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Estrutura narrativa: da Poética de Aristóteles à arte cinematográ7ica de Hitchcock, Lubitsch e Wilder
João Constâncio
I. Quase todos os *ilmes de *icção da história do cinema “contam uma história” ou pretendem “contar um história”. No cinema clássico americano, mesmo os realizadores mais ousados e inovadores basearam sempre os seus *ilmes numa história. Alfred Hitchcock diz expressamente a Truffaut: “Rodar *ilmes, para mim, quer dizer em primeiro lugar e, antes de tudo, contar uma história”.1 Hawks, Lubitsch, Wilder, Welles — de uma forma ou de outra, todos os grandes do cinema clássico americano dizem o mesmo: o essencial é haver ou não haver uma história para contar. Até, pelo menos, aos anos 60 do século XX esta convicção foi dominante em todas as partes do mundo em que se fez cinema de *icção. E note-‐se que, se a tarefa de conceber e escrever um guião nunca teve o mesmo prestígio que a de dirigir ou realizar um *ilme, nem por isso muitos dos grandes realizadores da história do cinema deixaram de considerar este facto injusto. Orson Welles, por exemplo, disse que “o escritor [ou argumentista] devia ter a primeira e a última palavra na feitura de um *ilme, sendo o escritor-‐realizador a única alternativa melhor, mas com ênfase na palavra ‘escritor’”2; Billy Wilder pensou sempre que “80% da criação de um *ilme é a sua escrita”.3
Se um *ilme “conta uma história”, tem uma estrutura narrativa. Um *ilme é composto por uma série de imagens em movimento — ou, mais exactamente, de fotogra*ias que criam a ilusão de movimento. Que a estrutura de um *ilme seja narrativa, signi*ica que o modo como essas fotogra*ias estão organizadas — ou como se estruturam, como se relacionam umas com as outros — as faz funcionar como uma narrativa. É
Publicado em Grilo, J.M./ Aparício, I., Cinema e Filoso0ia. Compêndio, Lisboa, Colibri, 2013, pp. 117-‐140
1 François Truffaut, Hitchcock — diálogo com Truffaut, Lisboa, Dom Quixote, 1987, p. 77.
2 Cf. Mark W. Estrin (ed.), Orson Welles. Interviews, Jackson, University Press of Mississippi, 2002, p. 31, e Orson Welles & Peter Bogdanovich, This is Orson Welles, Cambridge, Massachussets, Da Capo Press, 1998, pp. 143-‐144. [As traduções de Inglês para Português são da responsabilidade do autor deste artigo].
3 Robert Horton, Billy Wilder. Interviews, Jackson, University of Mississipi Press, 2001, p. 52.
essencialmente indiferente que o *ilme tenha ou não tenha som, tenha ou não tenha intertítulos, tenha ou não tenha diálogos entre personagens, tenha ou não tenha um voice over em que um narrador conta uma história ou uma parte de uma história. Um *ilme tem uma estrutura narrativa se as imagens, os planos que o compõem se estruturam de forma a contarem, eles próprios, uma história. É certamente neste sentido que Hitchcock de*ine um mau *ilme como uma série de “fotogra*ias de pessoas a falar” e acrescenta que “o diálogo deve ser um ruído entre outros, um ruído que sai da boca das personagens cujas acções e olhares contam uma história visual”.4 Para que um *ilme tenha uma estrutura narrativa ou “conte uma história” (no sentido relevante desta expressão), não basta portanto, que ele tenha uma história. É também necessário que ele conte essa história em termos especi*icamente cinematográ*icos — ou seja, visualmente, através de “acções e olhares” que sejam fotografados por uma máquina de *ilmar. Um *ilme pode ter uma história sem a contar (porque a conta essencialmente através dos diálogos ou do voice over), e isto quer dizer que pode conter uma narrativa (ou até várias narrativas) sem ter uma estrutura narrativa enquanto 0ilme.5
Estas a*irmações suscitam imediatamente duas perguntas: (a) o que signi*ica, mais exactamente, que um *ilme tenha uma “estrutura narrativa”?, (b) como se constrói um *ilme que tenha uma “estrutura narrativa”? Podemos começar por tentar dar uma resposta provisória a estas duas perguntas — suscitando, assim, novas perguntas, de cujas respostas se ocupará o resto deste artigo. Sobre a primeira pergunta, podemos dizer provisoriamente: um *ilme tem uma estrutura narrativa quando conta uma história de um modo essencialmente visual, e isto quer dizer: quando cria o ponto de vista de um espectador que assiste ao desenrolar de uma história “narrada” pelos próprios planos do *ilme e, portanto, pelo realizador ou autor do *ilme (i.e. pela pessoa ou pessoas que decidiram, em última instância, que planos
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4 François Truffaut, Hitchcock — diálogo com Truffaut, Lisboa, Dom Quixote, 1987, pp. 49 e 165.
5 Seymour Chatman, Story and Discourse, Narrative Strucutre in Fiction and Film, New York, Cornell University Press, 1978, p. 9 e passim, distingue entre “história”, “o quê da narrativa” (“the what of narrative”), e “discurso”, “o como da narrativa” (“the way of narrative”): que um *ilme tenha uma “estrutura narrativa”, implica que ele tenha um discurso narrativo, mas isto, por sua vez, implica que, independentemente do que é dito nos diálogos, intertítulos ou voice over, o próprio *ilme apresente, organize, estruture a história de um modo narrativo (e não, por exemplo, de um modo anti-‐narrativo).
compõem efectivamente esse *ilme e por que ordem se encontram dispostos). Sobre a segunda pergunta, podemos dizer provisoriamente: a estrutura narrativa de um *ilme constrói-‐se através da criação de nexos temporais, espaciais e causais que dão um sentido narrativo às acções de certas personagens — e de que um possível espectador se pode aperceber quando vê essas acções. Consideremos um exemplo prévio, também ele retirado dos diálogos de Hitchcock com Truffaut. Imaginemos uma cena em que duas personagens têm entre elas uma conversa trivial. A cena poderia fazer parte de um *ilme que fosse apenas uma série de imagens de pessoas a falarem umas com as outras. Para Hitchcock isso signi*icaria que o *ilme não suscitaria qualquer “emoção” e, por isso, não teria interesse para o público. Mas imaginemos que “uma bomba está debaixo da mesa e o público sabe isso, provavelmente porque viu um anarquista colocá-‐la lá. O público sabe que a bomba explodirá à uma hora e sabe que falta um quarto para a uma — há um relógio no décor; a mesma conversa anódina torna-‐se de repente muito interessante porque o público participa na cena. Tem vontade de dizer às personagens que estão no ecrã: ‘não deviam estar a falar de coisas tão banais, há uma bomba debaixo da mesa, não tardará a explodir’”.6 Hitchcock usa este exemplo para distinguir “suspense” de “surpresa” (neste caso, da surpresa que resultaria de rebentar uma bomba de repente, sem qualquer informação prévia), mas, de facto, ele serve também para explicar provisoriamente o que é a estrutura narrativa de um *ilme e, antes de mais, como se constrói tal estrutura. Tudo depende, em primeiro lugar, de se organizarem os planos do *ilme de forma a criarem o ponto de vista de um eventual espectador — um ponto de vista que dispõe de certas informações e não de outras, que conhece certos nexos temporais, espaciais e causais e não outros. Neste caso, trata-‐se de um ponto de vista que sabe que, antes da conversa entre as duas personagens, foi colocada uma bomba no lugar onde estão as personagens, e sabe qual será o efeito de as personagens permanecerem onde estão sem que nada se altere nos próximos minutos. Este espectador vê a mesma acção que veria no *ilme sem história (vê que as personagens estão a falar de coisas banais), mas essa acção adquiriu agora um sentido narrativo. Os acontecimentos que aparecem no ecrã passaram a ser uma série causal que suscita — por si mesma e de acordo
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6 François Truffaut, Hitchcock — diálogo com Truffaut, Lisboa, Dom Quixote, 1987, p. 56 (tradução ligeiramente modi*icada); cf. também p. 49 e p. 84.
com o seu sentido — a expectativa de uma conclusão, de um fecho que seja dado nos planos subsequentes do *ilme (ou, eventualmente, na continuação do plano-‐sequência único em que o *ilme consista). A criação do ponto de vista do espectador estrutura os planos do *ilme como uma série causal que terá um *im e que, chegada a este *im, terá contado uma história. Ou, noutros termos, a criação desse ponto de vista confere aos planos do *ilme a estrutura de uma pergunta: as personagens vão ou não vão escapar à explosão da bomba? como vai acabar esta história? E esta estrutura é, por assim dizer, tridimensional: o espectador é espectador apenas na medida em que sabe que “alguém” lhe está a contar uma história — que existe outro ponto de vista para além do seu e do das personagens, nomeadamente o ponto de vista de um realizador, de um “narrador” que sabe as resposta às perguntas que a série causal dos acontecimentos vai suscitando. No cinema clássico, sublinhe-‐se, este outro ponto de vista é tornado, o mais possível, implícito e invisível: como diz Billy Wilder, “o melhor realizador é aquele que não se vê”. Mesmo quando o realizador cria uma enorme assimetria entre o que sabem as personagens e o que sabe o espectador (fazendo o espectador saber mais do que as personagens, ou então fazendo-‐o saber menos do que elas), o realizador tem de se manter sempre um passo frente do espectador sem, no entanto, tornar este facto conspícuo (como faz quando, por exemplo, usa clichés que já toda a gente conhece, ou então quando abusa repetidamente do mesmo truque para responder às perguntas que vai suscitando). Assim, são, de certa forma, os próprios planos que “narram” a história, mas isto signi*ica apenas que a construção da estrutura narrativa do *ilme inclui o arti*ício de a tornar inaparente — e, com isso, de tornar apenas implícita a presença do realizador/ narrador.7 Para Hitchcock, como vimos, os diálogos são essencialmente “mais um ruído entre outros” — o essencial é que aquilo que é fotografado tenha em si mesmo uma estrutura narrativa capaz de emocionar o espectador e mostrar-‐lhe qualquer coisa nova. “Show, don’t tell” é o principal lema do seu cinema — e, provavelmente, de todo o cinema clássico. Mas não se pode deixar de sublinhar que, mesmo no caso extremo do cinema de Hitchcock, isso não signi*ica que os diálogos tenham de ser apenas ruído. Vale para os diálogos —
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7 Cf. Helmuth Karasek, Billy Wilder. Eine Nahaufnahme, München, Heyne Verlag, 5. Au*lage, 1992, p. 230 e sgs.; Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, pp. 168-‐170, 259-‐260 e passim. Exploraremos esta ideia mais adiante, na secção III.
