Uma ruptura sempre adiada: Rancière e Althusser
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Um corte sempre adiado
(Rupturas e continuidades entre Jacques Rancière e Louis
Althusser)
Juan Domingo Sánchez Estop
ULB-Bruxelas
Jacques Rancière é hoje justa e unanimemente reconhecido como um
dos pensadores franceses mais originais e mais necessários para
uma crítica radical da despolitização. Junto com outros autores
que colocam a recuperação da política -que não coincide com a da
“filosofia política”- no centro do seu trabalho teórico como Alain
Badiou, Ernesto Laclau ou Slavoj Zizek, Rancière interveio
nomeadamente na conjuntura dos 80 com a intenção de evitar que o
fracasso aparente do socialismo representasse também o fim da
política. Além disso, a sua obra abrange -seguindo sempre o fio
condutor do “reparto do sensível” que ele aplica inicialmente à
política- temáticas como a história e a memória operárias ou a
dimensão social da estética. Conceitos que hoje estão em
circulação no pensamento filosófico sobre a política como a
distinção “política/polícia” ou a reivindicação da democracia como
o regime político que reconhece que sempre existe uma “parte dos
sem parte” procedem -mesmo se a popularidade que têm alcançado é
tão grande que a gente às vezes o esquece- da obra de Rancière. No
debate da esquerda, Rancière, junto com Slavoj Zizek e Ernesto
Laclau, é também um dos pensadores que têm introduzido desde muito
cedo os conceitos e os problemas da psicanálise lacaniana na
análise do político. O resultado é uma colocação original dos
problemas filosóficos, que não é fácil classificar numa corrente
ou escola. Existe porem, apesar das aparências, uma vinculação
originária e conflitual da obra rancieriana com o marxismo da
crise, nomeadamente com o althusserismo. Interessar-nos-emos aqui
prioritariamente pelos aspectos políticos da obra de Rancière e
pela sua relação com o velho mestre Louis Althusser.
I. Contexto(s) e primórdios
Num mundo ocidental onde até há muito pouco reinava o imaginário
neoliberal duma sociedade dominada pelas relações de mercado e
onde triunfava conjuntamente o liberalismo político, houve quem
julgou nos anos 90 que tinha chegado o “fim da história”1. O
totalitarismo ideológico brando do pensamento único veiculado pela
ideologia dos direitos humanos e pela economia neoliberal parecia
1 Fukuyama, Francis, O fim da história e o último homem. Tradução de Aulyde S. Rodrigues. Rio de
Janeiro: Rocco,1992
invencível. A despolitização no mundo “feliz” da gestão parecia
definitiva. 2O marxismo -que atravessava depois da queda dos
regimes socialistas da Europa de Leste a sua mais grave crise, que
alguém julgou terminal- não podia constituir na altura a posição
a partir da qual lançar um desafio às pretensões do regime
dominante. Só era possível tal desafio a partir dos significantes
que o regime reconhecia como próprios. O facto de Jacques Rancière
ter desenvolvido uma reflexão seria e profunda sobre o conceito de
democracia tirando este significante comum da banalidade permitiu
tacticamente à sua obra atacar a fortaleça do regime do interior
mesmo dele. Não era a partir duma completa desqualificação
socialista ou comunista do capitalismo ou da democracia liberal
que agiam os conceitos rancierianos, mas a partir do significante
fundamental “democracia”. É assim um mérito indiscutível de
Rancière ter procurado, junto à recuperação dum sentido “cheio” da
democracia, um restabelecimento da política entendida como
inseparável da democracia.
2 Cf. Jacques Rancière, Aux bords du politique, Folio-Gallimard, Paris, 2004, p. 9 Rancière descreve a situação nos termos seguintes : « Em todos os tons, mil discursos de universitários ou de homens de governo cantavam o fim último dasilusões da história ou da revolução. Quer acrescentavam a política à conta das antiguidades ultrapassadas, quer, pelo contrário, celebravam o seu retorno. Mas era sempre para dizer a mesma coisa : a política estava a partirde agora libertada de toda promessa de emancipação social, de todo horizonte de espera escatológica. A política era restituida à sus natureza de gestão prudente dos interesses duma comunidade. »
Com tudo, a originalidade de Rancière não exclui o facto do seu
pensamento ter-se desenvolvido num contexto histórico muito
particular: na conjuntura da crise do marxismo e mais precisamente
na elaboração desta crise em termos teóricos no seio da escola
althusseriana. Não há discípulo dissidente de Louis Althusser mais
marcado pelo mestre que Jacques Rancière, sobretudo enquanto Louis
Althusser pôs no centro do seu pensamento, já a partir dos anos
60, a crise do marxismo. O marxismo althusseriano é assim um
marxismo em crise e um marxismo da crise. Poderia-se mesmo
interpretar a obra de Rancière como um episódio dessa crise e, ao
mesmo tempo, como um longo comentário sobre uma ruptura com
Althusser e o althusserismo talvez nunca realmente concluida. Esta
não conclusão da ruptura é clara do lado de Althusser quem, apesar
das críticas às vezes ferozes recebidas, revela na sua
autobiografia que sempre admirou o aluno rebelde e que a
intervenção deste foi decisiva no rumo do seminário Ler o Capital ,
isto é num momento decisivo para a constituição do althusserismo
como escola: “Quando começou o ano escolar foi Rancière, quem para o nosso
grande alivio aceitou inaugurar o seminário. Falou três vezes duas horas com uma
precisão e um rigor extremos. Ainda hoje digo-me que sem ele nada teria sido possível. É
sabido como é que as coisas acontecem nestes casos. Quando o primeiro exponente fala e
o faz tão longa e minuciosamente, os outros aproveitam-se disto para o próprio trabalho.
E o que eu mesmo fiz, e reconheço sinceramente o que nesta ocasião eu devi a Rancière.
Depois de Rancière tudo era fácil, a via estava aberta e bem aberta, e aberta nas
categorias nas quais pensávamos na altura.”3.
É difícil um elogio mais entusiasta da parte dum professor para um
jovem aluno de 25 anos. Rancière é reconhecido em certo modo por
Althusser como “mestre do mestre”. Se há uma característica que os
alunos de Louis Althusser sempre reconheceram nele é a sua
concepção colectiva do estudo e da aprendizagem, a relativa
horizontalidade dos seminários que constituem o dispositivo clave
do seu ensino, a posta em comum de todo o material e Rancière
neste respeito foi mais um exemplo que uma excepção.
