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11 Upwelling, efeito de reservatório, radiocarbono: construção de cronologias absolutas e inferências paleoambientais Upwelling, reservoir effect, radiocarbon: setting up absolute chronologies and palaeoenvironmental inferences António M. Monge Soares * Resumo: As datas de radiocarbono obtidas a partir de amostras de biosfera marinha não têm sido tão utilizadas como as determinadas a partir de amostras da biosfera terrestre para a construção de cronologias absolutas, dado que factores oceanográficos podem levar a interpretações ou usos incorrectos dessas datas. Contudo, os moluscos marinhos foram utilizados abundantemente na dieta pré-histórica, designadamente a partir do início do Holocénico, e as suas conchas encontram-se em grande quantidade em muitos sítios arqueológicos. É, por conseguinte, necessária uma investigação prévia, no que se refere às condições oceanográficas e ao efeito de reservatório marinho para uma determinada região oceanográfica, se se quiser utilizar datas de amostras da biosfera marinha dessa região na construção de cronologias absolutas rigorosas e fiáveis. Investigações desse tipo têm já sido levadas a cabo para algumas regiões, nomeadamente para a Ibéria Atlântica. Foram, assim, determinados valores do parâmetro ΔR – denominado efeito de reservatório marinho ou oceânico para o radiocarbono – para as águas que banham as costas atlânticas da Península Ibérica, o que permite a construção de cronologias absolutas para estas regiões fazendo uso de datas de radiocarbono marinhas. Além disso, a investigação realizada permite algumas inferências paleoambientais: i) durante o Holocénico têm ocorrido importantes variações nos valores do efeito de reservatório marinho para as costas atlânticas da Península Ibérica; ii) essas variações deverão estar correlacionadas com modificações das condições oceanográficas regionais, designadamente com modificações da intensidade do upwelling costeiro; iii) essas variações sugerem algum tipo de variabilidade dos factores climáticos que estão por detrás do upwelling existente nas costas atlânticas da Península Ibérica. Palavras-chave: Datação pelo radiocarbono; Efeito de reservatório marinho; Upwelling; Costas atlânticas da Península Ibérica; Holocénico. Abstract: Radiocarbon dates on marine shells have not been used as extensively as charcoal or bone dates for the setting up of absolute chronologies because interpreting these dates is influenced by oceanographic factors. Nevertheless marine shellfish was used widely at least during the Holocene and their shells are abundant and usually well preserved in archaeological deposits. Consequently a previous research concerning the oceanographic conditions and the marine radiocarbon reservoir effect of a particular coastal area is needed in order to set up reliable chronologies for that region when using marine radiocarbon dates. is kind of research has been done for some regions, namely for the Atlantic Iberia. Values of regional marine radiocarbon reservoir effect – ΔR – of coastal waters off Atlantic Iberia have been determined allowing to set up accurate absolute chronologies using marine samples. Some primary observations based on the obtained data can also be made: i) during the Holocene important changes have occurred in the ocean reservoir effect off the Iberian Atlantic coast; ii) these changes may be correlated with regional oceanographic changes, namely with changes in the strength of coastal upwelling; and iii) these changes suggest some sort of variability of the climatic factors forcing coastal upwelling off Atlantic Iberia. Key-words: Radiocarbon; marine radiocarbon reservoir effect; Upwelling; Iberian Atlantic coast; Holocene. * Laboratório de Datação pelo Radiocarbono, Grupo de Química Analítica e Ambiental, Instituto Tecnológico e Nuclear, Estrada Nacional 10, 2686-953 Sacavém, Portugal. E-mail: [email protected].

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Upwelling, efeito de reservatório, radiocarbono: construção de cronologias absolutas e inferências paleoambientais

Upwelling, efeito de reservatório, radiocarbono: construção de cronologias absolutas e

inferências paleoambientais

Upwelling, reservoir effect, radiocarbon: setting up absolute chronologies and palaeoenvironmental inferences

António M. Monge Soares*

Resumo: As datas de radiocarbono obtidas a partir de amostras de biosfera marinha não têm sido tão utilizadas como as determinadas a partir de amostras da biosfera terrestre para a construção de cronologias absolutas, dado que factores oceanográficos podem levar a interpretações ou usos incorrectos dessas datas. Contudo, os moluscos marinhos foram utilizados abundantemente na dieta pré-histórica, designadamente a partir do início do Holocénico, e as suas conchas encontram-se em grande quantidade em muitos sítios arqueológicos. É, por conseguinte, necessária uma investigação prévia, no que se refere às condições oceanográficas e ao efeito de reservatório marinho para uma determinada região oceanográfica, se se quiser utilizar datas de amostras da biosfera marinha dessa região na construção de cronologias absolutas rigorosas e fiáveis. Investigações desse tipo têm já sido levadas a cabo para algumas regiões, nomeadamente para a Ibéria Atlântica. Foram, assim, determinados valores do parâmetro ΔR – denominado efeito de reservatório marinho ou oceânico para o radiocarbono – para as águas que banham as costas atlânticas da Península Ibérica, o que permite a construção de cronologias absolutas para estas regiões fazendo uso de datas de radiocarbono marinhas. Além disso, a investigação realizada permite algumas inferências paleoambientais: i) durante o Holocénico têm ocorrido importantes variações nos valores do efeito de reservatório marinho para as costas atlânticas da Península Ibérica; ii) essas variações deverão estar correlacionadas com modificações das condições oceanográficas regionais, designadamente com modificações da intensidade do upwelling costeiro; iii) essas variações sugerem algum tipo de variabilidade dos factores climáticos que estão por detrás do upwelling existente nas costas atlânticas da Península Ibérica.

