UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL A IDENTIDADE KINIKINAU COMO MÁQUINA DE GUERRA PARA A...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL
UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE JARDIM
COORDENAÇÃO DO CURSO DE LICENCIATURA EM GEOGRAFIA
JOÃO EVALDO GHIZONI DIETERICH
A IDENTIDADE KINIKINAU COMO MÁQUINA DE GUERRA
PARA A OCUPAÇÃO E MANUTENÇÃO TERRITORIAL NO
MATO GROSSO DO SUL
JARDIM
2012
2
JOÃO EVALDO GHIZONI DIETERICH
A IDENTIDADE KINIKINAU COMO MÁQUINA DE GUERRA PARA A
OCUPAÇÃO E MANUTENÇÃO TERRITORIAL NO MATO GROSSO
DO SUL
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Coordenação do Curso de Geografia da Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária de
Jardim, como pré-requisito para obtenção do grau de
licenciado em Geografia.
Orientadora: prof.ª Dra. Sandra Cristina de Souza
JARDIM
2012
3
Ficha Catalográfica
DIETERICH, J. E. G.
É concedida à Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul a permissão para publicação e
reprodução de cópia(s) deste Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apenas para propósitos
acadêmicos e científicos, resguardando-se a autoria do trabalho.
29 de Outubro de 2012, ___________________________
A identidade Kinikinau como Máquina de Guerra para a Ocupação e
Manutenção Territorial no Mato Grosso do Sul/ João Evaldo Ghizoni
Dieterich – Jardim: [s.n], 2012.
61 f.
TCC (Graduação) – Universidade Estadual de mato Grosso do Sul.
Orientadora: Prof.ª Dra. Sandra Cristina de Souza.
1. Caracterização histórica dos Kinikinau 2. Pressupostos Teóricos 3.
Território Kinikinau.
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TERMO DE APROVAÇÃO
João Evaldo Ghizoni Dieterich
A IDENTIDADE KINIKINAU COMO MÁQUINA DE GUERRA PARA A
OCUPAÇÃO E MANUTENÇÃO TERRITORIAL NO MATO GROSSO
DO SUL
Trabalho de Conclusão de Curso aprovado como requisito parcial para obtenção
do grau de Licenciado em Geografia, da Universidade Estadual de Mato Grosso
do Sul, pela seguinte Banca Examinadora:
Orientador (a): Prof.ª Dra. Sandra Cristina de Souza
___________________________________
Curso de Geografia, UEMS - Jardim
Examinador 1: Prof.ª Msc. Vera Lúcia Freitas Marinho
___________________________________
Curso de Geografia, UEMS - Jardim
Examinador 2: Profa. Msc. Cecília Aparecida da Costa
__________________________________
Rede Pública de Ensino – SED- Dourados/MS
Jardim, 21 de Novembro de 2012
5
DEDICATÓRIA
A Deus, Senhor e companheiro de todos os
momentos.
A meus pais Elizabete e Waldir, razão do meu
existir.
A minha Irmã Liziane e minha sobrinha
Brenda.
A meus Mestres e Colegas de curso.
6
AGRADECIMENTOS
A Deus, por toda força, sabedoria e coragem que ele me concedeu, para chegar até
aqui e terminar esta fase tão importante em meu existir.
A meus pais Elizabete e Waldir, por todo amor, incentivo e apoio que deram durante
todo o período do curso.
A minha irmã Liziane e a Minha sobrinha Brenda, pessoas importantes em minha vida
e que tanto me distraíram em momentos difíceis.
A minha orientadora Prof.ª Dra. Sandra Cristina de Souza, pela competência e
paciência com que me orientou.
A meus mestres por todo o conhecimento dispensado a minha formação.
A meus colegas de curso que se tornaram minha segunda família durante estes quatro
anos. Pessoas que jamais irei esquecer e que sempre vão ser importantes em minha história,
pois juntos passamos momentos tristes e felizes.
A minha amiga Diandra Bento Carmona, com quem convivi, discuti, me diverti
durante estes quatro anos.
A meu grupo de trabalho com quem dividi o peso dos trabalhos acadêmicos durante
todo o período do curso: Cleudemar, Diandra, Telma e Vanessa.
Aos indígenas da tribo Kinikinau, que me permitiram realizar este trabalho e que tanto
me auxiliaram enquanto fonte de pesquisa.
A todos, que de alguma maneira me auxiliaram até aqui, para que eu estivesse
terminando tal etapa de minha formação profissional.
7
EPÍGRAFE
“muni-vos daquilo que é indispensável e
procedei como é preciso proceder, obtereis
então aquilo que desejais obter. Não admitais
nada que não seja verdadeiramente evidente
(quer dizer, apenas aquilo que deveis admitir);
dividi o assunto segundo as partes requeridas
(quer dizer, fazei o que deveis fazer); fazei
enumerações completas (quer dizer, aquelas
que deveis fazer: é exatamente assim que
procedem as pessoas que dizem ser preciso
procurar o bem e evitar o mal.).”
(Pierre Bourdieu)
8
RESUMO
O presente trabalho procura desenvolver uma análise sobre a identidade Kinikinau como
auxílio na manutenção de seu território, desde sua chegada ao território brasileiro vindos da
região do Chaco Paraguaio, fato relatado por historiadores durante o século XVII segundo
Azara (1809), até a atualidade. O local de sua ocupação original seria próximo a Agaxi,
Aquidauana, onde suas casas foram queimadas na década de 1920. Segundo relatos em 13 de
junho de 1940, cinco famílias Kinikinau se mudaram para a terra cedida pela etnia Kadwéu,
que é conhecida como Aldeia São João, aldeia esta que concentra a maior quantidade de
indivíduos de tal etnia, cuja população atual é de cerca de 500 pessoas entre Kinikinau,
Terena e não índios. Procuramos compreender como a identidade funcionou como Máquina
de Guerra, conforme conceitua Deleuze e Guattari (1997) para a manutenção de seu território,
que no caso dos Kinikinau podemos considerar como flutuante, de acordo com a definição de
Maffesoli (2001).
Palavras-chave: Identidade. Território. Máquina de Guerra. Indígenas. Etnia Kinikinau.
9
ABSTRACT
This work intends to develop an analysis of the Kinikinau’s identity as a way to aid in support
of their territory, since they arrival in Brazil from the region of the Paraguayan Chaco, fact
reported by historians during the seventeenth century according to Azara (1809), until present.
The site of original occupation would be near Agaxi, Aquidauana where their houses were
burned in the 1920s. According to reports on June 13, 1940, five Kinikinau families moved to
the lands provided by Kadwéu ethnicity, which is known as Aldeia São João, which
concentrated the greatest number of individuals of that ethnicity, whose current population is
about 500 people between Kinikinau, and no Terena Indians. We seek to understand how
identity functioned as War Machine, as conceptualized by Deleuze and Guattari (1997), for
the maintenance of their territory, in which case we may consider the Kinikinau as floating
territory, according to the definition of Maffesoli (2001).
Keywords: Identity. Territory. War Machine. Indians. Kinikinau Ethnicity.
10
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Povos indígenas no Gran Chaco, no final do século XVI........................................37
Figura 2 - Carta Histórico-Etnográfica do Gran Chaco, baseada nas informações dos padres
jesuítas Lozano (1733), Dobrizhoffer (1783), Jolis (1789) e do demarcador espanhol
Azara.........................................................................................................................................39
Figura 3 - Localização da Missão Nossa Senhora da Misericórdia em Albuquerque..............41
Figura 4 - Localização dos grupos indígenas no Mato Grosso.................................................43
Figura 5 - Porto Murtinho e sua Localização em mato Grosso do Sul.................................... 45
Figura 6 - Localização das aldeias no Território Indígena Kadwéu........................................ 47
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................13
CAPÍTULO I: CARACTERIZAÇÃO HISTÓRICA DOS KINIKINAU................................16
CAPÍTULO II: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS.......................................................................27
CAPÍTULO III: TERRITÓRIO KINIKINAU..........................................................................35
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................51
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................54
ANEXOS..................................................................................................................................57
13
INTRODUÇÃO
O presente trabalho foi proposto depois de verificarmos durante a realização do
projeto de iniciação científica, a deficiência nos dados sobre a etnia Kinikinau, percebendo
dessa forma, a necessidade de se realizar o levantamento desses dados como forma de garantir
a este povo informações concretas sobre sua história e seu território. Depois de analisarmos
uma série de possibilidades, decidimos que se partíssemos da análise da identidade como
Máquina de Guerra, sob o conceito de Deleuze e Guattari1, para a manutenção do território,
poderíamos melhor compreender como após tantos anos, os Kinikinau ainda conseguem
manter um território próprio ainda que Flutuante, como conceitua Maffesoli.
Os Kinikinau são um subgrupo da nação Guaná residentes na aldeia São João, que se
localiza próxima à cidade de Bonito, numa área de terras sob o domínio da etnia Kadwéu, fato
que ocorre devido à falta de terras tradicionais, o que causa uma disseminação desta
população para outras aldeias2 do Estado, causando atritos interétnicos.
Como defende Haesbaert (2005) “[…] as sociedades tradicionais conjugavam a
construção material “funcional” do território como abrigo e base de ‘recursos’ com uma
profunda identificação que recheava o espaço de referentes simbólicos fundamentais à
manutenção de sua cultura.” O território para essa sociedade é importante tanto para sua
sobrevivência física como cultural, demonstrando a importância da recuperação da área
tradicional deste povo para a manutenção de sua identidade e de sua existência étnica. Souza e
Silva (2003) também percebem “o território como meio básico de produção, mas também
sustentáculo da identidade étnica”. Porém, até o momento, não receberam atenção devida do
poder público, não sendo feito nenhum levantamento ou estudo sobre o território de direito
deste povo. A análise da questão da territorialidade e da desterritorialização foram realizadas
a partir das teses de Rogério Haesbaert, que afirma que “Não há como definir o indivíduo, o
grupo, a comunidade, a sociedade sem ao mesmo tempo inseri-los num determinado contexto
geográfico, ‘territorial’”. O autor aponta formas de discutir a questão da desterritorialização e
territorialização de povos excluídos.
