Violência doméstica e Juizados especiais criminais: análise a partir do feminismo e do garantismo

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Estudos Feministas, Florianópolis, 14(2): , maio-agosto/2006 409 Violência doméstica e Juizados Violência doméstica e Juizados Violência doméstica e Juizados Violência doméstica e Juizados Violência doméstica e Juizados Especiais Criminais: análise a par Especiais Criminais: análise a par Especiais Criminais: análise a par Especiais Criminais: análise a par Especiais Criminais: análise a partir tir tir tir tir do feminismo e do garantismo do feminismo e do garantismo do feminismo e do garantismo do feminismo e do garantismo do feminismo e do garantismo Introdução Introdução Introdução Introdução Introdução O presente ensaio pretende demonstrar, fundamentalmente, a possibilidade de diálogo entre dois discursos considerados marginais e periféricos ao universo dogmático-penal: os discursos feminista e garantista. A possibilidade do diálogo feminista–garantista desenvolve- se a partir do encontro entre campos interpretativos e práticas judiciais que, ao interagirem, podem atuar uns sobre os outros, construindo teoria de novo tipo e ação diferenciada na tutela dos direitos fundamentais de todos, ofendidos das violações interindividuais (vítimas) e das violências institucionais (réus). O olhar feminista, cuja centralidade no caso de violência doméstica é a prevalência da vítima, não fecha os olhos aos problemas processuais do autor da violência; a visão garantista, na qual o réu passa a ser o sujeito privilegiado de tutela em face da sua condição de débil Resumo: esumo: esumo: esumo: esumo: Este artigo pretende demonstrar a possibilidade de análise crítica da Lei 9.099/95 a partir de dois discursos considerados marginais no campo do direito penal: o feminismo jurídico e o garantismo penal. Considerando a vítima no momento do crime e o autor do fato durante o processo penal, esses discursos interagem, procurando construir um diálogo para demonstrar a ineficácia da lei em ambas as perspectivas. Palavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave: Juizados Especiais Criminais; violência doméstica; feminismo; feminismo jurídico; garantismo penal. Copyright 2006 by Revista Estudos Feministas. Carmen Hein de Campos University of Toronto Salo de Carvalho Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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O presente ensaio pretende demonstrar,fundamentalmente, a possibilidade de diálogo entre doisdiscursos considerados marginais e periféricos ao universodogmático-penal: os discursos feminista e garantista. Apossibilidade do diálogo feminista–garantista desenvolve-se a partir do encontro entre campos interpretativos epráticas judiciais que, ao interagirem, podem atuar unssobre os outros, construindo teoria de novo tipo e açãodiferenciada na tutela dos direitos fundamentais de todos,ofendidos das violações interindividuais (vítimas) e dasviolências institucionais (réus).

O olhar feminista, cuja centralidade no caso deviolência doméstica é a prevalência da vítima, não fechaos olhos aos problemas processuais do autor da violência;a visão garantista, na qual o réu passa a ser o sujeitoprivilegiado de tutela em face da sua condição de débil

RRRRResumo: esumo: esumo: esumo: esumo: Este artigo pretende demonstrar a possibilidade de análise crítica da Lei 9.099/95 apartir de dois discursos considerados marginais no campo do direito penal: o feminismo jurídicoe o garantismo penal. Considerando a vítima no momento do crime e o autor do fato durante oprocesso penal, esses discursos interagem, procurando construir um diálogo para demonstrara ineficácia da lei em ambas as perspectivas.PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: Juizados Especiais Criminais; violência doméstica; feminismo; feminismo jurídico;garantismo penal.

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na relação indivíduo-infrator versus Estado-acusador,entende igualmente como imprescindível encontrarmecanismos de proteção da pessoa que sofreu a violência.Note-se que, em ambos os casos, tecnicamente se está afalar de sujeitos passivos de violência, individual ouinstitucional, respectivamente. Todavia, se no momento docrime a vítima é o sujeito frágil, devendo ser incrementadasas formas de prevenção do delito, no momento processualdesaparece; por outro lado, se o réu é o pólo ativo darelação penal material, no processo localiza-se em posiçãopassiva, merecendo tutela.

Em realidade, de forma preliminar, pode-se dizer queo ponto de encontro do feminismo jurídico e do garantismopenal, nesse olhar transdisciplinar sobre o sistema de(in)justiça penal e a fenomenologia da violência, é a radicalpreocupação com o sujeito mais fraco, cujo processo devisibilidade fornecido pelos discursos contraculturaisapresenta como sendo a vítima no momento do delito(discurso feminista) e o réu na ocasião do processo (discursogarantista).

