Uma ruptura sempre adiada: Rancière e Althusser

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Um corte sempre adiado (Rupturas e continuidades entre Jacques Rancière e Louis Althusser) Juan Domingo Sánchez Estop ULB-Bruxelas Jacques Rancière é hoje justa e unanimemente reconhecido como um dos pensadores franceses mais originais e mais necessários para uma crítica radical da despolitização. Junto com outros autores que colocam a recuperação da política -que não coincide com a da “filosofia política”- no centro do seu trabalho teórico como Alain Badiou, Ernesto Laclau ou Slavoj Zizek, Rancière interveio nomeadamente na conjuntura dos 80 com a intenção de evitar que o fracasso aparente do socialismo representasse também o fim da política. Além disso, a sua obra abrange -seguindo sempre o fio condutor do “reparto do sensível” que ele aplica inicialmente à política- temáticas como a história e a memória operárias ou a dimensão social da estética. Conceitos que hoje estão em circulação no pensamento filosófico sobre a política como a distinção “política/polícia” ou a reivindicação da democracia como o regime político que reconhece que sempre existe uma “parte dos

Transcript of Uma ruptura sempre adiada: Rancière e Althusser

Um corte sempre adiado

(Rupturas e continuidades entre Jacques Rancière e Louis

Althusser)

Juan Domingo Sánchez Estop

ULB-Bruxelas

Jacques Rancière é hoje justa e unanimemente reconhecido como um

dos pensadores franceses mais originais e mais necessários para

uma crítica radical da despolitização. Junto com outros autores

que colocam a recuperação da política -que não coincide com a da

“filosofia política”- no centro do seu trabalho teórico como Alain

Badiou, Ernesto Laclau ou Slavoj Zizek, Rancière interveio

nomeadamente na conjuntura dos 80 com a intenção de evitar que o

fracasso aparente do socialismo representasse também o fim da

política. Além disso, a sua obra abrange -seguindo sempre o fio

condutor do “reparto do sensível” que ele aplica inicialmente à

política- temáticas como a história e a memória operárias ou a

dimensão social da estética. Conceitos que hoje estão em

circulação no pensamento filosófico sobre a política como a

distinção “política/polícia” ou a reivindicação da democracia como

o regime político que reconhece que sempre existe uma “parte dos

sem parte” procedem -mesmo se a popularidade que têm alcançado é

tão grande que a gente às vezes o esquece- da obra de Rancière. No

debate da esquerda, Rancière, junto com Slavoj Zizek e Ernesto

Laclau, é também um dos pensadores que têm introduzido desde muito

cedo os conceitos e os problemas da psicanálise lacaniana na

análise do político. O resultado é uma colocação original dos

problemas filosóficos, que não é fácil classificar numa corrente

ou escola. Existe porem, apesar das aparências, uma vinculação

originária e conflitual da obra rancieriana com o marxismo da

crise, nomeadamente com o althusserismo. Interessar-nos-emos aqui

prioritariamente pelos aspectos políticos da obra de Rancière e

pela sua relação com o velho mestre Louis Althusser.

I. Contexto(s) e primórdios

Num mundo ocidental onde até há muito pouco reinava o imaginário

neoliberal duma sociedade dominada pelas relações de mercado e

onde triunfava conjuntamente o liberalismo político, houve quem

julgou nos anos 90 que tinha chegado o “fim da história”1. O

totalitarismo ideológico brando do pensamento único veiculado pela

ideologia dos direitos humanos e pela economia neoliberal parecia

1 Fukuyama, Francis, O fim da história e o último homem. Tradução de Aulyde S. Rodrigues. Rio de

Janeiro: Rocco,1992

invencível. A despolitização no mundo “feliz” da gestão parecia

definitiva. 2O marxismo -que atravessava depois da queda dos

regimes socialistas da Europa de Leste a sua mais grave crise, que

alguém julgou terminal- não podia constituir na altura a posição

a partir da qual lançar um desafio às pretensões do regime

dominante. Só era possível tal desafio a partir dos significantes

que o regime reconhecia como próprios. O facto de Jacques Rancière

ter desenvolvido uma reflexão seria e profunda sobre o conceito de

democracia tirando este significante comum da banalidade permitiu

tacticamente à sua obra atacar a fortaleça do regime do interior

mesmo dele. Não era a partir duma completa desqualificação

socialista ou comunista do capitalismo ou da democracia liberal

que agiam os conceitos rancierianos, mas a partir do significante

fundamental “democracia”. É assim um mérito indiscutível de

Rancière ter procurado, junto à recuperação dum sentido “cheio” da

democracia, um restabelecimento da política entendida como

inseparável da democracia.

2 Cf. Jacques Rancière, Aux bords du politique, Folio-Gallimard, Paris, 2004, p. 9 Rancière descreve a situação nos termos seguintes : « Em todos os tons, mil discursos de universitários ou de homens de governo cantavam o fim último dasilusões da história ou da revolução. Quer acrescentavam a política à conta das antiguidades ultrapassadas, quer, pelo contrário, celebravam o seu retorno. Mas era sempre para dizer a mesma coisa : a política estava a partirde agora libertada de toda promessa de emancipação social, de todo horizonte de espera escatológica. A política era restituida à sus natureza de gestão prudente dos interesses duma comunidade. »

Com tudo, a originalidade de Rancière não exclui o facto do seu

pensamento ter-se desenvolvido num contexto histórico muito

particular: na conjuntura da crise do marxismo e mais precisamente

na elaboração desta crise em termos teóricos no seio da escola

althusseriana. Não há discípulo dissidente de Louis Althusser mais

marcado pelo mestre que Jacques Rancière, sobretudo enquanto Louis

Althusser pôs no centro do seu pensamento, já a partir dos anos

60, a crise do marxismo. O marxismo althusseriano é assim um

marxismo em crise e um marxismo da crise. Poderia-se mesmo

interpretar a obra de Rancière como um episódio dessa crise e, ao

mesmo tempo, como um longo comentário sobre uma ruptura com

Althusser e o althusserismo talvez nunca realmente concluida. Esta

não conclusão da ruptura é clara do lado de Althusser quem, apesar

das críticas às vezes ferozes recebidas, revela na sua

autobiografia que sempre admirou o aluno rebelde e que a

intervenção deste foi decisiva no rumo do seminário Ler o Capital ,

isto é num momento decisivo para a constituição do althusserismo

como escola: “Quando começou o ano escolar foi Rancière, quem para o nosso

grande alivio aceitou inaugurar o seminário. Falou três vezes duas horas com uma

precisão e um rigor extremos. Ainda hoje digo-me que sem ele nada teria sido possível. É

sabido como é que as coisas acontecem nestes casos. Quando o primeiro exponente fala e

o faz tão longa e minuciosamente, os outros aproveitam-se disto para o próprio trabalho.