1 Para Deleuze e Guattari a Máquina de Guerra é “[...] invenção dos nômades (por ser exterior ao aparelho de
Estado e distinta da instituição). A esse título, a máquina de guerra nômade tem três aspectos: um aspecto
espacial-geográfico, um aspecto aritmético ou algébrico, um aspecto afectivo.” (1997, p. 50). 2 São exemplos: Lalima, Cachoerinha, Argola, Babaçu.
14
O Território Flutuante foi trabalhado segundo a visão de Michel Maffesoli (2001) é
“[...] um território que não predispõe as coisas estabelecidas com seu cortejo de certezas e de
hábitos [...]”, sendo assim pode se constituir em um “território” de hábitos e cultura próprios a
cada sociedade. Para a análise do território Kinikinau, este conceito contribui à medida que
demonstra que para ser um território não há necessidade de prender-se à ocupação do espaço
físico somente, mas sim, de como o território é utilizado culturalmente por um povo. Dessa
forma, todos os espaços ocupados pelos Kinikinau, seja no Chaco Paraguaio, seja em Agaxi
ou dentro do território Kadwéu ou Terena, são territórios Kinikinau.
Durante as análises, percebemos que a identidade Kinikinau auxiliou na manutenção
deste território, mesmo que flutuante, conforme definimos. Para compreender a ação da
identidade nesta manutenção do território, utilizamos o conceito de máquina de guerra de
Virilio e Lotringer (1984) e ainda Deleuze e Guattari (1997), pois, como entendemos, a
máquina de guerra compreende todo um complexo ligado as mais diversas áreas sociais que
condicionam o desenvolvimento de setores do aparelho do Estado que se relaciona
diretamente com o poderio bélico ou militar da sociedade, ou ainda, a aspectos que alguns
povos venham a utilizar como forma de resistência a fatores impostos pelo Estado ou
Sociedade e que para eles são degradantes.
O conceito de identidade que utilizamos é o de Hall, que a define como algo que
preenche o espaço entre o interior e o exterior entre o indivíduo e o mundo. Este conceito nos
ajuda a compreender a identidade Kinikinau que traz dentro de si valores culturais próprios
que, entretanto, dialogam com a multiplicidade de outras identidades, adquirindo outros
valores, sem, contudo perder a sua originalidade, aquilo que os distingue de outras identidades
e que se mantem até a atualidade.
Os dados cartográficos apresentados neste projeto são dados já utilizados por outros
autores, onde alguns destes são históricos, por terem sido produzidos pelos primeiros
exploradores que chegaram a América do Sul.
Durante as entrevistas e a observação participante, buscamos compreender a
cosmografia deste povo e sua perspectiva sobre suas condições de sobrevivência sem um
território próprio.
Trabalhar com história oral nessa pesquisa foi de fundamental importância (ainda que
não seja suficiente, enquanto evidência única) numa tentativa de “equilibrar a distorção
implícita” em outras fontes documentais (relatórios do SPI e da FUNAI, além de outros
15
documentos oficiais) sobre o mundo indígena. A cultura indígena surge a partir da oralidade e
sua história abarcará nuances ainda não revelados uma vez que segundo Alessandro Portelli
(1997) “o testemunho oral gera novas histórias, e a criação de novas histórias, por sua vez,
pode literalmente, contribuir para o processo de dar voz a experiências vividas por indivíduos
e grupos que foram excluídos das narrativas históricas anteriores, ou foram marginalizados”.
O presente trabalho foi divido em três capítulos. No primeiro será discutido o histórico
da tribo Kinikinau, porém, a discussão foi realizada através da análise crítica de trabalhos já
publicados que abordam a temática Kinikinau ou ainda que façam referência a etnia. Dentro
deste, comparamos as informações apresentada pelos autores, onde encontramos muitas
passagens de diferentes trabalhos que divergem entre si. Buscamos apresentar uma
conceituação já existente, dentro dos mesmos, demonstramos a importância que este trabalho
apresenta para a temática aqui abordada.
O segundo capítulo, apresenta a discussão dos pressupostos teóricos, onde tais
pressupostos são comparados com a temática, apresentando as primeiras conclusões
resultantes da análise de toda a problemática Kinikinau, perante a conceituação que os
diversos autores usados, apresentam sobre os temas deste trabalhado.
O terceiro capítulo faz menção ao território Kinikinau e como foi alterado durante o
passar dos séculos. Apresenta também a relação existente entre estes, seu território e o
território das demais etnias, com as quais possuem uma relação sócio espacial, estabelecida
historicamente. Demonstra através de dados cartográficos toda a dinâmica da
desterritorialização e territorialização que estes passaram até se estabelecerem no território
que ocupam até a atualidade. Além de apresentar os anseios que os indivíduos de tal grupo,
possuem, para a construção de um território que possam chamar de seu e que garanta o futuro
de toda a sua etnia.
16
Capítulo I - Caracterização histórica dos Kinikinau.
Em projeto3 anteriormente realizado sobre a etnia Kinikinau, foi constatado uma
pequena quantidade de trabalhos que elencassem o tema. Perante esta realidade decidimos por
realizar um levantamento e analisar de forma crítica o conteúdo abordado por cada um dos
trabalhos aqui mencionados. Desta forma, ao término de nosso trabalho, poderá ser verificado
o quanto contribuímos para o conhecimento construído até o presente momento sobre o povo
Kinikinau. Iniciaremos a análise por ordem de ano de publicação.
Sendo assim, o primeiro trabalho a ser analisado será o da professora doutora Maria
Elisa Martins Ladeira, que corresponde a sua tese de doutorado pela Universidade de São
Paulo, publicada no ano de 2001 que tem por título Língua e História: análise sociolingüística
em um grupo Terena. Onde apesar de trabalhar com a questão linguística sobre a etnia Terena,
faz uma caracterização histórica e apresenta todos os subgrupos da nação Guaná4 dos quais os
Terenas fazem parte e inclui nestes relatos sobre os Kinikinau. Desta forma ela evidencia a
forma como se relacionavam com os demais povos:
Até o final do século XVIII, os Guaná mantiveram uma estreita relação com um outro povo de origem chaquenha, os Guaikuru, atualmente mais
conhecidos sob a denominação de Kadiwéu. Possuidores de uma agricultura
sofisticada, os Guaná forneciam produtos agrícolas e tecidos aos Guaikuru, que lhes retribuíam com instrumentos de metal expropriados dos colonos
espanhóis e portugueses. (LADEIRA, 2001, p. 19.)
Dentre os subgrupos, os Kinikinau são representados durante todo o texto como um
povo pacífico, que sempre esteve em relação de subordinação com os demais povos, enquanto
os Terena tinha certa independência. Inicialmente estavam subordinados aos Guaicuru e
posteriormente passaram a ser subordinados aos portugueses gerando um processo de
aculturação5 que perfaz em sua existência até a contemporaneidade. Nesta tese, Ladeira
3 Projeto de Iniciação Científica pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) na categoria
bolsista. Realizado no ano de 2010, com o Título: Kinikinau: renascendo das cinzas. Onde trabalhamos com a
questão histórica que envolvia esta etnia, como sua vinda para o Brasil, sua vida, sua “extinção” bem como seu
ressurgimento enquanto etnia em meados dos anos 90 do século XX. 4 Os subgrupos da nação Guaná são: Terena, Laiana, Kinikinau e Exoaladi ou Guaná. 5 “Processos de aculturação decorrem de vários fatores, desde os que podem, a nossos olhos, parecer anódinos, como vestimentas, até modificações religiosas, que alteram profundamente o modo como um povo se representa
e se sente, transformando profundamente a ideia que tem de si. A introdução de novas técnicas e tecnologias,
como o machado de ferro em tempos mais remotos ou automóveis e celulares hoje, tem a propriedade de
17
reconstitui todo o deslocamento dos Guaná de forma geral, não sendo caracterizado em seus
registros um único subgrupo. É explicada a relação de moradia na região de Miranda, sempre
aos arredores dos presídios e fortes, onde a nação servia de produtora de alimentos para os
demais indivíduos da sociedade (militares, portugueses, governantes e administradores da
Província de Mato Grosso). Nos relatos apresentados no texto de historiadores da época e
cartas militares as quais Ladeira faz menção, estão presentes os produtos (mandioca, batatas,
entre outras leguminosas, animais, etc.) aos quais eram produzidos com excelência pelos
Kinikinau. Em seu trabalho, Ladeira explica sobre a atual localização de algumas das Aldeias
Terena:
Na área Kadiwéu, existem quatro aldeias, das quais três (São João, Tomázia
e Campina) constituem-se de indivíduos Terena e sua descendência, que
vieram pelas mãos do SPI para aquela área para ajudar na "colonização" destes índios. (LADEIRA, 2001, p. 29).
Porém, a referida aldeia São João que se localiza no Município de Porto Murtinho, foi
inicialmente habitada pelos remanescentes da etnia Kinikinau6 sendo reconhecida como
pertencente a tal etnia. Para Ladeira os Kinikinau é uma etnia extinta ou dissolvida dentro das
demais, já que não possuem um território próprio.
A dissertação de Mestrado de Verone Cristina da Silva pela Universidade Federal de
Mato Grosso, com título: Missão, Aldeamento e Cidade. Os Guaná entre Albuquerque7 e
Cuiabá (1819 - 1901) é outro trabalho publicado no ano de 2001, como o próprio titulo
demonstra tem por objetivo a análise da nação Guaná e que acrescenta relevantes informações
sobre a etnia Kinikinau. A autora inicia abordando pesquisas anteriores que se referem aos
Guaná, suas subtribos e localização nos mais diversos períodos históricos como é o caso do
século XVIII, onde eles se encontravam divididos em dois grupos:
“Um deles estava na região do Puerto de los Reyes e, ao que parece,
relacionavam-se diretamente com os Guarani. O outro grupo estava na região do Puerto de San Fernando, interagindo com os Mbayá.” (SILVA,
2001, p. 4).
transformar as relações vigentes em determinada tribo.” Rosenfield (2008, p. A2). Esta aculturação geralmente é
imposta a estes povos, que a aceitam como forma de sobreviver dentro da sociedade dominante. 6 Estes não possuíam terras e através de um acordo com o Cacique Kadwéu Martinho Kadwéu, receberam
autorização de ocupar este pequeno espaço de terra como forma de proteção das fronteiras das terras Kadwéu. 7 Albuquerque é um distrito do município brasileiro de Corumbá, no estado de Mato Grosso do Sul.