Palavras-chave: Datação pelo radiocarbono; Efeito de reservatório marinho; Upwelling; Costas atlânticas da Península Ibérica; Holocénico.

Abstract: Radiocarbon dates on marine shells have not been used as extensively as charcoal or bone dates for the setting up of absolute chronologies because interpreting these dates is influenced by oceanographic factors. Nevertheless marine shellfish was used widely at least during the Holocene and their shells are abundant and usually well preserved in archaeological deposits. Consequently a previous research concerning the oceanographic conditions and the marine radiocarbon reservoir effect of a particular coastal area is needed in order to set up reliable chronologies for that region when using marine radiocarbon dates. This kind of research has been done for some regions, namely for the Atlantic Iberia. Values of regional marine radiocarbon reservoir effect – ΔR – of coastal waters off Atlantic Iberia have been determined allowing to set up accurate absolute chronologies using marine samples. Some primary observations based on the obtained data can also be made: i) during the Holocene important changes have occurred in the ocean reservoir effect off the Iberian Atlantic coast; ii) these changes may be correlated with regional oceanographic changes, namely with changes in the strength of coastal upwelling; and iii) these changes suggest some sort of variability of the climatic factors forcing coastal upwelling off Atlantic Iberia.

Key-words: Radiocarbon; marine radiocarbon reservoir effect; Upwelling; Iberian Atlantic coast; Holocene.

* Laboratório de Datação pelo Radiocarbono, Grupo de Química Analítica e Ambiental, Instituto Tecnológico e Nuclear, Estrada Nacional 10, 2686-953 Sacavém, Portugal. E-mail: [email protected].

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António M. Monge Soares

1. Introdução

Como é bem conhecido, o reservatório geoquímico constituído pelo oceano é deficiente em radiocarbono (14C) comparado com o reservatório geoquímico atmos-fera. Dado que o tempo de residência do carbono no oceano profundo é da ordem de um milhar de anos (Sigman & Boyle 2000), uma fracção apreciável do con-junto de átomos de 14C nele existente tem tempo de decair (o período do 14C é de 5730 anos), enquanto a água oceânica não está em contacto com a atmosfera. O oceano profundo é, por conseguinte, deficiente em 14C se comparado com a atmosfera. De igual modo, a água oceânica superficial – a camada superior ou cama-da de mistura, com cerca de 75 m de espessura – tem uma actividade específica de 14C menor do que a da atmosfera mas maior do que a do oceano profundo. Devido a essa deficiência em 14C existe uma idade de reservatório para o oceano, isto é, existe uma diferença de idades entre amostras contemporâneas de origem marinha e terrestre. Segundo M. Stuiver et al. (1986), esta idade 14C de reservatório – R(t) – pode ser definida como a diferença entre datas convencionais de 14C de um par de amostras contemporâneas de organismosamostras contemporâneas de organismos que viveram em diferentes reservatórios de carbono (atmosfera e oceano). Por outro lado M. Stuiver et al. (1986) modelaram a resposta do oceano global às va-riações temporais da concentração atmosférica de 14C. Dessa modelação obtiveram-se duas curvas de calibra-ção de datas de radiocarbono de amostras de origem marinha, uma referente ao oceano profundo e outra às águas marinhas superficiais (camada de mistura). Pode existir uma diferença de teor em 14C entre a água do mar superficial de uma determinada região e a água do mar superficial do oceano considerado como um todo. Essa diferença é devida a diversas causas e anomalias, designadamente ao upwelling (afloramento) de águas profundas, o qual é um fenómeno regional e cuja in-tensidade varia de região para região, como se verá mais adiante. Um parâmetro, ΔR, denominado efeito de reservatório marinho (ou oceânico) para o 14C, é de-finido como a diferença entre a idade de reservatório da camada de mistura de uma região oceânica especí-fica e a idade de reservatório da camada de mistura do oceano considerado como um todo, no ano de 1950 d.C. (Stuiver et al. 1986). Os valores de ΔR são, muitas vezes, determinados para uma região (costeira) especí-fica através da datação pelo 14C de pares de amostras da mesma idade, mas provenientes de reservatórios geo-químicos diferentes (biosfera terrestre e biosfera mari-nha) e da conversão da idade 14C da amostra da biosfera terrestre numa idade marinha obtida através do mode-

