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23º Encontro da ANPAP – “Ecossistemas Artísticos” 15 a 19 de setembro de 2014 – Belo Horizonte - MG
ENCONTROS IMPREVISÍVEIS: ARTE EM MOVIMENTOS DE ESPERA NO EVENTO ARTE#OCUPASM
Tamiris Vaz – UFG
Rebeca Stumm - UFSM
RESUMO: Este artigo envolve as potências da imprevisibilidade no Evento Internacional Arte#ocupaSM, realizado anualmente desde 2012 na cidade de Santa Maria, RS. Partindo da ação artística “Movimentos de Espera”, do Coletivo (Des)esperar, que toma a arte como acontecimento a ser vivenciado, o texto discute experiências em um evento de arte que investe na produção de encontros, discutindo as potencialidades dadas pelas relações entre arte, vivência artística, espaço e público. Autores como Deleuze, Campbell, Rolnik, Flusser e Laddaga embasam essas reflexões de modo a trazer questionamentos sobre como funções criadoras ultrapassam as balizas da arte para provocar alterações momentâneas nas construções do cotidiano. Palavras-chave: imprevisibilidades; ação artística; vivência artística. ABSTRACT: This paper involves potencies of unpredictability at International Event Arte#ocupaSM, which is carried out annually since 2012 at Santa Maria city, RS, Brazil. Starting from “Movimentos de Espera” (Waiting Movements), an artistic action by (Des)esperar collective, that takes art as a happening to be undergone, the text discusses experiences on an art event that invests on the production of encounters, discussing potentialities given by relations between art, artistic experience, space and public. Authors as Deleuze, Campbell, Rolnik, Flusser and Laddaga base these reflections in order to bring questions about how creative functions surpass art’s limits to provoke momentary alterations at the quotidian constructions. Key words: unpredictabilities, artistic action; artistic experience. Entre 14h15 e 15h15, entre 18h e 19h, o relógio marca a possível hora da chegada, a
hora da partida, das passagens, dos encontros e das despedidas. Marca o provável
horário em que a terra pulsa, como que despertada, no susto de um sono profundo. A
hora em que pensamentos distraídos retornam ao tempo presente, e que pensamentos
concentrados se distraem no fluxo de um movimento. Mas antes disso há sempre
alguém que espera.
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A passagem de um trem é tomada aqui como parte de uma proposta artística e também
como imagem poética que contempla a relação de um evento de arte com os fluxos da
cidade. Esperar um trem, algo comum há um século, se torna hoje um acontecimento
estranho e digno de olhares desconfiados. Especialmente porque os trens que
percorrem os trilhos de Santa Maria (RS), hoje transportam apenas grãos, potências de
vida que crescerão em outras terras ou mesmo, ocasionalmente, em torno dos trilhos,
quando uma semente ou outra se precipitar ao chão caindo de dentro de um vagão. Se
quando tomamos um transporte temos hora exata de espera e deslocamento, a hora da
passagem dos trens na cidade de Santa Maria nunca é pontual, temos apenas uma
probabilidade estendida entre alguns intervalos de horas. Tomando essas
probabilidades como ponto de partida, o Coletivo (Des)Esperar, grupo de cinco artistas¹
atuantes de 2009 a 2013, propôs a ação artística ‘Movimentos de Espera’ a ser
desenvolvida junto ao Evento Internacional Arte#ocupaSM / 2012².
O cenário e a temática da estação férrea fizeram parte da maioria dos trabalhos
produzidos neste evento por artistas locais e estrangeiros que passavam a conhecer ou
a redescobrir esse local tão marcado pelas mudanças que as estradas de ferro
trouxeram ao estado no início do século passado. Cada artista ou grupo de artistas
partia de suas linguagens de atuação para dialogar com os espaços disponíveis,
estando abertos às mudanças decorrentes do contato com o público e às intempéries
de se produzir em espaços não projetados nem preparados para receber propostas
artísticas. No penúltimo dia, o evento teve duração ininterrupta, avançando durante toda
a madrugada até o último dia, quando durante todo o tempo os artistas permaneceram
no local, a transitar por entre nevoeiros de uma madrugada gelada.