Se o ponto de encontro é a máxima proteção domais fraco (sujeito passivo débil), a perspectiva crítica dosdiscursos direciona-se à classificação legal de inúmerasformas de violência doméstica como “delito de menorpotencial ofensivo” e, em conseqüência dessa definição,sua forma de processualização (justiça consensual).

A interação discursiva renova ambas as perspectivase permite a construção de um locus de diálogo, no campopenal e processual penal, que é desafiante aos própriosdiscursos originários. Entende-se, portanto, que esse esforço,por si só, é salutar quando se trabalha com a perspectivade reduzir danos acarretados pelas violências públicas (doEstado contra o indivíduo) e privadas (entre indivíduos emconflito).

A discussão do tratamento judicial da violênciadoméstica no âmbito dos Juizados Especiais Criminais(JECs), instituídos pela Lei 9.099/95, é o ponto de partidadessa interação discursiva.

A partir do plano sociológico e da teoria político-econômica, pode-se afirmar que a criação da Lei 9.099/95 se insere no plano de reforma das políticas judiciais nocontexto das economias globalizadas, da hegemonia domercado, da desregulamentação das economiasnacionais, da diminuição do Estado Social e da ampliaçãodo controle social.1

Com a crise de financiamento do Estado Social, ocusto judicial para composição de conflitos passa a servariável de enorme importância na reconfiguração doEstado contemporâneo. Nesse quadro, o grau de eficiência

1 Nesse sentido, conferir GeraldoPRADO, 2003, p. 67-110.

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na resolutividade do conflito determina a adjetivaçãopositiva ou negativa dos sistemas de justiça locais.

O modelo da justiça penal consensual (justiçadialogal) exsurge, por tanto, como alternativa àdesburocratização da pesada máquina de persecuçãopenal, projetando sistema (penal) de resultados desde amáxima da “eficiência”. Em que pese a hibridez do textoconstitucional brasileiro de 1988, nota-se, no âmbito daadministração da Justiça, certa harmonia com essaperspectiva eficientista, sobretudo no que tange à disciplinados Juizados Especiais Cíveis e Criminais.

No que diz respeito à estrutura familiar, a Constituiçãoda República previu, em seu artigo 226, § 8º, que o Estadoasseguraria a assistência na pessoa de cada um dos quea integram, criando mecanismos para coibir a violênciano âmbito de suas relações. O legislador ordinário,procurando cumprir o comando constitucional origináriode restringir essa espécie de violência, inseriu parágrafono artigo 129 do Código Penal, criando a figura típica daviolência doméstica. Com a Lei 10.886/04, portanto, o delitode lesão corporal passa a ser autônomo se praticado “[...]contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge oucompanheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido,ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relaçõesdomésticas, de coabitação ou de hospitalidade”.

Todavia, a preocupação com a efetivação danorma constitucional, pela constatação empírica dapatologia que representa a violência doméstica no Brasilna atualidade, fomentou a apresentação do Projeto de Lei4.559/04,2 pela Secretaria Especial de Políticas para asMulheres (SPM). A exposição de nova estrutura paranormatização do tratamento legal da violência domésticarenovou a discussão sobre as formas de compor os casosde crimes praticados contra as mulheres.

É que a discussão sobre a violência doméstica,mesmo com a criação de tipos penais autônomos, comoaquele derivado da Lei 10.886/04, acabou sendodirecionada do plano do direito material ao processual, vistaa classificação dessa espécie de delito como “crime demenor potencial ofensivo”. Assim, mais do que a discussãosobre os requisitos e critérios do delito e a punibilidadepropriamente dita, os problemas jurídico-penais da violênciadoméstica dizem respeito à sua forma de instrumentalizaçãopelas agências penais (persecução penal).

Com o advento da Lei 9.099/95, que, aoregulamentar o artigo 98, inciso I, da Constituição, criou osJuizados Especiais Cíveis e Criminais, o debate da violênciadoméstica acabou centralizado no rito processual. Em faceda previsão como crimes de menor potencial ofensivo

2 O PL 4.559/04, que “criamecanismos para coibir aviolência contra a mulher, nostermos do § 8o do artigo 226 daConstituição Federal e dá outrasprovidências”, foi encaminhadoao Congresso Nacional em 25 denovembro de 2004 (DiaInternacional de Combate àViolência Contra a Mulher).

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aqueles cujas condutas tipificadas tenham pena máximanão superior a dois anos – interpretação ampliativa após oadvento da Lei 10.259/01 (Lei dos Juizados EspeciaisCriminais Federais) –, notou-se que, excetuando os delitosde homicídio, lesão corporal grave e abuso sexual, todasas demais condutas que caracterizam o cotidiano de lesõescontra a mulher (p. ex. lesões corporais leves, ameaças,crimes contra a honra), e que constituem o grande númerodos casos de violência doméstica, foram abarcadas pelonovo procedimento.

