In Arqveologia e História, vol.53: Actas do II Colóquio Temático - Estudos de Lisboa, (Séculos VIII - XV),
Lisboa, Associação de Arqueólogos Portugueses / Colibri, 2001, pp. 35-43;
As Portas da Cerca de Lisboa
no período islâmico
Estudo e reconstituição textual da notícia sobre as portas de Lisboa,
a partir dos geógrafos árabes
António Rei
Investigador / Bolseiro FCT - PRAXIS XXI
(CEAA / IICT – Lisboa, 1996 - 2000)
I - Introdução
É nosso objectivo abordar as Portas da Cerca de Lisboa no período islâmico, a partir
das notícias dadas pelos geógrafos muçulmanos.
Partindo das informações desses geógrafos, confrontá-las-emos com o que os estudos
arqueológicos e filológicos nos legaram sobre as portas e/ou áreas circunvizinhas, até ao
momento presente.
Tentaremos ainda, identificar a cadeia de transmissão da notícia, e, por último,
reconstituir a notícia original.
I . 1 - Ponto de situação
O primeiro estudo em que são incluídas e estudadas as Portas, já tem mais de um
século, pois foi em 1899, que Augusto Vieira da Silva, na primeira edição da sua “Cêrca
Moura”, buscou a localização topográfica das mesmas. Mais tarde, na “Cêrca Moura de
Lisboa e o Esteiro do Rio Tejo”(1939a), e na 2ª edição(1939b), voltou a reproduzir essas
informações, se bem que actualizadas com os resultados de algumas escavações levadas a
efeito na zona das ruas das Canastras e Bacalhoeiros. As informações que Vieira da Silva nos
legou são essencialmente de cariz arqueológico, e a sua importância é ainda de tal ordem, que
se podem ainda hoje considerar inultrapassadas.
Na área da filologia, David Lopes, em 1940 publicou um estudo em que comenta o
Rawd al-mi‘târ de al-Himyarî, entretanto editado e traduzido por E.Lévi-Provençal, em 1938.
Este trabalho aparecerá, repetido, mais tarde, nas colectâneas: Páginas Olisiponenses
(PO)(1968), pp.67-75, e nos Nomes Árabes de Terras Portuguesas (NATP)(1968), pp.187-
189. Nesse trabalho foi, pela primeira vez, divulgado, em Portugal, um texto árabe com uma
notícia sobre as portas de Lisboa. Mas David Lopes não se limitou apenas á tradução do
texto, tendo buscado também a contextualização espacial das informações, cotejando-as com
as pesquisas de Vieira da Silva.
José Domingos Garcia Domingues, arabista e discípulo de David Lopes, também
divulgou, mais tarde, textos árabes com informações sobre este mesmo objecto.
Mas enquanto n’ “O Garb Extremo do Ândalus e «Bortuqal» nos historiadores e
geógrafos árabes” (1960), faz um ponto de situação do que era conhecido desde David Lopes,
sobre al-Himyarî, em “Aspectos Geográficos da Lisboa Muçulmana”, (1967), já não repete
este último autor, fornecendo apenas informações inéditas a partir de traduções suas de
recente data (estes dois trabalhos podem encontrar-se hoje na colectânea póstuma Portugal e
o al-Andalus, Lisboa, Hugin, 1997, respectivamente, pp.79-116 e pp.117-130).
Garcia Domingues já dispunha em 1967 de mais informações do que antes tivera o
seu mestre, pois entretanto pudera traduzir: al-Qazwînî, que traz uma passagem de al-‘Udhrî;
e também Ibn al-Shabbât, que reproduz al-Bakrî, todos falando das portas de Lisboa. Garcia
Domingues, refere a importância da notícia deste último autor, pois revela a fonte de al-
Himyarî.
É no mínimo curioso, que ninguém, nem mesmo o próprio Garcia Domingues, tenha
pegado nesta tradução da notícia de Ibn al-Shabbât, e tivesse tentado estabelecer uma
comparação, minima que fosse, com a notícia de al-Himyarî, pois apresentam algumas
diferenças de importância. Esta não-confrontação textual acabou fazendo história, como
veremos mais adiante, no caso das termas de Alfama.
Enquanto arabista, o seu contributo deu-se precisamente ao nível das traduções das
várias notícias, não se ocupando a confirmar localizações no espaço.
