CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS: Sobre os riscos da vitória da semântica sobre o...

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CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, FORMULAÇÃO DE ESCOLHAS PÚBLICAS E DIREITO À MORADIA: Sobre os riscos da vitória da semântica sobre o normativo JUDICIAL CONTROL OF PUBLIC POLICIES, PUBLIC CHOICES FORMULATION AND HOUSING RIGHTS: About the risks of semantic constitution prevailing over the normative one VANICE REGINA LÍRIO DO VALLE 1 Resumo: A Constituição Brasileira, às vésperas de seu 25º aniversário, abriga uma larga lista de direitos socioeconômicos, revelando um compromisso com a transformação social e a inclusão – assim como muitas outras constituições escritas no final dos anos 90 e na primeira década do século XXI. Estes direitos socioeconômicos tem sido assegurados pelo Judiciário – apontados nas constituições transformadoras como importante agente na promoção da desejada mudança na exclusão social e pobreza. A aptidão institucional proclamada pelo Judiciário para controlar políticas públicas – estabelecida como afirmação teórica na judicialização de direitos à saúde e educação – pode levar, não obstante as nobres intenções de juízes e das cortes, não a uma real transformação, mas à regressão social e a uma democracia enfraquecida. Para assegurar que o controle judicial de políticas públicas possa conduzir realmente à superação da exclusão social, impõe-se reconsiderar a estratégia utilizada pelo Judiciário na solução destes conflitos. Um novo modelo deve incorporar uma dimensão distinta de diálogo, participação social e reconhecimento dos destinatários da política pública controlada como cidadãos autônomos, aos quais se tenha reconhecida, por sua própria dignidade humana, a possibilidade de integrar os processos de escolhas públicas que definem o 1 Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá, vinculada à linha de pesquisa Direitos Fundamentais e Novos Direitos. Pós-doutorado em Administração pela EBAPE/FGV-Rio; Doutorado em Direito pela Universidade Gama Filho. Procuradora do Município do Rio de Janeiro.

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CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, FORMULAÇÃO DEESCOLHAS PÚBLICAS E DIREITO À MORADIA:

Sobre os riscos da vitória da semântica sobre o normativo

JUDICIAL CONTROL OF PUBLIC POLICIES, PUBLIC CHOICESFORMULATION AND HOUSING RIGHTS:

About the risks of semantic constitution prevailing overthe normative one

VANICE REGINA LÍRIO DO VALLE1

Resumo:A Constituição Brasileira, às vésperas de seu 25º aniversário,abriga uma larga lista de direitos socioeconômicos, revelando umcompromisso com a transformação social e a inclusão – assim comomuitas outras constituições escritas no final dos anos 90 e naprimeira década do século XXI. Estes direitos socioeconômicostem sido assegurados pelo Judiciário – apontados nasconstituições transformadoras como importante agente na promoçãoda desejada mudança na exclusão social e pobreza. A aptidãoinstitucional proclamada pelo Judiciário para controlarpolíticas públicas – estabelecida como afirmação teórica najudicialização de direitos à saúde e educação – pode levar, nãoobstante as nobres intenções de juízes e das cortes, não a umareal transformação, mas à regressão social e a uma democraciaenfraquecida. Para assegurar que o controle judicial depolíticas públicas possa conduzir realmente à superação daexclusão social, impõe-se reconsiderar a estratégia utilizadapelo Judiciário na solução destes conflitos. Um novo modelo deveincorporar uma dimensão distinta de diálogo, participação sociale reconhecimento dos destinatários da política públicacontrolada como cidadãos autônomos, aos quais se tenhareconhecida, por sua própria dignidade humana, a possibilidadede integrar os processos de escolhas públicas que definem o

1 Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito daUniversidade Estácio de Sá, vinculada à linha de pesquisa DireitosFundamentais e Novos Direitos. Pós-doutorado em Administração pelaEBAPE/FGV-Rio; Doutorado em Direito pela Universidade Gama Filho.Procuradora do Município do Rio de Janeiro.

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conteúdo de seus próprios direitos fundamentais. Ignorar essesdesafios de regressão pode tornar o Judiciário responsável portransformar a nossa constituição, de normativa em semântica.

Palavras-chave:constitucionalismo de transformação – controle judicial depolíticas públicas – regressão social – jurisdição dialógica.

Abstract:The Brazilian constitution, in the merge of its 25th birthday,hold a large list of socioeconomic rights, revealing acommitment with social transformation and inclusion – just likemany others constitutions written in the late 90’s and in thefirst decade of the 21st century. Those socioeconomic rights havebeen enforced by Judiciary – held in the transformativeconstitutions as an important agent in promoting the desiredchange in social exclusion and poverty. The institutional skillproclaimed by the Judiciary to control public policies –established as a theoretical assertion in the judicialization ofconstitutional rights to health and education – could lead, inspite of the noble intentions of judges and courts, not to areal transformation, but to social regression and to a weakeneddemocracy. To assure that judicial control over public policieslead truly to overcome social exclusion, one should reconsiderthe institutional framework used by the Judiciary in order tosolve those conflicts. A new model should incorporate adistinctive dimension of dialogue, social participation, andrecognition of the addressees of the controlled public policy asan autonomous citizen, entitled by his own human dignity, tointegrate the public choices processes that arrange thecontinent of his own fundamental rights. Ignoring thosechallenges of regression may turn the Judiciary responsible forchanging our normative constitution, into a semantic one.

Key-words:Transformational constitutionalism – judicial review of publicpolicies – social regression – dialogical jurisdiction.

Sumário:

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1. Um novo patamar de edificação do sentidoconstitucional; 2. Contexto do compromissoconstitucional com a garantia de direitosfundamentais: a constituição como alavanca datransformação; 3. Controle judicial de políticaspúblicas: o primeiro discurso de justificação eos riscos na formulação das escolhas trágicas;3.1 Controle judicial sobre políticas públicasjá normativamente parametrizadas: saúde eeducação; 3.2 Controle judicial de políticaspúblicas que exijam a formulação, pelo agentecontrolador, de escolhas alocativas; 4. Direitosfundamentais socioeconômicos e a tensãopermanente entre transformação e regressão; 4.1Judicialização de direitos sociais comopossibilidade de vocalização em favor dosvulneráveis; 4.2 Judicialização de direitossociais e o reforço de estereótipos culturais;5. Reposicionando a dimensão dainstitucionalização do poder no cenário docontrole de políticas públicas e da efetividadedos direitos sociais

1. Um novo patamar de edificação do sentido constitucional

Aproximamo-nos dos 25 anos da Constituição de 1988 – e

o cenário jurídico e político permite uma avaliação em

caráter muito mais abrangente do que significou a adoção

daquele texto, no mais puro exercício de construção e

reconstrução do conteúdo de uma Carta Fundamental 2 que

como se sabe, seja por suas peculiares circunstâncias de

formação, seja pela natureza mesmo do esforço constituinte

2 ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Traduçãode Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Mandamentos Editora,2003, p. 44.

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de edificação dos consensos possíveis, jamais permitiria

naquele longínquo fim de década, uma determinação plena.

De outro lado, a perspectiva de compreensão de um

texto constitucional revestido das características do

brasileiro revela-se tremendamente enriquecida, seja pela

reprodução de experiências assemelhadas no que hoje se

identifica como o constitucionalismo latinoamericano3; seja

pela não menos desafiante pluralidade de vivências também

no campo internacional de estratégias orientadas à

implementação de direitos socioeconômicos, e do papel do

Judiciário na garantia de concretização de um projeto

constitucional de transformação.

O debate atual, portanto, se dá não mais a partir das

velhas perspectivas da (in)sindicabilidade dos direitos

sociais, ou ainda dos riscos ao equilíbrio e harmonia entre

os poderes decorrente de uma intervenção judicial

controladora; mas tendo por origem uma compreensão mais

ampliada do processo democrático enquanto valor igualmente

buscado pelo constitucionalismo do século XXI, e uma visão

de dignidade da pessoa que compreende também o seu

reconhecimento como sujeito constitucional – e não como

objeto daquelas previsões. Afinal, compreender, na lição de

Gadamer (e isso assim se dá também com as constituições), é

3 Para uma aproximação dos atributos apontados ao constitucionalismolatino americano, OLIVEIRA, Fabio Corrêa Souza de e STRECK, LenioLuiz. Um direito constitucional comum Latino-Americano – por umateoria geral do novo constitucionalismo latino-americano, Revista doInstituto de Hermenêutica Jurídica, nº 11, Ano 10, janeiro/junho 2012,p. 121-151; e VALLE, Vanice Regina Lírio do. Constitucionalismolatino-americano – sobre como o reconhecimento da singularidade podetrabalhar contra a efetividade, Revista do Instituto de HermenêuticaJurídica, nº 11, Ano 10, janeiro/junho 2012, p. 277-306.

5

“operar uma mediação entre o presente e o passado, é

desenvolver em si mesmo toda a série contínua de

perspectivas na qual o passado se apresenta e se dirige a

nós”.4

Isso significa uma necessária e indispensável revisão

da aproximação empreendida pelo mainstream no que toca ao

sempre presente – em cada vez maior intensidade – tema do

controle judicial das políticas públicas e o espaço de

decisão do legislativo e da Administração Pública num

cenário de implementação de direitos. O cerne da

investigação está em saber se a ênfase na normatividade das

normas constitucionais assecuratórias de direitos

fundamentais, enunciada sempre como elemento justificador

das decisões que pretendem empreender ao controle judicial

de políticas públicas, não estaria a conduzir, por força de

um decisionismo pautado por critérios eminentemente

subjetivos, a um resultado mais regressivo do que

progressista, funcionando o ativismo como até o momento

entendido e praticado no Brasil, numa visão mais ampla,

como bloqueio – e não veículo da transformação social.

A análise se desenvolverá a partir de uma compreensão

do papel dos direitos fundamentais na ordem jurídico-

política implantada pela Carta de 1988. Fixado esse

horizonte histórico, examina-se os argumentos de

justificação da tendência atual de amplo controle judicial

de políticas públicas, para depois então apontar a tensão

4 GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. PierreFruchon (org.); tradução Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro:Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 70.

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permanente que a jurisdição e suas técnicas hoje

disponíveis culmina por determinar, entre transformação e

regressão. Finalmente, no esforço de contribuir para a

reflexão em torno de uma teoria da decisão, aponta-se as

características de que se deve revestir uma nova

institucionalidade na jurisdição orientada ao controle

judicial de políticas públicas, com a prevalência do viés

dialógico, que reconheça o destinatário dos direitos

socioeconômicos não como objeto da atuação estatal

prestadora, mas como sujeito do processo de construção das

escolhas públicas possíveis na matéria.

2. Contexto do compromisso constitucional com a garantia de

direitos fundamentais: a constituição como alavanca da

transformação

É o distanciamento dos dias heroicos de 1987, quando

se desenvolvia em cenário ainda de incertezas políticas a

Assembleia Constituinte5, que permite enriquecer a

compreensão da Carta de 1988, inserindo-a na verdadeira

onda de constitucionalizações que se verificava naquela

mesma época, e que se estende a rigor até os dias de hoje.

Afinal, se as décadas de 70 e 80 contemplaram esse processo

5 Sempre significativa é a lição e depoimento de Bonavides, que aludiana ocasião a uma verdadeira crise constituinte – em oposição aofenômeno mais localizado da crise constitucional – para sustentar queo desafio que então se punha transcendia à pura reformulação do texto,para compreender mais ainda, um transe decorrente da inadequação dasinstituições políticas recém-criadas para figurarem como verdadeiroalicerce do poder legítimo. (BONAVIDES, Paulo. Constituinte eConstituição. A democracia, o federalismo, a crise contemporânea. 3ªed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 115)

7

jurídico-político nos países da península ibérica, fenômeno

com relevante impacto na constituinte brasileira; o decênio

de 90 albergou igualmente constitucionalizações

impulsionadas pela redemocratização que alcançou países do

antigo Leste Europeu, e da África. O movimento continua,

mais recentemente, com a crescente incorporação de até

mesmo uma dimensão teocrática no constitucionalismo6 em

experiências nacionais diversificadas, compreendendo países

do sudeste da Ásia, da África sub-saariana e do oriente

médio7.