inclusive para os diálogos dos melhores *ilmes de Hitchcock — o mesmo que Billy Wilder diz sobre o voice over: um voice over é bom, serve o *ilme quando acrescenta qualquer coisa coisa ao que o espectador já está a ver.8 Os diálogos tornam (pelo menos, podem tornar) um *ilme mais rico, mais complexo. Para a construção de uma estrutura narrativa — pelo menos, no cinema clássico —, a única regra ou proibição é a de que os diálogos se substituam a essa estrutura, ou sejam eles a “contar a história”. Se pensarmos, por exemplo, no cinema de Ingmar Bergman, veri*icamos que todos os seus *ilmes (tirando, talvez, O silêncio, Persona e A hora do lobo) são, por um lado, muito marcados pelo diálogo, até pelo monólogo — e disso depende, em larga escala, a sua riqueza e complexidade —, mas, por outro, as palavras das personagens de Bergman são acções. A sua função não é “contar a história”: regra geral, estão subordinadas a uma estrutura narrativa e são apenas a super*ície de um jogo de afectos subterrâneo entre as personagens. As palavras das personagens são acções que fazem este jogo progredir de forma narrativa desde o início do *ilme até ao seu *inal. Tendo em vista estas re*lexões prévias, procuremos, agora, sistematizar de outra forma toda esta concepção de uma estrutura narrativa cinematográ*ica. Comecemos por uma breve análise dos pontos-‐chaves do texto que continua a ser a principal inspiração do conceito de estrutura narrativa: a Poética, de Aristóteles. Se a sua in*luência na história do teatro e da literatura é inquestionável, a sua in*luência no cinema é, porventura, menos reconhecida. Mas a verdade é que a lapidar obra de Aristóteles sobre a “arte poética” tem tido uma enorme in*luência na história do cinema, desde os seus primórdios até hoje (em parte, certamente, por via da sua in*luência no teatro e na literatura). Quando autores como Antonioni ou Godard começaram a questionar a estrutura narrativa do *ilme de *icção, apontaram baterias contra os princípios aristotélicos — precisamente por reconhecerem que eram esses princípios que, implicitamente, estavam em vigor na história do cinema. Ainda hoje, não há praticamente nenhum estudo ou livro sobre
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8 Cf. Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, pp. 108-‐109, e Charlotte Chandler, Nobody’s Perfect. Billy Wilder, a personal biography, New York, Simon& Schuster, 2002, pp. 120-‐121.
“como escrever um *ilme” que não seja um desenvolvimento e uma adaptação da Poética de Aristóteles.9
II.
Segundo Aristóteles, o efeito dramático de um poema (em particular, o efeito trágico de uma tragédia) depende fundamentalmente de ele ter um “mito” ou uma história (mu=qoj) que esteja estruturada como o desenlace de um nó (Poét. 18. 1455b). Não basta, portanto, que haja uma história. É necessário que esta história comece por apresentar um “nó” (de/sij) e que todos os acontecimentos que façam parte dela e sejam posteriores a esse nó na ordem do tempo sejam o seu “desenlace” (lu/sij). Uma história que não possa ser estruturada deste modo terá sempre pouco ou nenhum efeito dramático. O decisivo está na “ligação das acções praticadas”, no modo como elas se conjugam umas com as outras — i.e., na estrutura narrativa (cf. th\n su/nqesin tw½n pragma/twn, h( tw½n pragma/twn su/stasij, Poét. 6. 1450a). Que uma história tenha de começar por ter um “nó”, signi*ica, obviamente, que ela tem de começar por apresentar uma situação problemática (um “con*lito”, como muitas vezes se diz). Já a*lorámos este aspecto na secção anterior: a estrutura narrativa é, em primeiro lugar, uma estrutura interrogativa. Uma história tem, no sentido próprio do termo, uma “estrutura narrativa” quando começa por apresentar uma situação que corresponda a uma pergunta: o que vai acontecer, agora que aconteceu x? qual será o “desenlace” destes acontecimentos que acabam agora de se constituir como um “nó”? Esta estrutura interrogativa cria, como também já dissemos, o ponto de vista de um espectador — o ponto de vista de alguém que *ica na expectativa de uma resposta à pergunta que é feita. O desenlace consiste nas
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9 Cf., por exemplo, David Mamet, On Directing Film, New York, Penguin, 1991; Robert McKee, Story, London, Methuen, 1998; Michael Thierno, Aristotle's Poetics for Screenwriters: Storytelling Secrets from the Greatest Mind in Western Civilization, New York, Hyperion, 2002; Ari Hiltunen, Aristotle in Hollywood, Bristol, Intellect Books, 2002; Linda Aronson, The 21st Century Screenplay, Crows Nest, Allen& Unwin, 2010. Cf. também: Seymour Chatman, Story and Discourse, Narrative Strucutre in Fiction and Film, New York, Cornell University Press, 1978 e David Bordwell, Narration in the Fiction Film, Madison, Wisconsin University Press, 1985. [No que se segue, usa-‐se o texto da Poética estabelecido por Immanuel Bekker, in: Aristotelis de arte poetica liber, Oxford, Clarendon Press, 1968; as traduções do Grego para Português são da responsabilidade do autor deste artigo.]
consequências do nó, e estas consequências não são senão uma resposta à pergunta implicada no nó. Mas a estrutura “nó — desenlace” introduz, desde logo, outro elemento fundamental. Um nó implica uma personagem — alguém a quem acontece alguma coisa. O ponto de partida da concepção de uma história com estrutura narrativa e efeito dramático é sempre a pergunta: e se houvesse uma pessoa a quem acontecesse qualquer coisa que a colocasse em xeque? Esta pessoa, a personagem, terá de ter certas características e não outras, e o nó será mais ou menos dramático consoante as características do que acontece choquem mais ou menos com as características da personagem, consoante ponham mais ou menos em xeque as tábuas de valor que a de*inem e, em última análise, a sua “felicidade ou infelicidade” (Poét. 6. 1450a, 7. 1451a, 18. 1455b). É nisto que consiste o chamado “con*lito” de uma história. Ao contrário do que parecem supor os autores de telenovelas, bem como os autores dos tais *ilmes que não são mais do que “fotogra*ias de pessoas a falar”, não é por duas pessoas passarem longos minutos a discutir uma com a outra que há con*lito. Há con*lito quando algo acontece que põe em causa uma personagem — i.e. quando, como diz Aristóteles, o desenlace do nó pode representar uma “transição da felicidade para a infelicidade ou da infelicidade para a felicidade” (Poét. 18. 1455b). As características de uma personagem são, para Aristóteles, os seus hábitos, preferências, virtudes e vícios. Estas características con*luem naquilo que, propriamente falando, de*ine uma personagem: o seu “carácter” (hÅqoj), o seu modo de ser e de agir, a disposição interior que revela a sua “escolha” (proai¿resij) mais profunda — ou seja, que revela aquilo que ela realmente quer, os seus valores últimos (Poét., 6. 1450b). Quando aquilo que acontece a uma personagem afecta o seu carácter e, com isso, gera um nó, ela vê-‐se forçada a agir. Este ponto é extremamente importante para Aristóteles. Um poema dramático é necessariamente a “simulação de uma acção” (mi¿mhsij pra/cewj, Poét. 6. 1449b, 1450b).10 Até aqui, falámos dos “acontecimentos” que compõem uma história, mas, para Aristóteles, uma história só produz o efeito dramático desejado se for composta por acções — se os “acontecimentos” incluídos nela (a começar pelo acontecimento ou acontecimentos do nó) forem relevantes para uma
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10 Sobre a tradução de mi¿mhsij por “simulação” (e não por “imitação” qua “representação”), cf. Stephen Halliwell, The Aesthetics of Mimesis, Ancient Texts and Modern problems, Princeton and Oxford, Princeton University Press, 2002.
