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CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, FORMULAÇÃO DEESCOLHAS PÚBLICAS E DIREITO À MORADIA:
Sobre os riscos da vitória da semântica sobre o normativo
JUDICIAL CONTROL OF PUBLIC POLICIES, PUBLIC CHOICESFORMULATION AND HOUSING RIGHTS:
About the risks of semantic constitution prevailing overthe normative one
VANICE REGINA LÍRIO DO VALLE1
Resumo:A Constituição Brasileira, às vésperas de seu 25º aniversário,abriga uma larga lista de direitos socioeconômicos, revelando umcompromisso com a transformação social e a inclusão – assim comomuitas outras constituições escritas no final dos anos 90 e naprimeira década do século XXI. Estes direitos socioeconômicostem sido assegurados pelo Judiciário – apontados nasconstituições transformadoras como importante agente na promoçãoda desejada mudança na exclusão social e pobreza. A aptidãoinstitucional proclamada pelo Judiciário para controlarpolíticas públicas – estabelecida como afirmação teórica najudicialização de direitos à saúde e educação – pode levar, nãoobstante as nobres intenções de juízes e das cortes, não a umareal transformação, mas à regressão social e a uma democraciaenfraquecida. Para assegurar que o controle judicial depolíticas públicas possa conduzir realmente à superação daexclusão social, impõe-se reconsiderar a estratégia utilizadapelo Judiciário na solução destes conflitos. Um novo modelo deveincorporar uma dimensão distinta de diálogo, participação sociale reconhecimento dos destinatários da política públicacontrolada como cidadãos autônomos, aos quais se tenhareconhecida, por sua própria dignidade humana, a possibilidadede integrar os processos de escolhas públicas que definem o
1 Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito daUniversidade Estácio de Sá, vinculada à linha de pesquisa DireitosFundamentais e Novos Direitos. Pós-doutorado em Administração pelaEBAPE/FGV-Rio; Doutorado em Direito pela Universidade Gama Filho.Procuradora do Município do Rio de Janeiro.
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conteúdo de seus próprios direitos fundamentais. Ignorar essesdesafios de regressão pode tornar o Judiciário responsável portransformar a nossa constituição, de normativa em semântica.
Palavras-chave:constitucionalismo de transformação – controle judicial depolíticas públicas – regressão social – jurisdição dialógica.
Abstract:The Brazilian constitution, in the merge of its 25th birthday,hold a large list of socioeconomic rights, revealing acommitment with social transformation and inclusion – just likemany others constitutions written in the late 90’s and in thefirst decade of the 21st century. Those socioeconomic rights havebeen enforced by Judiciary – held in the transformativeconstitutions as an important agent in promoting the desiredchange in social exclusion and poverty. The institutional skillproclaimed by the Judiciary to control public policies –established as a theoretical assertion in the judicialization ofconstitutional rights to health and education – could lead, inspite of the noble intentions of judges and courts, not to areal transformation, but to social regression and to a weakeneddemocracy. To assure that judicial control over public policieslead truly to overcome social exclusion, one should reconsiderthe institutional framework used by the Judiciary in order tosolve those conflicts. A new model should incorporate adistinctive dimension of dialogue, social participation, andrecognition of the addressees of the controlled public policy asan autonomous citizen, entitled by his own human dignity, tointegrate the public choices processes that arrange thecontinent of his own fundamental rights. Ignoring thosechallenges of regression may turn the Judiciary responsible forchanging our normative constitution, into a semantic one.
Key-words:Transformational constitutionalism – judicial review of publicpolicies – social regression – dialogical jurisdiction.
Sumário:
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1. Um novo patamar de edificação do sentidoconstitucional; 2. Contexto do compromissoconstitucional com a garantia de direitosfundamentais: a constituição como alavanca datransformação; 3. Controle judicial de políticaspúblicas: o primeiro discurso de justificação eos riscos na formulação das escolhas trágicas;3.1 Controle judicial sobre políticas públicasjá normativamente parametrizadas: saúde eeducação; 3.2 Controle judicial de políticaspúblicas que exijam a formulação, pelo agentecontrolador, de escolhas alocativas; 4. Direitosfundamentais socioeconômicos e a tensãopermanente entre transformação e regressão; 4.1Judicialização de direitos sociais comopossibilidade de vocalização em favor dosvulneráveis; 4.2 Judicialização de direitossociais e o reforço de estereótipos culturais;5. Reposicionando a dimensão dainstitucionalização do poder no cenário docontrole de políticas públicas e da efetividadedos direitos sociais
1. Um novo patamar de edificação do sentido constitucional
Aproximamo-nos dos 25 anos da Constituição de 1988 – e
o cenário jurídico e político permite uma avaliação em
caráter muito mais abrangente do que significou a adoção
daquele texto, no mais puro exercício de construção e
reconstrução do conteúdo de uma Carta Fundamental 2 que
como se sabe, seja por suas peculiares circunstâncias de
formação, seja pela natureza mesmo do esforço constituinte
2 ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Traduçãode Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Mandamentos Editora,2003, p. 44.
4
de edificação dos consensos possíveis, jamais permitiria
naquele longínquo fim de década, uma determinação plena.
De outro lado, a perspectiva de compreensão de um
texto constitucional revestido das características do
brasileiro revela-se tremendamente enriquecida, seja pela
reprodução de experiências assemelhadas no que hoje se
identifica como o constitucionalismo latinoamericano3; seja
pela não menos desafiante pluralidade de vivências também
no campo internacional de estratégias orientadas à
implementação de direitos socioeconômicos, e do papel do
Judiciário na garantia de concretização de um projeto
constitucional de transformação.
O debate atual, portanto, se dá não mais a partir das
velhas perspectivas da (in)sindicabilidade dos direitos
sociais, ou ainda dos riscos ao equilíbrio e harmonia entre
os poderes decorrente de uma intervenção judicial
controladora; mas tendo por origem uma compreensão mais
ampliada do processo democrático enquanto valor igualmente
buscado pelo constitucionalismo do século XXI, e uma visão
de dignidade da pessoa que compreende também o seu
reconhecimento como sujeito constitucional – e não como
objeto daquelas previsões. Afinal, compreender, na lição de
Gadamer (e isso assim se dá também com as constituições), é
3 Para uma aproximação dos atributos apontados ao constitucionalismolatino americano, OLIVEIRA, Fabio Corrêa Souza de e STRECK, LenioLuiz. Um direito constitucional comum Latino-Americano – por umateoria geral do novo constitucionalismo latino-americano, Revista doInstituto de Hermenêutica Jurídica, nº 11, Ano 10, janeiro/junho 2012,p. 121-151; e VALLE, Vanice Regina Lírio do. Constitucionalismolatino-americano – sobre como o reconhecimento da singularidade podetrabalhar contra a efetividade, Revista do Instituto de HermenêuticaJurídica, nº 11, Ano 10, janeiro/junho 2012, p. 277-306.
5
“operar uma mediação entre o presente e o passado, é
desenvolver em si mesmo toda a série contínua de
perspectivas na qual o passado se apresenta e se dirige a
nós”.4
Isso significa uma necessária e indispensável revisão
da aproximação empreendida pelo mainstream no que toca ao
sempre presente – em cada vez maior intensidade – tema do
controle judicial das políticas públicas e o espaço de
decisão do legislativo e da Administração Pública num
cenário de implementação de direitos. O cerne da
investigação está em saber se a ênfase na normatividade das
normas constitucionais assecuratórias de direitos
fundamentais, enunciada sempre como elemento justificador
das decisões que pretendem empreender ao controle judicial
de políticas públicas, não estaria a conduzir, por força de
um decisionismo pautado por critérios eminentemente
subjetivos, a um resultado mais regressivo do que
progressista, funcionando o ativismo como até o momento
entendido e praticado no Brasil, numa visão mais ampla,
como bloqueio – e não veículo da transformação social.
A análise se desenvolverá a partir de uma compreensão
do papel dos direitos fundamentais na ordem jurídico-
política implantada pela Carta de 1988. Fixado esse
horizonte histórico, examina-se os argumentos de
justificação da tendência atual de amplo controle judicial
de políticas públicas, para depois então apontar a tensão
4 GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. PierreFruchon (org.); tradução Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro:Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 70.
6
permanente que a jurisdição e suas técnicas hoje
disponíveis culmina por determinar, entre transformação e
regressão. Finalmente, no esforço de contribuir para a
reflexão em torno de uma teoria da decisão, aponta-se as
características de que se deve revestir uma nova
institucionalidade na jurisdição orientada ao controle
judicial de políticas públicas, com a prevalência do viés
dialógico, que reconheça o destinatário dos direitos
socioeconômicos não como objeto da atuação estatal
prestadora, mas como sujeito do processo de construção das
escolhas públicas possíveis na matéria.
2. Contexto do compromisso constitucional com a garantia de
direitos fundamentais: a constituição como alavanca da
transformação
É o distanciamento dos dias heroicos de 1987, quando
se desenvolvia em cenário ainda de incertezas políticas a
Assembleia Constituinte5, que permite enriquecer a
compreensão da Carta de 1988, inserindo-a na verdadeira
onda de constitucionalizações que se verificava naquela
mesma época, e que se estende a rigor até os dias de hoje.
Afinal, se as décadas de 70 e 80 contemplaram esse processo
5 Sempre significativa é a lição e depoimento de Bonavides, que aludiana ocasião a uma verdadeira crise constituinte – em oposição aofenômeno mais localizado da crise constitucional – para sustentar queo desafio que então se punha transcendia à pura reformulação do texto,para compreender mais ainda, um transe decorrente da inadequação dasinstituições políticas recém-criadas para figurarem como verdadeiroalicerce do poder legítimo. (BONAVIDES, Paulo. Constituinte eConstituição. A democracia, o federalismo, a crise contemporânea. 3ªed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 115)
7
jurídico-político nos países da península ibérica, fenômeno
com relevante impacto na constituinte brasileira; o decênio
de 90 albergou igualmente constitucionalizações
impulsionadas pela redemocratização que alcançou países do
antigo Leste Europeu, e da África. O movimento continua,
mais recentemente, com a crescente incorporação de até
mesmo uma dimensão teocrática no constitucionalismo6 em
experiências nacionais diversificadas, compreendendo países
do sudeste da Ásia, da África sub-saariana e do oriente
médio7.
Mais de duas décadas depois de sua promulgação, a
Carta de Outubro pode ser analisada sob a perspectiva das
diversas categorias de constitucionalismo que as referida
experiências permitiram cunhar, compreendendo um vasto
elenco, que vai desde aquele identificado como de
transformação8, passando ainda pelo latinoamericano9,
aspiracional10, e tantos outros que a literatura mais
recente aponta.6 Explorando o impacto das teocracias constitucionais sobre oconstitucionalismo transnacional baseado no caráter autoritativa devalores seculares fundados num standard de direitos humanos compretensões universalizantes, consulte-se BACKER, Larry Catá, God(s)Over Constitutions: International and Religious TransnationalConstitutionalism in the 21st Century. Mississippi Law Review, Vol.27, 2008, p. 101-154, disponível em SSRN:<http://ssrn.com/abstract=1070381>, acesso em 19 de julho de 2012.7 HIRSCHL, Ran. The Theocratic Challenge to Constitution Drafting inPost-conflict States. William and Mary Law Review, Vol. 49, Issua 4,p. 1170-1211.8 MARLE, Karin Van. Transformative constitutionalism as/and critique. Stellenbosch Law Review = Stellenbosch Regstydskrif, Vol. 20, Issue 2,2009, p. 286-301.9 PASTOR, Roberto Viciano e DALMAU, Rubén Martínez. ¿Se puede hablarde un nuvo constitucionalismo latinoamericano como corriente doctrinalsistemarizada? [online], disponível em<http://www.juridicas.unam.mx/wccl/ponencias/13/245.pdf>, acesso em 21de junho de 2012.
