Estrutura narrativa: da Poética de Aristóteles à arte cinematográfica de Hitchcock, Lubitsch e...

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Estrutura narrativa: da Poética de Aristóteles à arte cinematográ7ica de Hitchcock, Lubitsch e Wilder João Constâncio I. Quase todos os *ilmes de *icção da história do cinema “contam uma história” ou pretendem “contar um história”. No cinema clássico americano, mesmo os realizadores mais ousados e inovadores basearam sempre os seus *ilmes numa história. Alfred Hitchcock diz expressamente a Truffaut: “Rodar *ilmes, para mim, quer dizer em primeiro lugar e, antes de tudo, contar uma história”. 1 Hawks, Lubitsch, Wilder, Welles — de uma forma ou de outra, todos os grandes do cinema clássico americano dizem o mesmo: o essencial é haver ou não haver uma história para contar. Até, pelo menos, aos anos 60 do século XX esta convicção foi dominante em todas as partes do mundo em que se fez cinema de *icção. E notese que, se a tarefa de conceber e escrever um guião nunca teve o mesmo prestígio que a de dirigir ou realizar um *ilme, nem por isso muitos dos grandes realizadores da história do cinema deixaram de considerar este facto injusto. Orson Welles, por exemplo, disse que “o escritor [ou argumentista] devia ter a primeira e a última palavra na feitura de um *ilme, sendo o escritorrealizador a única alternativa melhor, mas com ênfase na palavra ‘escritor’” 2 ; Billy Wilder pensou sempre que “80% da criação de um *ilme é a sua escrita”. 3 Se um *ilme “conta uma história”, tem uma estrutura narrativa. Um *ilme é composto por uma série de imagens em movimento — ou, mais exactamente, de fotogra*ias que criam a ilusão de movimento. Que a estrutura de um *ilme seja narrativa, signi*ica que o modo como essas fotogra*ias estão organizadas — ou como se estruturam, como se relacionam umas com as outros as faz funcionar como uma narrativa. É Publicado em Grilo, J.M./ Aparício, I., Cinema e Filoso0ia. Compêndio, Lisboa, Colibri, 2013, pp. 117140 1 François Truffaut, Hitchcock — diálogo com Truffaut, Lisboa, Dom Quixote, 1987, p. 77. 2 Cf. Mark W. Estrin (ed.), Orson Welles. Interviews, Jackson, University Press of Mississippi, 2002, p. 31, e Orson Welles & Peter Bogdanovich, This is Orson Welles, Cambridge, Massachussets, Da Capo Press, 1998, pp. 143144. [As traduções de Inglês para Português são da responsabilidade do autor deste artigo]. 3 Robert Horton, Billy Wilder. Interviews, Jackson, University of Mississipi Press, 2001, p. 52.

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Estrutura  narrativa:  da  Poética  de  Aristóteles  à  arte  cinematográ7ica  de  Hitchcock,  Lubitsch  e  Wilder

João  Constâncio

I.       Quase   todos   os   *ilmes   de   *icção   da   história   do   cinema   “contam   uma  história”  ou  pretendem  “contar  um  história”.   No  cinema  clássico  americano,  mesmo  os  realizadores  mais  ousados  e  inovadores  basearam  sempre  os  seus  *ilmes  numa  história.  Alfred  Hitchcock  diz   expressamente  a  Truffaut:  “Rodar  *ilmes,   para  mim,   quer  dizer  em  primeiro  lugar  e,  antes  de  tudo,   contar  uma  história”.1  Hawks,   Lubitsch,   Wilder,   Welles  —   de   uma   forma   ou   de   outra,  todos  os  grandes  do  cinema  clássico  americano  dizem  o  mesmo:  o  essencial  é  haver  ou  não  haver  uma  história  para  contar.  Até,  pelo  menos,  aos  anos  60  do  século  XX  esta  convicção  foi  dominante  em  todas  as  partes  do  mundo  em  que  se  fez  cinema  de  *icção.   E  note-­‐se  que,  se  a  tarefa  de  conceber  e  escrever  um  guião   nunca   teve   o  mesmo   prestígio   que  a   de   dirigir   ou  realizar   um   *ilme,  nem   por   isso   muitos   dos   grandes   realizadores   da   história   do   cinema  deixaram  de  considerar  este  facto   injusto.  Orson  Welles,   por  exemplo,   disse  que  “o   escritor   [ou  argumentista]  devia  ter  a  primeira  e  a  última  palavra  na  feitura   de  um   *ilme,   sendo   o   escritor-­‐realizador  a  única  alternativa  melhor,  mas  com  ênfase  na  palavra  ‘escritor’”2;  Billy  Wilder  pensou  sempre  que  “80%  da  criação  de  um  *ilme  é  a  sua  escrita”.3

  Se   um   *ilme   “conta   uma  história”,   tem   uma  estrutura   narrativa.   Um  *ilme   é   composto   por   uma   série   de   imagens   em   movimento   —   ou,   mais  exactamente,   de   fotogra*ias   que   criam   a   ilusão   de   movimento.   Que   a  estrutura   de   um   *ilme   seja   narrativa,   signi*ica   que   o   modo   como   essas  fotogra*ias  estão  organizadas  —  ou  como  se  estruturam,  como  se  relacionam  umas   com   as   outros   —   as   faz   funcionar   como   uma   narrativa.   É  

Publicado  em  Grilo,  J.M./  Aparício,  I.,  Cinema  e  Filoso0ia.  Compêndio,  Lisboa,  Colibri,  2013,  pp.  117-­‐140

1  François  Truffaut,  Hitchcock  —  diálogo  com  Truffaut,  Lisboa,  Dom  Quixote,  1987,  p.  77.  

2  Cf.  Mark  W.  Estrin  (ed.),  Orson  Welles.   Interviews,  Jackson,  University  Press   of  Mississippi,  2002,   p.   31,   e   Orson   Welles   &   Peter   Bogdanovich,   This   is   Orson   Welles,   Cambridge,  Massachussets,   Da   Capo  Press,  1998,   pp.   143-­‐144.   [As   traduções   de  Inglês   para  Português  são  da  responsabilidade  do  autor  deste  artigo].  

3  Robert  Horton,  Billy  Wilder.  Interviews,  Jackson,  University  of  Mississipi  Press,  2001,  p.  52.

essencialmente  indiferente  que  o  *ilme  tenha  ou  não  tenha  som,  tenha  ou  não  tenha   intertítulos,   tenha  ou  não  tenha  diálogos   entre  personagens,   tenha  ou  não   tenha   um   voice   over   em   que   um   narrador   conta   uma  história   ou  uma  parte  de  uma  história.  Um  *ilme  tem  uma  estrutura  narrativa  se  as  imagens,  os  planos  que  o  compõem  se  estruturam  de  forma  a  contarem,  eles  próprios,  uma  história.  É  certamente  neste  sentido  que  Hitchcock  de*ine  um  mau  *ilme  como   uma   série   de   “fotogra*ias   de   pessoas   a   falar”   e   acrescenta   que   “o  diálogo   deve   ser   um   ruído   entre   outros,   um   ruído   que   sai   da   boca   das  personagens   cujas   acções   e  olhares   contam  uma  história  visual”.4  Para  que  um  *ilme  tenha  uma  estrutura  narrativa  ou  “conte  uma  história”  (no  sentido  relevante  desta  expressão),  não  basta  portanto,  que  ele  tenha  uma  história.  É  também   necessário   que   ele   conte   essa  história   em   termos   especi*icamente  cinematográ*icos  —  ou  seja,   visualmente,   através   de  “acções   e  olhares”  que  sejam   fotografados   por   uma   máquina   de   *ilmar.   Um   *ilme   pode   ter   uma  história  sem  a  contar  (porque  a  conta  essencialmente  através  dos  diálogos  ou  do  voice  over),  e  isto  quer  dizer  que  pode  conter  uma  narrativa  (ou  até  várias  narrativas)  sem  ter  uma  estrutura  narrativa  enquanto  0ilme.5

  Estas   a*irmações   suscitam   imediatamente  duas   perguntas:   (a)   o   que  signi*ica,  mais  exactamente,   que  um  *ilme  tenha  uma  “estrutura  narrativa”?,  (b)  como  se  constrói  um  *ilme  que  tenha  uma  “estrutura  narrativa”?  Podemos  começar  por   tentar  dar   uma   resposta   provisória  a  estas  duas   perguntas  —  suscitando,   assim,   novas   perguntas,   de   cujas   respostas   se   ocupará   o   resto  deste  artigo.     Sobre  a  primeira  pergunta,  podemos  dizer  provisoriamente:  um  *ilme  tem   uma   estrutura   narrativa   quando   conta   uma   história   de   um   modo  essencialmente  visual,  e  isto  quer  dizer:  quando   cria  o  ponto  de  vista  de  um  espectador   que   assiste   ao   desenrolar   de   uma   história   “narrada”   pelos  próprios   planos  do   *ilme   e,   portanto,   pelo   realizador   ou  autor   do   *ilme  (i.e.  pela   pessoa   ou   pessoas   que   decidiram,   em   última   instância,   que   planos  

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4  François  Truffaut,  Hitchcock  —  diálogo  com  Truffaut,  Lisboa,  Dom  Quixote,  1987,  pp.  49  e  165.

5   Seymour  Chatman,  Story  and  Discourse,  Narrative  Strucutre  in   Fiction  and  Film,  New  York,  Cornell   University   Press,   1978,   p.   9   e   passim,   distingue   entre   “história”,   “o   quê   da  narrativa”   (“the   what   of   narrative”),   e   “discurso”,   “o   como   da   narrativa”   (“the   way   of  narrative”):  que  um  *ilme  tenha  uma  “estrutura  narrativa”,  implica  que  ele  tenha  um  discurso  narrativo,  mas  isto,  por  sua  vez,   implica  que,  independentemente  do  que  é  dito  nos  diálogos,  intertítulos   ou   voice   over,   o   próprio   *ilme  apresente,   organize,   estruture   a   história  de   um  modo  narrativo  (e  não,  por  exemplo,  de  um  modo  anti-­‐narrativo).  

compõem   efectivamente   esse   *ilme   e   por   que   ordem   se   encontram  dispostos).   Sobre   a   segunda   pergunta,   podemos   dizer   provisoriamente:   a  estrutura   narrativa   de   um   *ilme   constrói-­‐se   através   da   criação   de   nexos  temporais,   espaciais   e   causais   que   dão   um   sentido   narrativo   às   acções   de  certas   personagens  —  e   de  que   um  possível   espectador   se  pode  aperceber  quando  vê  essas  acções.         Consideremos  um  exemplo   prévio,   também  ele   retirado  dos  diálogos  de  Hitchcock  com  Truffaut.    Imaginemos  uma  cena  em  que  duas  personagens  têm  entre  elas  uma  conversa  trivial.   A  cena  poderia  fazer  parte  de  um  *ilme  que   fosse  apenas   uma   série  de   imagens   de  pessoas   a   falarem  umas   com   as  outras.   Para  Hitchcock   isso   signi*icaria   que  o   *ilme  não   suscitaria   qualquer  “emoção”  e,  por  isso,  não  teria  interesse  para  o  público.  Mas  imaginemos  que    “uma   bomba   está   debaixo   da   mesa   e   o   público   sabe   isso,   provavelmente  porque  viu  um  anarquista  colocá-­‐la  lá.  O  público  sabe  que  a  bomba  explodirá  à  uma  hora  e  sabe  que  falta  um  quarto  para  a  uma  —  há  um  relógio  no  décor;  a  mesma  conversa  anódina  torna-­‐se  de  repente  muito   interessante  porque  o  público  participa  na  cena.  Tem  vontade  de  dizer  às  personagens  que  estão  no  ecrã:  ‘não  deviam  estar  a  falar  de  coisas  tão  banais,  há  uma  bomba  debaixo  da  mesa,   não   tardará   a  explodir’”.6  Hitchcock  usa  este  exemplo  para  distinguir  “suspense”  de  “surpresa”  (neste  caso,  da  surpresa  que  resultaria  de  rebentar  uma  bomba  de  repente,   sem  qualquer   informação  prévia),  mas,   de  facto,  ele  serve  também  para  explicar  provisoriamente  o  que  é  a  estrutura  narrativa  de  um  *ilme  e,   antes  de  mais,   como  se  constrói   tal  estrutura.  Tudo  depende,  em  primeiro   lugar,   de   se  organizarem  os   planos  do   *ilme  de   forma  a  criarem  o  ponto  de  vista  de  um  eventual  espectador  —  um  ponto  de  vista  que  dispõe  de  certas   informações   e   não   de   outras,   que   conhece   certos   nexos   temporais,  espaciais   e  causais   e  não   outros.   Neste   caso,   trata-­‐se  de  um  ponto   de  vista  que  sabe  que,  antes  da  conversa  entre  as  duas  personagens,   foi  colocada  uma  bomba   no   lugar  onde  estão   as   personagens,   e   sabe  qual   será   o   efeito  de  as  personagens  permanecerem  onde  estão  sem  que  nada  se  altere  nos  próximos  minutos.   Este  espectador  vê  a  mesma  acção  que  veria  no   *ilme  sem  história  (vê   que   as   personagens   estão   a   falar   de   coisas   banais),   mas   essa   acção  adquiriu   agora   um   sentido   narrativo.   Os   acontecimentos   que   aparecem   no  ecrã  passaram  a  ser  uma  série  causal  que  suscita  —  por  si  mesma  e  de  acordo  

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6   François   Truffaut,  Hitchcock  —   diálogo   com   Truffaut,   Lisboa,   Dom   Quixote,   1987,   p.   56  (tradução  ligeiramente  modi*icada);  cf.  também  p.  49  e  p.  84.