António Borges Coelho na sua antologia Portugal na Espanha Árabe (PEA) (1ª ed.,
4vols., Lisboa, Seara Nova,1972-75; 2ª ed., 2vols., Lisboa, Caminho, 1989) inclui a notícia
das portas, a partir de E.Lévi-Provençal1, embora sem acrescentar nada.
Christophe Picard, no capítulo “Lisbonne - Al-Ushbûna” (pp. 208-218), que figura na
Histoire du Portugal et de l’Espagne Occidentale a l’Époque Musulmane (début VIII éme -
1Cf. 2ª ed, vol.I, pp.59-60. Não nos foi possível consultar a 1ª ed.
milieu XIII éme siècle) (1991) - sua Tese de Doutoramento-, também trata das Portas de
Lisboa. Metodologicamente, tentou novamente uma articulação das informações das fontes
árabes com as das intervenções arqueológicas. Usou na sua Bibliografia obras de Vieira da
Silva e David Lopes, mas equivocou-se nas localizações de algumas das portas.
No momento presente, haverá sem dúvida, que ter em conta obras que nos actualizem
as informações no relativo à arqueologia urbana de Lisboa, principalmente as que tragam
dados sobre esta zona da cidade. Por exemplo, Jorge de Alarcão, no seu Roman Portugal,
(1988); Clementino Amaro e José Luís de Matos, “Trabalhos Arqueológicos no Claustro da
Sé de Lisboa - Notícia preliminar”(1996); e Clementino Amaro, na síntese, “Arqueologia
Islâmica em Lisboa - um percurso possível”(1998), sem tratarem as Portas directamente,
dão-nos informações que nos permitem com mais segurança confirmar a localização das
mesmas.
Assim, e como conclusão provisória, teremos que, a partir dos textos árabes
traduzidos, se conhecem cinco portas à Lisboa islâmica, apesar de Ibn al-Shabbât e al-
Himyarî atribuírem um nome diferente à porta que apresentam em quinto lugar. Garcia
Domingues apresentou esta diferença como tratando-se de uma possível variante nos dois
textos 2.
I . 2 - As Portas de Lisboa nos geógrafos árabes
Neste momento sabemos que os geógrafos que trataram e descreveram as Portas da
Cerca de Lisboa durante o período islâmico, foram, por ordem cronológica, al-‘Udhrî [UD]3 e
al-Bakrî [BK]4, ambos do século XI, e que apenas conhecemos por referências de autores
posteriores.
No século XIII encontramos uma passagem relativa a uma porta em al-Qazwînî
[QZ]5. Em Ibn al-Shabbât [SB]
6, e em al-Himyarî [HM]
7, encontramos notícias extensas, em
2J.D.Garcia Domingues, “Aspectos Geográficos da Lisboa Muçulmana”, p.122,n.20
3Sobre UD, ver F.Pons Boigues, Ensayo...2ªed., p. 158, nº120; E.Molina Lopez, “La Cora de Tudmir
según al-Udhrî”, CHI 4, Granada, 1972, pp.7-10.
4Sobre BK, ver E.Lévi-Provençal, “Abû ‘Ubayd al-Bakrî”, E.I.2 , t.I, pp. 159-61
5 Portas de Lisboa: Âthâr al-bilâd, ed. Beirute, pp.496-497; trad.parc.espanhola F.Roldán, El Occidente
de al-Andalus en el “Âthâr al-bilâd” de al-Qazwînî, p.91) Sobre QZ, ver IDEM,Ibidem, Introdução bio-
bibliográfica.
6Portas de Lisboa: Silat al-simt, ed. Al-‘Abbâdî, p.163. Sobre SB, ver E.de Santiago Simón, “Un
Fragmento de la obra de Ibn al-Shabbât sobre Granada”, CHI 5, 1978: a Introdução sobre o Autor.
que são descritas cinco portas. Como já foi dito atrás, HM fora tarduzido por David Lopes, e
QZ e SB foram-no por Garcia Domingues.
Uma notícia inédita, e com uma extensão similar às de SB e HM surge-nos na obra
anónima dos séculos XIV-XV, Dhikr bilâd al-Andalus[DK]8.