personagem e, desse modo, acabarem por ser, digamo-‐lo assim, subsumidos por acções de uma ou mais personagens. (i.e. por acontecimentos causados por decisões, escolhas, preferências, propósitos). Dito de outro modo: as consequências do nó — os eventos que constituem o seu desenlace — têm de ser consequências de uma acção da personagem e têm, elas próprias, de ser acções. É por isso que, para Aristóteles, só há, propriamente falando, uma “tragédia” quando a catástrofe que se abate sobre uma personagem teve origem numa acção sua — ou, o que é o mesmo, numa hamartia, num “erro” que ela cometeu, num evento que ela causou sem fazer ideia das consequências terríveis que ele viria a ter (cf. Poét. 13. 1453a). Que uma personagem seja forçada a agir por se encontrar numa situação que a põe em xeque, signi*ica também que esta situação desperta o seu desejo, pois ela age em função do que deseja. Daqui resulta a identi0icação do espectador com a personagem — a mimese como contágio afectivo, como simulação do afecto do outro (neste caso, do afecto da personagem). Este fenómeno é magistralmente descrito por Platão na República. Na Poética tem uma presença mais discreta. Mas está implicitamente presente na teoria de Aristóteles sobre o carácter. É o carácter que permite fazer uma primeira distinção entre tragédia e comédia: a tragédia simula uma história cujas personagens são “melhores do que nós”, a comédia, uma história cujas personagens são “piores do que nós” (Poét. 2. 1448a). Mas a personagem cómica não pode ter todos os vícios — o que o seu carácter tem de vergonhoso não pode exceder o “ridículo” (Poét. 5. 1449b), pois, caso contrário, seria apenas repugnante; e a personagem trágica não pode não ter defeitos, pois, caso contrário, a sua queda também suscitaria repugnância e não o efeito que é próprio da tragédia, a saber, “medo e compaixão” (Poét. 13. 1452b-‐1453a). O medo é sempre “acerca do semelhante” (periì to\n
oÀmoion, Poét. 13. 1453a) — a acção trágica faz-‐nos temer, mas só nos faz temer se sentirmos que, de algum modo, aquilo que acontece à personagem trágica também nos poderia acontecer a nós; e esta identi0icação com ela é também a condição de sentirmos compaixão por ela — pois a compaixão consiste em sentirmos a sua dor quando nos apercebemos de que ela não merece o horrível destino que lhe coube em sorte (cf. Poét. 13. 1453a). Esta identi*icação com as personagens é crucial para a e*icácia de uma estrutura narrativa construída a partir de um nó. Este nó só se constitui como nó se gera no espectador a expectativa de um desenlace, isto é, se suscita
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identi*icação com o desejo da personagem (ou das personagens) e, desse modo, uma preocupação com as consequências do nó — ou, noutros termos, com a possibilidade de a vida das personagens sofrer uma “transição da felicidade para a infelicidade”. Esta preocupação está na base da de*inição tradicional da diferença entre tragédia e comédia: uma tragédia é uma história que “acaba mal”, uma comédia é uma história que começa mal, mas tem um “*inal feliz”. Na verdade, porém, esta de*inição é inspirada na Poética, mas não é subscrita por Aristóteles. Segundo Aristóteles, a diferença entre a tragédia e a comédia reside na diferença entre a seriedade do que acontece a personagens “melhores do que nós” e a falta de seriedade do que acontece a personagens “piores do que nós”: na comédia, a acção não é séria, o nó não chega a fazer sentir a possibilidade de ter lugar uma verdadeira “transição para a infelicidade”, ao passo que, na tragédia, a acção é tão séria que só o modo como a tragédia evoca a possibilidade de ter lugar essa transição é já su*iciente para que sintamos “medo e compaixão” — por exemplo, o trágico no mito de I*igénia é a possibilidade de uma irmã matar o seu irmão: o facto de isto não chegar a acontecer não diminui o sentimento trágico (cf. Poét. 14. 1454a).11
Estes aspectos permitem-‐nos considerar, agora, uma das traves-‐mestras da concepção aristotélica da estrutura narrativa: a ideia de que o efeito dramático (em particular, na tragédia) depende de a história simular uma “acção completa” e estar construída como um “todo” — pelo que tem de ter “princípio, meio e *im” (Poét. 7. 1450b). O princípio de que aqui se trata não é senão o nó da história. O nó é um “princípio” porque “não se segue de outra coisa por necessidade” (Poét. 7. 1450b), quer dizer: ele causa todos os demais acontecimentos da história, e não é causado por eles. Isto não impede que ele pressuponha certas causas, mas estas estão, como Aristóteles diz, “fora” da acção (Poét. 18. 1455b, 24. 1460a) — podem ser evocadas no curso da acção (como, por exemplo, a história de Laio é evocada no Édipo Rei), mas apenas como pano de fundo da acção. O meio consiste nas consequências imediatas do princípio: ele resulta do princípio, é causado por ele, mas não fecha ainda a acção. O *im, como é óbvio, é precisamente o que fecha a acção,
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11 Cf. Stephen A. White, “Aristotle’s Favorite Tragedies” e Elizabeth Bel*iore, “Aristotle and Iphigenia”, in: Rorty, A. O. (ed.), Essays on Aristotle’s Poetics, Princeton, Princeton University Press, 1992, pp. 221-‐240 e pp. 359-‐377. Sobre o fenómeno da identi*icação (e, ao mesmo tempo, da distância) na comédia, cf. João Constâncio, “Notas sobre a *iloso*ia do riso e da comédia”, in: Crespo, N. (org.), Prontuário do Riso, Lisboa, tinta-‐da-‐china, 2013, pp. 121-‐136.
é a consequência do meio, é, em de*initivo, o desenlace do nó. Ou, como diz Aristóteles, “o *im, ao contrário [do princípio], é em si mesmo o que se segue de outra coisa ou segundo a necessidade ou de acordo com o que acontece o mais das vezes, mas nada se segue a ele” (Poét. 7. 1450b). “Segundo a necessidade ou de acordo com o que acontece o mais das vezes” signi*ica, aqui, “segundo a causalidade”. Para Aristóteles, uma história tem uma estrutura narrativa se, e somente se, os eventos que a compõem estiverem ligados por nexos causais — se o *im for um efeito necessário ou, pelo menos, verosímil do meio, e se o meio for um efeito necessário ou, pelo menos, verosímil do princípio. Se não for assim, não há nem nó nem desenlace: há apenas uma série de “episódios”, como não pode deixar de acontecer quando se tenta, por exemplo, dramatizar todo o mito de Hércules ou todo o mito de Teseu (Poét. 8. 1451a). Nestes casos, as acções não se seguem umas das outras “segundo o verosímil ou o necessário” (Poét. 9. 1451b). Cada um dos momentos de uma história meramente episódica pode ser, em si mesmo, verosímil (i.e., pode ser algo que é natural que aconteça, algo que acontece “o mais das vezes”), pode até ser necessário (i.e., pode ser algo que acontece sempre tal como é simulado no drama) — mas isso não impede que essa história seja meramente episódica. Pois a questão é que, mesmo sendo esses momentos necessários ou verosímeis, eles não resultam uns dos outros. A ligação entre eles é apenas uma relação de sucessão e não uma relação causal. É a ligação entre eles que tem de ser “verosímil ou necessária”, é ela que tem de consistir num nexo de causalidade. Caso contrário, o meio e o *im da história não são um desenlace de um nó inicial. Sublinhe-‐se, porém, que isto não signi*ica que, para haver um nó e um desenlace, basta que se apresente uma série de acontecimentos ligados por nexos causais. É necessário também que estes acontecimentos tenham a estrutura de um princípio, de um meio e de um *im. Desde a de*inição do nó, a acção tem de progredir na direcção de um 0im, e este *im não pode ser apenas mais um acontecimento entre outros: tem de ser a consequência do princípio e do meio, o desenlace de*initivo do nó. Sem dúvida que ele pode deixar muitas coisas em aberto (embora Aristóteles não preveja essa possibilidade), mas, em todo o caso, tem de dar algum tipo de resposta à pergunta inicial, tem de ter o sentido de uma resolução do problema levantado nesse nó que, no princípio da narrativa, pôs a personagem (ou as personagens) em xeque. É por isso que Aristóteles sustenta que a acção tem de ter uma “magnitude”,
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uma grandeza *inita que possa ser dada, uma grandeza que seja algo “fácil de ver no seu conjunto” (eu)su/nopton, Poét. 7. 1451a). Do princípio ao *im, do nó até ao desenlace tem de se poder ver claramente (e ir mantendo sinopticamente na memória) a progressiva transição “ou da felicidade para a infelicidade ou da infelicidade para a felicidade” (Poét. 7. 1451a). O “*im” da acção dramática é qualitativo (será sempre um *inal ou feliz ou infeliz, ou então misto, amargo, irónico, etc.). Mas, mais do que isso, ele é, na verdade, como o telos ou propósito de uma acção humana. Toda a acção dramática progride na direcção deste *im como se fosse uma realidade teleológica, como se progredisse em direcção à realização de um propósito. É neste sentido que o drama não pode deixar de ser uma “acção completa” e “um todo” (Poét. 7. 1450b). Num passo do capítulo 8, Aristóteles parece querer dizer apenas que a narrativa deve ser construída “em torno de uma só acção” (periì mi¿an pra=cin, Poét. 8. 1451a), isto é, de uma só acção decisiva, que determine a felicidade ou infelicidade das personagens envolvidas (por exemplo, “Ulisses regressa de Tróia a Ítaca”, “Édipo descobre que matou o pai e casou com a mãe”). Mas Aristóteles pretende dizer mais do que isso. A sua ideia é que a narrativa deve estar construída em torno de uma só acção de tal forma que todas as causas e todos os efeitos desta acção se mostrem como se fossem uma unidade indivisível — como se, em conjunto ou como partes de um todo, fossem “uma só acção” (Poét. 8. 1451a). Todas as partes da história devem estar ligadas por nexos causais e formar uma unidade com princípio, meio e *im (ou com um nó e um desenlace) — mas ao ponto de esta unidade fazer de cada uma das partes do todo um momento intrínseco de uma só acção: “movida ou retirada uma só das suas partes, também o todo se move e é destruído” (Poét. 8. 1451a). Este todo terá de ser, portanto, “como um animal” (Poét. 23. 1459a), i.e. como um organismo, um todo que (supostamente) não tem partes supér*luas, pois todas elas têm uma função orgânica e a privação de qualquer uma delas perturba o funcionamento do todo.12 Estas formulações podem, porventura, sugerir que Aristóteles recomenda a ausência de qualquer surpresa desde o princípio até ao *im da
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12 Sobre este tema (e os problemas nele implicados), cf. Rüdiger Bittner, “One Action”, in: Rorty, A. O. (ed.), Essays on Aristotle’s Poetics, Princeton, Princeton University Press, 1992, pp. 97-‐110; cf. também: Stephen Halliwell, The Poetics of Aristotle, translation and commentary, London, Duckworth, 1987, pp. 101-‐105. Sobre os pressupostos teleológicos desta concepção (e sobre toda a ontologia pressuposta na Poética), cf. Marta Husain, Ontology and the Art of Tragedy. An Approach to Aristotle’s Poetics, New York, SUNY, 2002.