com  o   seu  sentido  —  a  expectativa  de  uma  conclusão,  de  um  fecho  que  seja  dado   nos  planos   subsequentes  do   *ilme  (ou,   eventualmente,   na   continuação  do   plano-­‐sequência  único   em   que  o   *ilme   consista).   A   criação   do   ponto   de  vista  do  espectador  estrutura  os  planos  do   *ilme  como  uma  série  causal  que  terá  um  *im  e  que,   chegada  a  este  *im,  terá  contado  uma  história.  Ou,  noutros  termos,  a  criação  desse  ponto  de  vista  confere  aos  planos  do  *ilme  a  estrutura  de   uma   pergunta:   as   personagens   vão   ou   não   vão   escapar   à   explosão   da  bomba?   como   vai   acabar   esta  história?   E   esta   estrutura  é,   por  assim  dizer,  tridimensional:   o   espectador   é   espectador   apenas   na   medida   em   que   sabe  que   “alguém”   lhe   está   a   contar   uma   história  —   que   existe  outro   ponto   de  vista  para  além  do  seu  e  do  das  personagens,  nomeadamente  o  ponto  de  vista  de  um  realizador,  de  um  “narrador”  que  sabe  as  resposta  às  perguntas  que  a  série  causal  dos  acontecimentos  vai  suscitando.     No  cinema  clássico,   sublinhe-­‐se,  este  outro  ponto  de  vista  é  tornado,  o  mais   possível,   implícito   e   invisível:   como   diz   Billy   Wilder,   “o   melhor  realizador   é   aquele   que   não   se   vê”.   Mesmo   quando   o   realizador   cria   uma  enorme   assimetria   entre   o   que   sabem   as   personagens   e   o   que   sabe   o  espectador   (fazendo   o   espectador   saber   mais   do   que   as   personagens,   ou  então   fazendo-­‐o   saber   menos   do   que   elas),   o   realizador   tem   de   se  manter  sempre   um   passo   frente   do   espectador   sem,   no   entanto,   tornar   este   facto  conspícuo   (como   faz   quando,   por   exemplo,   usa   clichés   que   já   toda   a   gente  conhece,   ou   então   quando   abusa   repetidamente   do   mesmo   truque   para  responder   às   perguntas   que   vai   suscitando).   Assim,   são,   de   certa   forma,   os  próprios   planos   que   “narram”   a   história,   mas   isto   signi*ica   apenas   que   a  construção   da   estrutura   narrativa   do   *ilme   inclui   o   arti*ício   de   a   tornar  inaparente   —   e,   com   isso,   de   tornar   apenas   implícita   a   presença   do  realizador/  narrador.7     Para  Hitchcock,  como  vimos,  os  diálogos  são  essencialmente  “mais  um  ruído  entre  outros”  —  o  essencial  é  que  aquilo  que  é  fotografado   tenha  em  si  mesmo  uma  estrutura  narrativa  capaz  de  emocionar  o  espectador  e  mostrar-­‐lhe  qualquer  coisa  nova.  “Show,  don’t  tell”  é  o  principal  lema  do  seu  cinema  —  e,   provavelmente,   de   todo   o   cinema   clássico.   Mas   não   se   pode   deixar   de  sublinhar   que,   mesmo   no   caso   extremo   do   cinema   de   Hitchcock,   isso   não  signi*ica  que  os  diálogos  tenham  de  ser  apenas  ruído.  Vale  para  os  diálogos  —  

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7  Cf.  Helmuth  Karasek,  Billy  Wilder.  Eine  Nahaufnahme,  München,  Heyne  Verlag,   5.  Au*lage,  1992,  p.  230  e  sgs.;  Cameron  Crowe,  Conversations  with  Billy  Wilder,  London,  Faber&  Faber,  1999,  pp.  168-­‐170,  259-­‐260  e  passim.  Exploraremos  esta  ideia  mais  adiante,  na  secção  III.  

inclusive  para  os  diálogos  dos  melhores  *ilmes  de  Hitchcock  —  o  mesmo  que  Billy  Wilder  diz  sobre  o  voice  over:  um  voice  over  é  bom,  serve  o  *ilme  quando  acrescenta  qualquer  coisa  coisa  ao  que  o  espectador  já  está  a  ver.8  Os  diálogos  tornam  (pelo  menos,  podem  tornar)  um  *ilme  mais  rico,  mais  complexo.  Para  a  construção   de  uma  estrutura  narrativa  —  pelo  menos,  no  cinema  clássico  —,   a  única   regra  ou   proibição   é   a  de  que  os   diálogos   se   substituam   a   essa  estrutura,  ou  sejam  eles  a  “contar  a  história”.  Se  pensarmos,  por  exemplo,  no  cinema  de   Ingmar   Bergman,   veri*icamos  que   todos   os   seus   *ilmes   (tirando,  talvez,  O  silêncio,  Persona  e  A  hora  do  lobo)  são,  por  um  lado,  muito  marcados  pelo   diálogo,   até  pelo  monólogo  —  e  disso   depende,   em  larga  escala,   a  sua  riqueza  e  complexidade  —,  mas,   por  outro,   as   palavras   das  personagens  de  Bergman  são  acções.  A  sua  função  não  é  “contar  a  história”:    regra  geral,  estão  subordinadas  a  uma  estrutura  narrativa  e  são  apenas  a  super*ície  de  um  jogo  de  afectos   subterrâneo   entre   as  personagens.   As  palavras   das   personagens  são  acções  que  fazem  este  jogo  progredir  de  forma  narrativa  desde  o  início  do  *ilme  até  ao  seu  *inal.   Tendo   em   vista   estas   re*lexões   prévias,   procuremos,   agora,  sistematizar  de  outra  forma  toda  esta  concepção  de  uma  estrutura  narrativa  cinematográ*ica.   Comecemos   por   uma   breve   análise   dos   pontos-­‐chaves   do  texto   que   continua   a   ser   a   principal   inspiração   do   conceito   de   estrutura  narrativa:  a  Poética,  de  Aristóteles.  Se  a  sua  in*luência  na  história  do  teatro  e  da   literatura   é   inquestionável,   a   sua   in*luência   no   cinema   é,   porventura,  menos  reconhecida.  Mas  a  verdade  é  que  a  lapidar  obra  de  Aristóteles  sobre  a  “arte  poética”  tem  tido   uma  enorme  in*luência  na  história  do   cinema,   desde  os  seus  primórdios  até  hoje  (em  parte,   certamente,  por  via  da  sua  in*luência  no   teatro   e   na   literatura).   Quando   autores   como   Antonioni   ou   Godard  começaram  a  questionar  a  estrutura  narrativa  do   *ilme  de  *icção,   apontaram  baterias  contra  os  princípios  aristotélicos  —  precisamente  por  reconhecerem  que  eram  esses  princípios  que,  implicitamente,  estavam  em  vigor  na  história  do   cinema.   Ainda  hoje,   não  há  praticamente   nenhum  estudo  ou  livro   sobre  

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8   Cf.   Cameron   Crowe,   Conversations   with   Billy   Wilder,   London,   Faber&   Faber,   1999,   pp.  108-­‐109,   e   Charlotte   Chandler,   Nobody’s   Perfect.   Billy   Wilder,   a   personal   biography,   New  York,  Simon&  Schuster,  2002,  pp.  120-­‐121.

“como  escrever  um  *ilme”  que  não  seja  um  desenvolvimento  e  uma  adaptação  da  Poética  de  Aristóteles.9  

 II.  

  Segundo  Aristóteles,  o  efeito  dramático  de  um  poema  (em  particular,  o  efeito   trágico   de   uma   tragédia)   depende   fundamentalmente   de   ele   ter   um  “mito”  ou  uma  história  (mu=qoj)  que  esteja  estruturada  como  o  desenlace  de  um   nó   (Poét.   18.   1455b).   Não   basta,   portanto,   que   haja   uma   história.   É  necessário   que  esta  história  comece  por  apresentar  um  “nó”   (de/sij)  e   que  todos  os  acontecimentos  que  façam  parte  dela  e  sejam  posteriores  a  esse  nó  na  ordem  do  tempo   sejam  o  seu  “desenlace” (lu/sij).  Uma  história  que  não  possa   ser   estruturada   deste   modo   terá   sempre   pouco   ou   nenhum   efeito  dramático.  O  decisivo  está  na  “ligação  das  acções  praticadas”,  no  modo  como  elas  se  conjugam  umas  com  as  outras  —   i.e.,   na  estrutura  narrativa   (cf.  th\n su/nqesin tw½n pragma/twn, h( tw½n pragma/twn su/stasij, Poét.  6.  1450a).   Que   uma   história   tenha   de   começar   por   ter   um   “nó”,   signi*ica,  obviamente,   que   ela   tem   de   começar   por   apresentar   uma   situação  problemática   (um   “con*lito”,   como   muitas   vezes   se   diz).   Já   a*lorámos   este  aspecto  na  secção   anterior:   a   estrutura  narrativa  é,   em  primeiro   lugar,  uma  estrutura  interrogativa.  Uma  história  tem,   no  sentido  próprio  do   termo,  uma  “estrutura   narrativa”   quando   começa   por   apresentar   uma   situação   que  corresponda   a   uma   pergunta:   o   que   vai   acontecer,   agora  que   aconteceu  x?  qual   será   o   “desenlace”   destes   acontecimentos   que   acabam   agora   de   se  constituir  como  um  “nó”?   Esta  estrutura   interrogativa  cria,   como   também  já  dissemos,   o  ponto  de   vista   de   um   espectador   —   o   ponto   de   vista   de   alguém   que   *ica   na  expectativa  de  uma  resposta  à  pergunta  que  é  feita.  O  desenlace  consiste  nas  

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9  Cf.,  por  exemplo,  David  Mamet,  On  Directing  Film,  New  York,  Penguin,  1991;  Robert  McKee,  Story,   London,   Methuen,   1998;   Michael   Thierno,   Aristotle's   Poetics   for   Screenwriters:  Storytelling  Secrets  from  the  Greatest  Mind  in  Western  Civilization,  New  York,  Hyperion,  2002;  Ari  Hiltunen,  Aristotle  in  Hollywood,  Bristol,  Intellect  Books,   2002;  Linda  Aronson,  The  21st  Century  Screenplay,  Crows  Nest,   Allen&  Unwin,  2010.   Cf.   também:  Seymour  Chatman,  Story  and  Discourse,  Narrative  Strucutre   in   Fiction   and   Film,   New  York,   Cornell  University  Press,  1978  e  David  Bordwell,  Narration   in  the  Fiction   Film,  Madison,  Wisconsin  University  Press,  1985.   [No   que  se  segue,   usa-­‐se   o   texto   da   Poética   estabelecido   por   Immanuel  Bekker,   in:  Aristotelis   de  arte  poetica  liber,   Oxford,  Clarendon  Press,  1968;  as   traduções  do  Grego  para  Português  são  da  responsabilidade  do  autor  deste  artigo.]

consequências  do   nó,   e   estas   consequências  não   são   senão   uma   resposta   à  pergunta  implicada  no  nó.   Mas   a   estrutura   “nó   —   desenlace”   introduz,   desde   logo,   outro  elemento   fundamental.   Um   nó   implica  uma  personagem  —   alguém  a   quem  acontece  alguma  coisa.  O  ponto  de  partida  da  concepção  de  uma  história  com  estrutura   narrativa   e  efeito   dramático   é   sempre   a  pergunta:   e   se  houvesse  uma  pessoa  a  quem  acontecesse   qualquer  coisa  que   a   colocasse  em  xeque?    Esta  pessoa,  a  personagem,  terá  de  ter  certas  características  e  não  outras,  e  o  nó   será   mais   ou   menos   dramático   consoante   as   características   do   que  acontece   choquem   mais   ou   menos   com   as   características   da   personagem,  consoante   ponham   mais   ou   menos   em   xeque   as   tábuas   de   valor   que   a  de*inem   e,   em   última   análise,   a   sua   “felicidade   ou   infelicidade”   (Poét.   6.  1450a,   7.   1451a,   18.   1455b).   É  nisto   que   consiste   o   chamado   “con*lito”  de  uma  história.  Ao   contrário  do  que  parecem  supor  os   autores  de  telenovelas,  bem  como  os  autores  dos  tais  *ilmes  que  não  são  mais  do  que  “fotogra*ias  de  pessoas  a  falar”,  não  é  por  duas  pessoas  passarem  longos  minutos  a  discutir  uma  com  a  outra  que  há  con*lito.  Há  con*lito   quando   algo   acontece   que  põe  em  causa  uma  personagem  —  i.e.   quando,   como  diz   Aristóteles,  o  desenlace  do  nó  pode  representar  uma  “transição  da  felicidade  para  a  infelicidade  ou  da  infelicidade  para  a  felicidade”  (Poét.  18.  1455b).     As   características   de  uma  personagem   são,   para  Aristóteles,   os   seus    hábitos,   preferências,   virtudes   e   vícios.   Estas   características   con*luem  naquilo   que,   propriamente   falando,   de*ine   uma   personagem:   o   seu  “carácter”   (hÅqoj),   o   seu  modo   de   ser   e   de   agir,   a   disposição   interior   que  revela   a   sua   “escolha”   (proai¿resij)  mais   profunda  —  ou   seja,   que  revela  aquilo   que   ela   realmente   quer,   os   seus   valores   últimos   (Poét.,   6.   1450b).  Quando  aquilo  que  acontece  a  uma  personagem  afecta  o  seu  carácter  e,   com  isso,   gera   um   nó,   ela   vê-­‐se   forçada   a   agir.   Este   ponto   é   extremamente  importante   para   Aristóteles.   Um   poema   dramático   é   necessariamente   a  “simulação  de  uma  acção”  (mi¿mhsij pra/cewj,  Poét.  6.  1449b,  1450b).10  Até  aqui,   falámos   dos   “acontecimentos”  que   compõem   uma  história,   mas,   para  Aristóteles,   uma   história   só   produz   o   efeito   dramático   desejado   se   for  composta   por   acções  —   se   os   “acontecimentos”   incluídos   nela   (a   começar  pelo   acontecimento   ou   acontecimentos   do   nó)   forem   relevantes   para   uma  

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10  Sobre  a  tradução  de mi¿mhsij por  “simulação”  (e  não  por  “imitação”  qua  “representação”),  cf.  Stephen  Halliwell,  The  Aesthetics  of  Mimesis,  Ancient  Texts  and  Modern  problems,  Princeton  and  Oxford,  Princeton  University  Press,  2002.