A intervenção no seminário Ler O Capital
A intervenção filosófica pública do Rancière começa com uma
comunicação bastante ortodoxamente althusseriana no seminário “Ler O
Capital” onde desenvolve uma reflexão sobre o conceito de “crítica”
no jovem Marx dos Manuscritos de '44 e no Marx do Capital. As análises
3 Althusser, Louis, L'avenir dure longtemps, suivi de Les Faits, Stock-IMEC, Paris, 1992 p. 200-201.
do jovem Rancière afastam-se muito pouco no texto da sua
intervenção no seminário das expressadas por Althusser em Pour Marx
e, de facto, como temos visto, suscitarão, ainda muitos anos mais
tarde os elogios do mestre. O aluno colocas-se assim na linha
althusseriana do anti-humanismo teórico e do corte entre o jovem
Marx e o Marx maduro.
Existe porem já uma pequena desviação de Rancière em relação como
a posição althusseriana. Tal vez, nesta altura, a diferença mais
visível entre a posição do mestre e a do aluno seja o facto deste
enfatizar mais que Althusser a temática lacaniana (ou milleriana)
da “causalidade metonímica”. Esta forma de causalidade é aplicada
na intervenção de Rancière, ao modo em que o Marx maduro pensa o
Tudo social e a relação da instância económica – determinante “em
última instância” segundo os termos de Engels- com as outras
esferas de determinação que constituem a superstrutura. A
causalidade metonímica opõe-se às formas dialécticas da
causalidade expressiva (ao modo hegeliano) que se encontram nos
textos de juventude nas quais os objectos económicos são pensados
como formas alienadas da essência humana, isto é expressões não
reconhecidas pelo sujeito da essência humana em quanto perdida nos
seus produtos . A causalidade “metonímica”4 é, pelo contrário,
aquela na qual, em termos de Rancière- “o que determina a conexão
dos efeitos (...) é a causa (…) em quanto é assente.” 5 Por
exemplo, a causa da suposta relação entre as mercadorias que
descreve Marx no capítulo do Capital sobre o fetichismo da
mercadoria, são as relações sociais de produção capitalistas, mas
estas são uma causa assente (ou metonímica) na medida em que nunca
são visíveis na esfera da troca mercantil que parece regida pelo
direito, isto é por uma relação entre objectos “suportados” pelos
seus proprietários . Há de facto uma causalidade baseada na
metonímia na relação entre mercadorias pelo facto das mercadorias
terem em comum a substância do valor (manifestada no preço), mas
esta substância comum é separada na esfera da troca das suas
condições efectivas de produção, isto é da produção de plus-valor
e da exploração capitalista. Althusser usa também o termo
“causalidade metonímica” na sua intervenção de Lire le Capital, mas
prefere-lhe o de “causalidade estrutural”.
A diferença não é apenas terminológica nem a escolha doutro termo
4 Althusser conta na sua autobiografia como a introdução por Rancière deste termo produz os ciúmes teóricos de Jacques-Alain Miller (o aluno e, ulteriormente o genro e o herdeiro de Jacques Lacan), quem se considerou roubado do seu invento conceptual. cf. Althusser, L'avenir, p.201
5 Jacques Rancière, Lire le Capital, Paris Maspéro, 1973, p.45
por parte de Althusser só faz respeito aos pretendidos direitos de
“invenção” invocados por Jacques-Alain Miller 6. Há no fundo do
debate terminológico uma diferença teórica que na altura era ainda
pouco perceptível mas que com o tempo e a evolução das
problemáticas de Althusser e Rancière vai-se fazer cada vez mais
profunda.
A causalidade metonímica no contexto originário -no interior da
problemática da psicanálise lacaniana- onde aparecem tanto o termo
como o problema (o artigo de Jacques-Alain Miller, La suture)- é
pensada como a ausência estruturalmente necessária do sujeito às
suas formas de representação, isto é à sua representação no
interior da cadeia significante. O sujeito, em tanto que é
determinado como efeito na cadeia significante, é também a causa
da relação entre significantes. Sostem assim Jacques-Alain Miller
neste importante artigo que: “Para que o recurso ao sujeito como
fundador da iteração não seja um recurso à psicologia, basta
substituir à tematização a representação do sujeito (como
significante), que exclui a consciência porque não se efectua para
6 « Quando Miller voltou em Junho de 1965 de Rambouillet, leu os roneotipos dasintervenções e descobriu que Rancière tinha-lhe “roubado” o seu conceito pessoal de “causalidade metonímica”. Rancière sofreu terrívelmente desta imputação. Os conceitos não são de todos?. Era o que eu julgava, mas Miller não o entendia assim.” L. Althusser, L'avenir, p. 201.
alguém, mas na cadeia, no campo da verdade, para o significante que
a precede.
Quando Lacan opõe à definição de signo como aquilo que representa
uma cousa para alguém, à do significante como o que representa o
sujeito para outro significante, afirma, no que diz respeito à
cadeia significante, que é ao nível dos seus efeitos e não da sua
causa que deve a consciência situar-se. A inserção do sujeito na
cadeia é representação, necessariamente correlativa duma exclusão
que é um sumiço”.7
Alem do facto de que ele mesmo fez ocasionalmente uso do termo
“causalidade metonímica”, Althusser era perfeitamente sabedor do
que estava em jogo: o problema do sujeito. Por isso afirma a
propósito deste termo o seguinte: “...não sei por que dialéctica
acabei eu mesmo, em lugar de Rancière, por ser acusado por Miller
de ter-lhe roubado o conceito de “causalidade metonímica”. […]
Encontrarão-se traças dele em Ler O Capital. Quando eu emprego esta
expressão (“causalidade metonímica”) digo numa nota que a tomei
emprestada a Miller...mas para logo a transformar em “causalidade
estrutural”, expressão que ninguém antes tinha utilizado e que é
7 Jacques-Alain Miller, La Suture: Éléments de la logique du signifiant (artigo), em Cahierspour l'analyse, Volume 1, Fevereiro de 1966.