Dessa forma, esquecendo momentaneamente adiscussão sobre a necessidade de criminalização/descriminalização de novas condutas ou sobre as propostasde aumento/diminuição de penas, fundamental é voltar oolhar para o rito legalmente previsto para os crimes contraas mulheres, com o objetivo de minimizar ao máximo asviolências institucionais que o processo produz contra avítima (processo de revitimização) e contra o autor daconduta. O objetivo, portanto, passa a ser ainstrumentalização de discursos de redução de danos queproteja tanto a vítima quanto o réu das violências doprocesso penal.

O objetivo de construção de um programa deredução de danos aos casos de violência doméstica,delitos que representam significativa parte do cotidianoforense dos Juizados Especiais Criminais, justifica-se pelasinúmeras críticas que esse novo modelo de gestão doscasos penais vem recebendo, não apenas por parte domovimento de mulheres, em especial de juristas feministas,3

mas igualmente por parte de juristas críticos, particularmenteaqueles que se alinham à corrente teórica do garantismojurídico-penal.4

I Crítica jurídicoI Crítica jurídicoI Crítica jurídicoI Crítica jurídicoI Crítica jurídico-feminista ao tratamento-feminista ao tratamento-feminista ao tratamento-feminista ao tratamento-feminista ao tratamentojudicial da violência contra a mulherjudicial da violência contra a mulherjudicial da violência contra a mulherjudicial da violência contra a mulherjudicial da violência contra a mulher

Criada para julgar os crimes de menor potencialofensivo e tendo como paradigma o comportamentoindividual violento masculino (Caio contra Tício),5 a Lei 9.099/95 acabou por recepcionar não a ação violenta eesporádica de Tício contra Caio, mas a violência cotidiana,permanente e habitual de Caio contra Maria, de Tício contraJoana. Assim, os crimes de ameaças e de lesões corporaisque passaram a ser julgados pela “nova” Lei sãomajoritariamente cometidos contra as mulheres erespondem por cerca de 60% a 70% do volume processualdos Juizados.

Comparando-se o novo procedimento aoprocedimento pré-processual anterior, sobretudo o histórico

3 Nesse sentido, CAMPOS, 2001 e2003.4 Conferir os ensaios publicadosnas coletâneas de WUNDERLICH,2003, e CARVALHO e WUNDERLICH,2002 e 2004.5 Referência aos clássicosexemplos dos manuais de direitopenal que mencionam invariavel-mente comportamentos mascu-linos e, ainda assim, deslocadosda realidade pela representaçãode velhos personagens do direitoromano. Lênio Streck revela aproblemática utilizando-se doensino do direito como figura delinguagem. Segundo o pensador,há predominância, no Brasil, deum modo de produção jurídicaforjado para resolver apenasdisputas interindividuais, a partirde modelos idealizados poucoafeitos à nossa realidade, como,por exemplo, banalização dosconflitos pelos ‘Manuais’ de direitonas disputas entre ‘Caio’ e ‘Tício’.Dessa forma, para o autor, osjuristas não estariam capacitadospara resolver problemas de cunhotransindividual, dada a centrali-dade em questões individuais:“assim, se Caio [sic] invadir(ocupar) a propriedade de Tício[sic], ou Caio [sic] furtar um botijãode gás ou o automóvel de Tício[sic], é fácil para o operador doDireito resolver o problema. Noprimeiro caso, a resposta ésingela: é esbulho, passível deimediata reintegração de posse,mecanismo jurídico de pronta eeficaz atuação, absolutamenteeficiente para a proteção dosdireitos reais de garantia. Nosegundo caso, a respostaigualmente é singela: é furto(simples no caso de um botijão;qualificado, com uma pena quepode alcançar 08 anos dereclusão, se o automóvel de Tício[sic] for levado para outra unidadeda federação” (STRECK 1999, p.33). Chama-se atenção, porém,que essa banalização discursivarealizada pela concepção liberal-individualista-normativista nãoapenas impede a verificação deproblemas transindividuais, masigualmente obnubila respostasadequadas a problemasinterindividuais “não tradicionais”,como os de violência doméstica.

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e arcaico Inquérito Policial, poderia ser constatado queesse novo procedimento, no qual há determinação deremessa obrigatória do Termo Circunstanciado (TC) ao PoderJudiciário, permitiu a visibilidade (publicidade) da violênciacontra as mulheres,6 visto que anteriormente essas condutasencontravam-se nas cifras ocultas da criminalidade.7 Noentanto, esse ‘desvelamento’ da violência doméstica nãocontribuiu para minimizá-la ou para encontrar outras formasdiversas de tratamento preventivo ou repressivo.