Partindo de um evento que contempla as contingências da ação coletiva no tempo e no
espaço, este artigo aborda os encontros que envolvem uma intervenção artística aberta
às imprevisibilidades. A partir da ação ‘Movimentos de Espera’, do Coletivo
(Des)Esperar, abordamos a potência do inesperado na prática, onde os limites dos
territórios ocupados pela arte são recolocados em evidência, testando as
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potencialidades estéticas dos riscos e encontros com o cotidiano. E com isso
permitimos deixar a arte emergir por fissuras inesperadas.
O evento
Ao longo de 5 dias, artistas do Brasil, Colômbia e Argentina estiveram reunidos no
antigo prédio da administração central da ferrovia de Santa Maria (localizado na Vila
Belga) e seus arredores, no intuito de construir vivências artísticas motivadas pela
história da ferrovia, pela pesquisa poética, pelas trocas com outros artistas e o público
no decorrer do evento. Com ampla divulgação, o evento Arte#ocupaSM situou Santa
Maria no cenário artístico internacional, promovendo interlocuções, também à distância,
com sites, artistas e curadores estrangeiros.
Diferente de uma proposta de exposição em uma galeria ou em um espaço
museológico, a curadora Rebeca Stumm optou por promover o evento em um prédio
que não oferecia a estrutura de neutralidade (cubo branco) para o recebimento de
obras de arte, desafiando assim os artistas a buscarem adaptações e transformações a
fim de promover diálogos entre seus trabalhos e os espaços arquitetônicos.
Enquanto as marcas do passado histórico e da deterioração pelo próprio desuso
deixaram no prédio características que não se ocultavam ou passavam despercebidas,
as obras precisaram se adaptar, entrar em diálogo com o entorno e com os demais
artistas que a cada dia de evento falavam publicamente de seus trabalhos,
recontextualizando-os e produzindo sentidos por meio das experiências estéticas, o
público e o espaço físico.
Nesse sentido, almejou-se promover um espaço de vivências artísticas em que os
trabalhos planejados não chegassem prontos em um formato definitivo, mas que
pudessem ir ampliando sua construção ao longo dos dias. O público que ali
compareceu pôde acompanhar a escolha dos espaços e a adaptação aos mesmos, a
exposição do planejamento por parte de cada artista, o processo de produção e
mudanças eventuais. A cada momento de visitação era possível perceber algo
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acontecendo em variados formatos poéticos e em diferentes lugares. As obras
desenvolviam-se no tempo e no espaço, incluindo performances ocorridas em horários
específicos e estendidas desde os trilhos da gare até a Avenida Rio Branco, que corta o
centro da cidade.
Dentro desse contexto, o Coletivo (Des)Esperar desenvolveu a ação ‘Movimentos de
Espera’ a partir de um tempo impreciso - da possível passagem de um trem - em um
espaço que se configurava pela presença do próprio público participante, que se
colocava a esperar. O público se tornava elemento essencial para a existência da ação,
pois sem ele a provocação de produzir uma espera em um lugar onde não mais passam
trens de passageiros não produziria efeito algum. Foi pela ação do público, sua
presença e espera que fez com que a paisagem se modificasse e a vivência artística
acontecesse. Laddaga (2006) fala do surgimento de uma nova ideia de público, mais
propenso ao encontro inesperado, através de propostas que incluem artistas e não
artistas e onde suas decisões são capazes de mudar a própria estruturação da obra.
Essa situação se faz bastante visível na ação ‘Movimentos de Espera’, bem como nos
demais trabalhos artísticos produzidos ao longo do Arte#ocupaSM, pois os movimentos
de estranhamento e reconhecimento do espaço exigiram vivências de diferentes
formatos, ocasionando mudanças nas expectativas tanto do público quanto dos artistas.