8
Não se pretende no presente texto analisar esses
fascinantes modelos de constitucionalismo indicados pela
fervilhante produção na área; é possível, para o exercício
que se propõe, partir-se de um elemento que é comum a todas
essas categorias, a saber, a afirmação de um compromisso do
Texto Fundante para com uma agenda de mudanças que promova
à inclusão social11, normalmente num contexto de superação
de um legado originário de um passado, muitas vezes
recente, de violência e exclusão.
Não se está aqui afirmando nada que não se inclua na
compreensão já consolidada de que os modelos de
constituição do período pós-45 tinham na ideia força da
dignidade da pessoa um elemento irradiante e subordinante
de toda a compreensão da arquitetura constitucional12,
determinando uma orientação finalística à atuação do
10 SCHEPPELE, Kim Lane. Aspirational and aversive constitutionalism:the case for studying cross-constitutional influence through negativemodels. International Journal of Constitutional Law (I-CON), Volume1, Number 2, 2003, p. 296-324.11 YEH JIUNN-RONG e CHANG WEN-CHEN, The Changing Landscape of ModernConstitutionalism: Transitional Perspective (March 31, 2009). NationalTaiwan University Law Review, Vol. 4, No. 1, pp.145-183, 2009,disponível em <http://ssrn.com/abstract=1482863> , acesso em 3 defevereiro de 2012.12 Importante registrar a divergência de Sartori em relação àassociação desse atributo do constitucionalismo – thelos, identificadocomo um regime de liberdades protegidas em favor dos indivíduos – aoperíodo pós-45, afirmando o jurista que a rigor, visão de que osentido garantista da constituição tenha sido precedido por um sentidomais amplo, formalista, carece de prova histórica; que o fato recentetenha sido, em verdade, a equivalência que se empreendeu entreconstituição e qualquer estruturação de govermo, essa sim refletindouma ilusão jurídica de que se pudesse construir um direito universal,despolitizado, purista. (SARTORI, Giovanni. Constitutionalism: apreliminary discussion. The American Political Science Review, Vol.56, Nº 4, Dec., 1962, p. 863).
9
poder13. O que se pretende destacar – pela relevância que
terá para a compreensão da nova matriz do controle judicial
de políticas públicas – é que o desiderato constitucional
associa a busca da transformação social e da indispensável
inclusão, à consolidação de uma democracia substantiva;
projeto coletivo e recognitivo, que não pode se ver
reduzido, pelas dificuldades a ele interentes, a uma
atuação pontual de qualquer dos braços especializados de
poder.
Vários – e relevantes – são os efeitos do prestígio em
favor desse propósito constitucional de promoção da
inclusão social, sistematizados com precisão cirúrgica por
Langa14: um compromisso com o acesso à justiça igualitária,
uma mudança na estrutura da decisão pública que se desloca
de um eixo da autoridade para o da justificação, a cunhagem
de uma nova cultura e formação jurídica, e ainda um
compartilhamento de responsabilidades pela promoção desta
transformação.
A chave de compreensão desse propósito dos
constitucionalismos já do século XXI está em que se cuida:
1) de um projeto de inclusão cunhado sob o signo da
igualdade; 2) que subordina igualmente a todos os poderes
13 Para uma interessante abordagem dos reflexos da centralidade dapessoa sobre as tradicionais funções do Estado, rompendo com a velhalegitimidade positivista, para abraçar a sociedade como o centro degravidade do direito contemporâneo, consulte-se MOREIRA NETO, Diogo deFigueiredo. Poder, direito e Estado. O Direito Administrativo emtempos de globalização. In memoriam de Marcos Juruena Villela Souto.Belo Horizonte: Editora Forum, 2011, p. 80.14 LANGA, Pius. Transformative constitutionalism. Stellenbosch LawReview, 2006, [online], disponível em<http://sun025.sun.ac.za/portal/page/portal/law/index.afrikaans/nuus/2006/Pius%20Langa%20Speech.pdf> , acesso em 1º de abril de 2012.
10
políticos organizados; 3) cuja materialização requer uma
especial justificação; 4) num contexto de responsabilidades
comuns. Tudo isso, de outro lado, se desenvolve tendo o
direito quando menos, por canal de veiculação15.
Observe-se que a promoção da inclusão proposta pelos
movimentos constitucionais comprometidos com a
transformação envolve uma prática pública cujo apoio está
na legitimação permanente de suas escolhas – atributo que
só se conquistará com um processo necessariamente plural,
que transcende aos limites do poder político formal
(Estado), e busca na sociedade, também firmadora deste
compromisso com a mudança, o compartilhamento dos desafios
inerentes ao câmbio. Afinal, o Direito é canal possível da
transformação – mas ele não esgota em si todos os elementos
necessários à sua promoção, sendo certo que a pretensão
inclusiva e igualitária no campo de direitos que são por
sua própria natureza compartilhados, envolverá sempre um
acordo em relação a um determinado nível de abdicação ou
renúncia daqueles que já usufruam daquela situação
subjetiva, em favor dos que ainda não a alcançaram. Por
isso, os reclamos inerentes ao constitucionalismo
transformador, da permanente construção social do consenso
possível, preferencialmente pelas vias de deliberação
política ordinária – legislativo e executivo. Essa
formulação tem ainda por inequívoca vantagem, o reforço de
um processo de avanço da agenda de inclusão, que não exclui
os não (mais) titulares do poder político majoritário,
15 KLARE, Karl. E. Legal Culture and Transformative Constitutionalism,14 South African Journal on Human Rights 146 (1998).
11
contribuindo, por essa prática de conciliação, para a
consolidação de uma estabilidade em favor da nova ordem
político-institucional.
A transformação que uma constituição que se pretende
normativa16 quer empreender, portanto, envolve a cunhagem
de um processo político que transcende os limites da
individualidade, e tem por sujeito constitucional autor e
destinatário, não o eu, mas o eu e o outro17; plurais, com
quereres e necessidades distintas – mas todos integrando
esta mesma coletividade que a Carta quer regular. Isso tem
profundos reflexos sobre o modelo institucional que deve
operar essa mesma constituição – que há de refletir esse
16 A expressão aqui se utiliza no sentido ontológico da classificaçãoproposta por Loewenstein: diz-se normativa a constituição quando elaefetivamente governa o processo político, ou determina que este mesmoprocesso se ajuste às suas normas; na expressão do autor, aconstituição é como um terno que assenta bem, e que é realmenteutilizado. (LOEWENSTEIN, Karl. Political power and the governmentalprocess. USA: The University of Chicago Press, 1958, p. 148).17 Também os fundamentos pelos quais se possa afirmar aindispensabilidade de visão não só do eu – mas também do outro –quando se cogita de concretização do projeto constitucional sãodiversificados. Assim, seja na perspectiva hegeliana da identidade dosujeito constitucional, que só se tornaria predicável com oreconhecimento do outro (ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeitoconstitucional. Tradução de Menelick de Carvalho Netto. BeloHorizonte: Mandamentos Editora, 2003, p. 31); seja na visão sul-africana que preconiza o ubuntu como valor não só moral, mas revestidode conteúdo jurídico (CORNELL, Drucilla e MUVANGUA, Nyoko. Ubuntu andthe Law. African ideals and postapartheid jurisprudence. New York:Fordham University Press, 2012); seja naquela percepção que associa areal efetividade dos direitos socioeconômicos à observânciaindispensável de uma matriz coletiva (VALLE, Vanice Regina Lírio do.Direitos sociais e jurisdição: riscos do viver jurisdicional de ummodelo teórico inacabado. In KLEVENHUSEN, Renata Braga (coord.).Direito público e evolução social – 2ª série. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2008, p. 309-328); fato é que não há como se cogitar detransformação social na perspectiva individual.
12
sujeito constitucional cuja auto-identidade depende da
vontade e da auto-imagem do outro18.
De outro lado, é inequívoco que os déficits de atenção
estatal originários do passado criam situações fáticas
absolutamente apartadas do ideário de vida digna, o que
reclama urgência no seu enfrentamento. Significa dizer que
o projeto de transformação exige cautela na sua
implementação, mas tem urgência – o que cria uma evidente
contradição a ser enfrentada pelas estruturas
institucionais incumbidas deste mister.
Na experiência brasileira – e nisso, ela não se revela
tão distinta daquela internacional – a consolidação da
dimensão representativa do princípio democrático determinou
de pronto, um redirecionamento das prioridades às
aspirações associadas à garantia de direitos
fundamentais19. Esse movimento se deu a partir de uma
perspectiva claramente identificada com aquilo que
Comanducci denomina neoconstitucionalismo ideológico20,
onde este objetivo garantístico se põe em primeiro plano,
relegando ao segundo plano o objetivo da limitação do poder
estatal. Passa-se, portanto a uma reflexão teórica e a um
viver jurisdicional dos direitos fundamentais que se
18 ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional.Tradução de Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: MandamentosEditora, 2003, p. 37.19 Esse deslocamento do objeto das reivindicações se viu facilitadopelo caráter analítico do texto constitucional – que juridicizavarelações de débito e crédito entre cidadania e Administração Pública,que em outros contextos, se apresentariam como problemas próprios aocampo das escolhas políticas.20 COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisismetateórico. in CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s), Madrid:Editorial Trotta, 2003, p. 75/98.
13
constrói a partir de ferramentas de subordinação do poder a
essa ideia matriz – mas não de indução à recondução desses
mesmos braços especializados de poder político, a uma
trajetória constitucionalmente desejável de funcionamento,
que tenha na realização desses mesmos direitos frustrados,
sua principal perspectiva.
Curioso como passou desapercebida – e esse parece ser
o estado de coisas até hoje – a circunstância de que
secundarizar a dimensão de conformação do poder estatal
importava em manietar o próprio processo de transformação.
Isso porque a institucionalidade ordinária do poder
político, suas funções e relações de interdependência
recíproca, haveriam de merecer igualmente uma
reaproximação, de modo a lhe permitir a formação de uma
base institucional apta a dar sustentação e continuidade
aos processos políticos definidos. Secundarizar o debate
acerca da limitação do poder em favor do viés dos direitos
é supor que as posições subjetivas asseguradas pela Carta
de 1988 admitam materialização sem o necessário concurso de
uma estrutura cratológica reconfigurada – o que não é
verdade, nem no cenário de normalidade, onde a
institucionalidade política se incline ao cumprimento de
seus deveres constitucionais; e menos ainda em estado de
infidelidade constitucional.
Desloca-se nessa concepção de constitucionalismo
garantista, o foco do antagonismo sempre manifesto em
relação ao Estado, desde a sua identificação com o Leviatã.
Se antes o objetivo era limitar o poder pelo que ele
14
representava de ameaça à liberdade21; agora se hostiliza e
subordina essa mesma institucionalização do poder político
organizado por conta de sua sempre alegada omissão ou
insuficiência no atendimento às demandas originárias dos
compromissos constitucionais com a jusfundamentalidade de
direitos. Essa colisão entre os pilares de sustentação do
texto constitucional se resolve sempre e sempre em favor da
proteção aos direitos fundamentais em qualquer de suas
dimensões – sem que dedique maior consideração às
possibilidades de refinamento dos mecanismos de
funcionamento do poder político, tido como tradicionalmente
refratário a seus cometimentos constitucionais.