lo atrás referido (idade marinha modelada); esta idade modelada é, então, subtraída da idade 14C da amostra marinha do par obtendo-se, desse modo, o valor de ΔR (Stuiver & Braziunas 1993). Então R(t), idade de reservatório, e ΔR, efeito de reservatório marinho, são entidades diferentes que não podem ser confundidas. Enquanto R(t) pode variar com o tempo, uma vez que o teor em 14C da atmosfera não é constante, ΔR será uma constante de acordo com o modelo em causa. No entanto, em regiões com um upwelling activo, a inten-sidade desse upwelling (a “wind-driven process”) pode variar no decurso do tempo, variabilidade essa que não é correlacionável com qualquer variabilidade das condi-ções oceanográficas do oceano como um todo, e como a intensidade da deficiência em 14C da camada oceâ-nica de mistura depende da actividade do upwelling, é previsível que os valores de ΔR também possam variar no decurso do tempo (Stuiver & Braziunas 1993: 155; Kennett et al. 1997; Ingram 1998; Ascough et al. 2005). Além disso, enquanto R(t), tomando em consideração a sua definição enunciada atrás, toma sempre valores positivos, ΔR pode ser positivo, nulo ou negativo (veja--se, por exemplo, Stuiver & Braziunas 1993: Fig. 16; Stuiver et al. 2009). Valores positivos elevados de ΔR estão geralmente associados a condições oceanográficas caracterizadas por um upwelling intenso, ao passo que valores negativos se associam geralmente a ausência de upwelling e a alguma estratificação da coluna de água.

Para o estabelecimento de cronologias absolutas rigorosas para uma determinada região fazendo uso da datação pelo 14C de amostras de conchas marinhas é necessário a determinação do valor ou valores de ΔR para essa região, bem como o conhecimento das con-dições oceanográficas aí reinantes e da sua eventual variabilidade ao longo do tempo. O valor ou valores de ΔR determinados serão usados com a curva de cali-bração Marine09 (Reimer et al. 2009) para a conversão em anos de calendário solar das datas convencionais de radiocarbono obtidas a partir de amostras marinhas.

2. As condições oceanográficas na Ibéria Atlântica

Ao longo das costas ocidentais da Europa o upwelling costeiro apresenta, actualmente, uma actividade signi-ficativa apenas na costa atlântica da Península Ibérica, designadamente entre o Cabo Finisterra e o Cabo de S. Vicente e, embora com menor intensidade, ao longo da costa do barlavento algarvio, entre o Cabo de S. Vicente e o Cabo de Santa Maria (Faro).

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2.1. A costa ocidental

A costa ocidental ibérica estende-se ao longo do meridiano 9° W entre 37° N e 43° 30’ N. O regime de ventos está fortemente ligado à migração latitudinal da frente subtropical e à dinâmica do anticiclone dos Açores. Assim, a circulação atmosférica associada ao centro de altas pressões do anticiclone corresponde, na costa ocidental, a ventos de oeste no Inverno e a ventos de maior intensidade do norte e do noroeste no Verão. Estes ventos do quadrante norte induzem o transporte para o largo das águas costeiras (transporte de Ekman) ao longo da costa ocidental, isto é, estes ventos são cla-ramente favoráveis ao fenómeno do upwelling costeiro de Junho a Setembro. Diversos proxies deste fenómeno têm sido utilizados para o seu estudo, designadamente a temperatura da água superficial (SST) e a salinidade (Fiúza 1982, 1983; Fiúza et al. 1982; Relvas & Barton 2000; Sánchez & Relvas 2003; Peliz et al. 2002) ou taxas de acumulação de diatomáceas, de foraminíferos plan-ctónicos e isótopos de C e O (Abrantes 2000; Abrantes et al. 2001). Por exemplo, os dados de SST permitem o cál-culo das anomalias térmicas das águas ao longo da costa em relação ao que se passa no Atlântico Norte central, onde as isotérmicas apresentam uma distribuição zonal consistente (Fiúza 1982, 1983; Fiúza et al. 1982). Além disso, as termografias por detecção remota das águas superficiais mostram que, pouco depois do início de um ciclo de ventos do quadrante norte, o upwelling surge a sul de todos os cabos na costa ocidental ibérica e é for-temente influenciado pela batimetria da plataforma con-tinental. Outros factores tais como as descargas fluviais e as circulações aerológicas locais originam um padrão complexo do upwelling na costa ocidental – por exemplo, no Verão, existe um forte gradiente térmico entre a cos-ta na região de Sines (38° N) e o interior continental, o que provoca o aparecimento de fortes brisas marítimas, que reforçam o regime de Nortada e, por conseguinte, a intensidade do upwelling aí existente. Em termos gerais, pode afirmar-se que, na costa ocidental portuguesa, o fenómeno de upwelling é mais pronunciado a sul do Cabo Carvoeiro (39° 20’ N), com uma intensidade máxima na região costeira de Sines (Ferreira 1984).