E o que eu mesmo fiz, e reconheço sinceramente o que nesta ocasião eu devi a Rancière.

Depois de Rancière tudo era fácil, a via estava aberta e bem aberta, e aberta nas

categorias nas quais pensávamos na altura.”3.

É difícil um elogio mais entusiasta da parte dum professor para um

jovem aluno de 25 anos. Rancière é reconhecido em certo modo por

Althusser como “mestre do mestre”. Se há uma característica que os

alunos de Louis Althusser sempre reconheceram nele é a sua

concepção colectiva do estudo e da aprendizagem, a relativa

horizontalidade dos seminários que constituem o dispositivo clave

do seu ensino, a posta em comum de todo o material e Rancière

neste respeito foi mais um exemplo que uma excepção.

A intervenção no seminário Ler O Capital

A intervenção filosófica pública do Rancière começa com uma

comunicação bastante ortodoxamente althusseriana no seminário “Ler O

Capital” onde desenvolve uma reflexão sobre o conceito de “crítica”

no jovem Marx dos Manuscritos de '44 e no Marx do Capital. As análises

3 Althusser, Louis, L'avenir dure longtemps, suivi de Les Faits, Stock-IMEC, Paris, 1992 p. 200-201.

do jovem Rancière afastam-se muito pouco no texto da sua

intervenção no seminário das expressadas por Althusser em Pour Marx

e, de facto, como temos visto, suscitarão, ainda muitos anos mais

tarde os elogios do mestre. O aluno colocas-se assim na linha

althusseriana do anti-humanismo teórico e do corte entre o jovem

Marx e o Marx maduro.

Existe porem já uma pequena desviação de Rancière em relação como

a posição althusseriana. Tal vez, nesta altura, a diferença mais

visível entre a posição do mestre e a do aluno seja o facto deste

enfatizar mais que Althusser a temática lacaniana (ou milleriana)

da “causalidade metonímica”. Esta forma de causalidade é aplicada

na intervenção de Rancière, ao modo em que o Marx maduro pensa o

Tudo social e a relação da instância económica – determinante “em

última instância” segundo os termos de Engels- com as outras

esferas de determinação que constituem a superstrutura. A

causalidade metonímica opõe-se às formas dialécticas da

causalidade expressiva (ao modo hegeliano) que se encontram nos

textos de juventude nas quais os objectos económicos são pensados

como formas alienadas da essência humana, isto é expressões não

reconhecidas pelo sujeito da essência humana em quanto perdida nos

seus produtos . A causalidade “metonímica”4 é, pelo contrário,

aquela na qual, em termos de Rancière- “o que determina a conexão

dos efeitos (...) é a causa (…) em quanto é assente.” 5 Por

exemplo, a causa da suposta relação entre as mercadorias que

descreve Marx no capítulo do Capital sobre o fetichismo da

mercadoria, são as relações sociais de produção capitalistas, mas

estas são uma causa assente (ou metonímica) na medida em que nunca

são visíveis na esfera da troca mercantil que parece regida pelo

direito, isto é por uma relação entre objectos “suportados” pelos

seus proprietários . Há de facto uma causalidade baseada na

metonímia na relação entre mercadorias pelo facto das mercadorias

terem em comum a substância do valor (manifestada no preço), mas

esta substância comum é separada na esfera da troca das suas

condições efectivas de produção, isto é da produção de plus-valor

e da exploração capitalista. Althusser usa também o termo

“causalidade metonímica” na sua intervenção de Lire le Capital, mas

prefere-lhe o de “causalidade estrutural”.

A diferença não é apenas terminológica nem a escolha doutro termo

4 Althusser conta na sua autobiografia como a introdução por Rancière deste termo produz os ciúmes teóricos de Jacques-Alain Miller (o aluno e, ulteriormente o genro e o herdeiro de Jacques Lacan), quem se considerou roubado do seu invento conceptual. cf. Althusser, L'avenir, p.201

5 Jacques Rancière, Lire le Capital, Paris Maspéro, 1973, p.45

por parte de Althusser só faz respeito aos pretendidos direitos de

“invenção” invocados por Jacques-Alain Miller 6. Há no fundo do

debate terminológico uma diferença teórica que na altura era ainda

pouco perceptível mas que com o tempo e a evolução das

problemáticas de Althusser e Rancière vai-se fazer cada vez mais

profunda.

A causalidade metonímica no contexto originário -no interior da

problemática da psicanálise lacaniana- onde aparecem tanto o termo

como o problema (o artigo de Jacques-Alain Miller, La suture)- é

pensada como a ausência estruturalmente necessária do sujeito às

suas formas de representação, isto é à sua representação no

interior da cadeia significante. O sujeito, em tanto que é

determinado como efeito na cadeia significante, é também a causa

da relação entre significantes. Sostem assim Jacques-Alain Miller

neste importante artigo que: “Para que o recurso ao sujeito como

fundador da iteração não seja um recurso à psicologia, basta

substituir à tematização a representação do sujeito (como

significante), que exclui a consciência porque não se efectua para

6 « Quando Miller voltou em Junho de 1965 de Rambouillet, leu os roneotipos dasintervenções e descobriu que Rancière tinha-lhe “roubado” o seu conceito pessoal de “causalidade metonímica”. Rancière sofreu terrívelmente desta imputação. Os conceitos não são de todos?. Era o que eu julgava, mas Miller não o entendia assim.” L. Althusser, L'avenir, p. 201.

alguém, mas na cadeia, no campo da verdade, para o significante que

a precede.

