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História, imagem e narrativas No 14, abril/2012 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
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Cinema e História: o caso do Cinema Bélico soviético do pós-guerra
Gelise Cristine Ponce Martins
Mestranda em História pela Universidade Estadual de Maringá - PR Moisés Wagner Franciscon
Mestrando em História pela Universidade Estadual de Maringá - PR
Resumo: A primeira parte deste artigo apresenta as contribuições do cinema para a História; que consistem na representação de fatos longínquos, não observáveis por outro meio a não ser o da reconstrução e encenação, e no fornecimento de dados importantes sobre a sociedade em que o filme está inserido. E tece considerações teórico-metodológicas que embasam a utilização do filme como fonte histórica. Na segunda parte evidencia-se que, o cinema soviético sobre a Segunda Guerra, produzido no pós-guerra, não se distinguiu tão fundamentalmente do cinema ocidental pelo uso da propaganda ou da busca pela construção da memória coletiva. Portanto, a concepção de totalitarismo não é passível de ser aplicada realisticamente ao quadro cultural do qual o cinema participava, ou à sociedade no qual o mesmo estava inserido. Palavras-chave: História, Cinema, URSS
Cinema and History: the Soviet case of warlike cinema from post-war period Abstract: The first section of this article aims at presenting the contributions of cinema to History. It exposes them as representations of remote historical facts that could not be easily observed by other means unless those of reconstruction and acting, being also an important data source about the social context in which the movie is inserted. And presents some theoretical and methodological considerations that underlie its use as a historical source. In the second section it is highlighted that the Soviet cinema about World War II, produced during the post-war period, basically did not differ from Western cinema by the use of advertisement or by seeking the construction of collective memory. Therefore, the concept of totalitarianism is not likely to be realistically applied to the cultural framework from which the cinema took part, not even to the society in which it was inserted. Keywords: History, Cinema, USSR
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O cinema como fonte para a História: breves concepções teórico-metodológicas
A introdução que se segue, tem por objetivo elucidar as contribuições do cinema para
a História. Estas que vão desde a representação de fatos históricos longínquos, não
observáveis por outro meio a não ser o da reconstrução e encenação; até o fornecimento de
dados importantes sobre a sociedade em que o filme está inserido, ou seja, contexto de sua
produção, a história do presente. Após uma breve rememoração do modo como cinema foi
visto pela historiografia em diferentes momentos, apresentam-se as considerações teórico-
metodológicas que embasam a utilização do filme como fonte histórica.
Entre as diversas formas de expressão artística, o cinema tem sido considerado por
diversos estudiosos, nos vários campos do conhecimento, como a Arte do mundo
contemporâneo. Neste sentido, o cinema pode ser visto como uma fonte primordial e
inesgotável para o trabalho historiográfico de modo geral (BARROS, 2011).
No início do século XX, ocorreram grandes transformações mundiais, dentre as quais,
destaca-se o nascimento das artes de massa, em especial o cinema. O “Cinematógrapho”,
como era chamado, foi uma experiência artística que captava imagens reais em movimento,
dando uma grande impressão de que o que se passava na tela era a própria realidade. O
potencial de produzir a impressão de realidade foi a base do grande sucesso do cinema, e
também o que o transformou num importante instrumento a ser usado pela burguesia, na
criação de um universo cultural que expressará o seu triunfo e que ela imporá às sociedades,
num processo de dominação cultural, ideológico e estético (NAVARRETE, 2008). O mesmo
pode ser dito do cinema soviético, a serviço de um grupo mais restrito no cume do poder ou,
posteriormente, da liderança coletiva e do poder oligárquico da burocracia e da
nomemklatura.
Essa impressão de realidade que foi sendo intensificada, à medida que novos recursos
técnicos se tornaram disponíveis, remonta às origens do cinema. É bem conhecida a história
da primeira projeção cinematográfica realizada pelos irmãos Lumiére em Paris, no ano de
1895. No decorrer do filme, que retratava a chegada de um trem à estação, os inventores
provocaram um autêntico pânico entre a platéia, temerosa de vir a ser atropelada pelo veículo
que parecia que ia se arremessar para fora da tela. (OLIVEIRA, 2008)
Navarrete (2008) divide a apropriação do cinema como fonte histórica em duas fases.
Na primeira, que se estendeu até meados do século XX, o cinema foi tido, como uma espécie
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de reflexo transparente da realidade, sendo que os historiadores ainda não utilizavam
freqüentemente tal material. Já na segunda fase, iniciada nos anos 1960, graças às reflexões
dos Annales, o cinema foi definitivamente incorporado ao fazer historiográfico e passou a ser
visto como uma construção, uma representação do real.
Até meados do século, o cinema não fazia parte do universo do historiador, pois não
era útil para suas “missões”. Aos historiadores tradicionais, preocupados com o poder político
e em mobilizar os cidadãos para as guerras mundiais, e aos marxistas, que buscavam o
fundamento do processo histórico na análise dos modos de produção e da luta de classes, essa
arte era indiferente. Mesmo porque não era apreciada pelas pessoas cultas1 (FERRO, 1992).
O fato de o cinema não ocupar um lugar de destaque na reflexão histórica naquele
momento, relaciona-se à própria formação do historiador de então, iniciado em técnicas de
pesquisa válidas para os séculos passados. Escapou-lhes que, para a época contemporânea,
eles dispunham de documentos de um tipo novo, de uma linguagem diferente. A aceitação do
cinema como fonte histórica indica uma mudança de estatuto do historiador na sociedade,
assim como mostra a nova utilidade que certas fontes passam a ter em função de sua nova
missão (MORETTIN, 2003).
O primeiro trabalho de destaque sobre a temática do cinema foi realizado por Siegfried
Kracauer, jornalista que escreveu a obra De Caligari a Hitler: uma história psicológica do
cinema alemão. O autor analisa a filmografia alemã até o início da década de 30,
identificando a presença de elementos psicológicos que se coadunariam com o ideário que se
expressaria futuramente no nazismo. Judeu, nascido em Frankfurt e exilado nos Estados
Unidos durante a Segunda Guerra, Kracauer compreende a importância do cinema como
instrumento de propaganda, finalidade intensamente explorada pelo governo de Hitler, mas
também os elementos contextuais e constitutivos de uma determinada sociedade na produção
cinematográfica (FERREIRA, 2009).
No Brasil, encontramos em José Honório Rodrigues, no livro publicado em 1952,
reflexões acerca das possibilidades que o meio oferece à pesquisa histórica (MORETTIN,
2003). 1 Segundo Ferro, o cinema sempre foi desprezado pelos historiadores e pela sociedade. Este desprezo reflete um distanciamento das informações de outra natureza como risos, gestos e gritos, sempre considerados produtos de um discurso tido como fútil e subalterno, que escapavam do olhar do historiador, por razões tanto sociológicas e ideológicas, como técnicas. A exclusão da imagem cinematográfica do fazer histórico ocorreria em função de esta pertencer ao imaginário da sociedade que, por sua vez, também não era considerado pelo historiador. A vinculação entre cinema e imaginário é fundamental para o trabalho de Ferro (MORETTIN, 2003).
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O historiador está particularmente preocupado com as formas de
“falsificação” do cinema. (...) toda a crítica externa e interna que a metodologia da história impõe ao manuscrito impõe igualmente ao filme. Todos podem igualmente ser falsos, todos podem ser “montados”, todos podem conter verdades e inverdades (RODRIGUES, 1982, 174-176).
Durante a década de 60, denotou-se um maior interesse na realização de estudos que
se dedicassem à temática da produção cinematográfica. Esse foi um momento em que a
indústria do cinema já se encontrava consolidada, bem como todo o aparato que envolvia a
divinização de atores e atrizes e a mitificação do universo hollywoodiano. O cinema
apresenta-se como um importante veículo de propaganda para a cultura estadunidense –
american way of life – forma de ser e agir, embasada, em grande medida, no consumismo, que
encontra um expressivo número de jovens, integrantes da chamada geração baby boom, que
adere à cultura do cinema (FERREIRA, 2009).