Ainda que houvesse uma diferenciação entre artista e público, foi a relação entre
ambos que prevaleceu, através de práticas de colaboração e produção coletiva de
desejos, promovendo aquilo que Laddaga (2006) chama de ‘modos experimentais de
coexistência’, capazes de modificar as formas de perceber e estar em determinados
espaços, atuando na fronteira entre arte e cotidiano. Sem contar que aconteceram
momentos em que o artista experimentava ocupar o papel de público tanto de seu
trabalho quanto do trabalho de outros no mesmo evento.
Distantes da pretensa neutralidade de espaços expositivos, no Arte#ocupaSM os
artistas se expõem às contingências da arte em sua duração no tempo urbano, e são
justamente estas contingências, enquanto encontros e proliferações de diferenças, que
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potencializam suas ações. Atua-se em uma situação semelhante à apontada por Bey
(2004) para tratar da Psicotopografia. Segundo Bey, somente com ela seria possível
traçarmos mapas a partir de uma escala de 1:1, onde o próprio real se vê modelado
pela mente humana. Nessa escala não temos controle de uma totalidade, ao passo que
nos colocamos imersos em um espaço instável e impossível de ser observado
inteiramente de uma única vez.
Nesse sentido, o deslocamento pelos espaços de ação, por ora, remetia às ideias de
‘cartografia’, desenhando percursos ao mesmo tempo em que transformava a paisagem
(ROLNIK, 1989). Público e artistas iam mapeando o evento por suas próprias escolhas,
percorrendo espaços internos e externos ao prédio “sede” e incluindo a rua e os
arredores da estação férrea como caminhos de atuação.
Ainda que houvesse um mapa demarcando algumas ações que seriam desenvolvidas,
esse mapa estava em constante modificação, bem como as ações que nele eram
inseridas. A única forma de produzir um mapa atualizado dos acontecimentos era
percorrendo o espaço e o traçando a cada vez de um novo modo, ao imergir nas
possibilidades surgidas pelas modificações dos trabalhos, que, em muitos casos,
contavam também com a presença e intervenção do público para acontecer. Para a
curadora, era como se o público e todos ali se comportassem como produtores ativos
daquele espaço. O evento tomava vida própria.
Rolnik (1989) fala da cartografia como um desenho feito pelos movimentos de
transformação da paisagem, entendendo por paisagem também o campo psicossocial.
Sendo assim, essas modificações dizem respeito não apenas a localizações
geográficas, mas ao desmanchamento de certos sentidos de mundo para a formação
de outros. A própria ação “Movimentos de Espera” não poderia ser mapeada de outro
modo que não pela experiência e uso coletivo do espaço, pela presença de cada
pessoa fazendo com que a espera acontecesse. Como na Psicotopografia, é possível
sugerir algumas características da ação, mas os movimentos dela em si só se dão nas
relações, no instante do percurso, e a cada vez de maneiras diferentes.
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Os primeiros momentos de inserção dos artistas nos territórios destinados ao Evento
Arte#ocupaSM consistiram em uma exploração, o que já desenhava no formato de
caminhos uma espécie de mapeamento do território para que fossem traçadas
possibilidades de ações. Um mapa produzido pelo próprio deslocamento, sendo que
algumas ações já se deram nesse mesmo processo. Percorrendo os espaços, o público
tomava noção de alguns mapeamentos do mesmo, incluindo os vestígios ou relatos de
performances ocorridas em outros momentos.