2.1.1. A costa ocidental galega

A Galiza encontra-se localizada no limite norte da área de upwelling existente na orla oriental do Atlântico Norte. O Cabo Finisterra é o ponto mais a noroeste da região da Galiza. É aqui que a costa ocidental galega com uma orientação sul-norte, no prolongamento da costa ocidental portuguesa, muda abruptamente para uma direcção sudoeste-nordeste. A costa ocidental ga-

lega estende-se entre os 42° e os 43° N, sendo caracte-rizada por uma topografia bastante regular e uma linha de costa onde se inserem quatro Rias. As Rias da Galiza são vales tectónicos inundados, que penetram para o interior, com os seus eixos perpendiculares à linha de costa. A maior parte dos rios galegos não se dirige direc-tamente para o mar mas sim desagua no segmento mais interior das Rias. A descarga fluvial segue um padrão sazonal com um mínimo de descarga no Verão. Mesmo a descarga fluvial anual pode considerar-se como baixa; os processos estivais, designadamente o upwelling costeiro, exercem uma muito maior influência na hidrografia das Rias do que a descarga fluvial (Prego et al. 1999). Por outro lado, os ventos na área do Cabo Finisterra têm uma elevada variabilidade temporal e espacial ao longo do ano. Contudo, um upwelling persistente na área do Cabo Finisterra constitui uma característica notável da costa galega (Torres et al. 2003). Por seu lado, as Rias comportam-se mais como extensões da plataforma do que como estuários. Somente a parte mais interior das Rias pode ser estritamente considerada como um es-tuário.

2.2. O Golfo de Cádis

A circulação da água superficial na costa sul portu-guesa resulta, em parte, da circulação na costa ociden-tal. Devido ao efeito dinâmico do Cabo de S. Vicente, as águas de upwelling da costa ocidental movem-se nas di-recções sudeste e este, originando uma área de upwelling quase permanente à volta deste Cabo como se fosse um prolongamento do sistema de upwelling da costa ociden-tal (Fiúza 1982, 1983; Fiúza et al. 1982; Ferreira 1984), embora a sua intensidade decresça do Cabo de S. Vicente para oriente. Quando os ventos prevalecentes no Golfo de Cádiz são de oeste, as águas de upwelling dirigem- -se para este ao longo da costa sul e uma pequena área de upwelling pode ainda observar-se a este do Cabo de Santa Maria, Faro (Vargas et al. 2003). Deverá notar-se que o Golfo recebe água proveniente do Mediterrâneo e é influenciado pelas correntes costeiras de Portugal e de Marrocos e por uma extensão da Corrente dos Açores (Schiebel et al. 2002). Estas diversas influências resultam num padrão de circulação complexo. A sul do Arquipélago dos Açores, a Corrente dos Açores coincide com a Frente dos Açores (Schiebel et al. 2002; Rudnick 1996; Alves & DeVerdière 1999). A Frente dos Açores corresponde a uma zona de forte transição hidrográfi-ca, não só em termos de temperatura mas também na estrutura da coluna de água – é caracterizada por um upwelling local muito intenso (Rogerson et al. 2004). Actualmente, a Frente dos Açores não penetra no Golfo

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de Cádis, embora a Frente resida no Oceano Atlântico à mesma latitude do Golfo de Cádis. Além disso, devido à configuração da linha de costa do sector oriental do Golfo de Cádis, o upwelling costeiro, resultante da cir-culação aerológica aí prevalecente, não existe na costa atlântica andaluza, ao contrário do que acontece em outras costas da Ibéria Atlântica desde o Cabo Ortegal, na Galiza, até ao Cabo de S. Vicente, e mesmo no bar-lavento algarvio (Soares 2005).

3. Os valores do efeito de reservatório oceânico ou marinho (Δr) para a Ibéria Atlântica

A investigação que tem sido levada a cabo no Ins-tituto Tecnológico e Nuclear sobre o efeito de reserva-tório marinho no referente ao 14C tem fornecido valo-res para ΔR aplicáveis às águas oceânicas de diversos troços da costa da Ibéria Atlântica, ao mesmo tempo que tornou patente a sua variabilidade ao longo do Holocénico, a qual pode ser correlacionada com o fenó-meno de upwelling (Soares 1993, 2010; Soares & Dias 2006a, 2006b, 2007; Soares & Martins 2009, 2010). Dado que a intensidade deste fenómeno (“a wind-driven process”) depende da intensidade, constância e direc-ção dos ventos que sopram ao longo da costa, então esses ventos também terão variado de intensidade ou de constância ou de direcção ou de dois ou três destes factores ao longo do Holocénico. Por outro lado ain-da, a insolação maior ou menor a que a região conti-nental está sujeita vai influir na intensidade maior ou menor desses ventos (através de um eventual aumento ou diminuição da diferença de pressões entre dois nós isobáricos adjacentes, marítimo e continental, que se pode expressar por uma intensificação ou diminuição da circulação atmosférica regional ou através da maior ou menor intensificação das brisas marítimas). Daí que também se possa sugerir que a variabilidade determi-nada para o efeito de reservatório oceânico é o reflexo da variabilidade das condições climáticas que ocorreram na Península Ibérica, durante o Holocénico.

Dadas essas relações causa-efeito, será de fazer uma breve incursão pela paleoclimatologia holocénica res-peitante à Península Ibérica, designadamente à sua fa-chada atlântica, a fim de melhor se tentar interpretar os valores determinados para ΔR.