Nos anos 70, o cinema já influenciava decisivamente nas maneiras como as pessoas
percebiam e estruturavam o mundo. Um material importante como esse, que conquistava cada
vez mais espaço e se disseminava pelas sociedades, não podia deixar de despertar o interesse
dos historiadores da época, que já incluíam as crenças e o imaginário como objetos da
História. Muitos se propuseram a investigá-lo, na tentativa de dar conta da complexidade de
sua linguagem áudio-visual e da relação que possuía com o meio em que estava inserida,
embora ainda houvesse certa atmosfera de desconfiança e temor com relação àquela máquina
de fabricar imagens (NAVARRETE, 2008).
Deste modo, a partir da escola dos Annales, o fazer historiográfico sofreu um profundo
enriquecimento e diversificação, através de uma grande variedade de fontes, dentre as quais, o
cinema (NAVARRETE, 2008). O cinema foi elevado à categoria de novo objeto e
incorporado ao fazer histórico dentro dos domínios da História Nova. Um dos grandes
responsáveis por essa incorporação foi o historiador francês Marc Ferro (MORETTIN, 2003).
Em seu livro Cinema e História (1992), Ferro discute a relação entre história e
cinema, através de determinados filmes, como, por exemplo, O Encouraçado Potemkin e O
Terceiro Homem. Demonstrando a utilização do cinema por membros da elite a fim de manter
sua posição, da mesma forma que os diferentes governos valem-se desse instrumento com o
intuito de veicular suas idéias. Desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros
passaram a intervir na história com filmes de ficção ou documentários, que, desde a sua
origem, sob a aparência da representação, doutrinam e glorificam (FERREIRA, 2009).
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Segundo Ferreira, o cinema apresenta-se na visão de Ferro, como um possível
instrumento de legitimação de uma determinada cultura e sociedade, cujos valores podem ser
transmitidos e reforçados através da utilização de elementos históricos. Assim, o teor histórico
presente no filme, muitas vezes, tem por função a ativação de uma memória coletiva
pertinente a um fato do passado de certa coletividade, mas que se vincula ao presente.
De acordo com Morettin (2003), Ferro considera o cinema um testemunho singular de
seu tempo, pois está fora do controle de qualquer instância de produção, principalmente o
Estado. Mesmo a censura não consegue dominá-lo. O filme possui uma tensão que lhe é
própria, trazendo à tona elementos que viabilizam uma análise da sociedade diversa da
proposta pelos seus segmentos, tanto o poder constituído quanto a oposição. Neste sentido, o
filme atinge as estruturas da sociedade e, ao mesmo tempo, age como um “contra-poder”, por
ser autônomo em relação aos diversos poderes desta sociedade.
Aliás, é por se manifestar desta forma que a obra cinematográfica constitui um
documento privilegiado. Para Ferro, o documento fílmico produzido pelo Estado ou por
outras instituições difere do documento escrito que possui a mesma origem. O primeiro traz
sem querer uma informação que vai contra as intenções daquele que filma, ou da firma que
mandou filmar, porque a realidade que se quer representar não chega a esconder uma
realidade independente da vontade do operador (MORETTIN, 2003).
Para Navarrete (2008), Marc Ferro é a maior referência dentro da história, quando se
trata do uso do cinema com fonte. Ele não analisa o cinema de uma perspectiva artística, mas
o vê como uma construção, como uma montagem. Embora sempre busque o real que se
camufla por trás dela. O filme, aqui, não está sendo considerado do ponto de vista
semiológico. Também não se trata de estética. (...) Ele está sendo observado não como uma
obra de arte, mas sim como um produto, uma imagem-objeto (FERRO, 1992, 87).
Ferro entende que por trás da construção de um filme existe uma zona de realidade
não-visível; que por trás do conteúdo aparente existe um conteúdo latente, o qual pode revelar
algo sobre uma dada realidade. Considera ainda, que a identificação dos lapsos – fragmentos
involuntários que escapam aos objetivos de quem produz o filme – seria o meio para se
chegar a esse elemento real oculto. É isso que o autoriza a dizer que o filme é uma contra-
análise da sociedade (NAVARRETE, 2008).
No entanto, Morettin (2003) não acredita que a análise das relações entre cinema e
história possa ser elucidada a partir das dicotomias “aparente”–“latente”, “visível”–“não-
visível” e “história”–“contra-história”. A idéia proposta por Ferro de que o cinema não é uma
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expressão direta dos projetos ideológicos que lhe dão suporte deve ser ressaltada: um filme
apresenta, de fato, tensões próprias. Porém, estas não devem ser pensadas nos termos de sua
inclusão ou no campo da “história” ou de sua “contra-história”, tal como faces opostas de uma
mesma moeda, que define um único sentido da obra. Por outro lado, afirmar a possibilidade
de recuperar o “não visível” através do “visível” é contraditório, já que essa análise vê a obra
cinematográfica como portadora de dois níveis de significado independentes, perdendo de
vista o caráter polissêmico da imagem.
Ao contrário, Morettin (2003) afirma que, um filme pode abrigar leituras opostas
acerca de certo fato. A percepção desse movimento deriva do conhecimento específico do
meio, o que permite encontrar os pontos de adesão ou de rejeição existentes entre o projeto
ideológico-estético de um determinado grupo social e a sua formatação em imagem.
Apesar de chamar para si um projeto tão ambicioso, dado que se propõe a dar conta de
várias cinematografias e prolongar a validade de seu método para a imagem audiovisual,
Morettin (2003) entende que, Ferro não produziu um trabalho de maior profundidade, que
demonstrasse plenamente a eficácia de sua análise, já que grande parte de sua produção é
constituída por artigos ou coletâneas. Ferro estaria em condições de realizar tal trabalho desde
os inícios dos anos 70, se escolhesse por objeto o cinema soviético, devido a sua produção
escrita sobre a história da Revolução Russa e da ex-URSS.
Por exemplo, a partir do estudo de diversas obras cinematográficas da Rússia de 1917,
Ferro percebeu algumas vantagens da fonte fílmica sobre os documentos escritos. Em
primeiro lugar, traz aspectos não revelados pelas fontes escritas, como nível de
desenvolvimento econômico dos diferentes países, comportamento de grupos e indivíduos,
costumes, etc. Em linha com a importância dada à questão do imaginário, seria mais apto a
revelar o inconsciente coletivo que as transações financeiras ou diplomáticas, mostrando as
mutações psicossociais e biológicas (MORETTIN, 2003).
Desde os estudos pioneiros de Marc Ferro até hoje, a evolução do cinema através da
história se consolidou como objeto de estudo em nível universitário. A amplitude do campo
de estudos voltado à análise e interpretação das relações entre História e cinema no Brasil,
vem crescendo cada vez mais. O cinema é capaz de reproduzir a realidade histórica, tanto sob
a forma da ficção quanto do documentário, trazendo até nós a visão de eventos e episódios
que jamais poderíamos presenciar. Parece óbvio o enorme potencial do cinema de se
constituir em um dos maiores suporte da memória histórica coletiva das sociedades
contemporâneas (OLIVEIRA, 2008).
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O cinema pode ser exatamente o primeiro contato dos indivíduos com temáticas
históricas, capaz de despertar o interesse pela História. Caso despreze esse meio de
comunicação e aqueles que o usufruem, o historiador arrisca-se a perder a oportunidade de
aproximar o público da história. O historiador deve valorizar o cinema como sendo um
documento válido para encetar a discussão da história, tanto a retratada na grande tela quanto
a que está por trás da produção do filme (FERREIRA, 2009).
Ferro afirma que, todos os filmes são objetos de análise. A desconsideração da
produção cinematográfica ficcional, parte do pressuposto de que por integrar o imaginário ela
não teria valor enquanto conhecimento, não exprimiria o real, mas sua representação. Se o
imaginário constitui um dos motores da atividade humana, o cinema, sobretudo a ficção, abre
uma via real na direção de zonas psico-sócio-históricas jamais atingidas pela análise dos
documentos. Esse tipo de produção leva uma vantagem em relação ao documentário. Devido
à sua maior divulgação e circulação, é possível identificar com maior clareza o diálogo entre
filme e sociedade por meio da crítica e da recepção do público (MORETTIN, 2003).