18
A autora pontua ainda, a relação de cooperação/dominação que existia entre os Guaná
e as demais etnias, bem como, a diferenciação entre a nação Guaná e as consideradas como
subgrupos colocando os Kinikinau ou Kinikináo8, Terena e Laiana como grupos étnicos
diferenciados dos Guaná. A autora afirma que durante muitos anos ocorreram divergências
para a classificação de alguns grupos em relação a sua etnia, pois os Guaná eram confundidos
com os Kinikinau, confusão registrada em relatos e documentos.
Utilizando-se de relatos sobre os Guaná, Silva (2001) cita os Kinikinau em alguns
trechos de seu trabalho ligando-os ao gosto pela produção de lavouras e seu aldeamento em
terras próximas a Albuquerque e Miranda. Na sua análise sobre a localização das subtribos
Guaná com base em Taunay, a autora situa a região que ainda hoje é considerada como
território tradicional dos Kinikinau “Os Kinikináo aldeavam-se em Euagaxigo9 (que na língua
Guaikurú significa bando de capivaras), localizada a alguns quilômetros de Miranda.” Silva
(2001, p. 21).
Prosseguindo em sua tese no item Habitação, prática agrícola e comércio, Silva
reproduz excertos de alguns cronistas que em meados do século XVIII, retratam os Kinikinau
(ou ainda alguns dos subgrupos Guaná) como tendo relações problemáticas com os demais
povos da região, geralmente os Guaicuru e os Kadwéu, onde os Kinikinau se negavam a
habitar em Missões Jesuítas junto com os demais povos, pois tinham divergências. Já outros
relatos do século XIX, referem-se aos Kinikinau como um povo dócil, que junto com os
Guaná eram os únicos que recebiam a catequese em missão jesuítica na região de
Albuquerque.
Eram os únicos que possuíam algum tipo de utilidade para a província (produção de
alimentos) e por isso mereciam certa atenção por parte do governo provinciano. A autora
ainda faz referência ao aldeamento conhecido como Nossa Senhora do Bom Conselho, que
tinha como objetivo a evangelização dos povos indígenas da região, entre eles os da etnia
Kinikinau, que localizava-se na região conhecida com Mato Grande.
Silva explica que durante o período da Guerra do Paraguai segundo os relatos de
Taunay, os índios de todos os subgrupos Guaná lutaram pelo lado brasileiro da forma como
8 A palavra Kinikinau sofre diferenciação em sua grafia, onde pode ser encontrada como: Kinikináo,
Kinikinawa, quiniquináos, Quiniquinau (Equiniquinau), Kinikináus, porém a grafia aceita pela etnia como
verdadeira e por nós utilizada neste trabalho é Kinikinau. 9 Porém durante as entrevistas realizadas com indivíduos da etnia Kinikinau moradores da Aldeia Mãe Terra –
Miranda – MS, que foram utilizadas em nosso trabalho de Iniciação Científica, estes denominaram essa área
como Agaxi.
19
podiam, com armas em batalhões organizados pelo exército brasileiro ou ainda por conta
própria, com lanças artesanais, e após o termino da guerra, descreve a forma como
enfrentaram a destruição de suas moradias nas reduções e a falta de um território próprio ao
qual podiam habitar.
No ano de 2003, Giovani José da Silva e José Luiz de Souza, publicam na revista
Sociedade e Cultura um artigo intitulado: O Despertar da Fênix: a educação escolar como
espaço de afirmação da identidade étnica Kinikinau em Mato Grosso do Sul, onde abordam a
questão da escola como instrumento de manutenção da identidade Kinikinau para as futuras
gerações. Iniciam o artigo fazendo uma consideração histórica dos Kinikinau se diferenciando
das outras autoras já citadas (LADEIRA, 2001; SILVA, 2001), pois, apresentam mais
informações sobre a localidade onde habitavam “[...] instalando-se na região banhada pelo rio
Miranda entre os paralelos 19º e 21º de Latitude Sul...”, localizando-se no sul da Antiga
província de Mato Grosso hoje Mato Grosso do Sul, compreendendo a região de Miranda.
Também relatam que existiam cerca de mil indivíduos dispersos entre Albuquerque e
Miranda, divergindo das demais autoras10
já citadas.
Os autores relatam que os indivíduos da etnia Kinikinau continuaram após a Guerra do
Paraguai a existir de forma independente, garantindo alimentação para a população local.
Seguindo o histórico retratam através de relatos a chegada dos Kinikinau a Aldeia São João na
década de 1940 e fazem menção ao “verdadeiro” território tradicional destes, este era
localizado entre os rios Miranda e Aquidauana ao qual eles denominavam de Wakaxu (em
Kinikinau significa “Capivara na Lagoa”), desta forma podemos concluir que Wakaxu e
Agaxi seria o mesmo lugar, pela descrição que é dada sobre a localização de ambos e pelos
significados de ambos as nomenclaturas atribuídas a este local que em Língua Portuguesa se
assemelham11
.
É retratado através de entrevistas as dificuldades enfrentadas pelos Kinikinau para se
manterem uma etnia ainda “viva”, pois eram obrigados pelos chefes da FUNAI12
a se
registrarem como Terena ou Kadwéu, o que foi aceito pelos indivíduos da etnia até meados da
década de 90 do século XX, quando voltaram a requerer a sua identidade Kinikinau. Através
10 Souza (2001) e Ladeira (2001) colocam que após a Guerra do Paraguai os Kinikinau ficaram desaldeados a
procura de terras para habitarem. 11 Wakaxu (em Kinikinau significa “Capivara na Lagoa”); Agaxi ou Euagaxigo (que na língua Guaicuru
significa bando de capivaras). 12
Fundação Nacional do Índio.
20
da educação e cultura buscam garantir a sua identidade enquanto Kinikinau, já que não
possuem um território próprio. Por esse motivo, os autores defendem que os Kinikinau
possuem um território simbólico, através do qual segundo Silva e Souza (2003, p. 153) eles
“reconstruíram suas vidas longe das terras tradicionalmente ocupadas pelo grupo.” Porém,
sem um território “real” a única forma que encontraram para a manutenção de sua identidade
seria através da escola onde são preparadas as futuras gerações, para que possam reconhecer a
identidade da etnia como sua.
O Antropólogo Gilberto Azanha, no ano de 2006, em seu trabalho “As terras
Indígenas Terena no Mato Grosso do Sul” faz uma análise histórica e em contextos jurídicos a
criação das reservas indígenas, que segundo ele tornam os mesmo em “famigerados”, ele
perfaz todo o histórico dos Txané13
para finalmente abordar a dinâmica da ocupação territorial
Terena. Azanha (2006) explica que em pesquisa realizada na FUNAI quanto à concessão de
títulos provisórios e definitivos concedidos nos últimos anos do Império, junto com os
primeiros 30 anos de República para as etnias existentes no então Estado de Mato Grosso,
somente foram encontrados títulos provisórios de concessão de terras a algumas etnias e uma
dessas foi para os Kinikinau. Fazendo um histórico sobre os Terena no Estado de Mato
Grosso do Sul, Azanha aborda o grupo Txané-Guaná considerando que entre os mais velhos
ainda há a existência das subtribos. Porém, para os grupos externos a sua sociedade estes se
apresentariam todos como Terena.
Ao trabalhar sobre o período de migração e formação dos primeiros aldeamentos dos
Guaná durante o século XVIII, Azanha cita trechos relacionados aos Kinikinau. Nestes o
sargento engenheiro Ricardo Franco de Almeida Serra relata que havia cerca de 600
indivíduos vivendo nas cercanias de Albuquerque. Segundo relatos apresentados pelo autor
entre os anos de 1803 e 1845 a população Kinikinau teria aumentado em cerca de 100 a 200
indivíduos, que moravam em uma aldeia em Mato Grande “distante a três léguas do poente de
Albuquerque”. Durante a leitura do texto, percebemos uma divergência em relação ao
pertencimento as etnias, pois, a todo o momento os Terena são confundidos com os Kinikinau
e vice e versa, dificultando o entendimento de quem realmente é Terena e quem é Kinikinau.
Ilda de Souza, publicou no ano de 2008 pela Universidade Estadual de Campinas, sua
tese de doutorado com o título Koenukunoe Emo'u A Língua Dos Índios Kinikinau. Nesta
como o próprio título apresenta, faz uma análise da língua Kinikinau que se diferencia das
13
Esta é uma das nomenclaturas que a Nação Guaná recebe, ou com a junção de ambas (Txané-Guaná).
21
demais línguas faladas entre as etnias do tronco Aruak. Porém, inicia seu trabalho como os
demais citados até agora, com uma revisão histórica da etnia. A autora inicia seu texto
explicando a localização da etnia no município de Porto Murtinho e a quantidade de
indivíduos existentes nesta etnia (cerca de 180). Souza (2008, p. 15) relata que ao fazer os
levantamentos de dados sobre trabalhos anteriores a sua tese não encontrou nenhum que
tratasse exclusivamente dos Kinikinau, sendo os relatos destes, encontrados somente em
trabalhos sobre outras etnias como os Terena e Kadwéu ou ainda em trabalhos que abordavam
o Chaco14
. A autora inicia o histórico abordando a questão dos Guaná ainda no Chaco e toda a
sua submissão às demais etnias presentes nestes, para isto, ela se utiliza de relatos de
exploradores da época. Após a migração dos Guaná para a região de Miranda (por volta de
1850), houve a divisão dos Kinikinau em dois grupos que totalizavam cerca de mil
indivíduos. Como citados em outros trabalhos analisados, ela relata que os Kinikinau tinham
desavenças15
com os Guaicuru desde antes da migração para o Brasil, não convivendo em
harmonia com os mesmos.
