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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” UNESP FERNANDO DE SOUZA MIRANDA O USO DE ELEMENTOS IDIOMÁTICOS DO BERIMBAU EM EXPERIMENTAÇÕES COMPOSICIONAIS COLABORATIVAS São Paulo SP 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

UNESP

FERNANDO DE SOUZA MIRANDA

O USO DE ELEMENTOS IDIOMÁTICOS DO BERIMBAU EM

EXPERIMENTAÇÕES COMPOSICIONAIS COLABORATIVAS

São Paulo – SP

2018

FERNANDO DE SOUZA MIRANDA

O USO DE ELEMENTOS IDIOMÁTICOS DO BERIMBAU EM

EXPERIMENTAÇÕES COMPOSICIONAIS COLABORATIVAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Música do Instituto de Artes – IA, da

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita

Filho” – UNESP – Campus de São Paulo, para

obtenção do título de Mestre em Música.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Di Stasi.

São Paulo – SP 2018

Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da

UNESP

M672u Miranda, Fernando de Souza,

O uso de elementos idiomáticos do berimbau em

experimentações composicionais colaborativas / Fernando de

Souza Miranda. - São Paulo, 2018.

140 f. Orientador: Prof. Dr. Carlos Stasi.

Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual

Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes.

1. Musica - Instrução e estudo. 2. Música popular - Brasil. 3. Berimbau. 4. Capoeira. I. Stasi, Carlos. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título.

CDD 787

(Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666)

FERNANDO DE SOUZA MIRANDA

O uso de elementos idiomáticos do berimbau em experimentações

composicionais colaborativas

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em

Música no Programa de Pós -Graduação em Música, do Instituto de Artes da

Universidade Estadual Paulista – Unesp, com a Área de concentração em Teoria e

praxis no processo criativo, pela seguinte banca examinadora :

Comissão examinadora:

Prof. Dr. Carlos Eduardo Di Stasi

(Orientador)

Prof. Dr. Eduardo Flores Gianesella

Prof. Dr. Cláudio Henrique Altieri de

Campos

São Paulo – 2018

RESUMO

O presente trabalho aponta algumas das principais técnicas idiomáticas do berimbau

brasileiro, e demonstra como estes elementos foram usados na elaboração de três

composições para conjunto de berimbaus. A pesquisa foi instigada pela vivência

prática com este instrumento em diferentes contextos musicais, o que resultou na

possibilidade de utilizar os conhecimentos técnicos aprendidos na Capoeira e em

alguns trabalhos da MPB, para serem ferramentas composicionais em obras para

grupos de câmara. Por decorrência deste processo foi necessário identificar e definir

alguns dos recursos idiomáticos mais comuns do instrumento. Para ilustrar e melhor

compreender sobre o idiomatismo do berimbau, recorremos a transcrições de

gravações fonográficas de importantes instrumentistas da Capoeira e da música

popular brasileira.

Palavras chave: Berimbau, Idiomatismo, Capoeira, Música Popular Brasileira.

ABSTRACT

The present work points out some of the main idiomatic techniques of the Brazilian

berimbau, and demonstrates how these elements were used in the elaboration of

three compositions for the berimbaus ensemble. The research was instigated by the

practical experience with this instrument in different musical contexts, which resulted

in the possibility of using the technical knowledge learned in Capoeira and in some

works of MPB, to be used as compositional tools in works for chamber groups. As a

result of this process it was necessary to identify and define some of the most

common idiomatic resources of the instrument. To illustrate and better understand

the berimbau's idiomaticity, we have resorted to transcriptions of phonographic

recordings of important instrumentalists from Capoeira and popular Brazilian music.

Key words: Berimbau, Idiomatism, Capoeira, Brazilian Popular Music.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - "O Tocador de Berimbau" (1829) Jean-Baptist Debret 11

Figura 2 - Mestre Bimba tocando com Charlie Byrd e grupo 13

Figura 3 - Mestre Canjiquinha (1925-1994) 29

Figura 4 - Capa do disco "Curso de Capoeira Regional - Mestre Bimba" (1969) 40

Figura 5 - Capa do disco "Fenix", de Gato Barbieri (1971) 43

Figura 6 - Ramiro Musotto (1963 - 2009) 45

Figura 7 - Capa do disco "Capoeira Primitiva" (2006), do Mestre Silvio Acarajé (1954-

1996) 59

Figura 8 Capa do Disco "A Saga do Urucungo" (2007), do Mestre Silvio Acarajé 62

Figura 9 Capa do disco "Sinfonia de Arame" (2010), de Dinho nascimento e a

Orquestra de Berimbaus do Morro do Querosene 63

Figura 10 Capa do disco "Mestre Traíra - Capoeira da Bahia" (1963), do Mestre

Traíra e Mestre Cobrinha Verde 64

Figura 11 Capa do disco "L´Art du Berimbau" (2001), do Metre Gato Preto 67

Figura 12 Capa do disco "Milton" (1970), de Milton Nascimento 68

Figura 13 Capa do disco "Civilização & Barbarie" (2006), de Ramiro Musotto 68

Figura 14 Distância entre o ponto de tensão da pedra no arame até o barbante que

segura a cabaça 73

Figura 15 Orquestra Paraguassu 75

Figura 16 Distribuição espacial das afinações na peça Mantra 95

EXEMPLOS EM ÁUDIO

Ex. 1 Exemplos de abafamentos em toques de Capoeira (CD Faixa 1) _________ 39

Ex. 2 Início do Toque de Iúna, gravado por mestre Bimba em seu disco "Curso de

Capoeira Regional" (CD Faixa 2) ______________________________________ 41

Ex. 3 Padrão rítmico com notas percutidas na verga e toques de caxixi. No quarto

compasso, a entrada do contrabaixo (CD Faixa 3) _________________________ 44

Ex. 5 Tercinas transformadas em sextinas. Trecho do início do disco de mestre Gato

Preto (Gabriel Góes), L'artdu Berimbau (CD Faixa 4) _______________________ 48

Ex. 6 Toque de Ave Maria gravado no disco Capoeira Primitiva do mestre Sílvio

Acarajé (Silvio dos Santos) (CD Faixa 5) ________________________________ 48

Ex. 7 Toque de Idalina de Angola, gravado no disco Capoeira Primitiva do mestre

Silvio Acarajé (Sílvio dos Santos) (CD Faixa 6) ___________________________ 49

Ex. 8 Solo de Naná Vasconcelos no início da música Bahia, do disco Fenix de Gato

Barbieri (CD Faixa 7) ________________________________________________ 50

Ex. 11 Toques de berimbau com outros padrões rítmicos de atabaque: Toque de

Barra-Vento (CD Faixa 8) Toque de Muzenza (CD Faixa 9) __________________ 56

Ex. 13 Toque de Gêge (ou Gegy), gravado no disco Capoeira Primitiva, do mestre

Silvio Acarajé (Silvio dos Santos) (CD Faixa 10) ___________________________ 60

Ex. 14 Início do toque de Angola em Gêge gravado no disco "Capoeira Primitiva", do

Mestre Silvio Acarajé (CD Faixa 11) ____________________________________ 60

Ex. 15 São Bento Grande em Gêge. Gravado no disco Capoeira Primitiva do mestre

Silvio Acarajé (Silvio dos Santos) (CD Faixa 12) ___________________________ 61

Ex. 16 Início da música "Muzenza", do disco Sinfonia de Arame (2010) (CD Faixa

13) ______________________________________________________________ 63

Ex. 17 Segunda faixa do disco Capoeira da Bahia de Mestre Traíra e Mestre

Cobrinha Verde (CD Faixa 14) ________________________________________ 65

Ex. 18 Início do disco L'artdu Berimbau - Mestre Gato Preto (CD Faixa 15) ______ 66

Ex. 19 Padrões rítmicos usados por Naná em Tema de Tostão, do álbum Milton

(1970) de Milton Nascimento (CD Faixa 16) ______________________________ 67

Ex. 20 Início da música La DanzadelTezcatlipoca Rojo, do álbum Civilização

&Barbarie, de Ramiro Musotto (CD Faixa 17) _____________________________ 69

Ex. 21 Formação de acordes durante a sobreposição de toques ______________ 72

Ex. 22 "Rodar o som" (CD Faixa 18) ____________________________________ 77

Ex. 23 "Rodar o Som" utilizando efeitos de abafamento da cabaça (CD Faixa 19) 77

Ex. 24 "Rodar o Som" utilizando células rítmicas ___________________________ 78

Ex. 25 Prática com diferentes células rítmicas (CD Faixa 20) _________________ 78

Ex. 26 Toque de Santa Maria (CD Faixa 21)______________________________ 79

Ex. 27 Padrões construídos a partir de toques de atabaque (CD Faixa 22) ______ 80

Ex. 28 Padrões Inventados (CD Faixa 23) _______________________________ 80

Ex. 29 Sobreposições do toque de Angola (CD Faixa 24) ___________________ 81

Ex. 30 Prática de improviso (CD Faixa 25) _______________________________ 82

Ex. 50 Padrões rítmicos com efeitos de abafamento (CD Faixa 26) ____________ 96

Ex. 51 Marcações de acordes no momento da nota chiada do Viola (CD Faixa 27) 97

Ex. 63 Diferentes padrões rítmicos sobrepostos. A alternância dos berimbaus

promove a mudança de acordes (CD Faixa 28) __________________________ 112

Ex. 64Hemíolas sobrepostas formando diferentes acordes (CD Faixa 29) ______ 113

Ex. 65 Práticas improvisatórias com o padrão se Iúna (CD Faixa 30) _________ 114

Ex. 66 Prática improvisatória utilizando o toque de Santa Maria (CD Faixa 31) __ 114

Angola Cruzado - 2014 (CD Faixa 32)

Mantra - 2015(CD Faixa 33)

Nhemongaraí - 2017 (CD Faixa 34)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

Idiomatismo ............................................................................................................ 15

Pesquisa de Campo ............................................................................................... 19

Organização da Dissertação .................................................................................. 23

1 – CONCEITOS INTRODUTÓRIOS ........................................................................ 25

1.1 Morfologia e Notas Básicas .............................................................................. 25

1.2 Considerações Sobre o Berimbau na Capoeira ............................................... 26

1.3 Notação ............................................................................................................ 30

2 – RECURSOS IDIOMÁTICOS ............................................................................... 37

2.1 Recursos Timbrísticos ...................................................................................... 38

2.2 Padrões Rudimentares .................................................................................... 45

a) Notas Soltas, Presas e Chiados ..................................................................... 47

b) Fusão Entre Notas Soltas e Chiados .............................................................. 47

c) Fusão Entre Notas Soltas e Presas ................................................................ 50

2.3 Padrões Ritmico-Melódicos .............................................................................. 50

2.4 Afinações ......................................................................................................... 70

3 – EXPERIMENTOS COMPOSICIONAIS ............................................................... 75

3.1Com a Orquestra Paraguassu ........................................................................... 75

3.1.1 Angola Cruzado ......................................................................................... 83

3.1.2 Angola Cruzado - Análise .......................................................................... 84

3.1.3 Mantra........................................................................................................ 94

3.1.3 Mantra - Análise ......................................................................................... 97

3.2 Nhemongaraí ................................................................................................. 109

3.2.1 Nhemongaraí - Análise ............................................................................ 115

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 121

5 – BIBLIOGRAFIA ................................................................................................ 125

6 – ANEXOS..............................................................................................................129

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INTRODUÇÃO

O Berimbau de Barriga, ou apenas Berimbau, é um instrumento musical monocórdio

que se tornou popular no Brasil principalmente através de sua relação com a

manifestação tradicional da Capoeira. Por se tratar de um arco musical, é difícil

precisar a sua origem, já que os instrumentos desta categoria são muito antigos e

podem ser encontrados em diversas partes do mundo (SHAFFER, 1977, pg.2).

Porém, considerando que não foram encontrados arcos musicais utilizados por

etnias indígenas que habitam a América do Sul, é possível deduzir que o berimbau

chegou ao Brasil trazido pelos africanos do grupo etno linguístico Bantu, mais

precisamente por aqueles oriundos da atual Angola, durante o período da

escravidão. Esta inferência é sustentada pelas semelhanças que ocorrem entre o

berimbau brasileiro e os arcos musicais encontrados nesta região do continente

africano, e pela vasta presença da cultura que esses povos trouxeram ao Brasil

(SHAFFER, 1977, pg.4).

Os primeiros registros do berimbau em terras brasileiras são gravuras do início do

século XIX onde o instrumento é retratado nas mãos de mercadores de rua,

provavelmente sendo utilizado como meio para chamar a atenção de clientes. Por

falta de documentação, não se sabe exatamente quando ocorreu a junção entre o

instrumento e a Capoeira, porém no início do século XX o berimbau já havia sido

incorporado a esta arte e se tornado seu símbolo.

Figura 1 - "O Tocador de Berimbau" (1829) Jean-Baptist Debret

12

Até onde foi possível verificar nesta pesquisa, o berimbau não é utilizado e nem se

encontra em mais nenhuma outra manifestação popular brasileira que não esteja

diretamente ligada com a Capoeira. Este dado é um forte indicativo de que o vínculo

com esta arte garantiu a sua sobrevivência ao longo dos anos. Também é possível

considerar que o berimbau ajudou a impedir a extinção da Capoeira, por se tratar de

um instrumento musical que permitia disfarçar a luta, fazendo-a passar por uma

dança. No Brasil, diferente dos pandeiros, atabaques, agogôs e reco-recos que

também são usados em outras manifestações, o berimbau de barriga foi durante

muitos anos o instrumento exclusivo da Capoeira. Este vínculo se consolidou

profundamente ao longo dos anos e é hoje evidenciado nas rodas, sendo que a

música produzida pelo berimbau dialoga diretamente com o jogo/dança/luta.

Ao compararmos o berimbau com outro instrumento típico das tradições populares

brasileiras, como o pandeiro ou o atabaque, veremos que muito sobre o repertório,

técnicas e idiomatismo do berimbau ainda se encontra restrito à sua cultura

tradicional originária. Existem pouquíssimos métodos escritos e, em todos eles,

encontraremos descrições dos toques tradicionais como forma de se aprender sobre

o instrumento. Esses toques são padrões rítmico-melódicos executados no

berimbau, que representam a própria forma como a música da Capoeira se

estrutura.

Nesta trajetória do berimbau no Brasil, podemos encontrar mestres e capoeiristas

que exploraram o berimbau para além daquilo que aparentemente podemos

denominar de “tradicional”. Existem registros audiovisuais de Mestre Bimba (Manoel

dos Reis Machado), tocando berimbau em uma apresentação, junto ao jazzista

Charlie Byrd e seu grupo. Mestre Suassuna (Reinaldo Ramos Suassuna) e Mestre

Sílvio Acarajé (Sílvio dos Santos) acrescentaram instrumentos como a rabeca e o

baixo tocando junto com o berimbau em seus discos de Capoeira, além de gravarem

solos improvisados e criar novos toques. Porém, em todos esses e outros casos

semelhantes, apesar do instrumento não estar sendo utilizado como usualmente se

faz no ritual de uma roda de Capoeira, ainda é visível o seu diálogo com a tradição,

tanto pela forma de tocar (técnica), como pelo uso de células rítmicas e frases

conhecidas (idiomatismo), que se encaixam ao ritmo da Capoeira, sendo em alguns

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casos variações de toques existentes. Estes fatores evidenciam um diálogo entre

novos contextos e práticas (apresentações com grupos de jazz, novas

orquestrações, criação de toques) e elementos tradicionais, que se fazem presentes

principalmente pelo contexto cultural (Capoeira) na qual o instrumentista está

inserido. É justamente por isso que nestes exemplos, o berimbau não perde seu

caráter simbólico, que está diretamente vinculado à elementos da Capoeira, mesmo

sendo utilizado em contextos alheios à tradição.

Figura 2 - Mestre Bimba tocando com Charlie Byrd e grupo

O primeiro trabalho de grande impacto e visibilidade utilizando o berimbau, que

rompeu com características técnicas e simbólicas advindas da tradição, foi do

percussionista pernambucano Naná Vasconcelos (Juvenal de Holanda

Vasconcelos). Obviamente, tais mudanças de visão sobre o instrumento tiveram

influência do contexto cultural na qual Naná pertencia, atuando com músicos de jazz

e da MPB. Em entrevista (BEYER, 2007, p. 49), Naná conta que não era capoeirista

e, apesar de ter aprendido os toques de Capoeira para uma apresentação musical,

logo enxergou no berimbau um instrumento de grande potencial expressivo para ser

desenvolvido em outros estilos musicais.

Além da criatividade e habilidade musical, podemos testemunhar no berimbau de

Naná uma mudança conceitual sobre a forma de se abordar o instrumento, que está

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relacionada com o contexto e o ambiente em que a música é produzida, e que

consequentemente ocasiona outra maneira de se tocar. Como Beyer observa:

Há muitos bons tocadores de berimbau dentro e fora da tradição da capoeira. Fora da tradição, porém, os tocadores sentem uma maior liberdade para expandir os horizontes do instrumento por razões musicais (BEYER, 2004, p. 5).

Desta forma, efeitos sonoros que nas rodas de Capoeira eram detalhes ocasionais

ou pequenos enfeites (como percutir com a baqueta na cabaça, ou executar

trêmulos entre o arame e a verga1 de madeira), agora se tornam estruturais na

construção de um novo discurso musical. Por outro lado, nesta nova concepção se

perdem os códigos convencionados advindos da tradição que, de forma explícita –

para aqueles que conhecem o código – dialogava com o seu público e determinava

elementos como tipos de jogo (rápido, lento, curto, expansivo), momentos solenes,

momento de perigo, dentre outros.

A partir de Naná Vasconcelos o berimbau surgiu com maior frequência em diversas

outras produções de percussionistas ligados à MPB e à música instrumental, porém

sendo utilizado com concepções diferentes da forma como acontecia antes. Músicas

como Berimbau (1964) de Baden Powell e Vinícius de Moraes, e O Assunto é

Berimbau (1965) de Jackson do Pandeiro, dentre outros exemplos, também fizeram

uso deste instrumento, porém sempre em referência ao jogo da Capoeira. A partir de

Naná surgiram novos trabalhos envolvendo o instrumento, como foi o caso do

percussionista, produtor e pesquisador argentino Ramiro Musotto. Além de

pesquisar sobre os toques e a utilização do instrumento na Capoeira, Ramiro

desenvolveu composições para grupo de berimbaus, produções de música

eletrônica utilizando o instrumento e realizou experimentos morfológicos construindo

berimbaus de alumínio e berimbaus com três vergas.

Na música erudita, o berimbau também vem chamando a atenção de compositores e

percussionistas para a elaboração de peças explorando seus recursos sonoros.

Mais uma vez, o instrumento se afasta de suas concepções musicais tradicionais, se

1 “Verga” é o termo usualmente utilizado para denominar o arco de madeira do berimbau.

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ressignificando e gerando novas técnicas de exploração timbrística, desde a

utilização de diferentes tipos de baquetas (baquetas de metal serrilhada, por

exemplo) até o uso de recursos da música eletrônica, e por vezes sofrendo

modificações em sua estrutura física.

Dentre alguns exemplos podemos citar a peça Na Apotheosis of Archaeopteryx que

foi elaborada em 1979 pelo compositor norte americano Lejaren Hiller. A obra

consiste em um duo de berimbau e flauta piccolo em seis movimentos,

encomendada pelo flautista Lawrence Trott.2 Septeto, de Artur Rinaldi, escrita para o

Grupo PIAP – Grupo de Percussão do Instituto de Artes da UNESP – trabalha com

instrumentos de percussão brasileira, e dentre eles dois berimbaus que

protagonizam a peça. O compositor Alexandre Lunsqui utilizou o berimbau na

construção das obras Glaes e Íris, sendo esta última um solo desenvolvido em

colaboração com o percussionista e pesquisador norte americano Greg Beyer,

fundador e coordenador do grupo Arco Musical. Beyer possui extenso trabalho de

pesquisa com o berimbau, produzindo diversas obras para solo e grupo, além da

encomenda de peças para o instrumento. “Neste longo processo, ele mesmo afirma

que intencionava: “criar ligações entre o antigo e o novo, traçando paralelos que

orientem o trabalho criativo de acordo com o que foi feito no passado.” (BEYER,

2004, p.1)

Idiomatismo

Sobre o termo idiomatismo, é necessário compreender suas aplicações na área de

música, já que este conceito serviu como ferramenta para o aprendizado do

instrumento e para o desenvolvimento do processo composicional neste trabalho.