acção dramática. Mas não é, de todo isso, que ele tem em mente. Pelo contrário. Como a acção dramática tem de afectar e emocionar (e, no caso da tragédia, tem de suscitar “medo e compaixão”, “terror e piedade”), todos os seus momentos devem acontecer “uns por causa dos outros” mas sempre “contra a expectativa” (para\ th\n do/can di' aÃllhla, Poét. 9. 1452a). Como veremos melhor adiante, para que isto seja possível — para que um acontecimento possa ser percebido como sendo, ao mesmo tempo, necessário e inesperado —, é preciso que a causalidade possa ser estabelecida em retrospectiva. É isto que está, no fundo, implicado no conceito aristotélico de “peripécia”. Uma peripécia é uma inversão da situação, uma “mudança das acções para o seu contrário” (Poét. 11. 1452a). A peripécia surpreende — surpreende a personagem e surpreende o espectador. Mas, se ela é também um acontecimento claramente apresentado como “necessário ou verosímil”, então no próprio momento em que é revelada como surpresa a mente do espectador começa a aperceber-‐se de que isso que a surpreende é um efeito (necessário ou verosímil) dos outros acontecimentos que precedem a peripécia. Em retrospectiva, o espectador reconstrói o acontecimento surpreendente como um acontecimento necessário. Mas o efeito deste tipo de estrutura — o efeito de uma estrutura que suscita uma permanente surpresa acompanhada de um permanente sentimento de necessidade (ou, dito de outro modo, acompanhada do sentimento de que as coisas não podiam, realmente, ser de outra maneira e de que, portanto, a unidade do todo é indivisível) — não é apenas o de prender o espectador ao desenrolar do drama e de o emocionar. O seu efeito é também o de demonstrar uma ideia ou, pelo menos, de fazer parecer que o desenrolar da narrativa demonstra uma ideia. Toda a narrativa expressa uma ideia, ou até uma multiplicidade de ideias (tem um sentido, ou uma multiplicidade de sentidos). Numa narrativa elementar, ou mesmo no mero início de uma narrativa elementar — como a das duas pessoas que conversam uma com a outra enquanto, debaixo da mesa, uma bomba-‐relógio está a poucos minutos de explodir —, os acontecimentos e acções que são narrados (ou que se vêem no palco ou no ecrã) talvez exprimam apenas, como ideia, a própria situação na sua particularidade: por exemplo, “estas duas pessoas estão em perigo, pois a bomba-‐relógio está prestes a explodir”. E, se esta narrativa progride “segundo o verosímil ou o necessário”, ela funciona, de facto, como uma demonstração dessa ideia, pois faz pensar (e
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sentir): “estas duas pessoas estão realmente em perigo, e se não param de falar de coisas banais, então necessariamente ou com toda a verosimilhança irão pelos ares”. Para Aristóteles, porém, o ponto decisivo é que, a partir do momento em que, deste modo, a *icção liga acções segundo a necessidade ou a verosimilhança, torna-‐se capaz de revelar tipos de situações e tipos de personagens — isto é, de exprimir o que, em geral, é necessário ou verosímil que certos tipos de pessoas façam em certos tipos de situações e o que, em geral, são as consequências necessárias ou verosímeis destas suas acções. Assim, a ideia que é expressa tem o carácter (ou passa por ter o carácter) de uma “verdade universal”, exprime (ou, pelo menos, pode pretender exprimir) uma parte das “coisas universais” (ta\ kaqo/lou): “o universal signi*ica que, sendo alguém de um certo modo, lhe acontece, segundo o verosímil ou o necessário, dizer ou fazer coisas que também são de um certo modo” (Poét. 9. 1051b). A revelação de tipos numa série de acções ligadas por nexos de causalidade funciona como a demonstração de um “universal” — sobretudo se esses nexos fazem dessa série uma só acção com princípio, meio e *im. Pois, neste caso, o todo constitui-‐se (e foi concebido de forma a constituir-‐se) como uma espécie de paradigma de um estado de coisas universal. Aristóteles ilustra o que quer dizer fazendo uma comparação com a historiogra*ia. A historiogra*ia, ao contrário da “poesia” (i.e. da *icção), tem de se ater ao “particular”: não pode fazer mais do que descrever, por exemplo, “o que Alcibíades fez e o que lhe aconteceu” (Poét. 9. 1451b), as acções particulares que ele efectivamente praticou e as situações particulares em que as praticou — mesmo que essas acções e estas situações não demonstrem nada de universal e a sua narração não possa ligá-‐las senão de forma contingente. Um historiador pode tentar dar uma estrutura narrativa à sua descrição dos factos, mas os factos nunca se ajustam perfeitamente a tal estrutura (nunca perfazem uma só acção com princípio, meio e *im). Como diz Aristóteles, o historiador está limitado pela obrigação de dizer apenas “o que aconteceu”, ao passo que o poeta tem liberdade para dizer “o que poderia acontecer” (Poét. 9. 1451b). Ou seja: só o poeta (ou o dramaturgo, o romancista, o argumentista, o realizador, etc.) pode construir uma narrativa da qual esteja inteiramente ausente a contingência própria do particular, pois só ele pode dar um propósito a todas as partes do todo narrativo, só ele pode fazer que todas as partes deste todo estejam ligadas pela necessidade ou verosimilhança de forma a servirem a expressão de uma mesma ideia, só ele
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pode compor um todo cuja causalidade imanente dirija toda a acção para um mesmo *im. Este *im é, como vimos, um *im que desenlaça o nó inicial e que, com isso, responde à pergunta implicada neste nó. Mas compreendemos agora que isto signi*ica que, segundo Aristóteles, o desenlace é como a conclusão de um silogismo: ao aduzir o último nexo causal (o último momento de necessidade ou verosimilhança) numa série de eventos ligados por necessidade ou verosimilhança, o desenlace retira uma conclusão das premissas que este nó estabelecia. Desta forma, o todo narrativo funciona, de facto, como a demonstração de uma (suposta) verdade universal, ou como um paradigma de um estado de coisas universal (i.e. como se fosse ele próprio um universal, e não um particular). É por isso que, como Aristóteles diz, a *icção é algo “mais *ilosó*ico e mais sério” do que a historiogra*ia (Poét. 9. 1451b). Note-‐se que não é de forma alguma arbitrário que se fale aqui de “*icção”. Do ponto de vista de Aristóteles, a mimese não tem como *inalidade a “correcção” (o)rqo/thj, Poét. 25. 1460b): como vimos, trata-‐se nela de simular o que poderia acontecer (não de descrever o que de facto aconteceu), mas, além disso, nem sequer se devem excluir do seu âmbito o impossível (to\ a)du/naton) e o inexplicável (to\ aÃlogon), o que não pode acontecer e o que não se pode explicar racionalmente (Poét. 24-‐25). Na tragédia, na comédia ou na epopeia — como em todas as outras formas de mimese —, “deve preferir-‐se o que é impossível mas verosímil ao que é possível mas não persuade” (Poét. 24. 1460a). Na *icção, o verosímil é o que é natural que aconteça dada a situação e as personagens, é o que aconteceria “o mais das vezes” se tais personagens existissem e se encontrassem numa dada situação. O que persuade são, portanto, os nexos de causalidade entre os eventos que são simulados, e é aí — na ligação entre esses eventos — que tem de estar presente o verosímil ou (o que é ainda melhor) o necessário. Mas os eventos eles próprios podem não ter nada de verosímil, podem até ser impossíveis e inexplicáveis. É por isso que não há nada censurável no facto de as tragédias, as comédias e as epopeias fazerem uso do “maravilhoso” (to\ qaumasto/n, Poét. 24. 1460a): o facto de, por exemplo, a história do Édipo Rei pressupor a existência de uma Es*inge, os poderes divinatórios de Tirésias, a infalibilidade do oráculo de Delfos e a praga de Apolo não é censurável e não impede esta tragédia de Sófocles de ser maximamente persuasiva. Tais coisas são muito provavelmente tão falsas e impossíveis como Xenófones disse que
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são (Poét. 25. 1460b), mas isso não tira verosimilhança e poder de persuasão à tragédia de Sófocles. E não tira por duas razões: (a) a primeira é que Sófocles cria um universo internamente coerente — de tal forma que os nexos de causalidade que ligam os eventos da peça são verosímeis dada a natureza desse universo; (b) na medida em que a revelação não apenas do carácter mas também do destino de Édipo resulta do modo como os sucessivos nexos de causalidade acabam por produzir “uma só acção”, essa revelação torna verosímil e persuasiva as ideias que a peça exprime: “o mais sábio de todos os mortais era tão ignorante que, por ignorância, matou o pai e casou com a mãe”, “o saber humano é tão nulo que mesmo o mais sábio dos mortais não sabe realmente nada”, “a glória e a felicidade são tão precárias que num só dia se podem esfumar, sobretudo porque dependem de um saber meramente humano”. Este último aspecto é decisivo para que se compreenda o conceito aristotélico de mimese. Que a *inalidade da mimese nunca seja a “correcção”, implica que (ao contrário do que comummente se supõe) ela não consista no fazer cópias ou representações do sensível. Sem dúvida que, segundo Aristóteles, a mimese é sempre uma construção de imagens de coisas e o poeta é “como o pintor” porque, como ele, é um “fazedor de imagens” (ei¹konopoio/j, Poét. 25. 1460b). Mas estas imagens são *icções, apenas simulam um outro mundo possível (um mundo onde são possíveis muitas coisas que, no mundo real e sensível, são impossíveis). Elas dizem “isto é aquilo” (por exemplo, “isto que vês desenhado no papel é um cadáver”, “é uma corça”, “é uma Es*inge”, etc.) e, dessa forma, fazem “aprender e raciocinar sobre o que é cada coisa” (Poét. 4. 1448b). Só que o essencial nelas não é a sua eventual semelhança sensível com certas coisas: o essencial nelas é, antes, a sua capacidade para simular o efeito que essas coisas teriam sobre nós se estivessem realmente presentes e, portanto, para nos fazer experimentar esse efeito e re0lectir sobre ele. A música, por exemplo, é uma forma de mimese, e na verdade uma mimese de certos afectos ou caracteres, mas as suas “imagens” são sons e não têm, portanto, qualquer semelhança sensível com o objecto da sua mimese. A música, segundo Aristóteles, simula certos afectos e contagia-‐nos com esses afectos. Este contágio, este efeito que a música tem em nós (e que é o efeito da sua simulação do efeito de certos afectos) é a sua essência e *inalidade enquanto realidade mimética — e, contudo, não tem nada que ver com a mera semelhança de uma cópia, de uma
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representação, ou de uma imitação.13 No caso das artes visuais, Aristóteles parece crer que tem de haver uma semelhança, mas esta semelhança está longe de ter de ser realista e está longe de ter de ser “correcta”: ela pode ser incorrecta desde que tenha o efeito mimético, ela pode também incluir uma larga margem de idealização desde que tenha esse efeito (“talvez não seja possível que existam pessoas como aquelas que Zêuxis pintou, mas seria melhor que existissem, pois há que elevar o modelo”, Poét. 25. 1461b). E o mesmo vale para as artes poéticas, em particular para a tragédia, para a comédia e para a epopeia: “é um erro menor se o poeta não sabia que a corça não tem cornos do que se fez a imagem dela de um modo não-‐mimético. Além disso, se a acusação é que não escreveu a verdade, talvez se deva responder como Sófocles, que disse que ele próprio retratou as pessoas como deviam ser e Eurípides como elas são” (Poét. 25. 1460b). Se pensarmos no caso de Aristófanes, percebemos facilmente que a comédia grega nada tinha de realista ou de meramente *igurativo e, pelo contrário, vivia da fantasia e da criação de mundos paralelos. O essencial para Aristófanes — como para todos os dramaturgos gregos, incluindo Eurípides (apesar daquela a*irmação atribuída a Sófocles) — era, de facto, a mimese como simulação do efeito de certos caracteres e situações (ainda que fantasiosas ou irreais) e, através disso, como provocação de um determinado efeito sobre o espectador: o efeito do cómico (o riso), mas também o efeito de fazer re*lectir sobre o humano, sobre o divino, sobre a política, sobre a natureza, etc.. E isto traz-‐nos de volta à tese de que, ao dar uma estrutura narrativa à sua história, o dramaturgo (ou, em geral, o poeta) exprime algo de universal e como que demonstra uma verdade universal. Para Aristóteles, a mimese é sempre sobre “universais”: seja ela mais simples ou mais complexa, mais correcta ou mais incorrecta do ponto de vista da semelhança com o sensível, mais fantasiosa ou mais realista, mais analógica ou mais *igurativa, mais acabada ou mais diagramática, o que ela faz sempre é evocar a forma das coisas, o que elas são “em geral”. Como dissemos, uma realidade mimética simula o efeito que uma coisa teria sobre nós se estivesse presente — e isto quer dizer que simula o efeito que essa coisa tem “necessariamente ou o mais das vezes”, o efeito que é próprio dessa coisa, o efeito que ela tem “em geral”, o efeito que a sua natureza interna (a sua “essência” ou “substância”)
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13 Cf. Aristóteles, Política 8. 5; cf. Stephen Halliwell, The Aesthetics of Mimesis, Ancient Texts and Modern Problems, Princeton and Oxford, Princeton University Press, 2002, pp. 158-‐164.