Um dos fatores considerado importante por Souza para a manutenção do grupo foi à
união familiar presente entre os indivíduos, fato relatado pelos exploradores desde os
primeiros contatos com a etnia. Seguindo a leitura do processo histórico, a autora aborda a
transformação da cultura e língua deste povo, devido o seu contato com outras etnias e
religiosos. Relata também que durante a Guerra do Paraguai os Kinikinau optaram por lutar
pelo lado brasileiro, os indígenas da etnia teriam sido os primeiros a subirem a Serra de
Maracaju, produzindo alimentos para abastecerem a população e os soldados que lutavam na
guerra. Esta guerra gerou consequências negativas a todos os povos indígenas, pois, segundo
Souza, após o seu término, o processo de ocupação das terras do Estado de Mato Grosso se
acirrou, e os indígenas da região perderam grande parte de suas terras, inclusive os Kinikinau
que ficaram totalmente desprovidos destas, dependendo de outras etnias para se alojar e criar
seus filhos.
Souza explica como os Kinikinau se tornaram desaldeados, ficaram diluídos entre os
outros povos e passaram a ser considerados como pertencentes a outras etnias e após algum
tempo foram considerados como etnia extinta, e segundo a autora até recentemente o nome
Kinikinau não estava presente em pesquisas e publicações oficiais. Dando continuidade no
14 Assemelha-se ao Pantanal brasileiro. 15
As quais não são esclarecidas por estes autores.
22
tópico 1.8 - Os Kinikinau hoje - a continuação da história, a autora aborda a formação da
Aldeia São João, onde segundo as entrevistas realizadas com os indivíduos mais idosos da
aldeia, obteve a informação que a mesma surgiu por volta dos anos de 195016
com a presença
de algumas famílias e após alguns anos já somavam 12. Segundo os relatos os moradores,
antes de se alojarem na área da aldeia vagavam pelas aldeias de outras etnias ou trabalhavam
de forma quase que escrava em algumas fazendas da região, após um encontro com o cacique
Kadwéu foram convidados para habitarem uma das fronteiras e realizarem o cuido desta,
evitando a invasão de não índios.
Finalizando o histórico, Souza descreve toda a estrutura encontrada na aldeia como a
escola de alvenaria, o posto de saúde que não possui atendimento, etc. outro aspecto
destacado é o contato com os demais grupos indígenas que habitam a aldeia17
, além do
contato com o “homem branco” por parte de muitos indivíduos que trabalham em fazendas da
região, em decorrência dessa convivência acabam “absorvendo” traços culturais que não
pertenciam a sua etnia. O último e mais importante fator constatado pela autora em sua
pesquisa é a problemática da convivência entre os Kinikinau e os Kadwéu. Os Kadwéu
sempre cometendo atos que poderiam ser considerados como provocadores o qual gerariam
um motivo real de expulsão dos Kinikinau de suas terras e os Kinikinau adotaram como lei
geral, ignorar todas as atitudes e provocações feitas pelos Kadwéu, tendo esta passividade
como forma de manutenção do único território ao qual tem direito em sua atual conjuntura.
Publicado no ano de 2010, pelo professor indígena (Kinikinau) Genilson Roberto
Flores com o título: A história e trajetória do povo Kinikinau. Xeti koinukunoen yoko
yonoku, elaborado como trabalho de conclusão de curso do Curso Normal Médio Indígena
Povos do Pantanal, onde cada cursista deveria escrever um histórico sobre sua etnia. Flores
(2010) inicia seu trabalho fazendo uma pequena caracterização sobre a sua etnia, não
incluindo muitos dados, em seguida passa a abordar a atuação dos Kinikinau na Guerra do
Paraguai e as perdas humanas que a etnia sofreu em decorrência da guerra.
16 Ocorre a presença de divergência sobre esta informação, pois os demais trabalhos pesquisados apresentam o
surgimento da aldeia São João como ocorrido por volta do ano de 1940. 17 “A população da Aldeia São João é de 248 habitantes, sendo 127 kinikinau, 23 te rena, 1 guarani, 87 kadiwéu
e 10 não índios.” (SOUZA, 2008, p. 35).
23
Flores explica que a partir da Lei de Terras18
que ocorreu as primeiras invasões do
território tradicional e a partir de então que sua etnia ficou desaldeada. Apresenta também, o
processo de busca dos Kinikinau por um território onde pudessem morar e plantar e a
expulsão que sofreram de territórios onde tinham se instalado19
, retratando o contato com os
Kadwéu. Em seguida retrata a chegada de sua etnia na Aldeia São João20
e dá prosseguimento
tratando da situação que se encontram hoje.
Segundo Flores é difícil dizer quantos Kinikinau existem realmente, já que estão
espalhados em várias aldeias e até mesmo em cidades, outro aspecto é que muitos se
identificam como pertencentes a outras etnias. Flores pontua que nos 70 anos que o seu povo
reside na aldeia São João estes tiveram uma “vida boa”. Porém, nos últimos anos começou a
surgir atritos entre os Kinikinau e os Kadwéu pelos mais diversos motivos. E como relatado
anteriormente eles sofrem quietos com a provocações dos Kadwéu, pois se consideram sem
forças para lutar contra os Kadwéu, já que estão de favor em suas terras, como coloca o autor,
“Livre de tudo, mas sem a terra o povo não consegue sentir o que almeja.” (FLORES, 2010),
dessa forma ficando sem os direitos constitucionais que possuem. Para finalizar seu trabalho,
revela que os sua etnia almeja um dia ter direito novamente sobre o seu território tradicional,
para que possam dar continuidade em sua vida e sua cultura.
A mais recente publicação a qual tivemos acesso foi o trabalho da professora Iara
Quelho de Castro, que compreende a sua tese de doutorado pela Universidade Estadual de
Campinas, publicado no ano de 2011, tendo por Título De Chané-Guaná a Kinikinau: da
construção da etnia ao embate entre o desaparecimento e a persistência. Neste, a autora faz
um estudo sociopolítico da relação que a etnia mantinha com a sociedade envolvente, bem
como manteve-se a formação sociocultural através do tempo.
Para tal estudo, a autora fez um levantamento histórico em documentos do século XVI
até a contemporaneidade e contrapôs com os relatos e entrevistas realizadas na Aldeia São
João. Segundo a autora, os Kinikinau só não foram extintos por se submeterem aos grupos
18 “A partir da criação dessa lei, a terra só poderia ser adquirida através da compra, não sendo permitidas novas
concessões de sesmaria, tampouco a ocupação por posse, com exceção das terras localizadas a dez léguas do
limite do território. Seria permitida a venda de todas as terras devolutas. Eram consideradas terras devolutas
todas aquelas que não estavam sob os cuidados do poder público em todas as suas instâncias (nacional,
provincial ou municipal) e aquelas que não pertenciam a nenhum particular, sejam estas concedidas por
sesmarias ou ocupadas por posse.” (CAVALCANTE, 2005) 19 Como é o caso da expulsão do grupo Kinikinau por “colonos” de uma terra de voluta, conhecida como
Corvelo, onde os Kinikinau habitaram por algum tempo. 20
Como já foi apresentado anteriormente na análise da Tese de Souza (2008).
24
dominantes, adquirindo destes, boa parte de sua cultura e costumes, pois, não se encontra
relatos sobre sua cultura (xamanismo, rituais, etc.) em documentos dos séculos XVI, XVII,
XVIII, XIX e XX, nem em relatos e depoimentos colhidos em entrevistas feitas durante a
realização de seu trabalho. A única forma, de manterem a sua etnia é o sentimento de
pertencimento que possuem a ela, pois, em nenhum momento é possível ser construída um
histórico preciso desta.
Outro fato que a autora destaca, que durante a análise de documentos históricos
verificou-se que os Kinikinau estavam instalados ou aldeados perto das demais tribos
indígenas com quem sempre mantiveram relação. Inicialmente no Chaco com os subgrupos
Guaná e com os Guaicuru o que se estendeu até a migração para o Brasil e se mantem até a
contemporaneidade, pois estão presentes em aldeias de variadas etnias.
Durante todo o primeiro capítulo, a autora relata como foi à descrição que os
documentos históricos fazem da nação Guaná e qual a relação que tiveram com as demais
etnias, com os exploradores e com os colonizadores, onde, sempre foi passada a imagem dócil
e gentil dessa nação. Em seu texto, Castro concorda com o posicionamento de Souza (2008),
onde afirma que existe certa tensão entre os Kinikinau residentes na aldeia São João e a etnia
Kadwéu. Segundo a análise da autora sobre a chegada dos Kinikinau na região de
Albuquerque, eles teriam chegado a região como refugiados que buscavam escapar da
dominação Guaicuru e assim procurava também estabelecer novas relações comerciais e de
proteção por parte deste para a Coroa Portuguesa, que estava instalada na região, em fortes
que protegiam a fronteira.
De acordo com a autora no momento em que os Kinikinau e os demais subgrupos
Guaná chegaram à região de Miranda o Estado luso-brasileiro estava se articulando para a
instalação de pessoas nesta região, bem como garantir a proteção da fronteira recém-
conquistada. Desta forma, precisavam de alimentos e as novas etnias que estavam migrando
eram a maneira mais simples de garantir produção e comercialização de alimentos, já que
estes por natureza eram grandes produtores de grãos. A relação entre os luso-brasileiros e os
Kinikinau, junto com os demais subgrupos foi resultado de interesses que divergiam em si e
que ao mesmo tempo beneficiavam a todos, pois para os indígenas a aliança com os
portugueses significava proteção e moradia e para os portugueses a aliança representava mão
de obra barata e fonte de alimento.
25
A autora destaca ainda, como era a vida dos Kinikinau dentro do povoamento europeu
e das missões jesuíticas. Descreve também a importância dentro do cenário que era vigente na
época, e tinham consciência de sua importância e de seus direitos enquanto cidadãos daquela
comunidade, e respondiam aos abusos que a população “branca” cometia contra eles.