Mediar o imprevisível
Paradoxalmente, a característica de ser um evento vivo, facilita e também dificulta o
envolvimento do público, pois, uma vez iniciado, o evento está em constante
reestruturação, aberto a imprevisibilidades poéticas e muitas vezes, sem vestígios
materais dos trabalhos realizados. Para tanto, uma equipe de mediadores estava
preparada para receber grupos de visitantes e acompanhá-los em uma visitação
passível de acontecimentos imprevisíveis. O esperado poderia acontecer ou não, todos
estavam abertos à possibilidade de traçar novos mapas a cada momento, observando e
conversando com os próprios artistas enquanto estes realizavam seus trabalhos. Para
Campbell (2007), a realização de ações em espaços não convencionais, especialmente
na cidade, como propostas que se abrem a múltiplos interlocutores, pode receber todo
tipo de interpretação e mesmo não ser reconhecida como obra de arte. Mas o papel da
arte neste espaço é também respeitar as suas contingências, afinal o espaço ocupado
também é do outro. E o papel dos mediadores não era de delimitar o que era arte, mas
de encaminhar, acompanhando as pessoas a cada mudança de rumo nas estratégias
de contato e interação com ações dadas no tempo e no espaço. Exigia-se do mediador
uma postura diferenciada, uma atenção maior ao que acontecia e aos vestígios das
intervenções já ocorridas, entendendo que não seria possível alcançar a totalidade dos
acontecimentos.
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Estar no Arte#ocupaSM lembra a deriva situacionista que, conforme explica Campbell,
buscava a experiência afetiva do corpo no espaço, numa estratégia de dissolução da
arte na vida, da não representação, de novas cartografias produzidas pelo próprio
deslocamento (escala 1:1).
Figura 1: Estudantes conversando com a artista Bianca Scliar. Fonte: arquivo das pesquisadoras.
O papel da mediação se deu no sentido de acompanhar o público na descoberta de
possibilidades investidas por cada artista, provocando-os a explorar o espaço, dialogar
com os artistas e de experimentar novos percursos, pois, a cada visita, os trabalhos
poderiam ser vistos de modos diferentes, dependendo, em muitos casos, da própria
interação dos visitantes.
Através do evento o público pôde perceber que mesmo em lugares não projetados para
exposições de arte é possível produzir experiências artísticas voltadas à própria relação
com esses espaços. Isso veio a causar uma mudança nas potencialidades de uso deste
espaço que, após o Arte#ocupaSM, passou a ser utilizado por dois órgãos públicos,
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perdendo seu caráter de prédio abandonado. E além disso, foram esboçadas
possibilidades de mudanças no potencial e expectativas de uma comunidade, dadas
pela criação de momentos de encontros poéticos vivenciados de forma horizontal entre
todos os interessados.
Figura 2: Performance ‘Trem’, de Rebeca Stumm. Fonte: arquivo das pesquisadoras.
Estando abertas às imprevisibilidades, as ações puderam se desterritorializar do status
de arte localizada em um formato definido para se reterritorializarem nas contingências
do espaço/tempo. E isso não implica em deixar de ser arte e passar a ser experiência;
trata-se de deslocamentos em si mesmos, pois no momento em que algo entra em
movimento de se tornar algo, esse algo já muda tanto quanto ele próprio (DELEUZE;
PARNET, 1998), ou seja, no momento em que a arte se movimenta para as
contingências do espaço/tempo, a própria noção de arte já não pode ser a mesma,
ainda que se tentasse retornar a ela. É a arte que se reterritorializa pela própria ação de
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produzir arte, exigindo uma outra postura tanto do público, quanto dos artistas e dos
mediadores que se propõem a acompanhar as multiplicidades desse processo.
Movimentos de Esperas Inesperadas
Até início dos anos 1990, a estação férrea de Santa Maria foi um território marcado por
esperas. Enquanto aguardavam o fatídico horário do trem, pessoas esperavam. Hoje
parece já não haver esperas, mas o trem continua a passar, tocando um altíssimo apito
ouvido por quase toda a cidade.
Assim, ao longo de quatro dias, durante o evento Arte#ocupaSM, o Coletivo
(Des)esperar desenvolveu uma ação artística que propôs ao público momentos
dedicados à espera na intervenção ‘Movimentos de Espera’.