Sem observar a predominância histórica doparadigma masculino que se infiltrou na nova Lei, a maioriados juristas, inclusive número expressivo da crítica jurídica,acabou por não considerar em suas análises taisimplicações. A mais importante deriva do fato de que, emse tratando de violência de gênero,8 o pólo passivo (darelação penal material) é composto majoritariamente demulheres. Assim, a exclusão da análise de gênero sobre aLei 9.099/95 impossibilitou compreender as diferenças daincidência do controle formal sobre as mulheres.

Se as críticas oriundas da criminologia e do discursopenal crítico constantemente consideram em suas análisesas relações de classe e de etnia sobre o exercício docontrole formal (homem pobre e geralmente negro emrelação ao homem branco e de posses), é praticamenteinexistente a perspectiva a partir das relações de gênero.No entanto, ao excluírem esse recorte de gênero, acabamreduzindo a complexidade da análise e sofrem o que sepoderia denominar “complexo de gênero” ou “complexode misoginia”.

A categoria “gênero”,9 ao maximizar a compreensãodo funcionamento do sistema penal, social e político,desvela a aparência de neutralidade e de imparcialidade(“assepsia jurídica”) e o tecnicismo dogmatizante com oqual se formulam os discursos jurídicos e cujo resultado éofuscar e legitimar a visão predominantemente masculina.10

Nota-se, pois, no que tange à fenomenologia da violênciatratada pela Lei 9.099/95, que não se trata de ofensascomuns, mas dessa forma específica de violência dirigidacontra as mulheres.11

Imprescindível, porém, antes da avaliação doproblema propriamente dito, apontar algumas questõespreliminares acerca da violência doméstica contra asmulheres.12 Entende-se por violência doméstica aquelascondutas ofensivas realizadas nas relações de afetividadeou conjugalidade hierarquizadas entre os sexos, cujoobjetivo é a submissão ou subjugação, impedindo ao outroo livre exercício da cidadania.13 A violência domésticacontra as mulheres é, portanto, uma forma de expressãoda violência de gênero.

6 Em Porto Alegre, no ano de1998, foram julgados mais de30.000 processos. Cada Juizadorealizou mais de 300 audiênciaspor mês e julgou, em média,5.500 casos por ano. ConformeCAMPOS, 2001.7 No procedimento anterior asDelegacias de Polícia tinham opoder informal de “arquivar osinquéritos”, procedimento hojede difícil ocorrência diante daobrigatoriedade de remessa danotícia do fato aos JuizadosEspeciais Criminais.8 Sobre o conceito de violênciade gênero como formaespecífica de violência dirigidacontra as mulheres, conferirHeleieth SAFFIOTI, 1994.

9 Nesse sentido, conferir JoanSCOTT, 1990.10 Vera Regina ANDRADE, 1997.11 A violência de gênero, queinclui a violência física, sexual epsicológica, está juridicamenteconceituada na ConvençãoInteramericana para Prevenir,Punir e Erradicar a Violênciacontra a Mulher, tambémconhecida como Convenção deBelém do Pará.12 Embora seja nítido que o termoviolência adquire caráter polis-sêmico e complexo, não sepretende, no artigo, reduzir essacomplexidade, mas delimitaruma espécie de violência.13 A Convenção de Belém do Parádefine, em seu artigo 1o, aviolência contra a mulher como“ação ou conduta baseada nogênero, que cause dano, morteou sofrimento físico, sexual oupsicológico à mulher, tanto noâmbito público como noprivado”.

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Em se tratando de violência de natureza específica,corolário natural é a discussão do conceito de delito demenor potencial ofensivo proposto pela Lei dos JuizadosEspeciais Criminais. A Lei considera como de menorpotencial ofensivo os crimes cuja pena máxima nãoultrapasse dois anos. Assim, a potencialidade da ofensa émedida pela quantidade da pena cominada. O critérioadotado pela Lei desrespeita a valoração normativa dobem jurídico tutelado e, se aplicada indistintamente aoscasos de violência conjugal, implica a negação da tutelajurídica aos direitos fundamentais das mulheres.

Por outro lado, esse critério é problemático porque aviolência doméstica, por se tratar de comportamentoreiterado e cotidiano, carrega consigo grau decomprometimento emocional (medo paralisante, p. ex.) queimpede as mulheres de romper a situação violenta e deevitar outros delitos simultaneamente cometidos (estupro,cárcere privado, entre outros). A noção de delito de menorpotencial ofensivo ignora, portanto, a escalada da violênciae seu verdadeiro potencial ofensivo. Inúmeros estudos têmdemonstrado que a maioria dos homicídios cometidoscontra as mulheres, os chamados crimes passionais,ocorrem imediatamente após a separação.14 Nesses casos,as histórias se repetem: inúmeras tentativas de separação,seguidas de agressões e ameaças, culminam em homicídio.