determina que ela tenha.14 É por isso que a semelhança está longe de ser o essencial na mimese: um diagrama pode ser mais “mimético” do que uma pintura realista, e (de acordo com o que vimos) a música é uma forma de mimese que proporciona um acesso insubstituível à essência dos afectos humanos sem fazer uso de qualquer semelhança. Daqui resulta um outro aspecto que importa sublinhar. A mimese artística, segundo Aristóteles, causa sempre determinadas emoções. Uma tragédia, por exemplo, só é uma tragédia se causar “medo e compaixão”. O desenho de um cadáver num livro de anatomia não pretende despertar qualquer emoção, mas o desenho de um cadáver nos Desastres da Guerra de Goya pretende (e consegue). Ora, segundo Aristóteles, este efeito afectivo das obras de arte é, ao mesmo tempo, cognitivo.15 Tal como o desenho no livro de anatomia, o desenho de Goya diz: “isto é aquilo”, “isto é um cadáver”, “um cadáver é assim”. O desenho de Goya tem, aliás, um efeito cognitivo mais poderoso do que o desenho do livro de anatomia (por muito exacto ou correcto que este seja). O desenho de Goya não diz só: “um cadáver é assim”; diz também: “a morte é assim”, “o efeito da guerra é este”, “os seres humanos fazem estas coisas, comportam-‐se desta forma”. A arte emociona, mas as emoções que desperta incluem (ou talvez se possa dizer que são) re*lexões, persuadem, ensinam, fazem “raciocinar sobre o que é cada coisa” (Poét. 4. 1448b) — sobre o “universal”, sobre o que é, em geral, o humano, o divino, a política, a natureza, etc.. É em parte por isso que, no caso da arte dramática, a clareza e a inteligibilidade são tão importantes para Aristóteles. Os nexos de causalidade têm de ser claros, a ordem cronológica e a ordem causal têm de ser inteligíveis, a estrutura narrativa tem de dar unidade à peça dramática — pois, caso contrário, a ideia não é expressa, o universal não é evocado, a obra não faz raciocinar e não persuade (como um silogismo persuade).16 É neste quadro que se deve considerar um último ponto (que é crucial para a re*lexão sobre a estrutura narrativa no cinema). No capítulo 6 da
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14 Cf. Paul Woodruff, “Aristotle on Mimēsis”, in: Rorty, A. O. (ed.), Essays on Aristotle’s Poetics, Princeton, Princeton University Press, 1992, pp. 73-‐95, p. 91: “M is a mimema of O just in case M has an effect that is proper to O”. Cf. Aristóteles, Física 2. 8.
15 Stephen Halliwell, The Aesthetics of Mimesis, Ancient Texts and Modern Problems, Princeton and Oxford, Princeton University Press, 2002, pp. 177-‐206.
16 Cf. Stephen Halliwell, The Poetics of Aristotle, translation and commentary, London, Duckworth, 1987, p. 100.
Poética, Aristóteles declara que, na tragédia, “o mais importante de tudo é a ligação das acções praticadas [i.e. a estrutura]”, que “sem acção não haveria tragédia, mas sem caracteres poderia haver” e que “o princípio e como que a alma da tragédia é a história, em segundo lugar vêm os caracteres” (Poét. 6. 1450a). Este primado da história sobre os caracteres é altamente problemático, tanto mais que, no capítulo 2, é o próprio Aristóteles que sublinha que a tragédia (tal como a comédia) faz a mimese de pessoas que agem.17 Provavelmente, o que Aristóteles quer dizer é que não pode haver tragédia sem personagens, mas a clari*icação psicológica dos seus caracteres não é tão importante como as acções que elas praticam — e, na verdade, nem uma coisa nem outra são tão importantes como a estrutura narrativa, i.e., a composição de um nó e de um desenlace, a de*inição de um princípio, de um meio e de um *im, a construção do todo como “uma só acção”. No Édipo Rei de Sófocles, por exemplo, Édipo é magistralmente caracterizado como alguém que quer saber a verdade a qualquer preço, mas esta caracterização é dada através das acções de Édipo e serve a construção da dimensão simbólica desta personagem: Édipo é, de facto, “o mais sábio dos mortais” (é isto que ele é enquanto “tipo”). O decisivo não é, portanto, o carácter da personagem, mas sim o que ela simboliza. E o que ela, em última análise, simboliza (“o mais sábio dos mortais não sabe realmente nada”, “a sua felicidade pode ser destruída num só dia”) só é revelado porque toda a peça está construída “em torno de uma só acção”: o inquérito à morte de Laio como o processo em que Édipo descobre que matou o seu pai e casou com a sua mãe. Note-‐se, porém, como a revelação da dimensão simbólica da personagem é a revelação do “universal” que a peça exprime. Talvez possa haver tragédia apenas com um mínimo de revelação do carácter, mas não há tragédia (e não há, em geral, mimese dramática) apenas com história e sem personagem.
*
Quando re*lectimos *iloso*icamente sobre a história do cinema, uma das principais questões que podemos e devemos levantar é a de saber como foi que o cinema, ao longo da sua história, adaptou (pelo menos no essencial) o modelo aristotélico e criou uma estrutura narrativa especi*icamente
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17 Cf. Stephen Halliwell, The Poetics of Aristotle, translation and commentary, London, Duckworth, 1987, p. 95.
cinematográ*ica. O que signi*ica “contar uma história” com os meios eminentemente visuais que são especí*icos do cinema? Como é possível um “discurso narrativo” que assente em imagens em movimento e não na palavra? No espaço limitado deste artigo, não é possível fazer mais do que dar alguns exemplos de respostas a estas perguntas. Para este efeito, centrar-‐me-‐ei no cinema clássico americano e, em particular, na cinematogra*ia americana de dois eminentes imigrantes: Ernst Lubitsch e Billy Wilder.
III.