Esta última obra foi traduzida e editada, na década de 80, por Luis Molina, em
Espanha. Tratou-se de uma contribuição de muita importância, no relativo às portas de
Lisboa, pois trouxe-nos informações que vêm lançar ou relançar questões, mas que, por outro
lado, contribui para o esclarecimento dessas mesmas questões.
Apesar de publicada em 1983, Christophe Picard não chegou a usá-la na sua Tese.
Os dois primeiros autores, do século XI, eram andalusis. O terceiro era persa. Os
quarto, quinto e o compilador da obra anónima, eram todos do Magrebe.
Terá sido UD o que primeiro deu esta notícia, pois não se conhece nenhuma
referência a esta notícia anterior a UD. QZ refere-o explicitamente como fonte, ao recolher a
passagem relativa apenas a uma das portas de Lisboa, a Porta de Alfama. O facto de junto a
ela se encontrarem as fontes termais naturais, terá feito com que QZ a tivesse preferido às
demais, pois é conhecido o interesse deste autor pelos ‘ajâ’ib (as coisas extraordinárias)9; o
facto do próprio QZ dizer “ numa das portas de Lisboa”, sugere que teria conhecimento da
existência de outras portas em Lisboa.
O DK, segundo Luis Molina, é devedor a UD10
. Pela confrontação da notícia de DK
com a de QZ, e apesar desta última ser muito curta, ainda assim se detectam parentescos entre
ambas, que, curiosamente, não conseguimos estabelecer com SB e HM. Pelo que se pode
confirmar, nesta notícia a origem em UD.
BK, discípulo de UD, poderá ter recebido a notícia em causa directamente do seu
mestre. Foi, por sua vez a fonte de SB e de HM, embora talvez a partir de cópias diferentes.
As diferenças entre os textos dos três autores com as notícias mais extensas, são:
7Portas de Lisboa: (Rawd al- Mi‘târ, ed. I. ‘Abbâs: p. 61;ed. Lévi-Provençal, p.16; trad.Lévi-Provençal,
La Péninsule Ibérique au Moyen Âge..., p. 22). Sobre HM, ver T. Lewicki “Ibn ‘Abd al-Mun‘im al-Himyarî”,
E.I.2, t. III, pp.697-98.
8 Portas de Lisboa: ed.p. 51; trad. p. 57. Sobre DK e o seu compilador, ver ed. & tra.de Luis Molina,
Madrid, CSIC, 1983. Principalmente, no t. I, a Introdução; e no t. II, o Estudo.
9Cf.n. 5.
10Cf.n. 8.
Autores / obras fontes referidas portas nº de portas
SB
BK
5ª- Porta do Estreito
(apresenta 5 portas)
HM
(BK)
5ª- Porta do Cemitério
(apresenta 5 portas)
DK
(UD)
5ª- Porta do Estreito
Lisboa tem 6 portas
Que questões se lançam agora :
- Quantas portas teria Lisboa no período islâmico ? Cinco ou seis ?
- “Masniq” (G. Domingues) ou Madîq, serão más leituras de Maqbara, ou vice-versa ?
Em caso afirmativo, Lisboa teria cinco portas, e as divergências de denominação,
seriam apenas más leituras de uma mesma palavra. Mas se entender que não é esse o caso,
então:
- É possível identificar seis portas na “cerca moura” ?
- Quais seriam e onde ficariam as : Porta do Estreito e Porta do Cemitério ?
É a estas questões que vamos tentar responder seguidamente. Começaremos por
apresentar, em sinopse, as várias informações / notícias sobre as portas de Lisboa no período
islâmico, e seguidamente tentaremos identificá-las, localizando-as no espaço.
II - Quadro Sinóptico da Notícia sobre as Portas de Lisboa
Autor
Fonte da notícia
Notícia
al-‘Udhrî
(séc.XI)
apud al-Qazwînî
Numa das portas de Lisboa, conhecida por Porta das Termas, há umas
termas perto do mar [onde] corre água quente e água fria . Quando a maré
sobe, oculta-a.