Portanto, para Ferro, a oposição entre ficção e documentário, baseada na relação com
o real, deve ser matizada, já que ambos informam a realidade social. Além das informações
trazidas quase inconscientemente pelo diretor (objetos, gestos, atitudes ou comportamentos
sociais), em uma película de ficção que recorre às imagens tomadas em exteriores, temos toda
uma informação documentária que é da mesma natureza que a da reportagem, mesmo se ela
não tem a mesma função nos dois tipos de filme (MORETTIN, 2003).
Tomar o cinema como fonte para a história implica numa série de considerações de
ordem teórica e metodológica, cujo alcance e complexidade são maiores do que aquelas
usualmente aplicadas à análise de outros tipos de fontes. No caso do filme de ficção histórica,
o ponto de partida deve ser a formulação da sua relação com a época tanto em que é realizado
quanto aquela que retrata. A época em que o filme é realizado tem implicações de diversas
ordens, as quais devem ser adequadamente descritas e problematizadas, relativas às questões
da sua realização (OLIVEIRA, 2008).
O cinema tem uma linguagem própria e deve responder a interesses específicos
relacionados em grande medida ao mercado. O historiador deve estar atento não apenas à
história narrada, mas às conexões que essa pode ter com eventos atuais. O estudo do cinema
exige que o pesquisador esteja consciente do contexto no qual está sendo produzido o filme,
os sujeitos que estão envolvidos na confecção dessa obra, sejam eles o diretor, os roteiristas,
os atores, as agências financiadoras, o estúdio no qual está sendo realizada a película, e, por
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conseguinte, deve conhecer as principais premissas relativas à história do presente
(FERREIRA, 2009).
Ferro também confirma que, as películas de reconstituição histórica são importantes
pelo que dizem a respeito do seu presente, do momento em que foram feitas e não
propriamente pela representação do passado em si. É no presente que se situa o verdadeiro
real histórico destes filmes, e não na representação do passado (MORETTIN, 2003).
Em suma, a partir de uma fonte fílmica e da análise dos discursos e práticas
cinematográficas relacionados aos diversos contextos contemporâneos, os historiadores
podem apreender de uma nova perspectiva a própria história do século XX e da
contemporaneidade (BARROS, 2011).
O cinema é agente da História, pois interfere direta ou indiretamente na própria
História Contemporânea. Por outro lado, o cinema também é interferido pela História, que o
determina nos seus múltiplos aspectos. O cinema é produto da História – e, como todo
produto, um excelente meio para a observação do lugar que o produz, isto é, a sociedade que
o contextualiza, que define a sua própria linguagem possível, que estabelece e delimita os
seus fazeres, que institui as suas temáticas (BARROS, 2011).
Logo, qualquer obra cinematográfica – seja um documentário ou uma pura ficção – é
sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios significativos da sociedade que a
produziu. É neste sentido, que as obras cinematográficas devem ser tratadas como fontes
históricas significativas para o estudo das sociedades que as produzem (BARROS, 2011).
Visto que, se não conseguirmos identificar, por meio da análise fílmica, o discurso que
a obra cinematográfica constrói sobre a sociedade na qual se insere, apontando para suas
ambigüidades, incertezas e tensões, o cinema perde a sua efetiva dimensão de fonte histórica
(MORETTIN, 2003).
Para tanto, é necessário analisar aspectos do momento de produção do filme, a
conjuntura histórica, social e política, a fim de compreender quais aspectos da situação do
presente estão representados. É necessária uma crítica documental mais apurada, o abandono
da concepção de transparência do documento que, embasava muitos cineastas e teóricos do
cinema da primeira metade do século, ao acreditarem que refletisse de maneira imediata e
simples a realidade. O cinema deve ser visto como uma construção do real, que o altera por
intermédio de uma articulação entre a imagem, a palavra, o som e o movimento, num dado
contexto histórico (NAVARRETE, 2008).
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Já a época que é retratada no filme, também guarda estreita relação com o contexto no
qual o filme é realizado. Os eventos, personagens e temas se relacionam a uma história muito
mais antiga, originada da cultura, dos valores, utopias e tragédias vividas por cada povo em
particular. Aquilo que é mostrado nos filmes não só tem que fazer sentido para a audiência
dos cinemas, como também atender a determinados anseios sociais e necessidades
psicológicas da coletividade no interior da qual foi realizado, sob pena de vir a se constituir
num fracasso comercial. Trata-se de considerações que são válidas tanto para os filmes de
ficção quanto para os documentários (OLIVEIRA, 2008).
Logo, para além da história contada no filme, deve-se levar em conta também as
referências que o mesmo faz – ou deixa de fazer – ao contexto histórico mais amplo ao qual
ele se refere. A linguagem cinematográfica tem uma enorme capacidade de resumir e
sintetizar amplos períodos da história em apenas umas poucas cenas. O desafio que é
colocado ao historiador é tentar perceber quais elementos da conjuntura histórica são
contemplados – ou esquecidos - com que intensidade e freqüência, e de que forma a história
do filme é por eles influenciada ou não (OLIVEIRA, 2008).
Enfim, associar o filme com o contexto no qual ele é produzido, analisar a utilização
das temáticas históricas pelas obras cinematográficas são, indubitavelmente, importantes para
o historiador. Este que deve demarcar não apenas as fronteiras de seu trabalho, mas
diferenciar sua análise da contribuição de outros profissionais, como sociólogos, cientistas
políticos, jornalistas e economistas. Pois, é o historiador quem possui legitimidade social para
realizar uma crítica consistente sobre o tema abordado no filme (FERREIRA, 2009).
Uma das tarefas do historiador seria, então, explorar e problematizar a tensão entre o
estado da arte na disciplina de História, ou seja, estágio atual dos conhecimentos e o que é
retratado nos filmes. Isso implica em extensas pesquisas e consultas a documentos não
ficcionais, comparando-se com aquilo que é mostrado nos filmes através do recurso à
encenação (OLIVEIRA, 2008).
A avaliação acerca da pertinência histórica do documento fílmico é dada pelo saber
que já se deteve sobre as fontes escritas e que pode assim aquilatar a qualidade de sua
informação. Desta maneira, subjaz uma idéia de complementaridade entre os diversos tipos de
fontes que, não necessariamente excludentes, amalgamam-se, tendo em vista que o fato
histórico permanece como o referencial de análise (MORETTIN, 2003).
Espera-se que o historiador não permaneça indiferente diante do que está sendo
retratado na tela, seja em relação aos fatos narrados ou à reprodução do ambiente da época. O
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filme histórico suscita questionamentos sobre a veracidade da trama e da ambientação
construída. Alguns aspectos diferenciadores entre cinema e história devem ser explicitados: a
história é escrita e desenvolvida a partir de evidências, ela possui compromissos com a
verdade e o rigor científico, que não fazem parte do universo do cinema. Evidencia-se, assim,
a diferença entre a natureza da história e a do cinema, o que não impede a realização de
estudos que os interliguem (FERREIRA, 2009).
No que se refere às fontes para o estudo da História através do cinema, a mais óbvia a
se considerar é o próprio filme. Um ponto de partida metodológico para examinar
sistematicamente a relação entre cinema e História, deve vir ancorado na compreensão de que
o filme; pretenda ele ser imagem ou não da realidade e enquadre-se dentro de um dos gêneros
documentários ou dentro de um dos gêneros de ficção; é História. Não importa se o filme
pretende ser um retrato ou pura invenção, sempre ele estará sendo produzido dentro da
História e sujeito às dimensões sociais e culturais que decorrem da História – isto
independente da vontade dos que contribuíram e interferiram para a sua elaboração
(BARROS, 2011).