Os dados disponíveis são, contudo, escassos e, por vezes, contraditórios. Têm sido obtidos, na sua maior parte, a partir do estudo de diagramas polínicos. A in-terpretação paleoclimática destes tem-se baseado so-bre as tendências maiores ou menores de xerofilia do coberto vegetal e sobre as variações da paleohidrologia

(correlacionável com a precipitação) que ficaram regis-tadas nas turfeiras (terrestrialização destas, por exem-plo) (Mateus et al. 2003). Em termos muito gerais e segundo L. Gómez-Orellana et al. (2001), J.E. Mateus (1992), J.E. Mateus & P.F. Queiroz (1993) e J.E Mateus et al. (2003), pode considerar-se que:i) Entre 10 e 8 ka BP (Holocénico Antigo) produz-se

um progressivo aquecimento das águas oceânicas e das massas continentais; corresponderá a um pe-ríodo de carácter relativamente húmido mas, pos-sivelmente, mais frio que o actual;

ii) Entre 8 e 4 ka BP (Holocénico Médio) o clima pre-valecente, tal como no resto da Europa, caracteri-za-se por uma fase hipsotérmica correspondente a um óptimo climático (ao momento de maior ter-micidade no SW da Europa) e que, nas áreas conti-nentais, se revela por um aumento da xerofilia;

iii) O período entre 4 e 3 ka BP (Holocénico Recen-te-Antigo) corresponderá a um clima ainda mais quente e seco do que o do Holocénico Médio, com expansão de taxa termomediterrâneos;

iv) Por fim, o período entre 3 ka BP e o presente (Ho-locénico Recente-Médio/Tardio), corresponde a uma fase catatérmica na qual se observa, no entanto, uma sucessão de subfases de frio e de calor (Período Frio da Idade do Ferro, Período Quente Romano, Idade das Migrações, Período Quente Medieval ou Pequeno Óptimo Climático e Pequena Idade do Gelo, por exemplo), que desembocam nas condições cli-máticas actuais; é, também, a partir do início deste período que se verifica um nítido aumento da antro-pização do território.As dificuldades derivadas da escassez de dados pa-

leoclimáticos para a fachada atlântica da Península Ibé-rica podem ser atenuadas se se tiver em atenção que diferentes tipos de registos paleoclimáticos obtidos em latitudes altas e médias, nas áreas em volta do Atlântico Norte, durante os últimos seis milénios, apresentam oscilações climáticas síncronas, embora não necessa-riamente com o mesmo sinal (Magny 1993), e mesmo durante todo o Holocénico (Bond et al. 1997; 2001). Isto deve-se ao facto das oscilações climáticas regista-das terem como mecanismo forçador muito importante uma actividade solar variável. Assim, por exemplo, a deterioração climática a latitudes médias corresponde a um arrefecimento a latitudes altas, o qual induz um gradiente térmico elevado entre as altas e as baixas la-titudes e, por conseguinte, uma circulação atmosférica forte na Europa Ocidental associada a uma intensifica-ção do anticiclone subtropical; pelo contrário, as melho-rias climáticas são caracterizadas por um aquecimento nas latitudes altas, o que origina uma diminuição da

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intensidade dos ventos associados ao anticiclone sub-tropical e a um deslocamento para norte dos ventos do sector oeste.

Além disso, as condições paleoambientais e ocea-nográficas no Atlântico Norte são caracterizadas pela ocorrência, durante o Holocénico, de eventos abruptos de frio (os eventos de Bond), por vezes de carácter ca-tastrófico, e que dão início a reorganizações do clima nesse oceano e nas áreas continentais adjacentes. G. Bond e colaboradores (1997, 2001) identificaram oito desses eventos, numerados de 1 a 8, ocorridos ca. 1400, 2800, 4200, 5900, 8100, 9400, 10300 e 11100 cal BP, respectivamente. Outros investigadores, utilizando re-gistos diferentes, identificaram também alguns ou to-dos estes eventos, embora possam diferir ligeiramen-te na cronologia que lhes é atribuida. É o caso de P. deMenocal et al. (2000) que identificaram eventos em 10,2; 8,0; 6,0; 4,6; 3,0; 1,9; 0,8 e 0,35 ka cal BP ou de F. McDermott et al. (2001) com eventos registados em 9,45 e 8,32 ka cal BP e em 7,73; 7,01; 5,21 e 4,2 ka cal BP, estes últimos, atribuíveis a uma circulação termo-halina mais fraca no Atlântico Norte.

3.1. Os valores de ΔR para a costa ocidental portuguesa

Na Fig. 1 apresentam-se, sob forma gráfica, em fun-ção do tempo, os valores de ΔR já determinados para a costa ocidental portuguesa. Uma primeira conclusão

a retirar é a de que o efeito de reservatório oceânico e, por conseguinte, a intensidade do upwelling nesta costa tem variado ao longo do tempo, durante o Holocénico. Deverá ter-se em atenção que os pares de amostras datados provêm de contextos arqueológicos costeiros localizados entre Aveiro e o Cabo de S. Vicente (a costa entre Aveiro e o Rio Minho não foi ainda amostrada e, consequentemente, as conclusões e inferências deste estudo não se aplicam, com rigor, a esta última região costeira).

