estabelecidas, enfatiza comportamentos dóceis e
submissos como os adequados ao meio social: corpus dóceis (FOUCAULT,
2014a). Vontades domadas, desejos controlados. A não liberdade de viver o
social.
O limite criativo existe justamente para que se possa viver nossos afetos,
organizar e vivenciar nossos desejos e paixões, não para discipliná-los, puni-los,
contê-los. A força que nos move tende a ser destruída tanto no excesso de
limites que controla e esteriliza em um jogo de poder, quanto na falta de
delimitações que dão forma e objetivos para as potências de vida geram
terrorismo. Cabe lembrar que a ausência de limitações, não significa
necessariamente a liberdade de ação, tendo em vista que para existir a liberdade
há a necessidade de acessar as possibilidades de realização – que nem sempre
está garantida pelo fato de não haver limites.
Se eu não penso o limite – e as suas possibilidades implícitas de
transgressão - não consigo construir uma forma constitutiva, então, é possível
eu me dissipar, me misturar com o ambiente de tal modo que deixe de me
reconhecer e é possível que se entre em um processo de psicose (quando o
corpo vai perdendo o limite). Se não há limite, há dissipação da forma, uma
excitação que induz o movimento apenas à expansão, desfazendo a membrana
que produz uma meta-estabilidade - misturo-me com o mundo.
Nesse sentido, repensar os limites e normas que estabelecemos se faz
necessário para analisar que tipo de normas disponibilizamos e de que modo
permitimos que as diferenças dos infantis se façam presente: permitimos que as
diferenças se façam presentes no contexto educativo? Priorizamos a autoria das
crianças e seus processos criativos? Ou ainda atuamos no sentido de garantir o
cumprimento das normas e a disciplinarização dos corpos? De que modo o
desenho infantil pode contribuir para pensar o processo educativo de
transgressão, criação e autoria?
O desenho, como resistência simbólica, atua no sentido de transgressão,
no contra-movimento desse dispositivo disciplinar que considera o
comportamento infantil adequado quando submetido à regra hierárquica
instituída pela professora. Regra que reforça não o processo individuante e a
diferença enquanto constituidora do humano, e sim aquilo que é tradicionalmente
esperado pelos que dominam a educação como instituição de controle – e a
atividade pedagógica cotidiano como um pequeno controle cotidiano. Questiona-
se, assim, o papel da professora como uma transmissora de conhecimentos num
processo educativo que busca a autoria e a criação.
Seriam improdutivos aqueles educadores que ficam por fora: fora dessa
tradição, fora dessa história, fora desse acúmulo. Acúmulo que é produzido, às
vezes, por seguir cegamente doutrinas ou dogmas, mas, em outras, por
transgredir o existente e subverter o possível. E, em consequência,
por inventar um novo, fabricar o que ainda não existiu nem existe, mas que nós podemos fazer existir, justamente porque temos toda uma história que nos dá sustentação para isso As coisas, palavras, pensamentos, teorias, práticas educacionais não existem por si sós, não estão fixadas, eternas, universais. Elas não são. Ou melhor: são à medida que somente à medida que se fazem, à medida que se revelam como um por-fazer, como um esforço de conquista e de reconquista dos percursos da educação. É assim, conquistando e reconquistando, que se dá o jogo de herdar e de legar, de herdar e de transmitir, de receber e de entregar, (...) com a qual faremos outras coisas diferentes, inéditas, novidadeiras, para também deixá-las de herança àqueles que virão depois de nós. (CORAZZA, 2005, p.12)
Deleuze corrobora tal questionamento quando afirma que a criação não
tem necessariamente uma natureza comunicativa. Sendo a comunicação uma
transmissão e propagação de informações, tendo em vista que a
Informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Em outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem. As
declarações da polícia são chamadas, a justo título, comunicados. Elas nos comunicam informações, nos dizem aquilo que julgam que somos capazes ou devemos ou temos a obrigação de crer. Ou nem mesmo crer, mas fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para crer, mas para nos comportar como se crêssemos. Isto é informação, isto é comunicação; à parte essas palavras de ordem e sua transmissão, não existe comunicação. O que equivale dizer que a informação é exatamente o sistema de controle. (DELEUZE, 1987, [S.I.]).
O papel da professora resumir-se-ia, nesse sentido, a disciplinar e
controlar ações e desejos infantis por meio da difusão de informações que
tradicionalmente são indicadas como um padrão adequado de compreensão e
comportamento. As informações, tanto as que se referem aos conteúdos que
devem ser acessados pelos infantis para manterem o arcabouço de
conhecimentos históricos e socialmente produzidos pela humanidade, quanto as
informações de caráter normativo, seriam, para Deleuze (1987, [S.I.]), “o sistema
controlado das palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade”.
A informação na sociedade contemporânea tem peso e papel específicos
porque tornaram-se instrumento de dominação. Ao mesmo tempo, a informação
passou a ser democratizada e deixou de estar centralizada em determinados
espaços, como as escolas e universidades. Vale pensar que a dominação se
ampliou. As novas mídias permitiram articulações rizomáticas das informações,
redes que permitiram a ampliação dos núcleos de saber e da estruturação das
certezas e verdades.
A escola, no contexto contemporâneo, se manteve com o papel de
sustentar a tradição e permitir o acesso a conhecimentos humanos específicos,
considerados (por quem?) fundamentais para a constituição da sociedade (e seu
devir). Ou seja, serviria para submeter os infantis a um sistema de sentidos
particular, adquiridos pelas informações que o grupo social em que ela vive
considera essencial para esse recorte geracional. A educação institucionalizada
organizaria as informações capazes de satisfazer um universo de possibilidades
informativas específicas que os infantis utilizariam no processo mediado de se
relacionar com o mundo. “Como uma ficção convencional – mas dotada de um
caráter de realidade -, vive um processo de formação, no qual a moralidade é o
meio necessário para o seu amadurecimento, enquanto indivíduo soberano”.
(CORAZZA, 2005, p. 87)
No entanto os infantis acessam tais informações infantis por meio de seus
afetos, encontros, ausências, experiências, o que permite amplo espectro de
apropriação das informações, inclusive sua negação. Nesse sentido, transgredir
uma palavra de ordem da professora se torna um ato de resistência e ampliação
de possibilidades informativas.
A professora pede que as crianças sentem para ouvir informações sobre o passeio que será realizado no museu. Uma menina deseja continuar a brincadeira que faziam com alguns animais de plástico, porém a professora pede que guarde e sente com o grupo. Enquanto a professora vira de costas para organizar a roda, a menina faz uma expressão de desapontamento e segura um dos animais com mais firmeza. Vai até a caixa de animais para guardá-los e os deposita bem devagar na caixa, mantendo um em sua mão, que é retirado do campo visual da professora num jogo de corpo. Sentada na roda com os demais, a menina tem um leve sorriso no rosto. Enquanto a professora explica o que encontrariam no museu e o que deviam observar no passeio, a menina parece estar alheia e aguardar o momento certo para retirar o brinquedo do seu local secreto e passar a interagir com ele, o que, de fato, não demora a acontecer. A professora não percebe e continua a falar do passeio, trazendo informações aparentemente importantes sobre o período histórico que acessariam no passeio. Enquanto isso, a menina toma o cuidado de fazer movimentos mínimos para não chamar atenção e passa a envolver-se com o animal de brinquedo, manipulando-o com cuidado para não ser apanhada. Seu olhar não é direcionado à professora em nenhum momento da conversa, ao contrário, fica voltado para baixo e para o lado, onde o brinquedo está localizado. As mãos movimentam o brinquedo e a voz muito baixa emite algum ruído indecifrável. Quando a professora termina de passar as informações necessárias sobre o passeio, ela pede que as crianças levantem para lavar as mãos para o lanche. A menina nota o movimento da roda, olha para a professora e para as demais crianças, então se levanta com o brinquedo na mão, no rosto um ar de satisfação e nas mãos não mais a preocupação em ocultá-lo,
então, devolve-o para a caixa e acompanha o grupo até o banheiro. (Repositório de Reminiscências, s/d).