Ela aborda também a questão da guerra contra o Paraguai, em que os Kinikinau
participaram de forma ativa principalmente na proteção e alimentação dos refugiados do lado
brasileiro, e como foi triste perderem suas terras tradicionais após o fim da guerra, o que
gerou todo o processo de migração que ameaça até hoje este povo. Segundo registros
levantados pela pesquisadora o Kinikinau de Albuquerque teriam sido levados para o
Paraguai onde teriam sido mortos, pois, nesta região foram extintos, e os poucos
remanescentes ficaram dissolvido entre a população local. Tratando da perca de territórios
tradicionais ela acrescenta novos dados que possibilitam a localização do território Kinikinau:
As fontes permitem considerar que os primeiros vinte anos do século XX
foram cruciais para a sobrevivência dos Kinikinau. Cardoso de Oliveira (1976b) indica que “ate 1908 tinham uma aldeia junto ao rio Agaxi e em
1925 não havia lá mais do que 15 indivíduos, destribalizados, e de mudança
para Lalima” (p. 64). Confrontando essa informação com os dados do Relatório da Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios de Mato Grosso,
de 1920, que apontam para a existência de 400 Kinikinau em Agaxi, tem-se
um período de aproximadamente cinco anos considerados de abandono
progressivo da aldeia e de continua dispersão. (CASTRO, 2011, p. 259)
A aldeia citada acima é considerada o Território tradicional, ao partir do qual passaram
a ser considerados como desaldeados e a partir de então considerados como extintos até o seu
ressurgimento. Destas 400 pessoas, a grande maioria dispersou-se por dentre as fazendas,
aldeias e cidades da região e um pequeno grupo migrou para a região da cidade de Bonito,
fundando por volta de 1940 à aldeia São João, e são estes hoje que vem requerendo o direito
sobre suas terras tradicionais junto aos órgãos governamentais competentes. Atualmente
segunda a autora, dentro da aldeia São João existem cerca de 150 Kinikinau, que convivem
com brancos, Kadwéu, Terena.
Percebemos ao término desta análise inicial, que apesar de discordarem em alguns
pontos, todos os autores analisados retratam de forma semelhante, o processo de expulsão que
os indígenas Kinikinau sofreram em relação ao seu território tradicional, além de ressaltarem
que os Kinikinau sempre foram pacíficos, sofrendo com a imposição das vontades dos demais
povos aos quais foram subjugados historicamente. Perante todo o histórico retratado até aqui,
26
iremos analisar nos próximos dois capítulos, como se deu a sobrevivência deste povo
enquanto etnia Kinikinau e como a Identidade serviu como Máquina de Guerra para a
manutenção Territorial.
27
Capítulo II - Pressupostos Teóricos
O território possui importância para a formação de qualquer sociedade ou grupo
social, dentro desta perspectiva, o território é considerado por ciências assim como a
geografia e a antropologia uma das principais categorias analíticas de uma sociedade. Partindo
dessa premissa optamos por analisar o território e a territorialidade da etnia Kinikinau como
forma de compreender a dinâmica social do grupo dentro dos aspectos sociais, culturais e
territoriais no Estado de Mato Grosso do Sul, pois como afirma Haesbaert (2004, p. 60), “O
território reúne informações local e externamente definidas, vinculadas a um conteúdo técnico
e a um conteúdo político [...]”. Ao avançarmos em nossas pesquisas percebemos que no caso
Kinikinau a análise não poderá ser feita diretamente sobre o território já que não possuem um
território próprio. Para tal abordagem territorial, iniciaremos a partir da análise da Identidade
e como esta serviu como Máquina de Guerra para a manutenção do território ainda que
flutuante.
Para Haesbaert (2004) o território possui várias noções diferentes, ele sintetiza todas
em três, seriam elas, política: onde estão relacionadas à questão de delimitação física e as
relações de controle e poder; Cultural: são as relações simbólicas, que são construídas através
da relação do individuo com o território, e a visão Econômica: onde se especializam as
relações de trabalho e fonte de recursos, o que acaba por gerar as mais diferentes
territorialidades sociais. Já Milton Santos não concebe o território como um conceito: “Ele só
se torna um conceito utilizável para análise social quando o consideramos a partir do seu uso,
a partir do momento em que o pensamos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam”
(2000, p. 22). O que afirma nossa concepção de que precisamos entender como a identidade
atua para a manutenção do território, compreendendo a atuação da etnia sobre o mesmo.
Pois, como pontua Santos, “O importante é saber que a sociedade exerce
permanentemente um diálogo com o território usado, e que esse diálogo inclui as coisas
naturais e artificiais, a herança social e a sociedade em seu movimento atual” (Ibid., p. 26).
Ou seja, a relação da identidade com o território é historicamente construída e alterada no dia
a dia, variando conforme as relações ou fatos sociais acontecem, principalmente no caso
Kinikinau que estão à mercê dos demais grupos, aos quais se veem obrigados a serem
28
submissos acatando suas decisões, para que possam se utilizar de seu território como forma de
moradia21
.
Haesbaert cita Bonnemaison e Cambrèzy, para relatar como é a relação de
pertencimento entre os indivíduos e os territórios:
Pertencemos a um território, não o possuímos, guardamo-lo, habitamo-lo, impregnamo-nos dele. Além disto, os viventes não são os únicos a ocupar o
território, a presença dos mortos marca-o mais do que nunca com o signo do
sagrado. Enfim, o território não diz respeito apena à função ou ao ter, mas ao
ser. Esquecer este princípio espiritual e não material é se sujeitar a não compreender a violência trágica de muitas lutas e conflitos que afetam o
mundo de hoje: perder seu território é desaparecer. (1996, p. 13-14 apud
HAESBAERT, 2004, p. 73).
Portanto, a nossa relação com o território acontece a partir da visão de pertencimento e
de posse deste, incluindo todos os aspectos históricos (“mortos/o sagrado”)22
, que aquela
parcela física gera em cada um, causando uma identidade única que explica toda a formação
sociocultural de um povo. Por possuírem um forte pertencimento étnico e conservarem sua
identidade (“princípio espiritual”), mesmo sofrendo com processos de expulsão e de
transculturação23
, os Kinikinau não desapareceram. Seguindo o principio explicado por
Haesbaert de que, “A força desta carga simbólica é tamanha que o território é visto como “um
construtor de identidades, talvez o mais eficaz de todos.”” (Ibid., p. 73).
O território, no caso Kinikinau se faz presente através do chamado Território
Flutuante, que segundo Maffesoli é, “[...] um território que não predispõe as coisas
estabelecidas com seu cortejo de certezas e de hábitos [...]” (2001, p. 181). Neste sentido, por
mais que os Kinikinau não possuam um território físico eles construíram um território que
identificamos como flutuante, pois através de seus hábitos e cultura próprios, todos os espaços
ocupados pelos Kinikinau, seja no Chaco Paraguaio, seja em Agaxi ou dentro do território
Kadwéu ou Terena, são territórios Kinikinau. Demonstrando que para ser um território não há
necessidade de prender-se à ocupação do espaço físico somente, mas sim de como o território
é utilizado culturalmente por um povo.
21 Como revelado anteriormente (capítulo 1) na aldeia São João, cujas terras pertencem à etnia Kadwéu. 22 A simbologia que o território terá em relação aos antepassados da etnia que estão presentes neste ou que os liga a este território. 23 Onde a etnia vive em convívio direto com outras culturas, porém mantem sua cultura “tradicional”. Ou seja,
ela vive em um processo de movimento contínuo, variando entre a cultura dominante e a cultura dominada.
29
Para simplificar o entendimento do território flutuante faremos uma analogia
comparando este a um jogo de futebol, pois em um jogo de futebol cada time possui o mando
de uma metade do campo, porém, podendo tanto atacar como se defender em todo o campo24
,
dependendo da situação a qual se encontra no momento em questão. Desta forma, se formos
analisar o território flutuante dentro de um jogo, todas as vezes que os jogadores de um time
vão para o ataque ou defesa ambos os times estão sofrendo uma
desterritorialização/territorializante25
. Nesta situação, o território flutuante surge como a
identificação que terão com o seu time e como estes agiram para defendê-los; Através das
atitudes que tomarão em conjunto para o bem estar do grupo.
Criando situações aonde por meio de uma única jogada, poderão desestruturar
totalmente o ataque “inimigo”. Sendo assim, o território flutuante será o responsável pela
atuação que eles terão em campo, pois dependendo de sua movimentação e de seu
reconhecimento dentro de um ideológico em questão26
possuirão uma relação própria do
grupo, que independerá da sua posição no território em que estarão presentes27
e que garantirá
o sucesso de sua atuação no jogo, demonstrando assim, que o território físico será
insignificante para a atuação destes, e o que é mais importante é a ligação que possuem em
comum e como agem em conjunto, resumindo desta forma o seu território flutuante na
atuação que terão enquanto grupo.
Os Kinikinau conseguiram manter o seu território flutuante, através da construção e
manutenção de sua identidade enquanto Kinikinau, pois como colocado por Hall a identidade
é definida como algo que preenche o espaço entre o interior e o exterior entre o indivíduo e o
mundo, porque:
[...] projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo
tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte
de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então,
costura [...] o sujeito à estrutura. (HALL, 2003, p. 13)
Este conceito nos ajuda a compreender a identidade Kinikinau que traz dentro de si
valores culturais próprios que, entretanto, dialogam com a multiplicidade de outras
24 No “seu” ou no campo do “Inimigo”. 25 Pois segundo Haesbaert (Ibid., p. 260), do mesmo modo como perdem um território (desterritorialização), de
alguma forma acabam por encontrar um novo território (territorialização). 26 No caso corresponde a um mesmo time de futebol. 27 Neste caso o campo de futebol.
30
identidades, adquirindo outros valores, sem, contudo perder a sua originalidade, aquilo que os
distingue de outras identidades. Hall ainda pontua:
Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no
momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em
processo”, sempre “sendo formada”. (Ibid. p. 38).
No caso Kinikinau, a identidade é reforçada pelo alto nível de pertencimento que a
população possui, pois, após serem considerados extintos ou dissolvido entre as demais
etnias, a identidade tida como “original” poderia ter sido completamente suprimida em favor
das demais, com as quais tiveram acesso. Dessa forma, continuam mantendo a sua identidade
através da memória que possuem do passado, em um processo parecido com o que foi
descrito por Hall:
Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas
tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a
negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas
carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias.