Mais de duas décadas depois de sua promulgação, a

Carta de Outubro pode ser analisada sob a perspectiva das

diversas categorias de constitucionalismo que as referida

experiências permitiram cunhar, compreendendo um vasto

elenco, que vai desde aquele identificado como de

transformação8, passando ainda pelo latinoamericano9,

aspiracional10, e tantos outros que a literatura mais

recente aponta.6 Explorando o impacto das teocracias constitucionais sobre oconstitucionalismo transnacional baseado no caráter autoritativa devalores seculares fundados num standard de direitos humanos compretensões universalizantes, consulte-se BACKER, Larry Catá, God(s)Over Constitutions: International and Religious TransnationalConstitutionalism in the 21st Century. Mississippi Law Review, Vol.27, 2008, p. 101-154, disponível em SSRN:<http://ssrn.com/abstract=1070381>, acesso em 19 de julho de 2012.7 HIRSCHL, Ran. The Theocratic Challenge to Constitution Drafting inPost-conflict States. William and Mary Law Review, Vol. 49, Issua 4,p. 1170-1211.8 MARLE, Karin Van. Transformative constitutionalism as/and critique. Stellenbosch Law Review = Stellenbosch Regstydskrif, Vol. 20, Issue 2,2009, p. 286-301.9 PASTOR, Roberto Viciano e DALMAU, Rubén Martínez. ¿Se puede hablarde un nuvo constitucionalismo latinoamericano como corriente doctrinalsistemarizada? [online], disponível em<http://www.juridicas.unam.mx/wccl/ponencias/13/245.pdf>, acesso em 21de junho de 2012.

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Não se pretende no presente texto analisar esses

fascinantes modelos de constitucionalismo indicados pela

fervilhante produção na área; é possível, para o exercício

que se propõe, partir-se de um elemento que é comum a todas

essas categorias, a saber, a afirmação de um compromisso do

Texto Fundante para com uma agenda de mudanças que promova

à inclusão social11, normalmente num contexto de superação

de um legado originário de um passado, muitas vezes

recente, de violência e exclusão.

Não se está aqui afirmando nada que não se inclua na

compreensão já consolidada de que os modelos de

constituição do período pós-45 tinham na ideia força da

dignidade da pessoa um elemento irradiante e subordinante

de toda a compreensão da arquitetura constitucional12,

determinando uma orientação finalística à atuação do

10 SCHEPPELE, Kim Lane. Aspirational and aversive constitutionalism:the case for studying cross-constitutional influence through negativemodels. International Journal of Constitutional Law (I-CON), Volume1, Number 2, 2003, p. 296-324.11 YEH JIUNN-RONG e CHANG WEN-CHEN, The Changing Landscape of ModernConstitutionalism: Transitional Perspective (March 31, 2009). NationalTaiwan University Law Review, Vol. 4, No. 1, pp.145-183, 2009,disponível em <http://ssrn.com/abstract=1482863> , acesso em 3 defevereiro de 2012.12 Importante registrar a divergência de Sartori em relação àassociação desse atributo do constitucionalismo – thelos, identificadocomo um regime de liberdades protegidas em favor dos indivíduos – aoperíodo pós-45, afirmando o jurista que a rigor, visão de que osentido garantista da constituição tenha sido precedido por um sentidomais amplo, formalista, carece de prova histórica; que o fato recentetenha sido, em verdade, a equivalência que se empreendeu entreconstituição e qualquer estruturação de govermo, essa sim refletindouma ilusão jurídica de que se pudesse construir um direito universal,despolitizado, purista. (SARTORI, Giovanni. Constitutionalism: apreliminary discussion. The American Political Science Review, Vol.56, Nº 4, Dec., 1962, p. 863).

9

poder13. O que se pretende destacar – pela relevância que

terá para a compreensão da nova matriz do controle judicial

de políticas públicas – é que o desiderato constitucional

associa a busca da transformação social e da indispensável

inclusão, à consolidação de uma democracia substantiva;

projeto coletivo e recognitivo, que não pode se ver

reduzido, pelas dificuldades a ele interentes, a uma

atuação pontual de qualquer dos braços especializados de

poder.

Vários – e relevantes – são os efeitos do prestígio em

favor desse propósito constitucional de promoção da

inclusão social, sistematizados com precisão cirúrgica por

Langa14: um compromisso com o acesso à justiça igualitária,

uma mudança na estrutura da decisão pública que se desloca

de um eixo da autoridade para o da justificação, a cunhagem

de uma nova cultura e formação jurídica, e ainda um

compartilhamento de responsabilidades pela promoção desta

transformação.

A chave de compreensão desse propósito dos

constitucionalismos já do século XXI está em que se cuida:

1) de um projeto de inclusão cunhado sob o signo da

igualdade; 2) que subordina igualmente a todos os poderes

13 Para uma interessante abordagem dos reflexos da centralidade dapessoa sobre as tradicionais funções do Estado, rompendo com a velhalegitimidade positivista, para abraçar a sociedade como o centro degravidade do direito contemporâneo, consulte-se MOREIRA NETO, Diogo deFigueiredo. Poder, direito e Estado. O Direito Administrativo emtempos de globalização. In memoriam de Marcos Juruena Villela Souto.Belo Horizonte: Editora Forum, 2011, p. 80.14 LANGA, Pius. Transformative constitutionalism. Stellenbosch LawReview, 2006, [online], disponível em<http://sun025.sun.ac.za/portal/page/portal/law/index.afrikaans/nuus/2006/Pius%20Langa%20Speech.pdf> , acesso em 1º de abril de 2012.

10

políticos organizados; 3) cuja materialização requer uma

especial justificação; 4) num contexto de responsabilidades

comuns. Tudo isso, de outro lado, se desenvolve tendo o

direito quando menos, por canal de veiculação15.

Observe-se que a promoção da inclusão proposta pelos

movimentos constitucionais comprometidos com a

transformação envolve uma prática pública cujo apoio está

na legitimação permanente de suas escolhas – atributo que

só se conquistará com um processo necessariamente plural,

que transcende aos limites do poder político formal

(Estado), e busca na sociedade, também firmadora deste

compromisso com a mudança, o compartilhamento dos desafios

inerentes ao câmbio. Afinal, o Direito é canal possível da

transformação – mas ele não esgota em si todos os elementos

necessários à sua promoção, sendo certo que a pretensão

inclusiva e igualitária no campo de direitos que são por

sua própria natureza compartilhados, envolverá sempre um

acordo em relação a um determinado nível de abdicação ou

renúncia daqueles que já usufruam daquela situação

subjetiva, em favor dos que ainda não a alcançaram. Por

isso, os reclamos inerentes ao constitucionalismo

transformador, da permanente construção social do consenso

possível, preferencialmente pelas vias de deliberação

política ordinária – legislativo e executivo. Essa

formulação tem ainda por inequívoca vantagem, o reforço de

um processo de avanço da agenda de inclusão, que não exclui

os não (mais) titulares do poder político majoritário,

15 KLARE, Karl. E. Legal Culture and Transformative Constitutionalism,14 South African Journal on Human Rights 146 (1998).

11

contribuindo, por essa prática de conciliação, para a

consolidação de uma estabilidade em favor da nova ordem

político-institucional.

A transformação que uma constituição que se pretende

normativa16 quer empreender, portanto, envolve a cunhagem

de um processo político que transcende os limites da

individualidade, e tem por sujeito constitucional autor e

destinatário, não o eu, mas o eu e o outro17; plurais, com

quereres e necessidades distintas – mas todos integrando

esta mesma coletividade que a Carta quer regular. Isso tem

profundos reflexos sobre o modelo institucional que deve

operar essa mesma constituição – que há de refletir esse

16 A expressão aqui se utiliza no sentido ontológico da classificaçãoproposta por Loewenstein: diz-se normativa a constituição quando elaefetivamente governa o processo político, ou determina que este mesmoprocesso se ajuste às suas normas; na expressão do autor, aconstituição é como um terno que assenta bem, e que é realmenteutilizado. (LOEWENSTEIN, Karl. Political power and the governmentalprocess. USA: The University of Chicago Press, 1958, p. 148).17 Também os fundamentos pelos quais se possa afirmar aindispensabilidade de visão não só do eu – mas também do outro –quando se cogita de concretização do projeto constitucional sãodiversificados. Assim, seja na perspectiva hegeliana da identidade dosujeito constitucional, que só se tornaria predicável com oreconhecimento do outro (ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeitoconstitucional. Tradução de Menelick de Carvalho Netto. BeloHorizonte: Mandamentos Editora, 2003, p. 31); seja na visão sul-africana que preconiza o ubuntu como valor não só moral, mas revestidode conteúdo jurídico (CORNELL, Drucilla e MUVANGUA, Nyoko. Ubuntu andthe Law. African ideals and postapartheid jurisprudence. New York:Fordham University Press, 2012); seja naquela percepção que associa areal efetividade dos direitos socioeconômicos à observânciaindispensável de uma matriz coletiva (VALLE, Vanice Regina Lírio do.Direitos sociais e jurisdição: riscos do viver jurisdicional de ummodelo teórico inacabado. In KLEVENHUSEN, Renata Braga (coord.).Direito público e evolução social – 2ª série. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2008, p. 309-328); fato é que não há como se cogitar detransformação social na perspectiva individual.

12

sujeito constitucional cuja auto-identidade depende da

vontade e da auto-imagem do outro18.

De outro lado, é inequívoco que os déficits de atenção

estatal originários do passado criam situações fáticas

absolutamente apartadas do ideário de vida digna, o que

reclama urgência no seu enfrentamento. Significa dizer que

o projeto de transformação exige cautela na sua

implementação, mas tem urgência – o que cria uma evidente

contradição a ser enfrentada pelas estruturas

institucionais incumbidas deste mister.

Na experiência brasileira – e nisso, ela não se revela

tão distinta daquela internacional – a consolidação da

dimensão representativa do princípio democrático determinou

de pronto, um redirecionamento das prioridades às

aspirações associadas à garantia de direitos

fundamentais19. Esse movimento se deu a partir de uma

perspectiva claramente identificada com aquilo que

Comanducci denomina neoconstitucionalismo ideológico20,

onde este objetivo garantístico se põe em primeiro plano,

relegando ao segundo plano o objetivo da limitação do poder

estatal. Passa-se, portanto a uma reflexão teórica e a um

viver jurisdicional dos direitos fundamentais que se

18 ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional.Tradução de Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: MandamentosEditora, 2003, p. 37.19 Esse deslocamento do objeto das reivindicações se viu facilitadopelo caráter analítico do texto constitucional – que juridicizavarelações de débito e crédito entre cidadania e Administração Pública,que em outros contextos, se apresentariam como problemas próprios aocampo das escolhas políticas.20 COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: um análisismetateórico. in CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s), Madrid:Editorial Trotta, 2003, p. 75/98.

13

constrói a partir de ferramentas de subordinação do poder a

essa ideia matriz – mas não de indução à recondução desses

mesmos braços especializados de poder político, a uma

trajetória constitucionalmente desejável de funcionamento,

que tenha na realização desses mesmos direitos frustrados,

sua principal perspectiva.

Curioso como passou desapercebida – e esse parece ser

o estado de coisas até hoje – a circunstância de que

secundarizar a dimensão de conformação do poder estatal

importava em manietar o próprio processo de transformação.

Isso porque a institucionalidade ordinária do poder

político, suas funções e relações de interdependência

recíproca, haveriam de merecer igualmente uma

reaproximação, de modo a lhe permitir a formação de uma

base institucional apta a dar sustentação e continuidade

aos processos políticos definidos. Secundarizar o debate

acerca da limitação do poder em favor do viés dos direitos

é supor que as posições subjetivas asseguradas pela Carta

de 1988 admitam materialização sem o necessário concurso de

uma estrutura cratológica reconfigurada – o que não é

verdade, nem no cenário de normalidade, onde a

institucionalidade política se incline ao cumprimento de

seus deveres constitucionais; e menos ainda em estado de

infidelidade constitucional.