Aqui já se põe uma primeira e relevante indagação:
qual a efetiva transformação que uma exegese e aplicação
judicial do texto constitucional dessa natureza tende a
determinar? Cuida-se aqui da busca sistematizada de
superação das desigualdades, para condução da sociedade a
um patamar mínimo de inclusão que permita o seu
desenvolvimento subsequente a partir de um permanente
deliberar democrático – ou tem-se uma prática simplista da
indulgência, que ao revés de emancipar a pessoa humana,
esvazia-lhe a vontade, mergulhando-a no alheamento de quem
não é sujeito da transformação, mas seu objeto? Em síntese,
é verdadeira – ou pode ser verdadeira – a afirmação de que21 É de García de Enterría a arguta observação de que a história daredução das imunidades do poder, da constante resistência que aAdministração opôs à exigência de um controle judicial pleno de seusatos mediante a constituição de reduto isentos e não fiscalizáveis desua própria atuação, se pode dizer, em geral se confunde com a própriahistória do Direito Administrativo (GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Lalucha contra las inmunidades del poder. 3ª ed., Madrid: Civitas, 2004,p. 26).
15
as Cortes se revelem por si só, sem o concurso dos demais
integrantes da chamada esfera pública, adequadas
propulsoras da transformação social?
3. Controle judicial de políticas públicas: o primeiro
discurso de justificação e os riscos na formulação das
escolhas trágicas
Um dos instrumentos de maior destaque nas prescrições
normativas dos múltiplos constitucionalismos que hoje se
apresentam – inclusive o latinoamericano – é a inclusão no
Texto Fundante, de um elenco de direitos sociais traduzidos
normalmente em prestações positivas orientadas à “transição
das liberdades formais abstratas para as liberdades
materiais concretas22”. Se nos primeiros momentos de
aplicação da Constituição de 1988, velhas discussões
relacionadas à eficácia imediata dos direitos fundamentais
ainda se puseram; isso rapidamente se viu superado, seja
pela literalidade do próprio art. 5º, §§ 1º e 2º CF, seja
por uma incorporação ao imaginário da comunidade jurídica
(acadêmica e judiciária) da importância do investimento de
engenharia intelectual na conversão em realidade, dos
compromissos constitucionais.
3.1 Controle judicial sobre políticas públicas já
normativamente parametrizadas: saúde e educação
22 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel.Curso de direito constitucional, São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2012, p. 261.
16
Embora por ocasião dos primeiro 10 anos da Carta se
pudesse ainda reclamar uma incompletude dos modelos de
direitos fundamentais23; o início do século XXI marcou uma
significativa virada compreensiva, com uma intensificação
expressiva da judicialização das reivindicações atinentes
aos direitos fundamentais sociais, notadamente no campo da
saúde.
Essa tendência – de controle jurisdicional do
cumprimento da chamada dimensão objetiva dos direitos
fundamentais – alargou-se para compreender ainda prestações
no campo do direito à educação, em especial aquela pré-
escolar, sendo conhecidos os precedentes estabelecidos pelo
Supremo Tribunal Federal24 na asseveração da possibilidade
do amplo controle de políticas públicas25, especialmente
quando a omissão ou a deficiência da prestação pelo Estado
estivesse a comprometer o atendimento em si ao direito
fundamental constitucionalmente assegurado.
Importante ter em conta que os dois referidos campos
onde a judicialização de direitos socioeconômicos23 VEIRA, José Ribas. A Constituição Federal de 1988 e um modelo deDireitos Fundamentais incompleto. in CAMARGO, Margarida Maria Lacombe(org.). 1988 – 1998 Uma década de constituição. Rio de Janeiro:Renovar, p. 93-102.24 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 639337 AgR, Relator Min.Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT, vol. 02587-01, p. 125.25 Registre-se a utilização no mais das vezes atécnica da expressão“controle de políticas públicas”, para compreender intervençõesjudiciais que materializam tão-somente um dever de oferta deprestação, ou por vezes a sindicância de um ato administrativo,desconhecendo que um conceito, ainda que inicial de política pública,identifica-a como “programa de ação governamental visando realizarobjetivos determinados” (BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito depolítica pública em direito in _____ (org.). Políticas públicas:reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Editora Saraiva, 2006,p. 1-49)
17
originalmente se pôs no Brasil – saúde e educação –
envolviam misteres estatais com detalhada política pública
em andamento, envolvendo previsões constitucionais,
legislativas e infralegislativas, especialmente à conta do
compartilhamento de competências entre as entidades
federadas. Assim, no âmbito da saúde, o Sistema Único se
apresenta como o mecanismo institucional
constitucionalmente desenhado para a oferta deste tipo de
prestação, exigindo normatização específica que permita a
coordenação de esforços preconizada pelo art. 198 e 200
CF26. Da mesma forma, na educação pública, os imperativos
de harmonização de um sistema nacional onde os distintos
níveis de escolaridade são deferidos a diversas entidades
federadas, reclamavam específica disciplina normativa, o
que se deu a partir da Lei 9394 de 20 de dezembro de 1996
(Lei de Diretrizes e Bases). Num e n’outro caso, o
regramento parte do texto constitucional, alcança
legislação nacional e depois se desdobra em manifestações
normativas locais, contemplando não só a repartição de
competência e princípios regedores, mas também a
instituição de mecanismos de financiamento, estes igualment
constitucionalizados a partir das EC’s 29/00 (saúde), bem
como 14/98 e 53/06 (educação).
É certo que a judicialização do direito à saúde e à
educação envolveu uma espiral crescente de pedidos que
26 Essa normatização, como se sabe, sobreveio com a edição da Lei 8080de 19 de setembro de 1990, que “Dispõe sobre as condições para apromoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e ofuncionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”,sendo depois detalhada em diversos outros instrumentos normativos.
18
compreenderão por vezes, inclusive a outorga de prestações
não compreendidas na política pública em andamento – ou em
condições distintas daquelas traçadas pelos programas de
agir estatal pertinentes27. Todavia, esse tipo de
ocorrência ainda se afigura como menos significativo
controle judicial do cumprimento em tese da política
pública como um todo.
A grande maioria das demandas ainda envolverá uma
atividade ou prestação material que já se compreende no
sistema, e que por uma razão ou por outra, não foi
destinada àquele jurisdicionado específico. Assim, saúde e
educação se apresentavam ao final da década de 90 como
direitos sociais de sindicabilidade mais imediata enquanto
possibilidade jurídica, posto que envolviam prestações pré-
definidas, cujas condições de deferimento se tinha por
razoavelmente parametrizadas.
Nesse sentido, é compreensível que tenham sido esses
os campos onde originalmente a tese da sindicabilidade das
políticas públicas se pôs, sob a dupla justificação
argumentativa de que se cuidava da proteção à vida ou à
dignidade; e de que o crivo judicial incidia sobre uma
27 No campo específico das políticas públicas de saúde, o tema era detal forma relevante que determinou a formulação de quesitosespecíficos – os de nºs. 3, 4 e 5 – cunhado pelo Presidente do SupremoTribunal Federal na audiência pública da saúde: 3) Obrigação do Estadode custear prestações de saúde não abrangidas pelas políticaspúblicas existentes; 4) Obrigação do Estado de disponibilizarmedicamentos ou tratamentos experimentais não registrados na ANVISA ounão aconselhados pelos Protocolos Clínicos do SUS; 5) Obrigação doEstado de fornecer medicamento não licitado e não previsto nas listasdo SUS (BRASIL.Supremo Tribunal Federal. Despacho de convocação deaudiência pública de 5 de março de 2009, disponível em<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Despacho_Convocatorio.pdf>, acesso em 28 de agosto de 2012).
19
política pública existente e em andamento. Incluía-se o
debate do controle judicial de políticas públicas em
terreno conhecido, e aparentemente receptivo à matriz da
função jurisdicional, que envolve o contraste entre conduta
e parâmetros legislativos e constitucionais. Ademais, o
argumento de contradita da violação ao equilíbrio e
harmonia entre poderes se tinha por temperado à medida em
que não se cuidava de inovação absoluta no conjunto de
deveres de atuação da Administração – mas de controle de
adequação de um programa de agir estatal já cunhado e em
curso.
O problema se põe com a incorporação ao círculo de
debates, de outros direitos de fundo socioeconômico sem o
mesmo detalhamento no campo das políticas públicas
correspondentes, onde as escolhas trágicas podem se revelar
mais sensíveis.
3.2 Controle judicial de políticas públicas que exijam
a formulação, pelo agente controlador, de escolhas
alocativas
Tomemos o tema mais recentemente incorporado à pauta
das lides forenses – o direito à moradia – cuja asseguração
constitucional não encontra qualquer outro elemento
definidor das políticas públicas que o devam assegurar, que
não a inclusão no rol contido no art. 6º, caput CF. Aqui,
na lição de Calabresi e Bobbitt28, o atendimento à
28 CALABRESI, Guido e BOBBIT, Philip. Tragic Choices. The conflictssociety confronts in the allocation of tragicaly scarce resources.
20
pretensão judicializada envolve duas categorias de
determinações distintas: a primeira delas, de ordem global,
que define a mensuração/garantia da disponibilidade em si
de bens escassos (por condição natural, ou por força de
escolhas de prioridades alocativas); e a segunda, que
envolve, a partir da definição do universo de bens
disponíveis, quem sejam os destinatários de sua provisão.
Estas determinações por sua vez, constituem elementos
integrantes de uma política pública, que à vista do
resultado do primeiro recorte (disponibilidades) empreende
às subsequentes escolhas alocativas (quem sejam os
destinatários daquela ação estatal).
No direito fundamental à moradia de que se está
cogitando, as primeiras determinações (que compreendem
inclusive a consideração de que o bem moradia é
naturalmente sujeito a limitações, vez que reclama espaço
físico aproveitável a essa finalidade) envolverão escolhas
como qual seja o mecanismo de atendimento à aspiração em si
– que pode compreender providências outras que não a oferta
de unidades habitacionais29. Caso a opção recaia sobre a
oferta em si da moradia, as determinações compreenderão
ainda a eleição quanto ao tipo de abrigo (casas,
edifícios)30, em que quantidade e local. Já na segundaNew York – London: W. W. Norton & Company, [s/a], p. 19.29 No Estado do Rio de Janeiro, assim como no Município do Rio deJaneiro, uma das alternativas – dentre outras – contempladas pelapolítica pública em curso no tema do direito à moradia envolve aoferta de uma prestação mensal em dinheiro (“aluguel social”), que sedestinaria a viabilizar em favor dos vulneráveis assistidos, oprovimento de abrigo por força de um vínculo contratual de qualquernatureza com terceiros.30 Esse tipo de determinação, embora pareça comezinho, tem fortesrepercussões econômicas; na potencialização do número de unidades
21
ordem de determinações será necessário identificar em favor
de quem outorgar as referidas unidades habitacionais,
dentre um sempre variado conjunto de necessidades
igualmente relevantes31. Tais escolhas materializarão a
política pública aplicável na matéria – em seara onde o
texto constitucional sequer define quem seja a entidade
federada competente para atuar.
Importante ter por claro que as categorias clássicas,
constantemente trabalhadas a partir de uma perspectiva
puramente abstrata como mínimo existencial32, de pouca
valia serão para delimitar o espaço de controle pelo
judiciário de políticas públicas no campo da moradia.
Afinal, nem mesmo da ausência absoluta de moradia se pode
extrair a conclusão de violação ao mínimo existencial – à
medida que ela não se confunde com o desabrigo33, essa sim,
ofertadas, mas também na adesão pelos destinatários da políticapública ao programa. Afinal, não é indiferente para viabilizar umaremoção, o dado cultural daquela comunidade alcançada, onde por vezesa moradia – precária que seja – mas com potencial de ampliação, comonormalmente se dá com as casas, é tida por mais adequada ouvalorizada, vez que permitirá o abrigamento futuro de novoscomponentes da família.31 Ainda no campo da moradia, é possível figurar como elegíveis aosprogramas habitacionais – todos concorrendo para um mesmo número debens escassos – ocupantes de área de risco, invasores de propriedadeprivada sempre sob a ameaça de desalijo, ocupantes de áreas nãoedificáveis por implicações ambientais; ocupantes de áreas públicas,desabrigados alcançados por tragédias naturais (enchentes,deslizamentos), e ainda ocupantes de áreas que serão alcançadas porprogramas públicos de intervenção urbana.32 TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.33 O compartilhamento de moradia por distintos membros de uma mesmafamília, inclusive quando se delineiam novos núcleos familiares (osfilhos recém casados, por exemplo) é uma prática comum em váriospaíses do mundo, em distintas classes sociais, no cenário urbano erural, sem que disso se possa afirmar que o novo casal tenha violado odireito fundamental à moradia.