As possibilidades de fontes históricas relativas ao cinema não se esgotam nesta obra
final que é o filme propriamente dito. É preciso considerar que a fonte fílmica gera outros
tipos de fontes como substratos, etapas e instrumentos de trabalho, como por exemplo, o
Roteiro. Barros (2011) também tece considerações sobre a sinopse, faz referências à
documentação oficial, institucional e governamental acerca da produção cinematográfica.
Além de fontes ensaísticas sobre o filme, escritas nos vários períodos da história do cinema,
que também podem revelar como o cinema tem sido reconhecido pela sociedade, por setores
específicos dela e por vários agentes históricos e artísticos.
O problema inicial que é posto pela análise e interpretação dos filmes é estabelecer o
que é ou não relevante. A partir da literatura disponível sobre o tema, podem-se perceber
alguns elementos cuja utilidade para a interpretação da obra cinematográfica são
indispensáveis. O primeiro e mais óbvio elemento a ser analisado é o conteúdo da própria
obra cinematográfica, isto é, a história contada no filme, seu conteúdo diegético. Trata-se do
nível mais imediato de apreensão do seu sentido e significado, que pode ser compreendido,
ainda que precariamente, a partir apenas da leitura do seu argumento ou mesmo da sinopse
(OLIVEIRA, 2008).
Uma metodologia adequada à análise fílmica necessita ser complexa. Deve tanto
examinar o discurso falado e a estruturação que se manifesta externamente sob a forma de
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roteiro e enredo, como analisar os outros tipos de discursos que integram a linguagem
cinematográfica: a visualidade, a música, o cenário, a iluminação, a cultura material implícita,
a ação cênica. Sem contar as mensagens subliminares que podem estar escondidas em cada
um destes níveis e tipos discursivos, ou na própria mensagem falada e passível de ser
traduzida em componentes escritos (BARROS, 2011).
A história registra diversos exemplos de críticas a poderes e sistemas políticos que
conseguiram atravessar sistemas de censura bastante rigorosos pelo simples fato de os
censores burocráticos serem desprovidos de uma cultura visual adequada para decifrar a
ideologia de uma obra sem se ater meramente à análise superficial dos componentes escritos
de um filme (roteiro e diálogos). É este nível superficial de análise que precisa ser
ultrapassado pelo estudioso do cinema, através de uma metodologia multidisciplinar e
pluridiscursiva (BARROS, 2011).
Deste modo, o historiador deve estar atento para o fato de que o filme é um documento
extremamente rico e válido, mas que exige o conhecimento de questões relativas a outras
áreas, bem como uma postura voltada à inovação e ao trabalho interdisciplinar. E deve prestar
atenção não apenas no conteúdo da história narrada no filme, mas também nas imagens e em
seus significados (FERREIRA, 2009).
Ferro (1992) destaca a importância da análise das imagens como ponto de partida. Não
se deve buscar nelas somente ilustração, confirmação ou desmentido do outro saber, que é o
da tradição escrita. E sim, considerar as imagens como tais, apelando para outros saberes para
melhor compreendê-las.
Portanto, uma dimensão fundamental dentro do feixe discursivo que integra a
linguagem cinematográfica é o discurso imagético. O filme é elaborado a partir de vários
substratos integrados. E é preciso aplicar as diversas metodologias possíveis a cada um desses
substratos – seja o das imagens (que podem ser imagens sonorizadas ou não), o da trilha
sonora, o do cenário, o da linguagem da ação gestual e cênica, sem contar o substrato mais
evidente do discurso falado que transparece pelos diálogos e pela estruturação lógica que dá
forma ao roteiro. Trata-se, então, de analisar densa e integradamente a narrativa, o cenário, a
escritura (BARROS, 2011).
A compreensão de que cada tipo de registro discursivo que se integra à obra fílmica
implica uma postura analítica própria, deve ser acrescida da preocupação com o do gênero de
cada obra cinematográfica a ser examinada; seja o documentário, o filme de propaganda, a
intriga autêntica, a ficção de ambientação histórica ou não. Cada um desses gêneros ou
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qualquer outro possui sua própria especificidade discursiva, demandando uma atenção
metodológica (BARROS, 2011).
O filme é produzido para alguém, para um determinado público e está classificado de
acordo com um determinado gênero. Dessa forma, é interessante também verificar de que
maneira os elementos históricos são apresentados nos diferentes gêneros de filme, procurando
avaliar os possíveis motivos para a opção por essa forma narrativa2 (FERREIRA, 2009).
Segundo Ferro, os gêneros cinematográficos existem e devem ser entendidos enquanto
tais, sem que estas diferenças se tornem um impedimento para o trabalho do historiador.
Desta forma, dada a amplitude do material usado, a obra cinematográfica, independente do
gênero, captará imagens, consideradas reais, sobre algum aspecto da sociedade (imaginário,
economia etc.). Na verdade, para a análise social e cultural, eles são igualmente objetos
documentários. É suficiente aprender a lê-los (MORETTIN, 2003).
Tornou-se consensual nos estudos históricos sobre o cinema, o pressuposto de que os
filmes devem ser entendidos como um discurso cinematográfico. As imagens ali retratadas
foram construídas sempre de modo parcial, direcionadas e interpretativas dos eventos e
épocas que descrevem. Isso não quer dizer que o sentido do filme seja unívoco, que sua
mensagem ou interpretação seja percebida da mesma forma por toda audiência. Todo filme,
por mais engajado ou afiliado politicamente que seja, pode abrigar leituras divergentes a
respeito de um determinado acontecimento (OLIVEIRA, 2008).
O filme não é uma representação do real que seja percebida e entendida sempre da
mesma forma, mas um produto cultural que permite a construção de diferentes sentidos. Estes
sentidos devem ser buscados na relação que o filme mantém com a sua audiência e não no
filme em si mesmo. O estudo da recepção do filme é uma estratégia indispensável para se
entender também a relação entre o autor, o filme e a sociedade na qual foi produzido
(OLIVEIRA, 2008).
Ao se utilizar o filme como objeto de estudo, é essencial salientar o fato de que este é
uma produção coletiva, que envolve expectativas, desejos, concepções de mundo de um
grande número de agentes, entre diretores, produtores, atores, responsáveis pelo estúdio, bem
como financiadores (FERREIRA, 2009).
Nestes termos, os filmes de ficção histórica reproduzem e/ou reforçam um tipo de
saber sobre a História que já foi cristalizado na cultura e na memória coletiva. Embora possa 2 Por exemplo, comédia (“O incrível exército de Brancaleone”), drama (“A lista de Schindler”), aventura (“Rei Arthur”) e até mesmo infantil (elementos históricos presentes em desenhos animados do estúdio Walt Disney, como “A espada era a lei”) (FERREIRA, 2009).
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conter aspectos originais, no intuito de se viabilizar comercialmente, a ficção histórica tem
que ter significado para a sua audiência. No intuito de entender o processo social de produção
de significados que sejam eficazes tanto do ponto de vista comercial quanto cultural, deve-se
atentar para a relação que envolve historiadores, críticos, cineastas e público em torno do
produto cinematográfico (OLIVEIRA, 2008).
O filme é, assim, um documento que demonstra uma intencionalidade e um imaginário
sobre um determinado povo, um local ou gênero. O pesquisador não deve deter-se somente na
crítica voltada à veracidade dos fatos, mas debater os significados das representações expostas
na película; e qual é o interesse para que tais informações, distorcidas em favor da ficção ou
não, sejam passadas para o público. Em grande medida, a realidade concreta é apresentada de
forma alegórica no cinema, propiciando que os expectadores façam uma associação até
mesmo inconsciente entre esses, isentando o filme de uma posição clara diante dos fatos
(FERREIRA, 2009).
Todo documento fílmico tem uma riqueza de significação que não é percebida no
momento em que ele é feito e o analista da fonte cinematográfica deve estar preparado para
integrá-los ao objeto de sua análise. Tanto o intencional como o não intencional, o
involuntário, o inconsciente, devem ser captados (BARROS, 2011).