Na origem etimológica da palavra idiomático, idio é derivado do grego ídios, que

significa aquilo que é próprio, pessoal, privativo. (PAVAN, 2009, pg.39) Quando

empregado na área da música está associado às características intrínsecas de um

2BEYER, Gregory. O Berimbau.A project of Ethnomusicological Research, Musicological

Analysis, and Creative Endeavor. Tese (Doutorado em Música) - Manhattan Schoolof Music, New York, 2004.

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instrumento ou estilo musical. Muitos pesquisadores utilizam este termo como

ferramenta de análise, principalmente na área da performance. Fabio Scarduelli, em

sua pesquisa sobre as obras para violão de Almeida Prado utiliza o conceito de

idiomatismo de acordo com a seguinte definição:

...refere-se ao conjunto de peculiaridades ou convenções que compõem o vocabulário de um determinado instrumento. Estas peculiaridades podem abranger desde características relativas às possibilidades musicais, como timbre, dinâmica e articulação, até meros efeitos que criam posteriormente interesse de ordem musical

(SCARDUELLI, 2007, p. 139)

Scarduelli ainda complementa afirmando que “Em um plano mais amplo, toda

performance violonística (escrita ou não) poderia ser compreendida como idiomática

pelo simples motivo da possibilidade de execução da mesma ao instrumento.”

(SCARDUELLI, 2007, p. 139)

Ainda sobre as definições e aplicações do termo, Kreutz afirma que o idiomatismo

em um instrumento musical são:

...peculiaridades e possibilidades técnicas e expressivas que determinado meio sonoro possibilita. Sendo que como meio sonoro se entende qualquer instrumento/voz ou formação instrumental/vocal/mista. Dentre os assuntos que o termo engloba pode-se destacar: técnicas específicas de execução; possibilidades físicas e mecânicas; possibilidades expressivas, procedimentos típicos da escrita; nível de exequibilidade dos procedimentos;

conhecimento de obras relevantes para o meio, etc (KREUTZ, 2012, p. 3).

Desta forma, podemos concluir que, de maneira geral, o idiomatismo está ligado às

capacidades sonoras que um objeto (instrumento musical) pode proporcionar e que

isto está diretamente relacionado às suas propriedades físicas. Por isso, quando

alteramos a morfologia de um instrumento, geramos novas possibilidades sonoras,

técnicas e consequentemente, idiomáticas.

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Trazendo esta ideia para o contexto instrumental aqui estudado, ao modificarmos a

estrutura física do berimbau, poderemos gerar novas possibilidades técnicas e

sonoras. Por exemplo, como ocorreu na construção do berimbau de três vergas de

Ramiro Musotto, ou ainda quando posicionamos a cabaça no meio da verga – o que

não é comum no berimbau de barriga tradicional do Brasil – gerando duas notas

fundamentais (acima e abaixo da cabaça), acarretando novas possibilidades

harmônicas e escalares para o instrumento. Com isso a forma antiga de se tocar, e

as características que a estruturam, serão modificadas produzindo novas técnicas

idiomáticas.

Ao estudar sobre os aspectos idiomáticos do cravo na música contemporânea,

Beatriz Pavan discorre sobre as modificações morfológicas do instrumento e suas

implicações musicais:

Logo começam a ocorrer transformações na construção de vários instrumentos e estes passam a ser utilizados pelos seus timbres característicos. Surgem obras idiomáticas para formações específicas (PAVAN, 2009, p. 39).

Desta forma, conhecer as características físicas do instrumento nos ajuda a melhor

compreender suas capacidades timbrísticas. Assim, quanto mais utilizamos este

potencial sonoro específico de cada objeto, mais idiomático será a composição ou a

performance. Segundo La Rue, o idiomatismo está ligado ao “reconhecimento (ou

ignorância) das capacidades especiais dos instrumentos.” (LARUE, 1970, p. 27)

Ainda sobre a execução técnica instrumental, temos Batistuzzo que afirma:

[..] na música, o que identifica o idiomatismo em uma obra é a utilização das condições particulares do meio de expressão para o qual ela é escrita, como instrumentos ou vozes. [..] Quanto mais uma obra explora aspectos que são peculiares de um determinado meio de expressão, utilizando recursos que o identificam e o diferenciam de outros meios, mais idiomática ela se torna (BATISTUZZO, 2009, p. 75).

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Tulio exemplifica este conhecimento das condições particulares do instrumento na

escrita musical para percussão:

Na escrita para os pratos, por exemplo, pode vir especificado a região a ser tocada - borda, cúpula ou meio, e é essa variedade de timbres de um mesmo instrumento que faz a diferença no idiomatismo. Algumas escolhas dos compositores são fundamentais para uma escrita idiomática para percussão (TULIO, 2005, p. 300).

Devido a importância de se conhecer os recursos sonoros de um instrumento,

compositores se aproximam de instrumentistas para desenvolver suas obras.

Segundo Pavan, “Os compositores que apresentam aspectos idiomáticos em suas

obras o fazem por tocarem o instrumento ou pela aproximação com os

instrumentistas.” (PAVAN, 2009, p. 39).

O idiomatismo também pode estar relacionado as características de um gênero ou

estilo musical, e não somente à técnica instrumental. Nascimento, que em sua

pesquisa organizou o conceito de idiomatismo em três categorias – linguagem

instrumental , musical e composicional – afirma:

Além da visão voltada para as particularidades de um instrumento, temos também, conceituações que tratam o idiomatismo com aspectos relacionados ao meio de expressão, além da apropriação de um estilo de escrita ou música associado a um determinado período, indivíduo ou grupo (NASCIMENTO, 2013, p. 8).

Trazendo para o contexto da pesquisa sobre o berimbau, podemos visualizar estas

variações de um mesmo conceito observando o processo de músicos que utilizaram

o idiomatismo técnico no berimbau de barriga, porém de forma desprendida do

idiomatismo musical utilizado na tradição da Capoeira, como é o caso de Naná

Vasconcelos.

Por isso, o uso de idiomatismos característicos de outros gêneros musicais também

pode ser um fator que altera ou modifica a técnica de execução de um instrumento

específico. Isso ocorre com frequência em relação aos instrumentos de percussão,

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por exemplo quando se utiliza frases de surdo e tamborim para se tocar o samba no

violão, ou quando se imita o rufar de uma caixa ao se executar o ritmo de frevo no

pandeiro. Segundo Batistuzzo:

A aplicação do recurso idiomático pode deixar a execução até mais difícil tecnicamente, mas musicalmente torna-se mais lógica e convincente, tornando se necessário e inevitável, portanto, esse tipo de abordagem (BATISTUZZO, 2009, p. 79).

Levando em conta estas particularidades em relação à ideia de idiomatismo em

música, é necessário esclarecer que a atual pesquisa se favorece deste conceito

para o estudo da técnica instrumental do berimbau de barriga, a partir da

observação de seu uso na música tradicional da Capoeira e em alguns trabalhos de

música popular brasileira. Como foi visto a partir das definições citadas acima, a

estrutura física do instrumento influencia diretamente na forma como o tocamos, e

no caso das composições apresentadas neste trabalho, foram utilizados berimbaus

típicos da Capoeira. A partir do estudo de seus recursos técnicos, chegamos à

seguinte indagação: de que forma os recursos idiomáticos do berimbau podem ser

usados para a construção de novas composições? A resposta está na metodologia

utilizada nos processos composicionais e nas próprias peças apresentadas, sendo

este trabalho a exposição de recursos idiomáticos do berimbau brasileiro, e a

utilização destes recursos para a construção de composições alheias às concepções

musicais tradicionais.

Pesquisa de campo

Este processo de pesquisa, aprendizado e ressignificação ocorreu através da

vivênciaprática de onze anos de contato direto com o berimbau em diversos

contextos. Desta forma, todo o trabalho de campo fundamenta-se naquilo que

Thiago Aquino descreve como familiaridade e afinidade– a estreita proximidade

entre pesquisador e objeto, o tipo de trabalho que “caracteriza-se pela ênfase na

participação, em contraste com abordagens anteriores cuja ênfase era na

observação” (AQUINO, 2014, p. 29).

20

No ano de 2006 iniciei a prática da Capoeira e consequentemente o contato com o

berimbau. Desde o aprendizado dos primeiros fundamentos fui instruído sobre a

diversidade de tipos de toques, funções dos berimbaus e sobre a configuração das

baterias3, que variava de acordo com o grupo e seus mestres. Desde o início

também tive contato com as produções fonográficas de mestres de grande

reconhecimento na comunidade da Capoeira, por suas contribuições no trabalho

com esta cultura e pelo reconhecimento de serem grandes tocadores de berimbau.

Mestres como Traíra, Waldemar, Canjiquinha, Bimba, Gato Preto, Paulo dos Anjos,

João Pequeno, João Grande, Moraes, Suassuna, dentre outros, são nomes muito

conhecidos no meio, e deixaram alguns registros fonográficos onde podemos buscar

e aprender ao menos um pouco sobre suas concepções musicais na Capoeira.

Paralelamente a este aprendizado, no ano de 2010 ingressei no curso de

bacharelado em percussão na UNESP, onde tive a oportunidade de tocar obras de

importantes compositores do século XX e aprender sobre suas concepções e

processos composicionais. Dentro da vasta diversidade de instrumentos que o

universo da percussão disponibiliza para os compositores, percebi a crescente

utilização da percussão brasileira nestas novas obras, e minhas experiências com

estes instrumentos – principalmente o berimbau – permitiram e estimularam o

contato de forma aprofundada com este repertório. Tocar peças como Peia de Saulo

Bortoloso, Frevi, de Leonardo Gosorito e Rafael Alberto e Septeto (citado

anteriormente) de Artur Rinaldi possibilitou o trabalho e a reflexão sobre

problemáticas que envolvem adaptações técnicas decorrentes de novas propostas

musicais utilizando instrumentos de percussão brasileira. Também pude trabalhar

em colaboração com o compositor Alexandre Lunsqui em uma nova versão de sua

peça solo de berimbau Íris. Atravésdesta experiência foi possível rever, aprimorar e

adaptar técnicas tradicionais, além de criar e experimentar diversos novos recursos

decorrentes do processo colaborativo entre compositor e intérprete.

Apesar de se tratar de experimentos composicionais, o trabalho prático aqui

apresentado foi iniciado em colaboração com capoeiristas do Centro Cultural de

Capuêra Angola Paraguassu (CCCAP), fundado por Mestre Jaime de Mar Grande

3Na Capoeira, Bateria é o termo que se refere ao conjunto de instrumentos utilizados em uma roda.

21

(Jaime Lima) onde ocorria meu aprendizado da Capoeira. Neste local fundamos a

Orquestra Paraguassu, um grupo formado por capoeiristas que se reuniam para

realizar e compor experimentos musicais com berimbaus.

Muito do que foi realizado na Orquestra Paraguassu, no que se refere aos

fundamentos das metodologias adotadas, foi influenciado pela filosofia do grupo e

de seu mestre. Existem inúmeros grupos de Capoeira,e em cada um há

especificidades que estão relacionadas a diversos fatores como método de ensino,

nome dos golpes, cantos, toques de berimbau, estilos de jogo, dentre outros, que

vão ao encontro da história e filosofia do mestre ou mestra que coordena o grupo.

Dentre os conceitos filosóficos que norteiam o trabalho de ensino e prática de

Capoeira realizado no CCCAP está a busca pela identidade de cada capoeirista em

sua movimentação corporal e da sua personalidade no jogo. Ou seja, fundamentos

gerais como ginga, golpes, cantos, dentre outros, devem ser preservados, porém

existem trejeitos corporais próprios de cada indivíduo, além da maneira como estes

fundamentos são usados, que se manifestam de forma espontânea na roda de

Capoeira. Estes fatores individuais se manifestam por consequência da maneira

como nos adaptamos fisicamente e emocionalmente ao jogo da Capoeira, e a partir

destes elementos pessoais podemos acessar um estado de criatividade no momento

da roda, gerando situações surpreendentes no jogo. Para isto, Mestre Jaime de Mar

Grande constrói o aprendizado da Capoeira sem que a movimentação corporal dos

praticantes seja completamente padronizada. Além disso, o ensino dos movimentos

não é feito na configuração de sequências pré-estabelecidas de golpe e contragolpe

– que se tornaram muito comuns no ensino da Capoeira – que também acaba por

padronizar as possibilidades de resposta para um golpe, fazendo com que o jogo se

torne previsível.

Esse estímulo à criatividade, e a busca por fugir da reprodução de padrões já

estabelecidos (no jogo da Capoeira), foram essenciais para moldar o perfil da

Orquestra Paraguassu, caracterizando-se como um espaço de experimentação e

criação, onde foi possível colocar ideias advindas de conceitos diversos, da música

erudita e da música popular, produzindo composições para berimbau sem a

necessidade de se restringir a reprodução de toques ou ritmos já existentes.

22

Conforme já citado, a Orquestra foi construída em um espaço de prática de

Capoeira, e consequentemente os primeiros participantes deste grupo pertenciam a

este meio, fator que influenciou de forma direta nas possibilidades sobre as

primeiras experimentações/composições realizadas sob dois aspectos:

1- Nesta fase, a escrita musical não foi um método adotado por não ser uma

linguagem utilizada no meio da cultura popular. As primeiras composições

foram estruturadas por sequências de padrões rítmico-melódicos, semelhante

ao que constitui os toques de Capoeira. A partir de toques conhecidos,

elaboramos novos padrões que se contrapunham gerando resultantes

distintas – rítmica e harmonicamente – do que se ouve em uma roda de

Capoeira. Desta forma, as primeiras composições se assemelham aos toques

tradicionais pelas repetições de padrões rítmicos e melódicos, porém se

distinguem nas afinações, tipos de ritmo, melodias resultantes, dentre outros.

2- Outro fator presente na construção das duas primeiras composições foi o fato

de que nem todos os integrantes do grupo (Orquestra Paraguassu)

dominavam a técnica de se tocar o berimbau. Ainda seguindo a dinâmica e

filosofia do CCCAP, onde não existe treino de Capoeira para avançados ou

iniciantes, decidimos trabalhar com qualquer pessoa que quisesse participar,

mesmo que a princípio não soubesse tocar nada do instrumento, fazendo

com que todos pudessem interagir musicalmente, contribuindo de acordo com

o seu nível de desenvolvimento técnico. Tal fator foi tão decisivo para o

resultado das peças que as duas primeiras composições podem ser

classificadas como “peças didáticas”, pois foi levado em conta o

desenvolvimento técnico dos participantes que colaboraram com a construção

da mesma.

Estes primeiros trabalhos foram essenciais para o aprendizado sobre as

possibilidades sonoras resultantes de um conjunto de berimbaus, pois foram

experimentados diversos recursos, levando em conta o fator harmônico e melódico,

que neste caso são compostos por um conjunto de notas divididas entre os

berimbaus. Por isso, cada instrumento é pensado como uma peça de um grande

mosaico, ainda levando em conta nesses primeiros casos o desenvolvimento técnico

23

dos participantes. O conhecimento reunido durante o processo de elaboração destas

duas primeiras peças foi fundamental para o desenvolvimento das demais

composições.

Com relação a todo o trabalho de transcrição e notação – de toques e peças –

tomamos como base o pensamento de Beyer:

Tendo em mente os problemas que a notação ocidental apresenta, ela pode, no entanto, ser uma ferramenta valiosa para ampliar a perspectiva e se aprofundar em uma música. [...] Para mim, o processo de transcrição sempre ajudou a entender o funcionamento interno de qualquer assunto musical que estou estudando. Na verdade, é o processo de transcrição em si que é tão importante quanto a transcrição real. Além deste processo, o ato de análise posterior a transcrição finalizada também é frutífero (BEYER, 2004, p. 11).

Neste sentido, procuro oferecer um entendimento mais profundo do material musical

apresentado, através de transcrições que fazem uso de um sistema notacional

adequado, obtido após meticuloso trabalho comparativo entre outros sistemas

utilizados em diversos trabalhos. De forma a garantir tal entendimento, faço uso

também do recurso de gravações em áudio.

Organização da Dissertação

O primeiro capítulo deste trabalho irá apresentar alguns conceitos e nomenclaturas

referentes ao berimbau que serão fundamentais para o entendimento dos capítulos

seguintes. Isso porque as terminologias que se referem a elementos como notas,

sons e alguns parâmetros específicos deste instrumento serão identificados, e

através destes conceitos, o trabalho será apresentado. Haverá ainda uma breve

discussão sobre a questão da escrita musical para o berimbau, de forma a

apresentar e justificar o padrão adotado no trabalho. Este capítulo também irá

contextualizar o leitor sobre alguns fundamentos que envolvem o instrumento e sua

história na Capoeira. Muito sobre a prática do berimbau advém de questões ligadas

à sua função simbólica dentro da tradição na qual faz parte. Discorrer um pouco

24

sobre esses elementos irá favorecer o aprofundamento e a compreensão sobre a

música que o envolve.

No segundo capítulo iremos traçar algumas considerações sobre importantes

técnicas idiomáticas do instrumento que foram organizadas nos seguintes tópicos: a)

Recursos Timbrísticos, b) Padrões Rudimentares, c) Padrões Rítmico-Melódicos e d)

Afinações. Esses tópicos foram definidos com base na observação da práxis do

berimbau na tradição da Capoeira e no campo da música popular brasileira. Estas

técnicas idiomáticas formam os principais elementos utilizados nas composições

experimentais deste trabalho. Para poder exemplificar e fundamentar este capítulo

utilizaremos algumas gravações publicadas em discos que consideramos de grande

importância para o desenvolvimento do instrumento. Gravações fonográficas de

mestres de Capoeira de notória representatividade na cultura popular, assim como

trabalhos de percussionistas que se dedicaram à exploração sonora do berimbau,

serão usadas nas exemplificações de cada tópico, evidenciando as principais

influências das composições apresentadas, e mostrando as fontes de pesquisa para

o aprendizado sobre o idiomatismo do instrumento. É importante frisar que nossa

intenção não é analisar o berimbau na capoeira, com toda a amplitude que este

tema possa derivar, ou dissertar sobre a biografia de percussionistas que utilizaram

este instrumento, mas pretendemos fazer recortes que nos permitam contextualizar

e delimitar os experimentos composicionais.

No capítulo três mostraremos como as técnicas idiomáticas foram utilizadas na

prática composicional. Serão apresentadas as metodologias e os resultados

alcançados, e através da análise das composições será possível evidenciar as

formas nas quais foram abordadas as técnicas idiomáticas elucidadas no segundo

capítulo. A partir das composições criadas neste trabalho foi possível delimitar os

recortes sobre o objeto de pesquisa, feitos nos demais capítulos. Isso porque os

assuntos que derivam do instrumento berimbau, seja na Capoeira ou qualquer outro

contexto, implica no aprofundamento de muitas discussões em diferentes áreas.

Cada mestre ou músico citado neste trabalho poderia ser fruto de uma única

pesquisa.

25

1. CONCEITOS INTRODUTÓRIOS

1.1 Morfologia e Notas Básicas.

O berimbau tradicional é constituído basicamente por uma verga de madeira (arco)

de aproximadamente 1,40 a 1,70 metros, um arame tensionado e uma cabaça. A

cabaça tem função de caixa ressonadora e é presa por um barbante que envolve a

verga e o arame, e é nesse barbante que sustentamos o instrumento com o dedo

mínimo de uma das mãos. A cabaça quase nunca ultrapassa a média de um palmo

de distância da extremidade inferior do instrumento. É tocado com uma vareta ou

baqueta percutindo-se no arame, além de um caxixi4 preso na mão que segura a

baqueta. As diferenças de som são feitas por uma pedra ou moeda – mais

conhecida como dobrão – que fica na mão que sustenta o instrumento. Quando

pressionamos o arame com esta pedra ou dobrão, mudamos seu comprimento e

consequentemente alteramos a frequência da nota obtida. Se apenas encostarmos a

pedra no arame, sem exercer pressão necessária para extrair outra nota mais

aguda, obtemos uma nota sem altura definida proveniente deste abafamento da

pedra. A este som chamaremos de “chiado”, que também é conhecido pela alcunha

de “escracho”. É um som agudo e percussivo muito utilizado no berimbau brasileiro.