22
condição que pela supressão do achego que é próprio do
refúgio, pode se por em contraste com a proteção à
dignidade humana.
O ponto central é que em direitos socioeconômicos
dessa natureza, toda inclusão implicará necessariamente
numa exclusão; a primeira ordem de determinações subordina
à segunda, e as relações são de compartilhamento entre
virtuais destinatários (ante a escassez natural) e de
intrínseca interdependência com outras políticas públicas,
também orientadas à concretização de outros direitos
sociais34. Se essas opções já envolvem grande complexidade
quando se está no campo da delimitação em si de políticas
públicas no âmbito da Administração Pública – onde os
elementos de informação acerca do problema, dos recursos
disponíveis e das potenciais soluções revelam-se mais
acessíveis – ; com maior razão quando se cuide de controle
judicial do alegado inatendimento destes mesmos direitos
socioeconômicos.
O controle judicial de políticas públicas no campo dos
direitos socioeconômicos atrairá portanto, um exame de
adequação dos vários programas de agir estatal que
eventualmente se tenha em curso em favor de um mesmo
universo possível de cidadãos reclamando proteção. Intervir
nessas hipóteses, para determinar uma prioridade de
atendimento com a outorga da prestação pecuniária ou mesmo
da unidade habitacional, implica em excluir aquele que se
34 SACHS, Albie. The Sobramoney Case – broader questions. in _____. Thestrange alchemy of life anda law. Great Britain: Oxford UniversityPress, 2009, p. 189.
23
veria – antes da intervenção judicial – destinatário da
atuação estatal. Esse é o lado irrevelado da tese do amplo
controle judicial de políticas públicas, que em nome de
incluir (o jurisdicionado), culmina por promover a exclusão
de alguém que também é vulnerável, e que conta ainda em seu
desfavor com a circunstância de não ter tido oportunidade
de trazer sua história humana, sua presença como ser que
sofre, ao conhecimento do juiz sensível35.
Outras desfuncionalidades podem decorrer de uma
aproximação sob a perspectiva individual, da microjustiça
nos conflitos envolvendo a garantia ao direito fundamental
à moradia: a casuística crescente nos grandes centros
aponta isso.
Os conflitos entre particulares e invasores de toda
ordem, que resultem em provimento jurisdicional em favor da
proteção à propriedade e posse do particular resultam, como
é sabido, em desalijo, e portanto, em risco ao direito
fundamental à moradia dos invasores e à preservação em seu
favor de um modo de vida digno. Disso decorre o imediato
ajuizamento de medida judicial no sentido de que assegure o
Poder Público o malferido direito à moradia – no mais das
vezes surpreendendo uma Administração Pública que, não
35 Registre-se que isso é a negação das tradicionais tesesjustificadoras da legitimidade do controle judicial, onde aobjetividade e neutralidade da técnica estariam a permitir aintervenção retificadora. Se os temas se resolvem pelo lado emocional,no espaço de indeterminação de conceitos jurídicos de textura abertacomo normalmente se tem presentes nas cláusulas enunciadoras dedireitos fundamentais, esvazia-se o potencial de aceitação possível deautoridade do argumento, e a ordem judicial passa a se fundar tão-somente no argumento de autoridade, contaminando por sua vez o ideáriodemocrático que integra o núcleo de um constitucionalismotransformador.
24
integrando o conflito possessório anterior, que se deu
entre particulares, sequer tinha conhecimento da ameaça ao
tanto citado direito fundamental. O efeito em situações que
tais é conferir em última análise, ao particular
proprietário, o condão de estabelecer a pauta de prioridade
no atendimento pelo Poder Público ao direito fundamental à
moradia. Isso porque a garantia do exercício do direito de
propriedade individual se dará sob o temperamento da
proteção à moradia, não por qualquer atuação do
proprietário – mas do Estado, convocado a tanto como mera
consequência do litígio particular anterior. Curiosamente
em situações que tais, não se identifica sequer a cogitação
de eventuais efeitos da tese da horizontalidade dos
direitos fundamentais, cabendo sempre ao Estado
exclusivamente, o papel de seu garantidor.
Outro desvio de perspectiva comum nos conflitos de
moradia – onde, repita-se, é escassa a determinação do
conteúdo das políticas públicas na matéria, carecendo o
Judiciário de um padrão anterior de racionalidade normativa
a aplicar – é aquele em que, na tensão entre direito à
moradia e eventuais implicações ambientais de uma
construção normalmente irregular, opera-se a solução em
favor à proteção à moradia, preservando-se a presença na
área ambientalmente protegida por se considerar esse o meio
consentâneo de assegurar proteção ao vulnerável. Aqui, seja
na ordem judicial que determina a permanência no local;
seja naquela que determina a priorização nos programas de
moradia ou de oferta de prestação pecuniária destinada a
25
tanto, aquele que se instala em área protegida (praticante
de duplo ilícito; o edilício e o ambiental) passa a merecer
um signo de prioridade decorrente da intervenção
jurisdicional que, visto o cenário a partir da perspectiva
do todo, revela-se iníquo.
Mesmo nas clássicas hipóteses de retomada de espaço
público, com a pretensão de desocupação de bens públicos
invadidos recentemente ou de há muito; a matriz de
raciocínio que identifica sempre a preferência pela
proteção à moradia (dos invasores) se constrói a partir de
uma perspectiva equívoca: a de que o conflito envolve na
hipótese, Estado e titular de direito fundamental à
moradia. Embora essa seja uma alternativa possível – quando
a ação administrativa de desocupação se prende pura e
simplesmente à devolução ao público do bem que é de seu uso
comum; não é menos possível que a desocupação do espaço
público seja providência inicial para a oferta de um
equipamento igualmente público à sociedade, o transmudaria
as partes integrantes do conflito para invasores, e
coletividade que seria beneficiária da ação estatal que se
quer desenvolver na área ocupada.
É certo que nas três hipóteses aqui figuradas –
desocupação de área privada, de área protegida sob a
perspectiva ambiental e de área pública – é possível
ponderar sobre a importância do aperfeiçoamento dos
mecanismos de sua concretização; garantia de devido
processo no desalijo; proteção à confiança, e várias outras
matizes igualmente caras a um Estado que se afirma
26
Democrático e de Direito. Mas todas essas cogitações dizem
respeito ao aperfeiçoamento da atividade administrativa (ou
mesmo judiciária); e nenhuma delas se tem por viabilizada
pela simples decisão que assegura um determinado direito na
perspectiva individual.
O quadro que se desenha notadamente num direito como
aquele à moradia, carente de maior delimitação das
obrigações recíprocas, suscita o problema da legitimidade
destas mesmas escolhas trágicas, muitas vezes empreendidas
sem a plena compreensão do seu alcance em sede de controle
judicial de políticas públicas no campo dos direitos
sociais – e ao mesmo tempo, a anunciada tensão entre
transformação e regressão social. A “bondade” da decisão
judicial em favor do atendido revelar-se-á “maldade” em
relação a terceiro não integrante do processo (e que
portanto, não teve a oportunidade de narrar a sua
história), mas destinatário natural da política pública
segundo o critério objetivo formal construído na segunda
ordem de determinações.
Mais ainda, a “bondade” da decisão judicial que
assegura por uma razão ou por outra, prioridades no
atendimento em relação a bem escasso como o é a moradia,
pode culminar por estimular condutas socialmente
indesejadas como a invasão de espaço público ou área com
implicações ambientais; já que a solução para essa
problemática estaria a lhes assegurar um prioridade que
originalmente não deteriam.
27
Impõe-se portanto a incorporação – na matriz de
construção da decisão judicial – dessa dimensão pragmática,
consequencialista, sem o que a outorga da jurisdição se
dará a partir de uma perspectiva individualista que em
verdade, não acolhe relevante elemento conceitual do que
sejam direitos sociais. É de Novais36 o destaque de que o
elemento de particularização dessa espécie de direitos é
que determina a busca da garantia em favor dos indivíduos –
todos que deles necessitam – de bens escassos aos quais só
se consegue aceder se dispuserem por si próprios, por
instituições ou pelo Estado, de suficientes recursos
financeiros ou ajuda de outra espécie que lhes facilite o
alcance. Se assim é, a observância do compromisso
constitucional para com a efetividade dos direitos sociais
é resultado que não se alcançará a partir de uma
perspectiva da jurisdição que estimula o
hiperindividualismo e desconsidera a coletividade.
A segunda conclusão parcial que se propõe, é a de que
as referidas escolhas trágicas – que inevitavelmente se dão
no plano da cunhagem das políticas públicas objeto do
controle jurisdicional, ou no crivo desenvolvido pela
jurisdição quando da judicialização do conflito – num
contexto de compromisso constitucional com a
democratização, compreendem necessariamente um envolvimento
dos atores sociais, num processo de seleção de prioridades
que não pode resultar tão-somente do signo autoritativo do
36 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais. Teoria jurídica dos direitossociais enquanto direitos fundamentais. Portugal: Wolters Kluwer –Coimbra Editora, 2010, p. 41.
28
argumento técnico-jurídico – mas deve defluir de uma
competente justificação. É o que se passa a desenvolver.
4. Direitos fundamentais socioeconômicos e a tensão
permanente entre transformação e regressão
A tensão entre um Estado provedor de todas as
necessidades albergadas sob a categoria dos chamados
direitos sociais, e a necessária emancipação da cidadania
foi já denunciada por Goyard-Fabre37:
Como não ver que o intervencionismo doEstado-providência em todos os camposaniquila a autonomia das vontades, ouseja, a responsabilidade dos sujeitos dedireito? Não será um sofisma reclamar tudodo Estado, quando se pretende promover orespeito à dignidade própria da pessoahumana? Ademais, a proliferação dos“direitos” provoca sua desvalorização, desorte que, se tudo é direito, nada mais édireito.
O repto se justifica ainda por outro aspecto
igualmente relevante. É justamente a superação do legado de
injustiças do passado que se intenta alcançar pela
transformação social veiculada também pelo compromisso para
com os direitos fundamentais sociais, que eiva o processo
de sua enunciação constitucional, de um caráter certamente
37 GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito políticomoderno. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.337. Traduzido de Les principes philosophiques du droit politiquemoderne.
29
menos consensual, se não conflitivo – e por diversas
razões.
Um primeiro ponto de possível tensão entre
transformação e regressão envolve qual dentre os deveres
estatais normalmente associados aos direitos sociais – de
proteção ou defesa, de prestação jurídica ou material e de
participação – será objeto de prioritária atenção pelo
Estado. Isso porque, como bem destacado por Novais38,
embora se associe a tutela a direitos sociais com os
deveres de prestação material pelo Estado, é possível que
as condições de desenvolvimento de uma determinada
sociedade – ou de uma parcela dela – reclamem maior ênfase
em outra das dimensões, como a de proteção ou de
participação. Em sociedades cindidas pela desigualdade
social em verdade, essa dualidade entre direitos de defesa
e aqueles a prestações materiais reproduz a dicotomia entre
ricos e pobres, e o balanceamento dessas duas dimensões de
atuação estatal pode ser fator determinante para a
consolidação de um equilíbrio social e institucional que,
nos primeiros momentos de transição política, possivelmente
se revelará frágil39.