personagem  e,  desse  modo,  acabarem  por  ser,  digamo-­‐lo   assim,  subsumidos  por  acções  de  uma  ou  mais   personagens.   (i.e.   por  acontecimentos   causados  por   decisões,   escolhas,   preferências,   propósitos).   Dito   de   outro   modo:   as  consequências  do  nó    —  os  eventos  que  constituem  o   seu  desenlace  —  têm  de  ser   consequências  de  uma  acção  da  personagem  e  têm,   elas  próprias,  de  ser  acções.  É  por  isso  que,  para  Aristóteles,  só  há,  propriamente  falando,  uma  “tragédia”   quando   a   catástrofe   que   se   abate   sobre   uma   personagem   teve  origem  numa  acção  sua  —  ou,  o  que  é  o  mesmo,   numa  hamartia,  num  “erro”  que   ela   cometeu,   num   evento   que   ela   causou   sem   fazer   ideia   das  consequências  terríveis  que  ele  viria  a  ter  (cf.  Poét.  13.  1453a).     Que   uma   personagem   seja   forçada   a   agir   por   se   encontrar   numa  situação  que  a  põe  em  xeque,  signi*ica  também  que  esta  situação  desperta  o  seu  desejo,  pois  ela  age  em  função  do  que  deseja.  Daqui  resulta  a  identi0icação  do  espectador  com  a  personagem  —  a  mimese  como  contágio  afectivo,  como  simulação   do   afecto   do   outro   (neste   caso,   do   afecto   da   personagem).   Este  fenómeno  é  magistralmente  descrito  por  Platão  na  República.  Na  Poética   tem  uma  presença  mais  discreta.   Mas   está  implicitamente  presente  na  teoria  de  Aristóteles   sobre   o   carácter.   É   o   carácter   que  permite   fazer   uma   primeira  distinção   entre   tragédia   e   comédia:   a   tragédia   simula   uma   história   cujas  personagens   são   “melhores   do   que   nós”,   a   comédia,   uma   história   cujas  personagens   são   “piores   do   que   nós”   (Poét.   2.   1448a).   Mas   a   personagem  cómica   não   pode   ter   todos   os   vícios   —   o   que   o   seu   carácter   tem   de  vergonhoso   não   pode   exceder   o   “ridículo”   (Poét.   5.   1449b),   pois,   caso  contrário,  seria  apenas  repugnante;  e  a  personagem  trágica  não  pode  não  ter  defeitos,   pois,   caso  contrário,   a   sua  queda   também   suscitaria   repugnância  e  não  o  efeito  que  é  próprio  da  tragédia,  a  saber,  “medo  e  compaixão”  (Poét.  13.  1452b-­‐1453a).   O   medo   é   sempre   “acerca   do   semelhante”   (periì to\n

oÀmoion, Poét.   13.   1453a)  —  a  acção   trágica   faz-­‐nos   temer,  mas   só   nos   faz  temer  se  sentirmos  que,   de  algum  modo,   aquilo  que  acontece  à  personagem  trágica   também  nos  poderia  acontecer   a   nós;  e  esta   identi0icação  com   ela  é  também   a   condição   de   sentirmos   compaixão   por   ela  —   pois   a   compaixão  consiste   em   sentirmos   a   sua   dor   quando   nos   apercebemos   de   que  ela   não  merece  o  horrível  destino  que  lhe  coube  em  sorte  (cf.  Poét.  13.  1453a).    Esta  identi*icação  com  as  personagens  é  crucial  para  a  e*icácia  de  uma  estrutura  narrativa  construída  a  partir  de  um  nó.  Este  nó  só  se  constitui  como  nó   se   gera   no   espectador   a   expectativa   de   um  desenlace,   isto   é,   se   suscita  

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identi*icação   com   o   desejo   da   personagem   (ou   das   personagens)   e,   desse  modo,   uma  preocupação  com  as  consequências  do  nó  —  ou,  noutros  termos,  com   a   possibilidade   de   a   vida   das   personagens   sofrer   uma   “transição   da  felicidade   para   a   infelicidade”.   Esta   preocupação   está  na   base   da   de*inição  tradicional   da   diferença   entre   tragédia   e   comédia:   uma   tragédia   é   uma  história  que  “acaba  mal”,   uma  comédia  é  uma  história  que  começa  mal,  mas  tem  um  “*inal  feliz”.  Na  verdade,  porém,  esta  de*inição  é  inspirada  na  Poética,  mas  não  é  subscrita  por  Aristóteles.  Segundo  Aristóteles,  a  diferença  entre  a  tragédia  e  a  comédia  reside  na  diferença  entre  a  seriedade  do  que  acontece  a  personagens  “melhores  do  que  nós”  e  a  falta  de  seriedade  do  que  acontece  a  personagens   “piores  do   que  nós”:  na  comédia,  a  acção  não   é  séria,   o  nó  não  chega  a   fazer  sentir   a   possibilidade  de   ter   lugar   uma  verdadeira   “transição  para   a   infelicidade”,   ao   passo   que,   na   tragédia,   a   acção   é  tão   séria  que  só  o  modo   como  a  tragédia  evoca  a  possibilidade  de  ter  lugar  essa  transição  é  já  su*iciente  para  que  sintamos  “medo   e  compaixão”  —  por  exemplo,  o  trágico  no  mito  de  I*igénia  é  a  possibilidade  de  uma  irmã  matar  o  seu  irmão:  o  facto  de  isto  não  chegar  a  acontecer  não  diminui  o  sentimento  trágico  (cf.  Poét.  14.  1454a).11

  Estes   aspectos   permitem-­‐nos   considerar,   agora,   uma   das   traves-­‐mestras   da   concepção   aristotélica   da   estrutura   narrativa:   a   ideia   de   que  o  efeito  dramático   (em  particular,   na   tragédia)  depende  de  a  história  simular  uma  “acção  completa”  e  estar  construída  como  um  “todo”  —  pelo  que  tem  de  ter  “princípio,  meio   e   *im”  (Poét.   7.  1450b).  O  princípio  de  que  aqui   se  trata  não  é  senão  o  nó  da  história.  O  nó  é  um  “princípio”  porque  “não  se  segue  de  outra  coisa  por  necessidade”  (Poét.  7.   1450b),  quer  dizer:  ele  causa  todos  os  demais  acontecimentos  da  história,  e  não  é  causado  por  eles.  Isto  não  impede  que   ele   pressuponha   certas   causas,   mas   estas   estão,   como   Aristóteles   diz,  “fora”  da  acção  (Poét.  18.  1455b,  24.  1460a)  —  podem  ser  evocadas  no  curso  da  acção  (como,  por  exemplo,  a  história  de  Laio  é  evocada  no  Édipo  Rei),  mas  apenas   como   pano   de   fundo   da   acção.   O  meio   consiste   nas   consequências  imediatas  do  princípio:  ele  resulta  do   princípio,   é  causado  por   ele,   mas  não  fecha  ainda  a  acção.  O  *im,  como  é  óbvio,  é  precisamente  o  que  fecha  a  acção,  

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11  Cf.  Stephen  A.  White,   “Aristotle’s  Favorite  Tragedies”  e  Elizabeth  Bel*iore,   “Aristotle   and  Iphigenia”,  in:  Rorty,  A.  O.  (ed.),  Essays  on  Aristotle’s  Poetics,  Princeton,  Princeton  University  Press,   1992,   pp.   221-­‐240  e  pp.   359-­‐377.  Sobre   o   fenómeno   da  identi*icação   (e,   ao  mesmo  tempo,   da  distância)  na  comédia,   cf.   João   Constâncio,   “Notas   sobre   a   *iloso*ia  do   riso   e  da  comédia”,  in:  Crespo,  N.  (org.),  Prontuário  do  Riso,  Lisboa,  tinta-­‐da-­‐china,  2013,  pp.  121-­‐136.

é  a  consequência  do  meio,   é,   em  de*initivo,   o   desenlace  do   nó.   Ou,   como  diz  Aristóteles,  “o  *im,  ao  contrário  [do  princípio],   é  em  si  mesmo  o  que  se  segue  de  outra  coisa  ou  segundo  a  necessidade  ou  de  acordo  com  o  que  acontece  o  mais   das   vezes,   mas   nada   se   segue   a   ele”   (Poét.   7.   1450b).   “Segundo   a  necessidade  ou   de   acordo   com   o   que   acontece  o   mais   das   vezes”   signi*ica,  aqui,   “segundo   a   causalidade”.   Para   Aristóteles,   uma   história   tem   uma  estrutura   narrativa   se,   e  somente  se,   os   eventos   que  a  compõem   estiverem  ligados  por  nexos  causais  —  se  o  *im  for  um  efeito  necessário  ou,  pelo  menos,  verosímil   do   meio,   e   se   o   meio   for   um   efeito   necessário   ou,   pelo   menos,  verosímil  do  princípio.     Se  não  for  assim,   não  há  nem  nó  nem  desenlace:  há  apenas  uma  série  de   “episódios”,   como   não   pode   deixar   de   acontecer   quando   se   tenta,   por  exemplo,  dramatizar  todo  o  mito  de  Hércules  ou  todo  o  mito  de  Teseu  (Poét.  8.  1451a).  Nestes  casos,  as  acções  não  se  seguem  umas  das  outras  “segundo  o  verosímil  ou  o  necessário”  (Poét.  9.  1451b).  Cada  um  dos  momentos  de  uma  história  meramente  episódica  pode  ser,  em  si  mesmo,  verosímil  (i.e.,  pode  ser  algo  que  é  natural  que  aconteça,  algo  que  acontece  “o  mais  das  vezes”),  pode  até   ser   necessário   (i.e.,   pode   ser   algo   que   acontece   sempre   tal   como   é  simulado   no   drama)   —   mas   isso   não   impede   que   essa   história   seja    meramente   episódica.   Pois   a  questão   é  que,  mesmo   sendo   esses  momentos  necessários  ou  verosímeis,   eles  não  resultam  uns  dos  outros.  A   ligação  entre  eles  é  apenas  uma  relação  de   sucessão  e  não  uma  relação  causal.   É  a  ligação  entre  eles  que  tem  de  ser  “verosímil  ou  necessária”,  é  ela  que  tem  de  consistir  num  nexo  de  causalidade.   Caso  contrário,  o  meio  e  o   *im  da  história  não   são  um  desenlace  de  um  nó  inicial.     Sublinhe-­‐se,  porém,  que  isto  não  signi*ica  que,  para  haver  um  nó  e  um  desenlace,   basta   que  se  apresente   uma  série  de   acontecimentos   ligados   por  nexos   causais.   É   necessário   também   que   estes   acontecimentos   tenham   a  estrutura  de  um  princípio,  de  um  meio  e  de  um  *im.  Desde  a  de*inição  do  nó,  a  acção  tem  de  progredir  na  direcção  de  um  0im,  e  este  *im  não  pode  ser  apenas  mais  um  acontecimento  entre  outros:  tem  de  ser  a  consequência  do  princípio  e   do   meio,   o   desenlace   de*initivo   do   nó.   Sem   dúvida   que   ele   pode   deixar  muitas  coisas  em  aberto  (embora  Aristóteles  não  preveja  essa  possibilidade),  mas,   em   todo  o   caso,   tem  de  dar  algum  tipo   de   resposta   à   pergunta   inicial,  tem  de  ter  o   sentido  de  uma  resolução  do  problema  levantado  nesse  nó  que,  no  princípio  da  narrativa,  pôs  a  personagem  (ou  as  personagens)  em  xeque.  É  por   isso   que  Aristóteles   sustenta  que   a   acção   tem   de   ter   uma   “magnitude”,  

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uma  grandeza  *inita  que  possa  ser  dada,  uma  grandeza  que  seja  algo  “fácil  de  ver  no   seu  conjunto”  (eu)su/nopton,  Poét.  7.  1451a).  Do  princípio  ao  *im,  do  nó   até   ao   desenlace   tem   de   se   poder   ver   claramente   (e   ir   mantendo  sinopticamente  na  memória)  a  progressiva  transição  “ou  da  felicidade  para  a  infelicidade  ou  da  infelicidade  para  a  felicidade”  (Poét.  7.  1451a).  O  “*im”  da  acção   dramática   é   qualitativo   (será   sempre   um   *inal   ou   feliz   ou   infeliz,   ou  então  misto,  amargo,   irónico,   etc.).  Mas,  mais  do  que   isso,   ele  é,  na  verdade,  como   o   telos  ou   propósito   de  uma   acção   humana.   Toda   a   acção   dramática  progride  na  direcção  deste  *im  como  se  fosse  uma  realidade  teleológica,  como  se  progredisse  em  direcção  à  realização  de  um  propósito.     É   neste   sentido   que   o   drama   não   pode   deixar   de   ser   uma   “acção  completa”  e  “um  todo”  (Poét.  7.  1450b).  Num  passo  do  capítulo  8,  Aristóteles  parece  querer  dizer  apenas  que  a  narrativa  deve  ser  construída  “em  torno  de  uma  só  acção”  (periì mi¿an pra=cin,  Poét.  8.  1451a),   isto  é,  de  uma  só  acção  decisiva,   que   determine   a   felicidade   ou   infelicidade   das   personagens  envolvidas  (por  exemplo,  “Ulisses  regressa  de  Tróia  a  Ítaca”,  “Édipo  descobre  que  matou  o  pai  e  casou  com  a  mãe”).  Mas  Aristóteles  pretende  dizer  mais  do  que  isso.  A  sua  ideia  é  que  a  narrativa  deve  estar  construída  em  torno  de  uma  só   acção  de  tal   forma  que  todas  as  causas  e   todos   os  efeitos   desta  acção   se  mostrem   como   se   fossem  uma  unidade   indivisível  —  como  se,   em   conjunto  ou  como  partes  de  um  todo,   fossem  “uma  só  acção”  (Poét.  8.  1451a).  Todas  as  partes   da   história   devem   estar   ligadas   por   nexos   causais   e   formar   uma  unidade  com  princípio,  meio  e  *im  (ou  com  um  nó  e  um  desenlace)  —  mas  ao  ponto   de  esta  unidade   fazer  de  cada   uma  das  partes   do   todo   um  momento  intrínseco   de   uma   só   acção:   “movida   ou   retirada   uma   só   das   suas   partes,  também  o  todo  se  move  e  é  destruído”  (Poét.  8.  1451a).  Este  todo  terá  de  ser,  portanto,   “como  um  animal”   (Poét.  23.   1459a),   i.e.   como  um  organismo,  um  todo  que  (supostamente)  não  tem  partes  supér*luas,  pois  todas  elas  têm  uma  função   orgânica   e   a   privação   de   qualquer   uma   delas   perturba   o  funcionamento  do  todo.12     Estas   formulações   podem,   porventura,   sugerir   que   Aristóteles  recomenda  a  ausência  de  qualquer  surpresa  desde  o  princípio   até  ao   *im  da  

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12  Sobre   este   tema   (e   os   problemas   nele   implicados),  cf.  Rüdiger  Bittner,   “One  Action”,   in:  Rorty,   A.  O.   (ed.),   Essays  on   Aristotle’s  Poetics,  Princeton,   Princeton  University   Press,  1992,  pp.   97-­‐110;   cf.   também:   Stephen   Halliwell,   The   Poetics   of   Aristotle,   translation   and  commentary,   London,   Duckworth,   1987,   pp.   101-­‐105.   Sobre   os   pressupostos   teleológicos  desta   concepção   (e   sobre   toda   a   ontologia   pressuposta   na   Poética),   cf.   Marta   Husain,  Ontology  and  the  Art  of  Tragedy.  An  Approach  to  Aristotle’s  Poetics,  New  York,  SUNY,  2002.