(Ibid., p. 88).
Sendo assim, procuram manter sua identidade como forma de lutar por seus direitos e
buscar a “reconquista” de seu território tradicional. Devido esta perspectiva, que decidimos
utilizar a identidade Kinikinau como exemplo de Máquina de Guerra para a conquista e
manutenção territorial.
A Máquina de Guerra como proposto por Deleuze e Guattari é,
[...] a invenção dos nômades (por ser exterior ao aparelho de Estado e
distinta da instituição). A esse título, a máquina de guerra nômade tem três aspectos: um aspecto espacial-geográfico, um aspecto aritmético ou
algébrico, um aspecto afectivo. (1997, p. 50).
Ou seja, a máquina de guerra compreende todo um complexo ligado as mais diversas
áreas sociais, que condicionam o desenvolvimento de setores dos aparelhos do Estado que se
relacionam diretamente com o poderio bélico ou militar da sociedade, ou ainda, a aspectos
que alguns povos venham a utilizar como forma de resistência a fatores impostos pelo Estado
31
ou Sociedade e que para eles são degradantes. Como afirma Virilio e Lotringer “A máquina-
de-guerra não são só explosivos, também é comunicação, vetorização. É, essencialmente, a
velocidade de expedição” (1984, p. 28). Os Kinikinau utilizaram-se de sua Identidade como
máquina de guerra, pois através desta puderam manter-se dentro das demais etnias sem perder
o seu status de Kinikinau e resistiram à perda total de sua identidade frente a estas etnias e as
atitudes do próprio Estado, no momento em que obrigava a estes serem registrados como de
outras etnias. Deleuze e Guattari continuam,
Mas a forma de exterioridade da máquina de guerra faz com que esta só
exista nas suas próprias metamorfoses; ela existe tanto numa inovação
industrial como uma invenção etnológica, num circuito comercial, numa
criação religiosa, em todos esses fluxos e correntes que não se deixam apropriar pelos Estados senão secundariamente. Não é em termos de
independência, mas de coexistência [...]. (Ibid., p. 24).
A máquina de guerra Kinikinau, corresponde às necessidades e os artifícios que a etnia
possui para realizar um enfrentamento contra os aparelhos do Estado. No caso em questão, a
identidade que se diferencia de todos os demais grupos indígenas existentes no país, e como já
citamos foi eficiente para a manutenção desta, em todos os momentos em que coexistiram nos
mais diferentes grupos sociais aos quais foram obrigados a se submeterem historicamente.
Como é afirmado por Deleuze e Guattari, “[...] a máquina de guerra é como a
consequência necessária da organização nômade [...]” (Ibid., p. 66). Ou seja, os Kinikinau
foram obrigados a manter uma máquina de guerra ativa, pois não teriam chances de se
manterem enquanto etnia viva, sem esta. Por isso, a máquina de guerra Kinikinau não é uma
forma de luta propriamente dita contra o Estado, mas sim, uma forma de resistência que
possuem aos aspectos degradantes, que o mesmo possa cometer em relação à manutenção de
sua existência e autonomia enquanto uma etnia.
Todas as características usadas para o fortalecimento da identidade e o seu posterior
uso como máquina de guerra, vem da memória coletiva que os indivíduos pertencentes a etnia
possuem. Pois, como Halbwachs diz, “Uma memória só existe quando é adquirida por um
grupo/sociedade e que este grupo viva essa memória passando, para os demais esta memória
conservada por eles.” (2004, p. 94). Este fato é realidade dentro da perspectiva Kinikinau,
pois todo o histórico/história apresentado na fala dos indivíduos da etnia se assemelham,
demonstrando uma memória única entre todo o grupo.
32
A memória, também está sendo passada as futuras gerações, em um processo descrito
por Halbwachs, “Os fatos passados são nos passados graças a memórias de nossos
antepassados que contam estas e forma em nós memórias adquiridas neles sobre memória em
que não vivemos.” (2004, p. 110). É o que constrói o pertencimento das seguidas gerações
Kinikinau a sua Identidade, que tem influenciado aos jovens que não participaram desta
memória, lutar agora pelos direitos negados historicamente pelo Estado a sua etnia. Os poucos
idosos da etnia, representam a memória viva para embasar e orientar a luta pela sobrevivência
e conquista de direitos que os jovens vem travando nas últimas décadas, primeiro para o
reconhecimento dos Kinikinau como uma etnia viva e em seguida, conquistar o direito a seu
território tradicional. Num processo descrito por Halbwachs:
Por mais que as memórias sejam coletivas de uma certa forma ela é
particular ao individuo, pois a forma como ele viu esta é particular a ele (ou
seja, ninguém viu igual a ele), porém esta memória particular só vai possuir sentido quando compartilhada em grupo, ou seja, quando houver a junção de
(um monte) todas as memórias individuais em uma única memória comum a
todos os membros do grupo (sociedade). (2004, p. 44).
A junção da memória dos fatos/acontecimentos históricos aos quais os mais velhos
presenciaram, serão a memória coletiva de todo o grupo Kinikinau, o que pode ser percebido
na fala de todos os indivíduos, a memória é passada as novas gerações através da história oral.
A história oral age como forma viva de passar a memória coletiva dos antigos para as
novas gerações pois:
a história oral seria inovadora primeiramente para seus objetos, pois dá atenção especial aos “dominados”, aos silenciosos e aos excluídos da história
[...], a história do cotidiano e da vida privada [...] a história do local
enraizada. (AMADO e FERREIRA, 2005, p. 4)
No caso em questão, a história oral serve de fonte de conhecimento sobre toda a
história que os indivíduos Kinikinau sabem sobre seus antepassados, sobre sua origem, sua
trajetória e todo o deslocamento que e passaram até chegarem ao momento atual e ao
território em que estão habitando hoje.
Do ponto cientifico, a história oral serve para contribuir com informações sobre todo
esse processo descrito acima, já que documentalmente não existem muitas informações
diretas sobre este povo, pois, a documentação oficial, primeiramente descreve os Kinikinau
33
em conjunto com as demais etnias da nação Guaná, ou seja, como uma só, a própria nação
Guaná, já que os historiadores e viajantes do século XVI, XVII e XVIII, não tinham a
preocupação de diferenciá-los por considerar que eram um único grupo. Após séculos, não
foram encontrados documentos que registrem a etnia, devido à mesma ser considerada, como
uma etnia extinta pelos órgão oficiais do governo (Fundação Nacional do Índio – FUNAI).
Portanto, argumentamos que a história oral serve como forma de complementar, afirmar ou
até mesmo completar as informações descritas em documentos e dados oficiais que forem
levantados em nosso trabalho.
A história oral, portanto, serve para verificarmos qual o entendimento e a compreensão
que os indivíduos de tal etnia tem sobre a importância de sua identidade enquanto Kinikinau,
qual o seu histórico ou qual o histórico de seu povo e como este veem a questão territorial, a
qual estão sujeitos dentro do contexto atual. Pois, como afirma Amado e Ferreira: “As
tradições indígenas tornam o lugar fundamental para a compreensão do passado, e mapeiam
os eventos ao longe de montanhas, trilhas e rios que ligam territórios” (2005, p.162). O que
compreende a sua cosmografia28
, através da qual poderemos verificar e entender a visão de
identidade que possuem, identidade que recai sobre o seu processo de desterritorialização e
territorialidade, dentro de todo o processo histórico.
Segundo Haesbaert:
O mito da desterritorialização é o mito de que imaginam que o homem pode
viver sem território, que a sociedade pode existir sem territorialidade, como
se o movimento de destruição de territórios não fosse sempre, de algum modo, sua reconstrução em novas bases. (2004, p. 16).
Portanto, embasado nas reflexões de Haesbaert, concluímos que os Kinikinau em toda
a sua trajetória desde a sua partida do Chaco até a sua atual habitação em terras Kadwéu
passaram por várias fases de desterritorialização/territorializante, onde perdiam seu território
que, por mais importante que fosse para eles, acabavam por encontrar um novo que permitia
uma nova territorialização e reconstrução de todo o seu status sociocultural, pois, o seu
território flutuante permite esta dinâmica. Mas afinal o que é territorialização?
Segundo Haesbaert territorialização ou territorialidade é
28 Segundo Paul Little: “A cosmografia de um grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que
mantém com seu território específico, história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que
dá ao território e as formas de defesa dele.” (2002, p. 04).
34
[...] criar mediações espaciais que nos proporcionem efetivo “poder” sobre nossa reprodução enquanto grupos sociais (para alguns também enquanto
indivíduos), poder este que é sempre multiescalar e multidimensional,
material e imaterial, de “dominação” e “apropriação” ao mesmo tempo.
(Ibid., p. 97).
Portanto, territorialização é todo processo de habitação pela qual passamos e a
forma como podemos agir sobre o “novo” território em que vamos habitar. Os Kinikinau
atuam desta forma sobre a terra que os Kadwéu cederam a eles. A partir do momento em que
passaram a ocupar a área em questão, esta passou a ser utilizada de todas as formas, mesmo
com as necessidades aparentes, tornando-se a base física para que possam se reproduzir
enquanto grupo social e garantir sua existência enquanto etnia.
35
Capítulo III - Território Kinikinau
O território Kinikinau vem se alterando ao longo do tempo, prova disso, são os
documentos e estudos existentes sobre todo o processo de migração, territorialização e
desterritorialização, que passaram desde o século XVI com os primeiros registros destes, no
Chaco Paraguaio e sua migração para o Oeste do Brasil.Até o século XXI com a luta do grupo
por reconhecimento, enquanto etnia em processo de reorganização sociocultural e todo o
trabalho que os mesmos vem promovendo com os mais jovens, para que no futuro possam
garantir o direito sobre o seu território tradicional, fato que vem ocorrendo com outras etnias,
aos quais possuem historicamente uma relação bem próxima e que agora usam como exemplo
de luta que é o caso dos Terena e dos Kadwéu.
Para termos uma maior referência do território ocupado historicamente pela etnia,
desenvolveremos uma análise de registros cartográficos29
, que procedem do século XVI até a
sua localização na atualidade, dentro da reserva Kadwéu na já citada Aldeia São João, no
município de Porto Murtinho.