38 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais. Teoria jurídica dos direitossociais enquanto direitos fundamentais. Portugal: Wolters Kluwer –Coimbra Editora, 2010, p. 43-44.39 Exemplo em que essa necessária conciliação entre proteção ao que setinha, e promoção da inclusão social de uma significativa parcela dapopulação a quem as necessidades mais elementares eram desatendidas setem na África do Sul. É de Sachs a narrativa acerca das desconfiançasem relação a uma possível apropriação pela elite dominante, pela viados deveres de proteção, do discurso de proteção aos direitosfundamentais sociais, que se cogitava enuncia num “Bill of Whites”(SACHS, Albie. The judge who cried: the judicial enforcement ofsocio-economic rights. in _____. The strange alchemy of life anda law.Great Britain: Oxford University Press, 2009, p. 165-166)
30
Num plano mais pragmático, a incorporação de um
extenso elenco de direitos sociais de eficácia imediata,
com reforço de sua dimensão objetiva e horizontalidade,
pode determinar ainda uma sobrecarga das prestações
estatais relacionadas à promoção do acesso individual a
bens limitados. Esse excesso de demandas, de vez que incide
igualmente sobre recursos limitados – aqueles confiados à
gestão estatal, cuja origem é, em última análise, a
tributação – terá por consequência, medidas mais ou menos
impactantes de justiça redistributiva, que não encontram
necessariamente, integral apoio na coletividade em que elas
incidam.
Não por outra razão, a construção de um
constitucionalismo que contempla uma agenda significativa
de inclusão social, necessariamente haverá de associar a
esse objetivo transformador, mecanismos de reforço do
processo sistema de deliberação democrática, normalmente
com ênfase sua dimensão participativa.
É nesse exercício deliberativo democrático que a
densificação de conteúdo dos direitos sociais poderá
encontrar um ponto de equilíbrio entre proteção e
prestação; entre as medidas jurisdicionais interventivas
associadas à outorga de utilidades materiais e o necessário
signo de legitimidade de que essas deliberações no campo
das prestações socioeconômicas, que traduzem uma inequívoca
seletividade, devem se revestir. Afinal, constitucionalismo
valorativo opera a partir de uma nova lógica de ordenamento
jurídico, que compreende “diversas ‘normas origens’ das
31
quais derivam várias cadeias normativas”40, exigindo uma
construção permanente que reflita os múltiplos valores e
interesses de diversos setores, grupos e classes sociais em
confronto.
Não é esse o modelo – deliberativo democrático,
pluricêntrico41 – que hoje se aplica ao chamado controle
jurisdicional de políticas públicas no cenário brasileiro.
Ao contrário, o que se verifica é uma adjudicação
tradicional, que opera a partir da lógica credor-devedor,
numa relação que se entende sempre se estabeleça entre o
Poder Publico e a cidadania42. Mais ainda, a evocação da
prática do controle judicial de políticas públicas – que
hoje se reveste de uma carga semântica, para muitos,
positiva, porque supostamente tradutora de um Estado
Democrático de Direito – se dá no mais das vezes em
conflitos individuais, que pouco dirão quanto à real
efetividade na produção de mudanças significativas pelas
40 FARIA, José Eduardo. Introdução: o Judiciário e o desenvolvimentosócio-economico. in _____. Direitos humanos, direitos sociais ejustiça. 1ª ed., 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p.24.41 RAY, Brian, Policentrism, Political Mobilization and the Promise ofSocioeconomic Rights (December 9, 2009). Stanford Journal ofInternational Law Vol. 45, p. 1; Cleveland-Marshall Legal StudiesPaper No. 08-154. Disponível em <SSRN:http://ssrn.com/abstract=1098939>, acesso em 28 de agosto de 2012.42 Curiosamente, o tema da horizontalidade dos direitos fundamentais,introduzido no debate acadêmico brasileiro pelo trabalho pioneiro deSarmento, não seduziu o imaginário judicial, que em raríssimasocasiões – nunca no campo dos direitos fundamentais sociais – aplica aideia de que também nas relações privadas a proteção ao esses mesmosbens da vida possa se por, e dirigida não ao Leviatã, mas aoparticular (SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaçõesprivadas. 2 ed. Rio de Janeiro:Lumen Juris Editora, 2006).
32
Cortes nesses programas de ação estatal supostamente
deficientes ou inadequadas43.
Nisso se põe a tensão entre transformação e regressão,
nas hipóteses de controle jurisdicional de políticas
públicas atinentes à concretização de direitos sociais.
Urge porém, examinar os argumentos ainda manejados em favor
do controle jurisdicional de políticas públicas – no
contexto da proteção aos direitos fundamentais sociais – na
busca também aqui, de um ponto de equilíbrio, que permita o
funcionamento do sistema, promovendo a transformação
social, mas na perspectiva realmente emancipadora da
pessoa.
4.1 Judicialização de direitos sociais como
possibilidade de vocalização em favor dos vulneráveis
O argumento ordinário em favor da judicialização dos
direitos sociais envolve a tese de que essa prática confira
àqueles desfavorecidos, destinatários primários de deveres
inatendidos de agir do Estado, vez e voz no ambiente
politicamente neutro dos Tribunais. Essa tese, que durante
muito tempo foi defendida inclusive pela doutrina
brasileira do direito constitucional, que reclamava do
Judiciário a assunção de um papel mais ativo na
concretização dos direitos fundamentais tout court, tem
oposta em contradita, argumentos associados à violação ao
43 ROSENBERG, Gerald N. The hollow hope. Can Courts bring aboutsocial change? 2nd. ed., Chicago-London: The University of ChicagoPress, 2008, p. 5.
33
equilíbrio entre Poderes e à ausência de expertise dos Cortes
para esse tipo de intervenção44.
A reiteração desse tipo de comportamento judicial
interventivo – estendendo-se a políticas públicas no campo
ambiental, habitacional, assistencial, de proteção à
infância e adolescência, dentre muitas e muitas outras –
tem evidenciado outras fragilidades que podem se manifestar
em detrimento do objetivo enunciado formalmente enunciado,
que é aquele do empoderamento dos direitos sociais. Aqui,
no plano de direitos sociais, muitas vezes
transindividuais, onde o traçado das próprias políticas
públicas em execução é ainda insuficientemente denso ou por
vezes sequer existe, a margem de alternativas postas ao
controle jurisdicional aumenta, já que inexistente o
critério de racionalidade formal da lei. Essa a razão para
advertir-se quanto aos riscos de regressão – e não
transformação – em decorrência do favorecimento ao controle
judicial de políticas públicas, ao menos no modelo
substitutivo desenvolvido ordinariamente na casuística
crônica da jurisprudência nacional45.
É o exercício exploratório de conteúdos possíveis de
decisão judicial em tema de direitos sociais que revela as
possibilidades de regressão associadas aos excessos no
44 Sumariando a discussão, consulte-se BARROSO, Luís Roberto.Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. [on line],disponível em<http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> , acesso em 28 de agosto de 2012.45 Para um panorama da aproximação jurisdicional no tema do controle depolíticas públicas, consulte-se VALLE, Vanice Regina Lírio do.Políticas públicas, direitos fundamentais e controle judicial. BeloHorizonte : Editora Forum, 2009, p. 95-140.
34
judicial review envolvendo políticas públicas. Uma primeira
possibilidade é a decisão judicial autocontida ou
minimalista46 – porque envolvendo uma intervenção
excepcional no campo de atuação típico de outro poder, o
que estaria a recomendar um mínimo de intervenção. Cuida-se
aqui de uma atuação que se revela deferente para com os
demais poderes – ainda que lhes assinale eventualmente,
algum dever de agir tendo em conta as peculiaridades do
caso concreto. Essa deferência pode decorrer, no caso do
legislativo, de seu traço representativo e de sua
accountability eleitoral, que fixariam uma natural legitimidade
apriorística da sua escolha, se existente. Já no que toca
ao executivo, a deferência pode decorrer de certa
autoridade epistêmica, reconhecida em função de ser o braço
especializado de poder com maior disponibilidade de
recursos técnicos e informações47.
Por uma razão ou por outra, manifesta a deferência
tem-se que a interpretação restritiva dos direitos
constitucionalmente enunciados havida na decisão
minimalista, pode determinar uma sensação de
inevitabilidade em relação a esse conteúdo mais acanhado do
46 É de Sunstein a lição de que o minimalismo é um atributo possível dadecisão judicial, que empreende à sua contenção no que toca ao alcance(limites objetivos e subjetivos) e à profundidade da argumentação(SUNSTEIN, Cass. One case at a time: Judicial minimalism in theSupreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1997). Uma decisãominimalista, longe de pretender teorizar em relação aos institutos edireitos nela cogitados, promove tão-somente à composição daqueleparticular conflito, nos seus exatos limites, reservando oaprofundamento da discussão epistêmica para outros futuros casos.47 YOUNG, Katharine. G. A typology of economic and social rightsadjudication: Exploring the catalytic function of judicial review.International Journal of Constitutional Law – I-Con (2010), Vol. 8 No.3, p. 392.
35
direito, pela exclusão de determinadas condutas ou
prestações como resultado da incidência dos preceitos
constitucionais objeto da judicial review. Isso porque se o
guardião último da Constituição afirma seja esse o conteúdo
do direito, não haveria, em princípio, mais o que postular.
Essa suposta predeterminação do conteúdo culminaria por
constringir, quer a reivindicação típica dos movimentos
sociais (que poderia pretender um espectro mais amplo no
que toca à proteção daquele especial direito); quer as
possibilidades de atuação corretiva ou ampliativa da
própria Administração em eventual resposta a esses mesmos
movimentos sociais48. Afinal, se o Judiciário afirma que
aquilo que se oferece é suficiente, porque buscar outra
alternativa de conduta mais abrangente?
Observe-se que aqui, o efeito regressivo está a
envolver de maneira direta o próprio conteúdo do direito
social tutelado; e de maneira indireta, o potencial de
desenvolvimento e consolidação de uma democracia
deliberativa real, que valorize a dimensão da participação
e as arenas de debate em relação a temas que envolvam
necessariamente, a prática de escolhas alocativas. Afinal,
ambos os atores que poderiam provocar essa discussão –
movimentos sociais e Administração Pública – se veriam
desestimulados ou dispensados de aprofundar a dialética em
torno da eficácia da política pública em andamento, por
força da acima referida sensação de inevitabilidade.
48 LIEBENBERG, Sandra. Socio-economic rights: adjudication under atransformative constitution. Claremont: Juta & Co, Ltd., 2010, p. 39.
36
No outro extremo, também a decisão da Corte que
intervém de maneira mais forte ou ativista, corrigindo ou
mesmo formulando políticas públicas pode também gerar
sérios e indesejados efeitos de regressão no que toca ao
projeto de inclusão social. Aqui, a impressão (fantasiosa)
de que o Judiciário possua respostas em relação a qual a
melhor maneira de concretizar direitos sociais pode
determinar uma indução – ou reforço – ao imobilismo dos
braços de poder político que deveriam ter cunhado e
executado o programa de agir estatal, e não o fizeram49.
Afinal, se o tema era complexo e a realização das escolhas
alocativas se revelava tortuosa, a inércia pode se revelar
o comportamento menos oneroso para o agente político50 –
especialmente se, no extremo, o Judiciário atua
empreendendo a essas mesmas escolhas, atraindo para si os
resultados (inclusive e especialmente os adversos).
Observe-se que mais uma vez, a regressão pode se dar
tanto no plano da delimitação do conteúdo dos direitos,
como também no viés de reforço dos mecanismos democráticos.