Independentemente de o trem chegar ou não (já que havia um horário provável, mas
não certeiro sobre sua passagem), essa espera não aconteceria para anteceder o início
de uma viagem, ela seria a própria viagem, haja vista que não haveria a possibilidade
de embarcarmos nesse trem. Sendo assim, a espera já era a ação. Se o trem não
passasse, cada um, ao seu tempo, determinaria o fim de sua espera. A passagem do
trem é esperada pelo fascínio de sua imensa capacidade de mudar a paisagem a cada
vagão, a cada trac-trac da mecânica nos trilhos, fazendo por algum tempo com que nos
transportássemos a viver com ele o movimento intenso daquele lugar. Mas a passagem
não é o acontecimento poético. O acontecimento poético é a própria espera, o
momento em que um grupo de pessoas se dedica a esperar o que não atende ao
esperado, ao que é inesperado e alheio a nossa vontade.
O espaço foi cuidadosamente preparado pelos artistas. Nas paredes, havia recortes de
jornais relembrando o tempo em que o trem fazia parte do cotidiano dos viajantes da
cidade. Em frente aos trilhos, dois bancos que eram antigamente utilizados pela
estação voltaram a oferecer melhores acomodações aos participantes da espera.
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Figura 3: “Movimentos de Espera” - Coletivo (Des)Esperar. Fonte: arquivo das pesquisadoras.
A experiência conseguiu no paradoxo estabelecido entre a espera e a viagem, criar
uma parada coletiva onde, no espaço em que nos lançávamos a esperar, também nos
movimentávamos na extensão temporal que assegurava a experiência artística. Uma
espera que não trazia a expectativa de chegada a um destino futuro, tampouco oferecia
certezas quanto ao formato do trem que viria, ou mesmo se ele chegaria.
Algumas vezes o trem chegava logo, mas a espera não terminava com sua passagem.
Outras vezes ele tardava e em uma delas ele sequer passou. Cada momento era único
e imprevisível, fazendo com que a espera já não fosse imobilizada pela expectativa da
chegada do trem, mas uma ação carregada de experiências, trocas, aprendizagens e
interação com o espaço e seus elementos. E se o trem passasse, naquele momento o
espaço se tornava movimento, os sons se tornavam estridentes, o chão trepidava e os
vagões transitavam como paredes na paisagem.
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Havia linhas que escapavam, linhas de fuga, como diria Deleuze (DELEUZE; PARNET,
1998), fissuras pensadas entre as coisas, entre a espera e o trem, funções criadoras
que ultrapassam um objetivo comum - fosse ele o da chegada de um trem ou da
experiência da arte – para circular nas linhas do acaso.
De todas as imprevisibilidades surgidas ao longo dessas esperas, destacamos algumas
ocorridas especificamente a partir de uma noite de chuva. Iniciando o movimento de
espera um pouco antes que o restante do público, o coletivo se depara com a surpresa:
a chuva havia lavado os preparativos que pontuavam o local para a espera! Os papéis
colados pelos artistas para ambientar a ação continuavam lá, porém amassados,
manchados, enrugados, amarelados, envelhecidos no passar de um dia para o outro.
Em meio a espera, não haveria como esconder a decepção, nem substituir os materiais.
O melhor era assumir a passagem também da chuva agora como parte do “movimento
de espera”, pois o que se dá no ambiente urbano precisa contar com o efêmero e a
vulnerabilidade. Como ‘devires’, podemos considerar essas ações em seu próprio
movimento, indefinível, momentâneo (DELEUZE, 1987). Elas não são a fixação, mas o
acontecimento de se modificar.
A passagem inesperada da chuva nos mostra a impossibilidade de produzir uma ação
de modo desvinculado das forças do ambiente. Se não fosse a sua intervenção
deixando os papéis molhados, talvez nem tivéssemos percebido a chuva que logo se
tornou elemento constituinte da experiência. E pelo telhado quebrado sobre o local da
espera, a própria noite chuvosa se fez presente.
Sem a chuva, o telhado quebrado não teria efeito algum sobre os papéis distribuídos,
mas o inesperado permitiu ao telhado existir e intervir no trabalho proposto. Mesmo que
o telhado direcionasse o caminho da chuva e o vento sua intensidade, há sempre um
conjunto de elementos impulsionados pelas escolhas dos artistas, quando selecionam e
dispõem os papéis de uma forma e não de outra, e quando investem nos riscos de
expor seu trabalho aos percursos inesperados do espaço urbano.