al-Bakrî
(séc.XI)
apud Ibn al-
Shabbât
A sua porta ocidental é sobrepujada por arcadas assentes sobre colunas
de mármore, que estão fixas em pedras também de mármore. Tem tam-
bém outra porta ocidental, conhecida como Porta do Postigo, abrindo -
sobre um vasto almargem, atravessada por dois arroios de água que se
lançam no mar . Tem uma porta meridional que é chamada Porta do Mar
, por onde entram as ondas quando da subida da maré, subindo nas suas
muralhas três pés. E uma porta também oriental conhecida por Porta das
Termas. As termas, próximas da porta e do mar, têm duas águas : água
quente e água fria. Quando a maré enche, encobre-as. E uma outra porta
também oriental conhecida como Porta do Estreito .
al-Qazwînî
(séc.XIII)
Athâr al-bilâd
Disse Ahmad ibn cUmar al-cUdri, autor do [livro] «al-mamâlik wa-l-
massâlik al-andalusiyya» :
“Numa das portas de Lisboa, conhecida por Porta das Termas, há umas
termas perto do mar [onde] corre água quente e água fria. Quando a maré
sobe, oculta-a.”
Ibn al-Shabbât
(séc.XIII)
Silat al-simt
Disse al-Bakri, que Deus tenha misericórdia dele :
[...]A sua porta ocidental é sobrepujada por arcadas assentes sobre
colunas de mármore, que estão fixas em pedras também de mármore.
Tem também outra porta ocidental, conhecida como Porta do Postigo,
abrindo sobre um vasto almargem, atravessada por dois arroios de água
que se lançam no mar . Tem uma porta meridional que é chamada Porta
do Mar , por onde entram as ondas quando da subida da maré, subindo
nas suas muralhas três pés. E uma porta também oriental conhecida por
Porta das Termas. As termas, próximas da porta e do mar, têm duas águas
: água quente e água fria. Quando a maré enche, encobre-as. E uma outra
porta também oriental conhecida como Porta do Estreito .
al-Himyarî
(séc.XIII ?)
Rawd al-mi‘târ
A sua porta ocidental é sobrepujada por arcadas sobrepostas, que
assentam sobre colunas de mármore, elas mesmas fixas em bases de
mármore . É a maior das suas portas . Lisboa tem uma outra porta que se
abre a Oeste : chamam-na Porta do Postigo ; domina um vasto espaço que
é atravessado por dois arroios que se lançam no mar. No sul, encontra-se
outra porta, a Porta do Mar, na qual penetram as ondas, ao subir e descer
da maré, subindo nas muralhas a uma altura de três braças. A leste, a
chamada Porta das Termas. As termas, próximas da porta e do mar, têm
duas águas : água quente e água fria. Quando a maré enche, encobre-as. E
uma outra porta oriental, conhecida como Porta do Cemitério.
Anónimo
(séc.XIV-XV)
Dhikr Bilâd
al-Andalus
Tem seis portas, dispostas numa ordem curiosa . Entre elas, a Porta
Grande, que é ocidental, e onde há arcadas sobrepostas assentes sobre
colunas de mármore, as quais estão cravadas em mármore branco. Outra
porta, também a oeste, conhecida como Porta do Postigo, que se abre para
um extenso e verde almargem, onde, no meio do qual, dois arroios o
cruzam até se lançarem no mar. A porta meridional é a chamada Porta do
Mar , por onde entram as ondas, que sobem nas suas muralhas cerca de
três braças. Uma delas, oriental, é conhecida como Porta das Termas,
estando as termas próximas dela. Nelas correm duas águas : uma água
quente e uma água fria, as quais estão perto do mar ; quando [o mar]
enche, encobre-as, e quando baixa, descobre-as . Outra porta, também
oriental, é a chamada Porta do Estreito.
III - As Portas de Lisboa
- estudo identificativo
A Lisboa islâmica, al-Ushbûna ou Lushbûna, tinha seis portas 11
, sabe-se hoje,
através de uma fonte árabe. Informação que a De Expugnatione Lyxbonensi 12
parece
confirmar .
Os textos árabes referem apenas as portas da cidade ou madina para o exterior, sem
referirem qualquer abertura a norte, que desse passagem para a alcáçova13
.
Embora os lanços de muralhas onde elas estavam incrustadas sejam referidos no
sentido oeste-sul-leste, a sequência por que são apresentadas as várias portas, põe a hipótese
de que tenha sido a importância das mesmas o principal critério que terá presidido à sua
ordenação.
Sigamos pois a ordem que nos legaram os autores muçulmanos.