acção   dramática.   Mas   não   é,   de   todo   isso,   que   ele   tem   em   mente.   Pelo  contrário.  Como  a  acção  dramática  tem  de  afectar  e  emocionar  (e,  no  caso  da  tragédia,   tem  de   suscitar  “medo   e  compaixão”,   “terror  e  piedade”),   todos  os  seus  momentos   devem   acontecer   “uns   por   causa   dos   outros”  mas   sempre  “contra   a   expectativa”   (para\ th\n do/can di' aÃllhla,   Poét.   9.   1452a).  Como   veremos  melhor   adiante,   para  que   isto   seja  possível  —  para  que  um  acontecimento   possa   ser   percebido   como   sendo,   ao   mesmo   tempo,  necessário   e   inesperado   —,   é   preciso   que   a   causalidade   possa   ser  estabelecida   em   retrospectiva.   É   isto   que   está,   no   fundo,   implicado   no  conceito   aristotélico   de   “peripécia”.   Uma   peripécia   é   uma   inversão   da  situação,  uma  “mudança    das  acções  para  o  seu  contrário”  (Poét.  11.  1452a).  A   peripécia   surpreende   —   surpreende   a   personagem   e   surpreende   o  espectador.  Mas,  se  ela  é  também  um  acontecimento  claramente  apresentado  como   “necessário   ou   verosímil”,   então   no   próprio   momento   em   que   é  revelada   como   surpresa   a  mente   do   espectador   começa   a   aperceber-­‐se  de  que   isso   que  a  surpreende  é  um  efeito  (necessário  ou  verosímil)  dos  outros  acontecimentos   que   precedem   a   peripécia.   Em   retrospectiva,   o   espectador  reconstrói   o   acontecimento   surpreendente   como   um   acontecimento  necessário.     Mas  o   efeito  deste  tipo  de  estrutura  —  o  efeito  de  uma  estrutura  que  suscita   uma   permanente   surpresa   acompanhada   de   um   permanente  sentimento   de   necessidade   (ou,   dito   de   outro   modo,   acompanhada   do  sentimento  de  que  as  coisas  não  podiam,   realmente,  ser  de  outra  maneira  e  de   que,   portanto,   a   unidade   do   todo   é   indivisível)  —   não   é   apenas   o   de  prender  o  espectador  ao  desenrolar  do  drama  e  de  o  emocionar.    O  seu  efeito  é  também  o  de  demonstrar  uma   ideia  ou,  pelo  menos,  de  fazer  parecer  que  o  desenrolar  da  narrativa  demonstra  uma  ideia.  Toda  a  narrativa  expressa  uma  ideia,   ou   até   uma   multiplicidade   de   ideias   (tem   um   sentido,   ou   uma  multiplicidade  de  sentidos).  Numa  narrativa   elementar,  ou  mesmo  no  mero  início   de   uma   narrativa   elementar   —   como   a   das   duas   pessoas   que  conversam  uma  com  a  outra  enquanto,  debaixo  da  mesa,  uma  bomba-­‐relógio  está   a   poucos  minutos  de  explodir  —,   os   acontecimentos   e   acções   que   são  narrados   (ou   que   se   vêem   no   palco   ou   no   ecrã)   talvez   exprimam   apenas,  como   ideia,   a   própria   situação   na   sua   particularidade:   por   exemplo,   “estas  duas  pessoas  estão  em  perigo,  pois  a  bomba-­‐relógio  está  prestes  a  explodir”.  E,   se   esta   narrativa   progride   “segundo   o   verosímil   ou   o   necessário”,   ela  funciona,   de   facto,   como   uma  demonstração   dessa   ideia,   pois   faz   pensar   (e  

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sentir):   “estas  duas   pessoas   estão   realmente  em   perigo,   e  se  não   param  de  falar  de   coisas   banais,   então   necessariamente   ou   com  toda   a   verosimilhança  irão  pelos  ares”.     Para  Aristóteles,  porém,   o  ponto  decisivo  é  que,   a  partir  do  momento  em   que,   deste   modo,   a   *icção   liga   acções   segundo   a   necessidade   ou   a  verosimilhança,   torna-­‐se   capaz   de   revelar   tipos   de   situações   e   tipos   de  personagens  —  isto  é,  de  exprimir  o  que,  em  geral,  é  necessário  ou  verosímil  que  certos   tipos  de  pessoas  façam  em  certos   tipos  de  situações  e  o  que,   em  geral,   são   as   consequências   necessárias   ou   verosímeis   destas   suas   acções.  Assim,  a  ideia  que  é  expressa  tem  o  carácter  (ou  passa  por  ter  o   carácter)  de  uma  “verdade  universal”,  exprime  (ou,  pelo  menos,  pode  pretender  exprimir)  uma  parte  das  “coisas  universais”  (ta\ kaqo/lou):  “o  universal  signi*ica  que,  sendo   alguém   de   um   certo   modo,   lhe   acontece,   segundo   o   verosímil   ou  o  necessário,  dizer  ou  fazer  coisas  que  também  são  de  um  certo  modo”  (Poét.  9.  1051b).   A   revelação   de   tipos   numa   série   de   acções   ligadas   por   nexos   de  causalidade  funciona  como   a  demonstração  de  um  “universal”  —  sobretudo  se   esses   nexos   fazem  dessa   série   uma   só   acção   com   princípio,  meio   e   *im.  Pois,  neste  caso,  o  todo  constitui-­‐se  (e  foi  concebido  de  forma  a  constituir-­‐se)  como  uma  espécie  de  paradigma  de  um  estado  de  coisas  universal.   Aristóteles   ilustra   o   que   quer  dizer   fazendo   uma   comparação   com  a  historiogra*ia.  A  historiogra*ia,  ao  contrário  da  “poesia”  (i.e.  da  *icção),  tem  de  se  ater  ao  “particular”:  não  pode  fazer  mais  do  que  descrever,  por  exemplo,  “o  que   Alcibíades   fez   e   o   que   lhe   aconteceu”   (Poét.   9.   1451b),   as   acções  particulares   que   ele   efectivamente   praticou   e   as   situações   particulares   em  que   as   praticou   —   mesmo   que   essas   acções   e   estas   situações   não  demonstrem  nada  de  universal   e  a  sua  narração  não  possa  ligá-­‐las  senão  de  forma  contingente.  Um  historiador  pode  tentar  dar  uma  estrutura  narrativa  à  sua  descrição  dos   factos,  mas  os  factos  nunca  se  ajustam  perfeitamente  a  tal  estrutura   (nunca   perfazem  uma   só  acção   com  princípio,   meio   e   *im).   Como  diz  Aristóteles,   o  historiador  está  limitado  pela  obrigação  de  dizer  apenas  “o  que  aconteceu”,  ao  passo  que  o  poeta  tem  liberdade  para  dizer  “o  que  poderia  acontecer”   (Poét.   9.   1451b).   Ou   seja:   só   o   poeta   (ou   o   dramaturgo,   o  romancista,  o  argumentista,   o   realizador,  etc.)  pode  construir  uma  narrativa  da  qual  esteja  inteiramente  ausente  a  contingência  própria  do  particular,  pois  só  ele  pode  dar  um  propósito  a  todas  as  partes  do  todo  narrativo,  só  ele  pode  fazer   que   todas   as   partes   deste   todo   estejam   ligadas   pela   necessidade   ou  verosimilhança  de  forma  a  servirem  a  expressão  de  uma  mesma  ideia,  só  ele  

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pode  compor  um  todo  cuja  causalidade  imanente  dirija  toda  a  acção  para  um  mesmo  *im.  Este  *im  é,  como  vimos,  um  *im  que  desenlaça  o  nó  inicial  e  que,  com   isso,   responde   à   pergunta   implicada   neste   nó.   Mas   compreendemos  agora   que   isto   signi*ica   que,   segundo   Aristóteles,   o   desenlace   é   como   a  conclusão   de   um   silogismo:   ao   aduzir   o   último   nexo   causal   (o   último  momento  de  necessidade  ou  verosimilhança)  numa  série  de  eventos   ligados  por   necessidade   ou   verosimilhança,   o   desenlace   retira   uma   conclusão   das  premissas  que  este  nó  estabelecia.  Desta  forma,  o  todo  narrativo  funciona,  de  facto,   como   a  demonstração   de   uma   (suposta)  verdade   universal,   ou   como  um   paradigma   de   um   estado   de   coisas   universal   (i.e.   como   se   fosse   ele  próprio  um  universal,  e  não  um  particular).  É  por  isso  que,  como  Aristóteles  diz,  a  *icção  é  algo  “mais  *ilosó*ico  e  mais  sério”  do  que  a  historiogra*ia  (Poét.  9.  1451b).   Note-­‐se   que   não   é   de   forma   alguma   arbitrário   que   se   fale   aqui   de  “*icção”.  Do  ponto  de  vista  de  Aristóteles,   a  mimese  não   tem  como  *inalidade  a   “correcção”   (o)rqo/thj,   Poét.   25.   1460b):   como   vimos,   trata-­‐se   nela   de  simular  o  que  poderia  acontecer  (não  de  descrever  o  que  de  facto  aconteceu),  mas,   além  disso,   nem   sequer  se   devem  excluir   do   seu  âmbito   o   impossível  (to\ a)du/naton)  e  o  inexplicável  (to\ aÃlogon),  o  que  não  pode  acontecer  e  o  que   não   se   pode   explicar   racionalmente   (Poét.   24-­‐25).   Na   tragédia,   na  comédia   ou  na  epopeia  —  como   em   todas   as   outras   formas   de  mimese  —,  “deve  preferir-­‐se  o  que  é  impossível  mas  verosímil  ao  que  é  possível  mas  não  persuade”   (Poét.   24.   1460a).   Na   *icção,   o   verosímil   é   o   que   é   natural   que  aconteça  dada   a  situação   e   as  personagens,   é  o  que   aconteceria  “o  mais  das  vezes”  se  tais  personagens  existissem  e  se  encontrassem  numa  dada  situação.  O  que  persuade  são,   portanto,   os  nexos  de   causalidade   entre   os  eventos  que  são   simulados,  e  é  aí  —  na   ligação   entre  esses  eventos  —  que  tem  de  estar  presente  o  verosímil  ou  (o  que  é  ainda  melhor)  o  necessário.    Mas  os  eventos  eles  próprios  podem  não  ter  nada  de  verosímil,  podem  até  ser  impossíveis  e  inexplicáveis.  É  por  isso  que  não  há  nada  censurável  no  facto  de  as  tragédias,  as  comédias  e  as  epopeias    fazerem  uso   do  “maravilhoso”  (to\ qaumasto/n,  Poét.  24.  1460a):  o  facto  de,  por  exemplo,  a  história  do  Édipo  Rei  pressupor  a  existência   de   uma   Es*inge,   os   poderes   divinatórios   de   Tirésias,   a  infalibilidade  do  oráculo  de  Delfos  e  a  praga  de  Apolo  não  é  censurável  e  não  impede  esta  tragédia  de  Sófocles  de  ser  maximamente  persuasiva.  Tais  coisas  são  muito  provavelmente  tão   falsas  e  impossíveis  como  Xenófones  disse  que  

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são  (Poét.  25.  1460b),  mas  isso  não  tira  verosimilhança  e  poder  de  persuasão  à   tragédia   de   Sófocles.   E   não   tira   por   duas   razões:   (a)   a   primeira   é   que  Sófocles   cria   um   universo   internamente   coerente   —   de   tal   forma   que   os  nexos   de   causalidade  que   ligam   os   eventos   da  peça   são   verosímeis   dada   a  natureza   desse   universo;   (b)   na  medida   em   que   a   revelação   não   apenas   do  carácter   mas   também   do   destino   de   Édipo   resulta   do   modo   como   os  sucessivos  nexos  de  causalidade   acabam  por  produzir   “uma   só   acção”,   essa  revelação  torna  verosímil  e  persuasiva  as  ideias  que  a  peça  exprime:  “o  mais  sábio  de  todos  os  mortais  era  tão  ignorante  que,  por  ignorância,  matou  o  pai  e  casou  com  a  mãe”,  “o  saber  humano  é  tão  nulo  que  mesmo  o  mais  sábio  dos  mortais  não   sabe  realmente  nada”,   “a  glória  e  a  felicidade   são   tão   precárias  que  num  só  dia  se  podem  esfumar,  sobretudo  porque  dependem  de  um  saber  meramente  humano”.             Este   último   aspecto   é   decisivo   para   que   se   compreenda   o   conceito  aristotélico  de  mimese.  Que  a  *inalidade  da  mimese  nunca  seja  a  “correcção”,  implica  que  (ao  contrário  do  que  comummente  se  supõe)  ela  não  consista  no  fazer   cópias   ou   representações   do   sensível.   Sem   dúvida   que,   segundo  Aristóteles,   a  mimese   é   sempre   uma   construção   de   imagens   de   coisas   e   o  poeta   é   “como   o   pintor”   porque,   como   ele,   é   um   “fazedor   de  imagens”   (ei¹konopoio/j,   Poét.   25.   1460b).   Mas   estas   imagens   são   *icções,  apenas   simulam  um   outro  mundo   possível   (um  mundo   onde   são   possíveis  muitas   coisas   que,   no   mundo   real   e   sensível,   são   impossíveis).   Elas   dizem  “isto  é  aquilo”  (por  exemplo,  “isto  que  vês  desenhado  no  papel  é  um  cadáver”,  “é   uma   corça”,   “é   uma   Es*inge”,   etc.)   e,   dessa   forma,   fazem   “aprender   e  raciocinar  sobre  o  que  é  cada  coisa”  (Poét.  4.  1448b).  Só  que  o  essencial  nelas  não  é  a  sua  eventual  semelhança  sensível  com  certas  coisas:  o  essencial  nelas  é,  antes,  a  sua  capacidade  para  simular  o  efeito  que   essas  coisas  teriam  sobre  nós   se   estivessem   realmente   presentes   e,   portanto,   para   nos   fazer  experimentar  esse   efeito   e   re0lectir   sobre   ele.   A   música,   por   exemplo,   é  uma  forma  de  mimese,  e  na  verdade  uma  mimese  de  certos  afectos  ou  caracteres,  mas   as   suas   “imagens”  são   sons   e   não   têm,   portanto,   qualquer   semelhança  sensível  com  o  objecto  da  sua  mimese.  A  música,  segundo  Aristóteles,  simula  certos  afectos  e  contagia-­‐nos  com  esses  afectos.  Este  contágio,  este  efeito  que  a  música  tem  em  nós   (e  que  é  o   efeito   da  sua   simulação  do   efeito   de  certos  afectos)   é   a   sua   essência   e   *inalidade   enquanto   realidade   mimética   —   e,  contudo,  não  tem  nada  que  ver  com  a  mera  semelhança  de  uma  cópia,  de  uma  