bem minha!”8 Evidentemente Althusser não só evita o termo por
“respeito” às exigências de “autoria” do Miller, mas porque existe
um problema filosófico que o separa tanto de este como de
Rancière, nomeadamente o problema do sujeito. Com efeito, a
“causalidade” estrutural” althusseriana não terá a mesma definição
que a “causalidade metonímica”. Segundo Althusser na sua
exposição sobre O objecto do Capital no seminário, “A estrutura não é
uma essência exterior aos fenómenos económicos que vem modificar o
aspecto, as formas e as relações destes fenómenos, e que seria
eficaz sobre eles como causa assente, assente porque exterior a
eles. A ausência da causa na “causalidade metonímica” da
estrutura sobre os efeitos não é o resultado da exterioridade da
estrutura em relação aos fenómenos económicos; é ao contrário a
forma mesma da interioridade da estrutura como estrutura nos seus
efeitos. […] isto implica que a estrutura seja imanente aos seus
efeitos, causa imanente aos seus efeitos no sentido spinozista do
termo, que toda a existência da estrutura consiste nos seus
efeitos, em resumo, que a estrutura, que não é senão uma
combinação dos seus próprios elementos, não é nada fora deles”.9
A dimensão teórica e não apenas anedótica do problema é assim
8 L. Althusser, L'avenir, ibid.9 Althusser, Louis,. Lire le Capital., II, Maspéro, Paris, 1980, p. 65 (o
sublinhado é nosso)
evidente. Na posição de Rancière, já desde os primórdios da sua
obra, é clara a necessidade de pensar na causa metonímica ausente
uma forma de transcendência desta em relação aos seus efeitos. Mas
a aceitação da transcendência da causa implica uma hierarquia no
ser na qual existe por um lado o que é plenamente e, por outro, o
que é um ser menor e dependente. Tal é, por exemplo o caso -
modélico- da ontologia aristotélica. A ontologia spinozista da
imanência que Althusser assume como própria, pelo contrário,
afirma com uma radicalidade que não tem precedentes na história da
filosofia a imanência da causa nos seus efeitos, ou a inexistência
da causa fora dos seus efeitos. No spinozismo, a presença da causa
nos efeitos não é transparente: o conhecimento imaginário vê os
modos -a realidade finita- como isolados e reciprocamente
independentes. Só a razão -as demonstrações diz Spinoza- consente
vê-los como modos que expressam e constituem a essência de Deus.
Por isso, Althusser, em referência a Marx diz que, na primeira
secção do livro I do Capital, o seu modo de exposição (Darstellung)
pretende “designar ao mesmo tempo a ausência e a presença, isto é
a existência da estrutura nos seus efeitos.”10 A causalidade
estrutural apresenta-se -em Marx lido por Althusser- como ausência
duma presença, isto é como imanência, ao passo que em Rancière-
10 L. Althusser, Lire le C, II, p. 65, (o sublinhado é nosso)
Miller, a causalidade metonímica é apresentada como a presença
duma ausência, no quadro da lógica da representação que aliás
deriva da teoria da necessária e impossível representação do
sujeito desenvolvida na psicanálise lacaniana. Onde, para
Althusser há só a nada exterior ao Tudo da estrutura, colocam
Miller e Rancière o sujeito. E não se deve esquecer que a
categoria de sujeito é o alvo principal da crítica anti-humanista
de Althusser.
II. A difícil ruptura de Rancière
A “pequena” desviação em relação com o althusserismo ortodoxo
antes identificada ganhará peso, pois não demorará em articular-se
com uma tomada de posição política abertamente maoista que
definirá os termos da ruptura e marcará o rumo ulterior da obra de
Rancière. Com efeito, já no 69, Rancière escreve um artigo, Sobre a
teoria da ideologia de Althusser,11 que publica inicial e discretamente na
Argentina, para, poucos anos depois, romper aberta e violentamente
com o mestre e a sua escola na obra La leçon d'Althusser (A lição de
Althusser). Apesar da linguagem violenta da ruptura, é notável o
facto do título do livro onde formula uma crítica sem piedade da
11 Sobre la teoría de la ideología‖ en J. Ranciere et al., Lectura de Althusser,Galerna,. Buenos Aires, 1970
obra e da escola althusserianas conter a involuntária confissão
duma relação mestre-aluno que, apesar do silencio sobre ela
mantido por Rancière na sua obra posterior, continuará a produzir
efeitos consideráveis nas suas temáticas, a sua linguagem e as
suas teses teóricas.
A “lição” de Althusser, a impossível lição dum mestre paradoxal,
talvez tinha sido repetida pelo aluno apesar dele. Não é fácil
desfazer-se dum mestre anómalo como Louis Althusser. Não chega
para isso com recusar ou refutar as suas teses, nem as suas
tomadas de posição políticas, nem a sua política da teoria, nem
maldizer em geral da filosofia. Todas estas operações verificam-se
magistralmente no já mencionado texto da ruptura: A lição de Althusser.
Mas é difícil romper com um mestre cujo objecto filosófico tem por
nome “corte” e “ruptura” e tomar distança duma filosofia que
qualifica o objecto da filosofia como “o vazio duma distança
tomada” (le vide d'une distance prise).