Quando Lacan opõe à definição de signo como aquilo que representa

uma cousa para alguém, à do significante como o que representa o

sujeito para outro significante, afirma, no que diz respeito à

cadeia significante, que é ao nível dos seus efeitos e não da sua

causa que deve a consciência situar-se. A inserção do sujeito na

cadeia é representação, necessariamente correlativa duma exclusão

que é um sumiço”.7

Alem do facto de que ele mesmo fez ocasionalmente uso do termo

“causalidade metonímica”, Althusser era perfeitamente sabedor do

que estava em jogo: o problema do sujeito. Por isso afirma a

propósito deste termo o seguinte: “...não sei por que dialéctica

acabei eu mesmo, em lugar de Rancière, por ser acusado por Miller

de ter-lhe roubado o conceito de “causalidade metonímica”. […]

Encontrarão-se traças dele em Ler O Capital. Quando eu emprego esta

expressão (“causalidade metonímica”) digo numa nota que a tomei

emprestada a Miller...mas para logo a transformar em “causalidade

estrutural”, expressão que ninguém antes tinha utilizado e que é

7 Jacques-Alain Miller, La Suture: Éléments de la logique du signifiant (artigo), em Cahierspour l'analyse, Volume 1, Fevereiro de 1966.

bem minha!”8 Evidentemente Althusser não só evita o termo por

“respeito” às exigências de “autoria” do Miller, mas porque existe

um problema filosófico que o separa tanto de este como de

Rancière, nomeadamente o problema do sujeito. Com efeito, a

“causalidade” estrutural” althusseriana não terá a mesma definição

que a “causalidade metonímica”. Segundo Althusser na sua

exposição sobre O objecto do Capital no seminário, “A estrutura não é

uma essência exterior aos fenómenos económicos que vem modificar o

aspecto, as formas e as relações destes fenómenos, e que seria

eficaz sobre eles como causa assente, assente porque exterior a

eles. A ausência da causa na “causalidade metonímica” da

estrutura sobre os efeitos não é o resultado da exterioridade da

estrutura em relação aos fenómenos económicos; é ao contrário a

forma mesma da interioridade da estrutura como estrutura nos seus

efeitos. […] isto implica que a estrutura seja imanente aos seus

efeitos, causa imanente aos seus efeitos no sentido spinozista do

termo, que toda a existência da estrutura consiste nos seus

efeitos, em resumo, que a estrutura, que não é senão uma

combinação dos seus próprios elementos, não é nada fora deles”.9

A dimensão teórica e não apenas anedótica do problema é assim

8 L. Althusser, L'avenir, ibid.9 Althusser, Louis,. Lire le Capital., II, Maspéro, Paris, 1980, p. 65 (o

sublinhado é nosso)

evidente. Na posição de Rancière, já desde os primórdios da sua

obra, é clara a necessidade de pensar na causa metonímica ausente

uma forma de transcendência desta em relação aos seus efeitos. Mas

a aceitação da transcendência da causa implica uma hierarquia no

ser na qual existe por um lado o que é plenamente e, por outro, o

que é um ser menor e dependente. Tal é, por exemplo o caso -

modélico- da ontologia aristotélica. A ontologia spinozista da

imanência que Althusser assume como própria, pelo contrário,

afirma com uma radicalidade que não tem precedentes na história da

filosofia a imanência da causa nos seus efeitos, ou a inexistência

da causa fora dos seus efeitos. No spinozismo, a presença da causa

nos efeitos não é transparente: o conhecimento imaginário vê os

modos -a realidade finita- como isolados e reciprocamente

independentes. Só a razão -as demonstrações diz Spinoza- consente

vê-los como modos que expressam e constituem a essência de Deus.

Por isso, Althusser, em referência a Marx diz que, na primeira

secção do livro I do Capital, o seu modo de exposição (Darstellung)

pretende “designar ao mesmo tempo a ausência e a presença, isto é

a existência da estrutura nos seus efeitos.”10 A causalidade

estrutural apresenta-se -em Marx lido por Althusser- como ausência

duma presença, isto é como imanência, ao passo que em Rancière-

10 L. Althusser, Lire le C, II, p. 65, (o sublinhado é nosso)

Miller, a causalidade metonímica é apresentada como a presença

duma ausência, no quadro da lógica da representação que aliás

deriva da teoria da necessária e impossível representação do

sujeito desenvolvida na psicanálise lacaniana. Onde, para

Althusser há só a nada exterior ao Tudo da estrutura, colocam

Miller e Rancière o sujeito. E não se deve esquecer que a

categoria de sujeito é o alvo principal da crítica anti-humanista

de Althusser.

II. A difícil ruptura de Rancière

A “pequena” desviação em relação com o althusserismo ortodoxo

antes identificada ganhará peso, pois não demorará em articular-se

com uma tomada de posição política abertamente maoista que

definirá os termos da ruptura e marcará o rumo ulterior da obra de

Rancière. Com efeito, já no 69, Rancière escreve um artigo, Sobre a

teoria da ideologia de Althusser,11 que publica inicial e discretamente na

Argentina, para, poucos anos depois, romper aberta e violentamente

com o mestre e a sua escola na obra La leçon d'Althusser (A lição de

Althusser). Apesar da linguagem violenta da ruptura, é notável o

facto do título do livro onde formula uma crítica sem piedade da

11 Sobre la teoría de la ideología‖ en J. Ranciere et al., Lectura de Althusser,Galerna,. Buenos Aires, 1970

obra e da escola althusserianas conter a involuntária confissão

duma relação mestre-aluno que, apesar do silencio sobre ela

mantido por Rancière na sua obra posterior, continuará a produzir

efeitos consideráveis nas suas temáticas, a sua linguagem e as

suas teses teóricas.

A “lição” de Althusser, a impossível lição dum mestre paradoxal,

talvez tinha sido repetida pelo aluno apesar dele. Não é fácil

desfazer-se dum mestre anómalo como Louis Althusser. Não chega

para isso com recusar ou refutar as suas teses, nem as suas

tomadas de posição políticas, nem a sua política da teoria, nem

maldizer em geral da filosofia. Todas estas operações verificam-se

magistralmente no já mencionado texto da ruptura: A lição de Althusser.

Mas é difícil romper com um mestre cujo objecto filosófico tem por

nome “corte” e “ruptura” e tomar distança duma filosofia que

qualifica o objecto da filosofia como “o vazio duma distança

tomada” (le vide d'une distance prise).