A categoria dogmática “crime de menor potencialofensivo” não incorpora, igualmente, o comprometimentoemocional e psicológico e os danos morais advindos derelação marcada pela habitualidade de violência,negando-se seu uso como mecanismo de poder e decontrole sobre as mulheres.15

No que diz respeito ao rito processual, orevigoramento do papel da vítima tem sido apregoadocomo a grande novidade da Lei, pois teria sido recuperadasua capacidade de fala. O encontro da vítima e do autordo fato, segundo a concepção legislativa, possibilitaria odiálogo sobre o problema e, conseqüentemente, amudança de atitudes por parte do agressor pela assunçãoda responsabilidade do seu comportamento. No entanto,esse resultado é impossibilitado pela natureza diversa daviolência doméstica.

A análise jurídico-feminista, com base na categoria“gênero”, permite compreender que essa afirmaçãodesconsidera as vítimas reais (de carne e osso). Semperceber sobre quais vítimas falam (mulheres submetidasà violência), os autores criam vítimas abstratas, quasevirtuais. Na linha metafísica da dogmática tradicional, nega-se a concretude do problema: mulheres que há anosconvivem com maridos/companheiros violentos.16

14 Nesse sentido, Mariza CORREA,1983; Suely ALMEIDA, 1998; eLuiza ELUF, 2002.

15 Nesse sentido, José VicenteTAVARES, 1995, p. 291.

16 Compreensíveis, portanto, asmuitas idas e vindas àsDelegacias de Polícia, ou aexistência de inúmeros registrosde ocorrência e desistências atéa decisão final de levar adianteuma denúncia de violência. Emgeral as mulheres convivemmuitos anos com maridos oucompanheiros violentos até sesentirem seguras para o registroda ocorrência ou para enfrentarum processo criminal.

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Ressalte-se que o ingresso do conflito conjugal noPoder Judiciário tem significado simbólico importante paraa mulher agredida. Não apenas pela visibilidade que dá àviolência, mas pela informação ao Poder Público de que amulher agredida, sozinha, não conseguirá pôr termo àagressão. A reafirmação da violência na presença do juiz,terceiro na cena processual, significa o conflito de sua realdimensão de gravidade, realizando deslocamentosimbólico capaz de inverter, momentaneamente, aassimetria na relação conjugal.17 A interferência de atoresexternos ao conflito (juiz, Ministério Público, advogados)representa importante variável para a vítima,(re)capacitando-a em condições e potencialidades de fala.No momento da audiência, a obrigatoriedade da presençado agressor diante do juiz, do Ministério Público e da vítimarestabelece o equilíbrio rompido com a violência. Noentanto, as soluções encontradas pela Lei, através dosinstitutos de composição civil e transação penal,obstaculizam essa expectativa.

A composição civil igualmente tem sido vista comomomento privilegiado para a vítima. No entanto, pressupõea existência de dois litigantes em igualdade de condições.Ocorre que invariavelmente, nos casos de violênciadoméstica, os dois atores apresentam-se em disparidade.A violência atua como mecanismo de submissão dadiversidade, impedindo o livre exercício da vontade. Asrelações assimétricas de poder funcionam comoimpeditivos às relações de igualdade, pressuposto dacomposição civil. Lembre-se que não se está a falar dapossibilidade da composição civil entre Tício e Caio, emdisputa eventual. Fala-se de Tício que convive há muitosanos com Joana e que a ameaça ou a agride diariamente.Se, por um lado, a convivência durante muitos anos revelao padrão da relação (violenta),18 a busca da soluçãojudicial revela a tentativa de ver restabelecido o equilíbriorompido.19 Por isso, nessa situação não há possibilidade derelações isonômicas. Por outro lado, qualquer proposta decomposição necessita da plena aceitação por parte doautor do fato e, em caso de recusa, a vítima fica “afônica”,perdendo novamente sua capacidade de fala. Odesconhecimento do significado da violência contra asmulheres pela tradição jurídica (operadores e teóricos dodireito) tem permitido igualar relações assimétricas depoder.

Outrossim, a transação penal igualmente exclui avítima, visto que não há momento opinativo sobre ascondições aplicadas ao autor do fato – p. ex. aconveniência da medida no caso concreto. As condiçõesgeralmente impostas não cessam a violência, muito menos

17 Nesse sentido, conferir ElaineBRANDÃO, 1998.

18 Nesse sentido, conferir BárbaraSOARES, 1996; e Miriam GROSSI,1998.19 BRANDÃO, 1998.

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previnem novos conflitos, porque não são acompanhadasde nenhuma medida protetiva à vítima.