O humanismo como problema teórico-político
Precisa, antes de entrarmos no exame dalgumas das teses deste
texto fazer um pequeno desvio que permita contemplar a perspectiva
histórica do momento da ruptura. A crítica rancieriana de
Althusser move-se a partir duma dupla acusação de “teoricismo” e
de “anti-humanismo”, mas esta é uma acusação pouco inocente, é uma
acusação muito marcada historicamente. Sabe-se que esta mesma
acusação foi a levantada contra Althusser por autores tão dispares
como o grande historiador marxista E.P.Thompson no seu livro Miséria
da Teoria (1978) ou o ilustre desconhecido chamado John Lewis -a quem
é endereçada a Resposta a John Lewis (1973) de Louis Althusser, mas foi
sobretudo formulada muito antes que eles pelo Comité Central do
Partido Comunista Francés de Argenteuil (1966)12. O PCF dos anos 60
encontra-se ainda sob o impacto do relatório segredo de Kruschov
sobre Staline. Para ele é uma questão de supervivência sair da
“fortaleza” assediada e abrir-se à sociedade, estabelecendo largas
alianças com outras forças, nomeadamente às da cultura. Para isso,
precisa duma reinterpretação do marxismo capaz de servir como
espaço de diálogo. O humanismo converte-se assim, na sua
indefinição, numa noção ideológica clave. O problema é que o
humanismo é também um conceito filosófico disputado precisamente
12 Sobre esta decisiva sessão do Comité Central do PCF dedicada aos temas da cultura e à relaçõ do Partido com os intelectuais, cf. Aragon et le Comité central d'Argenteuil inédits de L. Aragon et L. Althusser, Société des amis de Louis Aragon et Elsa Triolet, Rambouillet, 1999
nesta altura, quando ainda ressoam os ecos do texto de Sartre O
existencialismo é um humanismo (1946) e da Carta sobre o Humanismo
(1947) de Martin Heidegger. Alem disso é importante também em
meio marxista a influência sobre a interpretação do marxismo o
humanismo dos Manuscritos económico-filosóficos de Marx, descobertos e
publicados por Riazanov nos anos 30 mas só explorados
filosoficamente decénios depois por Lukács, Korsch ou Marcuse, que
sublinham nas suas interpretações da obra de Marx baseadas nesta
obra de juventude o role fundamental da antropologia e da
dialéctica da alienação.
O humanismo é assim um problema filosófico e um problema teórico
na medida em que a interpretação do Marx maduro depende do role
que se queira dar a uma obra de juventude manifestamente
humanista. Como o marxismo não é só uma teoria, mas constitui
agora a base de justificação da prática do partido, coloca-se ao
mesmo tempo que o problema do humanismo, o problema do role da
teoria em relação com a prática. O chamado “teoricismo” atribuido
a Althusser é o facto de ignorar o primado da prática sobre a
teoria -que é considerado como uma das grandes teses do marxismo-
e subordinar a primeira à segunda. Assim considerado, o teoricismo
não é apenas um problema teórico, um simples erro, mas uma
deviação, isto é, um erro com causas e consequências políticas.
Entre outras consequências pode-se assinalar que a independização
da teoria respeito da prática supõe o reconhecimento duma
liberdade de acção dos intelectuais que um partido como o PCF, que
se considera herdeiro e guardião da doutrina marxista-leninista
pode dificilmente aceitar. Quando uma política é baseada numa
suposta verdade, os dirigentes políticos -como o soberano de
Hobbes- têm que possuir o monopólio da interpretação dessa
verdade. A intenção de Althusser é apoiar-se sobre o texto de Marx
para conseguir a independência dos intelectuais respeito da
direcção do Partido e mesmo um certo role de supervisão da
direcção política dos assuntos do Partido.
A reacção de Althusser face ao humanismo é conhecida: contem-se
explicitamente em três artigos de Pour Marx (1965) nomeadamente em
“Sobre o jovem Marx”, “Os Manuscritos filosóficos de 1844” e
“Marxismo e humanismo”, mas é também presente no resto dos textos
que constituem o livro. Para Althusser existe uma ruptura entre o
Marx da madurez, isto é o autor do Capital e antes disso das “obras
da ruptura”, e o Marx humanista das obras de juventude anteriores
à Ideologia Alemã. Há, segundo Althusser, um “corte” epistemológico
entre a economia política e o que vai ser a disciplina descoberta
por Marx: o materialismo histórico, mas alem disso, dito corte
epistemológico é dobrado por uma ruptura filosófica de Marx -e de
Engels- com o que eles reconhecem, nos termos da Ideologia Alemã, como
“a nossa consciência filosófica anterior”, que é caracterizada por
Althusser como “humanista” e “idealista”. Humanista, no sentido em
que coloca no centro da realidade histórica o homem como autor e
fim da história à maneira do Kant da Ideia da História universal em sentido
cosmopolita. Idealista, em quanto faz da história o desenvolvimento
duma essência. A centralidade do homem articula-se também no
discurso do jovem Marx com uma dialéctica da história baseada na
ideia de alienação da essência humana. A história é assim história
da perdida da essência humana nos produtos do homem e da sua
recuperação por meio da tomada de consciência -“ilustrada”- do
facto que o homem é o autor real das obras materiais ou históricas
que julgava devidas a uma dinâmica alheia e transcendente. O
homem é visto nesta problemática como a origem, mesmo se
temporariamente esquecida, dos seus actos e do conjunto do devir
histórico. Também é o fim da história, pois esta acontece no
momento do reconhecimento do homem nas suas criações.
Althusser julga estas posições como inteiramente subordinadas à
ideologia burguesa (articulada ao redor dos polos do economicismo
e do humanismo) e completamente incompatíveis com o novo horizonte
teórico de Marx, com a sua crítica da economia política realizada
no Capital e com a nova ciência da história que nasce desta crítica:
o materialismo histórico como teoria das formações sociais. Daqui
a necessidade claramente expressada por Althusser de afirmar que a
condição filosófica de possibilidade do descobrimento por Marx do
“continente História” é um anti-humanismo teórico. Repare-se a
este propósito que o anti-humanismo teórico é apenas uma tese
filosófica e epistemológica que não é identificável com formas de
anti-humanismo prático, nem com a recusa de toda forma de
utilização política ou ideológica do “humanismo”.
A lição do aluno
A Lição de Althusser é em grande medida a resposta a um texto breve de
Althusser: a Resposta a John Lewis. A Resposta é com efeito um artigo
onde Althusser aproveita a ocasião duma réplica a uma crítica do
seu anti-humanismo teórico realizada por um filósofo marxista
britânico quase desconhecido na revista do PC britânico Marxism
Today, para expôr de maneira aberta e sistemática as suas posições
sobre questões como o humanismo, a história, a luta de classes
etc. É um texto polémico e às vezes tem um tom dogmático: é uma
lição dada em nome do marxismo-leninismo a uma pessoa que
ignoraria os seus fundamentos. A Lição rancieriana coloca-se assim
como uma reposta à lição ministrada por Althusser a John Lewis,
mas também como uma resposta pessoal do ex-aluno ao mestre. A Lição
de Althusser é dividida por Rancière em quatro lições principais: uma
lição de ortodoxia, uma lição política, uma lição de autocrítica e
uma lição de história. Aqui, vamos centrar a nossa atenção na
primeira “lição”, pois é ela que contem o nervo teórico da
argumentação rancieriana.