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A chuva não estava nos planos do Coletivo (Des)esperar, que com ela se viu obrigado
a rever percursos. Como nos disse Nietzsche (1976) pela voz de Zaratustra, é aqui, no
instante vivido, que toda a verdade acontece. Fora disso, todo o discurso é vão. Por
isso ele nos alerta que a melhor sabedoria é esquecer e passar. Se houve chuva, a
chuva é o que há. Incorporar a chuva à arte é escutar seu silêncio, seu nada quando
evapora, pois além do vivido, muito pode ser dito sem que nada seja ouvido
(NIETZSCHE, 1976).
Além disso, a espera envolveu muito mais do que os papéis ou o trem. Cada pessoa
que chegava até a estação realizava seu próprio movimento de espera: lendo,
escrevendo, gesticulando, falando sobre a sua espera ou sobre a chuva que também
passou, olhando para os trilhos no horizonte ou inventando o que olhar. Algumas
pessoas que nem se conheciam encontraram um tempo para compartilhar uma espera
por algo acontecer.
Figura 4: Ação “Movimentos de Espera”. Fonte: arquivo das pesquisadoras.
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A impossibilidade de saber o momento exato da passagem do trem é um elemento
incomum e incômodo para quem se põe a esperar. Na prática não seria difícil para a
empresa que administra a ferrovia oferecer uma informação precisa sobre os horários
dos veículos que controla, no entanto os interesses econômicos voltados à distribuição
de grãos e não mais como um serviço prestado à população os fazem transitar com
independência de qualquer relação com a cidade e as pessoas. Hoje o entorno dos
trilhos para enquanto o trem passa, com isso, os mais jovens veem o trem como um
elemento estranho e distante de suas vidas, enquanto os mais velhos reforçam um
sentimento nostálgico de histórias cercadas pelo uso desse transporte.
Ao participar da ação de esperar, o público pôde também visualizar um pouco do
cotidiano de uma população que habita o outro lado dos trilhos: uma ocupação que já
sofreu constantes ameaças de despejo. Pessoas que correm para atravessar os trilhos
antes do trem chegar ou que esperam longamente por sua passagem para chegar ou
sair de suas casas. Entendendo ou não aquele espaço/tempo como experiência
artística, essas pessoas também modificavam e eram modificadas pela ação.
Cada pessoa que chegava no local fazia dos Movimentos de Espera um acontecimento
diferente. Dividindo-se em grupos de conversas, assuntos diversos vazavam em vozes
que, por vezes, pareciam já nem lembrar o que os levara a estar naquele lugar. Até o
momento em que, de longe, se ouvia o apito de um trem e todos levantavam as
cabeças, buscando indícios de sua chegada. Alguns chegavam a aproximar o ouvido
dos trilhos para sentir sua vibração, outros tentavam detectar de que lado viria o som.
Logo voltavam aos grupos e seguiam suas conversas até que outro apito acontecesse.
Assim se seguiu durante as cinco esperas ocorridas nos cinco dias de evento, na
simplicidade de uma ação que tem como elemento principal o público participante e na
intensidade de movimentar pessoas para um descompassar de tempos: do tempo do
antes (histórico), do tempo em vestígios que a água voltou a afetar, do tempo da
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passagem do trem, do tempo em que cada um voluntariamente ‘espera’. São outros
modos de sentir e viver o espaço-tempo, aproveitando, a cada nova espera, os
potenciais poéticos das contingências cotidianas. Trata-se de uma espera voluntária,
mas que não assume a imagem da imobilidade, ao passo que crê e vive os
atravessamentos do presente, independentemente de resultados futuros.
A ideia de espera, que normalmente toma o sentido de inércia, adquire outra dimensão.
Flusser (1983) fala que quando a espera é tempo vazio, parada, proporciona a
sensação de nada. O tédio é a forma dessa espera, da imobilidade inevitável. Para
Flusser (1983) apenas o inesperado pode transformar a nossa forma atual de espera.