A desobediência à informação passada quanto ao momento adequado
para guardar os brinquedos encontra um modo de transgredir a norma, mesmo
que para isso não precise fazer um enfrentamento direto. Sua negação cria um
modo diferente de interagir com o objeto proibido: a brincadeira precisou ser
estruturada dentro de novas armações. A professora, aquela que detém a
informação que normatiza, estava concentrada em transmitir noções específicas,
sem necessariamente testemunhar os modos como os infantis estavam se
apropriando delas. Essa postura permitiu a abertura para um movimento de
transgressão que, embora não desejado pelo adulto, trouxe certa ampliação das
possibilidades criativas do brincar. O ato de transgressão conteria em si um ato
de resistência, força ativa.
O menino de 4 anos está visivelmente irritado. Chama a professora seguidas vezes e ela parece, intencionalmente, ignorá-lo. Enquanto ele a chama continuamente, ela responde para outra criança “Você quer falar? Como você estava com o dedo levantado, chegou sua vez de falar. Só vou ouvir quem está com o dedo levantado”. A criança indicada pela professora começa a contar-lhe alguma coisa enquanto o menino que estava irritado reforça a fisionomia zangada ao mesmo tempo em que se levanta e se dirige à bandeja de frutas que está sobre o balcão. Sem pestanejar arremessa a bandeja contra a parede, causando uma pausa em toda a sala, que fica imóvel e silenciosa por alguns segundos. A professora fala num tom de voz firme e mais alto para que ele recolha as frutas do chão e organize a sala e a bandeja. O menino se nega, então a professora o leva para conversar fora da sala e retorna um tempo depois, quando as crianças já estão lanchando com as frutas que foram recolhidas pela professora auxiliar. (Laboratório de Reminiscências, 2013).
Somos exagerados. Não como um defeito, mas como um acordo com a
vida que é, em si, exagerada. Por isso precisamos produzir formas que, de certo
modo, possam conter o exagero de viver numa medida em que seja possível
lidar com ele nos espaços de convívio social. É possível que chegue um
momento em que nosso exagero de vida pede mais do que a forma comporta
dessa intensidade, aí o sujeito necessita de um ato transgressor. No agir com o
outro produzimos formas que são mais ou menos aceitas socialmente. Todo ato
de transgressão é criação, no entanto (não) é o único modo de criar. Isso não
significa a falta de necessidade de um polimento social, mas transgredir trata,
também, de como se olha e de quanto se é afetado pelas informações que estão
disponibilizadas.
No ato de se colocar, intransigente, o menino buscou espaço para seu
olhar, seu ad-mirar, sua com-posição, seu espaço. Embora saibamos que a ação
produzida pelo infantil não corresponda às regras sociais pré-estabelecidas que
se apresentam como uma necessidade para a produção de uma vida em
contexto social, o ato de transgressão promoveu um encontro. O menino foi
visto, trouxe para si tanto o olhar do outro quanto o movimento de afetar e ser
afetado. Não havia polimento social em sua atitude, mas havia coerência entre
seu agir e seu sentir, havia uma insubmissão capaz de criar um espaço para si
sem necessariamente sacrificar-se num processo de negar a si e submeter-se
ao olhar que consente. Podemos viver nosso exagero em todos os momentos
no convívio com o outro? Nossos limites nos dão forma ou nos dão fôrma?
Estamos atentos ao que há por trás das atitudes infantis transgressoras?
Se o outro nos afeta enquanto discurso, aceitar sempre os limites
instituídos pelo outro nos mobiliza a sacrificar nossos corpos e desejos em favor
de um discurso que não comporta meu corpo, ao contrário, me castra. Controle
dos corpos, informações que dão poder. O fato é que a informação já não é mais
o que diferencia e legitima os sujeitos em seu processo educativo tendo em vista
que sua democratização permitiu horizontalidades não planas no trato com as
informações e novas normas e modos de produzir a própria existência. Desafio
da diferença pura.
(...) porque todas as suas concepções e práticas atestam a existência dos diferentes, que povoam nossas casas e ruas, salas de aula, pátios de recreio, dias e noites. Diferentes que são os homossexuais, negros, índios, pobres, mulheres, loucos, doentes, deficientes, prostitutas, marginais, aidéticos, migrantes, colonos, criminosos, infantis-adultos, todos os Sem.… os quais, por tanto tempo ficaram borrados e excluídos, calados e subordinados, dominados e pisoteados pela lógica da identidade-diferença. Mas, que, hoje, são puros, isto é, diferentes em si-mesmos, essencialmente-outros, não-idênticos, outros, diversos. (...). Para que nunca mais suas diferenças sejam governadas, traduzidas, calibradas, reparadas, integradas ao velho princípio da identidade universal. (CORAZZA, 2005, p.17-18)
O que a contemporaneidade desejaria do processo educativo para além
da transmissão de conhecimentos? Segundo Mosé, o maior desafio
contemporâneo estaria em resgatar nossa humanidade perdida. Nossa forma
que dá limite ao meu interior. E, o que nos constitui enquanto humanidade é
nossa capacidade simbólica, significar o mundo por meio de processos criativos.
Criar é produzir a continuidade da existência do humano.
E, ao contrário, quando pensamos sobre os infantis que se submeteram
às regras e às informações, utilizando-se das forças reativas no processo de
inter-ação com o outro e com o mundo? Que aceitaram passivamente o pedido
da professora, personificação das normas sociais educativas? A sociedade de
controle enfatiza apenas as ações reativas, mesmo sendo ambas ações
“naturais”. Embora tenham um comportamento socialmente esperado,
valorizado, o infantil que se adequa e se adapta à tradição das instituições de
ensino teria força ativa para realizar um processo educativo que tende para a
autoria e a criação de sua existência? Como utilizar suas forças reativas para
garantir o movimento de criação?
Isso porque a infância não é da ordem da passividade, enquanto acontecimento se interpõe entre a experiência e a linguagem (...). A
experiência com a linguagem que a infância produz, por um lado, não é simplesmente uma impossibilidade de dizer, mas de falar a partir de uma língua e do poder discursivo instituído, encontrando aí os seus limites; por outro lado, é um espaço para a ética e a política, porque não existe uma articulação entre voz e linguagem, mas somente um espaço vazio em que o homem pode se lançar e se arriscar, fazendo disso a sua história no presente. Os educadores poderiam buscar nesse vazio o germe de uma experiência da linguagem capaz de interromper os dispositivos da linguagem e da comunicação, sem pressupor para tanto uma comunidade ideal ou pragmática. Tal experiência estaria próxima da estética, em busca do acontecimento responsável pelo pensamento e pela emergência da língua articulada (PAGNI 2010, p. 117)
Como considerar seus atos de subversão como parte de um processo
criativo, autoral e individuante? A infância é acontecimento e, justamente por
isso, movimento. Não só o movimento abstrato que a abstração conceitual do
que seja a infância permite, mas o movimento real e vivo do corpo, do gesto, dos
movimentos desejantes. Para que os movimentos de subversão sejam parte de
um processo criativo, haverá, em algum momento, a necessidade de suspender
a ordem, mesmo que provisoriamente, e retomar o corpo, o gesto, os desejos e
vontades – retomada esta que é característica da arte – e, assim, encontrar um
equilíbrio metaestável entre a subjetividade, o movimento intenso e
desequilibrado das suas paixões, corpo, desejos e a ordem que socialmente foi
instituída para o trato com a natureza humana.
É possível traçar um paralelo entre o movimento de transgressão dos
infantis e os grafites/pichações28 deixados na materialidade das cidades. Sua
visualidade aponta para uma ação de resistência à sociedade disciplinar e
controladora. Na mesma medida a literatura procede como uma abertura para
produção do imaginário e ficcionalização de mundos possíveis, desobstruindo
desejos e devires, promovendo atos de resistência simbólica. O elemento
literário, assim como as pichações e grafitagens, são tomados como máquina de
desinvenção e reinvenção do eu, num processo individuante que se dá na
relação com o outro.
28 Embora compreendamos que grafitti e pixo não são sinônimos, pois possuem características e diferenças especificas, aqui os tratamos em conjunto porque ambos são tomados como desenhos que registram o subjetivo nos muros e paredes das cidades.