Começa Rancière por sublinhar a infidelidade do anti-humanismo de
Althusser ao texto do Marx maduro. Althusser opõe à tese de John
Lewis segundo a qual “o homem faz a história”, a tese do
“marxismo-leninismo” para o qual “as massas fazem a história”.
Para Althusser a ideia de que é o homem quem faz a história é
característica da burguesia ascendente em luta contra o sistema
feudal: “Então, proclamar como o fizeram os grandes Humanistas
burgueses que é o homem quem faz a história, era lutar, du ponto
de vista burguês, então revolucionário, contra a tese religiosa da
ideologia feudal: é Deus quem faz a História”.13
Rancière nega em primeiro lugar a verdade histórica desta
afirmação de Althusser considerando que a burguesia limita-se a
mostrar na história “os progressos do espíritu humano” à maneira
de Kant, mas não afirma por isso que seja o homem “o sujeito da
história”. Alem disso, nem os feudais atacados pela revolução
afirmaram nunca -segundo Rancière- que Deus faz a história, porque
isso “seria legitimar a revolução”14. Nem os feudais nem os
burgueses colocam assim a questão do sujeito da história, pois
corresponde a um conceito da história que ainda não existe. A
pergunta da burguesia não é então quem faz a história, senão que é o
homem? A resposta burguesa mais radical a esta pergunta seria a de
Helvetius para quem o homem é um ser material “disposto a pensar e
a agir pelas impressões materialmente produzidas sobre a sua
sensibilidade”. O homem da burguesia seria a resposta às duas
13 Louis Althusser, Réponse à John Lewis, p.25 citado por Rancière, La leçon d'Althusser, Gallimard, Paris, 1974, p.19.
14 A afirmação de Rancière é muito discutível : os grandes teóricos franceses dacontra-revolução (Joseph De Maistre, Bonlad) afirmam muito claramente que Deus é o sujeito de História, seguindo a linha dos teóricos do direito divinocomo Bossuet. Aliás, para o Kant da Ideia duma história universal num sentidocosmopolita, é a liberdade humana, mesmo se alienada a que move a história.
questões: “a questão do interesse privado e a da produção dos
efeitos de poder necessários para o seu exercício, isto é da
realização dos interesses duma minoria e os efeitos a produzir
sobre a sensibilidade da maioria”.
O homem da burguesia aparece assim para Rancière como um objecto
de manipulação, é o homem de Bentham o homem que deve ser
submetido a uma observação constante e uma manipulação adequada em
dispositivos como o Panóptico. Conclui Rancière:
“O homem da burguesia não é a grande figura unitária detrás da
qual é mascarada a exploração; no seu princípio mesmo é
desdobrado; a ideologia prática da burguesia, aquela que se trama
na reprodução das relações de poder burguesas, não é a ideologia
da pessoa livre e do homem criador de história, é a ideologia da
vigilância e da assistência. O homem da burguesia não é
fundamentalmente o sujeito conquistador do humanismo, é o homem da
filantropia, das humanidades e da antropometria: o homem que é
formado, assistido, vigiado, medido.”15
A rectificação histórica das afirmações de Althusser que oferece
15 Jacques Rancière, La leçon, p. 23
Rancière parece pertinente. Conforme ao ensino de Michel Foucault
nas aulas do Collège de France anteriores a Vigiar e Castigar, das que
Rancière teve conhecimento imediato, a figura burguesa do homem é
o resultado de dispositivos de poder que normalizam os indivíduos
e os fazem aptos para o trabalho e as relações sociais e de
produção dominantes. Há assim na construção do sujeito burguês uma
dimensão material: a dos dispositivos de vigilância e disciplina
que produzem o sujeito a través da sua sujeição.
Não é certamente nesta dimensão onde melhor se pode apreciar o
funcionamento da ideologia humanista do sujeito da história, pois
nela o indivíduo aparece como um ser passivo, plástico, face a um
poder capaz de determinar a sua conduta. Mas é esta a única
realidade da subjectividade burguesa? Segundo afirmava Althusser
no seu ensaio sobre Os Aparelhos ideológicos de Estado publicado na
revista La Pensée em 1970, se é bem certo que o sujeito burguês, o
homem, é o resultado do funcionamento material duma serie de
aparelhos ideológicos e repressivos de Estado, o resultado visível
deste processo são “sujeitos que marcham sozinhos” (des sujets qui
marchent tout seuls), isto é os sujeitos de imputação do direito, da
ética, da política e da história burguesas, os sujeitos que
“respondem” dos próprios actos, porque são “livres”. Não é
possível ignorar a outra face da sujeição que não é outra que a
ideologia do sujeito origem dos seus actos, ideologia que não é
simples erro mas a matéria mesma da nossa experiência do
mundo...como sujeitos no universo capitalista. O que precisa
entender por “Liberdade, igualdade, fraternidade e Bentham”
segundo a fórmula irónica de Marx no Capital não é -como pretende
Rancière- a unilateralidade da sujeição e do submissão, mas a
forma de iniciativa e actividade própria sob a qual se apresentam
os indivíduos na sociedade capitalista. Com efeito, Bentham como
símbolo da submissão e da manipulação não é “o segredo”, a
verdadeira e única realidade do mundo social burguês que se
apresenta como um mundo de direitos; pelo contrário, o
benthamismo, o ensino, os regimes disciplinares são dispositivos
de produção de subjectividade que encontram a sua expressão em
realidades práticas como os sujeitos do direito, da política e do
mercado. Não há um mundo real e um mundo das aparências, mas um
mundo onde as aparências podem apreciar-se como efeitos duma
causalidade inmanente.
Os dois materialismos
Na mesma linha, tenta Rancière criticar o materialismo
althusseriano assimilando-o ao materialismo burguês. Para isso,
Rancière vai-se apoiar nas Teses sobre Feuerbach de Marx, julgando que
a verdadeira ruptura de Marx com a ideologia burguesa é a oposição
entre novo e velho materialismo consignada na terceira Tese:
“A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos das
circunstâncias e da educação, [de que] seres humanos transformados
são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação
mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas
precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio
de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar
a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da
sociedade (por exemplo, em Robert Owen).”