Assim definimos as três principais notas básicas do instrumento: a nota solta

(fundamental), extraída a partir do toque da baqueta no arame solto; a nota presa

(aguda), que é obtida a partir da pressão da pedra no arame e o chiado, que é

resultado do som do contato da pedra no arame, porém sem nenhuma pressão.

A partir destas notas alcançamos efeitos oriundos da fusão entre elas que serão

muito usados e de grande relevância na execução técnica do berimbau, em qualquer

estilo musical onde o instrumento é utilizado. Estes efeitos são realizados partindo

do princípio de que nem sempre é necessário percutir com a baqueta no arame para

se extrair uma nota básica. Se o arame já estiver vibrando, basta encostar a pedra

para modificar o som. Desta forma, atingiremos mais três notas constituídas de dois

4 “O Caxixi é um pequeno chocalho feito de palha traçada com a base de cabaça(Cucurbita lagenaria,

Linneu), cortada em forma circular e a parte superior reta,terminando com uma alça da mesma palha, para se apoiar os dedos durante o toque. No interior do caxixi há sementes secas que ao se sacudir dá o som característico” (REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio Sócio-Etnográfico, Salvador: Editora Itapoan, 1968, p. 51).

26

sons, permutando as notas básicas descritas no parágrafo anterior. Serão elas:

grave-agudo, grave-chiado, agudo-grave5.

Outro efeito sonoro básico muito característico do berimbau é o abafamento da

cabaça, bloqueando a sua abertura no peito ou na barriga. Este efeito irá modificar o

som das notas solta, presa e do chiado, possibilitando a execução de vibratos e da

produção de diferentes dinâmicas com o mesmo som – abafando e “soltando” a

mesma nota.

O conceito de toque de berimbau que empregaremos aqui é o mesmo retratado por

Shaffer, que o define como padrão rítmico-melódico (SHAFFER, 1977, p. 36).

Utilizando as notas básicas e suas permutações em desenhos repetidos,

construímos padrões maiores constituindo assim os toques. É importante ressaltar

que apesar de o toque de capoeira ser um padrão de sons rítmicos e melódicos que

se repetem, existem nuances que influenciam e mudam o resultado da sonoridade

geral do toque.

1.2 Considerações sobre o Berimbau na Capoeira

A Capoeira nasceu como uma forma de defesa, resistência e revolta dos negros

escravizados no Brasil. Uma luta disfarçada de dança (e vice-versa) como arma de

defesa e ataque em um ambiente hostil. Hoje em dia a Capoeira é geralmente

praticada em rodas, com a presença do conjunto de instrumentos tradicionais – que

como dito anteriormente, podem variar – que nesse contexto é chamado de bateria.

Apesar de não ter perdido o aspecto marcial, a Capoeira também possui atributos

lúdicos, onde os praticantes simulam diversos tipos de situações durante a prática,

com o fim de se favorecer na luta. Os aspectos estratégicos que envolvem a

utilização correta dos golpes e das maneiras de se ludibriar o oponente também dão

à Capoeira a característica de jogo.

5 Apesar de o som agudo-grave existir e poder compor um discurso musical, não é uma nota comum no

repertório tradicional do instrumento, sendo executada muitas vezes de forma inconsciente decorrente da movimentação da pedra no arame.

27

Em uma roda de capoeira o berimbau é o instrumento responsável por iniciar e

finalizar a roda. O toque dos berimbaus comanda o andamento da música e chama

os capoeiristas para iniciar ou finalizar o jogo, e quem toca o berimbau geralmente

tem preferência sobre o canto. Por isso este instrumento é reservado para as

pessoas com mais experiência na tradição, presentes no momento da roda. Na

maioria absoluta das gravações de grupos de capoeira, é o berimbau que inicia a

música evidenciando sua liderança no conjunto instrumental.

Os instrumentos de percussão que acompanham o berimbau em uma roda de

Capoeira podem variar de acordo com o grupo e seus mestres. Mestre Bimba, por

exemplo, utilizava um berimbau e dois pandeiros. Mestre Pastinha usava três

berimbaus, um atabaque, dois pandeiros, um reco-reco e um agogô. Na bateria de

Mestre Paulo dos Anjos eram utilizados três berimbaus, dois pandeiros e um

atabaque.

Na maioria dos toques de capoeira conhecidos, os padrões dos instrumentos de

marcação irão mudar muito pouco, exceto os berimbaus que poderão variar entre

diversos toques além de fraseados improvisados. Em geral, os três berimbaus são

chamados de Gunga, Médio e Viola e possuem características sonoras e funções

diferentes. O berimbau Gunga geralmente tem registro grave e sua verga é mais

flexível, proporcionando menor tensão no arame e assim alcançando notas mais

baixas. Sua cabaça possui maior dimensão valorizando a projeção dessas notas. O

Gunga é considerado o “mestre da roda”, por ser o berimbau que dita o ritmo e

determina as mudanças de toque e andamento. Comumente, é este berimbau que

inicia a roda e chama os capoeiristas para iniciar e finalizar o jogo. O berimbau

Médio possui tessitura próxima ao Gunga, porém mais agudo. Independente das

funções estabelecidas ao Gunga e ao Viola, o Médio é um berimbau que possui

características que unem os outros dois berimbaus; tanto harmonicamente, por

preencher o acorde resultante, como ritmicamente, por ter função de marcação e

também possuir liberdade para executar variações. O berimbau Viola, salvo algumas

exceções, possui maior liberdade para executar variações e improvisos. Em geral,

possui frequência mais aguda, e mesmo quando afinado na mesma nota do Médio,

seu timbre é diferenciado. Possui uma cabaça menor e a verga é mais rígida,

proporcionando maior tensão no arame resultando em uma nota mais aguda. A

28

inter-relação entre os berimbaus, a maneira como eles interagem, além da afinação,

são fatores que irão mudar dependendo do mestre e do grupo de capoeira em

questão.

No universo da Capoeira existem diversos toques de berimbau, sendo alguns de

autoria conhecida, e outros que não se sabe precisamente quando e nem como

nasceram. Autores como Kazadi wa Mukuna (MUKUNA, 2000), assim como

Waldeloir Rego (REGO, 1968) alegam que o berimbau já era utilizado em outras

manifestações populares antes de ser inserido na Capoeira. Ambos citam o livro

Viagens ao Nordeste do Brasil (1942) de Henry Koster6 que descreve em seus

relatos a utilização do berimbau em danças populares.

Levando em consideração os indícios – pinturas e gravuras retratando cenas do

século XIX – de que a Capoeira era praticada ao som de tambores e palmas de mão

(sem a presença do berimbau), é possível supor que toques antigos como Angola ou

São Bento Pequeno provavelmente foram criados baseados em padrões de

atabaques, já que o berimbau teria sido inserido em algum momento posterior a este

início. A partir desta visão também é possível inferir que a configuração de três

berimbaus (grave, médio e agudo) em uma roda de capoeira foi, de alguma forma,

influenciada pela tríade de tambores provinda das religiões afro-brasileiras.

Apesar de não estar presente desde o nascimento da Capoeira, o berimbau se

tornou seu principal instrumento. Seus toques possuem significados diretos, e

somados ao canto, comunicam aos capoeiristas sobre questões fora e dentro da

roda. Em 1982 o IRDEB (Instituto de Radiodifusão do Estado da Bahia) lançou um

documentário intitulado Capoeira em Cena, entrevistando alguns dos principais

mestres de capoeira da Bahia. Em um trecho do vídeo onde Mestra Canjiquinha

(Washington Bruno da Silva) fala sobre as classificações e nomenclaturas de

Capoeira “Regional” ou “Angola”, ele cita:“...se eu toquei Angola, tem que jogar

devagar, se eu toquei São Bento Grande o cara tem que apelar para a ignorância.”

6 Henry Koster, também conhecido como Henrique da Costa, foi empresário e pintor português. Filho

de pais ingleses, por motivos de saúde veio ao Brasil em 1809, onde se tornou senhor de engenho. (fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Henry_Koster)

29

Mestre Canjiquinha estava se referindo a dois toques distintos – Angola e São Bento

Grande – executados no berimbau, e a relação direta com o jogo.

Figura 3 - Mestre Canjiquinha (1925-1994)

Alguns toques não são mais utilizados em uma roda de capoeira com a mesma

função que possuíam em sua origem, permanecendo como um registro musical

sobre a história da capoeira e a diversidade de toques proveniente do berimbau,

sendo estes toques mais executados em apresentações. É o caso do toque de

Cavalaria, que denunciava a chegada da polícia montada de Salvador quando a

Capoeira era proibida por lei, e o toque de Aviso que nos tempos do quilombo

alertavam a chegada de algum estranho.

A Capoeira é considerada uma arte, dança, luta, jogo, teatro, brincadeira,

espiritualidade. Como mestre Pastinha7 expressava “Capoeira é tudo que a boca

come” (PASTINHA, 1969). Dentro deste universo, existem vários tipos de jogo, ou

características e formas de se jogar a Capoeira, que irão ditar aspectos como a

velocidade, proximidade do jogo (se o jogo é mais junto ou separado), altura (se é

jogado mais agachado ou em pé), dentre outros. E em muitos destes casos cada

tipo de jogo irá receber o mesmo nome do seu toque específico de berimbau, como

é o caso do Jogo de Dentro, Angola, Regional de Bimba, Panha Laranja no Chão

Tico-Tico, Miudinho, dentre outros.

7 Vicente Ferreira Pastinha ( 1889- 1981) foi um dos mais conhecidos mestres de Capoeira e propagadores da

Capoeira Angola.

30

Sendo o toque a repetição de um padrão, é importante ressaltar que na prática

musical da capoeira este padrão irá constantemente sofrer pequenas modificações

durante a sua execução. Estas mudanças podem ser pequenas ou grandes,

chegando ao ponto de ser possível perder a referência do próprio padrão original, ou

seja, se distanciar da estrutura do toque. Para a melhor organização das análises do

desenvolvimento de um toque de berimbau, e para melhor compreendermos as

influências nas estruturas composicionais que serão aqui trabalhadas, utilizaremos

os termos variação e improvisação para diferenciar o desenvolvimento de um toque

específico. Variação ou virada, são termos que utilizaremos para especificar as

pequenas alterações feitas em um toque específico, que ocorrem de maneira que a

sua estrutura básica se mantém preservada. Ou seja, indica uma maneira de tocar

onde se acrescenta, subtrai ou desloca algumas notas de forma que, mesmo com

essas alterações, ainda seja possível identificar o padrão original (toque). Já a

improvisação indica maior desprendimento em relação ao padrão original,

produzindo uma nova estrutura melódica e rítmica.

1.3 Notação

A produção de métodos de berimbau, estudos etnográficos e principalmente a

crescente utilização deste instrumento por compositores da música erudita, criaram

a necessidade do uso de uma grafia musical adequada. Assim como ocorre com

outros instrumentos de percussão brasileira, não existe um sistema oficial de escrita

para o berimbau, porém acreditamos ser possível utilizar modelos que já foram

adotados em outros trabalhos.

É importante nos atentarmos que a notação musical deve estar de acordo com o

idiomatismo, e que este está diretamente ligado às propriedades físicas do

instrumento, como foi citado anteriormente. Por isso, quando se altera a morfologia

de um instrumento musical de forma que seus sons sejam consideravelmente

modificados, isto irá acarretar na busca por novos recursos gráficos para representar

estas características. No entanto, neste trabalho estamos discutindo o modelo de

berimbau utilizado na Capoeira, que apesar das variações físicas existentes entre

cada instrumentos, possuem características básicas em comum: verga de madeira

de aproximadamente 1,40 a 1,70 metros; cabaça presa por um barbante e

31

posicionada a aproximadamente um palmo (ou menos) da ponta inferior do arco;

arame metálico; pedra ou dobrão; baqueta lisa de madeira e caxixi. Além disso, a

técnica de execução que estamos abordando é basicamente a mesma utilizada

pelos Capoeiristas, e que posteriormente foi adotada por percussionistas da MPB.

Por isso estaremos utilizando um sistema notacional que acreditamos estar de

acordo com as demandas do contexto musical aqui discutido, de forma que a grafia

não irá abarcar timbres e possibilidades sonoras do instrumento que não foram

utilizados de forma prática nas músicas analisadas e nas composições. Gianesella,

em seu artigo sobre notação de pandeiro cita:

...no caso do compositor optar em escrever de forma menos específica para o pandeiro, ou ainda, se em sua composição ele não utilizar elementos timbrísticos tão específicos do pandeiro como o tapa, o rulo de dedo, o rim-shotde dedos, o tapa de polegar, o glissando e o staccato metálico. Então ele pode e deve simplificar sua escrita excluindo esses elementos da bula (GIANESELLA, 2012, p. 196).

Desta forma, práticas como o uso de duas baquetas, berimbau de duas ou três

vergas, uso da cabaça próximo ao centro do arco, ou outras modificações no corpo

do berimbau não foram utilizadas neste trabalho e por isso não geraram a demanda

por sinais gráficos que as representassem. Iremos nos restringir às técnicas

idiomáticas tradicionais utilizadas na Capoeira, e posteriormente, na música popular

brasileira.

O percussionista Luisda Anunciação desenvolveu um sistema de escrita para

instrumentos de percussão popular brasileira, e com ele escreveu um método para

berimbau intitulado A Percussão dos Rítmos Brasileiros (Sua Técnica e Sua Escrita)

– Berimbau. No início do livro Luis D´Anunciação descreve o funcionamento de seu

método:

A escrita do berimbau se processa de acordo com a notação musical. Não se usa clave e o pentagrama tradicional é substituído por uma pauta funcionalmente adequada à gama tímbrica por ele utilizada, onde cada som ou efeito sonoro produzido é identificado pela propriedade de sua articulação. Por exemplo: articular a corda com a baqueta gerando o som é uma propriedade; modificar o som articulado é outra propriedade. Isso quer dizer: a escrita tem como parâmetro a maneira como o som é produzido (ANUNCIAÇÃO, 1990, p. 11).

32

Desta forma, além do ritmo aplicado a partir dos toques da baqueta no arame,

também são representados graficamente: o caxixi, os movimentos de abafamento da

cabaça e os movimentos da pedra ou dobrão que modificam o som do arame. Assim

temos os principais elementos da técnica idiomática do berimbau utilizados

tradicionalmente na Capoeira.

Neste método, D´Anunciação não discute a questão da afinação, e de como este

elemento pode ser representado em seu sistema notacional.

Na segunda parte do livro, as representações gráficas são ampliadas para abarcar

novas técnicas que são propostas pelo autor, como a utilização de duas baquetas

em uma mão, além dos sons da baqueta percutindo na verga, na cabaça, e em

diferentes regiões do arame.

Práticas como os trinados com a baqueta entre a verga e o arame, geralmente são

executados ao longo de toda a extensão do arco, sendo possível variar o timbre do

toque na madeira, já que este se modifica dependendo da região da verga. Para

especificar e representar graficamente as diferentes regiões do arco, o compositor

Alexandre Lunsqui desenvolveu um meio de escrita para sua composição intitulada

Íris (2001 e 2012), para berimbau solo.

33

O percussionista e pesquisador Greg Beyer desenvolveu um sistema de escrita8 que

fosse capaz de atender às demandas de seu trabalho composicional. Neste sistema

são representados diversos timbres diferentes que são extraídos do corpo do

berimbau, como o toque com a baqueta na cabaça ou na verga, fricção com a

baqueta em diferentes regiões do instrumento, toque do dobrão na verga, dentre

outros efeitos sonoros. Além disso, seu sistema de escrita foi elaborado para

representar a extensa tessitura que um único instrumento pudesse emitir, já que

Beyer modificou a estrutura física do berimbau tradicional posicionando a cabaça em

regiões próximas ao centro da verga. Esta modificação dá ao instrumento duas

notas fundamentais (acima e abaixo da cabaça), além de multiplicar os intervalos

possíveis de se obter com o contato da pedra nestas duas metades do arame. Para

representar graficamente esta extensa gama de sons, Beyer utiliza um sistema com

um, ou em alguns casos, dois pentagramas para cada instrumento.

8Fonte: www.arcomusical.com

34

Buscando um sistema gráfico que estivesse em conformidade com as características

idiomáticas – técnicas e estilísticas – que contextualizam o presente trabalho de

pesquisa, adotamos um sistema de escrita baseado no modelo de notação para

pandeiro proposto pelo percussionista e compositor Carlos Stasi onde as notas são

representadas sobre uma única linha. A partir deste modelo, adaptamos os símbolos

para representarem os sons do berimbau de acordo com a descrição abaixo. Como

foi dito anteriormente, utilizamos o berimbau tradicional da Capoeira com suas

principais características morfológicas e os recursos técnicos mais utilizados neste

meio. O modelo de escrita proposto por Stasi – que pode ser adaptado para diversos

instrumentos de percussão – se mostra adequado e sucinto, facilitando a

compreensão do leitor. O posicionamento de cada nota, além das diferentes

simbologias gráficas atribuídas a elas, são capazes de transmitir de forma sintética

os principais sons e eventos musicais do berimbau.

35

O chiado é um som muito utilizado na música da Capoeira e nas composições

propostas neste trabalho, e também possui características sonoras bastante

diferentes das notas presas e soltas. Por isso utilizaremos o símbolo exibido acima,

pois acreditamos que este contraste de figuras poderá facilitar a leitura.

As ligaduras, quando conectadas à duas notas diferentes, indicam que apenas um

golpe de baqueta foi desferido no arame, de forma que a segunda nota é produzida

pela pedra.

36

As chaves abaixo das figuras indicam o abafamento que ocorre pela execução da

nota com a abertura da cabaça obstruída contra o corpo. A chave pontilhada mostra

exatamente onde começa e onde termina o efeito de desabafar (ou abafar) os sons

extraídos do arame. Como estamos trabalhando com as técnicas idiomáticas

tradicionais, utilizadas na Capoeira e posteriormente na música popular brasileira, o

chiado sempre é executado com a cabaça encostada ao corpo, a não ser quando

produzido apenas pelo ato de encostar a pedra no arame enquanto este está

vibrando. Por isso, apenas nestes casos indicaremos se o chiado está abafado ou

não, através do uso das chaves, como mostra a figura acima.

37

Quando utilizamos o berimbau com o caxixi – como acontece no contexto tradicional

– é inevitável que o som deste chocalho ocorra junto com os movimentos da

baqueta. Por isso indicaremos a nota que representa o som do caxixi apenas

quando esta ocorre de forma isolada ou independente dos sons do arame. Estes

sinais gráficos (baqueta na verga e nota do caxixi), bem como as chaves de

abafamento, são adaptações feitas sobre o sistema básico de Stasi. Acreditamos

que o uso destas figuras para representar seus respectivos sons podem facilitar a

leitura e a escrita no contexto deste trabalho.

A afinação do berimbau, assim como suas especificações timbrísticas (Gunga,

Médio ou Viola) é indicada no início da linha:

2. RECURSOS IDIOMÁTICOS

Neste capítulo discorreremos sobre os elementos técnicos idiomáticos do berimbau.

Tratam-se de recursos musicais observados no instrumento, que foram separados

em tópicos para a melhor compreensão dos mesmos. A importância desta discussão

para este trabalho está no fato de que estes elementos idiomáticos foram

identificados e utilizados de forma consciente no processo de elaboração das

composições. Além disso, a organização destes tópicos também foi importante para

o processo de aprendizado e aprimoramento prático do instrumento, assim como

para a pesquisa técnica realizada sobre os recursos idiomáticos.