1)Al-Bâb al-Kabîr/ al-Gharbî = Porta Grande / Ocidental > Férrea ou do Ferro
A primeira é a Porta Ocidental ou Porta Grande 14
. Abre a ocidente, e é “a maior de
11
Dhikr...,ed.p. 51; trad.p. 57. Sobre a articulação das Portas de Lisboa com a periferia urbana da
cidade, e a sua importância económica, viária e urbanística no período islâmico, ver o nosso trabalho “Lisboa
fora-de-portas, entre os sécs. VIII e XII”, Media AEtas 3, no prelo.
12De Expugnatione Lyxbonensi(DExpLys), ed.José da Felicidade Alves, A Conquista de Lisboa aos
Mouros em 1147 - Carta de um cruzado Inglês, p.52; também Ch.Picard, ob.cit., refere as 6 portas (p.210) e na
n.49 - p .210 transcreve, corroborando :« [...] contra nos tres portas habentes, II in latere et unam contra mare
[...]».
13Existiu uma porta, a norte da cidade, que dava passagem para a alcáçova. Ficaria situada sobre o
Chão da Feira. Cf. A. Vieira da Silva, ob.cit.,p.8
14As fontes árabes que a designam por «Porta Ocidental», são Ibn al-Shabbât, ob.cit., p.163 e al-
Himyarî, ob.cit.,p.61,(trad.Levi-Provençal,ob.cit., p. 22); O Dhikr..., ed.p. 51 e trad.p. 57, chama-lhe «Porta
Grande». Ch.Picard, ob.cit., p. 211, chama-lhe “Porta das Colunas de Mármore”, e J.D.Garcia Domingues, “O
Garb extremo do Ândalus...” p. 101, chama-lhe “Bâb al-Garb” e “Porta do Ocidente”. Nenhuma das designações
usadas por estes dois investigadores, provém de alguma das fontes que conheçamos, nem eles remetam para
qualquer outra fonte.
todas as suas portas”15
.
Situar-se-ia no actual Largo de Stº António da Sé, entre as Igrejas de Stº António e da
Madalena 16
.
As suas avantajadas estruturas, e a sua citação em primeiro lugar em todos os textos,
coloca-nos em frente da que seria a mais importante porta de Lisboa, naquele período.
Um facto certamente importante, relativo a esta Porta, é o de que, tanto quanto se
sabe até este momento, estas fontes medievais árabes são as únicas a trazer referências
escritas àcerca de estruturas aequitectónicas que terão pertencido ao forum da Olisipo
romana, de que se conhece a existência através informações arqueológicas que o situam nessa
área da cidade 17
.
As arcadas de mármore, ao serem identificadas enquanto tal, e o facto de ser dito que
estavam ainda assentes em bases também de mármore, faz-nos supor que a muralha poderia
ter eventualmente sido construída aproveitando e integrando arcadas completas de um dos
lados do forum. Seriam, portanto, pelo menos uma parte das muralhas tardo-romanas ou
germânicas de Lisboa, ainda em uso no período islâmico.
Trata-se da depois denominada Porta do Ferro, ou Porta Férrea. Esta denominação
dever-se-ia ao uso de chapas de ferro que evitavam que a porta fosse incendiada pelos
inimigos durante os ataques 18
.
2) Bâb al-Khawkha = Porta do Postigo > da Alfofa
A Porta do Postigo era a segunda na relação. Permaneceu conhecida, pelo menos até à
segunda metade do século XVI 19
, como Porta da Alfofa 20
.
15
Al-Himyarî, ob.cit. ,ed. p.61, trad.Levi-Provençal,p. 22
16 Augusto Vieira da Silva, ob.cit., pp. 83-84 ; David Lopes, PO, pp. 69-71
17A planta 1: 2 500 de Lisboa, em que A. Vieira da Silva reconstituíu a Cerca Moura, apresenta uma
leitura topográfica e arqueológica que coincide com as descrições dos autores árabes: é a maior das portas de
Lisboa, e abre a oeste. Tratando-se de uma confirmação a posteriori, e em desconhecimento das mesmas fontes
árabes, mais engrandece e reitera a investigação de Vieira da Silva.