Segundo os autores, já citados no primeiro capitulo deste trabalho30
, habitavam
inicialmente, a região do Chaco paraguaio31
, isso no século XVI, onde os primeiros
exploradores espanhóis realizaram contato e os primeiros relatos da tribo foram construídos,
porém, neste período as subtribos Chané-Guaná não eram diferenciadas, não existindo dados
que evidenciem a localização exata do grupo Kinikinau dentro dos documentos citados. No
primeiro registro cartográfico representado na imagem 01, poderemos localizar apenas o
registro da nação Chané-Guaná, dividido em três grupos que residiam perto dos grupos
Guarani (Chiriguano)32
, Mbayá33
, Tapieté34
. Os Kinikinau eram tradicionalmente ligados aos
Mbayá por uma forma de “vassalagem”35
, já que estes eram habilidosos no trato com a terra e
29 Todos os registros cartográficos utilizados neste capítulo, foram retirados do trabalho de Doutorado de Iara
Quelho de Castro, em sua tese de doutorado. CASTRO, I. Q. de. De Chané-Guaná a Kinikinau: da construção
da etnia ao embate ente o desaparecimento e a persistência. (Tese de Doutorado). Unicamp. Campinas. São
Paulo. 2011. 243 p. 30 Ladeira (2001), Silva (2001), Silva; Souza (2003), Azanha (2006), Souza (2008), Flores (2010), Castro (2011). 31 A localização exata dos Kinikinau durante o período do Chaco é de difícil definição, já que durante o período em que eles habitavam tal local não ocorria ainda a divisão do mesmo em Estados Nacionais, fato que vem
ocorrer só após os Kinikinau terem adentrado em terras pertencentes na atualidade ao Brasil. 32 Nome tradicional considerado pejorativo por esta etnia. 33 Grupo do qual descendem os Guaicuru e os Kadwéu. 34 Subtribo da nação Guarani. 35 Vassalagem: Sistema social e econômico que foi utilizado, principalmente na Idade Média onde
um indivíduo, denominado vassalo, oferecia ao senhor ou suserano, fidelidade e trabalho em troca de proteção e
36
tinham por principal atividade o plantio de grãos, fato confirmados nos trabalhos estudados no
1º Capítulo.
Portanto, neste período o território possuía uma ligação muito peculiar para o grupo,
pois, apesar de essencial a sua existência, em muitos relatos de viajantes da época, deixa-se
entender que os territórios utilizados pelo grupo Kinikinau, eram de outras etnias e que os
Kinikinau apesar de possuírem um território, que pudessem chamar de seu, preferiam utilizar-
se dos demais territórios como forma de trocar benefícios com tais grupos.
um lugar no sistema de produção. Esta é a relação apresentada entre os Kinikinau e as demais etnias neste
período.
37
Figura 01 – Povos indígenas no Gran Chaco, no final do século XVI.
FONTE: Susnik (1972) apud Castro (2011).
38
O próximo registro a ser analisado é referente ao século XVIII, onde os Guaná ainda
se encontram dentro da Província do Paraguai, na divisa com a Província de Buenos Aires.
Dentro deste registro podemos observar que os Guaná estão diretamente relacionados com o
Território Guaicuru, reafirmando a ligação que existiam entre ambos e que se manteve
segundo autores já citados, até a migração para o território da antiga Província de Mato
Grosso.
39
Figura 02: Carta Histórico-Etnográfica do Gran Chaco, baseada nas informações dos padres jesuítas Lozano
(1733), Dobrizhoffer (1783), Jolis (1789) e do demarcador espanhol Azara.
FONTE: Kersten (1968) apud Castro (2011).
40
O próximo dado cartográfico corresponde à localização do grupo Guaná já em solo
brasileiro, mais precisamente, na província de Mato Grosso, ainda no século XVIII, na Missão
de Nossa Senhora da Misericórdia. Conforme apresentado por Silva (2001), havia uma maior
presença de Kinikinau, perfazendo um cerca de 800 indivíduos, sendo um dos principais
pontos de localização e concentração de Kinikinau neste período. Apresentavam uma
convivência aproximada com os demais grupos Guaná, principalmente, com os Terena, que
possuíam aldeias próximas. Além dos demais povos indígenas, havia também o convívio
direto com os “brancos”, que compravam os produtos, produzidos por estes.
41
Figura 03: Localização da Missão Nossa Senhora da Misericórdia em Albuquerque.
FONTE: Silva, 2001 apud Castro (2011).
42
Já no fim do século XVIII e início do XIX, os indígenas tinham se instalado
definitivamente em um território ao qual eles já possuíam o sentimento de pertencimento e
que fazia parte de sua identidade, os Kinikinau utilizavam o local para moradia, plantação e
produção de provimentos que garantissem seu sustento e manutenção de seus aspectos
socioculturais. Como demonstrado no registro cartográfico abaixo, os Kinikinau já estavam
consolidados, nas cercanias da cidade de Miranda. Após analisarmos os trabalhos já citados
em conjunto com tal representação cartográfica, podemos concluir que nesta, está
representada a localização do território, considerado pelo grupo como tradicional e que era
chamado de Agaxi. Segundo Castro (2011, p. 24), os Kinikinau habitaram este território até
192036
, quando foram expulsos por fazendeiros que ocupavam a região através do movimento
de recolonização provocado pelo término da Guerra do Paraguai, aonde segundo a autora, as
terras Kinikinau foram compradas por um latifundiário que pediu que os indígenas deixassem
o local.
36 Flores (2010)
43
Figura 04: Localização dos grupos indígenas no Mato Grosso.
FONTE: Sganzerla, 1992 apud Castro (2011).
44
Após andarem errantes, instalando-se em lugares onde seguidas vezes sofreram o
processo de expulsão. Segundo Flores (2010), chegaram no ano de 1940, a área que
corresponde a aldeia São João, que se localiza dentro do território Kadwéu, distante cerca de
60 Km da Cidade de Bonito, ou seja, a sua área está dentro do munícipio de Porto Murtinho,
como apresentado abaixo:
45
Figura 05: Porto Murtinho e sua Localização em mato Grosso do Sul.
FONTE: José Luiz de Souza/ UFU.
46
Dentro da reserva, encontramos várias aldeias como: a Aldeia São João, posicionada
mais ao sul de todas, nela há a presença de cerca de 500 pessoas, sendo, cerca de 200
Kinikinau e o restante das demais etnias existentes no Estado, além do “branco”, que dividem
o mesmo território. Dentro desta é mantida as mesmas atividades que os antepassados dos
Kinikinau realizavam ainda no Chaco, como a plantação de grão acrescida da criação de
algumas cabeças de gado, que servem para a produção de leite que as próprias famílias da
aldeia consomem. A fonte de renda que os moradores da mesma possuem é o trabalho
oferecido pelas fazendas vizinhas onde muitos trabalham de peão, ou ainda, alguns postos de
trabalho oferecidos na cidade de Bonito.
47
Figura 06: Localização das aldeias no Território Indígena Kadwéu.
FONTE: Jose Luiz de Souza/UFMG, 2004 apud Castro (2011).
48
Aplica-se a este processo, o conceito de territorialização descrito por Haesbaert (2004,
p. 97), quando o mesmo diz:
Territorializar-se, desta forma, significa criar mediações espaciais que nos proporcionem efetivo “poder” sobre nossa reprodução enquanto grupos
sociais [...]. O que seria fundamental “controlar” em termos espaciais para
construir nossos territórios no mundo Contemporâneo? Além de sua variação
histórica, precisamos considerar sua variação geográfica: obviamente territorializar-se para um grupo indígena da Amazônia não é o mesmo que
territorializar-se para os grandes executivos de uma empresa transnacional.
Cada um desdobra relações com ou por meio do espaço de formas as mais diversas. Para uns, o território é construído muito mais no sentido de uma
área-abrigo e fonte de recursos, a nível dominantemente local; para outros,
ele interessa enquanto articulador de conexões ou redes de caráter global.
Haesbaert demonstra que o território possui diferentes níveis de uso, desde o mais
simples como moradia até outros mais complexos como as redes ou conexões globais. Os
Kinikinau, portanto, utilizam como forma de reprodução e manutenção do seu grupo social.
Ao analisarmos todo o processo de migração pelo qual o grupo passou, concluímos que sua
identidade étnica não foi perdida e se mantem até as presentes gerações, sendo utilizada neste
processo, como máquina de guerra para a manutenção deste território, na medida em que
aglutina a população em torno de um ideal comum, que é a reprodução de seu modo de vida.
Os Kinikinau foram capazes de construir um território e uma identidade sócio-
territorial em todos os lugares em que habitaram, aplicando a todos os seus conhecimentos
tradicionais, demonstrando assim, que foram capazes de construir uma identidade territorial
nas mais diversas situações e adversidades enfrentadas historicamente e que se manteve
através das gerações. Fato que ocorre devido ao território flutuante, onde um grupo carrega
consigo toda uma carga histórica cultural, que garante um território onde possam desenvolver
todos os seus aspectos culturais, mesmo que não seja pertencente aos mesmos.
Durante as entrevistas realizadas com os Kinikinau, deixam claro que o seu território
tradicional era o Agaxi e que sua permanência em território Kadwéu era apenas para realizar a
proteção deste, plantando apenas para usufruto da aldeia. Outro fato destacado é a difícil
convivência com as novas gerações Kadwéu, que estão querendo retomar o território da aldeia
São João, provocando seguidos desentendimentos entre os dois grupos.
Confirmando os fatos citados no primeiro capítulo deste trabalho, eles ressaltam que
sua etnia “não é de briga”, ou seja, eles são pacíficos e não gostam de estabelecer intrigas e
disputas com as demais etnias, as quais historicamente possuem aliança. Os próprios índios
49
confirmam que está sendo estabelecido uma nova dispersão entre as famílias Kinikinau,
devido aos eminentes conflitos que estão se estabelecendo com os Kadwéu, procuram se
distanciar de tais ameaças ao buscar abrigo nas aldeias dos Terena, os quais consideram
como irmãos de sangue.