O valor moderno de ΔR, calculado a partir de amos-tras de conchas historicamente datadas é de 280±35 anos 14C (Soares 1989). Durante o Holocénico terá va-riado entre 940±50 anos 14C, em 7810±90 BP ou 8410--8980 cal BP, e -160±40 anos 14C, em 4160±55 BP ou 4530-4830 cal BP (foram excluídos os valores de fiabi-lidade muito reduzida ou nula – ver M. Soares 2005). No entanto, se se examinar de perto estes mais de 40 valores de ΔR poderá verificar-se que, excluindo quatro valores (determinados para 7810±90 BP, 3690±70 BP, 3460±90 BP e 870±90 BP), os restantes valores são, na sua grande maioria, também positivos, embora meno-res que o valor moderno (ΔR = 280±35 anos). Assim, a um valor positivo, cerca de 9500 BP, seguem-se-lhe três valores negativos nos finais do IX milénio / iní-cio do VIII milénio BP; para o restante VIII e para o VII milénios BP apenas foram determinados três va-lores positivos, sendo o primeiro um dos “picos” atrás referidos (os dois valores negativos determinados na

Fig. 1. Valores holocénicos do efeito de reservatório marinho para a costa ocidental portuguesa. Os valores de ΔR (±1 σ) estão representados em função das datas convencionais de 14C (±1 σ) de amostras terrestres.Fig. 1. The variability in ocean reservoir effect off the western Portuguese coast during the Holocene. ΔR (±1 σ) values are plotted versus terrestrial 14C ages (±1 σ).

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transição do VIII para o VII milénios BP são de baixa fiabilidade – ver M. Soares 2005). Para a maior parte do VII milénio, para o VI e para a primeira metade do V milénios BP ainda não foi determinado qualquer valor para ΔR. Para a segunda metade do V milénio BP os valores de ΔR tanto podem ser negativos como positi-vos, enquanto que para o IV milénio todos os valores determinados são positivos incluindo dois da ordem de grandeza ou maiores que o valor moderno. A partir de 3000 BP e até cerca de 650 BP (com excepção do II mi-lénio BP que praticamente não se encontra amostrado) estendem-se dois intervalos de tempo que se podem considerar como bem amostrados (23 pares datados), onde ΔR toma valores geralmente positivos, aos quais corresponde o valor médio ponderado de 80±15 anos 14C (excluindo o pico em 870±90 BP).

Tendo, então, em conta o desiderato atrás descrito, a interpretação paleoceanográfica e paleoclimática que se poderá fazer dos valores determinados para o efeito de reservatório oceânico na costa ocidental portuguesa (entre o Cabo de S. Vicente e Aveiro) será a seguinte: i) Entre o evento 8 de Bond (ca. 11100 cal BP) e o

final do Pré-Boreal (até ao evento 7, ca. 10300 cal BP) terá existido na costa portuguesa um regime de upwelling costeiro, porventura menos intenso que o actual;

ii) Durante o Boreal, a que corresponde um clima frio, terá ocorrido entre o evento 6 (ca. 9,4 ka cal BP) e o 5 (ca. 8,2 ka cal BP) um upwelling costeiro pouco activo ou mesmo inexistente, como os valores ne-gativos para ΔR indiciam;

iii) O intervalo de tempo entre os eventos 5 e 4 (ca. 5,9 ka cal BP) encontra-se muito mal amostrado, pelo que quaisquer inferências deverão ser posterior-mente validadas com mais dados. No entanto, com a reorganização climática associada ao evento “8,2 ka” (que poderá estar representado pelo primeiro pico de ΔR atrás mencionado) assiste-se a uma mo-dificação no padrão de povoamento mesolítico na faixa costeira portuguesa, provavelmente relaciona-da com uma melhoria do clima (um aquecimento climático), pelo que será expectável um upwelling costeiro activo, embora fraco, como os dois únicos valores de ΔR determinados para este intervalo de tempo também sugerem;

iv) Entre os eventos 4 (ca. 5,9 ka cal BP) e 3 (ca. 4,2 ka cal BP), para a sua metade final, obtiveram-se valores negativos e positivos, alternados, para ΔR. Embora se esteja no período correspondente a um óptimo climático, estes valores indiciam uma gran-de variabilidade das condições climáticas prevale-centes entre 5 e 4,2 ka cal BP;

v) O período entre 4 e 3 ka cal BP (Holocénico Recente--Antigo), a que corresponderá um clima mais quen-te e seco do que o anterior para a costa portuguesa, com expansão de taxa termomediterrâneos, deverá caracterizar-se por um upwelling costeiro intenso e, por conseguinte, por valores altos de ΔR. E, na realidade, para este intervalo obtiveram-se apenas valores positivos para ΔR, incluindo dois da ordem de grandeza do valor moderno (um deles mesmo de valor superior);

vi) Por fim, para o Holocénico Recente-Médio/Tardio (entre 3 ka BP e o presente), embora o II milénio BP não se encontre ainda amostrado, ΔR toma valores geralmente positivos, aos quais corresponde o va-lor médio ponderado de 80±15 anos 14C (excluindo o pico de 870±90 BP, que será interpretado mais adiante, quando se discutirem os resultados para a costa galega). Estes resultados sugerem a existência de um upwelling activo, mas menos intenso que o actual, excepto durante alguns períodos, como du-rante o Pequeno Óptimo Climático, quando se terá aproximado dos valores modernos.