O novo materialismo de Marx afirma que os seres humanos
transformam as circunstâncias da própria vida e que a ideia duma
transformação unilateral do ser humano por meio da “educação” -ou
da manipulação- não faz sentido, pois os educadores precisam eles
também de serem educados e mesmo eles são o resultado duma
transformação social operada pelo conjunto das interacções entre
os seres humanos que constituem a sociedade. Isto não significa,
como pretende Rancière, que Marx reconheça aqui que os homens
fazem a história no sentido que a história seria uma expressão do
desenvolvimento da essência humana, porque, não muito longe, nas
mesmas Teses (Tese VI) Marx afirma que:
“Feuerbach resolve a essência religiosa na essência humana. Mas, a
essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo. Na
sua realidade ela é o conjunto das relações sociais.
Feuerbach, que não entra na crítica desta essência real, é, por
isso, obrigado: 1. a abstrair do processo histórico e fixar o
sentimento [Gemüt] religioso por si e a pressupor um indivíduo
abstractamente - isoladamente - humano; 2. nele, por isso, a
essência humana só pode ser tomada como "espécie", como
generalidade interior, muda, que liga apenas naturalmente os
muitos indivíduos. »
A essência humana é só “o conjunto das relações sociais”, isto é,
não é uma essência isolada, uma origem, um fundamento ou um
sujeito, mas uma relação complexa. A tese: “o homem faz a
história” é assim dissolvida não apenas no “os homens fazem a
história”16 que propõe a interpretação rancieriana do texto de
Marx, mas na liquidação de toda problemática do sujeito e em geral
de toda problemática substancialista numa ontologia da relação.
O discurso do mestre
Temos que voltar de novo ao texto da terceira tese sobre
Feuerbach. Nela é conteúdo um tema que vai ser estratégico na obra
de Rancière: a crítica das posições de mestre-aluno ou do reparto
do saber entre os que se supõem saber e os que se supõem não
saber, entre sabedores e ignorantes. Nesta linha, Rancière
escreverá em 1987 O mestre ignorante, uma obra dedicada ao pedagogo
francês Jacotot, quem inventou um método de ensino baseado na
livre aprendizagem por parte dos alunos e não na típica relação
docente descendente que vai do mestre que sabe ao aluno que não
sabe. No novo método, é o aluno quem age e descobre por si mesmo
as distintas matérias. A ideia dum mestre ignorante dialectiza
assim a posição de mestre, negando-a na sua própria afirmação. O
mestre transforma-se deste modo num mediador evanescente numa
relação escolar completamente mudada.
16 « Não é o Homem quem faz a história, são os homens, isto é os indivíduos concretos, os que produzem os meios de existência, os que se batem na luta declasses »/, J. Rancière, La leçon; p. 27
Alíás, o Marx da terceira Tese antes citada por Rancière recusa a
divisão da sociedade em duas partes segundo um reparto do saber.
De novo o que é recusado é a relação de actividade-passividade
característica do materialismo burguês, quer ao nível da acção,
quer ao do conhecimento. Maio do 68 tinha passado por aí. Entre a
ortodoxia -relativa- do Rancière de Lêr o Capital e a revolta contra o
mestre, estão os acontecimentos do 68, ou o 68 como acontecimento.
A revolução de 68 é considerada por Rancière como uma grande
manifestação da espontaneidade das massas. Neste sentido, a ideia
mesma duma teoria revolucionária é contestada como tentativa de
restabelecer a ordem burguesa. Rancière repete face à Althusser e
em Paris o mesmo gesto dos guardas vermelhos de Pequim que em nome
da espontaneidade das massas ridiculizam e humilham os mestres.
Sem demasiada consciência do que isto supunha na realidade chinesa
da altura, o maoismo ocidental importa a crítica de massas e
critica os mandarins europeus. O que é completamente esquecido no
culto desta nova espontaneidade é o facto da revolta chinesa ser
em grande medida dirigida por Mao Zedong e estar completamente
dominada por uma ideologia rígida. O maoismo parecia um expressão
de liberdade face aos mandarins, mas continha de facto uma
poderosa demanda de poder. A frase do Livro Vermelho “O povo e só
o povo é a força motriz, o criador da história universal” é uma
frase do Líder, o qual unifica hobbesianamente o povo a través
duma dinâmica de representação, não é, com certeza uma expressão
imediata da consciência das massas.17
Em nome da espontaneidade e do saber das massas, Rancière critica
a ideia de Althusser segundo a qual a “história é mais difícil de
conhecer que a natureza”. Althusser afirma isto na sua polémica
com John Lewis nos termos seguintes:
“A história é tão difícil de conhecer como a natureza, tal vez
mesmo mais difícil de conhecer. Por que? Porque as massas não têm
com a história a mesma relação prática direita que têm com a
natureza (no trabalho da produção) porque estão sempre separadas
da história pela ilusão de a conhecer, pois cada classe
exploradora dominante oferece-lhes a sua explicação da história:
sob a forma da sua ideologia que é dominante e serve seus
interesses de classe, cimenta a sua unidade e mantém as massas sob
a sua exploração.”18
17 Cf. sobre a influéncia da revolução cultural em Althusser e o seu círculo, Camille Robcis, “China in Our Heads” Althusser, Maoism, and Structuralism, in Social Text, 2012 Volume 30,Number 1 110: 51-618 L. Althusser, Réponse à JL. p. 36, cité dans La leçon, p. 29
A questão da facilidade ou dificuldade do conhecimento dum objecto
é identificada por Rancière com a questão da necessidade dos
intelectuais e da vanguarda em relação com as massas que são
julgadas ignorantes. Mas o problema que coloca Althusser é outro:
é o problema da transparência do objecto do conhecimento ao seu
sujeito. Afirmar que a natureza pode ser melhor conhecida pelos
trabalhadores do que a história é só afirmar que, se a burguesia
pode ter um interesse evidente em dispor de força de trabalho
capaz de trabalhar, isto é de ter uma relação activa de
transformação respeito da natureza, este interesse não é o mesmo
no que diz respeito à história e a política. Por isso, o
conhecimento da natureza, sem ser “transparente”, é mais acessível
aos trabalhadores, pois não é -no capitalismo pelo menos- o
objecto dum dispositivo de mistificação ideológica particular.