O humanismo como problema teórico-político

Precisa, antes de entrarmos no exame dalgumas das teses deste

texto fazer um pequeno desvio que permita contemplar a perspectiva

histórica do momento da ruptura. A crítica rancieriana de

Althusser move-se a partir duma dupla acusação de “teoricismo” e

de “anti-humanismo”, mas esta é uma acusação pouco inocente, é uma

acusação muito marcada historicamente. Sabe-se que esta mesma

acusação foi a levantada contra Althusser por autores tão dispares

como o grande historiador marxista E.P.Thompson no seu livro Miséria

da Teoria (1978) ou o ilustre desconhecido chamado John Lewis -a quem

é endereçada a Resposta a John Lewis (1973) de Louis Althusser, mas foi

sobretudo formulada muito antes que eles pelo Comité Central do

Partido Comunista Francés de Argenteuil (1966)12. O PCF dos anos 60

encontra-se ainda sob o impacto do relatório segredo de Kruschov

sobre Staline. Para ele é uma questão de supervivência sair da

“fortaleza” assediada e abrir-se à sociedade, estabelecendo largas

alianças com outras forças, nomeadamente às da cultura. Para isso,

precisa duma reinterpretação do marxismo capaz de servir como

espaço de diálogo. O humanismo converte-se assim, na sua

indefinição, numa noção ideológica clave. O problema é que o

humanismo é também um conceito filosófico disputado precisamente

12 Sobre esta decisiva sessão do Comité Central do PCF dedicada aos temas da cultura e à relaçõ do Partido com os intelectuais, cf. Aragon et le Comité central d'Argenteuil inédits de L. Aragon et L. Althusser, Société des amis de Louis Aragon et Elsa Triolet, Rambouillet, 1999

nesta altura, quando ainda ressoam os ecos do texto de Sartre O

existencialismo é um humanismo (1946) e da Carta sobre o Humanismo

(1947) de Martin Heidegger. Alem disso é importante também em

meio marxista a influência sobre a interpretação do marxismo o

humanismo dos Manuscritos económico-filosóficos de Marx, descobertos e

publicados por Riazanov nos anos 30 mas só explorados

filosoficamente decénios depois por Lukács, Korsch ou Marcuse, que

sublinham nas suas interpretações da obra de Marx baseadas nesta

obra de juventude o role fundamental da antropologia e da

dialéctica da alienação.

O humanismo é assim um problema filosófico e um problema teórico

na medida em que a interpretação do Marx maduro depende do role

que se queira dar a uma obra de juventude manifestamente

humanista. Como o marxismo não é só uma teoria, mas constitui

agora a base de justificação da prática do partido, coloca-se ao

mesmo tempo que o problema do humanismo, o problema do role da

teoria em relação com a prática. O chamado “teoricismo” atribuido

a Althusser é o facto de ignorar o primado da prática sobre a

teoria -que é considerado como uma das grandes teses do marxismo-

e subordinar a primeira à segunda. Assim considerado, o teoricismo

não é apenas um problema teórico, um simples erro, mas uma

deviação, isto é, um erro com causas e consequências políticas.

Entre outras consequências pode-se assinalar que a independização

da teoria respeito da prática supõe o reconhecimento duma

liberdade de acção dos intelectuais que um partido como o PCF, que

se considera herdeiro e guardião da doutrina marxista-leninista

pode dificilmente aceitar. Quando uma política é baseada numa

suposta verdade, os dirigentes políticos -como o soberano de

Hobbes- têm que possuir o monopólio da interpretação dessa

verdade. A intenção de Althusser é apoiar-se sobre o texto de Marx

para conseguir a independência dos intelectuais respeito da

direcção do Partido e mesmo um certo role de supervisão da

direcção política dos assuntos do Partido.

A reacção de Althusser face ao humanismo é conhecida: contem-se

explicitamente em três artigos de Pour Marx (1965) nomeadamente em

“Sobre o jovem Marx”, “Os Manuscritos filosóficos de 1844” e

“Marxismo e humanismo”, mas é também presente no resto dos textos

que constituem o livro. Para Althusser existe uma ruptura entre o

Marx da madurez, isto é o autor do Capital e antes disso das “obras

da ruptura”, e o Marx humanista das obras de juventude anteriores

à Ideologia Alemã. Há, segundo Althusser, um “corte” epistemológico

entre a economia política e o que vai ser a disciplina descoberta

por Marx: o materialismo histórico, mas alem disso, dito corte

epistemológico é dobrado por uma ruptura filosófica de Marx -e de

Engels- com o que eles reconhecem, nos termos da Ideologia Alemã, como

“a nossa consciência filosófica anterior”, que é caracterizada por

Althusser como “humanista” e “idealista”. Humanista, no sentido em

que coloca no centro da realidade histórica o homem como autor e

fim da história à maneira do Kant da Ideia da História universal em sentido

cosmopolita. Idealista, em quanto faz da história o desenvolvimento

duma essência. A centralidade do homem articula-se também no

discurso do jovem Marx com uma dialéctica da história baseada na

ideia de alienação da essência humana. A história é assim história

da perdida da essência humana nos produtos do homem e da sua

recuperação por meio da tomada de consciência -“ilustrada”- do

facto que o homem é o autor real das obras materiais ou históricas

que julgava devidas a uma dinâmica alheia e transcendente. O

homem é visto nesta problemática como a origem, mesmo se

temporariamente esquecida, dos seus actos e do conjunto do devir

histórico. Também é o fim da história, pois esta acontece no

momento do reconhecimento do homem nas suas criações.

Althusser julga estas posições como inteiramente subordinadas à

ideologia burguesa (articulada ao redor dos polos do economicismo

e do humanismo) e completamente incompatíveis com o novo horizonte

teórico de Marx, com a sua crítica da economia política realizada

no Capital e com a nova ciência da história que nasce desta crítica:

o materialismo histórico como teoria das formações sociais. Daqui

a necessidade claramente expressada por Althusser de afirmar que a

condição filosófica de possibilidade do descobrimento por Marx do

“continente História” é um anti-humanismo teórico. Repare-se a

este propósito que o anti-humanismo teórico é apenas uma tese

filosófica e epistemológica que não é identificável com formas de

anti-humanismo prático, nem com a recusa de toda forma de

utilização política ou ideológica do “humanismo”.

A lição do aluno

A Lição de Althusser é em grande medida a resposta a um texto breve de

Althusser: a Resposta a John Lewis. A Resposta é com efeito um artigo

onde Althusser aproveita a ocasião duma réplica a uma crítica do

seu anti-humanismo teórico realizada por um filósofo marxista

britânico quase desconhecido na revista do PC britânico Marxism

Today, para expôr de maneira aberta e sistemática as suas posições

sobre questões como o humanismo, a história, a luta de classes

etc. É um texto polémico e às vezes tem um tom dogmático: é uma

lição dada em nome do marxismo-leninismo a uma pessoa que

ignoraria os seus fundamentos. A Lição rancieriana coloca-se assim

como uma reposta à lição ministrada por Althusser a John Lewis,

mas também como uma resposta pessoal do ex-aluno ao mestre. A Lição

de Althusser é dividida por Rancière em quatro lições principais: uma

lição de ortodoxia, uma lição política, uma lição de autocrítica e

uma lição de história. Aqui, vamos centrar a nossa atenção na

primeira “lição”, pois é ela que contem o nervo teórico da

argumentação rancieriana.