Sobre o forum de Lisboa, cf. Jorge de Alarcão, Roman Portugal, vol.2,fasc. 2, p.124; Clementino
Amaro e José Luís de Matos, “Trabalhos Arqueológicos no Claustro da Sé de Lisboa - Notícia preliminar”, p.
219
18Leopoldo Torres Balbas, Ciudades Hispano-Musulmanas,Tomo II, p. 652
19 A.Borges Coelho, Quadros para uma Viagem a Portugal no Século XVI, pp. 45-46
20 “Al-Khawkha” significa “o postigo”. Esta transcrição de “al-Khawkha” por “Alfofa”, segue a regra
geral na língua portuguesa, em que os sons aspirados do árabe se transformam em f. Cf. Arnald Steiger, “
Contribución a la Fonética del Hispano-Árabe y de los Arabismos en el Ibero-Románico y el Siciliano”, pp.
Situar-se-ia onde as Escadinhas de S.Crispim entroncam na Rua da Costa do
Castelo21
, abrindo sobre a zona dos actuais Rossio e Praça da Figueira, espaço que era uma
vasta pradaria ou almargem, atravessada por dois arroios de água 22
.
Pela sua topografia, esta era a porta que daria acesso ao arrabalde moçárabe de
Alcamim, que se situava a noroeste da cidade, e a leste da alcáçova23
.
3) Bâb al-Bahr = Porta do Mar
Do lado do meridião abria-se a Porta do Mar. Estava tão próxima da água, que, quan-
do a maré subia, as ondas entravam por ela, e subiam pelas muralhas 24
. O “Arco das Portas
do Mar”, que ainda hoje se encontra abrindo para o Campo das Cebolas será o que resta dessa
Porta.
Vieira da Silva e David Lopes, hesitam, na localização desta porta, entre o Arco das
Portas do Mar e o Arco Escuro25
. Nós optamos pelo primeiro, pois encontra-se mais próximo
da borda d’água; ou seja, pela sua localização, seria a porta (a única referida pelos autores
218, 249, 269, 272.
Junto a esta Porta da Alfofa havia uma cisterna, que pelas dimensões apresentadas, “ 5,8m x 5,8m em
planta, e 5,4m de altura até ao fecho da abóbada”, medidas pessoalmente por Vieira da Silva, poderia
perfeitamente ser islâmica, pois pode-se-lhe atribuir como módulo-base o côvado andalusi de 0,558m. Ou seja,
uma estrutura cúbica (10 x 10 x 10 côvados) coberta por abóbada. É possível que os valores da planta tenham
sido obtidas no exterior, advindo a diferença de 5,58 ou 5,6m para 5,8m, da irregularidade das paredes e também
em consequência de sucessivos rebôcos, prática muito comum. Sobre o côvado andalusi, ver Joaquín Vallvé
Bermejo, “Notas de Metrologia Hispano-Árabe - El codo en la España Musulmana”, Al-Andalus, XLI (1976),
pp.339-354.
21 A. Vieira da Silva, ob.cit.,p. 9
15 Essa pradaria, que é a mesma para onde abre a Porta Grande, para além de usos agrícolas, serviria
também de pastagem aos rebanhos da cidade. Os dois arroios que corriam na pradaria sobre a qual dominava
esta porta, eram os cursos de água que cruzavam os talvegues que hoje são a Av. da Liberdade - Restauradores,
a oeste, e a Av. Almirante Reis-Martim Moniz a leste, e que se encontravam algures onde hoje é a Rua do Ouro.
Cf. Ibidem., planta topográfica de Lisboa..., escala 1:10.000
23 Ibid. A hipótese de Ruy de Azevedo (Cf. “Período de formação territorial”, História da Expansão
Portuguesa no Mundo, vol.I, pp.7-64) apresentada no mapa extratexto entre pp.56 e 57, e em que faz sair a porta
da Alfofa para a Rua da Costa do Castelo (como actualmente), parece condicionada pelo actual urbanismo: a
igreja de S. Cristóvão, antiga Igreja de Santa Maria de Alcamim, ficava mesmo no enfiamento da Porta da
Alfofa, em direcção a nordeste, o que apontaria para uma outra direcção viária diferente da actual, e que levaria
directamente a essa mesma igreja e arrabalde.