Contrariamente a isso, a história e a política são estritamente
enquadradas nas categorias da ideologia dominante. Isto faz
necessária uma luta de classe ideológica que permita junto ao
acrescimento da potência da classe operária, o conhecimento
racional do que, doutro modo, seguiria sendo o objecto dum
conhecimento imaginário a través das categorias de sujeito, fins,
contrato, responsabilidade, traição, etc. Rancière ignora esta
necessidade e considera que as massas possuem por si mesmas um
conhecimento adequado da história e uma capacidade política de
libertação sem necessidade nenhuma de teoria, de luta de classes
na teoria, de luta ideológica, etc.
De novo, as massas apresentam-se como uma realidade substancial
transparente a si mesma, como um sujeito o como um conjunto de
sujeitos. Segundo Rancière, “a questão não é em absoluto a do
sujeito da história, mas a da competência das massas”19, pois
Althusser se opõe à tese de Mao que afirma que “são os oprimidos
os que são inteligentes e é da sua inteligência que nascem as
armas da sua libertação”. Esta tese maoista -tal como é
interpretada por Rancière- afirma em consequência que existe entre
os oprimidos e ao margem da sua luta contra opressão uma
“inteligência” e uma competência que os faz capazes de
protagonizar a sua própria libertação.
O problema é que colocar assim o problema é supor que as classes
existem como entidades autosubsistentes independentemente das
lutas de classes, que existem “oprimidos” sem que a opressão
19 J. Rancière, La leçon, p.40
submeta também as suas mentes e as suas vontades. Assim, parece
que, segundo Rancière, a classe deveria existir numa pureza
sociológica sem misturas e que os intelectuais são podem ser
aceites se eles provêm do proletariado. Deste modo, um intelectual
que não procede das classes oprimidas só pode em último termo ser
um mandarim que normaliza e neutraliza a força revolucionária das
massas. Mesmo se pretende participar na luta de classes do lado do
proletariado. O problema fundamental de Rancière é bem o do
sujeito, concebido como a origem da acção revolucionária. Por isso
Rancière precisa dum sujeito revolucionário cristalino e deve
interpretar a luta de classes como luta entre classes
preexistentes à sua luta. O proletariado não pode em modo nenhum
ser considerado como imanente à relação capital, a sua luta tem
que vir, em certo modo de fora. A luta de classes é nesta altura
da obra de Rancière um fenómeno exterior e acidental à ordem da
sociedade.
Afirma Rancière com razão que “não há uma tradição materialista
oposta a uma tradição idealista, e da qual o materialismo
dialéctico seria um género. Velho materialismo e idealismo
pertencem à mesma configuração teórica, à qual o novo materialismo
se opõe como o ponto de vista da transformação do mundo ao da sua
interpretação.”20 Mas o que isto implica não é a existência dum
sujeito da história: a transformação do mundo pode também ver-se
com Marx como “um processo real”, não como o acto dum sujeito, mas
como a resultante duma relação antagónica. É de facto assim como
Althusser vê essa luta de classes que, segundo Marx, é o motor -
não o sujeito- da história na Resposta a John Lewis:
“Para os reformistas (mesmo se se declaram marxistas) não é a luta
de classes o que está na primeira fila, senão as classes. Tomemos
um exemplo simples e suponhamos que só existem duas classes em
presença. Para o reformista, as classes existem antes da luta de
classes, um pouco como duas equipas de rugby existem, cada uma do
seu lado antes do jogo. Cada classe existe no seu próprio campo,
vive nas suas próprias condições de existência; uma classe pode
mesmo explorar a outra, mas isso não é ainda a luta de classes. Um
dia, as duas classes encontram-se e se enfrentam e são então é que
começa
a luta de classes. As duas vão às mãos, o combate torna se agudo
e, por fim, a classe explorada impõe-se à outra (é a revolução) ou
sucumbe na luta (é a contra-revolução). Dei-se a volta à questão
quanto se quiser, mas sempre se chega à mesma ideia. As classes
20 J. Rancière, La leçon, p. 37
existem antes da luta de classes, independentemente da luta de
classes, e a luta de classes só existe depois”. 21
Tal seria a consequência necessária da posição de Rancière: a
relação entre as classes é uma relação entre duas substâncias, não
é uma relação constitutiva, mas acidental. Segundo Althusser, pelo
contrário:
“para os revolucionários não é possível separar as classes da luta
de classes. A luta de classes e a existência de classes são uma
só e mesma coisa. Para numa “sociedade” haver classes é
necessário que a sociedade esteja dividida em classes; tal divisão
não se faz a posteriori, pois o que constitui a divisão em classes
é a exploração duma classe pela outra, isto é a luta de classes.
Porque a exploração é já luta de classe. Para compreender então a
divisão em classes, a existência e a natureza das classes, é
necessário partirmos da luta de classes. Por isso é preciso
colocar a luta de classes na primeira fila.”
Para Althusser, não existe a classe-substância ou sujeito pensada
pelo “reformismo” , o que existe realmente são classes resultantes
duma relação constitutiva: a luta de classes. As classes dominadas
21 Althusser, Louis, Réponse à John Lewis, Maspéro-Théorie, Paris, 1973, p. 28
e oprimidas não sofrem a exploração como um acidente exterior, mas
são constituídas nela e por ela. É por isso também que, segundo
Althusser, a classe não existe senão como sobredeterminada pelo
conjunto das relações sociais e não age nas lutas reais senão no
seio das massas, isto é dum bloco histórico de alianças onde se
integram outras classes seguindo linhas de unidade e de fractura
móveis. É por isso que pessoas que não pertencem por origem à
classe operária como o próprio Althusser ou Rancière podem-se
encontrar no campo desta e ter um role na sua luta.
Mas para Rancière esta possibilidade é excluida: o povo, o
proletariado, mesmo as massas, são essencialmente um sujeito, não
o termo duma relação constituído pela própria relação: assim, a
filosofia deve ser excluída como burguesa e como um discurso de
ordem quando não é subordinada às massas. As massas e a sua
suposta espontaneidade ocupam assim o lugar que no estalinismo
correspondia ao Partido. O pensamento deve ser submetido à prática
que é sempre a prática dum sujeito com um lugar social definido e
não é concebível uma pluralidade das práticas que não fique fixada
de forma permanente pelo lugar social que ocupam os sujeitos. Não
é assim possível pensar a luta de classes e o cambio de posições
dos indivíduos nos aparelhos ideológicos de Estado.