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representação,   ou  de  uma   imitação.13   No   caso  das  artes  visuais,   Aristóteles  parece   crer   que   tem  de   haver   uma   semelhança,   mas   esta   semelhança   está  longe  de  ter  de  ser  realista  e  está  longe  de  ter  de  ser  “correcta”:  ela  pode  ser  incorrecta  desde  que  tenha  o   efeito  mimético,   ela  pode  também  incluir  uma  larga  margem   de   idealização   desde  que   tenha   esse  efeito   (“talvez   não   seja  possível   que   existam   pessoas   como   aquelas   que   Zêuxis   pintou,   mas   seria  melhor  que   existissem,   pois   há  que  elevar  o  modelo”,   Poét.   25.   1461b).   E   o  mesmo   vale   para   as   artes   poéticas,   em   particular   para   a   tragédia,   para   a  comédia  e  para  a  epopeia:  “é  um  erro  menor  se  o  poeta  não  sabia  que  a  corça  não  tem  cornos  do  que  se  fez  a  imagem  dela  de  um  modo  não-­‐mimético.  Além  disso,  se  a  acusação   é  que  não  escreveu  a  verdade,   talvez  se  deva  responder  como  Sófocles,   que  disse   que   ele  próprio   retratou  as   pessoas   como   deviam  ser  e  Eurípides   como   elas  são”  (Poét.   25.   1460b).   Se   pensarmos  no   caso  de  Aristófanes,   percebemos   facilmente   que   a   comédia   grega   nada   tinha   de  realista   ou  de  meramente  *igurativo   e,   pelo  contrário,   vivia  da   fantasia  e  da  criação   de   mundos   paralelos.   O   essencial   para   Aristófanes   —   como   para  todos  os  dramaturgos  gregos,  incluindo  Eurípides  (apesar  daquela  a*irmação  atribuída  a  Sófocles)  —  era,  de  facto,   a  mimese  como  simulação  do  efeito  de  certos   caracteres   e   situações   (ainda   que   fantasiosas   ou   irreais)   e,   através  disso,   como   provocação   de   um   determinado   efeito   sobre   o   espectador:   o  efeito   do   cómico   (o   riso),   mas   também   o   efeito   de   fazer   re*lectir   sobre   o  humano,  sobre  o  divino,  sobre  a  política,  sobre  a  natureza,  etc..     E  isto  traz-­‐nos  de  volta  à  tese  de  que,  ao  dar  uma  estrutura  narrativa  à  sua  história,  o  dramaturgo  (ou,  em  geral,  o  poeta)  exprime  algo  de  universal  e  como   que  demonstra   uma   verdade  universal.   Para   Aristóteles,   a  mimese   é  sempre   sobre   “universais”:   seja   ela  mais   simples   ou   mais   complexa,   mais  correcta  ou  mais   incorrecta  do  ponto  de  vista  da  semelhança  com  o  sensível,  mais   fantasiosa   ou   mais   realista,   mais   analógica   ou  mais   *igurativa,   mais  acabada   ou  mais   diagramática,   o   que   ela   faz   sempre  é   evocar   a   forma   das  coisas,   o   que   elas   são   “em   geral”.   Como   dissemos,   uma   realidade  mimética  simula  o  efeito  que  uma  coisa  teria  sobre  nós  se  estivesse  presente  —  e  isto  quer  dizer  que  simula  o  efeito  que  essa  coisa  tem  “necessariamente  ou  o  mais  das  vezes”,  o  efeito  que  é  próprio  dessa  coisa,  o  efeito  que  ela  tem  “em  geral”,  o   efeito   que   a   sua   natureza   interna   (a   sua   “essência”   ou   “substância”)  

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13  Cf.  Aristóteles,  Política  8.  5;  cf.  Stephen  Halliwell,  The  Aesthetics  of  Mimesis,  Ancient  Texts  and  Modern  Problems,  Princeton  and  Oxford,  Princeton  University  Press,  2002,  pp.  158-­‐164.

determina  que  ela  tenha.14   É  por   isso   que  a   semelhança  está   longe  de  ser   o  essencial   na  mimese:   um   diagrama   pode   ser   mais   “mimético”   do   que  uma  pintura   realista,   e   (de  acordo   com  o   que   vimos)   a   música   é   uma   forma  de  mimese   que   proporciona   um   acesso   insubstituível   à   essência   dos   afectos  humanos  sem  fazer  uso  de  qualquer  semelhança.   Daqui   resulta   um   outro   aspecto   que   importa   sublinhar.   A   mimese  artística,   segundo   Aristóteles,   causa   sempre   determinadas   emoções.   Uma  tragédia,   por   exemplo,   só   é  uma   tragédia   se   causar   “medo   e  compaixão”.   O  desenho   de   um   cadáver   num   livro   de   anatomia   não   pretende   despertar  qualquer  emoção,  mas  o  desenho  de  um  cadáver  nos  Desastres  da  Guerra   de  Goya  pretende  (e  consegue).  Ora,  segundo  Aristóteles,  este  efeito  afectivo  das  obras  de  arte  é,  ao  mesmo  tempo,  cognitivo.15  Tal  como  o  desenho  no  livro  de  anatomia,   o   desenho   de  Goya  diz:   “isto   é   aquilo”,   “isto   é   um   cadáver”,   “um  cadáver   é   assim”.   O   desenho   de   Goya   tem,   aliás,   um   efeito   cognitivo   mais  poderoso   do   que   o   desenho   do   livro   de   anatomia   (por   muito   exacto   ou  correcto  que  este  seja).  O  desenho  de  Goya  não  diz  só:  “um  cadáver  é  assim”;  diz  também:  “a  morte  é  assim”,  “o  efeito  da  guerra  é  este”,  “os  seres  humanos  fazem   estas   coisas,   comportam-­‐se   desta   forma”.   A   arte   emociona,   mas   as  emoções  que  desperta  incluem  (ou  talvez   se  possa  dizer  que  são)  re*lexões,  persuadem,   ensinam,   fazem   “raciocinar   sobre  o   que   é   cada   coisa”   (Poét.   4.  1448b)  —  sobre  o  “universal”,   sobre  o  que  é,  em  geral,  o  humano,  o  divino,  a  política,  a  natureza,  etc..   É   em   parte   por   isso   que,   no   caso   da   arte   dramática,   a   clareza   e   a  inteligibilidade  são  tão  importantes  para  Aristóteles.  Os  nexos  de  causalidade  têm   de   ser   claros,   a   ordem   cronológica   e   a   ordem   causal   têm   de   ser  inteligíveis,   a   estrutura   narrativa   tem   de   dar   unidade   à   peça  dramática  —  pois,  caso  contrário,  a  ideia  não  é  expressa,  o  universal  não  é  evocado,  a  obra  não  faz  raciocinar  e  não  persuade  (como  um  silogismo  persuade).16       É  neste  quadro  que  se  deve  considerar  um  último  ponto  (que  é  crucial  para   a   re*lexão   sobre   a   estrutura   narrativa   no   cinema).   No   capítulo   6   da  

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14  Cf.  Paul  Woodruff,  “Aristotle  on  Mimēsis”,  in:  Rorty,  A.  O.  (ed.),  Essays  on  Aristotle’s  Poetics,  Princeton,  Princeton  University  Press,  1992,  pp.  73-­‐95,  p.  91:  “M  is  a  mimema  of  O  just   in  case  M  has  an  effect  that  is  proper  to  O”.  Cf.  Aristóteles,  Física  2.  8.

15  Stephen  Halliwell,  The  Aesthetics  of  Mimesis,  Ancient  Texts  and  Modern  Problems,  Princeton  and  Oxford,  Princeton  University  Press,  2002,  pp.  177-­‐206.  

16   Cf.   Stephen   Halliwell,   The   Poetics   of   Aristotle,   translation   and   commentary,   London,  Duckworth,  1987,  p.  100.  

Poética,   Aristóteles  declara  que,  na  tragédia,  “o  mais   importante  de   tudo   é  a  ligação  das  acções  praticadas   [i.e.   a  estrutura]”,  que  “sem  acção   não  haveria  tragédia,  mas  sem  caracteres  poderia  haver”  e  que  “o  princípio  e  como  que  a  alma  da  tragédia  é  a  história,  em  segundo   lugar  vêm  os   caracteres”  (Poét.   6.  1450a).   Este   primado   da   história   sobre   os   caracteres   é   altamente  problemático,   tanto   mais   que,   no   capítulo   2,   é   o   próprio   Aristóteles   que  sublinha   que  a  tragédia   (tal   como   a  comédia)   faz   a  mimese  de  pessoas  que  agem.17  Provavelmente,   o   que  Aristóteles   quer  dizer   é   que   não   pode  haver  tragédia  sem  personagens,  mas  a  clari*icação  psicológica  dos  seus  caracteres  não  é  tão  importante  como  as  acções  que  elas  praticam  —  e,  na  verdade,  nem  uma  coisa  nem  outra  são   tão   importantes  como   a  estrutura  narrativa,   i.e.,   a  composição  de  um  nó  e  de  um  desenlace,  a  de*inição  de  um  princípio,   de  um  meio  e  de  um  *im,  a  construção  do  todo  como  “uma  só  acção”.  No  Édipo  Rei  de  Sófocles,   por   exemplo,   Édipo   é  magistralmente   caracterizado   como   alguém  que  quer  saber  a  verdade  a  qualquer  preço,  mas  esta  caracterização  é  dada  através   das   acções   de   Édipo   e   serve   a   construção   da   dimensão   simbólica  desta  personagem:  Édipo   é,  de  facto,   “o   mais  sábio  dos  mortais”  (é  isto   que  ele  é  enquanto  “tipo”).  O  decisivo  não  é,   portanto,  o  carácter  da  personagem,  mas   sim   o   que  ela   simboliza.   E  o   que   ela,   em   última   análise,   simboliza   (“o  mais  sábio  dos  mortais  não  sabe  realmente  nada”,  “a  sua  felicidade  pode  ser  destruída  num  só  dia”)  só  é  revelado  porque  toda  a  peça  está  construída  “em  torno  de  uma  só  acção”:  o  inquérito  à  morte  de  Laio  como  o  processo  em  que  Édipo  descobre  que  matou  o  seu  pai  e  casou  com  a  sua  mãe.  Note-­‐se,  porém,  como   a   revelação   da   dimensão   simbólica   da   personagem   é   a   revelação   do  “universal”  que  a  peça  exprime.  Talvez  possa  haver  tragédia  apenas  com  um  mínimo   de  revelação  do   carácter,   mas  não  há  tragédia   (e  não  há,   em  geral,  mimese  dramática)  apenas  com  história  e  sem  personagem.                

*

  Quando   re*lectimos   *iloso*icamente   sobre  a  história  do   cinema,   uma  das  principais  questões  que  podemos  e  devemos  levantar  é  a  de  saber  como  foi  que  o  cinema,  ao  longo  da  sua  história,  adaptou  (pelo  menos  no  essencial)  o   modelo   aristotélico   e   criou   uma   estrutura   narrativa   especi*icamente  

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17   Cf.   Stephen   Halliwell,   The   Poetics   of   Aristotle,   translation   and   commentary,   London,  Duckworth,  1987,  p.  95.

cinematográ*ica.   O   que   signi*ica   “contar   uma   história”   com   os   meios  eminentemente  visuais  que  são   especí*icos   do   cinema?   Como  é  possível  um  “discurso   narrativo”   que   assente   em   imagens   em   movimento   e   não   na  palavra?   No  espaço  limitado  deste  artigo,  não  é  possível  fazer  mais  do  que  dar  alguns  exemplos  de  respostas  a  estas  perguntas.  Para  este  efeito,  centrar-­‐me-­‐ei   no   cinema   clássico   americano   e,   em   particular,   na   cinematogra*ia  americana  de  dois  eminentes  imigrantes:  Ernst  Lubitsch  e  Billy  Wilder.  

III.