24Ibn al-Shabbât, ob.cit., p. 163; al-Himyarî, ob.cit., ed. p. 61, e trad.Levi-Provençal,ob.cit., p. 22;
Dhikr..., ed. p. 51 e trad. p. 57.
25 Vieira da Silva (ob.cit.,p.13) e David Lopes (PO, p.71; NATP, p.188). Este último seguindo o
anterior, o que é, no mínimo, curioso, pois David Lopes já dispunha de mais informação sobre esta porta. Aliás
a informação sobre esta porta era, para o grande arabista, exactamente a mesma de que dispomos hoje.
árabes) a ser molhada na enchente da maré 26
.
4) Bâb al-Hamma = Porta das Termas > de Alfama
Tinha uma porta oriental conhecida por Porta das Termas, ou Porta de Alfama27
. As
termas, já antes conhecidas e usadas pelos romanos 28
, situavam-se próximas da porta e do
mar, e tinham nascentes naturais de água quente e de água fria; a preia-mar encobria as
nascentes 29
. Situar-se-ia esta porta algures a meio da actual Rua de S.João da Praça 30
.
5) Bâb al Madîq = Porta do Estreito > do Furadoiro
Uma outra abertura, (“também oriental”, segundo os autores árabes), a do Estreito.
Estaria na realidade, não a leste mas a sudeste, embora situda num pequeno lanço da
muralha que inflete para leste. Este antigo acesso da Cerca Moura nos séculos XIV e XV
chamava-se “furadoiro” ou “Porta do Furadoiro”31
.
Estreito e furadoiro, têm semelhanças semânticas, relacionadas precisamente com
“passagem apertada”. O significado inicial ter-se-á assim mantido, embora expresso sob
forma diferente. Faria o acesso da actual Rua de S.João da Praça para a praia que tinha o
mesmo nome: “do Furadoiro”32
, e que ficava, com o Cais de Santarém, logo a leste 33
.
26
Cf. Vieira da Silva, ob.cit., planta 1:2.500.
27Em árabe “termas” é “al-hamma”, donde “alfama”. O fenómeno que deu al-hamma > alfama, é o
mesmo que em al-khawkha > alfofa, cf.supra n.19. Sobre Alfama, ver J.P. Machado, Dic.Onom.Etim.Língua
Portugª, vol. I, p. 91
28Clementino Amaro, “Arqueologia Islâmica em Lisboa...”, p.68
29Ibn al-Shabbât, ob.cit., p. 163; al-Himyarî, ob.cit., ed. p. 61, e trad.Levi-Provençal, ob.cit., p. 22;
Dhikr...,ed. p.51 e trad.p. 57. A informação dada por E.Lévi-Provençal, nas suas edição(p.16) e tradução (p.22)
de HM, de que as termas de Lisboa seriam “abobadadas”, provém de uma má leitura do próprio ou de quem
copiou o texto que lhe chegou às mãos. Para aquilatar deste lapso, basta ver a notícia de HM (ed. de I.‘Abbâs,
Beirute, 1980) que apresentamos no Quadro Sinóptico supra, e confrontá-la com as de SB e DK. Como já
dissémos atrás, apesar de Garcia Domingues ter traduzido SB, cuja notícia difere neste ponto, ninguém fez essa
confrontação. Parece que esta informação diferente escapou a todos, o tradutor incluído. E também a tradução
não teve muita divulgação, pois na PEA , relativamente às termas de Alfama, continuou a aparecer a mesma
versão de HM; igualmente na Tese de Ch.Picard. A informação das “termas abobadadas” ganhou raízes pois
ainda se constata na História de Portugal, dirigida pelo Prof. João Medina (1993): Helena Catarino, “A
Ocupação Islâmica”, vol.III, p.86; e na Nova História de Portugal, dir. A.H.Oliveira Marques e Joel Serrão
(1990-...): A.H.Oliveira Marques,“O «Portugal» Islâmico”, vol.II, p.232.
30A.Vieira da Silva, ob.cit., planta 1: 2 500. Próximo deste local existem ainda uns banhos públicos que
continuam a utilizar as águas quentes das mesmas nascentes naturais. Ibidem, p. 19
31Ibidem, pp.15-16
32Ibidem
6) Bâb al-Maqbara= Porta do Cemitério > do Sol
E uma última, também oriental, conhecida como Porta do Cemitério. Será a actual
Porta do Sol. Daria acesso a um ou a dois dos cemitérios islâmicos de Lisboa.