Como será possível averiguar, os tópicos propostos neste capítulo fazem referência

a alguns dos principais elementos observados na forma de se tocar de diversos

38

instrumentistas. Caracterizam-se por serem recursos musicais do berimbau que

foram desenvolvidos por músicos da Capoeira e da música popular. São eles: a)

recursos timbrísticos do instrumento, b) padrões rudimentares na utilização da

baqueta, pedra e arame, c) padrões e toques convencionalizados no instrumento e

d) diferentes afinações e suas resultantes melódicas e harmônicas.

Por isso, para fundamentar as considerações sobre cada tópico, iremos utilizar

excertos de gravações fonográficas que poderão ilustrar estes elementos. Como foi

dito anteriormente, o critério para a escolha dos excertos foi baseado no fato de

serem gravações onde o berimbau tem grande importância dentro do contexto

musical, além de serem discos conhecidos em seus nichos. Também são produções

musicais que utilizam alguns recursos sonoros de forma pioneira em gravações

fonográficas, servindo como base para seus aprendizados. Os recursos idiomáticos

estão organizados da seguinte forma:

2.1 Recursos timbrísticos

Pela sua constituição física, o berimbau possibilita a extração de diversos timbres

diferentes. Além dos materiais que o constitui – arame de aço, cabaça e madeira – a

dimensão e o formato do instrumento permitem a diversificação de um mesmo

timbre. Por exemplo, quando percutimos com uma baqueta ao longo da verga de

madeira percebemos que o som varia de acordo com a alteração do local onde

ocorre o contato, apesar das superfícies dos materiais serem as mesmas.

Dentre as técnicas idiomáticas mais conhecidas do instrumento, estão as práticas de

abafamento da cabaça, que consistem no ato de encostar ou desencostar a “boca”

da cabaça no corpo após a emissão de uma nota no arame. Através deste efeito

podemos realizar o vibrato das notas soltas e presas – chamado popularmente de

uauá – além de criar figuras rítmicas com a diferenciação entre nota abafada e

desabafada.

O abafamento da cabaça modifica o som, de forma que obtemos novas notas para o

repertório sonoro do instrumento. É possível perceber que ao abafar a abertura da

cabaça, a afinação das notas será um pouco mais grave do que se fossem emitidas

com a mesma desabafada. Porém essa diferença é tão pouca que na maioria dos

39

casos analisados não interfere de forma considerável em questões harmônicas,

tendo maior repercussão na mudança de timbre.

Como foi dito anteriormente, a parte instrumental da música na Capoeira é

basicamente estruturada a partir dos toques, sendo estes construídos por notas

soltas, presas e chiados. Tradicionalmente, a nota chiada – ou escracho – emitida

pelo toque da baqueta, sempre ocorre com a cabaça abafada. Porém, quando esta

nota é obtida pelo toque da pedra no arame enquanto este está vibrando, neste caso

pode ou não ocorrer o abafamento. Em relação às notas soltas e presas, as práticas

de abafamento da cabaça são aplicadas de forma relativamente livre, pois estes

efeitos geralmente não causam mudanças que possam transformar a estrutura dos

padrões a ponto de mudar suas características básicas.

As notas de altura definida – soltas e presas – raramente são emitidas com a cabaça

abafada, sendo mais comum o uso deste efeito depois que a nota é lançada. Assim,

estas notas ganham maior movimento rítmico a partir das dinâmicas de abafamento,

enriquecendo o resultado final do toque.

Ex. 1 Exemplos de abafamentos em toques de Capoeira (CD Faixa 1)

Até onde foi possível verificar neste trabalho, existe apenas um toque tradicional da

Capoeira que utiliza notas soltas sendo emitidas com a cabaça abafada contra o

corpo, trabalhando com o contraste entre os sons abafados e desabafados. Este

toque é denominado Iúna, e tem sua autoria atribuída ao mestre Bimba (Manoel dos

Reis Machado).

40

O toque de Iúna foi gravado pela primeira vez por mestre Bimba, em seu disco

intitulado Curso de Capoeira Regional – Mestre Bimba, lançado em 1969. Nesta

produção são apresentados através da música, alguns fundamentos de seu estilo

Regional9, dentre eles a instrumentação de sua bateria, composta por dois pandeiros

e apenas um berimbau. Bimba afirmava que, utilizando esta formação, os

capoeiristas que estivessem jogando no meio da roda poderiam identificar com mais

clareza os toques e variações do berimbau, e assim potencializar a comunicação

entre música e jogo10.

Nas primeiras faixas são apresentados alguns toques utilizados por mestre Bimba

na Capoeira Regional – dentre eles, o toque de Iúna – e nas últimas duas faixas são

apresentados alguns cânticos – quadras e corridos – acompanhados com o toque de

São Bento Grande da Regional.

Figura 4 - Capa do disco "Curso de Capoeira Regional - Mestre Bimba" (1969)

Como se pode perceber através desta gravação com o próprio mestre Bimba

tocando seu berimbau, o toque de Iúna não utiliza notas presas em sua estrutura

9Capoeira Regional ou Luta Regional Baiana, é o estilo de Capoeira desenvolvido por Mestre Bimba,

baseada em sequencias de movimentos, além do uso de golpes de outras artes marciais. 10 Fonte: MESTRE BIMBA a capoeira iluminada. Direção: Luis Fernando Goulart Produção: Nina Luz

e Claudia Castello. Lumen Produções Ltda, 2007, DVD.

41

padrão, sendo que as diferenciações de notas se dão a partir dos chiados e das

notas soltas abafadas e desabafadas.

Ex. 2 Início do Toque de Iúna, gravado por mestre Bimba em seu disco "Curso de Capoeira Regional" (CD Faixa 2)

Iúna ou Inhuma é o nome de um pássaro sertanejo que, através de seu canto,

inspirou violeiros populares na criação de um ritmo executado na viola caipira.

Segundo mestre Nenel (Manoel Nascimento Machado), filho de mestre Bimba, o

toque de Iúna foi criado a partir de uma adaptação para o berimbau do ritmo

homônimo entoado pelos violeiros. Mestre Nenel conta que esta relação entre viola

e berimbau foi exercida por seu pai, pois além de capoeirista, mestre Bimba era um

exímio violeiro11.

No campo da música popular, tais efeitos do berimbau foram explorados

consistentemente. É importante percebermos como a mudança de contexto – da

Capoeira para a música popular – influenciou a busca e exploração de sons que no

ambiente tradicional não eram tão fundamentais para o discurso musical, pois como

foi visto anteriormente, dos toques tradicionais, apenas o Iúna se vale de tais efeitos

para ter sua identidade preservada.

11

Entrevista com mestre Nenel. https://www.youtube.com/watch?v=UD0y2paAXAc

42

Na verdade, é fato que no contexto da Capoeira existe uma função comunicadora

atribuída aos toques, que possuem um significado específico convencionalizado

pelos participantes desta cultura ao longo do tempo. Tais toques são construídos

basicamente de notas soltas, presas, chiados e permutações entre as mesmas.

Efeitos como batidas com a baqueta na cabaça ou na verga, trêmolos entre arame e

verga, vibratos e outros; na maioria das vezes, atuam como expressões musicais do

capoeirista, porém não fazem parte estruturalmente dos toques e consequentemente

da construção dos significados atribuídos à eles.

Ao retirarmos o berimbau deste meio (Capoeira), para explorar seu potencial sonoro

em palcos e gravações na área de música popular e instrumental, notamos que

estes efeitos que antes eram, na maioria das vezes, detalhes e enfeites, agora

fazem parte de forma consistente da sintaxe do discurso musical. Cada timbre

extraído do instrumento torna-se essencial, de forma que a importância dos sons

são equiparados.

Em contrapartida, a função comunicadora atribuída aos padrões rítmico-melódicos

do berimbau no contexto da Capoeira, e seus significados tradicionalmente

convencionados, se perdem já que neste novo ambiente cada ouvinte pode ter sua

interpretação dos significados atribuídos à música. Neste tipo de abordagem musical

– que também é praticada por capoeiristas – o berimbau ganha sintaxe (mais notas),

mas perde os significados comuns (símbolos convencionados).

O trabalho de Naná Vasconcelos é uma importante referência para mostrar e

entender este processo de mudança de contexto e de proposta musical. Em 1971

Naná Vasconcelos participa da gravação do disco de jazz fusion intitulado Fênix, do

saxofonista argentino Gato Barbieri. Em algumas faixas, Naná toca seu berimbau

sem deixar de forma explícita na música a intenção de fazer referência à Capoeira12.

Até onde foi possível verificar, não encontramos gravações no campo da música

popular antes de Naná, onde o berimbau não fosse utilizado para fazer referência à

Capoeira ou manifestações populares próximas da mesma, realizando padrões

rítmicos e variações já conhecidas na tradição.

12

Com exceção do final da última faixa (Bahia), que termina com um padrão rítmico melódico

semelhante ao toque de São Bento Pequeno.

43

Neste sentido, os abafamentos da cabaça, além de outros sons explorados por todo

o corpo do berimbau – que no contexto da Capoeira, geralmente não são utilizados

estruturalmente nos toques – participam de forma efetiva neste processo, ganhando

destaque e se tornando sons tão importantes quanto as notas soltas, presas e o

chiado no arame, para a construção do discurso musical.

Figura 5 - Capa do disco "Fenix", de Gato Barbieri (1971)

O som de uma baqueta percutindo na verga de madeira poderia ser usado

esporadicamente em um toque de Capoeira, porém nesta mesma faixa (Bahia) do

disco Fenix, Naná Vasconcelos usa este recurso para tocar células rítmicas

conduzindo o groove da música, que é acompanhado pelos demais instrumentistas.

44

Ex. 3 Padrão rítmico com notas percutidas na verga e toques de caxixi. No quarto compasso, a entrada

do contrabaixo (CD Faixa 3)

Na entrevista realizada pelo percussionista e pesquisador Greg Beyer, para a revista

Percussive Notes, Naná conta:

Pouco depois de gravar com Milton (Milton Nascimento), toquei com Gato Barbieri, e ele me deu um pequeno solo durante o concerto, e ali eu percebi que eu tinha algo totalmente diferente. Depois eu comecei a pensar em como eu poderia desenvolver minhas ideias no berimbau (BEYER, 2007, p. 50).

Em 1973, Naná lança seu primeiro disco intitulado Africadeus, mostrando os

resultados deste desenvolvimento de ideias, com um solo de berimbau de quase

vinte minutos de duração, na primeira faixa. Nesta música, é nítida a intensidade da

exploração sonora de timbres, como rulos entre arames (acima e abaixo da cabaça)

e verga, frases rítmicas usando verga e arame, variações na intensidade do caxixi,

sons de baqueta raspando na cabaça, baqueta pressionando no arame, dinâmicas

de abafamento, dentre outras manobras e sons sendo trabalhadas em rítmicas

variadas.

Ao estudar sobre o recurso de abafamento da cabaça para criar efeitos e estruturas

rítmicas, é importante nos voltarmos também para o trabalho do percussionista

argentino Ramiro Musotto. Ramiro já deixou explícito em entrevistas, a importância

da influência de Naná Vasconcelos em sua concepção e seu trabalho musical com o

berimbau (GALM, 2011 p. 14), e a partir desta referência (Naná), e do estudo sobre

45

a musicalidade da Capoeira, Ramiro expandiu as possibilidades de alguns efeitos e

técnicas.

Figura 6 - Ramiro Musotto (1963 - 2009)

Como foi citado na introdução deste trabalho, Ramiro Musotto desenvolveu

experimentos morfológicos com o berimbau, dentre eles o uso de vergas muito

maiores do que aquelas utilizadas na Capoeira, além de uma cabaça mais fina, a

qual denominava de coité. Segundo Ramiro, estes materiais geravam maior

prolongamento dos sons do arame do berimbau (notas soltas e presas), permitindo

maiores possibilidades sobre os efeitos de abafamento. A utilização deste recurso é

muito presente em sua música, e se tornou uma de suas principais características

no trabalho com o berimbau. O não uso do caxixi na maioria das gravações e

apresentações de Ramiro também auxiliou na ênfase às notas de grande

ressonância do arame.

2.2 Padrões Rudimentares

Este conceito foi elaborado a partir da observação de alguns procedimentos técnicos

e padrões na prática do berimbau, que ocorrem com frequência em todos os

contextos musicais citados anteriormente. Tais procedimentos são fragmentos

46

compostos por notas presas, soltas e chiados, além de frases rítmicas construídas

pela ligadura entre estas notas no arame, e que podem variar tanto ritmicamente,

como em disposição entre cada fragmento.

Sobre o significado da palavra rudimentar nos dicionários, encontramos: “...noções

básicas ou elementares sobre alguma coisa” e ainda: “que possui somente o

essencial”13. Neste trabalho, o uso deste termo está justamente associado às notas

básicas do berimbau e suas combinações mais simples e elementares que irão

constituir os fragmentos para a construção de toques de Capoeira e variações

características do idiomatismo do instrumento. O termo rudimentar é conhecido por

percussionistas e por bateristas, pois se refere a um estilo de se tocar,

principalmente a caixa clara e o tambor militar, baseado em combinações de notas

que formam pequenas frações rítmicas. Tais combinações são denominadas de

rudimentos, e foram padronizados pela N.A.R.D. (National Association of Rudimental

Drummers) no início do século XX, que selecionaram alguns procedimentos técnicos

executados com duas baquetas, para que desta forma os grupos de percussionistas

(Drum Corps) pudessem ser avaliados e julgados em concursos e campeonatos14.

É importante destacar que este termo, empregado em outras áreas da percussão,

não é comumente utilizado na tradição da Capoeira. Neste trabalho, estará sendo

usado para compreender, de maneira organizada, as técnicas empregadas pelos

instrumentistas para o desenvolvimento de frases e toques de berimbau. O conceito

de fragmentos rítmicos foi importante para o aprendizado de estruturas fraseológicas

existentes na música da Capoeira, bem como em outros contextos musicais, além

de ajudar na estruturação de novas composições.

As notas soltas, presas e os chiados, tocadas isoladamente ou em combinações de

frases rítmicas, se caracterizam como rudimentos – sons fundamentais. Aqui

utilizaremos estas três notas básicas extraídas do arame, além das dinâmicas

rítmicas e melódicas exercidas entre as permutações de notas, que observamos

serem muito comuns nas construções de padrões rítmicos e de variações.

13

(HOLANDA, 2010). 14

Fonte: site oficial da N.A.R.D. – www.nard.us.com

47

a) Notas soltas, presas e chiados

Estes são os principais sons extraídos do berimbau tradicional brasileiro. A partir

destes sons fundamentais construímos diversos toques, variações e improvisos.

Com cada uma destas notas isoladas, é possível executar infinitas variações

rítmicas com a baqueta, além dos fraseados construídos com a junção destes sons

em uma estrutura rítmica. O exemplo abaixo mostra uma configuração de toques

muito comum em rodas de Capoeira Angola. Os três padrões rítmico-melódicos e as

variações que estão escritas são constituídas por estes três sons.

Ex. 4 Toques tradicionais com variações características

É importante perceber que cada uma das três notas é executada separadamente, ou

seja, cada som será emitido por um golpe de baqueta no arame, não havendo

permutações entre os sons (duas notas com apenas um toque da baqueta), onde a

pedra muda o som depois que se percute o arame. Por isso, em uma frase de seis

notas, por exemplo, haverá seis toques de baqueta.

b) Fusão entre notas soltas e chiados

Com um toque solto e posteriormente o contato da pedra no arame, obtemos dois

sons a partir de apenas um toque, e a partir deste conjunto podem se configurar

diversas células rítmicas como por exemplo.

48

- Em tercinas:

Ex. 5 Tercinas transformadas em sextinas. Trecho do início do disco de mestre Gato Preto (Gabriel Góes), L'artdu Berimbau (CD Faixa 4)

- Em semicolcheias:

Ex. 6 Toque de Ave Maria gravado no disco Capoeira Primitiva do mestre Sílvio Acarajé (Silvio dos Santos)(CD Faixa 5)

49

- Em outras figuras rítmicas:

Ex. 7 Toque de Idalina de Angola, gravado no disco Capoeira Primitiva do mestre Silvio Acarajé (Sílvio dos Santos) (CD Faixa 6)

Através deste rudimento, o som chiado irá exercer as subdivisões, decorrente do

toque da pedra no arame. Assim é possível, por exemplo, dobrar uma figura rítmica,

de tercina para sextina, ou de colcheias para semicolcheias. Além disso, esta

manobra nos permite executar diferentes células rítmicas com maior velocidade,

além de preencher espaços de pausa com o som chiado.

50

c) Ligadura entre notas soltas e presas

O movimento de pedra e baqueta será muito semelhante ao que ocorre no

rudimento anterior, porém agora será necessário exercer maior pressão da pedra

sobre o arame para extrair a nota presa. Possui possibilidades rítmicas iguais ao

procedimento anterior, porém existirá maior movimentação melódica pelo acréscimo

de uma nota de altura definida (nota presa).

Ex. 8 Solo de Naná Vasconcelos no início da música Bahia, do disco Fenix de Gato Barbieri (CD Faixa 7)

2.3 Padrões rítmico-melódicos

Como foi dito anteriormente, a música instrumental da Capoeira está estruturada em

torno dos padrões rítmico-melódicos, chamados de toques. A cada um destes

padrões é atribuído características para além de suas especificidades musicais, que

51

podem comunicar aos capoeiristas algumas informações sobre o jogo que está

sendo praticado. Existe grande diversidade de toques, e cada um irá possuir

variações características, e também terá um nome específico.

Em meio a esta diversidade de padrões, com diferentes nuances e variações, não

podemos cair no erro de sermos taxativos em relação à nomenclatura e

características dos toques, além do seu significado, a fim de estipular um modelo

único de relação entre nome de toque e de padrão rítmico melódico. Como é comum

em culturas de transmissão oral, o conhecimento recebe influência de seus

transmissores e de seus receptores, que possuem costumes próprios, além de que

este conhecimento pode variar de acordo com a região e com a linhagem (mestre/

aprendiz) de onde vem o aprendizado, que neste caso se refere à Capoeira e sua

música. Por isso é comum encontrarmos um mesmo padrão rítmico melódico sendo

classificado por diferentes nomes, de acordo com o mestre em questão. Como

também é comum percebermos nuances e “sotaques” diferentes sendo aplicados a

um mesmo toque. Em seu trabalho, Kay Shaffer cita esta problemática envolvendo

diferentes interpretações sobre os toques e suas nomenclaturas, no ambiente da

Capoeira: “Ainda outro problema é que muitas vezes o mesmo toque recebe nomes

diferentes, ou toques com o mesmo nome são tocados de maneira completamente

diversa.” (SHAFFER, 1977, p. 40). Através das transcrições de toques de Capoeira

realizadas por Shaffer, podemos perceber o uso de mesma nomenclatura para

padrões diferentes, como acontece com o toque de Banguela:

52

Ex. 9 Transcrições de KayShaffer que mostram duas versões diferentes do toque de Banguela

O estudo prático de diversos toques conhecidos de Capoeira foi de grande

importância para o trabalho técnico e composicional aqui realizado, porém é certo

que a discografia aqui apresentada pode ilustrar de forma eficiente e legítima, os

padrões, variações e denominações dos toques executados pelos próprios mestres,

sendo esta a melhor referência sobre os toques de berimbau. Aqui iremos discutir

brevemente sobre alguns de seus aspectos musicais, o que irá ajudar a

compreender um pouco mais sobre estas estruturas.

Ao observarmos a maioria dos toques de Capoeira, percebemos que o ritmo

executado pelos instrumentos idiofônicos será basicamente o mesmo, cabendo aos

berimbaus realizarem as variações que irão dar identidade ao toque. Esta

particularidade foi percebida por Rego em seu livro Capoeira Angola Um Ensaio

Socio-Etnográfico (1968):

53

Como já tive oportunidade de dizer, os toques divergentes dos comuns raramente constituem um toque totalmente diferente dos demais. Via de regra, é um já existente, apenas com outro rótulo ou então uma ligeira inovação introduzida pelo tocador, fazendo com que se dê um nome novo (REGO, 1968, p. 19).