Começa Rancière por sublinhar a infidelidade do anti-humanismo de

Althusser ao texto do Marx maduro. Althusser opõe à tese de John

Lewis segundo a qual “o homem faz a história”, a tese do

“marxismo-leninismo” para o qual “as massas fazem a história”.

Para Althusser a ideia de que é o homem quem faz a história é

característica da burguesia ascendente em luta contra o sistema

feudal: “Então, proclamar como o fizeram os grandes Humanistas

burgueses que é o homem quem faz a história, era lutar, du ponto

de vista burguês, então revolucionário, contra a tese religiosa da

ideologia feudal: é Deus quem faz a História”.13

Rancière nega em primeiro lugar a verdade histórica desta

afirmação de Althusser considerando que a burguesia limita-se a

mostrar na história “os progressos do espíritu humano” à maneira

de Kant, mas não afirma por isso que seja o homem “o sujeito da

história”. Alem disso, nem os feudais atacados pela revolução

afirmaram nunca -segundo Rancière- que Deus faz a história, porque

isso “seria legitimar a revolução”14. Nem os feudais nem os

burgueses colocam assim a questão do sujeito da história, pois

corresponde a um conceito da história que ainda não existe. A

pergunta da burguesia não é então quem faz a história, senão que é o

homem? A resposta burguesa mais radical a esta pergunta seria a de

Helvetius para quem o homem é um ser material “disposto a pensar e

a agir pelas impressões materialmente produzidas sobre a sua

sensibilidade”. O homem da burguesia seria a resposta às duas

13 Louis Althusser, Réponse à John Lewis, p.25 citado por Rancière, La leçon d'Althusser, Gallimard, Paris, 1974, p.19.

14 A afirmação de Rancière é muito discutível : os grandes teóricos franceses dacontra-revolução (Joseph De Maistre, Bonlad) afirmam muito claramente que Deus é o sujeito de História, seguindo a linha dos teóricos do direito divinocomo Bossuet. Aliás, para o Kant da Ideia duma história universal num sentidocosmopolita, é a liberdade humana, mesmo se alienada a que move a história.

questões: “a questão do interesse privado e a da produção dos

efeitos de poder necessários para o seu exercício, isto é da

realização dos interesses duma minoria e os efeitos a produzir

sobre a sensibilidade da maioria”.

O homem da burguesia aparece assim para Rancière como um objecto

de manipulação, é o homem de Bentham o homem que deve ser

submetido a uma observação constante e uma manipulação adequada em

dispositivos como o Panóptico. Conclui Rancière:

“O homem da burguesia não é a grande figura unitária detrás da

qual é mascarada a exploração; no seu princípio mesmo é

desdobrado; a ideologia prática da burguesia, aquela que se trama

na reprodução das relações de poder burguesas, não é a ideologia

da pessoa livre e do homem criador de história, é a ideologia da

vigilância e da assistência. O homem da burguesia não é

fundamentalmente o sujeito conquistador do humanismo, é o homem da

filantropia, das humanidades e da antropometria: o homem que é

formado, assistido, vigiado, medido.”15

A rectificação histórica das afirmações de Althusser que oferece

15 Jacques Rancière, La leçon, p. 23

Rancière parece pertinente. Conforme ao ensino de Michel Foucault

nas aulas do Collège de France anteriores a Vigiar e Castigar, das que

Rancière teve conhecimento imediato, a figura burguesa do homem é

o resultado de dispositivos de poder que normalizam os indivíduos

e os fazem aptos para o trabalho e as relações sociais e de

produção dominantes. Há assim na construção do sujeito burguês uma

dimensão material: a dos dispositivos de vigilância e disciplina

que produzem o sujeito a través da sua sujeição.

Não é certamente nesta dimensão onde melhor se pode apreciar o

funcionamento da ideologia humanista do sujeito da história, pois

nela o indivíduo aparece como um ser passivo, plástico, face a um

poder capaz de determinar a sua conduta. Mas é esta a única

realidade da subjectividade burguesa? Segundo afirmava Althusser

no seu ensaio sobre Os Aparelhos ideológicos de Estado publicado na

revista La Pensée em 1970, se é bem certo que o sujeito burguês, o

homem, é o resultado do funcionamento material duma serie de

aparelhos ideológicos e repressivos de Estado, o resultado visível

deste processo são “sujeitos que marcham sozinhos” (des sujets qui

marchent tout seuls), isto é os sujeitos de imputação do direito, da

ética, da política e da história burguesas, os sujeitos que

“respondem” dos próprios actos, porque são “livres”. Não é

possível ignorar a outra face da sujeição que não é outra que a

ideologia do sujeito origem dos seus actos, ideologia que não é

simples erro mas a matéria mesma da nossa experiência do

mundo...como sujeitos no universo capitalista. O que precisa

entender por “Liberdade, igualdade, fraternidade e Bentham”

segundo a fórmula irónica de Marx no Capital não é -como pretende

Rancière- a unilateralidade da sujeição e do submissão, mas a

forma de iniciativa e actividade própria sob a qual se apresentam

os indivíduos na sociedade capitalista. Com efeito, Bentham como

símbolo da submissão e da manipulação não é “o segredo”, a

verdadeira e única realidade do mundo social burguês que se

apresenta como um mundo de direitos; pelo contrário, o

benthamismo, o ensino, os regimes disciplinares são dispositivos

de produção de subjectividade que encontram a sua expressão em

realidades práticas como os sujeitos do direito, da política e do

mercado. Não há um mundo real e um mundo das aparências, mas um

mundo onde as aparências podem apreciar-se como efeitos duma

causalidade inmanente.