Neste sentido, pode ser empregada para a análise historiográfica da fonte fílmica uma
espécie de contrapartida da chamada “análise intensiva” ou da “descrição densa” que têm sido
utilizadas pelos micro-historiadores e pelos antropólogos. Segundo Barros (2011), trata-se, de
direcionar a atenção para aspectos casuais, detalhes, indícios, dimensões da realidade fílmica
da qual não se apercebem mesmo os profissionais envolvidos com sua produção.
Em síntese, de acordo com Ferro, a crítica analítica de uma obra cinematográfica de
ficção deve ater-se à sociedade que a produz; à própria obra; à relação entre autor, filme e
sociedade; à sua história (as várias versões que teve, as suas recepções por parte da crítica, do
público, etc.) (MORETTIN, 2003).
Pode-se concluir que, assumindo que o cinema é um veículo extremamente relevante
para o debate teórico, como documento e instrumento de estímulo para a disseminação da
informação e do conhecimento em História, o historiador deve questionar o seu papel diante
dele e elaborar novas categorias e metodologias de análise. A constituição de novas técnicas
para o estudo da produção cinematográfica são fundamentais, bem como uma maior produção
intelectual que privilegie esse tema (FERREIRA, 2009).
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O cinema bélico soviético do pós-guerra
O cinema soviético com pretensões históricas era mais distinto do cinema ocidental
quanto aos seus mecanismos de produção material do que dos seus objetivos e discursos
típicos para com o público. Sua busca pela constituição da memória da sociedade e o reforço
da história oficial e tradicional estão igualmente impregnados de propaganda, que, se não
ligada diretamente ao Estado, ainda serve como legitimadora do sistema político e social, ou
das reformas que se pretende impor a este. O cinema de superproduções, com o objetivo de
ser um monumento à reminiscência, à comemoração de datas nacionais e um incentivo ao
patriotismo ideal, também esta presente em ambos, como também algumas formas discursivas
e da linguagem cinematográfica. Se o herói coletivo é importante, heróis individualizados
(com preocupações coletivas – o que também não é raro no cinema ocidental) também têm
uma presença marcante. Se existe a alteração da história para se adequar ao quadro esboçado
pelo filme, ou a simples invenção mistificadora, ambos segundo interesses políticos e
geoestratégicos (como a política de amizade com os países do Leste, que pretendia reforçar
seus laços históricos e ocultar as crises na região) claros, esta não deixa de estar presente na
produção ocidental também. Mais característica ainda era a necessidade durante a Guerra Fria
da inculcação da ameaçadora imagem do inimigo externo e da necessidade de coesão popular
em torno da liderança como forma de se assegurar contra esse oponente hostil. Se o tema do
agressor nazista está presente em toda a produção fílmica sobre a Segunda Guerra na URSS, o
tema da invasão inimiga e da ocupação comunista permanente nos EUA tem dois picos dentro
do mesmo período: os anos 50 e os anos 80, com filmes como Red Dawn (Amanhecer
Violento), de John Milius, de 1984, e a minissérie Amerika, de 1987. Para ambos, retratar o
passado significava tentar explicar o presente e legitimar as posições de grupos poderosos, ou
ao menos pensar o passado com as perspectivas do presente, como os conflitos da época de
Alexander Nevsky, de 1938, que foram transferidos de maneira quase didática por Eisenstein
para explicar ao público a complicada situação soviética contemporânea, pressionada entre
duas frentes, a Leste e a Oeste.
Até onde existia uma indústria cultural soviética, como sua congênere ocidental? Nos
países comunistas esse ramo tinha leis próprias e uma lógica de funcionamento em muitos
sentidos contrária à do ocidente. Não era movida fundamentalmente pelo lucro, a carreira dos
quadros internos seguia uma linha diferente, não era um negócio eminentemente privado ou
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voltado para o atendimento dos anseios de consumo do momento. Mas os resultados finais de
massificação cultural eram bem parecidos.
Ao mesmo tempo havia uma característica que ligava profundamente o funcionamento
de ambas: o caráter de propaganda do sistema, de presença e intervenção estatal, de
celebração, em doses muito variadas, entretanto. Ela cumpria os objetivos de lavagem
cerebral coletiva da população, como assinalam os adeptos da análise pelo totalitarismo?
Pesquisas sérias, mesmo seguindo esse modelo explicativo, teriam que manter um espaço para
as dúvidas sobre esse alcance.
Porém, se empregarmos pesquisas mais circunspectas como as de Moshe Lewin
(1988), mesmo o caráter totalitário do regime pode ser fortemente contestado, inclusive nos
tempos de Stalin, por mais que alguns aspectos de fato batessem com a proposta do conceito
de totalitarismo. Noções mais moderadas como a de propaganda política dentro de um regime
autoritário estariam mais próximas à realidade e explicariam muito melhor certas liberdades
artísticas dentro do cinema estatal. Deve-se lembrar que antes de uma imposição completa do
Estado e uma absorção por parte dos diretores das diretrizes emanadas de cima, existiram
pequenas tensões e confrontações, como a desobediência de Eisenstein em produzir um
cinema unicamente didático para as massas, o que lhe valeu a censura na continuação de Ivan,
o Terrível.
Enquanto o cinema ocidental é mergulhado em diferentes tipos de propaganda que
acabam por reforçar as posições do sistema, como o anúncio de um refrigerante ou de um
automóvel, à consagrada propaganda patriótica ou moral-religiosa – apesar de alguns autores,
como Peter Kenez, não verem qualquer relação do Estado com o cinema, sendo a propaganda
nele embutida apenas uma exigência do consumo das audiências (LAWTON, 1992, 147).
O campo da atuação da propaganda soviética era mais restrito e unidirecional. Estava
mais fortemente vinculado às preocupações momentâneas do Estado e à defesa de seus
interesses do que a qualquer outra coisa. Se existem algumas características que aproximam o
sistema de propaganda cinematográfica soviética, ao menos na época de Stalin, ao sistema de
propaganda nazista, até mesmo a inspiração tomada por este último (WELCH, 1983, 35), o
estilo mudava, a agressividade e sutileza tinham dosagens bem diferentes. A conseqüência, ao
contrário do que muitos imaginam, é que os maiores públicos não eram os dos filmes
encomendados pelo regime e mais carregados de carga ideológica, nem o cinema arte, mas a
fuga e a diversão promovidas por comédias, ou também musicais e dança durante a Era de
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Stalin. A vontade popular acabava encontrando outras áreas onde podia realizar ao menos
parcialmente seus próprios gostos ou moldáveis aos seus próprios interesses.
Nesse sentido, pode-se até afirmar que a sociedade americana era mais manipulável
através do cinema do que a sociedade soviética, ao menos a partir da estagnação sentida na
Era Brejnev. As redes sociais na URSS tiveram um amplo desenvolvimento subterrâneo nos
anos 70, que viria a aflorar enquanto uma inédita e oficialmente reconhecida opinião pública
na segunda metade dos anos 80. Tais redes permitiam a rápida disseminação de informação
(mesmo quando bloqueada pelos veículos oficiais) e sua filtragem pelos indivíduos
componentes da rede e por figuras de maior destaque em cada célula de discussões.
Esse espírito crítico independente no ambiente de descrédito e descomprometimento
da população com o regime gerou conotações de repulsa ou indiferença muito forte para com
as versões oficializadas pelo governo de todo tipo de informação. Amplas parcelas da
população assistiam a um filme histórico com a disposição de que tudo ali não passava de
fantasia e propaganda. A reação da sociedade americana ao seu próprio cinema era bem
diferente (como pode ser verificado com a comparação dos sucessos de Rambo nos EUA com
o de seu homônimo soviético, Odinochnoye Plavanie).
A economia estatal, administrativa, burocrática e planejada implicava amplos
desdobramentos da produção cinematográfica soviética. Boa parte dos filmes eram
encomendas governamentais. O cinema monumental era inteiramente fruto dos pedidos feitos
pelo ministério do Cinema. A “batalha pela produção” também se manifestava no setor.
Assim uma importante produção que pretendia memorar e comemorar os feitos alcançados na
Grande Guerra Patriótica recebia o desvio de recursos técnicos, humanos e materiais de outros
setores, como forma dos objetivos serem atingidos.