3.1.1. Os valores de ΔR para a costa ocidental galega

Na Fig. 2 encontram-se representados, em função do tempo, os valores de ΔR determinados para a costa galega, bem como, para comparação, a representação gráfica dos valores de ΔR para a costa ocidental portu-guesa. Uma primeira constatação é a de que, ao con-trário do que sucede para o troço da costa ocidental portuguesa entre Aveiro e o Cabo de S. Vicente onde, entre 3000 BP e 600 BP, os valores de ΔR são, na sua quase totalidade, positivos a sugerir a existência de um upwelling costeiro activo, para a costa ocidental galega os valores determinados para o efeito de reservatório são, na generalidade, negativos, o que indicia a inexistência de upwelling costeiro ou de que este tenha tido uma in-tensidade muito fraca. No entanto, tal como para a cos-ta portuguesa, o evento 0,8 ka cal BP de F. McDermott et al. (2001) encontra-se representado por um pico bem definido (ΔR = 270±40 anos), com uma datação idên-tica (860±90 BP – costa galega; 870±90 – costa portu-guesa), mas com valores diferentes para ΔR (270±40 anos – costa galega; 620±70 anos – costa portuguesa).

Como é conhecido, a costa ocidental galega é, actual-mente, afectada por um upwelling costeiro, com um centro activo na zona do Cabo Finisterra. P. Diz et al. (2002) ao estudarem um “core” obtido na Ria de Vigo, que abarca os últimos 3000 anos, reconstruíram a evo-lução hidrográfica dessa Ria através das associações de foraminíferos, dos isótopos de oxigénio e de biomarca-

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Upwelling, efeito de reservatório, radiocarbono: construção de cronologias absolutas e inferências paleoambientais

dores moleculares (índice U K’37 ) existentes no referido

“core”. Puderam concluir que entre 975 cal BC e 1000 cal AD, o carbono orgânico é principalmente de origem continental, as percentagens de foraminíferos planc-tónicos são baixas e as águas superficiais seriam mais quentes que na actualidade, implicando um upwelling fraco ou inexistente. Em 1000 cal AD, os proxies climá-ticos indicam uma situação de calor que coincide com o Pequeno Óptimo Climático, mas as águas superficiais iniciam um arrefecimento que culmina em 1440-1490 cal AD. Desse mínimo até aos tempos actuais observa-se uma tendência ligeira para o aquecimento nas SST, mas com um relativo mínimo em 1720 cal AD. Os dois mínimos corresponderão ao Mínimo de Spörer (1415- -1535 d.C.) e ao Mínimo de Maunder (1645-1715 d.C.). Segundo P. Diz e colaboradores (op. cit.), uma reorga-nização do sistema climático regional terá tido lugar cerca de 1000 cal AD, iniciando-se uma intensificação do upwelling costeiro que começou, então, a controlar os processos hidrográficos que ocorrem na Ría de Vigo.

A curva obtida a partir dos valores de ΔR em função do tempo está de acordo com o que foi determinado por aqueles investigadores, e que atrás se encontra resumi-do, o que conduz às seguintes conclusões:i) entre ca. 760 cal BC e até ao aparecimento de um

pico na série de valores de ΔR, datado de ca. 1000 AD, o upwelling costeiro era praticamente inexisten-te ou muito fraco na costa ocidental galega, o que

implica que os ventos do sector norte e noroeste seriam fracos e pouco constantes;

ii) este facto sugere que, nesse intervalo de tempo, o anticiclone dos Açores não ocuparia, no Verão, uma posição tão ao Norte como actualmente ocupa ou a circulação que lhe está associada não seria tão in-tensa como actualmente;

iii) em ca. 1000 cal AD ocorre um aumento abrupto do efeito de reservatório e inicia-se uma reorganização do sistema climático, não só regional, mas também circum-atlântico norte;

iv) a partir dessa data, o efeito de reservatório oceânico toma valores positivos e negativos até desembocar na situação actual, o que sugere uma grande varia-bilidade do upwelling costeiro no noroeste penin-sular e, por conseguinte, do sistema climático pre-valecente nessa região, nesse intervalo de tempo.

3.2. Os valores de ΔR para o Golfo de Cádis

3.2.1. Barlavento algarvio

Na Fig. 3 pode observar-se a representação grá-fica dos valores de ΔR determinados para o barlaven-to algarvio em função do tempo. Junto encontra-se também o mesmo tipo de representação gráfica para a costa ocidental portuguesa. Com excepção do pico em 1140±45 BP (780-990 cal AD ou 960-1170 cal BP) e dos

Fig. 2. Valores holocénicos do efeito de reservatório marinho para a costa da Galiza comparados com os da costa ocidental portuguesa. Os valores de ΔR (±1 σ) estão representados em função das datas convencionais de 14C (±1 σ) de amostras terrestres.Fig. 2. The variability in ocean reservoir effect off the Galician coast (during the last 3 kyr) compared with the variability for the western Portuguese coast. ΔR (±1 σ) values are plotted versus terrestrial 14C ages (±1 σ).