Afinal, em temas sensíveis, onde a concretização das pautas
de inclusão envolva a interface com outros direitos
fundamentais, ou ainda a contrariedade de interesses das
elites; a decisão judicial substitutiva pode desonerar o
seu agente primário de formulação, dos custos políticos da
49 LIEBENBERG, Sandra. Socio-economic rights: adjudication under atransformative constitution. Claremont: Juta & Co, Ltd., 2010, p. 40.50 DIXON, Rosalind, Creating Dialogue about Socioeconomic Rights:Strong-Form versus Weak-Form Judicial Review Revisited (2007).International Journal of Constitutional Law, Oxford Journals, Vol. 5,No. 3, pp. 391-418, 2007. Disponível em SSRN:<http://ssrn.com/abstract=1536716>, acesso em 7 de maio de 2012.
37
decisão. O campo do direito social à moradia será fértil
nesse tipo de oportunidade à regressão, na medida em que a
proibição do desalijo incidente em localidade onde a
edificação seja proibida – por exemplo – proferida em ação
promovida em nome da proteção ao direito fundamental à
moradia, evita a difícil questão do reassentamento, que
nunca se dá em condições tidas por satisfatórias para os
alcançados pela remoção. De outro lado, no plano da
autonomia do sujeito, também a decisão pura e simples de
proibição da remoção oculta a discussão principal, que é a
necessidade do provimento de condições estruturais que
permitam o provimento de moradia adequada e em local
adequado. Finalmente, numa compreensão mais abrangente,
seja do deliberar democrático como prática da construção
das decisões regedoras do convívio coletivo, seja dos
direitos fundamentais como compromissos que incidem também
em relação de horizontalidade, a decisão que puramente
proíbe a remoção em nome da proteção ao direito à moradia
assume como verdade que a solução desse tipo de problema
complexo seja atribuição única e exclusiva do Estado,
esvaziando de conteúdo o objetivo fundamental – que é da
República, e não do Estado – de construir uma sociedade
livre, justa e solidária (art. 3º, I CF).
Outro efeito regressivo possível é aquele do caráter
puramente simbólico no que toca à efetiva transformação
promovida pela deliberação judicial fundada num conflito
que se estabeleceu exclusivamente a partir da matriz do
38
raciocínio jurídico, desprovida dos elementos que nortearam
o traçado da política pública na espécie.
Esse tipo de decisão – mais emocional do que
pragmática – se põe com frequência no campo da proteção ao
direito à moradia, onde a narrativa da demanda é
normalmente bombástica, afirmando o sério risco à dignidade
da pessoa e muitas vezes, também à sua própria segurança.
Afirma-se o caráter simbólico da prestação jurisdicional
nestas hipóteses, por várias razões. Primeiro, a
deliberação judicial envolvendo a outorga de prestações
sociais em feitos individuais, ainda que multiplicada em
expressivos números, sempre será irrelevante no que toca ao
virtual universo de destinatários de uma política pública
inexistente ou inadequada. Em que pese toda a estrutura
institucional facilitadora do acesso à justiça; o número de
alcançados pela jurisdição será sempre significativamente
inferior àqueles que deveriam efetivamente ser protegidos
pelo direito social não concretizado, caso fosse objeto de
uma ação estatal real, consistente e abrangente. Nesse
sentido, a decisão judicial pode se apresentar tão somente
como uma representação pacificadora – e pior, que induza,
mais uma vez, ao imobilismo, à medida em que se revele mais
simples para o Poder Público a gestão das decisões
judiciais condenatórias, do que a construção e
implementação da política pública requerida pela matéria.
Segunda razão pela qual se pode afirmar meramente
simbólica – e, portanto, na essência regressiva a decisão
judicial supostamente assecuratória de direitos sociais –
39
está no uso de cláusulas vagas ou indeterminadas, seja na
sua provocação, seja na sua própria construção, para
superar exatamente o conhecido argumento da ausência de
expertise. Assim é que o pedido inaugural – e em
consequência, o próprio título executivo judicial que dele
decorre – muitas vezes exarado em ação coletiva, não tem
determinação suficiente, seja no que toca à sua dimensão
subjetiva, seja no que diz respeito às providências em si
exigíveis, o que se resulta num pronunciamento formalmente
assecuratório de direitos sociais, mas sem aptidão concreta
para a pretendida garantia, transferindo em verdade o mesmo
debate para uma segunda etapa de litígio, aquela da
execução da sentença.
Uma vez mais, o resultado é regressivo – e não
transformador. Afinal, a enunciação em si do direito, sem
que o título judicial se revele apto a clarificar as
obrigações associadas à sua garantia, não promove inclusão;
ao revés, pode promover no extremo, o próprio descrédito do
Judiciário, que decide, mas não se revelaria capaz de
empreender ao enforcement de suas próprias decisões.
4.2 Judicialização de direitos sociais e o reforço de
estereótipos culturais
Outro aspecto em que a judicialização dos direitos
sociais pode determinar uma prática regressiva – e não
transformadora – envolve a repetição por parte dos atores
que participam da demanda, de estereótipos culturais
40
presentes na sociedade brasileira, ou a menos na autoimagem
que se lhe apresenta.
Primeiro lugar-comum que se vê reproduzido na prática
– supostamente emancipadora – do controle judicial de
políticas públicas em matéria de direitos sociais, é aquele
da incapacidade de uma cidadania não organizada, de tomar
em suas próprias mãos os seus destinos, e participar mais
ativamente na construção dos caminhos de solução para as
profundas desigualdades. O paternalismo presente na elite
“esclarecida” – no que se inclui, evidentemente, o
Judiciário – identifica com um olhar benévolo, os “cidadãos
simples”51, que não tendo noção exata de seus direitos,
precisam de um agente do poder que lhes auxilie nessa
identificação. Essa cidadania é vista – justamente pelo seu
“desconhecimento” originário, como destinatários passivos
de bens ou serviços que lhes sejam dimensionados e
designados a partir de um processo – à essa altura, mais
jurídico que político – em relação ao qual eles não tem
qualquer potencial de compreensão, e menos ainda, relação
de pertencimento.
Uma segunda manifestação de estereótipos em relação à
cidadania é aquele do seu desinteresse permanente pelo
processo político, por intermédio do qual se desenvolvem as
escolhas públicas que conformam o conteúdo das políticas
públicas. O patrimonialismo como prática social histórica
no Brasil teria legado como pano de fundo, uma certa
aversão à dimensão do coletivo, e uma percepção do espaço
51 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 216.
41
público como “terra de ninguém”52 – do que decorreria um
afastamento natural da cidadania dos temas inerentes ao
espaço público.
Uma vez mais, é de Liebenberg a advertência: “o perigo
em se promover uma concepção de direitos sócio-economicos
como commodities conferidas a beneficiários passivos por um
Estado benevolente é que isso desvie a atenção das reformas
mais substantivas requeridas das instituições e estruturas
que geram as desigualdades sociais sistêmicas”53. A questão
central portanto está em que a reprodução do estereótipo da
cidadania omissa – por desconhecimento ou desinteresse –
uma vez mais secundariza a questão estrutural, da real
subordinação do poder aos compromissos finalísticos
traduzidos na Constituição. O desafio proposto pelas
particularidades da cidadania é a construção de um processo
deliberativo que favoreça o engajamento e promova o
equilíbrio possível entre os vários interesses concorrentes
na cunhagem e execução de uma política pública54.
Segundo clichê cultural que se tem indelevelmente
entranhado em toda a aproximação do tema do controle
judicial das políticas públicas, é aquele do Estado-
Leviatã; o Estado “mau”, o “algoz da sociedade”. Qualquer
desfunção numa política pública ou no provimento a um
específico direito fundamental decorreria portanto desse
52 SORJ, Bernardo. A nova sociedade brasileira. 2ª ed. rev., Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 30.53 LIEBENBERG, Sandra. Socio-economic rights: adjudication under atransformative constitution. Claremont: Juta & Co, Ltd., 2010, p. 42.54 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Direito fundamental à boaadministração e governança. Prefácio Diogo de Figueiredo Moreira Neto,Belo Horizonte: Editora Forum, 2011, p. 50.
42
caráter intrinsecamente mau do Estado, a quem se contrapõe
sempre o cidadão bom e vitimizado pelo poder que tiraniza e
oprime. Esse olhar maniqueísta, que divide o mundo entre
bons e maus se revela passé em pleno séc. XXI. A
complexidade das relações sociais, as matricialidade das
políticas públicas e sobretudo as dificuldades valorativas
postas a cada uma das dimensões das escolhas alocativas
referidas no item 3 deste trabalho evidenciam que o Estado
não é intrinsecamente mau – o Estado, como instituição
humana que é erra e acerta; o Estado precisa de
enriquecimento no seu processo de decisão. O Estado, que
somos nós, é como nós. Nesse sentido, o olhar que
investigue quanto às alterações sistêmicas que o
atendimento deficiente a um direito social esteja a
reclamar não pode ter por ponto de partida um pressuposto
de que o Estado por princípio resiste à garantia desses
mesmos direitos.
5. Reposicionando a dimensão da institucionalização do
poder no cenário do controle de políticas públicas e da
efetividade dos direitos sociais
Caminhando para a conclusão, é preciso retomar a
observação já lançada neste texto, de que o
neoconstitucionalismo ideológico vivido no Brasil
secundarize a dimensão do político em favor daquela dos
direitos – tudo em nome da promoção da inclusão social.
Essa visão tem proporcionado em terra brasilis, uma prática
43
jurisdicional orientada à exigência da dimensão
prestacional dos direitos sociais, a partir de uma atuação
substitutiva dos braços especializados do poder político,
manifestando um traço ativista que tem sido por muito, até
mesmo festejado55. Passados já uma década dessa prática
jurisdicional, impõe-se avaliar a sua real sintonia com o
projeto constitucional que ela deveria reverenciar – que é
aquele da transformação democrática, pela promoção da
inclusão.
Se num primeiro momento a jurisdição interventora pura
e simples na ponta da outorga da prestação poderia se
apresentar como elemento relevante de afirmação da
efetividade da constituição e dos direitos fundamentais,
nela contidos; o arranjo de forças às vésperas dos 25 anos
de constituição não se revela mais o mesmo – e exige um
repensar do tema.
Em que pese a conquista histórica, de doma do poder e
emancipação do homem consistente na afirmação dos direitos
fundamentais incorporados às ordenas jurídico-
constitucinais; é preciso que esse ganho não se dissipe
através dos riscos de regressão que a judicialização
excessiva ou o ativismo naive podem trazer, nos termos acima
indicados. Para tanto, impõe-se reconciliar aquilo que é
missão e vocação natural do Judiciário, a saber, solução do
55 Para acesso a relevante coletânea contendo decisões judiciais notema de controle de políticas públicas, em tribunais superiores eainda estaduais de todo o país, consulte-se a Revista Jurídica doTribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nº 3, 2012, sobcoordenação do Des. Jessé Torres Pereira Jr., tendo por eixo centralexatamente a atuação jurisdicional sobre esses programas de açãoestatal.
44
conflito individual “dando a cada um o que é seu”, com dois
vetores indispensáveis na atuação sobre a seara das
políticas públicas, ambas relacionadas ao aperfeiçoamento
do logo democrático: exercício de uma estratégia que
prestigie a inclusão na busca das soluções; e foco no
aperfeiçoamento da atuação estatal no direito fundamental
tutelado.
As duas considerações de que aqui se fala não
encontram expressa previsão no arsenal de técnicas de
decisão ou institutos processuais disponibilizado ao
Judiciário – mas não guardam incompatibilidade com a ordem
jurídico-processual vigente, pelo que se antecipa a
proposta que poderia merecer acolhida, independente de
profundas modificações legislativas. Por vezes, um período
de experimentalismo pode se revelar útil ao aperfeiçoamento
dos institutos, municiando uma futura normatização que se
beneficiará de um aprendizado inicial56.