Comecemos pela ideia de que a de*inição de um nó deve criar o ponto de vista de um espectador que se identi*ique com uma personagem (ou com várias personagens) — ou, noutros termos, a ideia de que é indispensável que o princípio de uma mimese dramática seja um nó que contagie emocionalmente um eventual espectador e o faça, por assim dizer, participar do drama (seja este drama uma tragédia, uma comédia ou até uma epopeia). Vimos, logo no início, como o suspense hitchcockiano é precisamente uma forma de criar este ponto de vista do espectador e provocar a sua identi*icação com as personagens do *ilme. Vimos também que uma das técnicas desenvolvidas por Hitchcock para criar suspense e identi*icação consiste em gerar uma assimetria entre o que sabem as personagens e o que sabe o espectador. Hitchcock faz o espectador saber mais do que as personagens — fá-‐lo saber que as personagens estão em perigo sem saberem que estão em perigo —, e isto fá-‐lo temer pelas personagens, quase como se temesse pela sua própria vida. Ora, este expediente de fazer o espectador saber mais do que as personagens é expressamente apresentado por Billy Wilder como a condição fundamental da criação, não do efeito de suspense, mas do efeito do cómico no cinema:
“O cómico é o saber prévio do espectador. Ele sabe mais do que os protagonistas do *ilme, porque o *ilme o iniciou nos seus segredos. Esta superioridade confere-‐lhe um sentimento de prazer. Mas é igualmente importante que o espectador seja apenas parcialmente iniciado nos truques do realizador, que não saiba tudo de antemão. O espectador sabe geralmente mais do que as personagens na tela, mas menos do que o realizador. Este deve saber providenciar
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sempre mais um volte-‐face e preparar este volte-‐face como surpresa. À comédia do saber-‐mais, do ser iniciado, pela qual o espectador se torna cúmplice do *ilme, segue-‐se a comédia da curiosidade, pela qual o espectador é surpreendido”.18
Este expediente do saber-‐mais — primeiro da iniciação e da cumplicidade, depois da surpresa — é, porém, o mesmo que Wilder usa nas suas melhores tragédias, Double Indemnity e Sunset Boulevard. Ambos os *ilmes começam com um prólogo que revela uma parte do *inal do *ilme e deixa claro que este *inal será trágico. Em Double Indemnity, Neff encontra-‐se já mortalmente ferido e diz para o dictafone que matou Dietrichson por dinheiro e por uma mulher, e que não *icou nem com o dinheiro nem com a mulher; em Sunset Boulevard, Gillis comenta, em voice over, o momento em que os jornalistas chegam a casa de Norma Desmond e em que os polícias o retiram da piscina, já morto. Em ambos os casos, a história é depois contada num 0lashback, até voltar ao momento inicial (e em ambos os casos o clímax ocorre depois do regresso a este momento em que o *ilme havia começado: Neff morre agarrado a Keyes, Norma Desmond desce a escadaria da sua casa e, completamente demente, diz estar pronta para o seu grande-‐plano). Este expediente não retira o sentido do trágico a estes *ilmes e, pelo contrário, cria este sentido — pois, no curso da acção, enquanto as personagens fazem tudo para satisfazer os seus desejos e alcançar os seus propósitos, nós, os espectadores, sabemos que estes esforços são vãos e sentimos por elas o medo e a compaixão que são próprios da tragédia. (O sentimento trágico é mais intenso em Sunset Boulevard, pois, aqui, estamos certos, desde o início, de que Gillis irá mesmo morrer). Este tipo de estrutura é, na verdade, tão antiga como a tragédia grega. Não só o espectador grego conhecia de antemão os mitos que eram representados na tragédia, como em Eurípides encontramos exactamente o expediente de começar por enunciar, em esboço, o *inal: o seu Hipólito, por exemplo, começa com um prólogo profético no qual a deusa Afrodite anuncia que Fedra e Hipólito irão morrer. Eurípides certamente sabia que este procedimento não retira expectativa nem suspense ao drama trágico, pois o anúncio parcial do que irá acontecer faz, desde logo, perguntar como e porquê isso irá acontecer e gera, deste modo, compaixão trágica pelas personagens
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18 Cf. Helmuth Karasek, Billy Wilder. Eine Nahaufnahme, München, Heyne Verlag, 5. Au*lage, 1992, p. 230. [A tradução do Alemão para Português é da responsabilidade do autor deste artigo].
que têm o destino traçado.19 Note-‐se também que este tipo de não-‐linearidade não choca de forma alguma com os princípios aristotélicos: a peça preferida de Aristóteles, o Édipo Rei de Sófocles, é toda ela construída como uma série de quasi-‐0lashbacks (ancorados num momento presente em que Édipo já matou o pai e já casou com a mãe sem o saber). Esta forma de estruturar a narrativa não viola o princípio fundamental da clareza: a ordem temporal e a ordem causal não são directamente apresentadas de forma linear, mas a peça dá todos os elementos para que esta linearidade possa ser reconstruída e seja inteligível. O mesmo acontece com o Hipólito de Eurípides e com Sunset Boulevard. O modo como Billy Wilder usa o princípio do saber-‐mais, quer na comédia, quer na tragédia, é, na verdade, um desenvolvimento do chamado “Lubitsch touch”. Vejamos o que isto signi*ica. Primeiro, é preciso assinalar que, quando falamos do “Lubitsch touch”, referimo-‐nos a algo que, muito provavelmente, é inde*inível. Como Wilder diz inúmeras vezes: se Lubitsch tinha uma fórmula para criar o seu touch, levou-‐a certamente consigo para a campa. Há, por isso, quem se contente com enunciar diferentes formas do “Lubitsch touch”, sem pretender determinar o que há de comum a todas elas.20 Apesar disso, Billy Wilder esforçou-‐se muitas vezes, nas suas entrevistas e biogra*ias autorizadas, por dizer exactamente o que há de comum a essas formas e o que de*ine, no essencial, o modo de pensar e *ilmar de Lubitsch. (Quer na prática de escrever e realizar *ilmes, quer na exposição teórica, não há, de facto, melhor intérprete da magia de Lubitsch do que o seu discípulo, Wilder; não por acaso, ao longo de toda a sua carreira teve no seu escritório um letreiro com a pergunta: “How would Lubitsch do it?”). O “Lubitsch touch” é, em primeiro lugar, uma paixão pelo indirecto e um uso essencialmente visual do innuendo (num sentido muito alargado do termo, que vai muito para além do innuendo sexual, mas que, muitas vezes, o inclui). A forma de Lubitsch proceder consiste em criar uma elipse e uma não-‐explicação que, no entanto, sugere indirectamente uma explicação e, sobretudo, leva o espectador a encontrar ele próprio uma explicação para o que acaba de ver, ou simplesmente a estabelecer uma determinada conexão causal, espacial ou temporal. Não raro,
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19 Cf. C. A. E. Lusching, Time Holds the Mirror. A Study of Knowledge in Euripides’ Hippolytus, Leiden/ New York, E.J. Brill, 1988, pp. 93-‐111.
20 Cf. Herman G. Weinberg, The Lubitsch Touch, New York, Dutton, 1971, p. 26 e sgs..
são as próprias personagens que percebem tal conexão com base em elementos exclusivamente visuais, por exemplo a partir da percepção de um objecto que se torna signi*icativo: e, nestes casos, o touch consiste no facto de o espectador perceber que a personagem percebeu essa conexão, no facto de ele ser levado a ler a mente da personagem, a adivinhar por si próprio — apenas com base em elementos visuais — o que a personagem está a pensar e a sentir.21 Estes momentos são sempre surpreendentes — e são mágicos porque o seu sentido se forma por sugestão, indirectamente, porque algo se explica por si próprio e, portanto, com estilo, de uma forma nova, original, inesperada. Mas esta explicação — o sentido que se forma em resultado da elipse — é também uma surpresa que foi preparada. Como Wilder diz sempre: em vez de mostrar directamente ao espectador que 2+2= 4 (como fazem quase todos os realizadores), Lubitsch mostra apenas o 2+2 e leva o espectador a encontrar por si próprio, na sua imaginação, o resultado desta soma: 4. Este 4 é uma interpretação do espectador, existe apenas na sua fantasia e, no entanto, é a própria substância de uma cena, em última análise a substância de todo o *ilme.22 A forma mais conhecido do “Lubitsch touch” (muitas vezes confundida com a totalidade deste touch) é uma “super-‐piada” (“Superjoke”) que tem geralmente três momentos, três actos. No primeiro acto, o espectador vê acontecer qualquer coisa sem fazer ideia de que ela terá uma consequência, de que será relevante no seguimento do *ilme. Isso que ele vê tem um signi*icado e uma razão de ser imediatas, mas o que ele não sabe é que isso esconde também uma outra história, um outro “plot-‐point”. Como diz Wilder, a subtileza lubitschiana está precisamente nesta arte de esconder os “plot-‐points”, ou seja, em prepará-‐los sem dar a conhecer que eles estão a ser
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21 Veja-‐se, por exemplo, o modo como, em Trouble in Paradise, o cinzeiro em forma de gôndola leva a personagem que foi roubada em Veneza a reconhecer o ladrão — e, sobretudo, como o espectador é levado a fazer a mesma associação (gôndola — Veneza) e a perceber que a personagem percebeu que está perante a pessoa que o assaltou. Também os *ilmes de Wilder contêm inúmeros momentos deste tipo, em que um objecto se torna signi*icativo para uma personagem e para o espectador: por exemplo, o espelho em The Apartment. Cf. Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, pp. 19, 59, 63.
22 Cf. Helmuth Karasek, Billy Wilder. Eine Nahaufnahme, München, Heyne Verlag, 5. Au*lage, 1992, pp. 165-‐175, 176-‐183, 285-‐288; Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, pp. 17-‐19, 32-‐33, 112-‐113, 135, 168-‐170, 192, 357; Charlotte Chandler, Nobody’s Perfect. Billy Wilder, a personal biography, New York, Simon& Schuster, 2002, pp. 76-‐83, 87-‐91, 179; Robert Horton, Billy Wilder. Interviews, Jackson, University of Mississipi Press, 2001, pp. 9, 72, 91, 135-‐136, 155-‐156, 186.
preparados, em fazer o espectador esticar a língua e engolir um comprimido (uma informação relevante, um “plot-‐point”) sem que se aperceba de que é isso que está a acontecer.23 No segundo acto, a acção repete-‐se, geralmente com uma pequena variação. Esta repetição é já um momento cómico. Pois nós sabemos que as pessoas se repetem, que o carácter de um indivíduo tende a ser imutável ou quase imutável, e por isso sorrimos (se é que não rimos) sempre que observamos as pessoas a serem movidas pelo seu carácter como se este fosse uma espécie de mecanismo que elas não controlam.24 E isto quer dizer também que este segundo acto implica já uma primeira elipse, é já um primeiro momento de comunicação indirecta e de sugestão: o espectador infere (sem que nada lhe seja dito ou explicado) que a personagem se repete porque o seu carácter a impele a repetir-‐se e, enquanto sorri, infere também qualquer coisa sobre o natureza desse carácter, sobre o modo de ser especí*ico da personagem. O terceiro acto é o momento da surpresa, o momento em que surge a super-‐piada que os dois primeiros actos prepararam. Aqui, parte da acção repete-‐se de novo, mas agora de um modo que é totalmente inesperado — e que é totalmente inesperado porque revela uma nova faceta ou dimensão da personagem, mostra algo do seu carácter e das suas motivações que estava escondido sob uma aparência, algo que contradiz o que o espectador havia inferido antes e que, no entanto, é verosímil e até necessário em função dos elementos que haviam sido semeados nos momentos anteriores do 0ilme. A surpresa é um 4 que é sugerido por um 2+2 (ou um 3+1 ou um 1+1+2) e que, por isso, parece absolutamente necessário. O exemplo mais conhecido de uma super-‐piada lubitschiana é o chapéu de Ninotchka. No primeiro acto, Ninotchka, a funcionária soviética que se desloca a Paris para *inalizar a venda das jóias de uma Grã-‐Duquesa, vê um chapéu de senhora bastante exótico, que está exposto numa montra do hall do hotel de luxo em que *icou instalada. A sua reacção é dizer ao comité de três colegas seus que uma civilização que permite às mulheres
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23 Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, pp. 17, 259-‐260; Wilder resume esta ideia num dos princípios que, segundo diz, todo o argumentista deve seguir: “The more subtle and elegant you are in hiding your plot-‐points, the better you are as a writer”.