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valores também fortemente positivos em 5640±100 BP e 3990±60 BP, os outros valores de ΔR determinados para a costa sul algarvia são na generalidade positivos, mas aparentemente menores que os corresponden-tes da costa ocidental portuguesa (média ponderada: ΔR = 65±15 anos 14C), o que está de acordo com as condições oceanográficas reinantes nos dois troços de costa. O pico em 1140±45 BP poderá corresponder a um evento de Bond e estará relacionado com o início do Pequeno Óptimo Climático, cujo fim estará indiciado pelo evento de frio de 0,80 ka BP, representado pelo pico de 870±90 BP determinado para a costa ocidental portuguesa (e reproduzido também na costa ocidental galega).

3.2.2. Costa andaluza do Golfo de Cádis

Tal como se fez para os troços de costa já analisa-dos, na Fig. 4 pode observar-se a representação gráfica dos valores de ΔR para a costa andaluza do Golfo de Cádis. No entanto, aqui será de comparar esses valores com os obtidos para o barlavento algarvio, o que é feito também na Fig. 4. Como já foi referido, actualmente o upwelling costeiro não se verifica na costa oriental do Golfo de Cádis, situação que ocorrerá, pelo menos desde 2000 BP, como se poderá deduzir pelos valores negativos de ΔR determinados para esse intervalo de tempo. O mesmo parece acontecer anteriormente a ca. 4500 BP. Pode ser calculado um valor médio ponderado

para ΔR, tomando em consideração apenas os valores negativos, obtendo-se -135±20 anos 14C, o qual será apli-cável para os intervalos de tempo, referidos acima, em que o upwelling é inexistente.

Entre 4500 BP e 4000 BP, foram determinados três valores positivos para ΔR, encontrando-se o maior valor (340±50 anos) datado de 4050±190 BP, coinci-dente, dentro da incerteza estatística, com o valor de 3990±60 BP para a costa do barlavento algarvio. Estes valores positivos são indiciadores de um upwelling acti-vo. Não se tratará de um upwelling costeiro, dado que este fenómeno oceanográfico não estará, muito prova-velmente, relacionado com a intensidade e a direcção do vento prevalecente nessa altura nessa região costei-ra, mas sim com a posição da Frente dos Açores. Uma situação semelhante já tinha sido verificada para dois intervalos de tempo situados entre o Último Máximo Glaciar e o Holocénico, a qual foi explicada pela exten-são da Frente dos Açores em direcção este ao longo da Corrente dos Açores penetrando, deste modo, no Golfo de Cadiz (Rogerson et al. 2004).

4. Conclusões

Os resultados obtidos, baseados no estudo do com-portamento do efeito de reservatório oceânico, o qual foi quantificado a partir da datação pelo radiocarbono

Fig. 3. Valores holocénicos do efeito de reservatório marinho para a costa do barlavento algarvio comparados com os da costa ocidental portuguesa. Os valores de ΔR (±1 σ) estão representados em função das datas convencionais de 14C (±1 σ) de amostras terrestres.Fig. 3. The variability in ocean reservoir effect off the southern Portuguese coast compared with the variability for the western Portuguese coast. ΔR (±1 σ) values are plotted versus terrestrial 14C ages (±1 σ).

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Upwelling, efeito de reservatório, radiocarbono: construção de cronologias absolutas e inferências paleoambientais

de pares de amostras da biosfera marinha (conchas) e da biosfera terrestre (ossos, carvões ou madeiras), estreitamente associadas e contemporâneas, colhidas em contextos arqueológicos holocénicos, bem como de conchas historicamente datadas (valor moderno de ΔR), permitem afirmar que a intensidade do upwelling costeiro que ocorre nas margens atlânticas ocidental e meridional ibéricas tem variado ao longo do tempo, du-rante o Holocénico, e que essa variabilidade é o reflexo da variabilidade das condições climáticas que ocorre-ram na Península Ibérica (e a nível global) durante esse período.

A grande variabilidade climática do Holocénico, com uma dimensão insuspeitada até há poucos anos atrás (por ex., os eventos de frio foram apenas identificados e estudados a partir dos meados dos anos noventa) e com reflexos profundos na intensidade do upwelling costeiro nas margens atlânticas ocidental e meridional da Península Ibérica, associada à ainda deficiente amos-tragem, quer temporal, quer espacial, até agora efectu-ada, tornam a calibração de qualquer data, se esta não se integrar em qualquer período ou espaço costeiro já investigado, de fiabilidade duvidosa ou de precisão me-nor. No entanto, para os intervalos de tempo e troços de costa bem amostrados, as datas de radiocarbono de conchas marinhas (materiais de vida curta) constituem ferramentas valiosas para a construção de cronologias rigorosas e precisas.

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Fig. 4. Valores de ΔR (±1 σ) para o Golfo de Cádis em função das datas convencionais de 14C (±1 σ) de amostras terrestres.Fig. 4. ΔR (±1 σ) values for the Gulf of Cadiz plotted versus terrestrial 14C ages (±1 σ).

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