Assim, a forma de aplicação dos novos institutosacaba renovando a disputa conjugal em desfavor à vítima,devolvendo o poder ao autor de violência, pois, em últimaanálise, é o sujeito que tem a capacidade de aceitar ostermos da proposta. Reprivatiza-se, portanto, conflito queveio ao Judiciário buscar resolução do Poder Público.

II Crítica garantista ao tratamento judicialII Crítica garantista ao tratamento judicialII Crítica garantista ao tratamento judicialII Crítica garantista ao tratamento judicialII Crítica garantista ao tratamento judicialdos crimes de “menor potencial ofensivo”dos crimes de “menor potencial ofensivo”dos crimes de “menor potencial ofensivo”dos crimes de “menor potencial ofensivo”dos crimes de “menor potencial ofensivo”e o seu reflexo na violência domésticae o seu reflexo na violência domésticae o seu reflexo na violência domésticae o seu reflexo na violência domésticae o seu reflexo na violência doméstica

Os Juizados Especiais Criminais solidificaram no Brasila tendência de sumarização dos procedimentos, isto é,simplificar e reduzir os procedimentos de naturezaprocessual, a partir dos postulados de se auferir ao processopenal celeridade e eficiência. O resultado, como se pôdeperceber nestes dez anos da Lei 9.099/95, foi aaproximação cada vez maior do processo penal aossistemas de composição de litígios administrativos com asupressão de alguns institutos penais como, por exemplo,o contraditório.

O artigo 98, I, da Constituição da República,determinou que os Estados e a União deveriam criarJuizados Especiais com competência para processar ejulgar infrações penais de menor potencial ofensivo. AConstituição não apenas criou nova modalidade de delitona legislação penal brasileira (crimes de menor potencialofensivo), como também impôs a readequação processualpara o seu ajustamento, projetando sistema moldado pelorito sumaríssimo e baseado nos princípios de oralidade,simplicidade, informalidade, economia processual eceleridade, objetivando a conciliação ou a transação (art.2o, Lei 9.099/95).20

Como demonstrado anteriormente, o erro inicial doartesão da Lei 9.099/95 foi vincular a adjetivação do delitode menor potencial ofensivo à quantidade de penacominada. Essa opção seria viável se o sistema brasileiro depenas respeitasse os postulados da proporcionalidade e darazoabilidade, conferindo ao crime pena conforme agravidade da lesão. No entanto, após a edição do CódigoPenal em 1940 – cuja Parte Especial que nomina os delitos edetermina as penas continua em vigor –, série infindável deLeis Penais Especiais foram criadas, gerando sistema penalextravagante que acabou por consolidar a desestabilizaçãoda proporcionalidade das sanções penais. Dessa maneira,ao não ser utilizado o critério do bem jurídico (tipicidadematerial) para definir quais seriam os crimes de menor

20 Sobre a incompatibilidade dosistema de justiça penal brasileirocom os mecanismos da conci-liação e transação, conferirCARVALHO, 2003, e, sobretudo,PRADO, 2003, p. 111-220.

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potencial ofensivo, mas a pena aplicada, foram criadassituações absolutamente paradoxais, como é o caso deadjetivar a maioria dos atos de violência doméstica como“crimes menores”. Lembre-se, por exemplo, que, no casoda definição dos crimes hediondos, o redator da Lei 8.072/90 optou por critério diferenciado, enumerandoexplicitamente, a partir da gravidade da lesão ou dareprovabilidade do fato, os tipos penais que conformariamessa classe delitiva (art. 1o, Lei 8.072/90). O respeito ao critériodo bem jurídico, por si só, excluiria a violência domésticadessa adjetivação que, no caso específico de crimes contrasas mulheres, acaba por tornar-se, do ponto de vista político-criminal, absolutamente pejorativa.

Definidos os crimes submetidos à competência dosJuizados, importante fixar a avaliação no ritmo processuale nos efeitos delineados pela Lei.

Com o objetivo de celeridade e desburocratizaçãona busca da composição civil e da transação penal, a Lei9.099/95 rompeu com a estrutura formal mínima dosprocedimentos penais, mesmo aqueles previstos aos ritossumários, tais como obtenção de prova. A opção pelasimplicidade procedimental acabou por gerar totaldescontrole no que tange à regularidade dos atos,expondo, em inúmeros casos, os autores dos fatos asituações constrangedoras, vista a ausência demecanismos de controle típicos dos sistemas processuaisde garantias.

A ausência de investigação preliminar que possaauferir suporte probatório mínimo, aliada à obrigatoriedadede encaminhamento do termo circunstanciado aosJuizados Especiais, impede a filtragem de demandastemerárias. Essa ausência de instrumentos mínimos decontrole gera, no cotidiano forense, situaçõesabsolutamente vexatórias, pois são admitidas realizaçõesde audiências conciliatórias em casos de verdadeirasfraudes processuais, sejam decorrentes da inexistência dejusta causa (prova mínima), de condutas nitidamenteatípicas ou sem elementos necessários para configuraraparência de tipicidade.