  Comecemos  pela  ideia  de  que  a  de*inição  de  um  nó  deve  criar  o  ponto  de  vista  de  um  espectador  que  se  identi*ique  com  uma  personagem  (ou  com  várias   personagens)  —   ou,   noutros   termos,   a   ideia  de  que   é   indispensável  que   o   princípio   de   uma   mimese   dramática   seja   um   nó   que   contagie  emocionalmente  um  eventual  espectador  e  o   faça,  por  assim  dizer,  participar  do  drama  (seja  este  drama  uma  tragédia,  uma  comédia  ou  até  uma  epopeia).  Vimos,   logo   no   início,   como   o   suspense   hitchcockiano   é   precisamente   uma  forma   de   criar   este   ponto   de   vista   do   espectador   e   provocar   a   sua  identi*icação   com   as   personagens   do   *ilme.   Vimos   também   que   uma   das  técnicas   desenvolvidas   por   Hitchcock   para   criar   suspense   e   identi*icação  consiste  em  gerar  uma  assimetria  entre  o  que  sabem  as  personagens  e  o  que  sabe   o   espectador.   Hitchcock   faz   o   espectador   saber   mais   do   que   as  personagens  —  fá-­‐lo  saber  que  as  personagens  estão  em  perigo  sem  saberem  que  estão   em  perigo  —,  e  isto  fá-­‐lo   temer  pelas  personagens,  quase  como  se  temesse  pela  sua  própria  vida.     Ora,   este   expediente   de   fazer   o   espectador   saber   mais   do   que   as  personagens  é  expressamente  apresentado  por  Billy  Wilder  como  a  condição  fundamental  da  criação,  não  do  efeito  de  suspense,  mas  do  efeito  do  cómico  no  cinema:

  “O   cómico   é   o   saber   prévio   do   espectador.   Ele   sabe   mais   do   que   os  protagonistas   do   *ilme,   porque   o   *ilme   o   iniciou   nos   seus   segredos.   Esta  superioridade   confere-­‐lhe   um   sentimento  de   prazer.   Mas  é   igualmente   importante  que  o  espectador  seja   apenas  parcialmente   iniciado  nos  truques  do  realizador,   que  não   saiba   tudo   de   antemão.   O   espectador   sabe   geralmente   mais   do   que   as  personagens  na   tela,  mas  menos  do  que  o  realizador.  Este   deve  saber  providenciar  

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sempre  mais  um  volte-­‐face  e  preparar  este  volte-­‐face  como  surpresa.  À  comédia  do  saber-­‐mais,   do   ser   iniciado,   pela   qual   o   espectador   se   torna   cúmplice   do   *ilme,  segue-­‐se  a  comédia  da  curiosidade,  pela  qual  o  espectador  é  surpreendido”.18

  Este   expediente   do   saber-­‐mais   —   primeiro   da   iniciação   e   da  cumplicidade,  depois  da  surpresa  —  é,   porém,  o  mesmo  que  Wilder  usa  nas  suas   melhores   tragédias,   Double   Indemnity   e   Sunset   Boulevard.   Ambos   os  *ilmes   começam   com   um   prólogo   que   revela   uma   parte   do   *inal   do   *ilme   e  deixa  claro  que  este  *inal  será  trágico.  Em  Double  Indemnity,  Neff  encontra-­‐se  já   mortalmente   ferido   e   diz   para   o   dictafone   que   matou   Dietrichson   por  dinheiro   e  por  uma  mulher,  e  que  não   *icou  nem  com  o  dinheiro  nem  com  a  mulher;   em  Sunset  Boulevard,   Gillis   comenta,   em  voice   over,   o  momento   em  que  os   jornalistas   chegam  a  casa  de  Norma  Desmond  e  em  que  os  polícias   o  retiram  da  piscina,  já  morto.  Em  ambos  os  casos,  a  história  é  depois  contada  num   0lashback,   até  voltar  ao  momento   inicial  (e  em  ambos  os  casos  o   clímax  ocorre  depois  do   regresso  a  este  momento  em  que  o   *ilme  havia  começado:  Neff  morre  agarrado  a  Keyes,  Norma  Desmond  desce  a  escadaria  da  sua  casa  e,   completamente  demente,   diz   estar  pronta  para  o   seu  grande-­‐plano).   Este  expediente  não  retira  o  sentido  do  trágico  a  estes  *ilmes  e,  pelo  contrário,  cria  este  sentido  —  pois,  no  curso  da  acção,  enquanto  as  personagens  fazem  tudo  para   satisfazer   os   seus   desejos   e   alcançar   os   seus   propósitos,   nós,   os  espectadores,   sabemos   que   estes   esforços   são   vãos   e   sentimos   por   elas   o  medo   e  a   compaixão   que  são   próprios  da  tragédia.   (O  sentimento   trágico   é  mais   intenso  em  Sunset  Boulevard,  pois,   aqui,  estamos  certos,   desde  o   início,  de  que  Gillis  irá  mesmo  morrer).       Este  tipo  de  estrutura  é,  na  verdade,  tão  antiga  como  a  tragédia  grega.  Não   só   o   espectador   grego   conhecia   de   antemão   os   mitos   que   eram  representados  na  tragédia,   como  em  Eurípides   encontramos  exactamente  o  expediente  de  começar  por  enunciar,   em  esboço,   o   *inal:  o   seu  Hipólito,   por  exemplo,  começa  com  um  prólogo  profético  no  qual  a  deusa  Afrodite  anuncia  que   Fedra   e   Hipólito   irão   morrer.   Eurípides   certamente   sabia   que   este  procedimento  não  retira  expectativa  nem   suspense  ao  drama  trágico,   pois   o  anúncio  parcial  do  que  irá  acontecer  faz,  desde  logo,  perguntar  como  e  porquê  isso   irá  acontecer  e  gera,   deste  modo,   compaixão   trágica  pelas   personagens  

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18  Cf.  Helmuth  Karasek,  Billy  Wilder.  Eine  Nahaufnahme,  München,  Heyne  Verlag,  5.  Au*lage,  1992,   p.  230.   [A   tradução   do   Alemão  para  Português  é  da  responsabilidade  do   autor   deste  artigo].

que   têm   o   destino   traçado.19   Note-­‐se   também   que   este   tipo   de   não-­‐linearidade   não   choca   de   forma   alguma   com   os   princípios   aristotélicos:   a  peça  preferida  de  Aristóteles,  o  Édipo  Rei  de  Sófocles,   é  toda  ela  construída  como  uma  série  de  quasi-­‐0lashbacks  (ancorados  num  momento  presente  em  que  Édipo   já  matou  o   pai  e  já  casou  com  a  mãe  sem  o  saber).  Esta  forma  de  estruturar  a  narrativa  não  viola  o  princípio  fundamental  da  clareza:  a  ordem  temporal   e   a   ordem   causal   não   são   directamente   apresentadas   de   forma  linear,  mas  a  peça  dá  todos  os  elementos  para  que  esta  linearidade  possa  ser  reconstruída  e  seja  inteligível.  O  mesmo  acontece  com  o  Hipólito  de  Eurípides  e  com  Sunset  Boulevard.     O   modo   como   Billy   Wilder   usa   o   princípio   do   saber-­‐mais,   quer   na  comédia,   quer  na   tragédia,   é,   na  verdade,   um  desenvolvimento  do  chamado  “Lubitsch  touch”.  Vejamos  o  que  isto  signi*ica.   Primeiro,  é  preciso  assinalar  que,  quando  falamos  do  “Lubitsch  touch”,  referimo-­‐nos  a  algo  que,  muito  provavelmente,  é  inde*inível.  Como  Wilder  diz  inúmeras  vezes:  se  Lubitsch  tinha  uma  fórmula  para  criar  o  seu  touch,  levou-­‐a   certamente   consigo   para   a   campa.   Há,   por   isso,   quem   se   contente   com  enunciar  diferentes   formas  do  “Lubitsch  touch”,  sem  pretender  determinar  o  que   há   de   comum   a   todas   elas.20   Apesar   disso,   Billy   Wilder   esforçou-­‐se  muitas   vezes,   nas   suas   entrevistas   e   biogra*ias   autorizadas,   por   dizer  exactamente  o  que  há  de  comum  a  essas  formas  e  o  que  de*ine,  no  essencial,  o   modo   de   pensar   e   *ilmar   de   Lubitsch.   (Quer   na   prática   de   escrever   e  realizar  *ilmes,  quer  na  exposição  teórica,  não  há,  de  facto,  melhor  intérprete  da  magia  de  Lubitsch  do  que  o  seu  discípulo,  Wilder;  não  por  acaso,  ao   longo  de   toda   a   sua   carreira   teve   no   seu   escritório   um   letreiro   com   a   pergunta:  “How  would  Lubitsch  do   it?”).   O  “Lubitsch  touch”  é,   em  primeiro   lugar,  uma  paixão   pelo   indirecto   e   um   uso   essencialmente   visual   do   innuendo   (num  sentido   muito   alargado   do   termo,   que   vai   muito   para   além   do   innuendo  sexual,   mas   que,   muitas   vezes,   o   inclui).   A   forma   de   Lubitsch   proceder  consiste   em   criar  uma  elipse   e   uma  não-­‐explicação   que,   no   entanto,   sugere  indirectamente   uma   explicação   e,   sobretudo,   leva   o   espectador   a  encontrar  ele   próprio   uma   explicação   para   o   que   acaba   de   ver,   ou   simplesmente   a  estabelecer  uma  determinada  conexão  causal,  espacial  ou  temporal.  Não  raro,  

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19  Cf.  C.  A.  E.  Lusching,  Time  Holds  the  Mirror.  A  Study  of  Knowledge  in  Euripides’  Hippolytus,  Leiden/  New  York,  E.J.  Brill,  1988,  pp.  93-­‐111.

20  Cf.  Herman  G.  Weinberg,  The  Lubitsch  Touch,  New  York,  Dutton,  1971,  p.  26  e  sgs..

são   as   próprias   personagens   que   percebem   tal   conexão   com   base   em  elementos  exclusivamente  visuais,  por  exemplo  a  partir  da  percepção  de  um  objecto  que  se  torna  signi*icativo:  e,  nestes  casos,  o  touch  consiste  no  facto  de  o  espectador  perceber  que  a  personagem  percebeu  essa  conexão,  no  facto  de  ele   ser   levado   a   ler  a  mente  da  personagem,   a   adivinhar   por   si   próprio  —  apenas  com  base  em  elementos  visuais  —  o  que  a  personagem  está  a  pensar  e  a   sentir.21   Estes  momentos   são   sempre  surpreendentes  —  e   são  mágicos  porque  o  seu  sentido  se  forma  por  sugestão,   indirectamente,  porque  algo  se  explica   por   si   próprio   e,   portanto,   com   estilo,   de  uma   forma  nova,   original,  inesperada.  Mas  esta  explicação  —   o   sentido  que  se  forma  em   resultado  da  elipse   —   é   também   uma   surpresa   que   foi   preparada.   Como   Wilder   diz  sempre:   em  vez   de  mostrar   directamente  ao   espectador   que   2+2=  4   (como  fazem  quase   todos   os   realizadores),   Lubitsch  mostra  apenas  o  2+2   e   leva  o  espectador  a  encontrar  por  si   próprio,  na  sua  imaginação,   o   resultado  desta  soma:   4.   Este   4   é   uma   interpretação   do   espectador,   existe   apenas   na   sua  fantasia  e,   no  entanto,  é  a  própria  substância  de  uma  cena,  em  última  análise  a  substância  de  todo  o  *ilme.22     A  forma  mais  conhecido  do  “Lubitsch  touch”  (muitas  vezes  confundida  com   a   totalidade   deste   touch)   é   uma   “super-­‐piada”   (“Superjoke”)   que   tem  geralmente   três   momentos,   três   actos.   No   primeiro   acto,   o   espectador   vê  acontecer  qualquer  coisa  sem  fazer  ideia  de  que  ela   terá  uma  consequência,  de   que   será   relevante   no   seguimento   do   *ilme.   Isso   que   ele   vê   tem   um  signi*icado   e  uma  razão  de  ser  imediatas,  mas  o  que  ele  não   sabe  é  que  isso  esconde   também  uma  outra  história,  um  outro  “plot-­‐point”.  Como  diz  Wilder,  a   subtileza   lubitschiana  está   precisamente  nesta   arte   de   esconder   os   “plot-­‐points”,   ou   seja,   em   prepará-­‐los   sem   dar   a   conhecer   que   eles   estão   a   ser  

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21   Veja-­‐se,   por   exemplo,   o   modo   como,   em   Trouble   in   Paradise,   o   cinzeiro   em   forma   de  gôndola   leva   a   personagem   que   foi   roubada   em   Veneza   a   reconhecer   o   ladrão   —   e,  sobretudo,  como  o  espectador  é  levado  a  fazer  a  mesma  associação  (gôndola  —  Veneza)  e  a  perceber  que  a  personagem  percebeu   que  está  perante  a  pessoa  que  o   assaltou.  Também  os  *ilmes   de   Wilder   contêm   inúmeros   momentos   deste   tipo,   em   que   um   objecto   se   torna  signi*icativo   para   uma   personagem   e   para   o   espectador:  por   exemplo,   o   espelho   em   The  Apartment.  Cf.  Cameron  Crowe,  Conversations  with  Billy  Wilder,  London,  Faber&  Faber,  1999,  pp.  19,  59,  63.

22  Cf.  Helmuth  Karasek,  Billy  Wilder.  Eine  Nahaufnahme,  München,  Heyne  Verlag,  5.  Au*lage,  1992,   pp.   165-­‐175,   176-­‐183,   285-­‐288;   Cameron   Crowe,   Conversations   with   Billy   Wilder,  London,  Faber&  Faber,   1999,  pp.  17-­‐19,  32-­‐33,  112-­‐113,  135,  168-­‐170,   192,  357;  Charlotte  Chandler,  Nobody’s  Perfect.  Billy  Wilder,   a  personal  biography,   New  York,  Simon&  Schuster,  2002,   pp.  76-­‐83,  87-­‐91,  179;  Robert  Horton,  Billy  Wilder.   Interviews,   Jackson,  University  of  Mississipi  Press,  2001,  pp.  9,  72,  91,  135-­‐136,  155-­‐156,  186.

preparados,  em  fazer  o  espectador  esticar  a  língua  e  engolir  um  comprimido  (uma   informação   relevante,   um   “plot-­‐point”)  sem  que  se  aperceba  de  que  é  isso  que   está   a   acontecer.23  No   segundo   acto,   a   acção  repete-­‐se,   geralmente  com  uma  pequena  variação.  Esta  repetição  é  já  um  momento  cómico.  Pois  nós  sabemos  que  as  pessoas  se  repetem,   que  o  carácter  de  um  indivíduo   tende  a  ser   imutável   ou  quase   imutável,   e   por   isso   sorrimos   (se   é   que   não   rimos)  sempre  que  observamos  as  pessoas  a  serem  movidas  pelo  seu  carácter  como  se  este  fosse  uma  espécie  de  mecanismo  que  elas  não  controlam.24  E  isto  quer  dizer  também  que  este  segundo  acto   implica  já  uma  primeira  elipse,   é  já  um  primeiro   momento   de   comunicação   indirecta   e   de   sugestão:   o   espectador  infere  (sem  que  nada  lhe  seja  dito  ou  explicado)  que  a  personagem  se  repete  porque  o   seu  carácter  a  impele  a  repetir-­‐se  e,   enquanto  sorri,   infere   também  qualquer   coisa   sobre   o   natureza   desse   carácter,   sobre   o   modo   de   ser  especí*ico   da   personagem.   O   terceiro   acto   é   o   momento   da   surpresa,   o  momento   em   que   surge   a   super-­‐piada   que   os   dois   primeiros   actos  prepararam.  Aqui,   parte  da  acção  repete-­‐se  de  novo,  mas  agora  de  um  modo  que  é  totalmente  inesperado  —  e  que  é  totalmente  inesperado  porque  revela  uma  nova  faceta  ou  dimensão  da  personagem,  mostra  algo  do   seu  carácter  e  das   suas   motivações   que   estava   escondido   sob   uma   aparência,   algo   que  contradiz   o   que   o   espectador   havia   inferido   antes   e   que,   no   entanto,   é  verosímil  e  até   necessário  em  função  dos  elementos  que  haviam  sido  semeados  nos  momentos  anteriores  do  0ilme.   A   surpresa  é  um  4  que  é  sugerido   por  um  2+2   (ou   um   3+1   ou   um   1+1+2)   e   que,   por   isso,   parece   absolutamente  necessário.     O   exemplo   mais   conhecido   de   uma   super-­‐piada   lubitschiana   é   o  chapéu   de   Ninotchka.   No   primeiro   acto,   Ninotchka,   a   funcionária   soviética  que  se  desloca  a  Paris  para   *inalizar  a  venda  das  jóias  de  uma  Grã-­‐Duquesa,  vê  um  chapéu  de  senhora  bastante  exótico,  que  está  exposto  numa  montra  do  hall  do  hotel  de  luxo  em  que  *icou  instalada.  A  sua  reacção   é  dizer  ao  comité  de   três   colegas   seus   que   uma   civilização   que   permite   às   mulheres  

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Publicado  em  Grilo,  J.M./  Aparício,  I.,  Cinema  e  Filoso0ia.  Compêndio,  Lisboa,  Colibri,  2013,  pp.  117-­‐140

23   Cameron  Crowe,   Conversations  with   Billy  Wilder,   London,   Faber&   Faber,   1999,   pp.   17,  259-­‐260;  Wilder  resume  esta  ideia  num  dos  princípios  que,  segundo  diz,  todo  o  argumentista  deve  seguir:  “The  more  subtle  and  elegant  you  are  in  hiding  your  plot-­‐points,  the  better  you  are  as  a  writer”.  