24 Cf. Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, p. 135: “That was Lubitsch’s idea, to say two, and then say two again, after a little pause... and the audience will make four out of it. One and one and one and one is four. Or one and three is four. We are often repeating ourselves. He told me that; he just said it”.
aperaltarem-‐se com chapéus tão ridículos como este (e, subentende-‐se, tão caros) tem certamente os dias contados. Esta reacção vem na sequência de outras reacções similares aos costumes e singularidades do capitalismo parisiense, e portanto nada faz suspeitar que tal reacção esconda uma história. No segundo acto, Ninotchka passa pelo chapéu e limita-‐se a acenar com a cabeça em sinal de desaprovação. No terceiro acto, estando já em curso o processo de ela se apaixonar por Leo (que representa o espírito romântico parisiense e que, na verdade, é pouco mais do que um gigolo), Ninotchka fecha todas as portas da sua suite de hotel, certi*ica-‐se de que ninguém a está a ver, abre uma gaveta que estava fechada à chave, e tira de dentro dela o famoso chapéu, que depois põe na cabeça. Sem que uma palavra seja dita, o espectador infere (essencialmente através da imaginação, mas também com um mínimo de conceptualização) três coisas fundamentais: (a) Ninotchka está realmente apaixonada, (b) nunca voltará a ser a fanática funcionária soviética que era antes, (c) algo tem de estar muito errado com o sistema soviético se leva uma mulher apaixonada a ter vergonha de se aperaltar com um chapéu.25 O momento em que Ninotchka, ajoelhada junto à gaveta, põe o chapéu na cabeça e depois se olha ao espelho é o típico momento de poesia visual dos *ilmes de Lubitsch (e de Wilder): enquanto o *ilme “respira”, o espectador não está apenas a ver qualquer coisa — está a contemplar a transformação de uma pessoa e a construir, na sua fantasia, uma imagem do que se passa no interior dessa pessoa.26 Este exemplo contém, de facto, os elementos essenciais do “Lubitsch touch”. Lubitsch faz do espectador seu cúmplice — pois fá-‐lo participar da acção como intérprete. E, aqui, encontramos já um conjunto de paralelos com o que vimos acerca da Poética de Aristóteles. Primeiro, os *ilmes de Lubitsch, como os de Wilder, emocionam e criam identi*icação afectiva, mas uma parte
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25 Cf. Helmuth Karasek, Billy Wilder. Eine Nahaufnahme, München, Heyne Verlag, 5. Au*lage, 1992, pp. 176-‐183; Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, pp. 32-‐33. Um dos elementos interessantes deste episódio é que o chapéu é realmente ridículo: a conversão de Ninotchka aos sentimentos privados e, em particular, à paixão romântica é uma conversão ao ridículo e uma celebração de tudo aquilo que a vida tem de mais inconsequente, de mais lúdico e meramente prazenteiro: anedotas parvas, música, dança, champagne, é à força libertadora de tudo isto que Ninotchka se converte e é tudo isto que está condensado na *igura do chapéu. Cf. James Harvey, Romantic Comedy in Hollywood. From Lubitsch to Sturges, New York, Da Capo Press, 1998, pp. 383-‐392.
26 Como diz Wilder, o importante não é tanto *ilmar um ser humano real, quanto *ilmar uma personagem a transformar-‐se, a “tornar-‐se alguém”: “just the becoming, that is the important thing”. Cf. Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, p. 273; sobre a importância dos momentos de pura “poesia visual”, cf. p. 130.
desta emoção é o prazer cognitivo de ser levado a inferir, pensar, raciocinar, construir sentido. A diferença em relação ao que vimos acerca da Poética é apenas que, no caso de Lubitsch, como no caso de Wilder, este prazer cognitivo é especi*icamente cinematográ*ico, pois assenta no que é visto — nas elipses e innuendos que são construídos nos próprios planos do *ilme. Regra geral, note-‐se, a montagem tem aqui um papel crucial: é a montagem (por vezes o movimento de câmara) que dirige o olhar de umas coisas para as outras, que faz os destaques e cria os pontos de relevância nos quais assenta a construção do innuendo (e isto de um modo radicalmente distinto do que se pode fazer no teatro ou na literatura).27 Em segundo lugar, podemos facilmente perceber que as inferências, as interpretações e fantasias do espectador dizem respeito a nexos de causalidade e geram nele a convicção de que tudo o que está a ver acontece segundo a verosimilhança ou até a necessidade. Estes nexos de causalidade passam essencialmente pela personagem e o seu carácter. O que o espectador infere no exemplo do chapéu de Ninotchka são as causas do comportamento visível da personagem — o que a move, as suas motivações, os seus propósitos conscientes e, eventualmente, as suas pulsões inconscientes. E, nos *ilmes de Lubitsch e Wilder, o propósito desta revelação do carácter não é eminentemente psicológica: a sua principal função é simbólica, tal como vimos que também Aristóteles recomenda. Ninotchka representa o sistema soviético e a sua transformação representa a conversão a um ponto de vista crítico do sistema soviético. Este sistema é criticado, não através de prelecções inseridas nos diálogos ou num voice over, mas através da acção — através do modo como a situação afecta as personagens, do modo como as suas reacções revelam o que mais intimamente as move e, por *im, do modo como estas acções adquirem um signi*icado simbólico. O que é extraordinário em Lubitsch e Wilder — mas, provavelmente, em todos os grandes autores de cinema de *icção, embora de muitas formas diferentes — é o facto de conseguirem comunicar ideias complexas de um modo especi*icamente cinematográ*ico. Como diz Wilder, um realizador não pode viver de conceitos
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27 Cf. Robert Horton, Billy Wilder. Interviews, Jackson, University of Mississipi Press, 2001, p.119: “[...] in making pictures [...] it’s not how you are photographing. It is the juxtaposition of the various shots that you make. It is the scissors that make the pictures, the cut. [...]. Battleship Potemkin, that is movies. It’s what follows what. This is where we have it all over the theater”.
abstractos, “tem de fotografar algo de concreto”28 — mas, por outro lado, a grande lição do “Lubitsch touch” é que é possível “fotografar algo de concreto” e, com isso, fotografar algo de “universal”: por exemplo, uma crítica do comunismo soviético, uma crítica do nazismo, uma crítica do capitalismo. É importante sublinhar que o “Lubitsch touch” tem, de facto, várias formas (que não iremos, contudo, analisar aqui) e, sobretudo, que estas diferentes formas fazem o espectador somar 2+2, não apenas a respeito das motivações das personagens, mas também a respeito das situações, das localizações espaciais e da ordem do tempo. Praticamente toda a ligação entre um plano e outro — e, sobretudo, entre um momento decisivo e outro — obriga o espectador a inferir conexões, a estabelecer nexos causais entre esses planos. É assim, e só assim, que se tornam claras para o espectador não apenas as motivações das personagens, mas também as relações espaciais e temporais que são relevantes para que se compreendam essas motivações e as situações em que elas ocorrem. Este procedimento não passa apenas pela criação de um saber-‐mais do espectador em relação às personagens. Passa também pela criação, por vezes, de um saber-‐o-‐mesmo (como no “tratamento subjectivo” de Hitchcock, i.e. na técnica que consiste em construir uma sucessão de planos objectivos e subjectivos que faz o espectador inferir o ponto de vista de uma personagem e, por assim dizer, colocar-‐se nesse ponto de vista),29 e passa também, outras vezes, pela criação de um saber-‐menos. Esta última técnica é particularmente importante em Lubitsch. A sua forma mais usual é a elipse temporal, que obriga o espectador a reconstruir por si próprio não só a ordem do tempo, mas também a da causalidade (o espectador preenche, na sua fantasia, o buraco temporal entre dois planos e infere por si próprio as causas dos eventos que lhe são dados a ver agora, no momento presente). Muito frequentemente, Lubitsch faz-‐nos ver uma personagem a olhar para algo que está fora de campo (criando, assim, em nós uma expectativa) e só depois nos deixa ver aquilo para que a personagem está a olhar; não menos frequentemente, as personagens de Lubitsch parecem-‐nos sair de campo na direcção errada, tal como nos parecem muitas vezes desorientadas quando, na verdade, já sabem — e só elas sabem — para onde se dirigem; e,
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28 Cf. Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, p. 189.