Outro fator notável na fala é a retomada do seu território tradicional em Agaxi, como
forma de manutenção de sua identidade que se encontra defasada devido às décadas de
convivência com as demais etnias. Identidade esta que pretendem manter para as futuras
gerações, com o intuito de aumentar o sentimento de pertencimento em relação a sua etnia.
Fato que foi de fundamental importância para o ressurgimento da etnia, durante a década de
1990 e que se mantem até a contemporaneidade. Em relação ao seu território tradicional
fizeram contato com os órgãos responsáveis, por realizar os estudos antropológicos e pela
demarcação das terras indígenas no âmbito nacional, demonstrando o seu interesse pela
reocupação da mesma, porém, a resposta que obtiveram da FUNAI é que, o processo de
levantamento de dados antropológicos de seu território e sua decorrente demarcação, só será
realizada após o término das demarcações dos territórios Terena e Guarani, que já se
encontram em andamento.
Podemos verificar, os anseios do Grupo Kinikinau em uma carta produzida no ano de
2003 em um encontro entre os Kinikinau na Cidade de Corumbá. Carta esta intitulada como:
Carta Kinikinawa, onde inicialmente pedem o reconhecimento de sua etnia, enquanto uma
etnia viva e dão prosseguimento dizendo que:
Desde 1940, mais ou menos, estamos vivendo na Aldeia São João. Mas fez quase um século que fomos expulsos da nossa terra tradicional que fica entre
a região entre Miranda e Aquidauana, que traz o nome de Wakaxu, que quer
dizer “capivara na Lagoa”.
Neste excerto, é confirmada pela própria etnia a sua localização e a localização de suas
terras tradicionais, de onde eles próprios afirmam que foram expulsos. A carta, ainda cita a
experiência de viver em um território que não é pertencente aos mesmos:
Como vivemos em terra alheia, sempre ameaçados por algumas famílias de
outra etnia, não queremos mais esta vida sem liberdade. Por isso pedimos a
volta para o nosso território de origem Kinikinau, onde possamos viver em liberdade, garantindo um futuro mais feliz para as nossas crianças, para que
não esqueçamos nossas tradições e que todos nos reconheçam e nos
respeitem como povo Kinikinau.
50
Deixam claro, que o território em que vivem, não é suficiente para a manutenção de
suas necessidades físicas, sociais e culturais, revelam ainda que não possuem liberdade para
realizar todas as suas vontades em relação a sua vida cotidiana, sendo coibidos pelas famílias
das demais etnias. Terminam a carta pedindo as autoridades à volta a seu território tradicional
como forma de garantir o futuro de seus descendentes e o consequente reconhecimento de sua
etnia, para que possam ter o respeito enquanto Kinikinau.
Para finalizarmos esta pesquisa, gostaríamos de dizer que compartilhamos da ideia de
Haesbaert quanto o mesmo diz que não existe indivíduo sem território pois,
Como entendemos que não há indivíduos ou grupo social sem território, quer
dizer, sem relação de dominação e/ou apropriação do espaço, seja ela de
caráter predominantemente material ou simbólico, o homem sendo também
um homo geographicus (Sack, 1996), ou seja, um “homem territorial”, cada momento da história e cada contexto geográfico revelam sua própria forma
de desterritorialização, quer dizer, sua própria relação de domínio e/ou
apropriação do espaço, privilegiando assim determinadas dimensões do poder. (Ibid. p. 340)
Dentro da perspectiva do autor, cabe ressaltar que os Kinikinau estão estabelecendo
um processo onde se torna cada vez mais necessário a utilização de um território físico, para
que continuem se reestruturando enquanto etnia e mantendo as futuras gerações envolvidas
neste processo, que se faz cada dia mais forte dentro de sua vivência e de sua ideologia.
Reforçando o seu sentimento de pertencimento a tal etnia, construindo uma identidade cada
vez mais fundamentada dentro de seu histórico, a qual serve como instrumento de luta e
conquista territorial que estão decididos a desenvolverem durante as próximas décadas.
51
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A etnia Kinikinau originária do Chaco passou por uma série de processos de
desterritorialização ao longo de sua história, desde antes de migrarem para o Brasil e após
virem para tal. Atualmente habitam principalmente, a Aldeia São João, no município de Porto
Murtinho, procura reaparecer no cenário indígena nacional e internacional, enquanto uma
etnia viva e que está em busca de seus direitos, os quais são garantidos por lei.
Durante décadas foram considerados como uma etnia extinta pelos Órgãos Federais
competentes por tais considerações, porém na década de 1990, voltaram novamente a lutar
pelos seus direitos e buscaram o reconhecimento das entidades sociais e de tais órgãos
governamentais, como uma etnia em processo de reorganização social e cultural.
Desde então, estes vem travando uma série de batalhas para que fosse reconhecida sua
origem, sua cultura, o número de indivíduos pertencentes à etnia e o direito de assumir tal
identidade, já que foram dissolvidos entre os Terena durante muitos anos. Sua mais recente
luta é pelo reconhecimento de seu território, ao qual eles atribuem toda a garantia de
manutenção e reprodução de seus direitos, cultura, pertencimento étnico e futuro das novas
gerações. Restam ainda muitos estágios para que tal luta seja conquistada, pois, alguns
processos de demarcação de terras em andamento no Estado de Mato Grosso do Sul, servem
de entrave para tal iniciativa desta população.
Perante tal perspectiva histórica que se mantem até a atualidade, buscamos
compreender como que a identidade auxiliou para a manutenção do território, mesmo que de
uma forma diferenciada como é o caso dos Kinikinau e seu território flutuante, que estes
mantem por décadas. O pertencimento étnico foi o principal responsável por tal persistência
em manter sua etnia, apesar de todas as políticas indígenas que foram instauradas pelo
Governo para a assimilação de tal grupo, dentro das demais etnias, onde estavam habitando
naquele período.
Durante os anos em que as autoridades recusavam sua origem, os Kinikinau aceitaram
tal atitude, sem se opor a serem registrados como Terena, mesmo sabendo que
verdadeiramente não pertenciam a tal ascendência. Porém, mantiveram vivas as suas
ideologias Kinikinau, se sujeitando a tal abordagem oficial, devido o número reduzido de
indivíduos em que se encontravam e por temerem perder o pequeno território a que possuíam.
Quando as novas lideranças Kadwéu assumiram, os Kinikinau começaram a ter uma série de
52
represálias dentro do seu principal território na atualidade. A Aldeia São João se localiza
dentro de terras Kadwéu e a qual vem sendo requerida novamente pelos seus detentores.
Desta forma, nasceu o interesse da busca do território tradicional, o qual possibilitará o
desenvolvimento da etnia de forma independente das outras.
O território é utilizado historicamente pelos Kinikinau como forma de reprodução e
manutenção do seu grupo social, pois, ao analisarmos todo o processo de migração que
passaram, concluímos que sua identidade étnica não foi perdida e se mantem até as presentes
gerações, sendo utilizada neste processo como máquina de guerra para a manutenção do
território, na medida em que aglutina a população em torno de um ideal comum, que é a
reprodução de seu modo de vida.
Também foram capazes de construir um território e uma identidade sócio territorial em
todos os lugares em que habitaram, aplicando os seus conhecimentos tradicionais, construindo
assim, uma identidade territorial nas mais diversas situações e adversidades enfrentadas. Este
é o exemplo de seu território flutuante, aonde o grupo carrega consigo a carga histórica
cultural de seu povo, garantindo um território em que desenvolveram seus aspectos culturais,
mesmo não tendo a posse deste.
Algo perceptível durante a realização deste trabalho é a necessidade que os mesmos
possuem pela retomada do seu território tradicional em Agaxi, pois, estão em um nível de
desenvolvimento social e étnico, onde se torna cada vez mais necessário a utilização de um
território físico próprio, para a continuidade da sua reestruturação étnica e cultural. Necessita-
se também manter as futuras gerações envolvidas neste processo de pertencimento, o qual é
uma realidade dentro destas, os jovens estão engajados na busca pelo território que pertenceu
aos seus antepassados e que consequentemente por direito pertence aos mesmos.
A luta pela identidade e território se faz cada dia mais presente no meio deste grupo,
que é reforçada pelas recentes conquistas que as etnias consideradas como irmãs tem
alcançado nas últimas décadas. Isto serve de estímulo e incentivo para que busquem os seus
objetivos dentro da nova conjuntura nacional que está sendo construída. Onde, após décadas e
décadas de descaso por parte do Governo, os indígenas estão começando a ter acesso as suas
necessidades básicas que já lhes eram de direito antes mesmo da chegada dos europeus em
terras sul-americanas e que lhes foram tirados a partir deste fato histórico.
Finalizamos esta análise, convencidos de que a identidade Kinikinau serviu e serve
como principal instrumento nesta luta pelo território tradicional e que ela sempre esteve a
53
frente deste povo, concretizando-se como máquina de guerra, para assegurar seus direitos.
Estamos convictos de que o movimento de luta pelo direito ao território está em seu início,
possuindo bases firmes para a sua concretização, pois, apesar de todos os percalços, o
sentimento de pertencimento deste povo em relação a sua etnia nunca morreu e hoje está mais
ativo do que nunca. Alterando desta forma a sua situação histórica, deixando de serem
indivíduos passivos nesta e aceitando as imposições dos demais, para finalmente se tornarem
ativos e assumirem a direção de seu futuro, buscando construir o mesmo, de maneira que
possam ter suas necessidades e objetivos conquistados, assegurando assim, as futuras
gerações as condições de desenvolvimento sócio territorial que foi negado às gerações
anteriores.
54
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59
Anexo B – Imagem da Plantação Kinikinau
Plantação Kinikinau Foto: Tulio F. de Araujo apud Castro (2011).
Plantação na Aldeia São João.
Foto: Tulio F. de Araujo apud Castro (2011).
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Anexo C – Cerâmica tradicional Kinikinau
Objetos decorativos
Fonte: Dieterich, J. E. G. Pesquisa de Campo, 2011.
Objetos decorativos
Fonte: Dieterich, J. E. G. Pesquisa de Campo, 2011.