Desloca-se nessa concepção de constitucionalismo

garantista, o foco do antagonismo sempre manifesto em

relação ao Estado, desde a sua identificação com o Leviatã.

Se antes o objetivo era limitar o poder pelo que ele

14

representava de ameaça à liberdade21; agora se hostiliza e

subordina essa mesma institucionalização do poder político

organizado por conta de sua sempre alegada omissão ou

insuficiência no atendimento às demandas originárias dos

compromissos constitucionais com a jusfundamentalidade de

direitos. Essa colisão entre os pilares de sustentação do

texto constitucional se resolve sempre e sempre em favor da

proteção aos direitos fundamentais em qualquer de suas

dimensões – sem que dedique maior consideração às

possibilidades de refinamento dos mecanismos de

funcionamento do poder político, tido como tradicionalmente

refratário a seus cometimentos constitucionais.

Aqui já se põe uma primeira e relevante indagação:

qual a efetiva transformação que uma exegese e aplicação

judicial do texto constitucional dessa natureza tende a

determinar? Cuida-se aqui da busca sistematizada de

superação das desigualdades, para condução da sociedade a

um patamar mínimo de inclusão que permita o seu

desenvolvimento subsequente a partir de um permanente

deliberar democrático – ou tem-se uma prática simplista da

indulgência, que ao revés de emancipar a pessoa humana,

esvazia-lhe a vontade, mergulhando-a no alheamento de quem

não é sujeito da transformação, mas seu objeto? Em síntese,

é verdadeira – ou pode ser verdadeira – a afirmação de que21 É de García de Enterría a arguta observação de que a história daredução das imunidades do poder, da constante resistência que aAdministração opôs à exigência de um controle judicial pleno de seusatos mediante a constituição de reduto isentos e não fiscalizáveis desua própria atuação, se pode dizer, em geral se confunde com a própriahistória do Direito Administrativo (GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Lalucha contra las inmunidades del poder. 3ª ed., Madrid: Civitas, 2004,p. 26).

15

as Cortes se revelem por si só, sem o concurso dos demais

integrantes da chamada esfera pública, adequadas

propulsoras da transformação social?

3. Controle judicial de políticas públicas: o primeiro

discurso de justificação e os riscos na formulação das

escolhas trágicas

Um dos instrumentos de maior destaque nas prescrições

normativas dos múltiplos constitucionalismos que hoje se

apresentam – inclusive o latinoamericano – é a inclusão no

Texto Fundante, de um elenco de direitos sociais traduzidos

normalmente em prestações positivas orientadas à “transição

das liberdades formais abstratas para as liberdades

materiais concretas22”. Se nos primeiros momentos de

aplicação da Constituição de 1988, velhas discussões

relacionadas à eficácia imediata dos direitos fundamentais

ainda se puseram; isso rapidamente se viu superado, seja

pela literalidade do próprio art. 5º, §§ 1º e 2º CF, seja

por uma incorporação ao imaginário da comunidade jurídica

(acadêmica e judiciária) da importância do investimento de

engenharia intelectual na conversão em realidade, dos

compromissos constitucionais.

3.1 Controle judicial sobre políticas públicas já

normativamente parametrizadas: saúde e educação

22 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel.Curso de direito constitucional, São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2012, p. 261.

16

Embora por ocasião dos primeiro 10 anos da Carta se

pudesse ainda reclamar uma incompletude dos modelos de

direitos fundamentais23; o início do século XXI marcou uma

significativa virada compreensiva, com uma intensificação

expressiva da judicialização das reivindicações atinentes

aos direitos fundamentais sociais, notadamente no campo da

saúde.

Essa tendência – de controle jurisdicional do

cumprimento da chamada dimensão objetiva dos direitos

fundamentais – alargou-se para compreender ainda prestações

no campo do direito à educação, em especial aquela pré-

escolar, sendo conhecidos os precedentes estabelecidos pelo

Supremo Tribunal Federal24 na asseveração da possibilidade

do amplo controle de políticas públicas25, especialmente

quando a omissão ou a deficiência da prestação pelo Estado

estivesse a comprometer o atendimento em si ao direito

fundamental constitucionalmente assegurado.

Importante ter em conta que os dois referidos campos

onde a judicialização de direitos socioeconômicos23 VEIRA, José Ribas. A Constituição Federal de 1988 e um modelo deDireitos Fundamentais incompleto. in CAMARGO, Margarida Maria Lacombe(org.). 1988 – 1998 Uma década de constituição. Rio de Janeiro:Renovar, p. 93-102.24 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 639337 AgR, Relator Min.Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT, vol. 02587-01, p. 125.25 Registre-se a utilização no mais das vezes atécnica da expressão“controle de políticas públicas”, para compreender intervençõesjudiciais que materializam tão-somente um dever de oferta deprestação, ou por vezes a sindicância de um ato administrativo,desconhecendo que um conceito, ainda que inicial de política pública,identifica-a como “programa de ação governamental visando realizarobjetivos determinados” (BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito depolítica pública em direito in _____ (org.). Políticas públicas:reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Editora Saraiva, 2006,p. 1-49)

17

originalmente se pôs no Brasil – saúde e educação –

envolviam misteres estatais com detalhada política pública

em andamento, envolvendo previsões constitucionais,

legislativas e infralegislativas, especialmente à conta do

compartilhamento de competências entre as entidades

federadas. Assim, no âmbito da saúde, o Sistema Único se

apresenta como o mecanismo institucional

constitucionalmente desenhado para a oferta deste tipo de

prestação, exigindo normatização específica que permita a

coordenação de esforços preconizada pelo art. 198 e 200

CF26. Da mesma forma, na educação pública, os imperativos

de harmonização de um sistema nacional onde os distintos

níveis de escolaridade são deferidos a diversas entidades

federadas, reclamavam específica disciplina normativa, o

que se deu a partir da Lei 9394 de 20 de dezembro de 1996

(Lei de Diretrizes e Bases). Num e n’outro caso, o

regramento parte do texto constitucional, alcança

legislação nacional e depois se desdobra em manifestações

normativas locais, contemplando não só a repartição de

competência e princípios regedores, mas também a

instituição de mecanismos de financiamento, estes igualment

constitucionalizados a partir das EC’s 29/00 (saúde), bem

como 14/98 e 53/06 (educação).

É certo que a judicialização do direito à saúde e à

educação envolveu uma espiral crescente de pedidos que

26 Essa normatização, como se sabe, sobreveio com a edição da Lei 8080de 19 de setembro de 1990, que “Dispõe sobre as condições para apromoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e ofuncionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”,sendo depois detalhada em diversos outros instrumentos normativos.

18

compreenderão por vezes, inclusive a outorga de prestações

não compreendidas na política pública em andamento – ou em

condições distintas daquelas traçadas pelos programas de

agir estatal pertinentes27. Todavia, esse tipo de

ocorrência ainda se afigura como menos significativo

controle judicial do cumprimento em tese da política

pública como um todo.

A grande maioria das demandas ainda envolverá uma

atividade ou prestação material que já se compreende no

sistema, e que por uma razão ou por outra, não foi

destinada àquele jurisdicionado específico. Assim, saúde e

educação se apresentavam ao final da década de 90 como

direitos sociais de sindicabilidade mais imediata enquanto

possibilidade jurídica, posto que envolviam prestações pré-

definidas, cujas condições de deferimento se tinha por

razoavelmente parametrizadas.

Nesse sentido, é compreensível que tenham sido esses

os campos onde originalmente a tese da sindicabilidade das

políticas públicas se pôs, sob a dupla justificação

argumentativa de que se cuidava da proteção à vida ou à

dignidade; e de que o crivo judicial incidia sobre uma

27 No campo específico das políticas públicas de saúde, o tema era detal forma relevante que determinou a formulação de quesitosespecíficos – os de nºs. 3, 4 e 5 – cunhado pelo Presidente do SupremoTribunal Federal na audiência pública da saúde: 3) Obrigação do Estadode custear prestações de saúde não abrangidas pelas políticaspúblicas existentes; 4) Obrigação do Estado de disponibilizarmedicamentos ou tratamentos experimentais não registrados na ANVISA ounão aconselhados pelos Protocolos Clínicos do SUS; 5) Obrigação doEstado de fornecer medicamento não licitado e não previsto nas listasdo SUS (BRASIL.Supremo Tribunal Federal. Despacho de convocação deaudiência pública de 5 de março de 2009, disponível em<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Despacho_Convocatorio.pdf>, acesso em 28 de agosto de 2012).

19

política pública existente e em andamento. Incluía-se o

debate do controle judicial de políticas públicas em

terreno conhecido, e aparentemente receptivo à matriz da

função jurisdicional, que envolve o contraste entre conduta

e parâmetros legislativos e constitucionais. Ademais, o

argumento de contradita da violação ao equilíbrio e

harmonia entre poderes se tinha por temperado à medida em

que não se cuidava de inovação absoluta no conjunto de

deveres de atuação da Administração – mas de controle de

adequação de um programa de agir estatal já cunhado e em

curso.

O problema se põe com a incorporação ao círculo de

debates, de outros direitos de fundo socioeconômico sem o

mesmo detalhamento no campo das políticas públicas

correspondentes, onde as escolhas trágicas podem se revelar

mais sensíveis.

3.2 Controle judicial de políticas públicas que exijam

a formulação, pelo agente controlador, de escolhas

alocativas

Tomemos o tema mais recentemente incorporado à pauta

das lides forenses – o direito à moradia – cuja asseguração

constitucional não encontra qualquer outro elemento

definidor das políticas públicas que o devam assegurar, que

não a inclusão no rol contido no art. 6º, caput CF. Aqui,

na lição de Calabresi e Bobbitt28, o atendimento à

28 CALABRESI, Guido e BOBBIT, Philip. Tragic Choices. The conflictssociety confronts in the allocation of tragicaly scarce resources.

20

pretensão judicializada envolve duas categorias de

determinações distintas: a primeira delas, de ordem global,

que define a mensuração/garantia da disponibilidade em si

de bens escassos (por condição natural, ou por força de

escolhas de prioridades alocativas); e a segunda, que

envolve, a partir da definição do universo de bens

disponíveis, quem sejam os destinatários de sua provisão.

Estas determinações por sua vez, constituem elementos

integrantes de uma política pública, que à vista do

resultado do primeiro recorte (disponibilidades) empreende

às subsequentes escolhas alocativas (quem sejam os

destinatários daquela ação estatal).

No direito fundamental à moradia de que se está

cogitando, as primeiras determinações (que compreendem

inclusive a consideração de que o bem moradia é

naturalmente sujeito a limitações, vez que reclama espaço

físico aproveitável a essa finalidade) envolverão escolhas

como qual seja o mecanismo de atendimento à aspiração em si

– que pode compreender providências outras que não a oferta

de unidades habitacionais29. Caso a opção recaia sobre a

oferta em si da moradia, as determinações compreenderão

ainda a eleição quanto ao tipo de abrigo (casas,

edifícios)30, em que quantidade e local. Já na segundaNew York – London: W. W. Norton & Company, [s/a], p. 19.29 No Estado do Rio de Janeiro, assim como no Município do Rio deJaneiro, uma das alternativas – dentre outras – contempladas pelapolítica pública em curso no tema do direito à moradia envolve aoferta de uma prestação mensal em dinheiro (“aluguel social”), que sedestinaria a viabilizar em favor dos vulneráveis assistidos, oprovimento de abrigo por força de um vínculo contratual de qualquernatureza com terceiros.30 Esse tipo de determinação, embora pareça comezinho, tem fortesrepercussões econômicas; na potencialização do número de unidades

21

ordem de determinações será necessário identificar em favor

de quem outorgar as referidas unidades habitacionais,

dentre um sempre variado conjunto de necessidades

igualmente relevantes31. Tais escolhas materializarão a

política pública aplicável na matéria – em seara onde o

texto constitucional sequer define quem seja a entidade

federada competente para atuar.