Trabalhar a noção de resistência é importante para reafirmar que a pulsação e transito do sujeito contemporâneo não cabem em categorias fixas e estáveis, pré-determinadas e supostamente iluminadas. Através dos desenhos nos muros pode-se entender como o sujeito contemporâneo elabora formas políticas de transgressão do ambiente urbano” (SAMPAIO, E.S., 2015, p. 163).
O muro, tomado como suporte de um texto visual, torna-se, ao mesmo
tempo, um materializador tanto da ordem e limitação quanto do confronto e
desobediência. Assim como o ato transgressor das crianças, que acontece tanto
no cotidiano educativo quanto em suas produções simbólicas.
Para Deleuze (1987), um ato de resistência estaria intimamente ligado à
produção artística. A obra de arte não é um instrumento de comunicação, não
concentra apenas informações ou palavras de ordem. Mais do que manter
tradições e transmitir informações ou conteúdo, a obra de arte fala de um futuro,
porvir, devir. Fala a um povo “que ainda não existe” e, por isso torna-se imanente.
Sua expressividade transgride o presente e resiste até mesmo à morte: “o ato de
resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte.
Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de
arte, seja sob a forma de uma luta entre homens” (S.I.), afirma, e ambas as faces
podem ser encontradas na obra artística.
A transgressão pode ser compreendida como a ação de insubmissão das
vontades infantis, já que a vontade se caracteriza pela intensidade. Os infantis
que ainda não foram domados pelas regras sociais – ou pelos combinados
Figura 42 - Follow the colours - Os Gêmeos - Documentário Cidade Cinza
cotidianos das instituições educativas - não possuem vontade, mas por ela são
tomados, a vontade os possui. A experiência por eles vivida cujo rastro os
movimenta para a produção da consciência, funciona como um filtro de desejos
e vontades, que no momento atual de sua existência, permite que por ele
transpasse, transborde, vaze a força e o movimento, a intensidade, de certo
modo, instintiva e incontrolável de ser.
Pluralidade de forças em permanente tensão, o seu movimento estabelece hierarquias temporárias. Pensamentos, sentimentos e impulsos encontram-se em luta, mas também seus tecidos, órgãos e células (...) a partir do combate incessante surgem forças dominantes, que o fazem agir, e forças dominadas, que o levam a reagir. São essas forças que constituem a sua vida, natureza e cultura. (CORAZZA, 2005a, p. 84)
Schérer, além de fazer importantes colocações sobre a infância, também
trouxe considerações teóricas a respeito do anarquismo. Para além de um
sistema político, o autor compreende o anarquismo como um princípio filosófico
de liberdade. Para Gallo (2018, p.6),
o anarquismo proposto por Schérer não está mais ligado a reivindicações individualistas, mas é concebido no contexto de uma nova sociabilidade, gestada no mundo dilacerado de nossos dias, apontando para uma nova forma de comunitarismo, centrado na hospitalidade.
Acolher o outro como um ato de hospitalidade é, segundo Derrida, ser
poético. Partindo do princípio de que tudo é afeto, os atos de afecção não apenas
nos constituem individualmente, mas se tornam estruturantes nessa nova
compreensão do social.
Os mecanismos de fuga atualmente empregados para não ver, sentir,
relacionar-se plastificam a vida e individualizam as ações sociais, evitam
convívio, troca, calor, afecção. Negam que precisamos e nos constituímos
atravessando o outro. Afetamos e somos afetados. Sob esta perspectiva, a
liberdade nunca é individual: luto pela liberdade do outro para que eu possa
exercer a minha própria, tensiono pela minha liberdade para que o outro também
a conquiste. Minha liberdade não começa onde termina a liberdade do outro,
mas sim, junto com a liberdade do outro, pois só sou livre quando todos são.
Diante dessa ordem diferenciada não há espaço para o terrorismo, tendo em
vista que sua estruturação necessariamente atravessa, modifica e potencializa
as relações sociais.
Enquanto há troca, existe uma mútua implicação e a possibilidade de
interagir. Um contato, uma briga, qualquer dessas situações há a persistência do
laço. O terrorismo destrói os laços, não existe possibilidade de convívio ou
qualquer tipo de negociação. O terrorismo não tem como ser combatido a não
ser pela modificação estrutural das relações - ele é considerado o esgarçamento
da nossa sociedade. Assim, o conceito apresentado por Scherer possui como
base as ideias de Levinas e Châtelet em associação ao seu conceito de
hospitalidade e indicam o anarquismo como uma ausência de princípio (do
grego, an-arché, não-princípio). Para ele, a “an-arquia”, a ausência de princípio,
é a possibilidade de alternativa (e não necessariamente transcendência) frente
ao plano da consciência e essência do ser e, de certo modo, apresenta-se na
contramão do capitalismo e sua cultura de controle e distancia-se do terrorismo.
Induz nossas atitudes mais na direção do outro do que de nós mesmos. O
individual, o isolamento, o lucro, a ação egóica submetem-se à relação com o
outro: na possibilidade de composição e conjugação de vontades e desejos.
Deleuze e Foucault afirmam que resistir é criar! Resistir é uma potência
criativa, força ativa, que pertence à vida e gera o novo. Criar é, também, uma
máquina de resistência e destruição. Ela não está no campo do funcional ou
utilitário, mas do político. Destruir também é criar. Criação como um ato ético.
“Afinal, o que restam da autonomia e da liberdade quando todos têm que agir e
pensar em conformidade com as diretrizes do pensamento único, sejam elas
econômicas, políticas, educacionais ou sentimentais?” (DUARTE, 2010, p. 115).
Daqui para frente, apenas um pensamento impessoal, inconsciente e involuntário, que pensa o infantil como paradoxo, acontecimento, devir. Um pensamento que, por não mais pensar a diversidade como referida ao mesmo, substitui a unidade abstrata “criança” pela multiplicidade completa “infantil”; que se abstém de usar o termo “criança”, para não se misturar indevidamente com outros pensamentos e ficar livre para buscar, além das próprias crianças, as intensidades do seu devir. Devir, também ele, não mais chamado “devir-criança”, e sim “devir-infantil”, como o movimento incessante de um pensamento que reconstrói a própria imanência. (CORAZZA 2005)
13 – Processo criativo
Para pensar o processo de criação das crianças parto do pequeno e
intenso texto de Deleuze intitulado “o ato de criação”. Nele o autor parte da
concepção de que não criamos no vazio e para haver criação é preciso
materializar a ideia por meio de um recurso expressivo. “Não temos uma ideia
em geral”, afirma, mas direcionadas à determinadas linguagens ou campos
teóricos. É assim que um artista se expressa pela pintura e outro pela escultura.
É assim que uma ideia se torna filosófica, lógica, acadêmica. É assim que um
conceito pode ser materializado tanto pelo cinema, quanto por gravuras, poesia,
dança, cordel, sem que, no entanto, o produto cristalizado, materializado, seja o
mesmo.
Ou seja, cada sujeito possui um conjunto de ferramentas específicas, cuja
forma é dada pela linguagem, e relacionadas às experiências e afetos que lhe
causaram impressão ao longo de sua existência. A partir desse arcabouço de
afetos, experiências e linguagens, organizam sua forma de se colocar no mundo
e relacionar-se com o outro. Por meio desse arcabouço usa sua potência criativa
para produzir alterações (em si, no outro, no mundo) geradoras do novo.
Simondon considera a técnica como um modo de ser e pensar o mundo, a
técnica seria o modo específico que o gesto produz de si ao utilizar as
ferramentas para o ato de criação.
Ferramentas, técnicas, linguagens, apresentam-se assim como modos de
dar corpo, materializar, objetivar o pensamento. No entanto, essas ferramentas
não induzem à uma mera adaptação ao contexto que lhe está disponível, tendo
em vista que sua utilização é, em si, um fazer-mundo, manifestado por meio
desses elementos que integram as atividades inventivas. O processo criativo
corporifica os elementos internos (que não são puramente individuais), como
uma máquina cultural, que coordena a materialização de novos elementos e a
intensidade das individuações ali presentificadas.