Os dois materialismos

Na mesma linha, tenta Rancière criticar o materialismo

althusseriano assimilando-o ao materialismo burguês. Para isso,

Rancière vai-se apoiar nas Teses sobre Feuerbach de Marx, julgando que

a verdadeira ruptura de Marx com a ideologia burguesa é a oposição

entre novo e velho materialismo consignada na terceira Tese:

“A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos das

circunstâncias e da educação, [de que] seres humanos transformados

são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação

mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas

precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio

de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar

a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da

sociedade (por exemplo, em Robert Owen).”

O novo materialismo de Marx afirma que os seres humanos

transformam as circunstâncias da própria vida e que a ideia duma

transformação unilateral do ser humano por meio da “educação” -ou

da manipulação- não faz sentido, pois os educadores precisam eles

também de serem educados e mesmo eles são o resultado duma

transformação social operada pelo conjunto das interacções entre

os seres humanos que constituem a sociedade. Isto não significa,

como pretende Rancière, que Marx reconheça aqui que os homens

fazem a história no sentido que a história seria uma expressão do

desenvolvimento da essência humana, porque, não muito longe, nas

mesmas Teses (Tese VI) Marx afirma que:

“Feuerbach resolve a essência religiosa na essência humana. Mas, a

essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo. Na

sua realidade ela é o conjunto das relações sociais.

Feuerbach, que não entra na crítica desta essência real, é, por

isso, obrigado: 1. a abstrair do processo histórico e fixar o

sentimento [Gemüt] religioso por si e a pressupor um indivíduo

abstractamente - isoladamente - humano; 2. nele, por isso, a

essência humana só pode ser tomada como "espécie", como

generalidade interior, muda, que liga apenas naturalmente os

muitos indivíduos. »

A essência humana é só “o conjunto das relações sociais”, isto é,

não é uma essência isolada, uma origem, um fundamento ou um

sujeito, mas uma relação complexa. A tese: “o homem faz a

história” é assim dissolvida não apenas no “os homens fazem a

história”16 que propõe a interpretação rancieriana do texto de

Marx, mas na liquidação de toda problemática do sujeito e em geral

de toda problemática substancialista numa ontologia da relação.

O discurso do mestre

Temos que voltar de novo ao texto da terceira tese sobre

Feuerbach. Nela é conteúdo um tema que vai ser estratégico na obra

de Rancière: a crítica das posições de mestre-aluno ou do reparto

do saber entre os que se supõem saber e os que se supõem não

saber, entre sabedores e ignorantes. Nesta linha, Rancière

escreverá em 1987 O mestre ignorante, uma obra dedicada ao pedagogo

francês Jacotot, quem inventou um método de ensino baseado na

livre aprendizagem por parte dos alunos e não na típica relação

docente descendente que vai do mestre que sabe ao aluno que não

sabe. No novo método, é o aluno quem age e descobre por si mesmo

as distintas matérias. A ideia dum mestre ignorante dialectiza

assim a posição de mestre, negando-a na sua própria afirmação. O

mestre transforma-se deste modo num mediador evanescente numa

relação escolar completamente mudada.

16 « Não é o Homem quem faz a história, são os homens, isto é os indivíduos concretos, os que produzem os meios de existência, os que se batem na luta declasses »/, J. Rancière, La leçon; p. 27

Alíás, o Marx da terceira Tese antes citada por Rancière recusa a

divisão da sociedade em duas partes segundo um reparto do saber.

De novo o que é recusado é a relação de actividade-passividade

característica do materialismo burguês, quer ao nível da acção,

quer ao do conhecimento. Maio do 68 tinha passado por aí. Entre a

ortodoxia -relativa- do Rancière de Lêr o Capital e a revolta contra o

mestre, estão os acontecimentos do 68, ou o 68 como acontecimento.

A revolução de 68 é considerada por Rancière como uma grande

manifestação da espontaneidade das massas. Neste sentido, a ideia

mesma duma teoria revolucionária é contestada como tentativa de

restabelecer a ordem burguesa. Rancière repete face à Althusser e

em Paris o mesmo gesto dos guardas vermelhos de Pequim que em nome

da espontaneidade das massas ridiculizam e humilham os mestres.

Sem demasiada consciência do que isto supunha na realidade chinesa

da altura, o maoismo ocidental importa a crítica de massas e

critica os mandarins europeus. O que é completamente esquecido no

culto desta nova espontaneidade é o facto da revolta chinesa ser

em grande medida dirigida por Mao Zedong e estar completamente

dominada por uma ideologia rígida. O maoismo parecia um expressão

de liberdade face aos mandarins, mas continha de facto uma

poderosa demanda de poder. A frase do Livro Vermelho “O povo e só

o povo é a força motriz, o criador da história universal” é uma

frase do Líder, o qual unifica hobbesianamente o povo a través

duma dinâmica de representação, não é, com certeza uma expressão

imediata da consciência das massas.17

Em nome da espontaneidade e do saber das massas, Rancière critica

a ideia de Althusser segundo a qual a “história é mais difícil de

conhecer que a natureza”. Althusser afirma isto na sua polémica

com John Lewis nos termos seguintes:

“A história é tão difícil de conhecer como a natureza, tal vez

mesmo mais difícil de conhecer. Por que? Porque as massas não têm

com a história a mesma relação prática direita que têm com a

natureza (no trabalho da produção) porque estão sempre separadas

da história pela ilusão de a conhecer, pois cada classe

exploradora dominante oferece-lhes a sua explicação da história:

sob a forma da sua ideologia que é dominante e serve seus

interesses de classe, cimenta a sua unidade e mantém as massas sob

a sua exploração.”18

17  Cf. sobre a influéncia da revolução cultural em Althusser e o seu círculo, Camille Robcis, “China in Our Heads” Althusser, Maoism, and Structuralism, in Social Text, 2012 Volume 30,Number 1 110: 51-618 L. Althusser, Réponse à JL. p. 36, cité dans La leçon, p. 29

A questão da facilidade ou dificuldade do conhecimento dum objecto

é identificada por Rancière com a questão da necessidade dos

intelectuais e da vanguarda em relação com as massas que são

julgadas ignorantes. Mas o problema que coloca Althusser é outro:

é o problema da transparência do objecto do conhecimento ao seu

sujeito. Afirmar que a natureza pode ser melhor conhecida pelos

trabalhadores do que a história é só afirmar que, se a burguesia

pode ter um interesse evidente em dispor de força de trabalho

capaz de trabalhar, isto é de ter uma relação activa de

transformação respeito da natureza, este interesse não é o mesmo

no que diz respeito à história e a política. Por isso, o

conhecimento da natureza, sem ser “transparente”, é mais acessível

aos trabalhadores, pois não é -no capitalismo pelo menos- o

objecto dum dispositivo de mistificação ideológica particular.