Importante ter por claro que as categorias clássicas,

constantemente trabalhadas a partir de uma perspectiva

puramente abstrata como mínimo existencial32, de pouca

valia serão para delimitar o espaço de controle pelo

judiciário de políticas públicas no campo da moradia.

Afinal, nem mesmo da ausência absoluta de moradia se pode

extrair a conclusão de violação ao mínimo existencial – à

medida que ela não se confunde com o desabrigo33, essa sim,

ofertadas, mas também na adesão pelos destinatários da políticapública ao programa. Afinal, não é indiferente para viabilizar umaremoção, o dado cultural daquela comunidade alcançada, onde por vezesa moradia – precária que seja – mas com potencial de ampliação, comonormalmente se dá com as casas, é tida por mais adequada ouvalorizada, vez que permitirá o abrigamento futuro de novoscomponentes da família.31 Ainda no campo da moradia, é possível figurar como elegíveis aosprogramas habitacionais – todos concorrendo para um mesmo número debens escassos – ocupantes de área de risco, invasores de propriedadeprivada sempre sob a ameaça de desalijo, ocupantes de áreas nãoedificáveis por implicações ambientais; ocupantes de áreas públicas,desabrigados alcançados por tragédias naturais (enchentes,deslizamentos), e ainda ocupantes de áreas que serão alcançadas porprogramas públicos de intervenção urbana.32 TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.33 O compartilhamento de moradia por distintos membros de uma mesmafamília, inclusive quando se delineiam novos núcleos familiares (osfilhos recém casados, por exemplo) é uma prática comum em váriospaíses do mundo, em distintas classes sociais, no cenário urbano erural, sem que disso se possa afirmar que o novo casal tenha violado odireito fundamental à moradia.

22

condição que pela supressão do achego que é próprio do

refúgio, pode se por em contraste com a proteção à

dignidade humana.

O ponto central é que em direitos socioeconômicos

dessa natureza, toda inclusão implicará necessariamente

numa exclusão; a primeira ordem de determinações subordina

à segunda, e as relações são de compartilhamento entre

virtuais destinatários (ante a escassez natural) e de

intrínseca interdependência com outras políticas públicas,

também orientadas à concretização de outros direitos

sociais34. Se essas opções já envolvem grande complexidade

quando se está no campo da delimitação em si de políticas

públicas no âmbito da Administração Pública – onde os

elementos de informação acerca do problema, dos recursos

disponíveis e das potenciais soluções revelam-se mais

acessíveis – ; com maior razão quando se cuide de controle

judicial do alegado inatendimento destes mesmos direitos

socioeconômicos.

O controle judicial de políticas públicas no campo dos

direitos socioeconômicos atrairá portanto, um exame de

adequação dos vários programas de agir estatal que

eventualmente se tenha em curso em favor de um mesmo

universo possível de cidadãos reclamando proteção. Intervir

nessas hipóteses, para determinar uma prioridade de

atendimento com a outorga da prestação pecuniária ou mesmo

da unidade habitacional, implica em excluir aquele que se

34 SACHS, Albie. The Sobramoney Case – broader questions. in _____. Thestrange alchemy of life anda law. Great Britain: Oxford UniversityPress, 2009, p. 189.

23

veria – antes da intervenção judicial – destinatário da

atuação estatal. Esse é o lado irrevelado da tese do amplo

controle judicial de políticas públicas, que em nome de

incluir (o jurisdicionado), culmina por promover a exclusão

de alguém que também é vulnerável, e que conta ainda em seu

desfavor com a circunstância de não ter tido oportunidade

de trazer sua história humana, sua presença como ser que

sofre, ao conhecimento do juiz sensível35.

Outras desfuncionalidades podem decorrer de uma

aproximação sob a perspectiva individual, da microjustiça

nos conflitos envolvendo a garantia ao direito fundamental

à moradia: a casuística crescente nos grandes centros

aponta isso.

Os conflitos entre particulares e invasores de toda

ordem, que resultem em provimento jurisdicional em favor da

proteção à propriedade e posse do particular resultam, como

é sabido, em desalijo, e portanto, em risco ao direito

fundamental à moradia dos invasores e à preservação em seu

favor de um modo de vida digno. Disso decorre o imediato

ajuizamento de medida judicial no sentido de que assegure o

Poder Público o malferido direito à moradia – no mais das

vezes surpreendendo uma Administração Pública que, não

35 Registre-se que isso é a negação das tradicionais tesesjustificadoras da legitimidade do controle judicial, onde aobjetividade e neutralidade da técnica estariam a permitir aintervenção retificadora. Se os temas se resolvem pelo lado emocional,no espaço de indeterminação de conceitos jurídicos de textura abertacomo normalmente se tem presentes nas cláusulas enunciadoras dedireitos fundamentais, esvazia-se o potencial de aceitação possível deautoridade do argumento, e a ordem judicial passa a se fundar tão-somente no argumento de autoridade, contaminando por sua vez o ideáriodemocrático que integra o núcleo de um constitucionalismotransformador.

24

integrando o conflito possessório anterior, que se deu

entre particulares, sequer tinha conhecimento da ameaça ao

tanto citado direito fundamental. O efeito em situações que

tais é conferir em última análise, ao particular

proprietário, o condão de estabelecer a pauta de prioridade

no atendimento pelo Poder Público ao direito fundamental à

moradia. Isso porque a garantia do exercício do direito de

propriedade individual se dará sob o temperamento da

proteção à moradia, não por qualquer atuação do

proprietário – mas do Estado, convocado a tanto como mera

consequência do litígio particular anterior. Curiosamente

em situações que tais, não se identifica sequer a cogitação

de eventuais efeitos da tese da horizontalidade dos

direitos fundamentais, cabendo sempre ao Estado

exclusivamente, o papel de seu garantidor.

Outro desvio de perspectiva comum nos conflitos de

moradia – onde, repita-se, é escassa a determinação do

conteúdo das políticas públicas na matéria, carecendo o

Judiciário de um padrão anterior de racionalidade normativa

a aplicar – é aquele em que, na tensão entre direito à

moradia e eventuais implicações ambientais de uma

construção normalmente irregular, opera-se a solução em

favor à proteção à moradia, preservando-se a presença na

área ambientalmente protegida por se considerar esse o meio

consentâneo de assegurar proteção ao vulnerável. Aqui, seja

na ordem judicial que determina a permanência no local;

seja naquela que determina a priorização nos programas de

moradia ou de oferta de prestação pecuniária destinada a

25

tanto, aquele que se instala em área protegida (praticante

de duplo ilícito; o edilício e o ambiental) passa a merecer

um signo de prioridade decorrente da intervenção

jurisdicional que, visto o cenário a partir da perspectiva

do todo, revela-se iníquo.

Mesmo nas clássicas hipóteses de retomada de espaço

público, com a pretensão de desocupação de bens públicos

invadidos recentemente ou de há muito; a matriz de

raciocínio que identifica sempre a preferência pela

proteção à moradia (dos invasores) se constrói a partir de

uma perspectiva equívoca: a de que o conflito envolve na

hipótese, Estado e titular de direito fundamental à

moradia. Embora essa seja uma alternativa possível – quando

a ação administrativa de desocupação se prende pura e

simplesmente à devolução ao público do bem que é de seu uso

comum; não é menos possível que a desocupação do espaço

público seja providência inicial para a oferta de um

equipamento igualmente público à sociedade, o transmudaria

as partes integrantes do conflito para invasores, e

coletividade que seria beneficiária da ação estatal que se

quer desenvolver na área ocupada.

É certo que nas três hipóteses aqui figuradas –

desocupação de área privada, de área protegida sob a

perspectiva ambiental e de área pública – é possível

ponderar sobre a importância do aperfeiçoamento dos

mecanismos de sua concretização; garantia de devido

processo no desalijo; proteção à confiança, e várias outras

matizes igualmente caras a um Estado que se afirma

26

Democrático e de Direito. Mas todas essas cogitações dizem

respeito ao aperfeiçoamento da atividade administrativa (ou

mesmo judiciária); e nenhuma delas se tem por viabilizada

pela simples decisão que assegura um determinado direito na

perspectiva individual.

O quadro que se desenha notadamente num direito como

aquele à moradia, carente de maior delimitação das

obrigações recíprocas, suscita o problema da legitimidade

destas mesmas escolhas trágicas, muitas vezes empreendidas

sem a plena compreensão do seu alcance em sede de controle

judicial de políticas públicas no campo dos direitos

sociais – e ao mesmo tempo, a anunciada tensão entre

transformação e regressão social. A “bondade” da decisão

judicial em favor do atendido revelar-se-á “maldade” em

relação a terceiro não integrante do processo (e que

portanto, não teve a oportunidade de narrar a sua

história), mas destinatário natural da política pública

segundo o critério objetivo formal construído na segunda

ordem de determinações.

Mais ainda, a “bondade” da decisão judicial que

assegura por uma razão ou por outra, prioridades no

atendimento em relação a bem escasso como o é a moradia,

pode culminar por estimular condutas socialmente

indesejadas como a invasão de espaço público ou área com

implicações ambientais; já que a solução para essa

problemática estaria a lhes assegurar um prioridade que

originalmente não deteriam.

27

Impõe-se portanto a incorporação – na matriz de

construção da decisão judicial – dessa dimensão pragmática,

consequencialista, sem o que a outorga da jurisdição se

dará a partir de uma perspectiva individualista que em

verdade, não acolhe relevante elemento conceitual do que

sejam direitos sociais. É de Novais36 o destaque de que o

elemento de particularização dessa espécie de direitos é

que determina a busca da garantia em favor dos indivíduos –

todos que deles necessitam – de bens escassos aos quais só

se consegue aceder se dispuserem por si próprios, por

instituições ou pelo Estado, de suficientes recursos

financeiros ou ajuda de outra espécie que lhes facilite o

alcance. Se assim é, a observância do compromisso

constitucional para com a efetividade dos direitos sociais

é resultado que não se alcançará a partir de uma

perspectiva da jurisdição que estimula o

hiperindividualismo e desconsidera a coletividade.

A segunda conclusão parcial que se propõe, é a de que

as referidas escolhas trágicas – que inevitavelmente se dão

no plano da cunhagem das políticas públicas objeto do

controle jurisdicional, ou no crivo desenvolvido pela

jurisdição quando da judicialização do conflito – num

contexto de compromisso constitucional com a

democratização, compreendem necessariamente um envolvimento

dos atores sociais, num processo de seleção de prioridades

que não pode resultar tão-somente do signo autoritativo do

36 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais. Teoria jurídica dos direitossociais enquanto direitos fundamentais. Portugal: Wolters Kluwer –Coimbra Editora, 2010, p. 41.

28

argumento técnico-jurídico – mas deve defluir de uma

competente justificação. É o que se passa a desenvolver.

4. Direitos fundamentais socioeconômicos e a tensão

permanente entre transformação e regressão

A tensão entre um Estado provedor de todas as

necessidades albergadas sob a categoria dos chamados

direitos sociais, e a necessária emancipação da cidadania

foi já denunciada por Goyard-Fabre37:

Como não ver que o intervencionismo doEstado-providência em todos os camposaniquila a autonomia das vontades, ouseja, a responsabilidade dos sujeitos dedireito? Não será um sofisma reclamar tudodo Estado, quando se pretende promover orespeito à dignidade própria da pessoahumana? Ademais, a proliferação dos“direitos” provoca sua desvalorização, desorte que, se tudo é direito, nada mais édireito.

O repto se justifica ainda por outro aspecto

igualmente relevante. É justamente a superação do legado de

injustiças do passado que se intenta alcançar pela

transformação social veiculada também pelo compromisso para

com os direitos fundamentais sociais, que eiva o processo

de sua enunciação constitucional, de um caráter certamente

37 GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito políticomoderno. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.337. Traduzido de Les principes philosophiques du droit politiquemoderne.