O tripé que sustenta o processo criativo é composto pelas técnicas e suas
ferramentas produtoras de materialidades; pela compreensão elaborada sobre
as experiencias transindividuais, mediadas e metaestabilizadas; e, a linguagem
que organiza esquemas de leitura capazes de produzir inferências sobre a
materialidade produzida no processo de criar, ficcionalizar, modificar e se colocar
no mundo, engendrando, inclusive, a própria existência.
O autor faz um destaque importante quando trata do ato de criação: afirma
que a necessidade de expressar uma ideia, dando-lhe materialidade via
linguagens, não acontece por prazer, por gosto, mas porque algo nessa ideia se
apresenta como indispensável para seu autor. Há uma necessidade (da qual
falávamos no início desse estudo) produzida pela minha demanda de desejo. O
processo de criar esse texto-tese não foi movido pelo prazer e satisfação
pessoal, seu nascer texto foi um processo solitário e doloroso, porém,
imprescindível: havia a necessidade real de dizer. Era uma ação imperativa e
intempestiva, capaz de mobilizar a tal ponto que se tornou também urgente
encontrar um modo de dizê-la. No entanto a necessidade de criar nem sempre
coincide com as possibilidades de criação e isso causa sofrimento. Foi preciso
então, desenvolver um processo de objetivação das ideias e experiências que
eu condensava, diante das linguagens disponibilizadas, para encontrar um modo
capaz de dar corpo ao meu pensar. Estar afetada pelo tema me dava força e
impulso, dava ao meu olhar uma duração, no entanto, na mesma medida em que
os afetos podem tudo, eles não podem tudo. São impulsionadores da ação, mas
todo ato de depara com seu próprio limite, tendo em vista que a necessidade e
a liberdade de criar não garantem as possibilidades de criação.
As crianças também direcionam suas ideias em função das linguagens
que acessam. Uma brincadeira de papeis sociais é vivenciada de um modo,
explicada verbalmente de outro, desenhada de outro, embora tenham como
centralidade os mesmos elementos. É possível, então, relacionar de modo
intencional e planejado a expressão, aquilo que precisa ser materializado, com
a linguagem materializante acessada pelos infantis.
A professora disponibiliza materiais diversos no centro da mesa: pena, algodão, flores, terra, pequenos cubos de madeira, pedras, tecidos, pequenas placas de metal, folhas e cascas de árvores. A proposta era sortear uma palavra que indicasse uma característica e, então, produzir desenho e colagem que se identificasse com aquelas características. “Que material se parece mais com essa palavra?”. Algumas das palavras sorteadas pelas crianças foram: DURO, LEVE, FRACO, FORTE, PESADO, MOLE, ALEGRE, DOCE. “o que tem na mesa que combina com a palavra que eu sorteei?”, perguntou em voz alta enquanto dava as explicações necessárias individualmente. Algumas crianças ficaram em silencio, pela expressão fisionômica, pareciam sentir dificuldade em compreender o que fazer. Ficaram imóveis, esperando. A professora exemplificou, buscando mostrar possibilidades.
Algumas crianças ignoraram as palavras sorteadas e passaram a colar o material que mais lhes interessava, inclusive disputando materiais com colegas, mobilizados pela beleza ou ausência deles em seu cotidiano. A professora foi retomando em pequenos grupos o objetivo da proposta, dando exemplos e fazendo mediações para que eles pudessem relacionar a característica do material disponibilizado com a característica sorteada. A maioria das crianças passou a trabalhar em função do objetivo da proposta, conversando entre si sobre as intenções ou contando uma história sobre aquilo que faziam. A sala estava barulhenta, e extremamente
produtiva. (Repositório de Reminiscencias, 2017).
A proposta da professora era direcionar a materialidade à ideia a ser
expressada visualmente. Ou seja, usufruir da linguagem para dar corpo à uma
abstração. Também foi possível perceber que a necessidade das crianças
estava muito mais voltada para a utilização dos materiais do que propriamente a
expressão da palavra sorteada. Foi preciso que a professora mobilizasse as
crianças para a atividade (ela não era uma necessidade), o que permitiu que elas
encontrassem um caminho (produzir uma colagem) capaz de gerar uma
demanda de desejo que viesse a direcionar seu processo criativo.
As instituições educativas e, em especial, a ação pedagógica da
professora, tem o papel de potencializar o uso de recursos e elementos criativos
no sentido de garantir aos sujeitos condições para sua própria existência, tendo
em vista que é por meio da criação que o homem e a natureza se constituem
mutuamente. Criar implica num modo de interação e apropriação do social e
cultural no plano do real. Os modos de perceber, sentir, falar, pensar, se
emocionar, se relacionar, são aprendidos socialmente por meio do processo de
individuação do sujeito, construídos na e pela linguagem. O processo de criação
se manifesta desde a infância e possibilita aos infantis construir fabulações,
narrativas que lhes permitam ficcionalizar a realidade.
Para Deleuze, o fio condutor que alinhava as mais diferentes formas de
produzir e externalizar as ideias por meio de um processo criativo perpassam
dois pontos fundamentais: espaço e tempo. Por meio da relação indissociável
entre esses dois conceitos é possível estabelecer um campo externo real onde
o processo criativo se efetivará. A projeção das emoções no tempo permite que
ele se constitua como um laboratório de produção de ideias, organizado pelas
vias da memória. Nesse sentido, o processo de criação parte da reelaboração
das impressões vivenciadas desde a infância num espaço e tempo específico,
onde cada momento vivido pelos sujeitos e, em especial, pelos sujeitos infantis,
possui características e limites específicos que organizam as experiências
vividas de um modo particular.
Compagnon (2001) auxilia na compreensão do ato de criação quando
afirma que a importância da imaginação e do inconsciente. Para o autor a
imaginação dissocia elementos da experiência sensível e agrega às partes um
novo objeto, ou seja, produz uma ordem inédita e, portanto, nova totalidade. Para
tanto, o autor vai ao encontro do legado coletivo amparado pelos elementos
conscientes, inconscientes e históricos. Ficção e experiência interagem
diretamente nesse processo: elementos reais são combinados por meio de um
ato ficcional. A fabulação se apoia, assim, na memória daquilo que foi acessado.
Quanto mais rica a experiência vivida pelo sujeito, mais material estará
disponível para ser combinado. Cabe lembrar que a experiência não se refere
apenas àquela individualmente vivida. Embora algumas situações, fabulações
ou outro elemento possam ter sido vivenciados por outros sujeitos, na medida
em que o autor os acessa e por eles são afetados, há possibilidade de produzir
atos ficcionais, assim, é possível acessar elementos do real pautado na
experiência do outro. A experiência alheia também me constitui, então, o ato
ficcional se apoia na experiência vivida tanto quanto no modo como somos
afetados por aquilo que foi vivido pelo outro, por meio da ficção.
Se o ato de criação acontece quando há uma nova combinação entre os
elementos do real acessados pela experiência, o modo como a combinação é
realizada torna-se central para compreender o processo de criação. Como se
destacam as características desses elementos de modo que o sujeito produza
relações e associações que garantam tal combinação? Que impressões causam
os elementos no corpo e na vida do autor?
Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei de criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de ser e ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo (LISPECTOR, 1998, p. 25).
A relação emocional entre o elemento criado e o real se torna o caminho
que dá forma à ideia criada, seleciona impressões, conceitos, ideias, imagens e
expressões externas (roupa, postura, tremor, palidez). O afeto destaca e
seleciona elementos do real para que sejam combinados no processo de criação.
Os elementos são combinados não porque ocorreram no mesmo momento ou
possuem semelhança, mas porque damos um tom afetivo comum e isso
promove relações. Os afetos favorecem agrupamentos inesperados e ampliam
as possibilidades de novas combinações, tendo em vista a amplitude das marcas
afetivas que nos causam impressão.
Por que o afeto se torna importante no ato criativo, seja ele no processo
de desenho, literatura ou de construção da própria existência? O afeto é, na
perspectiva dessa tese, o elemento-chave, capaz de favorecer os agrupamentos
dos elementos que serão selecionados para nova composição ao longo do
processo criativo. Todo processo de criação parte de uma abstração imagética
construída a partir de elementos retirados/apreendidos do real, presentes na
experiência anteriormente vivida, seja por si mesmo ou acessada29 via “outro”.