24  Cf.  Cameron  Crowe,  Conversations  with   Billy  Wilder,   London,  Faber&  Faber,  1999,  p.  135:  “That  was   Lubitsch’s   idea,   to   say  two,   and  then  say   two  again,   after  a   little  pause...   and  the  audience  will  make  four  out  of  it.  One  and  one  and  one  and  one  is   four.  Or  one  and  three  is  four.  We  are  often  repeating  ourselves.  He  told  me  that;  he  just  said  it”.    

aperaltarem-­‐se   com   chapéus   tão   ridículos   como   este   (e,   subentende-­‐se,   tão  caros)  tem   certamente  os   dias   contados.   Esta  reacção  vem  na  sequência  de  outras   reacções   similares   aos   costumes   e   singularidades   do   capitalismo  parisiense,   e   portanto   nada   faz   suspeitar   que   tal   reacção   esconda   uma  história.  No   segundo  acto,  Ninotchka  passa  pelo  chapéu  e   limita-­‐se  a  acenar  com  a  cabeça  em  sinal  de  desaprovação.  No  terceiro  acto,  estando  já  em  curso  o  processo  de  ela  se  apaixonar  por  Leo  (que  representa  o  espírito  romântico  parisiense   e   que,   na   verdade,   é   pouco   mais   do   que   um   gigolo),   Ninotchka  fecha  todas  as  portas  da  sua  suite  de  hotel,  certi*ica-­‐se  de  que  ninguém  a  está  a  ver,   abre  uma  gaveta  que  estava   fechada  à  chave,   e   tira  de   dentro   dela   o  famoso  chapéu,  que  depois  põe  na  cabeça.   Sem  que  uma  palavra  seja  dita,   o  espectador  infere  (essencialmente  através  da  imaginação,  mas   também  com  um  mínimo   de   conceptualização)   três   coisas   fundamentais:   (a)   Ninotchka  está   realmente   apaixonada,   (b)   nunca   voltará   a   ser   a   fanática   funcionária  soviética   que   era   antes,   (c)   algo   tem   de   estar  muito   errado   com  o   sistema  soviético  se  leva  uma  mulher  apaixonada  a  ter  vergonha  de  se  aperaltar  com  um  chapéu.25  O  momento  em  que  Ninotchka,   ajoelhada  junto  à  gaveta,  põe  o  chapéu  na  cabeça  e  depois  se  olha  ao  espelho  é  o  típico  momento  de  poesia  visual   dos   *ilmes   de   Lubitsch   (e   de  Wilder):   enquanto   o   *ilme   “respira”,   o  espectador   não   está   apenas   a   ver   qualquer   coisa   —   está   a   contemplar   a  transformação  de  uma  pessoa  e  a  construir,   na  sua  fantasia,  uma  imagem  do  que  se  passa  no  interior  dessa  pessoa.26         Este  exemplo   contém,   de   facto,   os   elementos   essenciais   do   “Lubitsch  touch”.   Lubitsch   faz   do   espectador  seu  cúmplice  —  pois   fá-­‐lo   participar  da  acção  como  intérprete.  E,  aqui,  encontramos  já  um  conjunto  de  paralelos  com  o  que  vimos  acerca  da  Poética  de  Aristóteles.  Primeiro,  os  *ilmes  de  Lubitsch,  como  os  de  Wilder,  emocionam  e  criam  identi*icação  afectiva,  mas  uma  parte  

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25  Cf.  Helmuth  Karasek,  Billy  Wilder.  Eine  Nahaufnahme,  München,  Heyne  Verlag,  5.  Au*lage,  1992,  pp.  176-­‐183;  Cameron  Crowe,  Conversations  with  Billy  Wilder,  London,  Faber&  Faber,  1999,  pp.  32-­‐33.  Um  dos  elementos   interessantes  deste  episódio  é  que  o  chapéu  é  realmente  ridículo:   a   conversão   de   Ninotchka   aos   sentimentos   privados   e,   em   particular,   à   paixão  romântica  é  uma  conversão   ao   ridículo  e  uma  celebração  de  tudo  aquilo  que  a  vida   tem  de  mais   inconsequente,   de   mais   lúdico   e   meramente   prazenteiro:   anedotas   parvas,   música,  dança,  champagne,  é  à  força  libertadora  de  tudo   isto  que  Ninotchka  se  converte  e  é  tudo  isto  que  está  condensado  na  *igura  do  chapéu.  Cf.  James  Harvey,  Romantic  Comedy  in  Hollywood.  From  Lubitsch  to  Sturges,  New  York,  Da  Capo  Press,  1998,  pp.  383-­‐392.  

26  Como  diz  Wilder,  o  importante  não  é  tanto  *ilmar  um  ser  humano  real,  quanto   *ilmar  uma  personagem  a  transformar-­‐se,  a  “tornar-­‐se  alguém”:  “just  the  becoming,  that  is  the  important  thing”.  Cf.  Cameron  Crowe,  Conversations  with   Billy  Wilder,  London,  Faber&  Faber,   1999,  p.  273;  sobre  a  importância  dos  momentos  de  pura  “poesia  visual”,  cf.  p.  130.  

desta  emoção   é  o  prazer  cognitivo  de  ser  levado  a  inferir,  pensar,   raciocinar,  construir   sentido.  A   diferença  em  relação   ao   que  vimos  acerca  da  Poética   é  apenas   que,   no   caso   de   Lubitsch,   como   no   caso   de   Wilder,   este   prazer  cognitivo   é  especi*icamente   cinematográ*ico,   pois   assenta   no   que  é  visto  —  nas   elipses   e   innuendos  que   são   construídos   nos   próprios   planos   do   *ilme.  Regra  geral,  note-­‐se,   a  montagem  tem  aqui   um  papel  crucial:  é  a  montagem  (por  vezes  o  movimento  de  câmara)  que  dirige  o  olhar  de  umas  coisas  para  as  outras,  que  faz  os  destaques  e  cria  os  pontos  de  relevância  nos  quais  assenta  a  construção  do  innuendo  (e  isto  de  um  modo  radicalmente  distinto  do  que  se  pode  fazer  no  teatro  ou  na  literatura).27     Em  segundo  lugar,  podemos  facilmente  perceber  que  as  inferências,  as  interpretações   e   fantasias   do   espectador   dizem   respeito   a   nexos   de  causalidade  e  geram  nele  a  convicção  de  que  tudo  o  que  está  a  ver  acontece  segundo   a  verosimilhança  ou  até   a  necessidade.   Estes  nexos  de   causalidade  passam  essencialmente  pela  personagem  e  o  seu  carácter.  O  que  o  espectador  infere  no  exemplo  do  chapéu  de  Ninotchka  são  as  causas  do  comportamento  visível   da   personagem   —   o   que   a   move,   as   suas   motivações,   os   seus  propósitos   conscientes   e,   eventualmente,   as   suas   pulsões   inconscientes.   E,  nos  *ilmes  de  Lubitsch  e  Wilder,  o  propósito  desta  revelação  do  carácter  não  é   eminentemente  psicológica:   a   sua   principal   função   é   simbólica,   tal   como  vimos  que   também  Aristóteles   recomenda.  Ninotchka   representa   o   sistema  soviético   e  a  sua  transformação  representa  a  conversão  a  um  ponto  de  vista  crítico   do   sistema   soviético.   Este   sistema   é   criticado,   não   através   de  prelecções  inseridas  nos  diálogos  ou  num  voice  over,  mas  através  da  acção  —  através  do  modo   como   a  situação   afecta  as  personagens,   do   modo   como   as  suas  reacções  revelam  o  que  mais  intimamente  as  move  e,  por  *im,  do  modo  como  estas  acções  adquirem  um  signi*icado  simbólico.  O  que  é  extraordinário  em  Lubitsch  e  Wilder  —  mas,  provavelmente,  em   todos   os  grandes    autores  de   cinema   de   *icção,   embora   de  muitas   formas   diferentes   —   é   o   facto   de  conseguirem   comunicar   ideias   complexas   de   um   modo   especi*icamente  cinematográ*ico.  Como  diz  Wilder,  um  realizador  não  pode  viver  de  conceitos  

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27  Cf.  Robert  Horton,  Billy  Wilder.  Interviews,  Jackson,  University  of  Mississipi  Press,  2001,  p.119:  “[...]  in  making  pictures  [...]  it’s  not  how  you  are  photographing.  It  is  the  juxtaposition  of  the   various   shots   that   you   make.   It   is   the   scissors   that   make   the   pictures,   the   cut.   [...].  Battleship  Potemkin,  that  is  movies.  It’s  what   follows  what.  This  is  where  we  have   it  all  over  the  theater”.  

abstractos,   “tem  de  fotografar  algo  de  concreto”28  —  mas,  por  outro   lado,   a  grande   lição   do   “Lubitsch   touch”   é   que   é   possível   “fotografar   algo   de  concreto”  e,  com  isso,  fotografar  algo  de  “universal”:  por  exemplo,  uma  crítica  do  comunismo  soviético,  uma  crítica  do  nazismo,  uma  crítica  do  capitalismo.       É   importante   sublinhar   que   o   “Lubitsch   touch”   tem,   de   facto,   várias  formas   (que   não   iremos,   contudo,   analisar   aqui)   e,   sobretudo,   que   estas  diferentes  formas   fazem  o   espectador  somar  2+2,  não  apenas  a  respeito  das  motivações   das   personagens,   mas   também   a   respeito   das   situações,   das  localizações   espaciais   e   da   ordem   do   tempo.   Praticamente   toda   a   ligação  entre  um  plano  e  outro  —  e,   sobretudo,  entre  um  momento  decisivo  e  outro  —  obriga  o  espectador  a   inferir  conexões,   a  estabelecer  nexos   causais  entre  esses  planos.  É  assim,  e  só  assim,  que  se  tornam  claras  para  o  espectador  não  apenas  as  motivações  das  personagens,  mas  também  as   relações  espaciais  e  temporais  que  são   relevantes  para  que  se  compreendam  essas  motivações  e  as  situações  em  que  elas  ocorrem.     Este   procedimento   não   passa  apenas   pela   criação   de   um   saber-­‐mais  do   espectador   em  relação   às   personagens.   Passa   também   pela   criação,   por  vezes,  de  um  saber-­‐o-­‐mesmo  (como  no  “tratamento  subjectivo”  de  Hitchcock,  i.e.  na  técnica  que  consiste  em  construir  uma  sucessão  de  planos  objectivos  e  subjectivos  que  faz  o  espectador  inferir  o  ponto  de  vista  de  uma  personagem  e,  por  assim  dizer,  colocar-­‐se  nesse  ponto  de  vista),29  e  passa  também,  outras  vezes,  pela  criação  de  um  saber-­‐menos.  Esta  última  técnica  é  particularmente  importante   em   Lubitsch.   A   sua   forma  mais   usual   é   a   elipse   temporal,   que  obriga  o   espectador  a   reconstruir   por   si   próprio  não  só   a   ordem  do   tempo,  mas   também   a   da   causalidade   (o   espectador   preenche,   na   sua   fantasia,   o  buraco   temporal   entre   dois   planos   e   infere   por   si   próprio   as   causas   dos  eventos   que   lhe   são   dados   a   ver   agora,   no   momento   presente).   Muito  frequentemente,  Lubitsch  faz-­‐nos  ver  uma  personagem  a  olhar  para  algo  que  está  fora  de  campo  (criando,  assim,  em  nós  uma  expectativa)  e  só  depois  nos  deixa   ver   aquilo   para   que   a   personagem   está   a   olhar;   não   menos  frequentemente,  as  personagens  de  Lubitsch  parecem-­‐nos  sair  de  campo  na  direcção   errada,   tal   como  nos   parecem  muitas  vezes  desorientadas   quando,  na   verdade,   já   sabem   —   e   só   elas   sabem   —   para   onde   se   dirigem;   e,  

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28  Cf.  Cameron  Crowe,  Conversations  with  Billy  Wilder,  London,  Faber&  Faber,  1999,  p.  189.