29

menos consensual, se não conflitivo – e por diversas

razões.

Um primeiro ponto de possível tensão entre

transformação e regressão envolve qual dentre os deveres

estatais normalmente associados aos direitos sociais – de

proteção ou defesa, de prestação jurídica ou material e de

participação – será objeto de prioritária atenção pelo

Estado. Isso porque, como bem destacado por Novais38,

embora se associe a tutela a direitos sociais com os

deveres de prestação material pelo Estado, é possível que

as condições de desenvolvimento de uma determinada

sociedade – ou de uma parcela dela – reclamem maior ênfase

em outra das dimensões, como a de proteção ou de

participação. Em sociedades cindidas pela desigualdade

social em verdade, essa dualidade entre direitos de defesa

e aqueles a prestações materiais reproduz a dicotomia entre

ricos e pobres, e o balanceamento dessas duas dimensões de

atuação estatal pode ser fator determinante para a

consolidação de um equilíbrio social e institucional que,

nos primeiros momentos de transição política, possivelmente

se revelará frágil39.

38 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais. Teoria jurídica dos direitossociais enquanto direitos fundamentais. Portugal: Wolters Kluwer –Coimbra Editora, 2010, p. 43-44.39 Exemplo em que essa necessária conciliação entre proteção ao que setinha, e promoção da inclusão social de uma significativa parcela dapopulação a quem as necessidades mais elementares eram desatendidas setem na África do Sul. É de Sachs a narrativa acerca das desconfiançasem relação a uma possível apropriação pela elite dominante, pela viados deveres de proteção, do discurso de proteção aos direitosfundamentais sociais, que se cogitava enuncia num “Bill of Whites”(SACHS, Albie. The judge who cried: the judicial enforcement ofsocio-economic rights. in _____. The strange alchemy of life anda law.Great Britain: Oxford University Press, 2009, p. 165-166)

30

Num plano mais pragmático, a incorporação de um

extenso elenco de direitos sociais de eficácia imediata,

com reforço de sua dimensão objetiva e horizontalidade,

pode determinar ainda uma sobrecarga das prestações

estatais relacionadas à promoção do acesso individual a

bens limitados. Esse excesso de demandas, de vez que incide

igualmente sobre recursos limitados – aqueles confiados à

gestão estatal, cuja origem é, em última análise, a

tributação – terá por consequência, medidas mais ou menos

impactantes de justiça redistributiva, que não encontram

necessariamente, integral apoio na coletividade em que elas

incidam.

Não por outra razão, a construção de um

constitucionalismo que contempla uma agenda significativa

de inclusão social, necessariamente haverá de associar a

esse objetivo transformador, mecanismos de reforço do

processo sistema de deliberação democrática, normalmente

com ênfase sua dimensão participativa.

É nesse exercício deliberativo democrático que a

densificação de conteúdo dos direitos sociais poderá

encontrar um ponto de equilíbrio entre proteção e

prestação; entre as medidas jurisdicionais interventivas

associadas à outorga de utilidades materiais e o necessário

signo de legitimidade de que essas deliberações no campo

das prestações socioeconômicas, que traduzem uma inequívoca

seletividade, devem se revestir. Afinal, constitucionalismo

valorativo opera a partir de uma nova lógica de ordenamento

jurídico, que compreende “diversas ‘normas origens’ das

31

quais derivam várias cadeias normativas”40, exigindo uma

construção permanente que reflita os múltiplos valores e

interesses de diversos setores, grupos e classes sociais em

confronto.

Não é esse o modelo – deliberativo democrático,

pluricêntrico41 – que hoje se aplica ao chamado controle

jurisdicional de políticas públicas no cenário brasileiro.

Ao contrário, o que se verifica é uma adjudicação

tradicional, que opera a partir da lógica credor-devedor,

numa relação que se entende sempre se estabeleça entre o

Poder Publico e a cidadania42. Mais ainda, a evocação da

prática do controle judicial de políticas públicas – que

hoje se reveste de uma carga semântica, para muitos,

positiva, porque supostamente tradutora de um Estado

Democrático de Direito – se dá no mais das vezes em

conflitos individuais, que pouco dirão quanto à real

efetividade na produção de mudanças significativas pelas

40 FARIA, José Eduardo. Introdução: o Judiciário e o desenvolvimentosócio-economico. in _____. Direitos humanos, direitos sociais ejustiça. 1ª ed., 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p.24.41 RAY, Brian, Policentrism, Political Mobilization and the Promise ofSocioeconomic Rights (December 9, 2009). Stanford Journal ofInternational Law Vol. 45, p. 1; Cleveland-Marshall Legal StudiesPaper No. 08-154. Disponível em <SSRN:http://ssrn.com/abstract=1098939>, acesso em 28 de agosto de 2012.42 Curiosamente, o tema da horizontalidade dos direitos fundamentais,introduzido no debate acadêmico brasileiro pelo trabalho pioneiro deSarmento, não seduziu o imaginário judicial, que em raríssimasocasiões – nunca no campo dos direitos fundamentais sociais – aplica aideia de que também nas relações privadas a proteção ao esses mesmosbens da vida possa se por, e dirigida não ao Leviatã, mas aoparticular (SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaçõesprivadas. 2 ed. Rio de Janeiro:Lumen Juris Editora, 2006).

32

Cortes nesses programas de ação estatal supostamente

deficientes ou inadequadas43.

Nisso se põe a tensão entre transformação e regressão,

nas hipóteses de controle jurisdicional de políticas

públicas atinentes à concretização de direitos sociais.

Urge porém, examinar os argumentos ainda manejados em favor

do controle jurisdicional de políticas públicas – no

contexto da proteção aos direitos fundamentais sociais – na

busca também aqui, de um ponto de equilíbrio, que permita o

funcionamento do sistema, promovendo a transformação

social, mas na perspectiva realmente emancipadora da

pessoa.

4.1 Judicialização de direitos sociais como

possibilidade de vocalização em favor dos vulneráveis

O argumento ordinário em favor da judicialização dos

direitos sociais envolve a tese de que essa prática confira

àqueles desfavorecidos, destinatários primários de deveres

inatendidos de agir do Estado, vez e voz no ambiente

politicamente neutro dos Tribunais. Essa tese, que durante

muito tempo foi defendida inclusive pela doutrina

brasileira do direito constitucional, que reclamava do

Judiciário a assunção de um papel mais ativo na

concretização dos direitos fundamentais tout court, tem

oposta em contradita, argumentos associados à violação ao

43 ROSENBERG, Gerald N. The hollow hope. Can Courts bring aboutsocial change? 2nd. ed., Chicago-London: The University of ChicagoPress, 2008, p. 5.

33

equilíbrio entre Poderes e à ausência de expertise dos Cortes

para esse tipo de intervenção44.

A reiteração desse tipo de comportamento judicial

interventivo – estendendo-se a políticas públicas no campo

ambiental, habitacional, assistencial, de proteção à

infância e adolescência, dentre muitas e muitas outras –

tem evidenciado outras fragilidades que podem se manifestar

em detrimento do objetivo enunciado formalmente enunciado,

que é aquele do empoderamento dos direitos sociais. Aqui,

no plano de direitos sociais, muitas vezes

transindividuais, onde o traçado das próprias políticas

públicas em execução é ainda insuficientemente denso ou por

vezes sequer existe, a margem de alternativas postas ao

controle jurisdicional aumenta, já que inexistente o

critério de racionalidade formal da lei. Essa a razão para

advertir-se quanto aos riscos de regressão – e não

transformação – em decorrência do favorecimento ao controle

judicial de políticas públicas, ao menos no modelo

substitutivo desenvolvido ordinariamente na casuística

crônica da jurisprudência nacional45.

É o exercício exploratório de conteúdos possíveis de

decisão judicial em tema de direitos sociais que revela as

possibilidades de regressão associadas aos excessos no

44 Sumariando a discussão, consulte-se BARROSO, Luís Roberto.Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. [on line],disponível em<http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> , acesso em 28 de agosto de 2012.45 Para um panorama da aproximação jurisdicional no tema do controle depolíticas públicas, consulte-se VALLE, Vanice Regina Lírio do.Políticas públicas, direitos fundamentais e controle judicial. BeloHorizonte : Editora Forum, 2009, p. 95-140.

34

judicial review envolvendo políticas públicas. Uma primeira

possibilidade é a decisão judicial autocontida ou

minimalista46 – porque envolvendo uma intervenção

excepcional no campo de atuação típico de outro poder, o

que estaria a recomendar um mínimo de intervenção. Cuida-se

aqui de uma atuação que se revela deferente para com os

demais poderes – ainda que lhes assinale eventualmente,

algum dever de agir tendo em conta as peculiaridades do

caso concreto. Essa deferência pode decorrer, no caso do

legislativo, de seu traço representativo e de sua

accountability eleitoral, que fixariam uma natural legitimidade

apriorística da sua escolha, se existente. Já no que toca

ao executivo, a deferência pode decorrer de certa

autoridade epistêmica, reconhecida em função de ser o braço

especializado de poder com maior disponibilidade de

recursos técnicos e informações47.

Por uma razão ou por outra, manifesta a deferência

tem-se que a interpretação restritiva dos direitos

constitucionalmente enunciados havida na decisão

minimalista, pode determinar uma sensação de

inevitabilidade em relação a esse conteúdo mais acanhado do

46 É de Sunstein a lição de que o minimalismo é um atributo possível dadecisão judicial, que empreende à sua contenção no que toca ao alcance(limites objetivos e subjetivos) e à profundidade da argumentação(SUNSTEIN, Cass. One case at a time: Judicial minimalism in theSupreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1997). Uma decisãominimalista, longe de pretender teorizar em relação aos institutos edireitos nela cogitados, promove tão-somente à composição daqueleparticular conflito, nos seus exatos limites, reservando oaprofundamento da discussão epistêmica para outros futuros casos.47 YOUNG, Katharine. G. A typology of economic and social rightsadjudication: Exploring the catalytic function of judicial review.International Journal of Constitutional Law – I-Con (2010), Vol. 8 No.3, p. 392.

35

direito, pela exclusão de determinadas condutas ou

prestações como resultado da incidência dos preceitos

constitucionais objeto da judicial review. Isso porque se o

guardião último da Constituição afirma seja esse o conteúdo

do direito, não haveria, em princípio, mais o que postular.

Essa suposta predeterminação do conteúdo culminaria por

constringir, quer a reivindicação típica dos movimentos

sociais (que poderia pretender um espectro mais amplo no

que toca à proteção daquele especial direito); quer as

possibilidades de atuação corretiva ou ampliativa da

própria Administração em eventual resposta a esses mesmos

movimentos sociais48. Afinal, se o Judiciário afirma que

aquilo que se oferece é suficiente, porque buscar outra

alternativa de conduta mais abrangente?

Observe-se que aqui, o efeito regressivo está a

envolver de maneira direta o próprio conteúdo do direito

social tutelado; e de maneira indireta, o potencial de

desenvolvimento e consolidação de uma democracia

deliberativa real, que valorize a dimensão da participação

e as arenas de debate em relação a temas que envolvam

necessariamente, a prática de escolhas alocativas. Afinal,

ambos os atores que poderiam provocar essa discussão –

movimentos sociais e Administração Pública – se veriam

desestimulados ou dispensados de aprofundar a dialética em

torno da eficácia da política pública em andamento, por

força da acima referida sensação de inevitabilidade.

48 LIEBENBERG, Sandra. Socio-economic rights: adjudication under atransformative constitution. Claremont: Juta & Co, Ltd., 2010, p. 39.

36

No outro extremo, também a decisão da Corte que

intervém de maneira mais forte ou ativista, corrigindo ou

mesmo formulando políticas públicas pode também gerar

sérios e indesejados efeitos de regressão no que toca ao

projeto de inclusão social. Aqui, a impressão (fantasiosa)

de que o Judiciário possua respostas em relação a qual a

melhor maneira de concretizar direitos sociais pode

determinar uma indução – ou reforço – ao imobilismo dos

braços de poder político que deveriam ter cunhado e

executado o programa de agir estatal, e não o fizeram49.