Desta forma, os grandes compositores soviéticos do século XX, Prokofiev,
Shostakovich, Kachaturiam, criavam as trilhas sonoras dos principais filmes, às vezes
baseados em sua própria produção erudita, como a presença da Sétima Sinfonia ou
Leningrado de Shostakovich em Padeniye Berlina (Queda de Berlim), ou de canções e
influências populares como Rouxinóis de Kachaturiam, em Stalingradskaya i Bitva (Batalha
de Stalingrado). Tanques Panzer V originais, capturados na guerra, foram retirados dos
museus para as filmagens de Osvobozhdenie (Liberação). Ao contrário do que Hollywood
afirma, o filme mais caro de todos os tempos não foi Cleópatra de Mankiewicz, mas Voyna i
Mir (Guerra e Paz).
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O cinema soviético do pós-guerra que tratava da Segunda Guerra Mundial poderia ser
divido em quatro fases distintas. Cada fase estava intimamente ligada com a liderança política
do país no momento. A primeira fase vai de 1945 a 1953. É a época de Stalin onde o cinema
está a serviço da imagem do líder e o poder do Estado sobre a produção cinematográfica é
sentido de forma mais intenso. A fase seguinte, de desgelo, sob a condução de Kruschev,
presenciou a abordagem dos esforços do partido e do povo para a vitória, onde nomes e
indivíduos reais perdem a importância, em que a liberdade artística e o espaço para a crítica
eram dilatados e mesmo a produção oficial recebia influência da “nova onda” estética
(LAWTON, 1992). A terceira fase, de 1964 a 1982, sob Brejnev, foi de um progressivo e
relativamente tênue (principalmente se comparado com a época stalinista) retorno ao culto à
personalidade e ao papel de heróis e personagens reconhecidos pela história oficial. A quarta
fase, sob Gorbachev ou imediatamente anterior a este, foi de um ritmo explosivo de revisão
histórica do papel do país na guerra em meio a uma enroxada de revelações com a abertura
dos arquivos.
De 1945 a 1953 houve um crescente culto à Stalin, não só no cinema e na propaganda
como também no retorno parcial ao sistema de terror dos anos 30. Se em Stalingradskaya i
Bitva (1948), de Vladimir Petrov, Stalin compunha a estratégia da campanha, mas raramente a
tática de batalha, cabendo esta a seus generais, em Padeniye Berlina (1951) de Mikheil
Chiaureli, mesmo sua onipresença e onisciência do campo de guerra e da atuação de cada
soldado é lembrada pelo general Chuikov. Se a atuação de Zhukov como chefe da Stakva, o
Estado Maior, é apagada no primeiro, no segundo Stalin, ao telefone em Moscou, precisa
demovê-lo, na linha de frente, do erro de crer nas táticas diversionistas nazistas, que
pretendiam retardar seu avanço sobre Berlim. Se Chuikov, Rokossovsky e outros generais
tiveram um papel destacado no primeiro, não são mais do que figurantes no segundo. O
centro do poder, por mais distante que estivesse dos locais onde um processo se desenvolvia,
possuía uma percepção mais aguda do que as pessoas diretamente envolvidas. A remoção do
marechal para um posto secundário por bonapartismo é justificada e a glória da vitória cabe
quase inteiramente à Stalin. Quase, pois os generais ao menos fazem cumprir as ordens
emanadas do Kremlin e não deixam de existir outros heróis, na personificação do novo
homem soviético, operário, stakanovista, militante e temente a Stalin (e que, no cinema não
deixa de guardar algumas características do antigo camponês russo, como o apego à aldeia) ou
a atuação de soldados reais, que tiveram seus nomes conservados, como o sargento Pavlov ou
o major Uvarov. A superioridade do regime é endossada pela sua humanidade, como na
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promessa redigida por Stalin de fornecimento de alimentação e abrigo adequados aos
inimigos cercados em Stalingrado3, ou nos seus lamentos sobre a necessidade do sacrifício de
vidas para que o país seja salvo.
Na era Kruschev a liderança individual foi trocada pela atuação do povo e do partido.
Nessa etapa ocorreu a primeira revisão histórica da atuação do país na guerra, ao tom da
política de auto-crítica formulada e imposta pelo novo secretário-geral como forma de
controlar a burocracia e manter a defensiva contra o agrupamento stalinista “anti-partido”,
com quem concorre pelo poder. Ao contrário do que se afirma em Padeniye Berlina, Moscou
foi bombardeada. Em Ballada o soldati (Balada do soldado) de Grigori Chukhrai, de 1959,
são retratados casos de corrupção e suborno. Em Letyat juravli (Quando voam as cegonhas),
de Mikhail Kalatozov, de 1957, o filho de um burocrata usa sua rede de contatos para fugir da
convocação e se interiorizar na Sibéria com levas de fugitivos. Não há nomes e casos reais,
mas sim dramas coletivos. A privação no front militar, a penúria no front doméstico, a perda
da família e da infância na guerra em Ivanovo Detstvo (A infância de Ivan), de 1962, a
situação dos prisioneiros de guerra em Sudba Cheloveka (O destino de um homem), de Sergei
Bondarchuk, de 1959, heroicizados, mas que sob Stalin eram tidos como covardes.
Sob Brejnev ocorreu um gradual fechamento da liberdade artística, de informação, e o
processo da construção da imagem do novo líder. Os cineastas que desejassem obter a verba
governamental precisavam aderir à situação. Assim, na série de cinco filmes Osvobozhdenie,
de Yuri Ozerov, produzida entre 1967 e 1971, pode-se perceber essa lenta modificação do
ambiente cinematográfico. A figura de Stalin é tratada de forma mais amena com o passar do
tempo, juntamente com sua reabilitação política parcial, mas nunca completada pelo judiciário
soviético, e de um papel contraditório durante toda a série. Se nos primeiros filmes ele
aparece em certos momentos em conflito latente com Zhukov e um empecilho para a
condução profissional do teatro de guerra, e a recusa de trocar seu filho Yakov feito cativo
durante a invasão nazista por território possa ter um tom ao mesmo tempo de despendimento
e de crueldade, nos últimos filmes Stalin acelera o fim da guerra com a imposição do ataque à
Berlim e a não concretização de um ataque pela retaguarda das tropas nazistas encantoadas na
Pomerânia. Procura-se um equilíbrio entre a história diplomática e dos encontros das
3 Também se deve levar em consideração que os 300 000 soldados das forças do Eixo capturados em Stalingrado foram libertados dos campos de trabalho por Kruschev em 1956, 13 anos após a rendição de Von Paulus, o que não deixou de contribuir para que o número de alemães repatriados fosse de apenas 6000.
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lideranças dos países aliados, a dos generais e das táticas de guerra e a de uma fictícia divisão
da 1ª Frente Ucraína, a história dos soldados e dos oficiais comuns – um leque bem mais
variado do que se fazia no Ocidente, como o contemporâneo O mais longo dos dias. É
marcante a reabilitação de Zhukov, após a queda de Kruschev, a ponto de o diretor poder se
declarar abertamente um fã do marechal que viveu no ostracismo sob Stalin e a maior parte do
governo de Kruschev4. O papel protagonista do Partido Comunista, confirmado na
Constituição de 1977, é reforçado pela chamada de seus membros dentro do batalhão para
missões suicidas.
Na série de quatro filmes produzidos para a televisão estatal Soldaty Svobody
(Soldados da Liberdade), de 1977, e também dirigida por Ozerov, se dá a retomada do culto à
personalidade, que em um regime não-socialista talvez não recebesse modelos tão sistêmicos,
mas sim como algo natural da vida política. Brejnev, que serviu como comissário político
num front secundário da Segunda Guerra e que desperta dúvidas entre os pesquisadores da
veracidade dos episódios em que entrou em ação efetiva (VOLKOGONOV, 2008), é retratado
como importante líder militar (o que servia de reforço para as suposições de que Zhukov teria
pedido a ele conselhos), como também o são vários líderes de países socialistas aliados à
URSS que atuaram de alguma forma no conflito. Pode-se perguntar quanto o cinema ou a
propaganda personalista de Brejnev (como as quatro medalhas de Herói da União Soviética
penduradas em sua lapela, a mais alta condecoração soviética) contribuíram para uma
reestalinização da sociedade soviética. Os registros do anedotário popular (anekdot) sobre o
secretário-geral não são muito abonadores.