Este apontamento faz sentido pela semelhança rítmica que muitos toques de

Capoeira possuem, dando indícios de que um padrão pode ter sido gerado a partir

da variação de outro. Também é possível supor que estas semelhanças entre os

toques foram influenciadas pelo desenho rítmico do tambor – atabaque e demais

instrumentos idiofônicos – que praticamente não mudam independente do toque do

berimbau. Estas duas hipóteses condizem com a conjectura de que o berimbau

chegou depois do início do nascimento da Capoeira, que em seus primórdios era

praticada ao som de tambores e palmas de mão, se adaptando ao ritmo já existente.

Pode-se supor que seja por esse motivo que a principal diferença entre a maioria

dos toques está principalmente na melodia, já que estes, ou foram adaptados, ou

são variações daqueles que se adaptaram ao padrão rítmico do atabaque e dos

pandeiros.

Ex. 10 Semelhanças entre diversos toques de Capoeira e com apenas um padrão rítmico de atabaque

Não há como ter uma comprovação destas correlações, pela falta de registro e

documentação. Outro indício dessa prática de adaptação do tambor para o berimbau

54

também pode ser observado em toques que fogem do padrão rítmico hegemônico

utilizado na Capoeira, porém que também são adequações de toques de atabaques,

como o Barra-Vento, o Samba de Roda ou o Muzenza, dentre outros.

55

(CD Faixa 8) Toque de Barra-Vento

56

(CD Faixa 9) Toque de Muzenza

Ex. 11 Toques de berimbau com outros padrões rítmicos de atabaque, gravados no disco “Capoeira Primitiva” do mestre Silvio Acarajé

Outro fator que favorece a criação de novos toques a partir da variação melódica do

primeiro é o uso de dois ou mais berimbaus gerando a necessidade de trabalhar os

toques de forma a obter algum resultado harmônico, diferenciando os sons dos

berimbaus, como veremos mais adiante.

Mesmo que a maioria dos diversos toques de berimbau existentes na Capoeira

tenham se originado a partir de um único padrão rítmico executado pelo tambor ou

atabaque, existem algumas variações específicas para cada toque. Na verdade é

comum que durante a execução de um toque de Capoeira, este seja acompanhado

por inúmeros improvisos além de algumas alterações características deste padrão.

57

Para melhor analisar e compreender as estruturas dos toques e suas principais

variações, o percussionista Luis Almeida da Anunciação desenvolveu em seu

método de berimbau, uma forma de identificar separadamente estes elementos.

Para Anunciação, cada toque possui as seguintes divisórias: Motivo, Repique,

Virada Básica e Viradas.

Motivo é a célula temática que identifica o toque; Repique – efeito rítmico de forma anacrústica, comum aos toques em qualquer estilo; Virada Básica – uma variação complementar que acompanha o motivo. Acoplada a este, forma o toque em sua condição linear chamado “toque de centro”; Viradas – são variações tradicionalmente utilizadas como elemento de contraste para embelezamento do toque. São consideradas clássicas porque formam um grupo de frases com similaridade rítmico-melódica e adaptáveis a quase todos os toques (ANUNCIAÇÃO, 1990, p. 58).

Os motivos são formados pela configuração de notas soltas e presas, enquanto

osrepiques são os escrachos, comuns a quase todos os toques. Os conceitos de

viradas e viradas básicas ajudam a identificar as variações específicas ou genéricas.

Através dos motivos, junto com seus repiques (escrachos), podemos identificar o

toque, como no exemplo abaixo:

Ex. 12 - Motivo, Repique e Virada Básica do toque de São Bento Grande de Angola

A Capoeira é uma prática cultural diversificada, onde diferentes linhagens de

mestres possuem suas especificidades na maneira de exercer seus costumes. Os

praticantes destas diferentes correntes imergem nas práticas que aprendem de seus

58

antecessores, já que estas são os fundamentos que norteiam e delimitam a

identidade de cada grupo e de cada linhagem. Porém é importante compreender

que; mesmo sob diretrizes que caracterizam essas tradições, costumes e identidade

de um grupo de Capoeira ou de um mestre específico, os seus praticantes

encontram nestes elementos, espaços para se expressarem artisticamente, seja

através da criação de corridos ou ladainhas, dos trejeitos pessoais e expressões

corporais no momento do jogo, dos repiques de berimbau, dos versos improvisados,

dentre outros, utilizando assim, os fundamentos da Capoeira como ferramenta de

expressão pessoal e coletiva.

Gravações de discos em estúdios também criaram possibilidades do artista popular

– no caso, o mestre ou a mestra – mostrar para os ouvintes de outras comunidades

e outros contextos, as especificidades que caracterizam a sua forma de exercer a

Capoeira. Por isso é possível encontrar em alguns discos, diversos incrementos

como a execução de solos de berimbaus, cantos à capela, falas e recitação de

textos ou poesias, tudo isso como forma de se expressar e se manifestar

artisticamente em seus trabalhos fonográficos.

Também encontramos na discografia, mestres que intensificam suas inovações, e se

diferenciam na concepção e construção dos arranjos de seus trabalhos fonográficos,

inserindo instrumentos como o violão ou o violino em algumas faixas, além de

apresentarem novos toques, ou utilizarem um acompanhamento percussivo

diferente do que se usualmente se vê em rodas de Capoeira.

Mestre Sílvio Acarajé (Silvio dos Santos) gravou dois discos que dão destaque à

exibição de toques, com variações e improvisos, sendo os dois trabalhos quase

inteiramente instrumentais, tendo o berimbau como principal protagonista. O

primeiro disco, Intitulado Capoeira Primitiva (2006), é um importante registro de

diferentes toques – alguns de domínio público, e outros de autoria do próprio mestre

– evidenciando a riqueza de possibilidades na criação de padrões rítmico-melódicos

com o arco musical afro-brasileiro. Uma característica incomum que ocorre nas

gravações de mestre Silvio Acarajé, é a forma como os instrumentos de percussão

acompanham os toques, contendo inclusive instrumentos incomuns às rodas de

Capoeira, como tumbadoras, xequerês e chocalhos. No encarte deste trabalho,

59

mestre Silvio Acarajé escreveu um pequeno texto, onde comenta sobre seu

aprendizado, além de tecer uma breve explicação sobre cada toque gravado. Em um

momento do texto, ele afirma:

Gostaria e salientar e peço o testemunho dos velhos mestres capoeiras que ao passar dos tempos os toques impregnados de axé (os segredos do berimbau) vinham apagando-se da memória dos capoeiras, toques esses que os capoeiras atuais nem sequer ouviram falar! São Toques em Gêgy, como a Angola, o São Bento Grande, o Gêgy Puro, todos esses tocados à maneira Gêgy, que é bem diferente dos conhecidos (SANTOS, 2006).

O que o mestre está se referindo como “toques em Gegy”, foi percebido e

mencionado por Shaffer, que destacou: “Geralmente, toques com a adição de "em

gege", "repicado", "dobrado" ou outra variação do nome simples consistem em

variações daquele toque.” (SHAFFER, 1977, p. 40). Pelo que se pode analisar,

juntando as informações e ouvindo as gravações, existe o toque Gegy Puro(ou Gêge

Puro), que foi citado por Silvio Acarajé em seu texto. Aqueles toques que recebem o

termo em Gegy são padrões que sofrem modificações influenciadas pelas

características rítmicas do toque de Gêge Puro.

Figura 7 Capa do disco "Capoeira Primitiva"(2006), do Mestre Silvio Acarajé (1954-1996)

60

Ex. 13 Toque de Gêge (ou Gegy), gravado no disco Capoeira Primitiva, do mestre Silvio Acarajé (Silvio

dos Santos) (CD Faixa 10)

Ex. 14 Início do toque de Angola em Gêge gravado no disco "Capoeira Primitiva", do Mestre Silvio Acarajé (CD Faixa 11)

61

Ex. 15 São Bento Grande em Gêge. Gravado no disco Capoeira Primitiva do mestre Silvio Acarajé (Silvio dos Santos) (CD Faixa 12)

O toque de Gegy é executado em diversas gravações de Capoeira, e também é um

toque muito utilizado nas rodas. Alguns capoeiristas consideram este toque um

padrão favorável para se desenvolver variações. De fato, se observarmos a

execução deste toque na discografia, é possível perceber que o mesmo é

acompanhado por muitas variações.

62

Em uma das faixas do segundo disco, A Saga do Urucungo, mestre Silvio Acarajé

cria uma complexa montagem sonora, com diversos toques de Capoeira, dividida

em nove afinações de berimbau que gradualmente se alternam. Não é difícil

perceber que esta faixa, intitulada Berimbazu, possui uma estrutura (começo, meio e

fim) e um arranjo pré-estabelecidos, como uma composição musical utilizando

toques de berimbau como matéria prima. Ou seja, mestre Silvio Acarajé modifica a

forma como geralmente são apresentados os toques de Capoeira em gravações,

criando um novo resultado sonoro intensificado pelas diferentes afinações.

Figura 8 Capa do Disco "A Saga do Urucungo" (2007), do Mestre Silvio Acarajé

Em outra faixa deste mesmo disco, intitulada O Legendário Mestre Bimba, o toque

de São Bento Grande é feito com o acompanhamento de mais um berimbau, algo

que não ocorre na versão original deste toque, já registrada no disco Mestre Bimba -

Curso de Capoeira Regional, onde apenas um berimbau é utilizado, de acordo com

os fundamentos da Capoeira Regional.

O músico e mestre de Capoeira Dinho Nascimento, que possui um extenso trabalho

musical envolvendo o berimbau, também utilizou seu conhecimento sobre os toques

de Capoeira para criar novas composições. No disco Sinfonia de Arame, Dinho

Nascimento e a Orquestra de Berimbaus do Morro do Querosene criam diferentes

arranjos, combinando berimbaus afinados em acordes com outros instrumentos

harmônicos e melódicos, e a partir de toques tradicionais desenvolvem novas

composições e acompanhamentos para canções populares. No exemplo abaixo, a

63

transcrição do início da música Muzenza, mostra uma melodia criada a partir da

interação de três berimbaus que tocam o padrão rítmico-melódico do toque de

Muzenza:

Ex. 16 Início da música "Muzenza", do disco Sinfonia de Arame (2010) (CD Faixa 13)

Figura 9 Capa do disco "Sinfonia de Arame" (2010), de Dinho nascimento e a Orquestra de Berimbaus do Morro do Querosene

Na Capoeira, os berimbaus executam toques que se complementam e dialogam

entre si, na maioria das vezes sobre a célula rítmica constante executada pelos

pandeiros e atabaques. Estas relações entre os berimbaus também são

64

influenciadas pela linhagem de mestres e diferentes grupos de Capoeira, de forma

que não existe um padrão universal que determine os toques e a relação entre cada

berimbau. Este fato é conhecido no meio da Capoeira e também é perceptível na

discografia.

O disco Capoeira da Bahia (1963), produzido pela editora Xauã, é um importante

registro por se tratar do primeiro trabalho fonográfico de Capoeira, e por ser

protagonizado por mestres conhecidos por suas habilidades como cantadores e

tocadores. Os puxadores dos cantos são Mestre Traíra e Mestre Cobrinha Verde, e

quem toca o berimbau Gunga é Mestre Gato Preto (Gabriel Góes), conhecido pelo

nome Berimbau de Ouro por ter sido diversas vezes vencedor de concursos de

berimbau em Salvador. Neste importante trabalho, é possível perceber as trocas de

toques que ocorrem em diversos momentos, resultando em diferentes relações entre

os instrumentos. No exemplo abaixo podemos observar a relação entre os

berimbaus que utilizam os toques de Angola e São Bento Grande.

Figura 10 Capa do disco "Mestre Traíra - Capoeira da Bahia" (1963), do Mestre Traíra e Mestre Cobrinha Verde

65

Ex. 17 Segunda faixa do disco Capoeira da Bahia de Mestre Traíra e Mestre Cobrinha Verde (CD Faixa 14)

No ano de 2001, mestre Gato Preto lança seu disco intitulado L’art Du Berimbau,

utilizando uma configuração de toques semelhantes a que ouvimos no disco de

mestre Traíra. O berimbau Gunga executa o toque de Angola, o Médio e o Viola

66

afinados com notas graves tocam São Bento Grande e São Bento Grande em Gêge,

respectivamente.

Ex. 18 Início do disco L'artdu Berimbau - Mestre Gato Preto (CD Faixa 15)

67

Figura 11 Capa do disco "L´Artdu Berimbau" (2001), do Metre Gato Preto

Fora do contexto da Capoeira encontramos o berimbau exercendo padrões rítmicos

e grooves em muitos trabalhos de música popular, ora inspirados pelo que já foi

desenvolvido em relação aos toques da tradição, ora influenciados por outros

instrumentos e ritmos. Como foi dito anteriormente, Naná Vasconcelos foi pioneiro

em gravações com o berimbau na música popular brasileira, sem que este fizesse

referência direta à Capoeira. Em suas primeiras gravações com o cantor e

compositor Milton Nascimento, Naná usa seu berimbau na construção da estrutura

rítmica da canção, assim como os demais instrumentos de percussão.

Ex. 19 Padrões rítmicos usados por Naná em Tema de Tostão, do álbum Milton (1970) de Milton Nascimento (CD Faixa 16)

68

Figura 12 Capa do disco "Milton" (1970), de Milton Nascimento

Os toques de Capoeira também foram explorados de forma inovadora por Ramiro

Musotto, mesclando elementos tradicionais com música eletrônica. Uma das faixas

de seu disco Civilização & Barbárie, intitulada La Danza Del Tezcatlipoca Rojo, traz

um berimbau tocando padrões tradicionais de Capoeira acompanhado por bases

eletrônicas com diferentes ritmos, como o funk e o drum and bass. O excerto abaixo

mostra um pouco do uso de alguns elementos dos toques de Capoeira empregados

em La Danza Del Tezcatlipoca Rojo.

Figura 13 Capa do disco "Civilização &Barbarie" (2006), de Ramiro Musotto

69

Ex. 20 Início da música La DanzadelTezcatlipoca Rojo, do álbum Civilização &Barbarie, de Ramiro Musotto (CD Faixa 16)

70

2.4 Afinações

É fato que a característica mais peculiar do berimbau, enquanto instrumento de

percussão, esteja nas notas de altura definida extraídas do arame, e na forma como

estes sons são manejados. Assim como o piano, que aciona suas notas a partir da

batida de um martelo de madeira em uma corda esticada e afinada, o berimbau

possui um arame tensionado entre dois pontos oferecendo uma nota fundamental

quando percutida por uma baqueta, além da possibilidade de se explorar outros

intervalos (notas) neste mesmo arame. Assim a sonoridade do instrumento tem

como característica a mistura entre sons afinados e ruídos provenientes das

interferências da pedra (chiado) e das explorações timbrísticas do restante de seu

corpo.

Possuindo algumas propriedades semelhantes a outros instrumentos de corda, o

berimbau oferece a possibilidade de desenvolver elementos musicais referentes à

afinação, como intervalos, harmonia e melodia, manuseados através dos recursos

técnicos exercidos pela baqueta, responsável por acionar o som, e pela pedra.

Em um berimbau tradicional, utilizado nas rodas de Capoeira, extraímos

basicamente a nota fundamental e o intervalo obtido pelo ponto de tensão da pedra

no arame. Acordes são criados quanto dois ou mais berimbaus são tocados

simultaneamente – como comumente ocorre – ou junto com outros instrumentos de

altura definida.

Existem basicamente, três maneiras de se alterar a afinação da nota fundamental de

um berimbau. Duas delas se referem à tensão do arame, e a última está na

alteração do comprimento do mesmo. A tensão obtida no arame está diretamente

ligada às propriedades físicas do arco que o mantém esticado, que se referem ao

material da qual é constituída esta verga – tipo de madeira – e no quanto este arco

se encontra envergado. Uma madeira extremamente dura irá quebrar ao tentarmos

envergá-la, enquanto um material muito flexível não irá proporcionar a tensão

necessária no arame para se obter uma nota ressonante. Por isso, o material –

madeira – é muito importante para o som do arame e para afinação do berimbau,

sendo fruto de pesquisas de mestres de Capoeira e luthiers em geral.

71

Outro elemento que altera a tensão do arame é o comprimento do barbante que

prende a cabaça (caixa ressonadora) à verga. Sabe-se que a nota fundamental do

berimbau é obtida pela vibração da parte do arame que corresponde à extremidade

superior do berimbau, até o primeiro ponto de tensão, onde a cabaça é presa ao

arco. Quando diminuímos o comprimento do barbante que prende a cabaça ao

corpo do berimbau, aumentamos a tensão do arame, o que irá alterar a frequência

da nota fundamental do instrumento.

O terceiro principal método para mudar a nota fundamental de um berimbau está

relacionado à alteração da posição da cabaça ao longo do arco, o que

consequentemente irá mudar o comprimento da parte do arame onde extraímos a

nota fundamental, além de interferir na tensão do mesmo, já que a distância entre

arame e verga aumentam gradativamente devido ao formato do instrumento.

O tratamento sobre as afinações de berimbau no meio tradicional (Capoeira) é

realizado, de maneira geral, de acordo com as concepções musicais de cada grupo

e de cada mestre, assim como ocorre com os demais elementos e fundamentos da

Capoeira. A partir da discografia podemos ter uma pequena noção de como as

afinações variam de acordo com o grupo e seus representantes. Porém, existem

algumas considerações e práticas sobre as afinações que são comuns no meio

tradicional, mesmo havendo algumas exceções.

Um fato comum observado nos berimbaus de Capoeira é que a altura da cabaça

(lugar onde a cabaça está presa no arco), praticamente nunca irá se aproximar do

meio do instrumento. Ou seja, o ponto de tensão empregado pelo barbante que

amarra a cabaça, raramente ultrapassa a medida aproximada de um palmo da

extremidade inferior do berimbau. Levando em conta que esta referência – palmo da

mão – é extremamente variável, é importante perceber que esta medida tem como

objetivo determinar um limite aproximado para se mover este ponto ao longo do

arco, pois além da afinação, a mudança do ponto de tensão também terá

consequências na qualidade do som fundamental. Isso porque as dimensões da

cabaça irão servir de caixa ressonadora para algumas notas de uma tessitura

limitada do berimbau, que farão a cabaça vibrar com a frequência fundamental do

72

arame, e de seus principais harmônicos. Ao alterar drasticamente a posição da

cabaça no arco, iremos desproporcionar a frequência obtida no arame (fundamental)

com as dimensões da caixa de ressonância, o que poderá resultar no

enfraquecimento de alguns harmônicos. No processo de construção de um berimbau

é muito comum ouvir o termo casar a cabaça com a verga, se referindo à busca por

uma cabaça que possua dimensões propícias para proporcionar uma boa

ressonância para a nota fundamental e os harmônicos de um arco (verga e arame),

resultando em um som com maior intensidade.

Geralmente, adotam-se dois métodos básicos para afinar os berimbaus Gunga,

Médio e Viola. Podem ser envergados e afinados individualmente, buscando o maior

potencial sonoro de cada berimbau, independente dos intervalos de notas entre os

instrumentos. Porém também é muito comum obter as afinações dos berimbaus

Médio e Viola, tendo como referência a nota solta ou presa do Gunga. Os intervalos

atingidos variam de acordo com o gosto pessoal de quem está determinando as

afinações, porém é prática comum afinar os berimbaus agudos a partir do

instrumento mais grave.

Quando existem três berimbaus tocando simultaneamente em uma roda de

Capoeira, teremos acordes resultantes que irão variar de acordo com os toques

empregados por cada berimbau, pois este padrão irá determinar a posição das notas

presas e soltas no compasso.

Ex. 21 Formação de acordes durante a sobreposição de toques

Atualmente, nas rodas de Capoeira, é muito comum encontrar modelos de afinação

onde o Gunga emite a nota mais grave enquanto o Médio e o Viola ocupam as

73

frequências média e aguda, respectivamente. Porém, ao ouvirmos gravações de

baterias de antigos mestres é possível perceber que os berimbaus Médio e Viola

são, em alguns casos, afinados na oitava abaixo da nota emitida pelo Gunga.