Afinal, se o tema era complexo e a realização das escolhas

alocativas se revelava tortuosa, a inércia pode se revelar

o comportamento menos oneroso para o agente político50 –

especialmente se, no extremo, o Judiciário atua

empreendendo a essas mesmas escolhas, atraindo para si os

resultados (inclusive e especialmente os adversos).

Observe-se que mais uma vez, a regressão pode se dar

tanto no plano da delimitação do conteúdo dos direitos,

como também no viés de reforço dos mecanismos democráticos.

Afinal, em temas sensíveis, onde a concretização das pautas

de inclusão envolva a interface com outros direitos

fundamentais, ou ainda a contrariedade de interesses das

elites; a decisão judicial substitutiva pode desonerar o

seu agente primário de formulação, dos custos políticos da

49 LIEBENBERG, Sandra. Socio-economic rights: adjudication under atransformative constitution. Claremont: Juta & Co, Ltd., 2010, p. 40.50 DIXON, Rosalind, Creating Dialogue about Socioeconomic Rights:Strong-Form versus Weak-Form Judicial Review Revisited (2007).International Journal of Constitutional Law, Oxford Journals, Vol. 5,No. 3, pp. 391-418, 2007. Disponível em SSRN:<http://ssrn.com/abstract=1536716>, acesso em 7 de maio de 2012.

37

decisão. O campo do direito social à moradia será fértil

nesse tipo de oportunidade à regressão, na medida em que a

proibição do desalijo incidente em localidade onde a

edificação seja proibida – por exemplo – proferida em ação

promovida em nome da proteção ao direito fundamental à

moradia, evita a difícil questão do reassentamento, que

nunca se dá em condições tidas por satisfatórias para os

alcançados pela remoção. De outro lado, no plano da

autonomia do sujeito, também a decisão pura e simples de

proibição da remoção oculta a discussão principal, que é a

necessidade do provimento de condições estruturais que

permitam o provimento de moradia adequada e em local

adequado. Finalmente, numa compreensão mais abrangente,

seja do deliberar democrático como prática da construção

das decisões regedoras do convívio coletivo, seja dos

direitos fundamentais como compromissos que incidem também

em relação de horizontalidade, a decisão que puramente

proíbe a remoção em nome da proteção ao direito à moradia

assume como verdade que a solução desse tipo de problema

complexo seja atribuição única e exclusiva do Estado,

esvaziando de conteúdo o objetivo fundamental – que é da

República, e não do Estado – de construir uma sociedade

livre, justa e solidária (art. 3º, I CF).

Outro efeito regressivo possível é aquele do caráter

puramente simbólico no que toca à efetiva transformação

promovida pela deliberação judicial fundada num conflito

que se estabeleceu exclusivamente a partir da matriz do

38

raciocínio jurídico, desprovida dos elementos que nortearam

o traçado da política pública na espécie.

Esse tipo de decisão – mais emocional do que

pragmática – se põe com frequência no campo da proteção ao

direito à moradia, onde a narrativa da demanda é

normalmente bombástica, afirmando o sério risco à dignidade

da pessoa e muitas vezes, também à sua própria segurança.

Afirma-se o caráter simbólico da prestação jurisdicional

nestas hipóteses, por várias razões. Primeiro, a

deliberação judicial envolvendo a outorga de prestações

sociais em feitos individuais, ainda que multiplicada em

expressivos números, sempre será irrelevante no que toca ao

virtual universo de destinatários de uma política pública

inexistente ou inadequada. Em que pese toda a estrutura

institucional facilitadora do acesso à justiça; o número de

alcançados pela jurisdição será sempre significativamente

inferior àqueles que deveriam efetivamente ser protegidos

pelo direito social não concretizado, caso fosse objeto de

uma ação estatal real, consistente e abrangente. Nesse

sentido, a decisão judicial pode se apresentar tão somente

como uma representação pacificadora – e pior, que induza,

mais uma vez, ao imobilismo, à medida em que se revele mais

simples para o Poder Público a gestão das decisões

judiciais condenatórias, do que a construção e

implementação da política pública requerida pela matéria.

Segunda razão pela qual se pode afirmar meramente

simbólica – e, portanto, na essência regressiva a decisão

judicial supostamente assecuratória de direitos sociais –

39

está no uso de cláusulas vagas ou indeterminadas, seja na

sua provocação, seja na sua própria construção, para

superar exatamente o conhecido argumento da ausência de

expertise. Assim é que o pedido inaugural – e em

consequência, o próprio título executivo judicial que dele

decorre – muitas vezes exarado em ação coletiva, não tem

determinação suficiente, seja no que toca à sua dimensão

subjetiva, seja no que diz respeito às providências em si

exigíveis, o que se resulta num pronunciamento formalmente

assecuratório de direitos sociais, mas sem aptidão concreta

para a pretendida garantia, transferindo em verdade o mesmo

debate para uma segunda etapa de litígio, aquela da

execução da sentença.

Uma vez mais, o resultado é regressivo – e não

transformador. Afinal, a enunciação em si do direito, sem

que o título judicial se revele apto a clarificar as

obrigações associadas à sua garantia, não promove inclusão;

ao revés, pode promover no extremo, o próprio descrédito do

Judiciário, que decide, mas não se revelaria capaz de

empreender ao enforcement de suas próprias decisões.

4.2 Judicialização de direitos sociais e o reforço de

estereótipos culturais

Outro aspecto em que a judicialização dos direitos

sociais pode determinar uma prática regressiva – e não

transformadora – envolve a repetição por parte dos atores

que participam da demanda, de estereótipos culturais

40

presentes na sociedade brasileira, ou a menos na autoimagem

que se lhe apresenta.

Primeiro lugar-comum que se vê reproduzido na prática

– supostamente emancipadora – do controle judicial de

políticas públicas em matéria de direitos sociais, é aquele

da incapacidade de uma cidadania não organizada, de tomar

em suas próprias mãos os seus destinos, e participar mais

ativamente na construção dos caminhos de solução para as

profundas desigualdades. O paternalismo presente na elite

“esclarecida” – no que se inclui, evidentemente, o

Judiciário – identifica com um olhar benévolo, os “cidadãos

simples”51, que não tendo noção exata de seus direitos,

precisam de um agente do poder que lhes auxilie nessa

identificação. Essa cidadania é vista – justamente pelo seu

“desconhecimento” originário, como destinatários passivos

de bens ou serviços que lhes sejam dimensionados e

designados a partir de um processo – à essa altura, mais

jurídico que político – em relação ao qual eles não tem

qualquer potencial de compreensão, e menos ainda, relação

de pertencimento.

Uma segunda manifestação de estereótipos em relação à

cidadania é aquele do seu desinteresse permanente pelo

processo político, por intermédio do qual se desenvolvem as

escolhas públicas que conformam o conteúdo das políticas

públicas. O patrimonialismo como prática social histórica

no Brasil teria legado como pano de fundo, uma certa

aversão à dimensão do coletivo, e uma percepção do espaço

51 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 216.

41

público como “terra de ninguém”52 – do que decorreria um

afastamento natural da cidadania dos temas inerentes ao

espaço público.

Uma vez mais, é de Liebenberg a advertência: “o perigo

em se promover uma concepção de direitos sócio-economicos

como commodities conferidas a beneficiários passivos por um

Estado benevolente é que isso desvie a atenção das reformas

mais substantivas requeridas das instituições e estruturas

que geram as desigualdades sociais sistêmicas”53. A questão

central portanto está em que a reprodução do estereótipo da

cidadania omissa – por desconhecimento ou desinteresse –

uma vez mais secundariza a questão estrutural, da real

subordinação do poder aos compromissos finalísticos

traduzidos na Constituição. O desafio proposto pelas

particularidades da cidadania é a construção de um processo

deliberativo que favoreça o engajamento e promova o

equilíbrio possível entre os vários interesses concorrentes

na cunhagem e execução de uma política pública54.

Segundo clichê cultural que se tem indelevelmente

entranhado em toda a aproximação do tema do controle

judicial das políticas públicas, é aquele do Estado-

Leviatã; o Estado “mau”, o “algoz da sociedade”. Qualquer

desfunção numa política pública ou no provimento a um

específico direito fundamental decorreria portanto desse

52 SORJ, Bernardo. A nova sociedade brasileira. 2ª ed. rev., Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 30.53 LIEBENBERG, Sandra. Socio-economic rights: adjudication under atransformative constitution. Claremont: Juta & Co, Ltd., 2010, p. 42.54 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Direito fundamental à boaadministração e governança. Prefácio Diogo de Figueiredo Moreira Neto,Belo Horizonte: Editora Forum, 2011, p. 50.

42

caráter intrinsecamente mau do Estado, a quem se contrapõe

sempre o cidadão bom e vitimizado pelo poder que tiraniza e

oprime. Esse olhar maniqueísta, que divide o mundo entre

bons e maus se revela passé em pleno séc. XXI. A

complexidade das relações sociais, as matricialidade das

políticas públicas e sobretudo as dificuldades valorativas

postas a cada uma das dimensões das escolhas alocativas

referidas no item 3 deste trabalho evidenciam que o Estado

não é intrinsecamente mau – o Estado, como instituição

humana que é erra e acerta; o Estado precisa de

enriquecimento no seu processo de decisão. O Estado, que

somos nós, é como nós. Nesse sentido, o olhar que

investigue quanto às alterações sistêmicas que o

atendimento deficiente a um direito social esteja a

reclamar não pode ter por ponto de partida um pressuposto

de que o Estado por princípio resiste à garantia desses

mesmos direitos.

5. Reposicionando a dimensão da institucionalização do

poder no cenário do controle de políticas públicas e da

efetividade dos direitos sociais

Caminhando para a conclusão, é preciso retomar a

observação já lançada neste texto, de que o

neoconstitucionalismo ideológico vivido no Brasil

secundarize a dimensão do político em favor daquela dos

direitos – tudo em nome da promoção da inclusão social.

Essa visão tem proporcionado em terra brasilis, uma prática

43

jurisdicional orientada à exigência da dimensão

prestacional dos direitos sociais, a partir de uma atuação

substitutiva dos braços especializados do poder político,

manifestando um traço ativista que tem sido por muito, até

mesmo festejado55. Passados já uma década dessa prática

jurisdicional, impõe-se avaliar a sua real sintonia com o

projeto constitucional que ela deveria reverenciar – que é

aquele da transformação democrática, pela promoção da

inclusão.

Se num primeiro momento a jurisdição interventora pura

e simples na ponta da outorga da prestação poderia se

apresentar como elemento relevante de afirmação da

efetividade da constituição e dos direitos fundamentais,

nela contidos; o arranjo de forças às vésperas dos 25 anos

de constituição não se revela mais o mesmo – e exige um

repensar do tema.

Em que pese a conquista histórica, de doma do poder e

emancipação do homem consistente na afirmação dos direitos

fundamentais incorporados às ordenas jurídico-

constitucinais; é preciso que esse ganho não se dissipe

através dos riscos de regressão que a judicialização

excessiva ou o ativismo naive podem trazer, nos termos acima

indicados. Para tanto, impõe-se reconciliar aquilo que é

missão e vocação natural do Judiciário, a saber, solução do

55 Para acesso a relevante coletânea contendo decisões judiciais notema de controle de políticas públicas, em tribunais superiores eainda estaduais de todo o país, consulte-se a Revista Jurídica doTribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nº 3, 2012, sobcoordenação do Des. Jessé Torres Pereira Jr., tendo por eixo centralexatamente a atuação jurisdicional sobre esses programas de açãoestatal.

44

conflito individual “dando a cada um o que é seu”, com dois

vetores indispensáveis na atuação sobre a seara das

políticas públicas, ambas relacionadas ao aperfeiçoamento

do logo democrático: exercício de uma estratégia que

prestigie a inclusão na busca das soluções; e foco no

aperfeiçoamento da atuação estatal no direito fundamental

tutelado.