5.1 Jurisdição e uma estratégia de construção inclusiva de
soluções
56 Nesse linha, destaque-se a disciplina das audiências públicas, comomecanismo de ampliação do diálogo social desenvolvido pelo SupremoTribunal Federal. Como se sabe, a disciplina da figura das audiênciaspúblicas (não obstante a referência lacônica empreendida pela Lei9868/99) veio à luz por intermédio da Emenda Regimental nº 29/09, nãosem que antes a Corte tenha aplicado o instituto, consolidando umaprimeira aproximação de seu desenho, que municiou a referidaintervenção normativa. Para uma descrição da evolução do tratamentoconferido pelo STF à prática da audiência pública, consulte-se VALLE,Vanice Regina Lírio do. (org). Audiências públicas e ativismo.Diálogo social no STF, Belo Horizonte: Editora Forum, 2012.
45
A lógica proposta pela Constituição de 1988, de
articulação entre a dimensão jurídica e dimensão política
da vida nacional – que historicamente se apresentavam
marcadas pela polarização, numa relação aparentemente
inconciliável57 – tem conduzido à ênfase no litígio ou a
lei como substitutos aos mecanismos humanos tradicionais de
superação de diferenças de identidades coletivas
fragmentadas que encontram do Judiciário um lócus para
veicular suas pretensões. A par disso, um desencantamento
com o jogo ordinário da política decorrente da ausência de
pontes entre a vida pública e a vida privada retratado por
Bauman58 culmina por se apresentar como barreira à tradução
das preocupações pessoais em questões públicas. Assim,
afigura-se compreensível que a própria sociedade veja o
Judiciário como um short cut para o enfrentamento de
situações que se apresentam ao jurisdicionado
individualmente considerado, como pessoais – mas que na
verdade, podem se reproduzir aos milhares nas relações
entre Estado e cidadãos. A questão está todavia em saber se
o Judiciário pode ou deve simplesmente acolher esse
“atalho” em nome da garantia a direitos fundamentais; ou se
ele tem ainda algum papel a desenvolver para prevenir esse
desvio de perspectiva, reconduzindo o exercício do poder
político à sua trilha ordinária, que exige a oferta de
57 BURGOS, Marcelo Baumann. A Constituição de 1988 e a transição comoobra em progresso. Revista da EMARF, Cadernos Temáticos, Rio deJaneiro, dez. 2010, p. 121.58 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Trad. Marcus Penchel, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 10-11. Traduzido de In search ofpolitics.
46
resposta às pautas de prioridades constitucionais
(legislativas ou de políticas públicas).
Em verdade, o pluralismo tende a destacar/evidenciar
as diferenças, e se todo dissenso for conduzido à solução
jurisdicional, há um evidente esvaziamento da
responsabilidade que é inerente à própria ideia de
organização da sociedade, de viabilizar esse convívio – que
pode ser conflitivo, mas que é de ser democraticamente
construído.
Ademais, o modelo jurisdicional tradicional de solução
de conflitos envolve necessariamente uma lógica de vencedor
e vencido; dicotomia que no campo dos direitos fundamentais
se vê facilmente identificada pelo seu caráter
indissociavelmente subjetivo, àquela do exaltado e do
humilhado. É nesse ponto que mais claramente se vê a
perversidade da regressão que decorre da decisão judicial
que procura tão-somente, numa perspectiva substitutiva,
proclamar de um vencedor; abdicando de um resultado legal
que permita uma aproximação entre as pessoas e algum nível
de reparação e restauração.
A efetivação legítima dos direitos fundamentais
sociais exigirá, necessariamente, por seu próprio conceito,
a formulação de escolhas alocativas – que como se assinalou
acima, determinam sempre uma inclusão, e um sem-número de
exclusões. Essa deliberação, para que se revele
efetivamente transformadora, é de se construir não a partir
de uma visão exclusivamente juricêntrica, mas também – e
especialmente – democrática. Não se está com isso afirmando
47
a exclusão do Judiciário como agente controlador das
políticas públicas como instrumento materializador do agir
estatal; mas sim que essa específica função, para que possa
ser exercida no seu pleno potencial emancipador de um
convívio social harmônico, formado por indivíduos
autônomos, e dotados de dignidade (no que se inclua a
liberdade de eleição de seus próprios destinos), exigirá
necessariamente uma nova institucionalidade no exercício da
função estatal de composição de conflitos.
O que se está afirmando é que a jurisdição
controladora de políticas públicas, particularmente aquela
que se oferta no bojo de ações coletivas, deve ser
necessariamente dialógica – e não vertical – permitindo e
conclamando o exercício de uma autonomia política de
cidadãos socialmente autônomos para que uma vontade formada
racionalmente possa surgir, encontrando expressão em
programas legais, circulando em toda sociedade através da
sua aplicação racional59. A materialização em si desse
diálogo, por sua vez, deve partir do abandono da lógica
clássica da jurisdição, de que as relações judicializadas
envolvam uma contraposição entre credor e devedor – a
pluralidade da sociedade em si, e mesmo dos eventualmente
alcançados por um mesmo programa de ação estatal desmente
esse dualismo.
A institucionalização de uma arena para o
enfrentamento desses conflitos atinentes ao projeto de
59 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade evalidade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1997, Tomo I, p. 220.
48
transformação, em última análise, reclama sim, o Judiciário
– já que o Direito é uma das ferramentas disponibilizadas
ao câmbio – mas um novo Judiciário, mais indutor do debate
público do que autor da decisão substitutiva.
Tomemos novamente o exemplo do direito à moradia, que
tem sido frequentemente tutelado por intermédio de ações
coletivas. Esse é um campo típico em que a atuação estatal
sobre uma determinada comunidade, para a remoção ou
reconfiguração da ocupação, pode encontrar percepções
diversas no que toca aos seus integrantes; e com isso,
alternativas distintas de solução do conflito entre o
direito à vivenda e aquele ao desenvolvimento do meio
ambiente urbano. Nessas hipóteses, o que a casuística vem
revelando é que se estabelece um diálogo que exclui
justamente àqueles diretamente atingidos pela atuação do
poder, vez que são no mais das vezes processualmente
substituídos por uma das instituições encarregadas do
desenvolvimento das funções essenciais à justiça –
Ministério Públic ou Defensoria Pública. A substituição (no
sentido vulgar) passa a ser dupla: dos jurisdicionados, por
uma instituição de proteção à sociedade (mas não
familiarizada com a dinâmica do viver em comunidades
carentes); e da Administração, pelo Estado-Juiz.
Também aqui as velhas concepções de que os
interlocutores naturais na demanda judicial sejam as partes
litigantes como postas no processo é de ser revisitada: o
controle judicial de políticas públicas compreende uma
49
plêiade de outros alcançados, muitas vezes não elencados na
inicial, até por estratégia do proponente da ação60.
Eis aqui um terreno onde a prática dialógica pode
merecer espaço, não como condição de acesso ao Judiciário
em si – eis que tal alcance se tem emanando diretamente do
art. 5º, XXXV CF; mas como verdadeira etapa de instrução a
ter lugar no curso da demanda judicial.
Esse diálogo que se reclama rumo à construção de uma
solução possível em tormentosos temas de escolhas
alocativas – importante se diga – não precisa se dar na
presença do Juiz, no tradicional mecanismo da audiência. De
outro lado, de maneira a transformar em efetivo o referido
intercâmbio de posições e ideias, o Judiciário pode (e
deve) indicar as condições em que ele deva se dar,
explicitando as informações e razões que as partes
envolvidas no esforço de conciliação devam, reciprocamente,
apresentar, sem o que não se poderia falar em efetivo
engajamento dos interlocutores na solução. Findo o esforço
60 Importante destacar que em nome de viabilizar o controlejurisdicional do agir do poder, a jurisprudência tem afirmado aprerrogativa da escolha, em favor do Ministério Público e daDefensoria Pública, de quem sejam os Réus na referida demandacoletiva, o que permite uma seletividade no direcionamento do reclamocontra uma ineficácia ou ausência de ação estatal, que pode guardarpouca relação com a tutela em si do direito. O exemplo clássico de umverdadeiro “desvio de finalidade” é a estratégia permanente do Parquete da Defensoria Pública estadual (ao menos, no Rio de Janeiro) de nãoinclusão da União em demandas coletivas – ainda que haja inequívocodever de agir desta Entidade Federada – para reivindicar umaatribuição institucional que originalmente não lhes assistiria, e paraevitar a atração da competência em favor da Justiça Federal. Dissodecorre que, por uma seletividade estratégica que nada tem a ver com aefetivação em si do direito, exclui-se do pólo passivo a entidadefederada que por vezes, revela-se a destinatária natural do reclamo,ou quando menos, aquela que disporia de recursos financeirosrelevantes para a regularização da oferta do direito social.
50
de consensualidade, ter-se-á avançado no eventualmente
acordado entre as partes; e no que toca à área remanescente
de conflito, disporá o Judiciário de uma visão
tremendamente enriquecida, pelos esforços antes havidos
segundo sua parametrização, das complexidades e variáveis
incidentes na hipótese.
A proposta acima articulada – é importante que se diga
– encontrou já aplicação concreta pela Corte Constitucional
da Africa do Sul, no requisito que ali se denominou
meaningful engagement, cunhado na decisão Occupiers of 51 Olivia
Road, Berea Township and 197 Main Street Johannesburg v City of
Johannesburg and Others. 61 Embora, mesmo no caso em comento, o
empenho significativo das partes na construção da solução
não tenha resultado em perda de objeto – remanesceu uma
área litigiosa – ; fato é que o entendimento prévio superou
alguns pontos de conflito, e acima de tudo, corporificou a
própria legitimidade da decisão judicial, que se cunhou a
partir desse mapeamento do dissenso remanescente. No
cenário brasileiro, esse tipo de providência pode ser
61 REPUBLICA DA AFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Occupiers of 51Olivia Road, Berea Township and 197 Main Street, Johannesburg v Cityof Johannesburg, Rand Properties (Pty) Ltd, Minister of Trade andIndustry. Julgamento em 19 de fevereiro de 2008.Disponível em:<http://www.saflii.org/cgi-bin/disp.pl?file=za/cases/ZACC/2008/1.html&query=Olivia%20Road> acesso em 08/06/12. A hipótese envolvia a remoçãode ocupantes de estruturas prediais privadas abandonadas, em área dacidade de Johanesburg que seria alcançada por intervenção urbanizadoradesenvolvida pelo Poder Público. A relação era portanto,verdadeiramente quadrangular: Poder Público, ocupantes, proprietárioprivado, e ainda a coletividade que se beneficiaria da recuperaçãourbana do local. Foi essa pluralidade de interesses em tensão quedeterminou que a Corte Constitucional determinasse, tão-logo lhe foiapresentado o conflito, o envolvimento das partes em esforço decomposição que se deu fora do Judiciário, mas segundo regrasprocedimentais por ele definidas.
51
determinado exatamente no campo da instrução, cuja
presidência, como se sabe, compete ao julgador (art. 130
CPC), que poderá se valer dos elementos que julgar úteis à
perfeita compreensão da demanda.
Mas acima de tudo, qQuando se cogita de jurisdição
transformadora no campo dos direitos sociais, um ponto
absolutamente central numa nova institucionalidade há de
ser a efetiva inclusão dos sujeitos constitucionais
envolvidos no processo de construção da decisão – não como
objeto de uma benesse outorgada pelo Judiciário-garantidor,
mas como sujeito ativo da construção do consenso possível.