Nesse sentido, os elementos reais são modificados e reelaborados, num
processo de ressignificação que permite a ampliação daquilo que o autor já tem
disponibilizado em seu campo imagético e corporal e armazenado via memória.
O processo de produzir ficção não se dá aleatoriamente, mas, a partir dos
elementos disponíveis para cada sujeito-autor de seu processo criativo. Que
elementos temos disponibilizado em nossa prática cotidiana para ampliar as
possibilidades de repertório que afetam os infantis por meio de sua
experienciação?
Mas, se esse processo não ocorre de modo aleatório, as combinações
dos elementos já disponíveis se organizam pelas vias do afeto. A relação afetiva
entre o real e sua impressão no sujeito é um elemento constituidor do ato
ficcional. Os seres humanos sentem de modo afetivo as relações e
acontecimentos vivenciados em sua existência por acesso aos mais diferentes
repertórios culturais com os quais esteja envolvido ou imerso. Por esse motivo,
dois infantis que cresceram no mesmo contexto podem construir abstrações
sobre seu processo existencial completamente diferentes. São os léxicos
afetivos que reelaboram as vivencias do real.
Embora os sentimentos ou as emoções não sejam fenômenos unicamente fisiológicos ou psicológicos, eles não são deixados ao acaso ou à iniciativa pessoal de cada autor. Sua emergência e expressão corporal correspondem a convenções que não se distanciam da linguagem, mas que dela se distinguem, no entanto.
29 A experiência é sempre singular, em primeira pessoa, única e individual. Quando eu acesso a experiencia do outro, na verdade, eu não acesso a experiencia, mas o que está disponível dessa experiencia no campo de expressão constituído pela linguagem. A linguagem compreendida, também, como um campo de ação.
As emoções nascem de uma avaliação mais ou menos lúcida de um acontecimento presenciado por um ator provido de sensibilidade própria. Elas são pensamentos em ação dispostas num sistema de sentidos e de valores. (BRETON, 2009, p.11)
Ou seja, o afeto se dá quando os acontecimentos vividos no real tocam.
A partir do afeto as vivências tornam-se experiências. Quando vivemos algo que
nos toca, ficamos impregnados pelo acontecimento, ele causa impressões
(impresso) que nos influenciam e constituem, e passa a existir em nós para além
da duração de sua existência. O afeto seria a especificidade da transição entre
o acontecimento (externo) e seu processo de passar pela membrana de trocas
que diferencia o eu (interno). A isso Espinosa chama duração (duração como
passagem, transição vivida) e Deleuze reitera, afirmando que a duração não é
uma coisa, mas a passagem de uma coisa à outra.
Para Deleuze todo modo de pensar não representativo é denominado
afeto. Os efeitos de duração do afeto, ou seja, aquilo que surgiu a partir do afeto,
(como a sensação de prazer ou dor, alegria ou tristeza) são chamados por
Deleuze de signos vetoriais, tendo em vista que dão um direcionamento para a
duração. Aumentam e expandem (ou ao contrário, diminuem e restringem). Para
o autor, o funcionamento dessa duração pode ser explicado pela
variação contínua sob a forma aumento-diminuição-aumento-diminuição da potência de agir ou da força de existir de acordo com as ideias que se tem. (...) à medida que uma ideia substitui a outra eu não cesso de passar de um grau de perfeição a outro, mesmo minúsculo, e é esta espécie de linha melódica da variação contínua que vai definir o afeto (affectus) ao mesmo tempo em sua correlação com as ideias e sua diferença de natureza com as ideias” (DELEUZE, 2002, p. 60).
O afeto, então, corrobora com Espinosa, quando o tomamos como a
variação contínua da força de existir, determinada pelas ideias que se tem.
A ideia existente no afeto toma uma forma pela afetividade, ou seja, o
acontecimento vivido, com duração específica, começa a ser interiorizado,
apropriado, categorizado, ampliado, passa por modificações que, aos poucos lhe
configuram uma forma e o constituem dentro de um sistema de significação
adquirido culturalmente no processo de relação com o outro, com o mundo. Para
Le Breton (2009), “a afetividade mistura-se a acontecimentos significativos da
vida coletiva e pessoal, implicando um sistema de valores posto em prática pelo
indivíduo e uma interpretação dos fatos conforme a referência moral30” (p. 113).
O afeto impregna o acontecimento no sujeito e ele produz uma combinação com
seu sistema moral, vetorial, de significados, que organiza o afeto dentro de uma
afetividade.
A afetividade, por sua vez, é traduzida e definida pela emoção. Assim,
continua o autor, “a emoção é a definição sensível do acontecimento tal como o
vive o indivíduo, a tradução existencial imediata e íntima de um valor confrontado
com o mundo” (LE BRETON, 2009, p. 118). Já o sentimento, seria o tom,
tonalidade, nuance, a gradação, a formatação da emoção construída a partir
daquilo que afeta o sujeito. O sentimento seria responsável, assim, por alojar
num espaço determinado (seja ele presente, real, virtual, ficcional...) a emoção
vivida. Para Nietszche os sentimentos seriam, na verdade, a moralização dos
afetos.
Vivenciar as emoções poderia ser considerado um ato de transgressão
quando tomamos a ideia de Platão em “A República” quando afirma que as
emoções precisariam ser domadas para não prejudicar a razão - 4,5 litros de
sangue corporal concentrados e congelados na mente, para manter a razão sob
controle-. Os poetas deveriam ser abolidos justamente por incitarem emoções
que afetariam o equilíbrio racional e controlado dos sujeitos. Nesse sentido, as
emoções poderiam ser compreendidas como dispositivos capazes de afetar e
incitar desejos e vontades, promover descontrole e instabilidade da moralidade
necessária para aquela constituição social, provocar paixões opostas aos
sentimentos sob controle.
Embora a compreensão de que a emoção precisa ser domada pela
consciência seja um modo clássico de compreender a consciência e a
moralidade, ainda hoje percebemos a necessidade apresentada pela sociedade
de um (des)limite que robusteça a linha que define o normal e socialmente
esperado, do real caótico que está para a vida. O normal, nesta constituição
social, estaria em domar as emoções, normatizando os comportamentos. Negar
e agir contra os desejos em favor de um controle instituído socialmente que
indicaria que na consciência está a verdade.
30 A moralidade, em nosso caso, pode ser entendida como um sistema de significação que contém os valores sociais e culturais compartilhada pelo sujeito que a acessa.
Espinosa define afeto como pathema (paixão) do ânimo, uma “ideia
confusa, pela qual a mente afirma a força de existir, maior ou menor do que
antes, de seu corpo ou de qualquer parte dele, ideia pela qual, se presente, a
própria mente é determinada a pensar uma coisa em vez de outra” (Espinosa,
2008, p.259). É através dos afetos que a mente pode afirmar, em maior ou menor
intensidade, a realidade de seu corpo, ou seja, ter a sua potência de agir
aumentada ou diminuída”. São os afetos que afirmam nossos corpos, nos dão
potência e direcionamento para o existir e construir a existência por meio de um
processo de criativo que mescla o vivido com sua significação e dá carne às
ideias.
É possível concluir que o homem está afetivamente no mundo, sua
existência é um traço afetivo, difuso e arredio, que se direciona por meio de um
gesto de afeto e guia seu movimento e seu colocar-se no mundo, deixando
rastros de experiências nos processos vividos em sua existência. Para Le Breton
(2009, p. 112), o homem se insere no mundo como um objeto atravessado de
sentimentos passageiros; “intrincado em suas ações, suas relações com os
outros, com os objetos que o entornam, com o seu meio, etc., ele está
permanentemente sob influência dos acontecimentos e sendo por eles tocado”.