Um tema tabu para o cinema soviético acostumado a retratar as grandes vitórias, se dá
com Oni srazhalis za rodinu (Eles lutaram por seu país), de Sergei Bondarchuk, de 1975,
ambientado no ano de 1942, das grandes retiradas no Front Sul até as margens do Volga.
Exércitos sem equipamentos, dotados apenas de coragem contra um inimigo muito bem
aparelhado, não conseguem melhores resultados do que o atraso do avanço nazista – por mais
que as baixas infringidas aos alemães sejam irreais. O filme termina com o início da batalha
de Stalingrado e a redenção destes mesmos soldados. A atuação feminina no front também é
4 Zhukov, Kruschev e boa parte do partido se uniram contra a tentativa de Béria e de sua KGB se entronizarem no poder como sucessores de Stalin. Béria foi preso e executado. Porém, poucos anos depois, Zhukov levou a desestalinização longe demais, ao falar de crimes cometidos por gente de fora da corte de Stalin. Isso atingia o próprio Kruschev, envolvido com a coletivização na Ucrânia nos anos 30. Koniev, que era um desafeto de Zhukov desde o momento em que Stalin pôs os dois generais em competição pelo prêmio da captura de Berlim, ficou com sua cadeira, enquanto Zhukov teve de abandonar a vida pública.
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lembrada com A zori zdes tikhie (Auroras nascem tranquilas), do diretor Stanislav Rostotsky,
de 1972. O esforço coletivo volta à pauta com Goryachiy Sneg (Neve Ardente), de Gavriil
Egiazarov, de 1974 ou o meio drama meio documentário com cenas reais Torpedonostsy
(Bombardeiros infernais) de Semyon Aranovich, de 1983.
1985 foi um ano diferente para o cinema bélico soviético. Em Idi i Smotri (Vá e veja),
Elem Klimov usou um tom de um pacifismo destoante da tradicional versão soviética e
mostra partisans agindo na fronteira da legalidade. Para as comemorações dos 40 anos do fim
da Grande Guerra Patriótica o Estado encomendou novamente para Ozerov, o filme Bitva za
Moskvu (Batalha de Moscou), que pretende retratar os primeiros meses da guerra.
Caso tenha chego aos cinemas concomitantemente à ascensão de Gorbachev ao poder,
foi produzido antes, ainda sob Andropov e Chernenko. Ele exprime o descontentamento da
intelligentsia soviética com a política de austeridade e a situação de estagnação econômica
prolongada através da crítica à história e uma subentendida reivindicação da abertura dos
arquivos e de uma revisão da história do país. É mais um capítulo da efervescência dos grupos
médios compostos por artistas, cineastas e cientistas sociais, políticos e econômicos, que já se
manifestava abertamente em congressos e revistas nos últimos anos.
O Tratado de Não-Agressão Ribbentrop-Molotov é mencionado. Stalin passa
claramente para o papel de vilão, um tirano não muito diferente de Hitler, fraco em momentos
decisivos, como sua reclusão durante o ataque ou doença durante os momentos decisivos em
Leningrado. Que mantém generais incompetentes e se desfaz daqueles que ao menos haviam
ganho experiência na condução da luta. Que elabora metas inalcançáveis, como contra-atacar
quando as forças seriam suficientes apenas para resistir. O sistema é repressivo e induz ao
suicídio dos oficiais caídos em desgraça, como o general Pavlov (que foi de fato fuzilado). O
centralismo é tremendamente moroso e ineficiente. Quando as ordens chegam a situação já
mudou completamente. Os recursos necessários para a luta não são liberados a tempo pela
burocracia, ou atrasam os produtos essenciais, como o combustível para os tanques que
precisam adentrar no campo de batalha.
O desconhecimento da realidade longínqua das fronteiras (e a limitação intelectual de
Stalin e da cúpula da inteligência) impede que as informações coletadas por grupos de espiões
sobre o ataque iminente recebam crédito. O abismo entre a linguagem e os fatos fica patente
com os relatórios que chegam a Moscou, que mais desinformam que fornecem dados para a
condução da campanha, que trazem o que o centro deseja ouvir e não o que realmente se
passa.
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Zhukov se torna o herói que salva outros generais dos tribunais de guerra (como o
futuramente desafeto Koniev) ou da deposição (como Timoshenko) ou que marcha pelas ruas
da recém retomada Viazma, ou que ainda previra nos jogos de guerra meses antes o
comportamento da ofensiva alemã. Stalin ainda mantém a imagem contraditória ao sacrificar
a vida de todo um exército em Kiev ao se negar a ordenar a recomendação técnica de Zhukov
de se retirar para posições mais defensáveis e abandonar Kiev aos alemães, mas ao mesmo
tempo afirmar que, mesmo que as tropas fossem cercadas e destruídas, ainda assim esse
sacrifício forneceria tempo necessário para o país reorganizar sua defesa e salvar o ponto
nevrálgico da nação, Moscou.
Isso não deixa de ser uma emanação do chauvinismo e do nacionalismo russo que
cresciam no cinema soviético desde os tempos de Brejnev (LAWTON, 1992). Ozerov tentaria
corrigir isso com seu filme seguinte, Stalingrado, de 1990, em que mostra as diferentes
nacionalidades da URSS lutando juntamente, como nas cenas da “Casa de Pavlov”.
Foi o último grande filme sobre a Segunda Guerra feito na URSS. Para manter seu
estilo de superprodução, num momento em que a economia soviética ruía sob o peso do
desmonte do sistema de planificação centralizada, Ozerov teve que buscar financiamento
externo, em Hollywood, que impôs o uso de atores americanos em papéis-chave, como o do
general Chuikov. A produção teve que se adaptar a “la nueva comercialización de tipo
occidental proclamada por el cine de la perestroika y la influencia del mercado”
(JAMESON, 1992, 113).
O franco-atirador, baseado em Vassili Zaitsev, era um desertor quase fuzilado pela
NKVD no cumprimento dos decretos de Stalin. O velho capitão da balsa de transporte de
tropas no Volga se lamentava de ser difícil tirar forças para suportar certas situações depois
que Deus foi abolido. O filme tem cenas de nudez coletiva. Um interessante coquetel do que o
cinema produzia nos tempos da Perestroika.
A revisão história avançou profundamente. Stalin é mais megalomaníaco e cruel que
Hitler. Kruschev foi o responsável pela derrota na Segunda Batalha de Karkov, que significou
a exposição da desguarnecida Stalingrado ao avanço inimigo, ao não ordenar a retirada
recomendada por Zhukov. Os privilégios das pessoas com ligações dentro do aparato são
evidenciados, como na remoção do filho de Krushev por avião para Moscou para se tratar. O
mito ainda se confunde com a realidade histórica, ao aparecer o filho de Kruschev como
responsável por um homicídio durante uma brincadeira com um revolver carregado, e não
Vassili Stalin. O sistema cruel e líderes desumanos constituem uma teia de ódios e rivalidade
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destrutiva. Stalin sente inveja de Zhukov e o rebaixa. Kruschev desenvolve animosidade
suficiente contra Stalin que vêm a revelar seus crimes. Zhukov, seu aliado de primeira hora, é
confinado ao esquecimento logo em seguida. Béria, chefe da NKVD, uma figura inexistente
nos demais filmes, faz sua aparição no círculo mais intimo a Stalin. O pedido de troca de
Yakov por Von Paulus é negado por Stalin não por patriotismo ou abnegação, mas por
abominar o próprio filho – ao mesmo tempo em que o narrador comenta as três décadas que a
URSS ficou sob o controle deste homem.