29   Para   uma   excelente   descrição   desta   técnica,   sobretudo   em   Rear   Window,   cf.   Steven  DeRosa,   Writing   with   Hitchcock.   The   Collaboration   of   Alfred   Hitchcock   and   John   Michael  Hayes,  New  York/  London,  Faber&  Faber,  2001.  

sobretudo,   com   recurso   a   estas   e   outras   técnicas,   Lubitsch   faz-­‐nos   sempre  sentir  que,  embora  o  destino  último  das  suas  personagens  possa  ser  certo,   o  seu  destino   imediato  nunca  é.30  O  próprio   episódio  do   chapéu  de  Ninotchka  depende   de   uma   subtil   mistura   entre   o   saber-­‐menos   e   o   saber-­‐mais   do  espectador:  depois  de  sermos  surpreendidos  com  o  facto  de  ela  ter  o  chapéu  escondido  dentro  da  gaveta,  *icamos  com  a  sensação  —  inteiramente  correcta  —  de  a  conhecermos  melhor  do  que  ela  se  conhece  a  si  própria,  a  sensação  de  podermos   lançar   sobre   ela   um   olhar   que,   em   retrospectiva,   compreende  claramente  as  motivações   de  todas  as   suas  acções   desde  o   início   do   *ilme,   e  que  as   compreende  melhor   do   que  ela  as  pode   compreender  (e,   sobretudo,  muito  melhor  do  que  ela  as  podia  compreender  quando  as  praticou).   Ora,  o  que  resulta  de  todos  estes  pontos  é  que  o  “Lubitsch  touch”  não  é  apenas  uma   forma  ou  até  uma  multiplicidade  de   formas  de  construir  partes  ou  episódios  de  um  *ilme:  é  uma  forma  de  construir  todo  o  0ilme.  O  “Lubitsch  touch”  está  na  própria  estrutura  narrativa  do  *ilme,  é  uma  forma  de  dar  uma  estrutura  narrativa  a  um  *ilme.  Podemos  dividir  esta  tese  em  três  sub-­‐teses:  (a)  num  *ilme  de  Lubitsch,  como  num  *ilme  de  Wilder,  a  causalidade  nunca  é  apenas   linear   (o   plano   1  mostra   a   causa  do   que  acontece  no   plano   2,   esta  mostra  a  causa   do   que  acontece  no   plano   3,   etc.),   pois   a  parte  decisiva   dos  nexos   de   causalidade   vai   sendo   construída   em   retrospectiva   na   fantasia   do  espectador;   (b)   é   isso   que   determina   que   os   *ilmes   de   Lubitsch   e   Wilder  obedeçam   ao   princípio   aristotélico   de  que,   numa  obra   dramática,   todas   as  coisas  devem  acontecer   “umas  por  causa  das  outras”,  mas  sempre  “contra  a  expectativa”   (para\ th\n do/can di' aÃllhla,   Poét.   9.   1452a):   todas   as  cenas   do   *ilme   incluem   um   elemento   de   surpresa,  mas,   na  medida   em   que  esta   surpresa   é   sempre   preparada   por   “plot-­‐points”   que   vão   sendo  inconspicuamente   semeados   ao   longo   do   *ilme,   a   sua   ocorrência  acaba   por  gerar  um  sentimento  de  necessidade  (o  espectador  soma  2+2  e  conclui  que  o  resultado   é   necessariamente   4);   (c)   sendo   assim,   é   com   recurso   à   sugestão  indirecta  de  nexos  causais  e,  portanto,  com  recurso  ao  expediente  de  levar  o  espectador   a   reconstituir   a   causalidade   na   sua   imaginação   que   Lubitsch   e  Wilder  dão  aos   seus  *ilmes  a  unidade  de  uma  estrutura  narrativa,   i.e.   fazem  do  todo  uma  só  acção  com  princípio,  meio  e  0im.    

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30  Cf.   James  Harvey,  Romantic  Comedy  in  Hollywood.  From  Lubitsch  to  Sturges,  New  York,  Da  Capo  Press,  1998,  pp.  13-­‐16,  388,  482-­‐484.  

  Wilder   exprime  o   princípio   aristotélico   da   unidade   de  acção   de  uma  forma  muito  clara:  “if  you  have  a  problem  with  the  third  act,  the  real  problem  is   in  the  *irst  act”.31  Um  *ilme  de  Wilder   tem  sempre  três  actos  principais.  O  guião  de  Sunset  Boulevard,  por  exemplo,  está  dividido  em  cinco   “sequências”  —  ou  “actos”  no   sentido   que   este  termo   tem   geralmente  no   teatro  —,  mas  estas  cinco  partes  são  subdivisões  do  princípio,  do  meio  e  do  *im,  i.e.,  dos  três  actos  principais  (a  sequência  A  corresponde  ao  princípio,  as  sequências  B,  C  e  D  ao  meio,   e  a  sequência  E,  ao  *im).32  E  o  essencial,  para  Wilder,  é  a  unidade  destes   três  actos  principais  —   ou  seja,   o   essencial   é  que  o  meio   e  o   *im   do  *ilme  funcionem  realmente  como  um  desenlace  do  nó  do  princípio.  “Se  tens  um  problema  com  o  terceiro  acto,  o  verdadeiro  problema  está  no  primeiro  acto”,  quer   dizer:   se   tens   um   problema   com   o   terceiro   acto,   isso   é   porque   o   nó  inicial   não   foi   adequadamente   construído   e,   portanto,   não   se   consegue  conceber   agora   um   *inal   que  seja  a   consequência   necessária  do   princípio,   o  desenlace   inevitável   do   nó   inicial.   Portanto,   a   solução   wilderiana   para   um  problema  com  a  escrita  de  um  terceiro  acto  é  sempre  o  princípio  do  “Lubitsch  touch”:   semear  “plot-­‐points”  no  primeiro   acto,   não   deixar   perceber   que  eles  escondem   uma   história,   depois   desenvolver   esta   história,   fazer   os   “plot-­‐points”   terem   uma   consequência   no   segundo   acto   e,   por   *im,   uma  consequência  no   terceiro  acto.   Não  há  praticamente  nenhum  elemento  num  *ilme  de  Billy  Wilder  que  não   tenha  pelo  menos  uma  consequência  ulterior,  que  não  acabe  por  produzir  uma  reconstrução  retrospectiva  da  causalidade  e,  deste  modo,   por  contribuir  para  o   sentimento   de  necessidade  e   de  unidade  que  se  forma  no  *inal.     Por  isso,  o  primeiro  acto  de  um  *ilme  de  Wilder  é  geralmente  longo.  O  nó  inicial  resulta  de  um  conjunto  de  sub-­‐nós  que  progressivamente  o  de*inem  e   que   inconspicuamente   contêm   já   uma   parte   das   sementes   que   serão  colhidas  no  segundo  e  no  terceiro  acto.  Por  exemplo,  em  Sunset  Boulevard,    o  longo   0lashback  que  ocupa  quase  todo  o   *ilme  (e  que  é  lançado  pelo  prólogo)  

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31  Cf.  Cameron  Crowe,  Conversations  with  Billy  Wilder,  London,  Faber&  Faber,  1999,  pp.  170,  239,  309,  357.

32  Cf.  Billy  Wilder,  Sunset   Boulevard.  The  complete  screenplay  with  an  introduction  by  Jeffrey  Mayers,   Berkeley/  Los  Angeles,  University  of  California  Press,  1999.   Sendo  mais  preciso,  o  terceiro  acto  principal  (o   *im)  só  têm   início  mais  ou  menos   a  meio   da  sequência  E  (na  cena  E-­‐28),  e  como  é  usual  nos  *ilmes  de  Wilder  há  ainda  um   twist  neste  terceiro  acto  —  quando  parece  que  o  *ilme  vai  já  acabar,  vem  então  o  verdadeiro  *inal  (o  *ilme  não  acaba  com  a  morte  de  Gillis,  mas  sim  com  a  loucura  de  Norma  Desmond).  Cf.  Cameron  Crowe,  Conversations  with  Billy  Wilder,  London,  Faber&  Faber,  1999,  p.  170.

começa  com  uma  pequena  história,   ou  sub-­‐nó:  Gillis   precisa  de  300  dólares  para  pagar   o   leasing  do   carro.   Isto   acaba  por  levá-­‐lo  a  ter  uma  reunião  com  um  produtor,   a   quem   tenta   vender   um   guião.   Betty   Schaefer   aparece   aqui  como  a  leitora  de  guiões  que  aconselha  o  produtor  a  recusar  o  guião  de  Gillis.  Nada  indicia  que  ela  reaparecerá  no  *ilme  e  terá  um  dos  papéis  principais  no  desenvolvimento   da   história.   O   carro   escondido   na   garagem,   o   enterro   do  chimpanzé   e   o   guião   sobre   Salomé   são   outros   sub-­‐nós   que   levam   Gillis   a  conhecer   Norma   Desmond   e   a   *icar   instalado   em   caso   dela.   Todas   estas  pequenas   histórias   criam   uma   determinada   atmosfera,   introduzem   as  personagens   e   fazem-­‐nos   entrar   no  mundo   de   Hollywood,   mas,   sobretudo,  co-­‐de*inem  o  nó  principal  (a  relação  entre  Gillis  e  Norma  como  uma  relação  de  exploração  mútua)  e   terão  consequências  na  continuação  do  *ilme.  Sobre  os   *ilmes   de   Billy   Wilder   (e   certamente   sobre   os   melhores   *ilmes   de  Lubitsch),  pode,   de  facto,  dizer-­‐se  que,   “movida  ou  retirada  uma  só  das  suas  partes,  também  o  todo  se  move  e  é  destruído”  (Poét.  8.  1451a).33

  Obviamente,   a  de*inição   do   nó   inicial   é   também   decisiva   para   que  o  segundo  acto  tenha  a  força  dramática  que  lhe  é  devida.  Como  diz  Wilder,  não  basta  pensar   um   primeiro   e   um   terceiro   acto:   o   princípio   do   *ilme   tem  de  construir  um  “con*lito  que  possas  manter  no  meio  [do  *ilme]”.34  Este  con*lito  tem  de  progredir  até   ter  um  primeiro  desenlace  que  torne  mais   agudo   o   nó  inicial  e  que,  dessa  forma,   lance  o  terceiro  acto:  “o  evento  que  ocorre  quando  cai   a   cortina   do   segundo   acto   espoleta   o   *im   do   *ilme”.35   O   *im,   segundo  Wilder,  deve  “crescer,  crescer,  crescer  em  ritmo  e  acção  até  ao  último  evento  e   depois   —   é   isso”,   o   *ilme   termina   no   clímax,   na   última   consequência   e  desenlace  do  nó  inicial.36     A   conformidade  entre  toda  esta  concepção  da  estrutura  narrativa  e  o  que   vimos   sobre   a   Poética   de   Aristóteles   é   clara.   Que   o   “Lubitsch   touch”  permitiu   a   Billy   Wilder   desenvolver   uma   forma   especi*icamente  cinematográ*ica   de  construir  uma  estrutura   narrativa,   é  também  claro.  Que  

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33  Cf.  Cameron  Crowe,  Conversations  with  Billy  Wilder,  London,  Faber&  Faber,  1999,  p.  239:  “I  always  need  a  plot.  I  think  I  need  a  plot,  because  I  don’t   like  pictures  where  you  can  take  half  an  hour  out  and  it’s  only  better”.    

34  Cf.  Cameron  Crowe,  Conversations  with  Billy  Wilder,  London,  Faber&  Faber,  1999,  p.  136.

35  Cf.  Cameron  Crowe,  Conversations  with  Billy  Wilder,  London,  Faber&  Faber,  1999,  pp.  170,  357.  

36  Cf.  Cameron  Crowe,  Conversations  with  Billy  Wilder,  London,  Faber&  Faber,  1999,  pp.  170,  357.

também  no   cinema,   e  em  particular  no  cinema  de  Lubitsch  e  Wilder,   “contar  uma  história”  pode  ser  muito  mais  do  que  dar  a  conhecer  essa  história,  não  é  menos   claro.   Todo   o   *ilme   de   Lubitsch   ou   Wilder   usa   a   sua   estrutura  narrativa   para   exprimir   ideias   complexas   ou,   como   diz   Wilder,   para  dramatizar   um  tema.37  Como   Aristóteles   ensinou,   esta   dramatização   (i.e.,   a  criação   de   um   nó   e  de   um   desenlace,   ou  de   uma  só   acção   que,   com   o   seu  princípio,   meio   e   *im,   exprime   uma   ideia)   é   uma   forma   de   mimese   que  permite   pensar   um   “universal”   e,   pelo   menos,   simular   a   demonstração   de  “verdades   universais”,  mesmo   que  seja  através   da  concepção   de  um  mundo  totalmente  fantasioso,   imaginário,   falso.  Não  era,  pois,  sem  razão  que  Wilder  julgava   fazer   parte   da   sua   missão   como   artista   e   cineasta   apontar   para   a  verdade:  

  “BW:  [...]  a  picture  has  to  have  something  new.  It  has  to  have  something  that  they  [the  audience]  don’t  see  every  day,   but  recognize   as  the   truth.  CC:  So  truth  —  truth  is  the  key.  BW:  Make  it  true,  make  it  seem  true.  And  don’t  have  something,  even  in   a   farce   like   Some  Like  It  Hot,   that   isn’t  true.   I   just   imagine   that  there   is   such   an  idiot  as  Osgood  Fairchild.  That  there  is  such  an  old  fool.  Then  I  proceed”.38      

*

  Talvez,   hoje,   nos   consideremos   demasiado   so*isticados   para  aceitarmos  que  nos  falem  de  “verdade”,   talvez  a  evolução  da  arte  nos  séculos  XX   e   XXI   tenha   tornado   impossível   que  muitos   de  nós   consigamos   levar   a  sério  a  estrutura  narrativa,  a  mimese  aristotélica  ou  os  conceitos  clássicos  de  personagem   e   carácter.   A   moral   deste   artigo,   porém,   pretende   ser   apenas  esta:   o   uso   de   uma   estrutura   narrativa   no   cinema   é   algo   bastante   mais  complexo,   interessante   e   pro*ícuo   do   que   muitas   vezes   se   imagina.   Que   a  estrutura   narrativa   seja,   hoje,   para  muitos,   apenas   uma  coisa   do   passado   e  que,   para   outros,   esteja   agora  reduzida   a  uma   fórmula   que  vende   *ilmes,   é  talvez   um   dos   dramas   do   cinema   contemporâneo.   No   *inal   da   vida,   Billy  Wilder   acreditava  ainda  que   “os   cineastas   ainda  nem  sequer   começaram   a  esgravatar  a  super*ície  do  que  se  pode  fazer  em  cinema  —  as  possibilidades  

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37  Cf.  Robert  Horton,  Billy  Wilder.  Interviews,  Jackson,  University  of  Mississipi  Press,  2001,  p.  51.

38 Cf. Cf.   Cameron  Crowe,  Conversations  with   Billy  Wilder,   London,  Faber&  Faber,  1999,   p.  143;  cf.  pp.  144,  175,  184,  273.  

são  realmente  muitas”.39  Uma  das  perguntas  que  podemos  fazer  hoje  —  e  que  me   parece   que   devemos   fazer  —   é   se   algumas   destas   possibilidades   não  estarão  nas  sementes  que  cineastas  como  Wilder  e  Lubitsch  semearam.  

BIBLIOGRAFIA

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39  Cf.  Robert  Horton,  Billy  Wilder.  Interviews,  Jackson,  University  of  Mississipi  Press,  2001,  p.  181.

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