As duas considerações de que aqui se fala não

encontram expressa previsão no arsenal de técnicas de

decisão ou institutos processuais disponibilizado ao

Judiciário – mas não guardam incompatibilidade com a ordem

jurídico-processual vigente, pelo que se antecipa a

proposta que poderia merecer acolhida, independente de

profundas modificações legislativas. Por vezes, um período

de experimentalismo pode se revelar útil ao aperfeiçoamento

dos institutos, municiando uma futura normatização que se

beneficiará de um aprendizado inicial56.

5.1 Jurisdição e uma estratégia de construção inclusiva de

soluções

56 Nesse linha, destaque-se a disciplina das audiências públicas, comomecanismo de ampliação do diálogo social desenvolvido pelo SupremoTribunal Federal. Como se sabe, a disciplina da figura das audiênciaspúblicas (não obstante a referência lacônica empreendida pela Lei9868/99) veio à luz por intermédio da Emenda Regimental nº 29/09, nãosem que antes a Corte tenha aplicado o instituto, consolidando umaprimeira aproximação de seu desenho, que municiou a referidaintervenção normativa. Para uma descrição da evolução do tratamentoconferido pelo STF à prática da audiência pública, consulte-se VALLE,Vanice Regina Lírio do. (org). Audiências públicas e ativismo.Diálogo social no STF, Belo Horizonte: Editora Forum, 2012.

45

A lógica proposta pela Constituição de 1988, de

articulação entre a dimensão jurídica e dimensão política

da vida nacional – que historicamente se apresentavam

marcadas pela polarização, numa relação aparentemente

inconciliável57 – tem conduzido à ênfase no litígio ou a

lei como substitutos aos mecanismos humanos tradicionais de

superação de diferenças de identidades coletivas

fragmentadas que encontram do Judiciário um lócus para

veicular suas pretensões. A par disso, um desencantamento

com o jogo ordinário da política decorrente da ausência de

pontes entre a vida pública e a vida privada retratado por

Bauman58 culmina por se apresentar como barreira à tradução

das preocupações pessoais em questões públicas. Assim,

afigura-se compreensível que a própria sociedade veja o

Judiciário como um short cut para o enfrentamento de

situações que se apresentam ao jurisdicionado

individualmente considerado, como pessoais – mas que na

verdade, podem se reproduzir aos milhares nas relações

entre Estado e cidadãos. A questão está todavia em saber se

o Judiciário pode ou deve simplesmente acolher esse

“atalho” em nome da garantia a direitos fundamentais; ou se

ele tem ainda algum papel a desenvolver para prevenir esse

desvio de perspectiva, reconduzindo o exercício do poder

político à sua trilha ordinária, que exige a oferta de

57 BURGOS, Marcelo Baumann. A Constituição de 1988 e a transição comoobra em progresso. Revista da EMARF, Cadernos Temáticos, Rio deJaneiro, dez. 2010, p. 121.58 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Trad. Marcus Penchel, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 10-11. Traduzido de In search ofpolitics.

46

resposta às pautas de prioridades constitucionais

(legislativas ou de políticas públicas).

Em verdade, o pluralismo tende a destacar/evidenciar

as diferenças, e se todo dissenso for conduzido à solução

jurisdicional, há um evidente esvaziamento da

responsabilidade que é inerente à própria ideia de

organização da sociedade, de viabilizar esse convívio – que

pode ser conflitivo, mas que é de ser democraticamente

construído.

Ademais, o modelo jurisdicional tradicional de solução

de conflitos envolve necessariamente uma lógica de vencedor

e vencido; dicotomia que no campo dos direitos fundamentais

se vê facilmente identificada pelo seu caráter

indissociavelmente subjetivo, àquela do exaltado e do

humilhado. É nesse ponto que mais claramente se vê a

perversidade da regressão que decorre da decisão judicial

que procura tão-somente, numa perspectiva substitutiva,

proclamar de um vencedor; abdicando de um resultado legal

que permita uma aproximação entre as pessoas e algum nível

de reparação e restauração.

A efetivação legítima dos direitos fundamentais

sociais exigirá, necessariamente, por seu próprio conceito,

a formulação de escolhas alocativas – que como se assinalou

acima, determinam sempre uma inclusão, e um sem-número de

exclusões. Essa deliberação, para que se revele

efetivamente transformadora, é de se construir não a partir

de uma visão exclusivamente juricêntrica, mas também – e

especialmente – democrática. Não se está com isso afirmando

47

a exclusão do Judiciário como agente controlador das

políticas públicas como instrumento materializador do agir

estatal; mas sim que essa específica função, para que possa

ser exercida no seu pleno potencial emancipador de um

convívio social harmônico, formado por indivíduos

autônomos, e dotados de dignidade (no que se inclua a

liberdade de eleição de seus próprios destinos), exigirá

necessariamente uma nova institucionalidade no exercício da

função estatal de composição de conflitos.

O que se está afirmando é que a jurisdição

controladora de políticas públicas, particularmente aquela

que se oferta no bojo de ações coletivas, deve ser

necessariamente dialógica – e não vertical – permitindo e

conclamando o exercício de uma autonomia política de

cidadãos socialmente autônomos para que uma vontade formada

racionalmente possa surgir, encontrando expressão em

programas legais, circulando em toda sociedade através da

sua aplicação racional59. A materialização em si desse

diálogo, por sua vez, deve partir do abandono da lógica

clássica da jurisdição, de que as relações judicializadas

envolvam uma contraposição entre credor e devedor – a

pluralidade da sociedade em si, e mesmo dos eventualmente

alcançados por um mesmo programa de ação estatal desmente

esse dualismo.

A institucionalização de uma arena para o

enfrentamento desses conflitos atinentes ao projeto de

59 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade evalidade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1997, Tomo I, p. 220.

48

transformação, em última análise, reclama sim, o Judiciário

– já que o Direito é uma das ferramentas disponibilizadas

ao câmbio – mas um novo Judiciário, mais indutor do debate

público do que autor da decisão substitutiva.

Tomemos novamente o exemplo do direito à moradia, que

tem sido frequentemente tutelado por intermédio de ações

coletivas. Esse é um campo típico em que a atuação estatal

sobre uma determinada comunidade, para a remoção ou

reconfiguração da ocupação, pode encontrar percepções

diversas no que toca aos seus integrantes; e com isso,

alternativas distintas de solução do conflito entre o

direito à vivenda e aquele ao desenvolvimento do meio

ambiente urbano. Nessas hipóteses, o que a casuística vem

revelando é que se estabelece um diálogo que exclui

justamente àqueles diretamente atingidos pela atuação do

poder, vez que são no mais das vezes processualmente

substituídos por uma das instituições encarregadas do

desenvolvimento das funções essenciais à justiça –

Ministério Públic ou Defensoria Pública. A substituição (no

sentido vulgar) passa a ser dupla: dos jurisdicionados, por

uma instituição de proteção à sociedade (mas não

familiarizada com a dinâmica do viver em comunidades

carentes); e da Administração, pelo Estado-Juiz.

Também aqui as velhas concepções de que os

interlocutores naturais na demanda judicial sejam as partes

litigantes como postas no processo é de ser revisitada: o

controle judicial de políticas públicas compreende uma

49

plêiade de outros alcançados, muitas vezes não elencados na

inicial, até por estratégia do proponente da ação60.

Eis aqui um terreno onde a prática dialógica pode

merecer espaço, não como condição de acesso ao Judiciário

em si – eis que tal alcance se tem emanando diretamente do

art. 5º, XXXV CF; mas como verdadeira etapa de instrução a

ter lugar no curso da demanda judicial.

Esse diálogo que se reclama rumo à construção de uma

solução possível em tormentosos temas de escolhas

alocativas – importante se diga – não precisa se dar na

presença do Juiz, no tradicional mecanismo da audiência. De

outro lado, de maneira a transformar em efetivo o referido

intercâmbio de posições e ideias, o Judiciário pode (e

deve) indicar as condições em que ele deva se dar,

explicitando as informações e razões que as partes

envolvidas no esforço de conciliação devam, reciprocamente,

apresentar, sem o que não se poderia falar em efetivo

engajamento dos interlocutores na solução. Findo o esforço

60 Importante destacar que em nome de viabilizar o controlejurisdicional do agir do poder, a jurisprudência tem afirmado aprerrogativa da escolha, em favor do Ministério Público e daDefensoria Pública, de quem sejam os Réus na referida demandacoletiva, o que permite uma seletividade no direcionamento do reclamocontra uma ineficácia ou ausência de ação estatal, que pode guardarpouca relação com a tutela em si do direito. O exemplo clássico de umverdadeiro “desvio de finalidade” é a estratégia permanente do Parquete da Defensoria Pública estadual (ao menos, no Rio de Janeiro) de nãoinclusão da União em demandas coletivas – ainda que haja inequívocodever de agir desta Entidade Federada – para reivindicar umaatribuição institucional que originalmente não lhes assistiria, e paraevitar a atração da competência em favor da Justiça Federal. Dissodecorre que, por uma seletividade estratégica que nada tem a ver com aefetivação em si do direito, exclui-se do pólo passivo a entidadefederada que por vezes, revela-se a destinatária natural do reclamo,ou quando menos, aquela que disporia de recursos financeirosrelevantes para a regularização da oferta do direito social.

50

de consensualidade, ter-se-á avançado no eventualmente

acordado entre as partes; e no que toca à área remanescente

de conflito, disporá o Judiciário de uma visão

tremendamente enriquecida, pelos esforços antes havidos

segundo sua parametrização, das complexidades e variáveis

incidentes na hipótese.

A proposta acima articulada – é importante que se diga

– encontrou já aplicação concreta pela Corte Constitucional

da Africa do Sul, no requisito que ali se denominou

meaningful engagement, cunhado na decisão Occupiers of 51 Olivia

Road, Berea Township and 197 Main Street Johannesburg v City of

Johannesburg and Others. 61 Embora, mesmo no caso em comento, o

empenho significativo das partes na construção da solução

não tenha resultado em perda de objeto – remanesceu uma

área litigiosa – ; fato é que o entendimento prévio superou

alguns pontos de conflito, e acima de tudo, corporificou a

própria legitimidade da decisão judicial, que se cunhou a

partir desse mapeamento do dissenso remanescente. No

cenário brasileiro, esse tipo de providência pode ser

61 REPUBLICA DA AFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Occupiers of 51Olivia Road, Berea Township and 197 Main Street, Johannesburg v Cityof Johannesburg, Rand Properties (Pty) Ltd, Minister of Trade andIndustry. Julgamento em 19 de fevereiro de 2008.Disponível em:<http://www.saflii.org/cgi-bin/disp.pl?file=za/cases/ZACC/2008/1.html&query=Olivia%20Road> acesso em 08/06/12. A hipótese envolvia a remoçãode ocupantes de estruturas prediais privadas abandonadas, em área dacidade de Johanesburg que seria alcançada por intervenção urbanizadoradesenvolvida pelo Poder Público. A relação era portanto,verdadeiramente quadrangular: Poder Público, ocupantes, proprietárioprivado, e ainda a coletividade que se beneficiaria da recuperaçãourbana do local. Foi essa pluralidade de interesses em tensão quedeterminou que a Corte Constitucional determinasse, tão-logo lhe foiapresentado o conflito, o envolvimento das partes em esforço decomposição que se deu fora do Judiciário, mas segundo regrasprocedimentais por ele definidas.

51

determinado exatamente no campo da instrução, cuja

presidência, como se sabe, compete ao julgador (art. 130

CPC), que poderá se valer dos elementos que julgar úteis à

perfeita compreensão da demanda.

Mas acima de tudo, qQuando se cogita de jurisdição

transformadora no campo dos direitos sociais, um ponto

absolutamente central numa nova institucionalidade há de

ser a efetiva inclusão dos sujeitos constitucionais

envolvidos no processo de construção da decisão – não como

objeto de uma benesse outorgada pelo Judiciário-garantidor,

mas como sujeito ativo da construção do consenso possível.