Contrariamente a isso, a história e a política são estritamente

enquadradas nas categorias da ideologia dominante. Isto faz

necessária uma luta de classe ideológica que permita junto ao

acrescimento da potência da classe operária, o conhecimento

racional do que, doutro modo, seguiria sendo o objecto dum

conhecimento imaginário a través das categorias de sujeito, fins,

contrato, responsabilidade, traição, etc. Rancière ignora esta

necessidade e considera que as massas possuem por si mesmas um

conhecimento adequado da história e uma capacidade política de

libertação sem necessidade nenhuma de teoria, de luta de classes

na teoria, de luta ideológica, etc.

De novo, as massas apresentam-se como uma realidade substancial

transparente a si mesma, como um sujeito o como um conjunto de

sujeitos. Segundo Rancière, “a questão não é em absoluto a do

sujeito da história, mas a da competência das massas”19, pois

Althusser se opõe à tese de Mao que afirma que “são os oprimidos

os que são inteligentes e é da sua inteligência que nascem as

armas da sua libertação”. Esta tese maoista -tal como é

interpretada por Rancière- afirma em consequência que existe entre

os oprimidos e ao margem da sua luta contra opressão uma

“inteligência” e uma competência que os faz capazes de

protagonizar a sua própria libertação.

O problema é que colocar assim o problema é supor que as classes

existem como entidades autosubsistentes independentemente das

lutas de classes, que existem “oprimidos” sem que a opressão

19 J. Rancière, La leçon, p.40

submeta também as suas mentes e as suas vontades. Assim, parece

que, segundo Rancière, a classe deveria existir numa pureza

sociológica sem misturas e que os intelectuais são podem ser

aceites se eles provêm do proletariado. Deste modo, um intelectual

que não procede das classes oprimidas só pode em último termo ser

um mandarim que normaliza e neutraliza a força revolucionária das

massas. Mesmo se pretende participar na luta de classes do lado do

proletariado. O problema fundamental de Rancière é bem o do

sujeito, concebido como a origem da acção revolucionária. Por isso

Rancière precisa dum sujeito revolucionário cristalino e deve

interpretar a luta de classes como luta entre classes

preexistentes à sua luta. O proletariado não pode em modo nenhum

ser considerado como imanente à relação capital, a sua luta tem

que vir, em certo modo de fora. A luta de classes é nesta altura

da obra de Rancière um fenómeno exterior e acidental à ordem da

sociedade.

Afirma Rancière com razão que “não há uma tradição materialista

oposta a uma tradição idealista, e da qual o materialismo

dialéctico seria um género. Velho materialismo e idealismo

pertencem à mesma configuração teórica, à qual o novo materialismo

se opõe como o ponto de vista da transformação do mundo ao da sua

interpretação.”20 Mas o que isto implica não é a existência dum

sujeito da história: a transformação do mundo pode também ver-se

com Marx como “um processo real”, não como o acto dum sujeito, mas

como a resultante duma relação antagónica. É de facto assim como

Althusser vê essa luta de classes que, segundo Marx, é o motor -

não o sujeito- da história na Resposta a John Lewis:

“Para os reformistas (mesmo se se declaram marxistas) não é a luta

de classes o que está na primeira fila, senão as classes. Tomemos

um exemplo simples e suponhamos que só existem duas classes em

presença. Para o reformista, as classes existem antes da luta de

classes, um pouco como duas equipas de rugby existem, cada uma do

seu lado antes do jogo. Cada classe existe no seu próprio campo,

vive nas suas próprias condições de existência; uma classe pode

mesmo explorar a outra, mas isso não é ainda a luta de classes. Um

dia, as duas classes encontram-se e se enfrentam e são então é que

começa

a luta de classes. As duas vão às mãos, o combate torna se agudo

e, por fim, a classe explorada impõe-se à outra (é a revolução) ou

sucumbe na luta (é a contra-revolução). Dei-se a volta à questão

quanto se quiser, mas sempre se chega à mesma ideia. As classes

20 J. Rancière, La leçon, p. 37

existem antes da luta de classes, independentemente da luta de

classes, e a luta de classes só existe depois”. 21

Tal seria a consequência necessária da posição de Rancière: a

relação entre as classes é uma relação entre duas substâncias, não

é uma relação constitutiva, mas acidental. Segundo Althusser, pelo

contrário:

“para os revolucionários não é possível separar as classes da luta

de classes. A luta de classes e a existência de classes são uma

só e mesma coisa. Para numa “sociedade” haver classes é

necessário que a sociedade esteja dividida em classes; tal divisão

não se faz a posteriori, pois o que constitui a divisão em classes

é a exploração duma classe pela outra, isto é a luta de classes.

Porque a exploração é já luta de classe. Para compreender então a

divisão em classes, a existência e a natureza das classes, é

necessário partirmos da luta de classes. Por isso é preciso

colocar a luta de classes na primeira fila.”

Para Althusser, não existe a classe-substância ou sujeito pensada

pelo “reformismo” , o que existe realmente são classes resultantes

duma relação constitutiva: a luta de classes. As classes dominadas

21 Althusser, Louis, Réponse à John Lewis, Maspéro-Théorie, Paris, 1973, p. 28

e oprimidas não sofrem a exploração como um acidente exterior, mas

são constituídas nela e por ela. É por isso também que, segundo

Althusser, a classe não existe senão como sobredeterminada pelo

conjunto das relações sociais e não age nas lutas reais senão no

seio das massas, isto é dum bloco histórico de alianças onde se

integram outras classes seguindo linhas de unidade e de fractura

móveis. É por isso que pessoas que não pertencem por origem à

classe operária como o próprio Althusser ou Rancière podem-se

encontrar no campo desta e ter um role na sua luta.

Mas para Rancière esta possibilidade é excluida: o povo, o

proletariado, mesmo as massas, são essencialmente um sujeito, não

o termo duma relação constituído pela própria relação: assim, a

filosofia deve ser excluída como burguesa e como um discurso de

ordem quando não é subordinada às massas. As massas e a sua

suposta espontaneidade ocupam assim o lugar que no estalinismo

correspondia ao Partido. O pensamento deve ser submetido à prática

que é sempre a prática dum sujeito com um lugar social definido e

não é concebível uma pluralidade das práticas que não fique fixada

de forma permanente pelo lugar social que ocupam os sujeitos. Não

é assim possível pensar a luta de classes e o cambio de posições

dos indivíduos nos aparelhos ideológicos de Estado.