Um deles, a nordeste da cidade, situar-se-ia na encosta da Graça. Depois da conquista
cristã, entre 1147 e 1496, continuou a ser utilizado como cemitério da Comuna dos Mouros
de Lisboa 34
. O outro cemitério islâmico, ficaria situado mais para leste, nas encostas que hoje
levam a S. Vicente de Fora35
. Junto a este último ainda existia o cemitério judaico36
.
As Portas de Lisboa
- tentativa de reconstituição da cadeia de transmissão da notícia –
UD
. . . . . . . . . . . . . . . : . . . . . . . . . . . . . . .
: : :
BK : :
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. . . . . . . . . . . . . : :
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SB HM QZ DK
33
Ibidem, planta 1 : 10 000
34O cemitério islâmico na actual encosta da Graça: cf. Mª Filomena L. de Barros, “Mouraria (Sécs. XII
a XV)”, Dicionário da História de Lisboa, Lisboa, p.591; IDEM, A Comuna Muçulmana de Lisboa, p. 143;
Clementino Amaro, “Arqueologia Islâmica em Lisboa...”, p. 62; A.H. de Oliveira Marques, “A Persistência do
Elemento Muçulmano na História de Portugal após a «Reconquista». O Exemplo de Lisboa”, p.105; Luís Filipe
Oliveira e Mário Viana, “A Mouraria de Lisboa no Século XV”, p.192.
35O cemitério islâmico junto a S.Vicente de Fora: cf. Clementino Amaro, “Arqueologia Islâmica de
Lisboa...”, p. 62; Santiago Macias, “Espaços funerários no Gharb al-Andalus”, no prelo.
36Clementino Amaro, “Arqueologia Islâmica de Lisboa...”, p.62.
Reconstituição crítica da notícia
Nota prévia : o texto-base será o do DK, pois é a notícia mais extensa que depende
directamente de UD.
O DK terá a letra normal, os excertos de HM virão em negrito itálico; e as de SB em negrito
simples.
Notícia reconstituída
Tem seis portas, dispostas numa ordem curiosa .
(A) A Porta Grande, que é ocidental, e onde há arcadas sobrepostas assentes sobre
colunas de mármore, as quais estão cravadas em mármore branco. É a maior das suas
portas.
Outra porta, também a oeste, conhecida como Porta do Postigo, que se abre para
um extenso e verde almargem, onde, no meio do qual, dois arroios o cruzam até se
lançarem no mar.
A porta meridional é a chamada Porta do Mar , por onde entram as ondas, que
sobem pelas suas muralhas cerca de três pés (B)
.Uma delas, oriental, é conhecida como
Porta das Termas, estando as termas próximas dela e do mar. Nelas correm duas águas :
uma água quente e uma água fria (C)
; quando [o mar] enche, encobre-as, e quando baixa,
descobre-as.
Outra porta, também oriental, é a chamada Porta do Estreito.
E uma outra porta oriental, conhecida como Porta do Cemitério.
Notas à reconstituição textual
(A) “Entre elas,” - omitimos esta passagem, claramente de compromisso, entre
um enunciado de seis portas, e um descrição de apenas cinco, agora que podemos reconstituir
a notícia com as seis.
(B) braças vs. pés - HM e DK apresentam para a medida da muralha que se
molhava com a maré, braças, o que daría cerca de 6,5m de altura, o que nos parece muito. Esta
medida, que nos parece exagerada, provavelmente excederia a altura da própria porta. Assim,
corrigímo-la pela medida que SB apresenta, pés. Neste caso teríamos uma altura de cerca de
1m. O que parece mais consentâneo. Sobre medidas lineares islâmicas em al-Andalus, ver
Joaquin Vallvé Bermejo, “Notas de metrologia hispano-árabe - El codo en la España
musulmana”, Al-Andalus LXI (1976), pp. 339-354.
(C) “as quais estão perto do mar” - omite-se esta passagem porque se trata de
uma paráfrase, que restituímos no início da frase, de acordo ao texto de QZ, embora usando a
forma encontrada em HM, e também em SB. Introduzímos seguidamente [o mar], para
identificar o sujeito que ficaria em falta, com a omissão da frase anterior.
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