Os afetos sugerem, assim, nossas demandas de desejo. Os afetos
produzem bons e maus encontros. Bons encontros que nos alegram, aumentam,
produzem ações, força e potência ativa. Maus encontros que nos entristecem,
diminuem, nos tornam passivos, reativos, inativos. A intensidade de vida
acessada pelos encontros produz no sujeito uma intenção de buscar novamente
aquelas sensações nutridoras que foram impressas e em si pulsam mesmo após
a duração do processo experienciado ou, ao contrário, buscar meios de refutá-
las e delas se distanciarem. Os encontros orientam os elementos afetivos, num
processo de categorização não fixa, que organiza esses processos de
fabulações com o mesmo tipo de marca afetiva. Elementos variados e
completamente diferentes entre si podem causar a mesma demanda afetiva e
gerar o mesmo movimento de desejo em um sujeito, causando uma aproximação
entre esses elementos e facilitando seu processo de agregação, associação,
combinação.
Podemos concluir então, que aquilo que nos afeta gera uma memória
emocional que define e categoriza afetivamente o acontecimento vivido,
aproximando-o de outros elementos ativados por sentimentos e emoções
semelhantes. Nesse sentido ocorre associação de elementos que, embora
tenham formas e conteúdos diferenciados, ativam no sujeito a mesma relação
emocional. Essa associação permite novo arranjo de elementos que poderão
gerar o novo. Assim como há a possibilidade de construção e combinação para
a produção do novo, há a potência de desconstrução - como na obra de Von Ha.
Figura 43 - JP II - 2015, Gustavo Von Ha, tinta automotiva sobre lona, cercada de cobre esmaltado e bando de ferro
A reelaboração das ideias organizadas sob novo arranjo é materializada
por meio de uma linguagem específica, seja ela artística, corporal, técnica,
verbal, filosófica, etc., que lhe dará a materialidade capaz de inseri-la novamente
no plano do real. Assim, uma ideia pode ser cristalizada, corporificada,
presentificada, num objeto específico. Seu processo de elaborar uma concretude
capaz de dar materialidade para sua ideia (uma ideia especifica em uma
linguagem especifica, não em geral, como apontou Deleuze), faz com que o
processo de duração aconteça no sentido de expelir pela membrana aquilo que
está interno e, que nessa duração, passa a fazer parte do real, trazendo nova
organização e materialidade para o mundo. O processo de criação se
fundamenta tanto no sentimento quanto no pensamento, tanto na emoção
quanto nos conceitos.
É a necessidade que coloca o homem frente ao desafio de dar corpo às
ideias. A necessidade associada com o desejo e as vontades tornam-se a mola
propulsora capaz de projetar as ideias para a exterioridade dos sujeitos. As
ideias partem de um campo de organização abstrata e informe e passam a ser
ficcionalizadas, produzindo o real, mesmo que seja num processo de fabulação.
A ficção é realizada a partir do sistema de significações, ao mesmo tempo
individual e coletivo, apreendido pelos sujeitos e materializados pelas condições
linguísticas para ele disponíveis.
Assim como o exemplo do menino que arremessa a bandeja de frutas
para obter atenção e espaço em seu contexto social, colocar-se no mundo exige
de nós uma desobediência, muitas vezes, impetuosa, selvagem, violenta. Criar
pode ser considerado, de certo modo, um ato de violência. Deleuze nos diz que
é impossível a docilidade na prática do pensamento. Os conceitos entrariam
como possibilidades mas, para dar-lhe potência, força, ativação, movimento, a
intensidade da vida precisaria estar presente, a necessidade, a urgência, o
exagero de ser. Fato que o autor considera uma violência original feita ao
pensamento, movimento capaz de tirá-lo da zona de possibilidades e dar-lhe
vida, assim como o movimento de nascer.
O que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a violência, é o inimigo, e nada supõe a filosofia; tudo parte de uma misosofia. Não contemos com o pensamento para fundar a necessidade relativa do que ele pensa; contemos, ao contrário, com a contingência de um encontro com aquilo que força a pensar, a fim de elevar e instalar a necessidade absoluta de um ato de pensar, de uma paixão de pensar. (DELEUZE, 2006, p. 230)
Retomo, então, um dos questionamentos iniciais, contido na introdução
desta tese: que ações pedagógicas precisam ser priorizadas para que o
cotidiano educativo dos infantis tenham ações intencionais, planejadas,
pensadas no sentido de priorizar a potência criativa dos infantis em seus atos de
expressão em convívio? Talvez, uma resposta possível estaria na relação entre
o processo de afetar e o arrombamento do pensar, ou seja, o papel do professor
no processo criativo dos infantis remeteria à produção de desafios capazes de
gerar nas crianças necessidades que mobilizem o ato de pensar para a criação
do novo. Para direcionar essa questão mais especificamente para o ato ficcional
produzido pelo desenho dos infantis, poderíamos tratar dos desafios estéticos
organizados dentro de linguagens artísticas que movimentam os afetos para
culminar em ideias de desenho, sejam elas informes ou figuradas.
Anrheim (1992) afirma que os desenhos infantis são soluções bem-
sucedidas para problemas visuais deliberados pelos infantis e, se são
compreendidos de outro modo – como o realismo fortuito e o fracassado – isto
se dá pela relação direta que seus interpretadores fazem com a representação
mimética e clássica encontrada no processo artístico ocidental. Os infantis,
nesse sentido, não utilizariam o desenho como uma linguagem que reproduz a
realidade instituída, como sugere a tradição visual dominante, mas, sim, que
produz formas equilibradas visualmente, capazes de materializar ideias
relacionadas aos afetos, às experiências sensórias que desejam externalizar.
Magritte avigora essa ideia com a frase citada na introdução desta tese: “Eu não
pinto aquela mesa, exatamente, e sim a emoção que ela produz em mim”.
Além disso, o modo como produz imagens, sejam elas figurativas ou não,
atravessa os conceitos imagéticos universais, chamados iconotipos. Martins
(2007) considera iconotipos a imagem que possui forte caráter comunicativo e
social, uma figura de fácil compreensão, que aponta para a versão mais
simplificada identificável pelo outro, como um resumo da imagem. Assim, várias
culturas possuem um modo básico e próximo de desenhar casa, ser humano,
árvores etc, como um esquema simples capaz de revelar as características mais
básicas para identificar a imagem. O iconotipo não é um modelo limitado (como
o estereotipo31) mas uma unidade comunicante que serve de alicerce para outras
criações, como uma generalização do elemento que garante a unidade mínima
capaz de identificar a imagem pelo traço.
31 Chama-se de desenho estereotipado aquele relacionado com imagens pré-concebidas, baseadas num modelo fixo e limitante, que restringe o processo criativo porque torna-se um modelo que possui o fim em si mesmo. Ao contrário do iconotipo, que serve de base para outras criações imagéticas, tornando-se, então, um meio para encontrar o melhor modo de desenhar determinado elemento.
Figura 44 - Descubra ideias sobre Chuva De Benção - https://br.pinterest.com/pin/641763015624305047/
Figura 45 - https://www.soscuriosidades.com/wp-content/uploads/2017/09/nuvens-cumulonimbus.jpg
Figura 46 - Tipos de Nuvens. Fonte: Figura 46 - tipos de nuvens. Fonte: https://www.soscuriosidades.com/nuvens-tipos-caracteristicas-curiosidades
Embora as nuvens se apresentem de modos diversos na natureza,
quando desejamos traçar uma nuvem que possa ser rapidamente compreendida
por outra pessoa, ou seja, um registro visual que facilmente seja identificado pelo
outro, a desenhamos do modo que mais comumente encontramos registrada, ou
seja, desenhamos seu iconotipo. O uso de iconotipos se daria não por uma falta
de habilidade, mas porque os conceitos visuais universais dariam conta de
traduzir aquilo desejamos externalizar, suprindo, assim, a necessidade visória.
O desejo estaria em conceber pelo gesto as características gerais dos objetos
por meio de traços simplificados capazes de abarcar visualmente aquilo que se
pretende enfatizar no processo de materializar um elemento visual.
Retomando a ideia de simulacro, como fazer com que os infantis utilizem
os iconotipos mas a eles não se limitem? De que modo os modelos gerais podem
ser cruzados com modelos mais particulares que articulem suas especificidades
dentro de uma compreensão visual coletiva? Quando o direcionamento
educativo indica a potencialidade de um sujeito de expressão, como diria
Deleuze, autor e criador, os iconotipos não podem ser o resultado, mas o
caminho potente para dar visualidade à produção imagética.