Isso reclamará o abandono dos estereótipos acima indicados,

numa atitude que reconheça inclusive que para a composição

de conflitos como o da moradia, existe uma ecologia de

saberes distintos do pensar típico da elite62.

A dignidade enunciada no art. 1º, III CF – e tem que

fundado toda a construção teórica em torno do controle

judicial de políticas públicas – é ideia força que tem

sujeito: a pessoa humana. A ela se tem associado, no mesmo

plano valorativo, a soberania (popular) e a cidadania. Esse

é o plexo de vetores que se devem conciliar numa atuação de

controle jurisdicional de políticas públicas que se veja

62 É de Sousa Santos a advertência contra a monocultura do saber e dorigor, que nega importância às práticas sociais como fonte deconhecimento – como geradora de saberes não críveis ou não visíveis(SOUSA SANTOS, Boaventura. Renovar a teoria crítica e reinventar aemancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 29). No tema dodireito à moradia, onde muitas vezes os conflitos envolvem comunidadescom outras formas de organização, a lógica dos condomínios – que é aprática social da classe média, origem inequívoca da magistraturabrasileira – não contemplará múltiplas outras possibilidades desolução típicas daquelas coletividades, que sejam aceitáveis para oseventuais envolvidos.

52

efetivamente comprometida com a transformação. Só essa

orientação revelar-se-á efetivamente apta a superar os

riscos da constituição semântica, que ao revés de

efetivamente subordinar o poder, transforma-se num

instrumento de estabilização e perpetuação dos detentores

factuais do poder na comunidade.

5.2 Jurisdição e a intervenção estruturante: uma nova

fronteira no controle judicial de políticas públicas

Segunda proposição que se apresenta para mitigar os

possíveis efeitos regressivos do controle judicial de

políticas públicas, sem que disso decorre enfraquecimento

ao sistema constitucional de proteção aos direitos

fundamentais, é extraída igualmente da prática

internacional, num exercício do cosmopolitismo judiciário

recomendado por Zagrebelsky.63

Já se apontou como elemento de fragilidade do sistema

que pretende a efetividade de direitos socioeconômicos a

partir de uma perspectiva exclusivamente da garantia

individual de prestações, o seu caráter quando menos

neutro, na perspectiva do aperfeiçoamento em si de uma

política pública em curso que se repute incompatível com a

moldura constitucional de preservação daquele mesmo

direito. Isso porque a ordem judicial que determina em

favor de João a entrega do medicamento “X” em nada

63 ZAGREBELSKY, Gustavo. Jueces constitucionales. Boletín Mexicano deDerecho Comparado, nueva serie, año XXXIX, nº 117, septiembre-deciembre de 2006, p. 1135-1151.

53

interfere no procedimento administrativor ordinário pelo

qual são tratados os pedidos do mesmo medicamento “X” em

favor de outros cidadãos. Disso decorre que o equívoco no

procedimento da Administração que determina a não entrega

do medicamento “X” não será corrigo, em princípio, pela

ordem em favor de João.

Em verdade, hipóteses como a acima figurada, para que

possam determinar um resultado mais efetivo no plano da

garantia de direitos fundamentais no plano macro, reclamam

não só a outorga individual da prestação, mas uma

intervenção estrutural no modo de agir da Administração,

que possa de pronto reverter o quadro de descumprimento do

direito fundamental judicializado, ou que quando menos se

ponha nessa mesma rota de correção.

A necessária abertura a outros modos de avaliação do

impacto de uma decisão judicial em matéria de direitos

socioeconômicos para ter em conta inclusive sua repercussão

no aperfeiçoamento da política pública em curso é elemento

já destacado por Rodríguez-Garavito64 como indispensável a

uma perspectiva construtivista dessa mesma análise de

impacto. Significa dizer que não é só o número de decisões

de procedência que apontará o êxito do controle judicial de

políticas públicas, mas os impactos indiretos que essa

mesma jurisdição determina sobre aquele problema.

Qualificar a política pública em curso – que está a

determinar um grau de insatisfação entre seus destinatários

64 RODRÍGUEZ-GARAVITO, César. Beyond the courtroom: the impact ofjudicial activism on socioeconomic rights in Latin America. Texas Lawreview,Vol. 89 (7), 2011.

54

que por sua vez dá causa à judicialização – é um efeito

mais significativo da atividade de composição do conflito;

mais que isso, é resultado que efetivamente contribui para

a efetividade no plano coletivo, do direito socioeconômico

em jogo.

Cumpre todavia ter em conta que esse aperfeiçoamento

da ação estatal pode se apresentar como providência

simples, suscetível de aferição nos autos; ou pode envolver

realidade revestida de alta complexidade, cujo

enfrentamento exija engenho e arte, bem como significativos

recursos públicos.

Na primeira hipótese se teria, por exemplo, a

exigência pela Administração Pública de um determinado

documento como condição ao acesso ao benefício, documento

esse de difícil obtenção, ou que não guarde a necessária

relação de dependência com a prestação a ser outorgada. Em

casos que tais, a dispensa do documento é o mecanismo hábil

ao aperfeiçoamento da atuação pública, e pode facilmente

ser determinada em sentença em sede de ação coletiva.

Situação distinta se pode ter – e ela se vem revelando

atualmente – no delineamento de uma política pública

destinada ao tratamento e proteção do usuário de crack,

onde as medidas possíveis são múltiplas, e podem ainda

variar em cada caso individual (internação, tratamento

ambulatorial, etc.).

Terreno fértil igualmente para uma estratégia que

busque o aperfeiçoamento da ação estatal como um todo é o

enfrentamento do tanto referido problema relacionado ao

55

déficit de moradias cujas dificuldades já foram

extensivamente apontadas no presente. A continuidade no

enfrentamento da tarefa de empoderamento desse direito

socioeconômico em particular pela via dos casos individuais

tende a agravar problema de igualdade, favorecer àqueles

que por qualquer razão chegaram ao Judiciário primeiro, ou

ainda, a desaguar no uso de expediente mais fáceis na

perspectiva da burocracia, mas não revestidos de efetiva

aptidão para o enfrentamento real do problema social que

ali se contém65.

Para casos extremos como este, a experiência

internacional aponta a alternativa dos provimentos

estruturantes, significa dizer, intervenções judiciais de

maior espectro, que tem por objetivo principal reformar uma

prática institucional (política pública) ao longo de um

determinado período de tempo66. Significa dizer que o

conteúdo do provimento jurisdicional não envolve a

composição, supostamente definitiva, do conflito como posto

– mas o desenvolvimento de uma jurisdição que se projeta

para o futuro, com o acompanhamento das medidas parciais,

sucessivas, de implementação gradual de melhorias. A ideia

de uma jurisdição supervisora, que venha a acompanhar as

65 Exemplo fulgurante dessa última distorção é a preferência jáindicada neste texto, à outorga de prestação pecuniária denominada“aluguel social”, que supostamente se prestaria ao financiamento de umteto em favor do jurisdicionado – mas que em nada contribui de formaeficaz para o problema de déficit habitacional em si. As distorções naprática são enormes: o beneficiário do aluguel social não deixa olocal revestido de risco que determinou a remoção; ou por vezes trocaum local de risco por outro onde construirá nova edificação precária,com os recursos que lhe foram destinados a título de aluguel social.66 LANDAU, David. The Reality of Social Rights Enforcement. HarvardInternational Law Journal, Vol. 53, Number 1, winter 2012 401-459.

56

medidas de solução do conflito – não na perspectiva da

execução de sentença, mas naquela de construtivismo das

próprias medidas de superação do impasse que se

judicializou – não é inédita, e se tem presente em

distintos sistema judiciais em todo o mundo67.

Dois são os casos mais citados pela literatura na

utilização de provimentos jurisdicionais estruturantes: a

Sentencia 025/2004 da Corte Constitucional da Colombia68,

envolvendo o problema dos alcançados naquele país pela

diáspora motivada pela violência associada ao narcotráfico;

e o caso People's Union for Civil Liberties v. Union of India & Ors,

decidido pela Corte Suprema da India no ano de 200169

envolvendo o tormentoso tema da fome, e das garantias

possíveis a um direito à alimentação70.67 Para uma panorâmica das hipóteses de jurisdição prospectiva noCanadá, consulte-se CHOUDRHY, Sujit e ROACH, Kent. Putting the pastbehind us? Prospective judicial and legislative constitutionalremedies. Supreme Court Law Review, Vol. 21, 2nd, 2003, p. 205-266.68 COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-025 de 2004, MinistroManuel José Cepeda Espinosa, Sala Tercera de Revisión, julgada em 22jan. 2004, disponível emhttp://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2004/t-025-04.htm,acesso em 10 de janeiro de 2013. Importa consignar a existência deoutros precedentes de provimentos estruturais na casuística da CorteConstitucional da Colombia, sendo o acima referido, envolvendo osdesplazados, o mais estudado pela doutrina tendo em conta seu alcance.69 REPÚBLICA DA INDIA. Suprema Corte da India. People's Union for CivilLiberties v. Union of India & Ors, In the Supreme Court of India,Civil Original Jurisdiction, Writ Petition (Civil) No.196 of 2001,disponível em http://www.escr-net.org/docs/i/401033, acesso em 21 deabril de 2013.70 O tema de fundo da demanda em causa envolvia a inconstitucionalidadede política pública em curso naquele país, que com vistas aofavorecimento à exportação de grãos, determinava o direcionamento daprodução em favor dessa atividade, em detrimento do atendimento àsnecessidades básicas da população. Embora a decisão inicial da Cortefosse declaratória – no sentido da inconstitucionalidade da estratégiade ação governamental – ; a jurisdição prosseguiu envolvendo ordenssucessivas de desenvolvimento de acesso à alimentação em favor dosespecialmente vulneráveis; desenvolvimento de programas de garantia de

57

Ambas as hipóteses envolviam um problema de graves

proporções – não só quanto a seus efeitos em relação aos

jurisdicionados, vítimas daquela garantia insuficiente a

direito fundamental; como também no que toca à delimitação

de medidas administrativas que se revelassem a um só tempo

viáveis, efetivas, e harmônicas com uma ideia de igualdade,

ou quando menos, de priorização aos vulneráveis. Qualquer

pretensão de construção de uma solução jurisdicional

acabada, que se fosse testar quanto à sua viabilidade

prática no curso de um processo de execução de sentença,

poderia determinar ou um indesejável minimalismo no que

toca ao conteúdo das intervenções determinadas, ou uma

decisão retórica – genérica, indeterminada, desprovida de

elementos que a tornem apta a determinar a mudança no mundo

da vida que ela se propõe implementar.

Esse o contexto em que tem lugar os provimentos

estruturantes – onde de forma dialógica, se vai delineando

um conjunto de medidas, paulatinas e por vezes sucessivas,

que se dirigem à efetivação da garantia judicialmente

reclamada. No exemplo da Colombia no tema dos desplazados, a

construção das providências estruturantes se deu desde o

nível mais elementar, à medida em que inexistia política

pública abrangente para o tratamento do tema. Providências

como a construção de bases de dados, instituição de uma

estrutura própria na Administração Pública para o trato

prioritário deste problema; condução de audiências públicas

com segmentos específicos dos afetados para orientação da

política pública; parametrização para a edição dealimentação via merenda escolar e outras ações de teor semelhante.

58

instrumentos legislativos que facilitassem a recuperação do

status quo ante em favor dos desplazados; acréscimos

orçamentários substantivos para os programas associados à

realocação dessas pessoas; tudo isso se deu no bojo das

determinações hauridas na Sentencia T-025/2004, cuja

implementação segue ao encargo da “Sala de Acompanhamento”

da Corte.

De maneira semelhante, a decisão da Suprema Corte da

India, reservando em seu favor o acompanhamento e

supervisão das medidas administrativas que favoreciam a

tutela ao direito à

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