Outrossim, a inexistência de filtros não apenasimpede barrar que pleitos temerários sejam levados aoJudiciário, gerando custos pessoais e financeiros aosimputados, como também dificulta enormemente oarquivamento dessas demandas, submetendo aquele quese encontra no pólo passivo processual (autor do fato) aoesforço dos atores judicial e ministerial à composição civilou transação penal.21 Na realidade trágica dos JuizadosEspeciais Criminais, em face da idéia generalizada de queé fundamental se chegar ao acordo, seja para diminuir o

21 Nesse sentido, conferirWUNDERLICH, 2004.

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volume dos processos, seja pela impaciência dos agentespúblicos em verificar as causas que deflagraram o conflito,acaba por imperar o princípio do in dubio pro transaçãopenal, na feliz expressão de Bogo Chies.22

Por outro lado, em estando o autor do fato de acordocom a transação penal (aplicação imediata da pena) –em decorrência de opção pessoal (voluntariedade), depressões exercidas em audiência (coação à transação)ou como forma de evitar o custo emocional e econômicodo processo –, não invariavelmente estará diante deproposta pouco individualizada.

O instituto da transação penal, pelos efeitos queproduz, seja no caso de cumprimento, seja dedescumprimento, traz consigo inerentes limitações aosdireitos fundamentais, dados os deveres decontraprestação assumidos. Assim, fundamental seria adefinição das condições razoáveis para o pleno exercíciodo contraditório, ou seja, como ensina Geraldo Prado, quese dispusesse, de fato, de um verdadeiro procedimentojurisdicional conforme a noção de devido processo legal,23

permitindo ao autor do fato dar sua versão, inclusivenegando os fatos imputados. Imprescindível, nesse quadro,imputação de fato típico (crime), singularizado na peçaacusatória (denúncia), como pressuposto da transação(aplicação da pena). Incabível, portanto, a imposição, porparte do Ministério Público, de condições transacionaispouco afeitas às condições pessoais do imputado. Aformulação da proposta, como ocorre nos casos desuspensão condicional do processo (de conhecimento ede execução) e nas decisões condenatórias, deve estaramparada pela análise das circunstâncias objetivas esubjetivas do caso, isto é, de dados que digam respeito aoautor do fato e ao fato praticado pelo autor. Em se tratandode decisão com efeitos limitativos aos direitos fundamentais,necessariamente deve estar balizada pelo princípioconstitucional da individualização (art. 5º, XLVI).

Não obstante o fundamental respeito à principiologiado devido processo no ato de formulação e nos critériosorientadores à proposta de transação a ser apresentada,importante notar que o conteúdo de deliberação não éamplo, mas restrito pelo princípio nulla poena sine iudicio(nula pena sem processo). Assim, tem-se como absolutamenteinadmissível a idéia corrente que perfaz o cotidiano forensede que na transação penal poderiam ser acordadas restrições(de direitos individuais) análogas às previstas como pena nalegislação criminal, notadamente aquelas similares às sançõesrestritivas de direitos (prestação pecuniária, perda de bens,prestação de serviço à comunidade, interdição temporáriade direitos e limitação de final de semana – art. 44, CP) ou

22 Luiz Antônio Bogo CHIES, 2003,p. 88-91.

23 PRADO, 2003, p. 222.

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pecuniárias (multa). Do contrário, converter-se-ia a transaçãopenal em pena sem processo, situação inadmissível em facedas normas constitucionais que devem reger as práticas dasagências penais.

Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais

Nota-se, desde o marco feminista, que a Lei 9.099/95 está em completa dissonância com a proteção dosdireitos humanos das mulheres, em especial aquelesestabelecidos na Convenção de Belém do Pará,24

notadamente pela ausência de medidas que garantamsua integridade física e emocional (artigo VII, “d”,Convenção de Belém do Pará).25

A quantidade ímpar de conflitos domésticos levadosaos Juizados Especiais, conjugada ao despreparo dosmagistrados ou conciliadores, tem demonstrado que aresposta do Poder Público opera inversamente ao discursooficial de proteção às vítimas. Ao ser retirada sua capaci-dade de fala, o processo torna-se incapaz de lidar com aviolência de gênero, negando proteção aos direitosfundamentais.

A Lei 9.099/95, ao definir os delitos em razão da penacominada e não do bem jurídico tutelado, não com-preendeu a natureza diferenciada da violência doméstica.Essa (in)compreensão jurídica tem como conseqüência abanalização da violência de gênero, tanto peloprocedimento inadequado como pelas condições impostasna composição civil e na transação penal. As possibilidadesde escuta da vítima mostraram-se falaciosas devido àdiminuição de sua intervenção na discussão sobre os termosda composição civil e, sobretudo, da transação penal.