Por ser imprevisível, o inesperado é terrificante, mas ainda assim esperamos que o
inesperado aconteça, esperamos porque dependemos dele para sair do vazio.
O que o Coletivo (Des)esperar propôs foi alimentar não só o desejo pelo inesperado,
mas a experiência de produzir movimentos para as formas de esperar, vivenciando-as
como acontecimentos, desfazendo o que se espera vivendo a própria espera,
colocando- se sob entrega ao que não sabemos, ao que não podemos prever, nos
levando a aproveitar os movimentos que a espera nos proporciona.
Para arte/ocupar novas esperas
Finalizamos esta escrita enfatizando que as imprevisibilidades das práticas artísticas,
sejam eventos ou obras-eventos, se dão na medida em que há confiança naquilo que
se busca produzir, sabendo que a arte não está exatamente em algo, mas nos espaços
entre ‘algos’, pessoas e situações, e que estes entres são imprevisivelmente
potencializados a cada busca poética.
Ao invés de esperar por condições adequadas para a realização, a ação Movimentos
de Espera explorou a percepção do cotidiano com toda a sua poesia e também
precariedade, mostrando uma arte produzida por pessoas e delas dependente para
existir.
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Uma característica que marcou a ação dos artistas no Arte#ocupaSM é que eles não
buscaram meramente um resgate saudosista da história da ferrovia, mas
demonstraram, com suas ações, a possibilidade de fazer vivos aqueles espaços no
próprio presente. De dar a eles novos usos sem que fosse esquecida sua importância
advinda do passado. Conhecendo ou não a história da Viação Férrea de Santa Maria, o
espaço ocupado foi reabitado por alguns dias, trazendo à discussão questões do
patrimônio, da história do local e do papel das ocupações e intervenções artísticas em
espaços públicos, lembrando o papel político e cultural que a arte pode exercer. A partir
do Arte#ocupaSM, as posturas destes artistas e deste público foram afetadas.
O Arte#ocupaSM foi uma ocupação artística marcada pela intensidade de sua duração,
na busca por abrir brechas a outras perspectivas para arte acontecer, movimentando
construções que não se encerram com o evento, mas que refletem em outros
acontecimentos, onde as relações com as imprevisibilidades estabelecem novos nexos
a partir da prática artística com o outro, junto ao outro, na cidade e para o mundo.
Notas
¹ Atuam no Coletivo (Des)Esperar os artistas: Andressa Argenta, Francieli Garlet, Florence Endres, Fábio Purper Machado e Tamiris Vaz.
² Blog do Evento: http://arteocupasm.wordpress.com/
Referências
BEY, Hakim. TAZ: Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2004. CAMPBELL, Brígida. Canteiro de Obras: derivas sobre uma cidade-pesquisa habitada por práticas artísticas no espaço público. Belo Horizonte: UFMG, 2007. (Mestrado em Artes). Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, 2007. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Lisboa: Ed.70, 1987. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. FLUSSER, Vilém. Pós-história, vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983. LADDAGA, Reinaldo. Estética de la Emergencia: la formación de otra cultura de las artes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. São Paulo: Editora Hemus, 1976.
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ROLNIK. Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.
Tamiris Vaz Doutoranda em Arte e Cultura Visual (UFG), mestre em Educação (UFSM), graduada em Artes Visuais (UFSM). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura (GEPAEC/UFSM), do grupo de Pesquisas em Arte: Momentos-Específicos (UFSM) e do Coletivo de Ações Artísticas (Des)esperar. E-mail: tamirisvaz@gmail.com Rebeca Lenize Stumm Doutora em Artes- Poéticas Visuais (USP), Mestre em Educação (UFSM), Graduada em Artes Plásticas, ênfase em escultura (UFRGS). Professora da Graduação e Pós-Graduação Artes Visuais (UFSM), artista e pesquisadora sobre a atuação do artista, do objeto e dos registros em eventos de arte. Coordena o Grupo de Pesquisa CNPq Momentos-específicos, atuando ainda como curadora de eventos internacionais de arte.