Em se tratando do berimbau tradicional utilizado na Capoeira, existe um elemento

específico que pode causar problemas em relação à afinação, ao ser utilizado com

outros instrumentos melódicos e harmônicos, ou na formação de acordes entre si,

que é o intervalo entre a nota solta e a presa. Este elemento está diretamente ligado

à distância entre o barbante que prende a cabaça e o ponto onde a pedra encosta

no arame.

Figura 14 Distância entre o ponto de tensão da pedra no arame até o barbante que segura a cabaça

O que ocorre é que esta distância dificilmente consegue atingir um intervalo de

segunda maior. Para obter esta distância/intervalo no arame, pode-se utilizar

técnicas como suportes para o dedo mindinho acima do ponto de tensão da cabaça

e até mesmo alças presas a este mesmo barbante, sendo sustentadas pelo dedo

mindinho do instrumentista. Porém, também podemos controlar esta relação entre

distância e intervalo compreendendo que a nota obtida pela pressão da pedra sofre

a influência de variáveis como: tamanho do berimbau; envergadura da mão que está

segurando a verga; altura da cabaça. As duas primeiras variáveis são contextos que

74

dificilmente podemos controlar, porém a altura da cabaça pode ser facilmente

alterada. Quanto maior for o comprimento do arame, maior deve ser a altura do

ponto de contato da pedra para atingir um intervalo qualquer. Por exemplo, para se

atingir um intervalo de segunda maior em um berimbau que possui 1,50 metro de

comprimento, a distância entre o ponto de contato da pedra no arame e o barbante

da cabaça será menor do que se o berimbau medir 1,60.

Por isso podemos resolver esta problemática reduzindo a tensão do arame e

movendo a posição da cabaça (extremidade do arame) a fim de diminuir o

comprimento do mesmo. Desta forma, a nota fundamental continuará a mesma,

porém a distância entre o dedo mindinho e o ponto de tensão da pedra poderá

atingir intervalos maiores.

75

3.EXPERIMENTOS COMPOSICIONAIS

3.1 Com a Orquestra Paraguassu

As duas primeiras composições aqui apresentadas foram desenvolvidas com

capoeiristas que integravam a Orquestra Paraguassu. Estas peças foram resultado

de um processo de práticas de grupo que visavam o aprimoramento técnico e

musical, principalmente dos integrantes que ainda não tinham experiência com o

berimbau. Tais práticas geraram resultados sonoros que fundamentaram e

influenciaram diretamente na construção das peças.

Figura 15 Orquestra Paraguassu

A coexistência de pessoas com níveis de desenvolvimento musical diferentes

influenciou diretamente no resultado das composições de duas principais maneiras:

a) a participação de cada berimbau foi pensada de forma que alguns teriam mais

dificuldades técnicas e musicais do que outros, fazendo com que todas as pessoas

pudessem contribuir musicalmente de acordo com suas capacidades. b) os toques

tradicionais de berimbau foram utilizados como ponto de partida para o

desenvolvimento de novas ideias, já que estes toques eram familiares para a maioria

das pessoas que participavam da orquestra. Por isso é correto afirmar que estas

duas peças que serão apresentadas foram elaboradas a partir da junção de algumas

práticas de grupo para o aprendizado do berimbau, baseadas em transformações de

toques e fraseados tradicionais do instrumento, com a finalidade de construir

repertório, aprimorar e aprender as técnicas idiomáticas do berimbau.

76

A primeira composição foi resultado do trabalho de aproximadamente quatro meses,

em encontros semanais regulares. A seguir estão algumas práticas de grupo, com

fins pedagógicos, desenvolvidas também como metodologia para a construção da

primeira composição: Angola Cruzado.

1) “Rodar” o Som

“Rodar” o som é a forma como foi denominada a prática onde os integrantes se

posicionavam em um círculo e tocavam uma nota, uma pessoa de cada vez,

seguindo a ordem circular com um ritmo pré-estabelecido (Ex.1). Esta atividade foi

feita em praticamente todos os encontros e tinha como objetivo desenvolver e

aprimorar a técnica de extrair as notas do berimbau com bastante consistência e

ressonância, e ao mesmo tempo treinar a percepção e senso rítmico de cada

integrante. Uma pessoa era responsável por mudar as notas – de nota solta pra

presa ou abafada (Ex. 22).

Posteriormente todos tocavam a mesma nota em um ritmo constante com a cabaça

encostada na barriga (nota abafada). Uma pessoa então iniciava a dinâmica

executando apenas duas notas seguidas com a cabaça fora da barriga,

desabafando o som. Essas notas eram “passadas” de pessoa para pessoa seguindo

a ordem do circulo e o ritmo dos toques (Ex.23).

77

Ex. 22 "Rodar o som" (CD Faixa 17)

Ex. 23 "Rodar o Som" utilizando efeitos de abafamento da cabaça (CD Faixa 18)

2) “Rodar o som” utilizando células rítmicas.

Com o objetivo de aprimorar a técnica com o berimbau, utilizamos a princípio duas

figuras básicas que são muito comuns (viradas básicas) em fraseados de quase

todos os toques de capoeira (Ex.24).

78

Ex. 24 "Rodar o Som" utilizando células rítmicas

Estes fragmentos rítmicos básicos são utilizados como indicações para iniciar ou

finalizar um jogo de capoeira, e também são utilizados em variações de

praticamente todos os toques.

As dinâmicas feitas usando essas figuras tinham como objetivo internalizar os

padrões rítmicos e prosseguir com o desenvolvimento do aprendizado técnico

idiomático do berimbau. As figuras “rodavam” no círculo, primeiramente uma de cada

vez e depois alternando – se uma pessoa executasse a primeira figura, quem

estivesse ao seu lado irá tocar a segunda no próximo tempo (Ex.25). Posteriormente

acrescentávamos duas figuras simultâneas para rodar no círculo.

Ex. 25 Prática com diferentes células rítmicas (CD Faixa 19)

79

Na próxima etapa desta prática cada figura era “passada” de uma pessoa para outra

– sempre alternando a figura – sem seguir o trajeto circular. O integrante que

estivesse tocando o fragmento rítmico deveria olhar diretamente para a próxima

pessoa a tocar. O objetivo desta dinâmica era fazer com que cada participante

ficasse atento às entradas dadas a partir do olhar dos demais, e trabalhasse as

figuras rítmicas sem perder o tempo.

3) Criação de padrões rítmico-melódicos

Outra prática que estimulou o desenvolvimento técnico com o berimbau foi a

construção de padrões rítmico-melódicos, alguns já conhecidos (toques de

Capoeira) outros inventados (arranjos de ritmos brasileiros e outros), usando os

rudimentos básicos do berimbau trabalhados na primeira prática. Os toques eram

construídos, a princípio, de forma simplificada, contendo apenas o desenho

melódico, sem muitos movimentos de pedra. Os toques básicos de Capoeira já

faziam parte do universo sonoro do grupo, já que este era formado por capoeiristas,

facilitando esta prática. A partir destes toques criamos outros que seguiam a ideia de

padrão rítmico melódico, mas que pudesse ilustrar outros ritmos conhecidos (funk,

samba-reggae) ou inventados.

Toques de capoeira:

Ex. 26 Toque de Santa Maria (CD Faixa 20)

Padrões conhecidos:

80

Ex. 27 Padrões construídos a partir de toques de atabaque (CD Faixa 21)

Padrões inventados:

Ex. 28 Padrões Inventados (CD Faixa 22)

4) “Cruzar” os Toques

Trabalhando com as ideias das práticas anteriores, treinamos os toques em círculo,

executando um de cada vez a célula básica de cada padrão. Porém, quando o

primeiro participante estivesse na metade do toque, a pessoa ao seu lado iniciava a

execução do mesmo toque. Ou seja, os padrões se cruzavam (Ex.29).

A partir desta prática iniciamos o processo de utilização do material contido nos

toques tradicionais para a construção de outros tipos de padrões e ideias musicais.

81

Ex. 29 Sobreposições do toque de Angola (CD Faixa 23)

5) Dinâmicas improvisatórias

Tomando como base as baterias de Capoeira, onde é comum a prática da

improvisação e da variação durante os toques, utilizamos esta atividade como forma

de desenvolver as habilidades técnicas e musicais com o instrumento. Sendo o

berimbau um instrumento que possui ressonância relativamente longa, utilizamos

esta característica para favorecer o aprendizado da improvisação em percussão,

pois utilizando-se de fragmentos rítmicos simples é possível criar frases melódicas

consistentes, sem a necessidade do virtuosismo técnico. A princípio orientamos aos

participantes que utilizassem as figuras rítmicas usadas nas dinâmicas anteriores

como base para a criação, mesclando com pausas e com toques simples.

Iniciamos a dinâmica usando como base rítmica o toque mais familiar para todos os

participantes: o toque de Angola. Orientamos para aquelas pessoas que ainda não

haviam desenvolvido a habilidade para executar o toque, que marcassem o tempo

com um toque solto. Criamos uma afinação para que estes berimbaus tivessem

função harmônica dentro do conjunto, além da marcação do tempo.

A dinâmica ocorreu em um círculo, onde todos os participantes tocavam juntos o

toque de Angola (com a marcação do tempo em alguns berimbaus). Após entoar

82

três vezes este padrão rítmico, os berimbaus faziam uma pausa para uma pessoa

improvisar durante um compasso (Ex.30). Após esta pausa, todos os berimbaus

retornavam ao toque para que uma outra pessoa pudesse ter seu momento de

improviso, seguindo a ordem do círculo.

Ex. 30 Prática de improviso (CD Faixa 24)

Levando em consideração o que foi dito sobre a possibilidade de executar figuras

rítmicas simples na improvisação, aproveitando a ressonância do instrumento, todas

as pessoas eram estimuladas a improvisar. Também utilizamos outros toques como

o Iúna, praticando o movimento de encostar e desencostar a cabaça da barriga para

desenvolver as práticas de abafamento, e o toque de Santa Maria, desenvolvendo

as notas presas e soltas, além da improvisação sobre um padrão melódico mais

extenso15.

Esta mesma dinâmica foi repetida estendendo o tempo de pausa para três

compassos e meio, dando mais tempo para o participante desenvolver seu

improviso. Os improvisos “rodavam” no círculo para que cada pessoa pudesse tentar

executar suas ideias diversas vezes, estimulando a criatividade dos participantes.

15

Toques como Iúna e Santa Maria são padrões que se repetem a cada quatro compassos (em 2/4), sendo mais extensos do que toques como Angola ou São Bento Grande, onde os padrões se repetem a cada um compasso.

83

3.1.1 Angola Cruzado

Angola Cruzado é o nome da primeira composição elaborada a partir das práticas de

grupo descritas anteriormente, desenvolvidas com a Orquestra Paraguassu no ano

de 2014. O nome da peça se deve à prática recorrente de “cruzar” toques de Angola,

e algumas variações relacionadas ao toque, gerando novos resultados sonoros.

Também é uma brincadeira que faz referência ao toque Angola Dobrado, gravado

pela primeira vez no disco do Mestre Traíra e Mestre Cobrinha Verde em 1953. A

peça foi feita para três afinações de berimbaus: Lá, Dó e Fá. A partir dessa

configuração, obtemos mais três notas pressionando-se a pedra no arame (Sib, Ré,

Sol). Ao total somam-se seis notas que interagem entre si possibilitando algumas

diferentes resultantes harmônicas.

BERIMBAU GRAVE (GUNGA) – LÁ/ Sib

BERIMBAU MÉDIO (MÉDIO) – DÓ/ RÉ

BERIMBAU AGUDO (VIOLA) – FÁ/SOL

POSSIBILIDADES DE FORMAÇÃO ACORDES

LÁ – DÓ – FÁ SIb – DÓ – FÁ

LÁ – RÉ – FÁ SIb – DÓ – SOL

LÁ – DÓ – SOL SIb – RÉ – FÁ

LÁ – RÉ – SOL SIb – RÉ – SOL

Tabela 1 Formações de acordes utilizando notas soltas e presas

Angola Cruzado foi construída a partir de dinâmicas em círculo, e foi pensada para

ser apresentada desta forma, com o público no meio, utilizando o recurso da

espacialização dos berimbaus. Diferente das dinâmicas de grupo, na peça os

berimbaus com a mesma afinação foram pensados como um único instrumento –

exceto em um trecho, como veremos adiante. Por isso é possível tocar a peça com

muitos, ou apenas um berimbau por afinação. Importante ressaltar que deve haver

equilíbrio entre o número de berimbaus por afinação para que os padrões

resultantes sejam inteligíveis. A estrutura geral consiste em padrões rítmico-

melódicos resultantes da interação dos berimbaus e defasagem dos toques. Os

padrões não têm número de repetições fixas, sendo que as mudanças de um padrão

para outro ficam sob responsabilidade de um dos berimbaus, que executa alguma

84

frase rítmica que se diferencia do padrão. A esta frase denominamos de chamada.

Recorrentemente, após a chamada de um dos berimbaus ocorrem variações que

envolvem todos os berimbaus antes de começar um novo padrão. A este

procedimento denominamos convenção. Dentre as três afinações (Gunga, Médio e

Viola) o berimbau agudo exige maior destreza técnica do instrumentista, pois está

encarregado de exercer a maioria das chamadas, além de executar rudimentos

tecnicamente mais difíceis do que as demais afinações.

3.1.2 Angola Cruzado– Análise

A peça inicia com o padrão do toque de Angola no berimbau agudo, sendo repetido

de forma defasada em uma colcheia pelo grave e depois pelo médio. O toque é

repetido apenas uma vez por cada berimbau, criando um efeito semelhante a uma

imitação. Os três berimbaus se unem em uma célula rítmica básica, para depois

repetir o mesmo processo só que dessa vez iniciado pelo berimbau grave, e

posteriormente pelo médio (Ex.31).

Ex. 31 Introdução de Angola Cruzado

Após a terceira repetição – iniciada pelo berimbau médio – o berimbau Viola realiza

o padrão do toque de Angola, com a marcação do tempo feita pelos demais

berimbaus (Ex.32). Neste momento, o berimbau agudo irá acelerar gradualmente,

conduzindo os demais berimbaus ao andamento que irá se estabelecer fixo em

praticamente toda a peça.

85

Ex. 32 Toque de Angola com a marcação do tempo feita pelo Gunga e pelo Médio

Após estabelecer o andamento fixo, através do toque de Angola, o berimbau agudo

entoa uma chamada, que consiste em uma das figuras rítmicas básicas trabalhadas

nas primeiras dinâmicas. A figura de dois tempos de tercina irá “rodar” uma vez entre

cada afinação (cada afinação irá se comportar como um único berimbau), voltando

para o Viola que irá reduzir para um tempo de colcheias (Ex.33).

Ex. 33 "Rodando" diferentes células rítmicas

Estas cinco colcheias serão uma das vozes do padrão rítmico-melódico de samba-

reggae, criado nas dinâmicas de grupo. Os berimbaus de marcação estão

executando o toque de Angola, sem a nota presa, de forma defasada em um tempo.

Estes berimbaus estão imitando o que seriam surdos de marcação (nota solta) e

repiques de timbal ou bacurinha16 (notas abafadas) no samba-reggae.

O berimbau agudo irá fazer o papel do surdo de corte, e posteriormente irá entoar

também as acentuações características da bacurinha do samba-reggae.

16

Bacurinha é um tambor agudo utilizado em ritmos tradicionais baianos, como o Axé e o Samba Reggae.

86

Ex. 34 Samba-reggae usando Gunga, Médio e Viola

A mudança deste padrão irá ocorrer a partir de uma chamada do berimbau agudo,

que transformará o padrão samba-reggae em uma convenção utilizando as células

básicas praticadas nas primeiras dinâmicas (Ex.35).

Ex. 35

O próximo momento da peça ocorrerá em uma sequência de três padrões rítmicos

que irão se transformar a partir de chamadas do berimbau agudo (Ex. 36, 37 e 38)

Estes três padrões têm características rítmicas semelhantes, já que as mudanças

ocorridas por cada berimbau serão, com exceção do Viola, pequenas variações do

padrão anterior.

87

Os toques de cada berimbau, que unidos irão constituir o padrão geral, nada mais

são do que variações simples do toque de Angola, porém executados com

defasagem de tempo entre o médio e o Gunga (grave).

Ex. 36

Ex. 37

No último padrão desta seção, os três berimbaus executam a mesma variação

defasados em um tempo entre si. Aos poucos, cada instrumentista desfaz este

padrão, e encaminha a peça para um momento estático onde todos os berimbaus

repousam em uníssono tocando colcheias com a cabaça abafada na barriga. Este

processo acontece um de cada vez, ou seja, se a peça for tocada com mais de uma

pessoa por afinação, neste momento a mudança ocorrerá gradualmente por cada

participante por vez, seguindo a ordem do círculo.

88

Ex. 38 Terceiro padrão e transferência para a próxima seção

Sobre a abordagem técnica observamos que, com exceção do Viola que deve ser

tocada por um instrumentista com maior experiência técnica e musical com o

berimbau, os demais instrumentos somente utilizaram as três notas básicas. Não

houve ligadura de notas através de movimento de pedra, o que exige mais da

técnica e força na mão que segura o instrumento.

Neste momento da composição utilizamos o recurso da espacialização para criar

efeitos de movimentação do som em volta do público. Primeiramente com as

dinâmicas de diferenciar as notas com a cabaça solta ou encostada na barriga. Este

efeito pretende criar a impressão de uma nota “rodando” em volta do ouvinte.

Posteriormente transformando o som – também gradualmente seguindo a ordem do

círculo – para a nota abafada, e depois com a transformação temporária (dois

compassos por berimbau) para a nota presa. Nesta última, é importante que o som

se modifique tanto na altura (nota solta para nota presa, depois voltando para nota

solta) como também ocorra a mudança gradual de timbre, com a cabaça encostando

e se afastando da barriga.

89

Ex. 39 Utilizando a técnica de abafamento da cabaça

O próximo efeito é realizado por notas abafadas repentinas, sendo tocadas com

ênfase. A entrada para este evento deve ser dada por uma indicação corporal de um

dos instrumentistas. As notas abafadas aumentam gradualmente sua frequência

culminando em um efeito de voz dentro da cabaça com a duração de quatro

colcheias, ou seja, os participantes devem levantar o berimbau até que a abertura da

cabaça possa envolver a boca. Posteriormente entoam com a voz a sílaba “oó”,

tirando gradualmente a cabaça da boca, gerando um efeito de desabafar o som da

voz (Ex.40).

Ex. 40 Abafando e desabafando o som da voz

A partir deste momento a peça se encaminha para a apresentação de três padrões

rítmico-melódicos, desenvolvidos a partir das dinâmicas descritas anteriormente.

90

Cada padrão será separado por uma convenção que terá início a partir de uma

chamada.

No padrão 1, o berimbau médio faz pela primeira vez na peça uma “fusão de notas”,

ou seja, com apenas um toque de baqueta se extrai duas notas a partir do

movimento da pedra. Porém este movimento ocorre apenas uma vez por tempo, o

que facilita a execução técnica (Ex.41). O berimbau Viola executa novamente

repiques em semicolcheias, com o chiado logo após as notas soltas, exigindo bom

domínio técnico no controle da baqueta e da pedra. Enquanto isso, o Gunga mantém

as marcações características do ritmo com notas soltas.

A mudança do padrão 1 para a convenção é realizada a partir de uma chamada feita

pelos berimbaus graves (Ex.42). O início da chamada também é convencionado a

partir de indicação corporal de um dos integrantes.

Ex. 41

Ex. 42

Esta próxima convenção é uma sucessão de células rítmicas que se repetem, sendo

a primeira executada pelo Viola e marcada pelos demais berimbaus, e a segunda

91

uma sobreposição de figuras feitas pelo Gunga e Médio, com o Viola marcando o

tempo (Ex.43).