Isso reclamará o abandono dos estereótipos acima indicados,
numa atitude que reconheça inclusive que para a composição
de conflitos como o da moradia, existe uma ecologia de
saberes distintos do pensar típico da elite62.
A dignidade enunciada no art. 1º, III CF – e tem que
fundado toda a construção teórica em torno do controle
judicial de políticas públicas – é ideia força que tem
sujeito: a pessoa humana. A ela se tem associado, no mesmo
plano valorativo, a soberania (popular) e a cidadania. Esse
é o plexo de vetores que se devem conciliar numa atuação de
controle jurisdicional de políticas públicas que se veja
62 É de Sousa Santos a advertência contra a monocultura do saber e dorigor, que nega importância às práticas sociais como fonte deconhecimento – como geradora de saberes não críveis ou não visíveis(SOUSA SANTOS, Boaventura. Renovar a teoria crítica e reinventar aemancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 29). No tema dodireito à moradia, onde muitas vezes os conflitos envolvem comunidadescom outras formas de organização, a lógica dos condomínios – que é aprática social da classe média, origem inequívoca da magistraturabrasileira – não contemplará múltiplas outras possibilidades desolução típicas daquelas coletividades, que sejam aceitáveis para oseventuais envolvidos.
52
efetivamente comprometida com a transformação. Só essa
orientação revelar-se-á efetivamente apta a superar os
riscos da constituição semântica, que ao revés de
efetivamente subordinar o poder, transforma-se num
instrumento de estabilização e perpetuação dos detentores
factuais do poder na comunidade.
5.2 Jurisdição e a intervenção estruturante: uma nova
fronteira no controle judicial de políticas públicas
Segunda proposição que se apresenta para mitigar os
possíveis efeitos regressivos do controle judicial de
políticas públicas, sem que disso decorre enfraquecimento
ao sistema constitucional de proteção aos direitos
fundamentais, é extraída igualmente da prática
internacional, num exercício do cosmopolitismo judiciário
recomendado por Zagrebelsky.63
Já se apontou como elemento de fragilidade do sistema
que pretende a efetividade de direitos socioeconômicos a
partir de uma perspectiva exclusivamente da garantia
individual de prestações, o seu caráter quando menos
neutro, na perspectiva do aperfeiçoamento em si de uma
política pública em curso que se repute incompatível com a
moldura constitucional de preservação daquele mesmo
direito. Isso porque a ordem judicial que determina em
favor de João a entrega do medicamento “X” em nada
63 ZAGREBELSKY, Gustavo. Jueces constitucionales. Boletín Mexicano deDerecho Comparado, nueva serie, año XXXIX, nº 117, septiembre-deciembre de 2006, p. 1135-1151.
53
interfere no procedimento administrativor ordinário pelo
qual são tratados os pedidos do mesmo medicamento “X” em
favor de outros cidadãos. Disso decorre que o equívoco no
procedimento da Administração que determina a não entrega
do medicamento “X” não será corrigo, em princípio, pela
ordem em favor de João.
Em verdade, hipóteses como a acima figurada, para que
possam determinar um resultado mais efetivo no plano da
garantia de direitos fundamentais no plano macro, reclamam
não só a outorga individual da prestação, mas uma
intervenção estrutural no modo de agir da Administração,
que possa de pronto reverter o quadro de descumprimento do
direito fundamental judicializado, ou que quando menos se
ponha nessa mesma rota de correção.
A necessária abertura a outros modos de avaliação do
impacto de uma decisão judicial em matéria de direitos
socioeconômicos para ter em conta inclusive sua repercussão
no aperfeiçoamento da política pública em curso é elemento
já destacado por Rodríguez-Garavito64 como indispensável a
uma perspectiva construtivista dessa mesma análise de
impacto. Significa dizer que não é só o número de decisões
de procedência que apontará o êxito do controle judicial de
políticas públicas, mas os impactos indiretos que essa
mesma jurisdição determina sobre aquele problema.
Qualificar a política pública em curso – que está a
determinar um grau de insatisfação entre seus destinatários
64 RODRÍGUEZ-GARAVITO, César. Beyond the courtroom: the impact ofjudicial activism on socioeconomic rights in Latin America. Texas Lawreview,Vol. 89 (7), 2011.
54
que por sua vez dá causa à judicialização – é um efeito
mais significativo da atividade de composição do conflito;
mais que isso, é resultado que efetivamente contribui para
a efetividade no plano coletivo, do direito socioeconômico
em jogo.
Cumpre todavia ter em conta que esse aperfeiçoamento
da ação estatal pode se apresentar como providência
simples, suscetível de aferição nos autos; ou pode envolver
realidade revestida de alta complexidade, cujo
enfrentamento exija engenho e arte, bem como significativos
recursos públicos.
Na primeira hipótese se teria, por exemplo, a
exigência pela Administração Pública de um determinado
documento como condição ao acesso ao benefício, documento
esse de difícil obtenção, ou que não guarde a necessária
relação de dependência com a prestação a ser outorgada. Em
casos que tais, a dispensa do documento é o mecanismo hábil
ao aperfeiçoamento da atuação pública, e pode facilmente
ser determinada em sentença em sede de ação coletiva.
Situação distinta se pode ter – e ela se vem revelando
atualmente – no delineamento de uma política pública
destinada ao tratamento e proteção do usuário de crack,
onde as medidas possíveis são múltiplas, e podem ainda
variar em cada caso individual (internação, tratamento
ambulatorial, etc.).
Terreno fértil igualmente para uma estratégia que
busque o aperfeiçoamento da ação estatal como um todo é o
enfrentamento do tanto referido problema relacionado ao
55
déficit de moradias cujas dificuldades já foram
extensivamente apontadas no presente. A continuidade no
enfrentamento da tarefa de empoderamento desse direito
socioeconômico em particular pela via dos casos individuais
tende a agravar problema de igualdade, favorecer àqueles
que por qualquer razão chegaram ao Judiciário primeiro, ou
ainda, a desaguar no uso de expediente mais fáceis na
perspectiva da burocracia, mas não revestidos de efetiva
aptidão para o enfrentamento real do problema social que
ali se contém65.
Para casos extremos como este, a experiência
internacional aponta a alternativa dos provimentos
estruturantes, significa dizer, intervenções judiciais de
maior espectro, que tem por objetivo principal reformar uma
prática institucional (política pública) ao longo de um
determinado período de tempo66. Significa dizer que o
conteúdo do provimento jurisdicional não envolve a
composição, supostamente definitiva, do conflito como posto
– mas o desenvolvimento de uma jurisdição que se projeta
para o futuro, com o acompanhamento das medidas parciais,
sucessivas, de implementação gradual de melhorias. A ideia
de uma jurisdição supervisora, que venha a acompanhar as
65 Exemplo fulgurante dessa última distorção é a preferência jáindicada neste texto, à outorga de prestação pecuniária denominada“aluguel social”, que supostamente se prestaria ao financiamento de umteto em favor do jurisdicionado – mas que em nada contribui de formaeficaz para o problema de déficit habitacional em si. As distorções naprática são enormes: o beneficiário do aluguel social não deixa olocal revestido de risco que determinou a remoção; ou por vezes trocaum local de risco por outro onde construirá nova edificação precária,com os recursos que lhe foram destinados a título de aluguel social.66 LANDAU, David. The Reality of Social Rights Enforcement. HarvardInternational Law Journal, Vol. 53, Number 1, winter 2012 401-459.
56
medidas de solução do conflito – não na perspectiva da
execução de sentença, mas naquela de construtivismo das
próprias medidas de superação do impasse que se
judicializou – não é inédita, e se tem presente em
distintos sistema judiciais em todo o mundo67.
Dois são os casos mais citados pela literatura na
utilização de provimentos jurisdicionais estruturantes: a
Sentencia 025/2004 da Corte Constitucional da Colombia68,
envolvendo o problema dos alcançados naquele país pela
diáspora motivada pela violência associada ao narcotráfico;
e o caso People's Union for Civil Liberties v. Union of India & Ors,
decidido pela Corte Suprema da India no ano de 200169
envolvendo o tormentoso tema da fome, e das garantias
possíveis a um direito à alimentação70.67 Para uma panorâmica das hipóteses de jurisdição prospectiva noCanadá, consulte-se CHOUDRHY, Sujit e ROACH, Kent. Putting the pastbehind us? Prospective judicial and legislative constitutionalremedies. Supreme Court Law Review, Vol. 21, 2nd, 2003, p. 205-266.68 COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-025 de 2004, MinistroManuel José Cepeda Espinosa, Sala Tercera de Revisión, julgada em 22jan. 2004, disponível emhttp://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2004/t-025-04.htm,acesso em 10 de janeiro de 2013. Importa consignar a existência deoutros precedentes de provimentos estruturais na casuística da CorteConstitucional da Colombia, sendo o acima referido, envolvendo osdesplazados, o mais estudado pela doutrina tendo em conta seu alcance.69 REPÚBLICA DA INDIA. Suprema Corte da India. People's Union for CivilLiberties v. Union of India & Ors, In the Supreme Court of India,Civil Original Jurisdiction, Writ Petition (Civil) No.196 of 2001,disponível em http://www.escr-net.org/docs/i/401033, acesso em 21 deabril de 2013.70 O tema de fundo da demanda em causa envolvia a inconstitucionalidadede política pública em curso naquele país, que com vistas aofavorecimento à exportação de grãos, determinava o direcionamento daprodução em favor dessa atividade, em detrimento do atendimento àsnecessidades básicas da população. Embora a decisão inicial da Cortefosse declaratória – no sentido da inconstitucionalidade da estratégiade ação governamental – ; a jurisdição prosseguiu envolvendo ordenssucessivas de desenvolvimento de acesso à alimentação em favor dosespecialmente vulneráveis; desenvolvimento de programas de garantia de
57
Ambas as hipóteses envolviam um problema de graves
proporções – não só quanto a seus efeitos em relação aos
jurisdicionados, vítimas daquela garantia insuficiente a
direito fundamental; como também no que toca à delimitação
de medidas administrativas que se revelassem a um só tempo
viáveis, efetivas, e harmônicas com uma ideia de igualdade,
ou quando menos, de priorização aos vulneráveis. Qualquer
pretensão de construção de uma solução jurisdicional
acabada, que se fosse testar quanto à sua viabilidade
prática no curso de um processo de execução de sentença,
poderia determinar ou um indesejável minimalismo no que
toca ao conteúdo das intervenções determinadas, ou uma
decisão retórica – genérica, indeterminada, desprovida de
elementos que a tornem apta a determinar a mudança no mundo
da vida que ela se propõe implementar.
Esse o contexto em que tem lugar os provimentos
estruturantes – onde de forma dialógica, se vai delineando
um conjunto de medidas, paulatinas e por vezes sucessivas,
que se dirigem à efetivação da garantia judicialmente
reclamada. No exemplo da Colombia no tema dos desplazados, a
construção das providências estruturantes se deu desde o
nível mais elementar, à medida em que inexistia política
pública abrangente para o tratamento do tema. Providências
como a construção de bases de dados, instituição de uma
estrutura própria na Administração Pública para o trato
prioritário deste problema; condução de audiências públicas
com segmentos específicos dos afetados para orientação da
política pública; parametrização para a edição dealimentação via merenda escolar e outras ações de teor semelhante.
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instrumentos legislativos que facilitassem a recuperação do
status quo ante em favor dos desplazados; acréscimos
orçamentários substantivos para os programas associados à
realocação dessas pessoas; tudo isso se deu no bojo das
determinações hauridas na Sentencia T-025/2004, cuja
implementação segue ao encargo da “Sala de Acompanhamento”
da Corte.
De maneira semelhante, a decisão da Suprema Corte da
India, reservando em seu favor o acompanhamento e
supervisão das medidas administrativas que favoreciam a
tutela ao direito à
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