A luta de classes na teoria e a ideologia é só a luta dum bloco
social dos oprimidos contra o bloco dos opressores, e Rancière,
abandonando o marxismo vai-se ocupar do arquivo histórico
operário. Rancière ocupa-se sem dúvida de filosofia, mas os seus
filósofos de referência depois da ruptura com Althusser, são
pensadores “proletários”. E a eles que dedica obras, aliás de
grande interesse, como A palavra operária (La Parole ouvrière, 1976), A
noite dos proletários, arquivos do mundo operário, (La Nuit des prolétaires.
Archives du rêve ouvrier, 1981), O filósofo e os seus pobres (Le
Philosophe et ses pauvres, 1983) ou a sua edição do « filósofo
plebeio » Louis-Gabriel Gauny (Louis-Gabriel Gauny : le
philosophe plébéien, 1985). Esta é a fase identitária da obra de
Rancière, onde o tema recurrente e a existência duma cultura
proletária autónoma que assume como próprios os valores da
dignidade humana, a liberdade e a igualdade, que, para Rancière
não são valores da burguesia mas elementos duma “eterna”
reivindicação dos oprimidos face aos opressores cuja existência é
a base mesma da política.
III. Um novo encontro ou novas rupturas?
Na obra posterior, o interesse central de Rancière, alem das
questões de história proletária será a política. A partir da sua
obra Aos bordes do político, (Aux bords du politique, 1990) e de O
desacordo (La mésentente, 1995) elaborará a fundamental distinção
entre “política” e “polícia”. Esta distinção vai ter um valor
estratégico pois, se tem sem dúvida uma relação com o resgate da
memória e da subjectividade operária posteriores à polémica anti-
althusseriana, porem a definição do proletário afasta-se do
substancialismo inicial. A política é apresentada como um objecto
problemático para a filosofia. Mesmo de todas as filosofias têm
falado da política, o modo em que o têm feito tentando de reduzir
o fenómeno político a um principio de ordenação (uma arkhé) faz
que as filosofias não tenham podido reconhecer o próprio da
política:
“O que faz da política um objecto escandaloso, é que a política é
a actividade cuja racionalidade própria é a racionalidade do
desencontro (mésentente). O desencontro da política pela filosofia
tem então como princípio a redução mesma da racionalidade do
desencontro.”22
O desencontro acha-se no fundamento mesmo da política, pois toda
política joga-se entorno da definição da comunidade política, de
quem pertence a ela e de quem fica excluído. Mas sobre essa
configuração não há acordo. Existe sempre uma parte dos excluídos,
isto é uma “parte dos sem parte” no reparto do poder e das
dignidades sociais. O nome grego do povo e também dessa “parte dos
sem parte” é “demos” e “democracia” é o regime que reconhece a
existência do demos como tal. O demos não é nem um Tudo nem só
uma parte, mas a parte que coloca e volta cada vez a colocar a
exigência duma igualdade universal efectiva. O demos não é um
conceito da classe-substância, mas da luta de classes no seu role
constitutivo. Sostem assim Rancière em 1995:
“A instituição da política é idéntica à instituição da luta de
classes. A luta de classes não é o motor secreto da política ou a
verdade escondida detrás das suas aparências . É a política mesma,
a política tal como a encontram os que querem fundar a comunidade
sobre a sua arkhé. Não deve entender-se por isso que a política
existe porque os grupos sociais entram em luta pelos seus
interesses divergentes. A torsão pela qual há política, é também a
22 Rancière, Jacques, La mésentente, Galilée, Paris, 1995, p. 15
que institui as classes como diferentes de si mesmas.” E conclui:
“A política é a instituição do litígio entre classes que não são
verdadeiramente classes. Verdadeiras classes quereria dizer partes
reais da sociedade, categorias que correspondem às suas funções”.23
As classes, nesta nova problemática, só aparecem como realidades
fixas no discurso do reparto das partes da sociedade segundo um
princípio e fundamento (arkhé), mas na perspectiva genuinamente
política só determinam a própria identidade na luta que questiona
o seu lugar e a sua identidade. A política é essencialmente luta
de classes em oposição ao reparto policial do poder, da riqueza,
da dignidade, mas não é luta entre classes preexistentes.
Para concluir
É interessante constatar aqui a evolução de Rancière a partir duma
ideia de classe como sujeito nos textos da ruptura com Althusser e
na fase identitária para uma ideia da classe como resultado -e
actor- da luta de classes. Rancière, nestes textos parece ter
voltado ao althusserismo inicial, pelo menos a uma das temáticas
centrais: a conceição polémica e relacional das classes, a tese do
primado da luta de classes (política) sobre as classes.
Mas existe porem uma diferença entre Rancière e Althusser. Apesar
23 J. Rancière, La mésentente, p. 39
da curiosa proximidade entre os textos, o facto de Rancière ter
rejeitado o marxismo como crítica da economia política -como
teoria- implica que não reconhece que, a política, a luta de
classes, pousa em última instância sobre uma base material, que as
relações de produção são determinantes do antagonismo. Sem isso, a
luta de classes, torna-se uma luta sempre renovada pela justiça e
a igualdade no reparto do poder, da riqueza e da dignidade social.
Não é uma perspectiva desprezível para uma política democrática
radical, mas não abre para um alem do capitalismo, pois reafirma a
intemporalidade das grandes categorias do direito burguês,
liberdade e igualdade como base da política. Desse modo dai-se em
Rancière uma forma extrema da autonomia do político, na medida em
que a política como lei paradoxal e antagónica das sociedades
recusa toda sobredeterminação no tudo das formações sociais
concretas. O tema da exterioridade do sujeito à relação apesar das
suas variegadas redefinições continua assim a ser uma constante na
obra de Rancière. Talvez tinha isto a ver com uma ausência notável
na obra rancieriana, a do grande teórico do materialismo da
imanéncia cuja influência é constante na obra althusseriana:
Baruch de Spinoza. Foi sem dúvida a possibilidade de
reinterpretação imanentista da obra de Marx que Spinoza oferecia o