Os iconotipos poderiam, então, disponibilizar uma forma inicial, capaz de
disponibilizar ao infantil uma possibilidade de conceber a visualidade desejada
de modo condizente com a organização abstrata que seu pensamento consegue
lidar. Por isso, muitas vezes os infantis partem de modelos esquemáticos simples
e, na medida em que experienciam diferentes acontecimentos e condensam seu
repertório perceptivo na memória, complexificam suas produções visuais. Por
meio de repetições de esquemas passam a dominá-los até que uma nova
experiência afete seu processo esquemático, ampliando-o ou modificando-o.
Japiassu (2005) aponta para o fato de que estudiosos como Vigotski, por
exemplo, desprezaram em suas análises sobre o desenho, o processo inicial –
as garatujas -, por não trazerem traços representativos, e consideraram essa
fase gráfica como uma expressão amorfa de elementos gráficos isolados. Ou
seja, o desenho só seria definitivamente considerado desenho ´dentro dessa
perspectiva no momento em que existe o interesse em figurar, ou seja, dar uma
força específica e intencional para a linha. Nega-se, assim, o potencial abstrato
presente nas crianças bem pequenas e desconsidera-se a construção estética
produzida nessa faixa etária: o desenho dos infantis bem pequenos só teria
importância como um vir-a-ser que ainda não é, típico do in-fans, a criança sem
fala. Tal época da vida da criança – a das garatujas – assemelha-se ao que a
produção visual adulta costuma caracterizar como “caótica” e que no caso dos
infantis tem a ver com interesses e processos abstratos mais elementares. Para
tanto, defendo aqui que o garatujado é uma espécie de fabulação abstrata e
também ficcional, entendendo os infantis como produtores de um real vivo.
Assim, mais que representar mimeticamente um elemento visual por meio
do desenho, é importante fortalecer no processo de criação infantil, mesmo que
parta de um iconotipo, mas caminhe para um olhar autoral (tenha o infantil a
tendência gráfica para a figuração ou não). A autoria estaria no processo de
solucionar os problemas estéticos apresentados não de modo a buscar uma
representação figurativa, mas uma indicação que reforce a experiencia pessoal
adquirida no processo de afetar-se pelo contato com aquele elemento.
TEXTO, TECIDO SEM FIM
Como em Barthes em seu “o prazer do texto”, minha fala não é magistral,
mas uma escritura que, como tal, presentifica o desejo, as fruições da linguagem,
não é ameaça de opressão ou verdade, mas um convite ao jogo. Deconstruo-
me e recomponho-me enquanto produzo texto. Texto que não define nem
representa, mas fabrica infinitudes. Escrever a tese e toma-la como campo
metodológico para pensar o processo de criação e fabulação foi seguir as curvas
e os desvios que a escrita estabelece e transgride: não é dar um sentido, mas
uma pluralidade de sentidos. Os desenhos infantis tomados como textos visuais
pelas nuances de um olhar literário nos permitem afirmar que o espaço da
literatura não é apenas o da ficção decretada, mas também daquela instituição
fictícia que se abre para a possibilidade de dizer tudo: literatura como instituição
que extrapola a si.
Revisitei conceitos, imagens e experiências para abrir espaço à filosofia da
diferença. Por meio deste arcabouço teórico e método de fazer pesquisa
encontrei a possibilidade de pensar a educação dos infantis para além das
ficções de controle e ver na infância a diferença como potência, como vida. Os
processos de individuação foram intensificados nesse movimento, por meio da
busca por uma autoria, um processo criativo onde os infantis disponham o ponto
expressivo que só a si pertencem, ainda que constituído em meio às
experiências sociais.
Sob essa ótica, o ato de transgressão é compreendido como resistência às
formas perversas produzidas culturamente enquanto modo de manifestação
presente, questionamento dos (des)limites estabelecidos pelo adulto e um
convite a pensar o processo educativo para além de domar os corpos. Os
movimentos de transgressão podem ser analisados frente ao anarquismo
proposto por Scherer, que vê no outro e não unicamente em si, a meta dos
processos e organizações sociais. Assim, os limites estabelecidos no processo
educativo estariam na relação entre o processo individuante de cada infantil e o
sócius ao qual ele faz parte, como duas forças que se unem para a produção do
novo. Enquanto sistema tenso, que se satura na relação entre sujeito e meio, o
processo educativo está para o devir no sentindo de possibilitar certa
estabilização nessa tensão entre o eu e o outro, o interno e o externo que
constitui os sujeitos em seus processos individuantes.
Em meio a essa produção, o desenho infantil como um repertório de
possibilidades que também abrange sua insuficiência e, na mesma medida, sua
transgressora resistência. Deparo-me com o traço infantil e com a liberdade de
traçar. Traçar como uma forma de ler, de criar, produzir o novo. Processo de
fabulação. Ao tomar o traço do desenhar infantil como forma de leitura, o infantil
que traça está lendo o que vê. Ao traçar, lê seu objeto - não em si, mas na
relação que estabelece entre o objeto e ele mesmo.
O desenho nem sempre dá conta dos seus ditos, mantém o mistério, não
dá respostas exatas. Assim como não é fácil compreendê-lo, também não é
produzí-lo. O desenho infantil traduz em volumes, distâncias, planos, traços,
manchas, texturas e cores o que o sujeito desenhista, de algum modo,
experiencia daquilo que deseja designar, desenhar é produzir visualidade para
uma demanda de desejo. No entanto, só ganha sentido a partir do corpo do seu
expectador, seja ele seu autor, outras crianças ou outros adultos, cada um com
seu arcabouço de experiências, informações e sensações que disponibilizam um
modo especifico de acessar as imagens. As imagens nunca esgotam nada,
apenas se abrem ao jogo. O expectador torna-se protagonista desse processo
de leitura.
A infância como uma experiência intensiva em pleno movimento, prenhe
de sentidos, que solicita e estabelece outra compreensão temporal, um tempo
aiônico, suscita um professor que ensina, que marca com um sinal os infantis,
num movimento de jogo. Jogar com texto produzido e não conduzi-lo. A criação
não precisa ser domesticada por nenhum processo de criação, mas pensada “a
partir”. Assim, desenhar não visa obter informação ou conhecimento, mas, por
meio das sensações que suscita associadas às informações e experiências,
construir ficções.
A arte enquanto distanciamento do real, nos leva a um real ficcionalizado
no e pelo processo de criação artística que gera diferentes modos de afeto. Na
medida em que esses afetos produzem impressões nos corpos, permitem que
os sentidos e percepções sofram (re)elaboração, criando complexidades que
humanizam os sentidos e estabelecem novos modos de produção da existência.
Amplia-se potencias de vida, cabem mais mundos. Para tanto, a necessidade de
frequentação e implicação frente às experiências artísticas e estéticas se fazem
presentes. O desenho infantil aqui pensado por outros caminhos que não as
bases psicológicas, exige um cotidiano com potências estéticas, forças ativas, e
uma postura do professor capaz de disponibilizar e nutrir, frente ao processo de
criação infantil, a possibilidade de ficção do real.
A lógica do simulacro para pensar a produção dos desenhos, permite
estabelecer novos nexos e, para além de uma representação que fracassa,
torna-se um caminho que alcança um novo. A disponibilidade de elementos que
sirvam como inspiração (e não ponto de chegada) no cotidiano infantil permite
ampliação de repertório, novas associações, dissociações e combinações, num
processo de (re)arranjar(-se) infinito. Por isso, a cópia no processo de desenhar
precisa ser questionada no sentido de impulsioná-la para além dos estereótipos,
permitindo o simulacro, um processo de apropriação pessoal dos elementos
disponibilizados em favor de uma autoria.
O infantil, nessa perspectiva, não desenha para copiar o real ou representá-
lo, mas para produzir uma composição eficaz por meio da interação entre
elementos artísticos capaz de construir significados, narrativas, sensações,
afetos. O ato desenhativo dos infantis abriria espaço para ficcionalizar, ou seja,
expressar um modo de ler o mundo que, em si, produz uma realidade específica,
por eles elaboradas. O literário estaria não apenas no plano estético, como um
espaço de suspensão, mas principalmente na possibilidade de fabulação
encontrada na dobra da ficção produzida pelas imagens organizadas como texto.