Ex. 43

Padrão 2:

Ex. 44 Toque de Atabaque adaptado para três berimbaus

A chamada para a próxima convenção é realizada pelo berimbau Viola utilizando as

técnicas rudimentares que fundem notas soltas com notas presas (Ex.45). Esta

convenção irá modular a métrica de 4/4 para 6/8, onde a semínima pontuada terá o

mesmo tempo da semínima. Utilizamos uma das figuras básicas praticadas durante

as dinâmicas de grupo para construir a convenção (Ex.46). O berimbau agudo toca o

fragmento rítmico da convenção, e os demais berimbaus repetem a frase, seguindo

a ordem do círculo. O processo ocorre semelhantemente ao que já foi realizado nas

92

dinâmicas e no início da peça, porém agora um berimbau não para de tocar quando

o próximo inicia. Todos continuam tocando a frase, somando as figuras tercinadas.

Ex. 45 Padrões rudimentares utilizados para fazer a chamada

Ex. 46 Convenção utilizando células básicas

O próximo padrão constitui-se em um ritmo em 6/8, onde o berimbau Viola executa

um toque idêntico ao Samango, de mestre Canjiquinha. O Médio e o Gunga realizam

figuras semelhantes, porém em momentos diferentes no tempo, resultando na

melodia descrita abaixo:

93

Ex. 47 Padrão em 6/8

A chamada para encerrar o padrão, feita pelo berimbau Viola, é o mesmo fragmento

de fraseado em tercina usado no início deste padrão e no decorrer da peça (Ex.48).

Ao final deste compasso onde ocorre a chamada a peça retorna à métrica binária e

encerra repetindo a introdução com os toques de Angola defasados em colcheia,

finalizando com um único toque solto entoado por todos os berimbaus (Ex.49).

Ex. 48

94

Ex. 49Re-exposição da Introdução

3.1.3 Mantra

No ano seguinte da finalização de Angola Cruzado, iniciamos o processo de criação

de uma nova peça que posteriormente foi intitulada Mantra. Algumas pessoas que já

participavam da Orquestra Paraguassu desde o início de sua criação ainda estavam

presentes, porém o grupo recebeu a presença de novos integrantes, alguns deles

iniciantes no berimbau. Por isso, durante a estruturação da peça ainda permanecia a

preocupação de criar vozes que contivessem desafios musicais para os

participantes, porém que ao mesmo tempo não estivessem fora do alcance de suas

possibilidades técnicas.

Mantra possui algumas características em comum com Angola Cruzado, porém a

metodologia se difere do processo que ocorreu na elaboração da primeira peça.

Angola Cruzado foi construída basicamente a partir de um compilado de dinâmicas

de grupo. Em Mantra, desde o início do processo já havia a intenção de criar uma

composição musical. Para isso ocorreram experimentações sobre alguns

95

procedimentos simples para grupo de berimbaus, que posteriormente foram

utilizados na peça.

Em Mantra são utilizadas cinco notas de berimbau (nota solta) sendo que cada

afinação pode conter mais de um instrumento, sempre preservando o equilíbrio de

dinâmica entre as afinações. Em caso de haver mais de um berimbau na mesma

afinação, estes irão tocar em uníssono durante toda a peça (com exceção do início,

como veremos a seguir). O procedimento que denominamos “rodar o som”, descrito

e utilizado na composição anterior, também é executado em alguns momentos de

Mantra, porém os berimbaus com a mesma afinação se comportam como um único

instrumento.

Mantra foi criada em cima de uma estrutura harmônica simples baseada em dois

acordes resultantes da interação entre os berimbaus. Os experimentos que

antecederam a peça foram desenvolvidos em círculo, onde os berimbaus de nota Lá

ficavam de frente para os instrumentos afinados em Ré. O grupo que estava afinado

em Dó, de frente para o grupo em Mi e o berimbau em Fá.

Figura 16 Distribuição espacial das afinações na peça Mantra

Os experimentos se baseavam em práticas de toques que alternavam entre o grupo

Dó e Mi (que resultava no acorde de Dó maior) e o grupo de Lá e Ré (Ré menor). O

96

berimbau Fá/Sol interage com os dois grupos por poder entoar notas que pertencem

aos dois acordes.

Descreveremos três experimentos práticos desenvolvidos sob a dinâmica de

mudanças de acordes, que foram importantes para a estruturação do material

utilizado em Mantra.

1) Toques e variações alternando o agrupamento de cada acorde

Consiste na prática de toques de Capoeira com improvisações, alternando os

acordes resultantes das afinações. Exemplo: durante quatro compassos, os

berimbaus em Lá mantêm o toque de Angola enquanto o berimbau em Fá

acompanha com o toque de Gêge. O berimbau em Ré está livre para improvisar.

Após o fim desses compassos os berimbaus Lá e Ré (Ré menor) param e são

substituídos pelos instrumentos de afinação Dó e Mi (Dó maior). O berimbau em Fá

muda para a nota Sol, mantendo o mesmo padrão rítmico do toque de Gêge (nota

presa). A alternância de acordes ocorre de quatro em quatro compassos. O

berimbau que improvisa também pode mudar.

2) Frases resultantes da diferenciação entre notas com a cabaça encostada na

barriga ou soltas (abafadas e desabafadas)

Ainda utilizando a alternância dos dois acordes (Ré menor e Dó maior),

experimentamos padrões rítmicos resultantes da diferenciação entre notas abafadas

e desabafadas (Ex.50). Exemplo: berimbaus em Lá, Ré e Fá tocam colcheias com a

cabaça encostada na barriga. Após uma contagem, inicia-se o seguinte padrão:

Ex. 50 Padrões rítmicos com efeitos de abafamento (CD Faixa 25)

Este padrão muda para outro acorde (berimbaus em Dó e Mi) após quatro

compassos.

3) Frases no Viola com acompanhamentos harmônicos

97

Construímos frases no berimbau Viola (Fá/Sol), onde em determinados momentos

recebia a marcação de acordes resultantes dos demais berimbaus. Estes momentos

eram marcados pela nota chiada no berimbau em Fá.

Ex. 51 Marcações de acordes no momento da nota chiada do Viola (CD Faixa 26)

O tipo de instrumento utilizado para desenvolver Mantra foi o berimbau tradicional

usado na Capoeira, com suas três notas básicas. Porém agora os toques

tradicionais de capoeira não estavam tão explícitos na estrutura dos padrões

resultantes. Em Mantra os padrões individuais (toques que cada berimbau executa)

estão mais distantes da configuração melódica dos toques de Capoeira

principalmente pelo fato do número de afinações ter aumentado. Isso fez com que

os desenhos melódicos e as notas de sustentação harmônica se diluíssem mais

entre as afinações, fato que também influenciou em facilitar a execução técnica de

cada voz. A estrutura geral continua se configurando como: Padrão rítmico-

melódico – Chamada – Convenção – padrão rítmico-melódico. O nome “Mantra” se

refere ao curto padrão melódico que se repete durante vários momentos da peça.

3.1.4 Mantra – Análise

A peça inicia com uma “nuvem” de efeitos tímbrísticos extraídos de todo corpo dos

berimbaus (percutindo-se com a baqueta na verga, arame, cabaça e produzindo

tremolos). É importante que nenhum instrumentista execute algum tipo de repetição

98

rítmica constante, para que seja possível criar o efeito resultante de ruído interrupto,

e contrastar com o que vem a seguir. A partir desta “nuvem” de ruídos, cada

berimbau inicia aos poucos a marcação do tempo estipulado para a peça a partir da

repetição de notas abafadas, em semínimas.

Ex. 52 Início de Mantra

Este é o único momento da peça em que berimbaus da mesma afinação agem de

forma independente. A mudança para as notas abafadas ocorre pouco a pouco, e

após todos os berimbaus estarem em uníssono, o Viola faz a chamada para o

primeiro toque.

No padrão 1 é apresentado o material harmônico que se divide nos dois acordes.

Por enquanto não há uma melodia explícita, mas um toque resultante de dois

acordes sendo marcados pela nota abafada. É importante que esta marcação de

escrachos dos berimbaus continue sendo destacada após a entrada do padrão dos

acordes.

99

Ex. 53 Primeiro padrão de Mantra

Novamente o berimbau agudo realiza a chamada para a convenção, que consiste

em “rodar o som”, porém agora com duas colcheias por afinação. No trecho seguinte

o berimbau Viola executa a repetição de um pequeno fragmento rítmico em 5/8 com

o acompanhamento harmônico dos demais berimbaus (Ex.54). Esta célula rítmica

imposta pelo Viola contém uma nota executada pela pedra no arame, extraindo dois

sons a partir de um toque (rudimento). Os acompanhamentos harmônicos ocorrerão

pontuando as notas abafadas da célula rítmica em 5/8, sempre alternando os

acordes de Dó maior e Ré menor por compasso.

100

Ex. 54 Padrão em 5/8

A chamada para o próximo trecho consiste em uma pequena mudança no padrão

em 5/8 do Viola, que deve ser rapidamente percebida para que a mudança ocorra de

forma instantânea. Subitamente, o ostinato melódico constituído de três notas, e que

inspirou o nome da peça, é apresentado neste momento.

Os berimbaus graves executam o acompanhamento harmônico a partir de notas

soltas (arame solto) com repetições espaçadas e células rítmicas simples,

resultando nos dois acordes de Dó maior e Ré menor apoiando a melodia

apresentada pelos berimbaus agudos (Ex.55). A chamada é feita pelo Viola, a partir

de uma sextina utilizando o rudimento de toques alternados de baqueta e pedra.

101

Ex. 55 Melodia nos berimbaus agudos

A convenção para o próximo momento será “rodar o som”, terminando no berimbau

Viola. A partir deste momento serão apresentados alguns efeitos oriundos das

experimentações que precederam a composição de Mantra. Primeiramente na

divisão de três toques, sendo alternados entre os berimbaus Lá/Ré/Fá e Dó/Mi/Sol.

O toque de cada berimbau está diretamente relacionado aos toques de capoeira. Os

berimbaus graves (Lá e Dó) executam uma variação de Gêge, que como vimos

anteriormente é constantemente utilizado na Capoeira. Os berimbaus médios (Ré e

Mi) respondem ao toque dos graves, com uma pequena frase melódica (usando

notas soltas e uma presa). O berimbau Viola executa o toque de Gêge (Ex.56).

102

Ex. 56

Interessante observar como o toque de Gêge exercido pelo Viola, e o toque emGêge

(variação) feito pelos berimbaus graves interagem. Assim como ocorre de forma

espontânea nas rodas de Capoeira, os toques se complementam preenchendo os

espaços um do outro. Apesar desta interação entre os toques de Gêge, neste

momento será perceptível a melodia resultante entre as frases de pergunta e

resposta resultante dos berimbaus graves, deixando o instrumento agudo (berimbau

em Fá), com a função de pedal rítmico e sustentação harmônica.

Após a chamada feita pelos berimbaus de nota Mi, o movimento harmônico continua

constante, como ocorreu desde o início da peça. Porém este momento é marcado

por grande mudança textural, pois os acordes são apresentados com os berimbaus

em uníssono, executando notas soltas em colcheia de forma constante com a

cabaça abafada na barriga. O efeito de diferenciação entre som abafado e

desabafado é utilizado de forma a criar uma melodia arpejada, evidenciando as

notas do acorde (Ex.57). As notas constantes são abafadas na barriga fazendo o

acorde soar em segundo plano, já que as notas livres (com a cabaça solta) se

destacam. O desenho rítmico da melodia arpejada é semelhante à acentuação

resultante do toque de Gêge.

103

Ex. 57 Arpejos utilizando notas abafadas e desabafadas

A chamada ocorre a partir de uma variação no berimbau Viola. Todos os berimbaus

executam em uníssono as notas com a cabaça desabafada, na mesma acentuação

da melodia arpejada, evidenciando a rítmica das notas soltas do toque de Gêge. Ao

final de dois compassos, ocorre o movimento de “rodar o som”, porém de forma

incompleta, pois as duas colcheias que passam pelos berimbaus Lá e Dó, quando

chegam no berimbau em Ré, já se configura no início da melodia de quatro notas

apresentada anteriormente.

104

Ex. 58 Transição para a re-exposição da melodia sem o acompanhamento harmônico

A melodia é apresentada sem acompanhamento harmônico, criando um efeito de

contraste textural com o momento anterior e desta forma destacando a melodia

(Ex.58).

O acompanhamento rítmico-harmônico dos demais berimbaus surge a partir de um

crescendo gradual. O ritmo resultante da interação entre os berimbaus graves é

marcado por grande movimentação pela intensidade rítmica resultante das frases

alternadas de cada berimbau (Ex.59). Esta intensidade rítmica, que surge a partir do

silêncio, se contrasta com o momento anterior onde a melodia se repete sem

nenhum acompanhamento. O movimento harmônico continua constante. Mesmo

quando os berimbaus não tocam em uníssono, a interação de pergunta e resposta

entre os instrumentos graves é capaz de evidenciar a resultante sonora do acorde.

105

Ex. 59 Melodia com acompanhamento rítmico-harmônico

Esta seção é finalizada após a pausa súbita da cada berimbau, ocorrendo uma de

cada vez na mesma ordem direcional circular do evento de “rodar o som”. Estes

eventos não têm um número fixo de repetições para que se inicie as pausas, e

devem ser feitos de forma gradual, criando o efeito de desmonte da resultante entre

melodia e acompanhamento rítmico-harmônico. O berimbau em Fá irá quebrar a

ordem circular e silenciar antes do instrumento afinado em Mi. A ordem para os

berimbaus cessarem será: Lá, Dó, Ré, Fá e por último Mi. Porém, o fragmento

melódico que contém a nota Fá, deve ser sustentado pelo berimbau em Mi a partir

do uso da nota presa.

Após uma pequena fermata de silêncio absoluto, o berimbau agudo chama a

próxima seção a partir de duas semínimas marcadas pela baqueta percutindo na

parte externa da cabaça. A partir desta indicação, os berimbaus executam

fortemente e apenas uma vez, a melodia de três notas com o acompanhamento dos

berimbaus graves. Ao fim desta melodia acompanhada ocorrerá uma pausa súbita

que deve se valer do recurso de abafamento do arame com os dedos que sustentam

a verga. Esta pausa súbita de um tempo precede a próxima convenção, que irá citar,

com os berimbaus graves (Lá, Dó e Ré), o início da melodia de três notas. Enquanto

ocorre esta repetição entre as notas Lá, Ré e Dó, os berimbaus agudos mantêm um

106

padrão rítmico simples e constante. Pela incompletude da melodia nos instrumentos

graves, e a intensidade das repetições de notas agudas com intervalos de semitom

(Fá e Mi), esta convenção se caracteriza por ser um momento de transição (Ex.60).

Ex. 60 Momento de transição

Após quatro compassos, os berimbaus Dó, Ré e Mi “tomam” a configuração

melódica “incompleta” dos instrumentos graves apresentados na convenção e

executam a melodia inteira com a variação de notas (Dó/Mi/Ré) alternando com a

configuração original (Ré/Fá/Mi) (Ex.61).

Neste momento, os demais berimbaus executam um acompanhamento rítmico a

partir do recurso do chiado e das notas provenientes da parte de baixo do arame.

Apesar de estas notas possuírem altura fixa e definida, seu registro é muito agudo e

sua sustentação muito curta. Por isso o efeito resultante tem caráter rítmico, de

forma que as notas de altura definida dos toques nesta região do arame não

interferem na estrutura harmônica e melódica do trecho. Os berimbaus em Fá e em

Dó revezam o acompanhamento rítmico, interagindo com o instrumento em Lá, e o

desenho melódico construído com os berimbaus em Ré e Mi.

107

Ex. 61 Variação da primeira melodia dos berimbaus agudos

Ao fim de quatro compassos, a melodia é finalizada com um ataque súbito de todos

os berimbaus em uma nota acentuada com a baqueta percutindo na parte externa

da cabaça.

A partir deste momento, a peça inicia o processo de finalização apresentando duas

melodias criadas a partir da inserção de uma quarta nota: o Sol, proveniente da nota

presa do berimbau agudo, agora sendo utilizado na melodia.

A primeira melodia é mais extensa, possuindo o dobro de compassos da melodia

principal de três notas. Também é mais esparsa, sendo que as notas são mais

longas, contrastando com o material que vinha sendo apresentado. Os berimbaus

graves executam um acompanhamento rítmico-harmônico semelhante ao que já foi

feito anteriormente. A melodia é apresentada duas vezes (oito compassos), e

instantaneamente se modifica para um desenho melódico reduzido, com dois

compassos. As notas da nova melodia estão em colcheias, e o acompanhamento

harmônico se mantém constante em semínimas. Este trecho possui dezesseis

compassos para acelerar gradualmente até o mais rápido possível, finalizando a

melodia com a nota Dó, que antes não fazia parte da mesma (Ex.62).

108

Ex. 62 Melodia acompanhada no final de Mantra

É importante ressaltar que as duas composições descritas acima (Angola Cruzado e

Mantra) possuem elementos semelhantes por se tratarem, acima de tudo, de

experimentos composicionais que ocorreram um em consequência do outro. Ou

seja, em Mantra utilizamos elementos que foram aperfeiçoados no processo de

elaboração de Angola Cruzado, seja da própria peça ou de materiais provenientes

das dinâmicas musicais que precederam a primeira composição. Mantra foi a

continuação dos aprendizados desenvolvidos nos processos ocorridos desde a

fundação da Orquestra Paraguassu, agora com o acréscimo de mais afinações.

Porém, o processo de construção de cada composição se diferiu, como foi descrito

anteriormente, e este fato pode definir a principal diferença entre o caráter das duas

composições.

109

3.2 Nhemongaraí

A terceira experimentação composicional chama-se Nhemongaraí, e suas

características estruturais, bem como o processo de elaboração diferem amplamente

das composições anteriores, apesar de ainda fazer uso das técnicas idiomáticas

tradicionais do berimbau. Por ter sido construída em um contexto distinto dos casos

precedentes, as relações entre intérpretes e compositor permitiram o acesso a

novas possibilidades e recursos musicais. Nhemongaraí foi composta a partir das

aulas práticas de berimbau desenvolvidas com o grupo PIAP, durante o primeiro

semestre de 2017. As duas peças precedentes (Angola Cruzado e Mantra) foram

desenvolvidas com um grupo de capoeiristas que já possuíam algum tipo de relação

com o berimbau, mesmo que essa relação fosse unicamente auditiva (conhecer os

toques e os demais recursos idiomáticos). Neste novo contexto o trabalho foi

realizado em colaboração com músicos percussionistas que possuíam bom

desenvolvimento técnico em instrumentos de percussão, além da leitura musical.

Por outro lado, a maioria dos componentes deste novo grupo não possuía

experiência prática com o berimbau e não sabia sequer segurar o instrumento na

posição tradicional de se tocar, além de desconhecer seus sons básicos e suas

possibilidades sonoras.

Influenciada pelo recurso da escrita musical – possível de ser utilizada neste novo

contexto – a nova composição obteve caráter mais contínuo, de forma que os

padrões rítmicos repetitivos, inspirados em toques de capoeira e ritmos populares

não foram utilizados estruturalmente nesta nova composição. Nhemongaraí também

explorou mais profundamente as métricas irregulares além do uso recorrente da

polimetria.

Apesar do distanciamento de padrões rítmicos e melódicos, é importante ressaltar

que fraseados improvisatórios e hemíolas, comuns em improvisos de toques de

capoeira, também foram usados na construção desta composição. Porém através do

recurso da escrita, este material pode ser apresentado de forma contínua, sem a

recorrência constante de toques e repetições de padrões.

110

Na sucessão das três experimentações composicionais apresentadas até este

momento é possível perceber que elementos como métricas, texturas, harmonia e

recursos não convencionais do berimbau, são gradualmente explorados e pouco a

pouco colocados em prática nas peças. Nhemongaraíé uma composição para cinco

afinações de berimbaus, porém diferentemente do que ocorre em Mantra, as

possibilidades harmônicas são mais aprofundadas, e as afinações escolhidas para

os berimbaus permitem maior diversidade de notas.