A luta de classes na teoria e a ideologia é só a luta dum bloco

social dos oprimidos contra o bloco dos opressores, e Rancière,

abandonando o marxismo vai-se ocupar do arquivo histórico

operário. Rancière ocupa-se sem dúvida de filosofia, mas os seus

filósofos de referência depois da ruptura com Althusser, são

pensadores “proletários”. E a eles que dedica obras, aliás de

grande interesse, como A palavra operária (La Parole ouvrière, 1976), A

noite dos proletários, arquivos do mundo operário, (La Nuit des prolétaires.

Archives du rêve ouvrier, 1981), O filósofo e os seus pobres (Le

Philosophe et ses pauvres, 1983) ou a sua edição do « filósofo

plebeio » Louis-Gabriel Gauny (Louis-Gabriel Gauny : le

philosophe plébéien, 1985). Esta é a fase identitária da obra de

Rancière, onde o tema recurrente e a existência duma cultura

proletária autónoma que assume como próprios os valores da

dignidade humana, a liberdade e a igualdade, que, para Rancière

não são valores da burguesia mas elementos duma “eterna”

reivindicação dos oprimidos face aos opressores cuja existência é

a base mesma da política.

III. Um novo encontro ou novas rupturas?

Na obra posterior, o interesse central de Rancière, alem das

questões de história proletária será a política. A partir da sua

obra Aos bordes do político, (Aux bords du politique, 1990) e de O

desacordo (La mésentente, 1995) elaborará a fundamental distinção

entre “política” e “polícia”. Esta distinção vai ter um valor

estratégico pois, se tem sem dúvida uma relação com o resgate da

memória e da subjectividade operária posteriores à polémica anti-

althusseriana, porem a definição do proletário afasta-se do

substancialismo inicial. A política é apresentada como um objecto

problemático para a filosofia. Mesmo de todas as filosofias têm

falado da política, o modo em que o têm feito tentando de reduzir

o fenómeno político a um principio de ordenação (uma arkhé) faz

que as filosofias não tenham podido reconhecer o próprio da

política:

“O que faz da política um objecto escandaloso, é que a política é

a actividade cuja racionalidade própria é a racionalidade do

desencontro (mésentente). O desencontro da política pela filosofia

tem então como princípio a redução mesma da racionalidade do

desencontro.”22

O desencontro acha-se no fundamento mesmo da política, pois toda

política joga-se entorno da definição da comunidade política, de

quem pertence a ela e de quem fica excluído. Mas sobre essa

configuração não há acordo. Existe sempre uma parte dos excluídos,

isto é uma “parte dos sem parte” no reparto do poder e das

dignidades sociais. O nome grego do povo e também dessa “parte dos

sem parte” é “demos” e “democracia” é o regime que reconhece a

existência do demos como tal. O demos não é nem um Tudo nem só

uma parte, mas a parte que coloca e volta cada vez a colocar a

exigência duma igualdade universal efectiva. O demos não é um

conceito da classe-substância, mas da luta de classes no seu role

constitutivo. Sostem assim Rancière em 1995:

“A instituição da política é idéntica à instituição da luta de

classes. A luta de classes não é o motor secreto da política ou a

verdade escondida detrás das suas aparências . É a política mesma,

a política tal como a encontram os que querem fundar a comunidade

sobre a sua arkhé. Não deve entender-se por isso que a política

existe porque os grupos sociais entram em luta pelos seus

interesses divergentes. A torsão pela qual há política, é também a

22 Rancière, Jacques, La mésentente, Galilée, Paris, 1995, p. 15

que institui as classes como diferentes de si mesmas.” E conclui:

“A política é a instituição do litígio entre classes que não são

verdadeiramente classes. Verdadeiras classes quereria dizer partes

reais da sociedade, categorias que correspondem às suas funções”.23

As classes, nesta nova problemática, só aparecem como realidades

fixas no discurso do reparto das partes da sociedade segundo um

princípio e fundamento (arkhé), mas na perspectiva genuinamente

política só determinam a própria identidade na luta que questiona

o seu lugar e a sua identidade. A política é essencialmente luta

de classes em oposição ao reparto policial do poder, da riqueza,

da dignidade, mas não é luta entre classes preexistentes.

Para concluir

É interessante constatar aqui a evolução de Rancière a partir duma

ideia de classe como sujeito nos textos da ruptura com Althusser e

na fase identitária para uma ideia da classe como resultado -e

actor- da luta de classes. Rancière, nestes textos parece ter

voltado ao althusserismo inicial, pelo menos a uma das temáticas

centrais: a conceição polémica e relacional das classes, a tese do

primado da luta de classes (política) sobre as classes.

Mas existe porem uma diferença entre Rancière e Althusser. Apesar

23 J. Rancière, La mésentente, p. 39

da curiosa proximidade entre os textos, o facto de Rancière ter

rejeitado o marxismo como crítica da economia política -como

teoria- implica que não reconhece que, a política, a luta de

classes, pousa em última instância sobre uma base material, que as

relações de produção são determinantes do antagonismo. Sem isso, a

luta de classes, torna-se uma luta sempre renovada pela justiça e

a igualdade no reparto do poder, da riqueza e da dignidade social.

Não é uma perspectiva desprezível para uma política democrática

radical, mas não abre para um alem do capitalismo, pois reafirma a

intemporalidade das grandes categorias do direito burguês,

liberdade e igualdade como base da política. Desse modo dai-se em

Rancière uma forma extrema da autonomia do político, na medida em

que a política como lei paradoxal e antagónica das sociedades

recusa toda sobredeterminação no tudo das formações sociais

concretas. O tema da exterioridade do sujeito à relação apesar das

suas variegadas redefinições continua assim a ser uma constante na

obra de Rancière. Talvez tinha isto a ver com uma ausência notável

na obra rancieriana, a do grande teórico do materialismo da

imanéncia cuja influência é constante na obra althusseriana:

Baruch de Spinoza. Foi sem dúvida a possibilidade de

reinterpretação imanentista da obra de Marx que Spinoza oferecia o

que permeteu à Althusser atravessar a crise do marxismo

estabelecendo críticamente as limites de Marx. Sem ela só era

possível uma ruptura como a que realiza Jacques Rancière.