Fabulação, operação de vida sobre a dobra da ficção. Dobra, intersecção entre
os limites da ficção e realidade, arte e vida (dobra como zona de troca). A dobra
permite que o falso atue no campo do real, como uma obra de arte que produz
narrativas e confunde-se com as relações que suas narrativas estabelecem.
A fabulação teria papel central na discussão por ser o movimento que
permite ao falso a potência de fazê-lo memória e substitui as imagens-lembrança
reais por falsas que, por sua vez, produzem nova significação a partir do que foi
experienciado. E, se temos na memória a unidade do passado, temos na
fabulação a unidade de futuro vivida no tempo aiônico. É potência do falso
porque força a passar, porquanto, sem a fabulação não haveria um campo de
forças para além do presente. Fabulação como processo de criação do futuro,
devir.
Nos desenhos infantis os processos de fabulação se orientam no sentido
de produzir uma linha de desterritorialização que se direciona para a vida e tem
no desenvolvimento do próprio processo de desenhar sua potência geradora.
Desenhar fabulações por meio das ficções do real seria a produção das
diferenças no ato de narrar a própria vida enquanto potência do vir a ser, onde
se é aquilo que se foi e também o que será.
Destaca-se a necessidade de buscar um caminho pedagógico capaz de
disponibilizar recursos para materializar a fabulação produzida, um caminho
onde haja a necessidade de fabular. Desenhar como uma inadaptação, uma
resistência ao que está disponibilizado no campo do real, exigência do novo,
superação de um desafio pelo sujeito para que não entre num equilíbrio
sintomático e inerte que desliga-o da força mobilizadora que é o desejo. Como
dissemos, se o sujeito não vivencia a demanda de desejo, não há a ação de
colocar-se em movimento. Nesse sentido, produzir ações pedagógicas que
apontem para uma questão que precise ser solucionada gera nos infantis uma
necessidade de criar. Os desafios estéticos para serem solucionados por meio
de construções autorais desafiam o professor a torna-se também um produtor
de fabulação.
Criar, ou seja, materializar uma ideia é dar corpo a um pensamento informe
que é elaborado por meio de um novo arranjo dos elementos acumulados ao
longo do tempo no movimento de acessar o real. É preciso um arcabouço de
experiências e conhecimentos que sirvam como base de repertório que será
utilizado para criar uma realidade que comporte os desejos infantis, sendo que
a ficção indica um modo de apropriação do real que permitirá a criação de uma
realidade especifica e transformadora.
Os elementos são retirados do real processado emocionalmente, porém,
sua nova combinação, arranjo, organização, se torna um ato ficcional. Nesse
sentido podemos compreender que, na mesma medida em que uma criança
amplia seu repertório de elementos reais, maiores são as chances de promover
a amalgamações entre os elementos que resultem em um novo elemento,
constituído pelo real, e, por isso, também real, porém, ficcionalizado a partir do
campo imagético disponível.
Diante dessa perspectiva, as situações vivenciadas afetam os sujeitos,
afetam os corpos e são afetados por outros corpos, promovem encontros,
desencontros, choques e produzem impressões que aparelham e elaboram as
emoções vividas. Essas, manifestam as significações culturais que ressoam em
si no trato com as situações de afeto. O afeto se torna afetivo na medida em que
a construção social disponibilizada pelos elementos acessados no real se tornam
um ato pessoal, um fato específico que toca aquele sujeito, em particular, em
seu processo de individuação. Embora façam parte de um sistema de sentidos
disponibilizado pelo meio, como aponta Breton, os princípios que organizam
aquilo que foi vivido individualmente por meio de uma mediação com o outro e
com o mundo se tornam um elo específico cujo afetivo, que é mobilizado pelos
afetos, lhe dá uma forma que é traduzida por uma emoção.
Ainda que dê visualidade às ideias infantis, o desenho não parte de uma
fonte visual, mas de uma ideia informe, abstrata, caótica. A criança não
desenharia o que vê, num processo de busca realística, mimética, mas o que
processa daquele elemento. A abstração presente em seu processo de criação
visual poderia ser definida, como aponta Arnheim (1992, p.156), como um
conhecimento não perceptivo, derivado de fontes não figurativas. Nesse sentido,
qualquer produção de imagens, sejam elas representativas ou abstratas,
demandam a utilização de conceitos imagéticos, ou seja, invenções,
concepções, conquistas, captações e descobertas de meios de produzir
imagens.
Na medida em que o infantil é inserido na cultura, é afetado por novas
experiências e afetivamente direcionado para determinados modos de desenhar
aceitos em seu contexto (como a representação e aproximação mimética da
realidade em nossa sociedade, por exemplo), passam a exigir de si mesmos e
de suas produções uma produção visual condizente com a moralidade, valores
e expectativas de seu contexto social, deixando, muitas vezes esquemas visuais
autorais subsumidos para inserir seu ato desenhativo novamente nos modelos
estereotipados. É importante destacar que o objetivo dessa discussão não é
negar a tendência à representação observada nos processos desenhativos dos
infantis, mas demarcá-la não como o objetivo final do traço, e sim como uma
possibilidade no trato com o abstrato.
Reitera-se, então, a questão dos problemas visuais que desafiam a
produção imagética das crianças. Desenhar perpassa sempre a problematização
de traduzir numa linguagem aquilo que ainda não tem materialidade, de
encontrar maneiras de transformar em alguma coisa material, uma ideia, imagem
ou sentimento.
A Fabulação abstrata é a ficção da criança elaborada a partir do abstrato
num corpus caótico sem forma e ao mesmo tempo elaborado, que o infantil
precisa moldar e essa moldagem acontece no meio da relação com o outro e
com o mundo. Trata-se de um todo informe no interior infantil e, a partir das
experiências, a forma da abstração vai se constituindo. Porém a preconização
da abstração, no contexto da Educação Infantil, incomoda a professora a ponto
de distorcer a distorção que a abstração propõe.
Nesse sentido, a garatuja passa a ser valorada enquanto momento em si
mesmo e não como fase gráfica para chegar à figuração, a potência está no
registro do gesto. O foco dessa fase é, então, gestual. Não um gestual corporal
apenas natural e biológico, mas a exteriorização de como o processo psicológico
daquele infantil traduz a visualidade. A partir do momento que se enfatiza o
gesto, temos a possibilidade de propor atividades específicas em que o gesto
seja o foco. Esses traços são vestígios de um pensar e não apenas de um
gestuar temporal. Consequentemente, torna-se pertinente a defesa da utilização
de material diversificado com possibilidade de traços diferentes a partir do
mesmo gestual; uso de texturas e consistências que possam dar uma forma com
volume para um traço com corpo.
Embora o ato desenhativo acompanhe o desenvolvimento histórico da
humanidade o discurso sobre esse gesto é recente e relacionado com os
conceitos de arte atuais e ocidentais. O desenho seria, então, uma linguagem
que possibilita aos infantis ficcionalizar o mundo por meio de uma configuração
visual, sejam representativas ou não, figurativas ou não, e se produz por meio
de um gesto provedor de sinais visuais em superfícies.
Para desenhar é preciso tempo para o ócio criativo, mas, também, tempo
para observação, perceber detalhes, intensidades, forças, tonalidades, sutilezas.
Assim, ensinar a expressar-se com autoria visual no ato desenhativo dos infantis
não significa repudiar modelos em favor da auto-expressão, nem caminha para
um abandono total de regras. Ao contrário, significa apropriar-se de regras,
técnicas, esquemas, arcabouço de experiências e imagens, para utilizá-los como
meio (e não fim) para seu movimento de criar, o que implica, muitas vezes,
também em sua negação. Ser autoral não significa ausência de técnica, de regra,
de limite ou discurso, mas a utilização desses recursos de modo específico e
individuante, dando margem e expressão à rede de singularidades, traços da
vida. O processo de fabulação permite aos infantis participar da construção de
sua existência e de seu processo de individuação, cujo objetivo é alcançar os
termos nitszcheanos que nos impulsionam a tornarmo-nos aquilo que nós
somos.
Figura 47 - Pierro Lunaire, Paul Klee (1924)
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