Agora o centralismo e o planejamento não eram culpáveis apenas pela má condução
da segurança do Estado, provocando desorganização, confusão e ineficiência, mas também
pela escassez de produtos para a população civil. As recrutas em Stalingrado pedem
permissão para usar seus sapatos civis invés dos coturnos militares, pois os que foram
entregues eram masculinos. Ao abandonarem seus postos na artilharia, deixam para trás
também seus sapatos civis. Mesmo estes não se ajustavam, pela baixa qualidade na produção
e a inexistência de relações de livre mercado. O consumidor era tiranizado pelo produtor,
obrigado a usar o que lhe caísse em mãos e não do que precisava de fato.
O movimento da sociedade contra o feminismo de tipo socialista, que tornava iguais
homens e mulheres até na linha de frente, e que em muitos setores possuía até o desejo do
retorno da mulher à vida doméstica (coisa que transparece até em alguns discursos de
Gorbachev por uma conduta mais feminina e familiar) também é explicito no filme. Do caos
das recrutas tomando banho à morte fácil nos postos de artilharia, ou a incapacidade para
enfrentar o inimigo após vê-lo pela lente ótica do rifle de franco-atirador ao sentimentalismo
com resultados fatais. Da mesma forma que Ozerov participou da construção dos mitos em
torno de Brejnev, ele também abraçou o ideário da Perestroika e da nova liderança no
Kremlin.
Enquanto Gorbachev era recebido no rancho dos Bush, Stalin e Churchill usavam
provadores para a bebida, na viagem que o último fez no fim de 1942 à Moscou. A
desconfiança para com o tirano não seria injustificável. A revisão da imagem externa do país
também se dá com a imagem interna e do próprio povo, quando o provador inglês acaba
entrando em coma alcoólico ao tentar acompanhar o colega russo numa rodada de bebidas.
As relações entre os aliados e da URSS com os países libertados por ela na Europa
Oriental e Central mudaram menos com o tempo. Em formas gerais, o tory Churchill é um
aliado traiçoeiro, que permitiu que empresários ingleses fornecessem tungstênico para o
exército alemão (Padeniye Berlina) ou que pretendia abrir a segunda frente nos Balcãs, como
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forma de cercear a libertação dos povos eslavos – por mãos soviéticas (Stalingradskaya i
Bitva). Ele era o principal empecilho para as relações com o mais equilibrado Roosevelt, de
fato interessado na contenção do fascismo pela União Soviética, mas sem uma atuação muito
mais concreta do que essa.
Os aliados ocidentais teriam permitido a fuga de nazistas criminosos de guerra para
suas áreas de controle, e essa não era uma acusação presente apenas nos filmes da época de
Stalin (Vstrecha na Elbe ou Encontro no Elba, de Grigori Aleksandrov e Aleksei Utkin,
1949). Os esforços militares dos aliados ocidentais são comparados com o dos soviéticos e,
segundo alguns autores, são minimizados.
Os filmes ressaltam que a segunda frente, prevista para ser aberta em 1942, só veio de
fato em 1944. Durante todo esse tempo, abrir a segunda frente era o Exército Vermelho abrir
os enlatados de carne de porco enviadas pelos contratos de Lend-Lease pelos Estados Unidos
(Osvobozhdenie). Mesmo em 1985, ressaltam que a ajuda americana só veio depois que a
própria União Soviética se mostrou capaz de sobreviver sozinha à invasão alemã. O pedido de
Stalin, por ajuda, logo em seguida à invasão em junho, foi condicionado a estabilização do
fronte, que só se deu em novembro (Bitva za Moskvu).
A idéia de que a série Osvobozhdenie se constituiu como uma “enciclopédia de mitos”
tem fundamento apenas se for considerado de fato que a atuação soviética não foi tão
essencial, apesar de 70% do esforço de guerra alemão ter sido direcionado ao Front Oriental e
não aos vários outros fronts.Um julgamento mais razoável da produção cinematográfica pós-
Stalin não encontraria grandes diferenças na produção americana, mesmo esta não sendo
considerada uma fábrica ou centro difusor de mitologias.
Uma representação menos consistente, entretanto, dá-se nas relações da URSS com os
territórios libertados. No caso polonês não há qualquer menção ao governo exilado de
Sikorsky em Londres e do levante de Varsóvia em 1944. Apenas o Exército Popular Polonês,
de cunho socialista, é mencionado e tem atuação destacada (Osvobozhdenie). Mas dever-se-ia
levar em conta que mesmo a produção historiográfica ocidental comete o erro contrário,
engrandecendo a atuação dos partidários de Sikorsky e apagando da história a existência dos
combatentes simpatizantes ou subordinados aos grupos socialistas. O pan-eslavismo se dá
desde as conversas e as aproximações linguísticas entre oficiais soviéticos e poloneses ou
soldados russos e a população búlgara (Geroite na Shipka ou Heróis de Shipka, de 1955). A
onda de estupros e saques no avanço sobre a Alemanha recebeu outra versão em
Osvobozhdenie, com as cenas de flerte entre o tanquista soviético e a filha da família alemã
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que o recebe em casa e o convida para tomar café. Ou ainda a brava jornada de soldados
soviéticos para levar uma mulher alemã grávida a um hospital, em Mir vkhodyashchemu (Paz
a quem entra, de Aleksandr Alove e Vladimir Naumov, de 1961). Mas não é algo
essencialmente diferente do que o ocidente produziu mesmo recentemente, como as relações
consentidas entre soldados americanos e alemãs em Band of Brothers, porém bem mais
realistas em Julgamento em Nuremberg, de 1961, com as cenas sugeridas de prostituição em
troca de alimento no cenário da Alemanha devastada do pós-guerra.
A progressiva desideologização da sociedade soviética e das amarras que ligavam os
cineastas da intelligentsia aos ditames da liderança política jogou por terra qualquer
adaptabilidade honesta do conceito de totalitarismo criado no Ocidente e imposto à análise do
regime. Não se deve descartar, porém, que várias de suas características eram aplicáveis à
realidade durante o governo de Stalin. Mas, mesmo nesse período, o conceito não se aplica
inteiramente. Não tanto pelos objetivos do Estado, mas pelos resultados concretos alcançados
diante da população.
Novos heróis nacionais foram criados ainda nos anos 30 com o auxilio do cinema,
como a glorificação da resistência até a morte de Chapaev, ou antigos heróis czaristas foram
resgatados no pós-guerra, como os marechais Kutuzov e Suvorov, ou o almirante Ushakov,
retratados em filmes entre 1945 e 1953, além de novos serem entronizados no panteão da
história oficial, como forma de ressuscitar antigas tradições, simbologias e hierarquias
extintas nas forças armadas com a Revolução de Outubro. Com a desestalinização parte dessa
memória oficial foi destruída, revista ou desacreditada também no cinema, que, na época,
apresentou poucos filmes que se pode considerar como monumentos à recordação da guerra.
O conservadorismo crescente, inclusive um renascimento do nacionalismo russo, produziu
uma nova inflexão na percepção do cinema sobre a atuação do país na Grande Guerra
Patriótica, movimento que teve um final abrupto com a Perestroika e a Glasnost, seu novo
formato de produção e os temas que geravam inquietação na sociedade no momento da
abertura dos arquivos secretos. Para o povo soviético, a principal memória da guerra não
deixou de ser retratada no cinema e na história oficiais: os enormes sacrifícios e sofrimentos
passados pela população – apesar de tremendamente mais idealizados.
Fontes
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___ ___ Sudba Cheloveka (103 minutos) Mosfilm: 1959.
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___ ___ Osvobozhdenie. (470 minutos) Mosfilm: 1969.
___ ___ Stalingrad (196 minutos) Mosfilm: 1989.
___ ___ Soldaty svobody (599 minutos) Mosfilm: 1977.
Petrov, Vladimir. Stalingradskaya bitva i (198 minutos) Mosfilm: 1948.
Rostotsky, Stanislav. A zori zdes tikhie (188 minutos) Gorky Film Studios: 1972.
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