BERIMBAU1- Lá/Si

BERIMBAU 2- Dó/Ré

BERIMBAU 3- Mi/Fá#

BERIMBAU 4- Fá/Sol

BERIMBAU 5- Lá/Si (8ª)

Apesar de ainda não explorar dissonâncias como intervalos de segunda menor e

quartas aumentadas, nesta nova composição foram utilizados muitos outros acordes

com formação triádica, se compararmos com as peças anteriores.

O nome Nhemongaraí provém do dialeto Guarani, e se refere ao ritual do batismo do

milho e da erva mate. Geralmente, é neste ritual que as crianças recebem seu

nome-alma, um conceito existente na cosmologia Guarani que revela na palavra

(nome) seu elo com Deus (Nhanderu). Por isso, a relação entre vida, palavra,

significado e identidade humana estão explicitamente ligadas.

Por outro lado, as palavras-alma não apenas unem os homens aos deuses, mas também servem para distingui-los. Quando uma criança nasce, ela recebe um nome-alma que irá guiá-la no cumprimento do seu destino social e individual (TESTA, 2007, p. 42).

Estes conceitos da cultura Guaraní serviram de inspiração para a construção da

peça, a partir da ideia da busca humana por significados, que se relaciona ao ato de

dar nome às pessoas (batismo) e coisas a fim de atribuir sentido (alma) ao mundo.

Musicalmente, este conceito foi representado por elementos de fácil assimilação e

identificação – como melodias curtas, repetições rítmicas e acordes triádicos –

111

sendo “escondidos” e revelados, com a intenção de provocar no ouvinte a busca

pela identificação destes elementos de rápida assimilação.

Os berimbaus utilizados para construir Nhemongaraí foram os mesmos instrumentos

utilizados na Orquestra Paraguassu. Assim como nas peças anteriores não

utilizamos o caxixi e pode haver mais de um berimbau por afinação, se o equilíbrio

de dinâmica for compensado.

As práticas de berimbau desenvolvidas com o Grupo PIAP, que precederam a

construção da peça, auxiliaram para o desenvolvimento técnico do grupo. Foram

executados alguns exercícios simples, semelhante ao que foi feito anteriormente em

Mantra, porém com a configuração harmônica um pouco diferente. Foram utilizados

dois berimbaus oitavados com a afinação na nota Lá, com a nota presa alcançando

o Sib e mais três afinações de berimbau: Dó, Ré e Fá, todos alcançando uma

segunda maior acima, com a nota presa. Para as dinâmicas, utilizamos tríades

perfeitas resultantes das possibilidades desta configuração de notas (Tabela 2).

POSSIBILIDADES DE FORMAÇÃO DE TRÍADES PERFEITAS

Lá – Dó – Fá – Lá Sib – Ré – Fá – Sib

Lá – Ré – Fá – Lá Sib – Ré – Sol – Sib

Tabela 2 Tríades Perfeitas com notas soltas e presas

Os exercícios práticos utilizando os berimbaus com a configuração de afinação

descrita acima foram realizados em três etapas: formação de acordes com rítmicas

provenientes de abafamento da cabaça; exercícios de hemíolas utilizando variações

de toques de capoeira; exercícios improvisatórios com toques criados e toques

tradicionais.

1- Formações de acordes

Este primeiro exercício teve como objetivo treinar a capacidade de segurar o

berimbau e executar notas simples e contínuas. Desta forma é possível trabalhar as

duas mãos, ambas exercendo suas funções na prática do berimbau: segurar o

112

instrumento e a pedra e percutir no arame com a baqueta. A simplicidade do

exercício juntamente com a configuração de notas permite que se possa praticar o

toque no berimbau, a fim de potencializar a capacidade de extrair som do

instrumento, tendo a sonoridade dos acordes resultantes como referência.

O exercício inicia com os berimbaus Lá, Dó e Fá tocando notas soltas em colcheia.

A cada oito tempos ocorre um revezamento entre a nota Dó e a nota Ré, que é feita

pelos berimbaus em Ré e pelo berimbau em Dó tocando a nota presa, alternando

entre o acorde de Fá maior e o acorde de Ré menor. Posteriormente, estabelecemos

alguns padrões rítmicos a serem executados com a dinâmica das cabaças abafadas

na barriga, acentuando com notas soltas (Ex.63).

Ex. 63 Diferentes padrões rítmicos sobrepostos. A alternância dos berimbaus promove a mudança de acordes (CD Faixa 27)

O próximo passo foi praticar o toque com a nota presa dos berimbaus, explorando a

formação de outros acordes e utilizando os padrões rítmicos de abafamento da

cabaça.

2- Hemíolas

Na etapa seguinte exercitamos a prática de alternar as notas solta, presa e o chiado.

Para isso foram usados alguns padrões rítmico-melódicos baseados em variações

de toques de Capoeira. Porém, utilizamos os padrões de forma sobreposta, para

explorar os acordes resultantes. Propositalmente, os padrões possuíam métricas

113

diferentes resultando em frases que se repetiam em momentos diferentes do

compasso, porém mantendo a sonoridade do acorde (Ex.64).

Ex. 64Hemíolas sobrepostas formando diferentes acordes (CD Faixa 28)

3- Exercícios improvisatórios

Com a gradual desenvoltura dos toques básicos do berimbau, foi proposto ao grupo

o acréscimo de “chorus” de improviso sobre as bases harmônicas feitas no exercício

1. Os berimbaus oitavados (Lá) executam o improviso simultaneamente. A

orientação era de se usar as variações estudadas no exercício anterior como frases

a serem utilizadas na improvisação, seja fragmentando-as ou invertendo algumas

notas.

Também foi desenvolvido durante as práticas o estudo de toques de Capoeira, com

o fim de conhecer um pouco sobre a sonoridade desta cultura e praticar os

fraseados e tipos de improvisos comuns nas baterias. Foram estudados os toques

de Angola, São Bento Pequeno, São Bento Grande, Gêge, Santa Maria, Iúna, São

Bento Grande em Gêge, Idalina de Angola, Ave Maria, Regional de Bimba,

Muzenza, Samango, Barra Vento e Samba de Roda. Foram estudados alguns

desdobramentos do toque de Gêge para gerar ideias e ampliar as possibilidades de

fraseados nas improvisações. Dessa forma, criamos uma dinâmica semelhante ao

que ocorre nas rodas de capoeira, onde o berimbau Gunga toca o padrão de Angola,

o médio faz São Bento Pequeno, e o Viola executa os fraseados de improvisação

partindo do toque e dos desdobramentos de Gêge.

114

Com o toque de Iúna, todos os berimbaus executavam o toque uma vez. Depois

desse ciclo de quatro compassos (onde termina o desenho do toque) todos os

berimbaus passavam a marcar o tempo com notas soltas nos lugares de acentuação

característicos do toque de Iúna (Ex.65). Uma pessoa então executava um improviso

durante quatro compassos. Depois, todos retomavam o toque para que no próximo

ciclo, outra pessoa pudesse improvisar, e assim sucessivamente.

Ex. 65 Práticas improvisatórias com o padrão se Iúna(CD Faixa 29)

A prática de improvisação utilizando o toque de Santa Maria foi importante para

desenvolver a direcionalidade e a construção de um improviso de frases com início,

meio e fim. Isso porque o toque de Santa Maria possui um desenho melódico muito

característico, que se estende por quatro compassos (em 2/4). No fim de cada

compasso as frases que constituem o toque terminam em uma nota do berimbau –

na nota presa ou na nota solta (Ex.66). Estas notas caracterizam o toque mais do

que o fator rítmico, que pode ser bastante variável. Por isso foi combinado, durante

os exercícios de improvisação utilizando este toque, que os fraseados

improvisatórios deveriam seguir esta terminologia melódica de cada frase. Para

reforçar, todos os berimbaus que não estavam improvisando, marcavam a última

nota do compasso, mantendo a ideia melódica do toque.

Ex. 66 Prática improvisatória utilizando o toque de Santa Maria (CD Faixa 30)

115

3.2.1 Nhemongaraí– Análise

Nhemongaraí inicia com um grande crescendo de notas abafadas. O som deve

ocorrer de forma gradual, partindo do imperceptível até o fortíssimo. Em uma

apresentação é possível iniciar a peça fora do palco, da plateia ou do meio do

público. A intenção é que realmente não haja uma separação entre momento da

performance e momento comum. Por isso, eventuais ruídos do local de

apresentação irão se integrar ao começo da composição. Este início é inspirado em

alguns momentos do ritual Nhemongaraí, quando algum membro da comunidade

Guarani inicia um canto de forma muito sutil, e pouco a pouco este momento de

concentração se transforma em um canto poderoso.

Subitamente os berimbaus oitavados (Lá) iniciam uma frase rítmica constituída ao

longo de quatro compassos de métricas diferentes (5/4, 3/4, 4/4 e 7/8) utilizando

notas soltas, e com oito acentuações de notas chiadas ao longo do ciclo que delimita

a frase (Ex.67). Este ciclo (sequência de compassos) irá se repetir, porém agora a

cada acentuação de nota abafada ocorrerá o toque de um acorde construído a partir

de permutações entre notas presas e soltas dos demais berimbaus (Ex.44). Estes

acordes são: Fá maior, Ré maior, Ré menor, Lá menor, Dó maior, Ré menor e Ré

maior respectivamente. Nesta repetição existe a intenção que o ouvinte decodifique

a frase dos berimbaus oitavados e perceba os ataques de acordes em tríades, pois

esta mesma frase irá ser ocultada a partir da terceira repetição, quando os demais

berimbaus se manifestam com frases irregulares (sem padrões de repetição), porém

alternando acordes de Fá maior, Lá menor, Ré maior e Ré menor.

116

Ex. 67 Início de Nhemongaraí

Esta seção se encerra a partir da apresentação de novas estruturas rítmicas, onde

frases de métricas diferentes se sobrepõem em acordes de duas notas, havendo

pontos de intersecção onde todos os berimbaus tocam juntos seus padrões (Ex.68).

Cada padrão é baseado em fraseados feitos em toques de Capoeira, porém sua

decodificação é ligeiramente ocultada pela presença de outro padrão simultâneo, e

que possui outra métrica. O piano súbito contrasta com a dinâmica da seção

anterior, delimitando o início de outra seção.

Ex. 68 Sobreposições de padrões rítmico-melódicos

117

Assim como os trechos anteriores foram derivados das atividades que precederam a

construção da peça, o momento seguinte também foi influenciado pelas práticas

improvisatórias exercitadas anteriormente. É um momento de rarefação textural,

onde sobram apenas os berimbaus com a afinação da nota Lá em uma

improvisação simultânea, e independentes entre si.

A improvisação dos berimbaus em Lá é sutilmente interrompida a partir de um novo

crescendo de uma dinâmica extremamente baixa do acorde Dó, Mi, Sol. O acorde

que nasce é construído pelos berimbaus que estavam em pausa, executando frases

iguais, porém defasadas, separadas em compassos de 5/4, 4/4 e ¾ (Ex.69). A

sonoridade resultante será do acorde de Dó maior com o sexto grau (Lá).

Ex. 69 Fim do Improviso dos berimbaus em Lá

Os berimbaus em Lá vão aos poucos rarefazendo o volume de notas de suas

improvisações, e cessam a partir do segundo ciclo de compassos dos berimbaus

defasados. Justamente neste momento ocorre uma súbita mudança textural para a

nota chiada de todos os berimbaus, soando como um ruído branco durante um ciclo

inteiro. Após um ciclo de notas chiadas, os padrões de frases iguais em defasagem

retornam com o acorde de Ré maior durante mais dois ciclos idênticos aos

anteriores (Ex.70).

118

Ex. 70 Defasagens de padrões rítmicos iguais

A partir deste momento, qualquer tipo de padrão rítmico será desconstruído,

sobrando apenas a noção de pulso, já que os berimbaus ainda tocam colcheias e

semínimas. Porém, não será perceptível qualquer padrão rítmico melódico – que se

assemelhe a um toque de Capoeira, por exemplo –, mas apenas as transformações

harmônicas marcadas por súbitos uníssonos de acentuações de notas abafadas.

119

A polimetria deste trecho segue a sequência de compassos de oito, sete, seis e

cinco tempos, que se alternam de forma irregular. Neste momento, todas as

possibilidades de permutação de notas formando acordes de tríades perfeitas são

exploradas. Os acordes seguem uma sequência regular com a seguinte

configuração: Ré maior, Fá maior, Sol maior, Si menor, Dó maior, Ré menor, Lá

menor (Ex.71).

Ex. 71 Sequência harmônica construída por notas soltas e presas

Uma pausa súbita delimita a mudança para o momento final da peça, onde a

percepção de pulso é ligeiramente alterada pela mudança na métrica para 12/8. A

harmonia também irá contrastar com o momento anterior, pois todos os berimbaus

se misturam, e apesar de não ocorrer cluster as mudanças de acordes se tornam

menos perceptíveis e a harmonia fica estática. Uma melodia constituída por notas de

todos os berimbaus permanece oculta no meio da textura, e de forma repentina é

evidenciada quando as notas que não fazem parte desta construção melódica

cessam (Ex.72). Pela primeira vez na peça uma melodia clara e bem definida é

mostrada a partir das permutações de notas dos berimbaus.

120

Ex. 72 Melodia construída pelas notas dos berimbaus de Nhemongaraí

Novamente, a massa sonora retorna com a intenção de ocultar esta melodia, porém

é previsível que o ouvinte tenha sua atenção dirigida à identificação melódica, e

continue ouvindo-a no meio da textura. A peça termina no fim de três ciclos desta

melodia.

.

121

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi dito anteriormente, são diversos os temas e áreas do conhecimento que

envolvem a história do berimbau no Brasil. Sua influência sobre a cultura popular e

as consequências sociais desta relação – que em muitos casos estão relacionadas à

inclusão social a partir da prática e aprendizagem artística e desportiva – atribuem

ao instrumento um caráter simbólico representando os diversos elementos que

compõem a Capoeira – luta, dança, jogo. O berimbau está associado à história da

libertação do povo negro no Brasil.

Acreditamos que, com um tema tão abrangente, este trabalho poderá contribuir a

partir do viés da performance musical, descrevendo um estudo de caso onde o

instrumento foi analisado a partir de suas características físicas e maneiras de se

tocar; e onde, de forma criativa, utilizamos estes recursos em novas

experimentações. Para isto, não poderíamos deixar de buscar referências na

tradição popular, onde o berimbau foi musicalmente explorado por muito tempo.

Esta pesquisa se originou primeiramente, a partir de minha vivência na Capoeira

onde tive o primeiro contato com o berimbau e aprendi sobre suas técnicas

idiomáticas e notas fundamentais, além de conhecer um pouco sobre algumas

concepções musicais de Mestres de Capoeira. Posteriormente, utilizei uma parte

destes conhecimentos no campo da música popular e erudita, percebendo que

mesmo que as concepções musicais fossem diferentes da tradição, muitos

procedimentos técnicos utilizados se conservavam os mesmos.

Através do trabalho desenvolvido, foi possível compreender como a sistematização

dos recursos técnicos fundamentais (técnicas idiomáticas) foi importante para os

trabalhos de grupo (orquestras de berimbaus), influenciando diretamente nas

composições e se tornando ferramentas fundamentais no processo de

aprendizagem e desenvolvimento do instrumento.

Na Introdução deste trabalho apresentamos a indagação que motivou a criação de

composições utilizando o instrumento e seus recursos técnicos idiomáticos.

Acostumado com a sonoridade do berimbau nas rodas de Capoeira, questionei de

122

que forma estes elementos poderiam ser usados para a criação de novas músicas.

No capítulo 3 apresentamos a resposta para esta indagação, através da exposição e

análise das peças, deixando claro de que maneira estas técnicas idiomáticas foram

utilizadas.

Por isso, mesmo que a criação de novas composições não seja um procedimento

ligado às práticas tradicionais, as músicas que foram analisadas no capítulo 3,

mantiveram um forte vínculo com a Capoeira através dos recursos técnicos, que

serviram de alicerce no processo didático e composicional.

Por outro lado, trabalho oriundos no campo da música popular brasileira – que

fizeram parte do estudo sobre o idiomatismo proposto no capítulo 2 – exerceram

influências sobre as composições em procedimentos como: polimetrias, compassos

irregulares, formações de acordes, uso de efeitos como parte estrutural da música,

práticas improvisatórias e mistura de ritmos populares.

Foram quatro elementos idiomáticos observados na prática do berimbau, tanto no

contexto tradicional (Capoeira) quanto em produções de música popular brasileira:

1) Recursos Timbrísticosse refere à exploração de sons provenientes da baqueta

percutindo em todo o corpo do instrumento, e principalmente pelas mudanças

sonoras decorrentes da aproximação e distanciamento da cabaça na barriga

(abafamento e desabafamento). 2) Padrões Rudimentares são procedimentos

comuns feitos com a baqueta e a pedra no arame para o alcance de notas básicas e

diferentes frases rítmicas. 3) Padrões rítmico-melódicos são toques de Capoeira e

grooves construídos a partir das notas soltas presas e chiados do berimbau. 4)

Afinações se refere ao uso das notas fundamental e presa do berimbau em

configurações harmônicas e melódicas.

Para fundamentar tais procedimentos idiomáticos listados no segundo capítulo,

utilizamos exemplos de discos de Capoeira e da música popular brasileira que

pudessem elucidar como estas técnicas são praticadas nestes diferentes contextos.

A partir da disseminação da Capoeira,o uso do berimbau se popularizou

intensamente em todo território brasileiro. A transmissão oral dos conhecimentos

123

sobre os toques e fundamentos musicas da tradição, além da influência de ritmos

regionais na maneira de se tocar e cantar a Capoeira,contribuíram para diversificar

as nomenclaturas e peculiaridades sonoras existentes na práxis do berimbau no

Brasil.Por isso, os registros fonográficos feitos por mestres e percussionistas foram

importantes referências para fundamentar e exemplificar os procedimentos

idiomáticos que foram listados.

Para melhor elucidar estas questões utilizamos transcrições de alguns trechos de

gravações fonográficas dos mestres Traíra (José Ramos do Nascimento), Bimba

(Manoel dos Reis Machado), Gato Preto (José Gabriel Góes) e Silvio Acarajé (Silvio

dos Santos), discos que são considerados de grande importância em todos os

estilos de Capoeira existentes. É importante frisar que existem diversas outras

gravações de mestres de grande expressão e importância para a história da

Capoeira, porém, para este trabalho, os discos citados acima foram suficientes para

elucidar o conteúdo.

No campo da música popular brasileira, utilizamos exemplos de músicas daqueles

que talvez sejam os percussionistas que mais utilizaram e desenvolveram o

berimbau neste meio musical: Naná Vasconcelos, Ramiro Musotto e Dinho

Nascimento.

A primeira composição exibida (Angola Cruzado) possui os toques de Capoeira e

suas variações como principal matéria prima para suas estruturas. Em Mantra e

Nhemongaraí, estes elementos (toques) também são referenciais, porém, as

diferentes afinações mudam a forma como os padrões se configuram e interagem

entre si. Em todas as obras são utilizadas as três notas básicas do instrumento e

suas ligaduras, além dos recursos timbrísticos causados pelo abafamento das notas.

Sabemos que fora do contexto da Capoeira, não existe necessidade de ter as

técnicas tradicionais como premissa para a elaboração de novas composições. O

berimbau possui infinitas possibilidades e pode ser utilizado em outros tipos de

experimentações desprendidas de sua sonoridade tradicional. Os recursos

idiomáticos não precisam ser elementos obrigatórios nos processos criativos

envolvendo este instrumento. Porém, motivado principalmente pelo ensino coletivo

124

das técnicas musicais do berimbau brasileiro, a proposta das composições

apresentadas neste trabalho foi de manter essas características. Assim, o conceito

de idiomatismo norteou esta pesquisa bem como todo processo composicional,

resultando em uma análise da práxis do instrumento e na utilização deste material

para a criação e para o ensino do berimbau.

125

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129

6 – ANEXOS

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