29 Para uma excelente descrição desta técnica, sobretudo em Rear Window, cf. Steven DeRosa, Writing with Hitchcock. The Collaboration of Alfred Hitchcock and John Michael Hayes, New York/ London, Faber& Faber, 2001.
sobretudo, com recurso a estas e outras técnicas, Lubitsch faz-‐nos sempre sentir que, embora o destino último das suas personagens possa ser certo, o seu destino imediato nunca é.30 O próprio episódio do chapéu de Ninotchka depende de uma subtil mistura entre o saber-‐menos e o saber-‐mais do espectador: depois de sermos surpreendidos com o facto de ela ter o chapéu escondido dentro da gaveta, *icamos com a sensação — inteiramente correcta — de a conhecermos melhor do que ela se conhece a si própria, a sensação de podermos lançar sobre ela um olhar que, em retrospectiva, compreende claramente as motivações de todas as suas acções desde o início do *ilme, e que as compreende melhor do que ela as pode compreender (e, sobretudo, muito melhor do que ela as podia compreender quando as praticou). Ora, o que resulta de todos estes pontos é que o “Lubitsch touch” não é apenas uma forma ou até uma multiplicidade de formas de construir partes ou episódios de um *ilme: é uma forma de construir todo o 0ilme. O “Lubitsch touch” está na própria estrutura narrativa do *ilme, é uma forma de dar uma estrutura narrativa a um *ilme. Podemos dividir esta tese em três sub-‐teses: (a) num *ilme de Lubitsch, como num *ilme de Wilder, a causalidade nunca é apenas linear (o plano 1 mostra a causa do que acontece no plano 2, esta mostra a causa do que acontece no plano 3, etc.), pois a parte decisiva dos nexos de causalidade vai sendo construída em retrospectiva na fantasia do espectador; (b) é isso que determina que os *ilmes de Lubitsch e Wilder obedeçam ao princípio aristotélico de que, numa obra dramática, todas as coisas devem acontecer “umas por causa das outras”, mas sempre “contra a expectativa” (para\ th\n do/can di' aÃllhla, Poét. 9. 1452a): todas as cenas do *ilme incluem um elemento de surpresa, mas, na medida em que esta surpresa é sempre preparada por “plot-‐points” que vão sendo inconspicuamente semeados ao longo do *ilme, a sua ocorrência acaba por gerar um sentimento de necessidade (o espectador soma 2+2 e conclui que o resultado é necessariamente 4); (c) sendo assim, é com recurso à sugestão indirecta de nexos causais e, portanto, com recurso ao expediente de levar o espectador a reconstituir a causalidade na sua imaginação que Lubitsch e Wilder dão aos seus *ilmes a unidade de uma estrutura narrativa, i.e. fazem do todo uma só acção com princípio, meio e 0im.
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30 Cf. James Harvey, Romantic Comedy in Hollywood. From Lubitsch to Sturges, New York, Da Capo Press, 1998, pp. 13-‐16, 388, 482-‐484.
Wilder exprime o princípio aristotélico da unidade de acção de uma forma muito clara: “if you have a problem with the third act, the real problem is in the *irst act”.31 Um *ilme de Wilder tem sempre três actos principais. O guião de Sunset Boulevard, por exemplo, está dividido em cinco “sequências” — ou “actos” no sentido que este termo tem geralmente no teatro —, mas estas cinco partes são subdivisões do princípio, do meio e do *im, i.e., dos três actos principais (a sequência A corresponde ao princípio, as sequências B, C e D ao meio, e a sequência E, ao *im).32 E o essencial, para Wilder, é a unidade destes três actos principais — ou seja, o essencial é que o meio e o *im do *ilme funcionem realmente como um desenlace do nó do princípio. “Se tens um problema com o terceiro acto, o verdadeiro problema está no primeiro acto”, quer dizer: se tens um problema com o terceiro acto, isso é porque o nó inicial não foi adequadamente construído e, portanto, não se consegue conceber agora um *inal que seja a consequência necessária do princípio, o desenlace inevitável do nó inicial. Portanto, a solução wilderiana para um problema com a escrita de um terceiro acto é sempre o princípio do “Lubitsch touch”: semear “plot-‐points” no primeiro acto, não deixar perceber que eles escondem uma história, depois desenvolver esta história, fazer os “plot-‐points” terem uma consequência no segundo acto e, por *im, uma consequência no terceiro acto. Não há praticamente nenhum elemento num *ilme de Billy Wilder que não tenha pelo menos uma consequência ulterior, que não acabe por produzir uma reconstrução retrospectiva da causalidade e, deste modo, por contribuir para o sentimento de necessidade e de unidade que se forma no *inal. Por isso, o primeiro acto de um *ilme de Wilder é geralmente longo. O nó inicial resulta de um conjunto de sub-‐nós que progressivamente o de*inem e que inconspicuamente contêm já uma parte das sementes que serão colhidas no segundo e no terceiro acto. Por exemplo, em Sunset Boulevard, o longo 0lashback que ocupa quase todo o *ilme (e que é lançado pelo prólogo)
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31 Cf. Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, pp. 170, 239, 309, 357.
32 Cf. Billy Wilder, Sunset Boulevard. The complete screenplay with an introduction by Jeffrey Mayers, Berkeley/ Los Angeles, University of California Press, 1999. Sendo mais preciso, o terceiro acto principal (o *im) só têm início mais ou menos a meio da sequência E (na cena E-‐28), e como é usual nos *ilmes de Wilder há ainda um twist neste terceiro acto — quando parece que o *ilme vai já acabar, vem então o verdadeiro *inal (o *ilme não acaba com a morte de Gillis, mas sim com a loucura de Norma Desmond). Cf. Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, p. 170.
começa com uma pequena história, ou sub-‐nó: Gillis precisa de 300 dólares para pagar o leasing do carro. Isto acaba por levá-‐lo a ter uma reunião com um produtor, a quem tenta vender um guião. Betty Schaefer aparece aqui como a leitora de guiões que aconselha o produtor a recusar o guião de Gillis. Nada indicia que ela reaparecerá no *ilme e terá um dos papéis principais no desenvolvimento da história. O carro escondido na garagem, o enterro do chimpanzé e o guião sobre Salomé são outros sub-‐nós que levam Gillis a conhecer Norma Desmond e a *icar instalado em caso dela. Todas estas pequenas histórias criam uma determinada atmosfera, introduzem as personagens e fazem-‐nos entrar no mundo de Hollywood, mas, sobretudo, co-‐de*inem o nó principal (a relação entre Gillis e Norma como uma relação de exploração mútua) e terão consequências na continuação do *ilme. Sobre os *ilmes de Billy Wilder (e certamente sobre os melhores *ilmes de Lubitsch), pode, de facto, dizer-‐se que, “movida ou retirada uma só das suas partes, também o todo se move e é destruído” (Poét. 8. 1451a).33
Obviamente, a de*inição do nó inicial é também decisiva para que o segundo acto tenha a força dramática que lhe é devida. Como diz Wilder, não basta pensar um primeiro e um terceiro acto: o princípio do *ilme tem de construir um “con*lito que possas manter no meio [do *ilme]”.34 Este con*lito tem de progredir até ter um primeiro desenlace que torne mais agudo o nó inicial e que, dessa forma, lance o terceiro acto: “o evento que ocorre quando cai a cortina do segundo acto espoleta o *im do *ilme”.35 O *im, segundo Wilder, deve “crescer, crescer, crescer em ritmo e acção até ao último evento e depois — é isso”, o *ilme termina no clímax, na última consequência e desenlace do nó inicial.36 A conformidade entre toda esta concepção da estrutura narrativa e o que vimos sobre a Poética de Aristóteles é clara. Que o “Lubitsch touch” permitiu a Billy Wilder desenvolver uma forma especi*icamente cinematográ*ica de construir uma estrutura narrativa, é também claro. Que
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33 Cf. Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, p. 239: “I always need a plot. I think I need a plot, because I don’t like pictures where you can take half an hour out and it’s only better”.
34 Cf. Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, p. 136.
35 Cf. Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, pp. 170, 357.
36 Cf. Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, pp. 170, 357.
também no cinema, e em particular no cinema de Lubitsch e Wilder, “contar uma história” pode ser muito mais do que dar a conhecer essa história, não é menos claro. Todo o *ilme de Lubitsch ou Wilder usa a sua estrutura narrativa para exprimir ideias complexas ou, como diz Wilder, para dramatizar um tema.37 Como Aristóteles ensinou, esta dramatização (i.e., a criação de um nó e de um desenlace, ou de uma só acção que, com o seu princípio, meio e *im, exprime uma ideia) é uma forma de mimese que permite pensar um “universal” e, pelo menos, simular a demonstração de “verdades universais”, mesmo que seja através da concepção de um mundo totalmente fantasioso, imaginário, falso. Não era, pois, sem razão que Wilder julgava fazer parte da sua missão como artista e cineasta apontar para a verdade:
“BW: [...] a picture has to have something new. It has to have something that they [the audience] don’t see every day, but recognize as the truth. CC: So truth — truth is the key. BW: Make it true, make it seem true. And don’t have something, even in a farce like Some Like It Hot, that isn’t true. I just imagine that there is such an idiot as Osgood Fairchild. That there is such an old fool. Then I proceed”.38
*
Talvez, hoje, nos consideremos demasiado so*isticados para aceitarmos que nos falem de “verdade”, talvez a evolução da arte nos séculos XX e XXI tenha tornado impossível que muitos de nós consigamos levar a sério a estrutura narrativa, a mimese aristotélica ou os conceitos clássicos de personagem e carácter. A moral deste artigo, porém, pretende ser apenas esta: o uso de uma estrutura narrativa no cinema é algo bastante mais complexo, interessante e pro*ícuo do que muitas vezes se imagina. Que a estrutura narrativa seja, hoje, para muitos, apenas uma coisa do passado e que, para outros, esteja agora reduzida a uma fórmula que vende *ilmes, é talvez um dos dramas do cinema contemporâneo. No *inal da vida, Billy Wilder acreditava ainda que “os cineastas ainda nem sequer começaram a esgravatar a super*ície do que se pode fazer em cinema — as possibilidades
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37 Cf. Robert Horton, Billy Wilder. Interviews, Jackson, University of Mississipi Press, 2001, p. 51.
38 Cf. Cf. Cameron Crowe, Conversations with Billy Wilder, London, Faber& Faber, 1999, p. 143; cf. pp. 144, 175, 184, 273.
são realmente muitas”.39 Uma das perguntas que podemos fazer hoje — e que me parece que devemos fazer — é se algumas destas possibilidades não estarão nas sementes que cineastas como Wilder e Lubitsch semearam.
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39 Cf. Robert Horton, Billy Wilder. Interviews, Jackson, University of Mississipi Press, 2001, p. 181.
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