No entanto, se a Lei dos Juizados opera em sentidooposto ao das vítimas, pode-se dizer que atua, igualmente,em relação aos direitos dos réus, vistos a impossibilidade dearquivamento de demandas temerárias isentas de suporteprobatório mínimo ou atípicas (não configuradas comocrime); o constrangimento e a ausência de critérios paradeterminação da composição civil e da transação penal;e a fixação de requisitos análogos às penas previstas noCódigo Penal, tais como configurando pena sem processo.

Interrogante inafastável após a exposição dascríticas a partir das perspectivas feminista e garantista resta:se os Juizados Especiais Criminais não satisfazem a vítimae muito menos o autor do fato, qual seria sua finalidade?Para quem servem?

Após o estudo teórico e empírico dos dez anos devigência da Lei, percebe-se que os conflitos chegam aoJudiciário quando inexiste, entre os envolvidos, capacidade

24 “Art. III – Toda mulher tem direitoa uma vida livre de violência,tanto no âmbito público como noprivado.Art. IV – Toda mulher tem direitoao reconhecimento, gozo,exercício e proteção de todos osdireitos humanos e às liberdadesconsagradas pelos instrumentosregionais e internacionais sobredireitos humanos. Esses direitoscompreendem, entre outros: a) odireito a que se respeite sua vida;b) o direito a que se respeite suaintegridade física, psíquica emoral.”25 A alínea “d” do artigo VIIestabelece como dever doEstado: “adotar medidas jurídicasque exijam do agressor abster-sede fustigar, perseguir, intimidar,ameaçar, machucar ou pôr emperigo a vida da mulher dequalquer forma que atentecontra sua integridade ouprejudique sua propriedade”.

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de diálogo. Em se tratando de pessoas de “carne e osso”(humanas, demasiado humanas), o litígio judicializadorepresenta a patologia da relação afetiva. A questão éque esse quadro, por si só, revela a dificuldade deconciliação entre as partes e da intermediação do diálogo.

No entanto, se adentrar nesse triste palco ainterferência inábil do ator incumbido de tentar restabeleceros laços (magistrado), o desenrolar do espetáculo causaráprofundo mal-estar em todos os envolvidos, projetando finalmelancólico.

Os operadores jurídicos em geral, mas sobretudo osjuízes, padecem de profunda falta de capacidade deescuta. A formação decisionista dos julgadores, que poucoapreendem (d)as angústias das partes envolvidas,incapacita qualquer possibilidade de mediação razoávelde conflitos, potencializando-os.

Nesse sentido, a resposta à indagação “para quemservem os Juizados Especiais Criminais?” pode serencontrada se se olhar o encanto dos operadores do direitocom seus espelhos, visto que parecem ser eles os únicossatisfeitos com o novo modelo.

Talvez o “sucesso” divulgado dos Juizados EspeciaisCriminais entre os juristas, em que pese o fracasso emrelação às expectativas das pessoas às quais deveriamservir, seja o papel de nutriente que desempenha nonarcisismo de pessoas que se julgam aptas e preparadaspara o papel de conciliadores quando nem sequerconseguiram romper com a cultura inquisitiva (decisionista)que as informa.

Nesse triste quadro, o conflito é (re)privatizado,ocorrendo inversão operacional: novas violências conjugaisnão são prevenidas e novas violências públicas (doprocesso) são acrescentadas ao desgastadorelacionamento.

RRRRReferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficaseferências bibliográficas

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[Recebido em outubro de 2005 e aceito para publicação em abril de 2006]

Domestic Violence and Special Criminal CourDomestic Violence and Special Criminal CourDomestic Violence and Special Criminal CourDomestic Violence and Special Criminal CourDomestic Violence and Special Criminal Courts: Analysis from the Lts: Analysis from the Lts: Analysis from the Lts: Analysis from the Lts: Analysis from the Legal Fegal Fegal Fegal Fegal Feminism and Peminism and Peminism and Peminism and Peminism and PenalenalenalenalenalCriticism PCriticism PCriticism PCriticism PCriticism PerspectiveserspectiveserspectiveserspectiveserspectivesAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This article aims at demonstrating the possibility of criticism about the criminal law (Lei9.099/95) from two perspectives seen as marginal within penal law studies: the legal feminismand the penal criticism (garantismo). Taking into account the victim’s condition and thedefendant’s rights during the criminal proceedings, such discourses are linked to show theinefficacy of that law towards both the victim and the defendant.Key WKey WKey WKey WKey Wordsordsordsordsords: Special Criminal Courts; Domestic Violence; Feminism; Legal Feminism; Penal Criticism.